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# 198
FAKE NEWS
PROPAGAÇÃO DE NOTÍCIAS FALSAS SE ALASTRA NA WEB
#198 ano XVII • jun/17 • R$ 13,00
CONTINENTE
QUANTO NO PRODUTO S CUSTAM OS S NÃO PAG PELOS QUAIS AMOS NA DA
JUN 17
E MAIS: HQS PERNAMBUCANAS LIA RODRIGUES LUCIUS BURCKHARDT É TUDO VERDADE CAPOEIRA DE ANGOLA
Revolução Republicana
A luta pioneira de bravos guerreiros FUNCULTURA. UM DOS MAIORES E MAIS DEMOCRÁTICOS FUNDOS ESTADUAIS DE INCENTIVO À CULTURA DO BRASIL.
SABE QUAL A MELHOR MANEIRA DE INCENTIVAR A CULTURA PERNAMBUCANA? COM TRANSPARÊNCIA. www.cultura.pe.gov.br/funcultura/
A riqueza cultural do nosso estado é imensa. E valorizar a produção artística local, fundamental. Para isso, existe o Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura), que vem crescendo e se aprimorando a cada ano, prezando sempre pela transparência na distribuição dos recursos. Em 2017, serão investidos mais de R$ 42 milhões em três editais específicos: Geral, Audiovisual e Música, que juntos somaram mais de 2,3
Pernambuco comemora os 200 anos da Revolução Republicana, mil projetos apresentados. Para a inscrição de um projeto, basta estar em deflagrada em 6 de março de 1817. dia com o Cadastro de Produtor Cultural (CPC). Para Hoje,celebrar já são mais de 7 amil a data, Cepe lança a História da Revolução Pernambucana cadastrados em todo o estado. Através de seleção pública, o Funcultura em 1817, de Muniz Tavares, com notas de Oliveira Lima. Um texto democratiza o acesso às verbas destinadas à produção cultural. E contribui clássico sobre o movimento que para mostrar, aqui e lá fora, todo o talento dos pernambucanos. primeiro defendeu a instauração de uma República no Brasil e narrou a luta dos bravos guerreiros pernambucanos contra o arbítrio.
FUNCULTURA. UM DOS MAIORES E MAIS DEMOCRÁTICOS FUNDOS ESTADUAIS DE INCENTIVO À CULTURA DO BRASIL.
A riqueza cultural do nosso estado é imensa. E valorizar a produção artística local, fundamental. Para isso, existe o Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura), que vem crescendo e se aprimorando a cada ano, prezando sempre pela transparência na distribuição dos recursos. Em 2017, serão investidos mais de R$ 42 milhões em três editais específicos: Geral, Audiovisual e Música, que juntos somaram mais de 2,3 mil projetos apresentados. Para a inscrição de um projeto, basta estar em dia com o Cadastro de Produtor Cultural (CPC). Hoje, já são mais de 7 mil cadastrados em todo o estado. Através de seleção pública, o Funcultura democratiza o acesso às verbas destinadas à produção cultural. E contribui para mostrar, aqui e lá fora, todo o talento dos pernambucanos.
Ministério da Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Cultura de Pernambuco, Fundarpe, Museu do Estado de Pernambuco e Santander apresentam:
PROGRAMAÇÃO
maio e junho
Ouvindo Música no Museu do Estado de Pernambuco
2017
Em maio e junho a programação do Ouvindo e Fazendo Música no MEPE (Museu do Estado de Pernambuco) reúne músicos das mais diferentes tendências e países.
HUGO LINNS E IVES GUET 06/05 • SÁBADO • 17h
AMARO FREITAS 13/05 • SÁBADO • 17h
NOISE VIOLA 20/05 • SÁBADO • 17h
SERTÃO JAZZ 27/05 • SÁBADO • 17h
ALMÉRIO 03/06 • SÁBADO • 17h
WASSAB 10/06 • SÁBADO • 17h
HELIO FLANDERS 17/06 • SÁBADO • 14h ENTRADA FRANCA
COCO DE TORÓ PANDEIRO DO MESTRE 24/06 • SÁBADO • 17h PATROCÍNIO
PRODUÇÃO
SÁBADOS COM MAIS MÚSICA NO RECIFE
APOIO
Ouvindo Música no Museu do Estado de Pernambuco. INGRESSOS Programação regular: R$6,00 Pessoas acima de 60 anos e estudantes: R$ 3,00 Sócios da Sociedade dos Amigos do Museu do Estado de Pernambuco, clientes e funcionários do Santander têm entrada gratuita em todas as atividades. Vagas limitadas, até 20 minutos antes das atividades.
MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO Av. Rui Barbosa, 960 Graças Recife – Pernambuco – Brasil – 52011-040 Telefone: 81 3184.3174 / 3170 E-mail: museu.mepe@gmail.com Agendamento para visita guiada: 81 3184.3174 Horário de funcionamento Ter a sex 9h às 17h Sáb e dom 14h às 17h
REALIZAÇÃO
SECRETARIA DE CULTURA
MINISTÉRIO DA CULTURA
JUNHO 2017
REPRODUÇÃO
aos leitores Em artigo publicado na Wired sobre o tema de seu livro Grátis: o futuro dos preços, o jornalista Chris Anderson fez uma previsão bem radical: a de que todo conteúdo digital seguirá a tendência de ser gratuito. E ela, em parte, está sendo cumprida. “No futuro, mais serviços serão gratuitos. Há 10 anos, meu agente de viagens, meu corretor e meu contador eram todos de carne e osso. Agora, todos são programas de computador gratuitos. Qualquer coisa que possa ser transformada em um programa pode ser grátis. Cada vez mais, serviços serão transformados em softwares. Quem sabe, um dia, meu médico será um programa gratuito. Ou a professora da minha filha.” O livro foi publicado em 2009, um ano após o estouro da crise econômica nos Estados Unidos, que atingiria, em seguida, todo o mundo, inclusive o Brasil, levando o nosso país, há dois anos, para uma recessão que pode ser traduzida em fechamentos de estabelecimentos comerciais e mais desemprego e inflação. Em meio à situação de instabilidade, as empresas usam um artifício criado no final do século XIX, o grátis, que, além da economia, envolve
aspectos tecnológicos e psicológicos para incrementar vendas e manter intactas as finanças. Até onde vai o limite do grátis? Até que ponto as coisas realmente são gratuitas? Em algum momento, o consumidor vai pagar o preço por isso? Questões como essas são abordadas na matéria de capa desta edição, que também inclui um especial sobre as fake news, que circulam principalmente em serviços gratuitos, como o Facebook, Twitter e WhatsApp. As notícias falsas interferem na sociedade contemporânea nas mais diversas áreas: política, econômica, social. Elas vêm gerando, inclusive, notícias reais, desde o linchamento de uma mulher em Guarulhos (SP), acusada injustamente de sequestrar e praticar violência contra crianças, até a interferência na eleição de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos. Em meio a esse caos, pelo menos, uma boa notícia: o resultado de uma pesquisa, realizada pela Universidade de Oxford, com profissionais da comunicação de 24 países, inclusive o Brasil, revelou que 70% apontam que a crescente preocupação com as notícias falsas tende a fortalecer o jornalismo.
sumário Capa
Cultura do grátis
6 Colaboradores +
7 Cartas
8 Entrevista
Continente Online + Expediente Lia Rodrigues Coreógrafa comenta sobre novo espetáculo de sua companhia, Para que o céu não caia
12 Portfólio
Juliana Lapa Trabalho figurativo da desenhista pernambucana é influenciado pelo fantástico
18 Balaio
Dean Martin Galã hollywodiano tem três estrelas na Calçada da Fama
60 Palco
Copi Obra de dramaturgo argentino que discute a homoafetividade é encenada pelo Kunyn
69 Leitura
Edição Grupos editoriais apostam em conteúdos trabalhados com exclusividade e projetos gráficos caprichados
Usuário está acostumado a consumir bens digitais sem pagar por eles. Mas o que está por trás disso são estratégias sutis de capitalizar informações dos internautas
20
74 Entremez
onaldo Correia de Brito R Pequenos relatos de hospital
76 Visuais
São Paulo Mostra Modos de Ver o Brasil comemora os 30 anos do Itaú Cultural
Matéria corrida José Cláudio To
84 Sonoras
Bruno Giorgi Músico carioca tem revelado talento sob os auspícios do pai, Lenine
88 Criaturas
Elza Soares Por Kleber Sales
64 Claquete
É Tudo Verdade Na sua recente edição, festival discute os “revolucionários” do cinema russo e latino-americano
Viagem Rajastão
Terra dos rajputs, a região ao noroeste da Índia é berço da civilização veda, que é apontada historicamente como uma das mais antigas do mundo
44 CAPA ILUSTRAÇÃO Janio Santos
CONTINENTE JUNHO 2017 | 4
Comunicação
Especial
Na era da “pós-verdade”, cresce a difusão pela web de conteúdos inverídicos, que servem à desinformação e à boataria, acirrando a polarização da opinião
Professor e pensador suíço propôs formas práticas de discutir a sociedade europeia em suas relações com a política, a cidade, a arquitetura e o consumo
Tradição
HQ
Vertente da luta marcial foi estabelecida na década de 1940 na Bahia, e se caracteriza por uma mimetização da natureza, em passos de água e árvore
Nova safra de obras pernambucanas aponta para o seu amadurecimento conceitual e estético, e trata de temas atuais e relacionados à cultural do estado
Fake news
30
Capoeira de angola
48
Lucius Burckhardt
38
Feitos em PE
54
CONTINENTE JUNHO 2017 | 5
Jun’ 17
colaboradores
Fábio Lucas
Germano Rabello
Júlia Silveira
Roberta Guimarães
Jornalista, mestre em Filosofia e editorialista do Jornal do Commercio.
Jornalista, trabalha também com literatura, ilustração, cinema e HQ
Doutora, mestre em Comunicação e professora da UFF
Fotógrafa profissional, sóciaproprietária da Imago Fotografia
E MAIS
Ana Caroline de Lima, fotógrafa. Bárbara Buril, jornalista, mestre em filosofia pela UFPE. Beatriz Macruz, jornalista. Camila Estephania, jornalista. Carolina Albuquerque, jornalista. Karina Freitas, designer e ilustradora. Kleber Sales, ilustrador e caricaturista. Julya Vasconcelos, jornalista, mestre em Artes Visuais pela UFPE. Mateus Araújo, jornalista, mestrando em Artes Cênicas na Unesp.
GRÁTIS
VISUAIS
Como material extra da matéria de capa deste mês, que aborda as implicações da cultura do grátis em todo o mundo, disponibilizamos, no nosso site, uma palestra, realizada em 2010, pelo jornalista norte-americano Chris Anderson (ao lado), ex-editor da Wired e The Economist, sobre o conteúdo do seu livro Grátis: o futuro dos preços. Na publicação de 2009, que é uma espécie de continuação do best-seller A cauda longa (2006), o autor aponta a tendência de que a gratuidade atingirá todos os produtos e serviços oferecidos pela era digital e, mesmo assim, gerando lucros.
Veja galeria em nosso site da mostra Modos de ver o Brasil, que visitamos recentemente na Oca (SP). Aproveite e confira a lista das 750 obras da exposição.
CONTINENTE JUNHO 2017 | 6
TRADIÇÃO Confira uma galeria de imagens com registros da fotógrafa Roberta Guimarães sobre a capoeira de angola, tema de matéria nesta edição.
cartas
EXPEDIENTE GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO GOVERNADOR
INDÍGENAS E COLUNA MATÉRIA CORRIDA Parabenizo a revista por divulgar a história de nosso continente na visão de seus povos originários, os indígenas. Porém gostaria de ressaltar que na página 82, na coluna De Atahualpa a Petribú, o autor José Claudio comete um duplo erro ao afirmar, logo no primeiro parágrafo, que “a grande arma dos espanhóis foi (...) uma invençãozinha intrigante que podia passar despercebida mas de importância fundamental: a escrita”. Primeiro, porque os incas citados na matéria em questão, assim como outras diversas culturas mesoamericanas, tiveram sistemas de notação visual extremamente complexos. Nos Andes, os livros e escritas de tradição indígena foram os quipus e os tocapus. Os quipus são lidos tridimensionalmente (através de nós em fios de diversas cores) e os tocapus são um sistema de notação visual diretamente nos tecidos. Segundo, porque os relatos transmitidos oralmente por milênios pelo povo Guarani, por exemplo, não são menos relevantes do que um documento escrito por um espanhol ou um português para entendermos a história de nosso continente. Acho importante corrigir essa visão pois temos que avançar em propagar a “descolonização do pensamento” em relação aos povos indígenas, e para isso é preciso reconhecer a história dessas culturas em sua dimensão mais profunda. ANITA EKMAN SÃO PAULO – SP
REVOLUÇÃO RUSSA “Muito boas as reportagens sobre os 100 anos da Revolução Russa nas artes, com destaque para o texto de teatro, pois Astier Basílio traça uma panorâmica até o fim do período soviético. O que percebi em todas as áreas é que a Revolução Russa trouxe os ventos da liberdade para a criação artística nos primeiros 10 anos, antes de Stálin estabelecer o controle e o realismo socialista se tornar a linguagem oficial de estado. Isso engessou as correntes criativas e o que é pior: reprimiu, prendeu e até executou artistas dissidentes.” ORLANDO MINDÊLO RECIFE–PE
VIA FACEBOOK
REVOLUÇÃO RUSSA
Não sei por que o comunismo merece um tal destaque. Destruiu tudo por onde passou: a economia, a educação, a cultura; expandiu o obscurantismo à escala mundial. Aqui mesmo ao lado, nossos irmãos venezuelanos estão sofrendo por causa do comunismo. E vocês fazendo apologia desse regime sórdido, com a desculpa de que é para falar de artes... SARA NOËL–BOUTON
Paulo Henrique Saraiva Câmara SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Antônio Carlos Figueira COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE PRESIDENTE Ricardo Leitão DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO Ricardo Melo DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO Bráulio Mendonça Meneses
Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - Cepe SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL Luiz Arrais REDAÇÃO Adriana Dória Matos (editora) Mariana Oliveira (editora assistente) Débora Nascimento e Luciana Veras (repórteres especiais) Maria Helena Pôrto (revisão) Olívia Mindêlo (Continente Online) Hallina Beltrão e Janio Santos (diagramação) Agelson Soares Santana (tratamento de imagem) Joselma Firmino de Souza (produção gráfica) Eduardo Montenegro, Erika Muniz, Maria Júlia Moreira e Sofia Lucchesi (estagiários) CONTATOS (81) 3183.2780 /Fax: (81) 3183.2783 redacao@revistacontinente.com.br
NOTA DA REDAÇÃO A pauta da nossa capa de maio (nº 197) foi produzida por sua relevância histórica, como fizemos no caso da Revolução de 1817, em Pernambuco (edição de março). Várias das correntes russas do período foram inaugurais para a arte do século XX. Daí porque o tema mais do que se justifica para uma revista de cultura.
MARKETING E VENDAS Daniela Brayner, Rafael Lins e Rosana Galvão e- mail: marketing@cepe.com.br ATENDIMENTO AO ASSINANTE 0800 081 1201 Fone/fax: (81) 3183.2750 e-mail assinaturas@revistacontinente.com.br EDIÇÃO ELETRÔNICA www.revistacontinente.com.br
VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie seus comentários, suas críticas e sugestões. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se
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REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PARQUE GRÁFICO Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 - (81) 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br
CONTINENTE JUNHO 2017 | 7
LIA RODRIGUES
“O ato artístico não se limita à criação de uma obra” A coreógrafa fala sobre o mais recente espetáculo de sua companhia, Para que o céu não caia – que trata da questão indígena – e sobre sua relação com a população do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro TEXTO Luciana Veras
CON TI NEN TE
Entrevista
“Foi uma performance de muita força. Todo mundo saiu de lá emocionado.” Com essas duas frases, a fotógrafa Claudia Andujar definiu o espetáculo Para que o céu não caia, encenado durante a 4ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, em março deste ano. No palco, a Lia Rodrigues Companhia de Danças apresentava uma coreografia pujante, inspirada pelos relatos do xamã ianomâmi Davi Kopenawa ao antropólogo e etnógrafo francês Bruce Albert, compilados no livro A queda do céu. Dez bailarinos, a pele tingida, as vestes mínimas, convidavam o público a imergir em uma sequência de movimentos de impacto, encadeados como a emular um ritual de pajelança. Kopenawa também estava na plateia, para conhecer a criação. Na lembrança de Andujar, que desde os anos 1970 é uma das mais prolíficas artistas/ativistas/indigenistas do Brasil, o líder ianomâmi ficou impressionado com a conjunção de movimentos articulados a partir das suas palavras. Em conversa com a Continente para o especial sobre os indígenas publicado na edição de abril, ela percebia Para
que o céu não caia como uma iniciativa fundamental para conscientizar os jovens sobre os direitos dos povos originários, pois “são os jovens que têm que levar em frente a política e entender o sentido da vida”. De certa forma, a coreógrafa Lia Rodrigues também partilha dessa crença. Há 13 anos, ela cria, ensaia e convive no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. Em 2009, aliou-se à Redes da Maré, outra instituição da sociedade civil encravada no maior conglomerado de favelas da capital carioca, para criar o Centro de Artes da Maré/CAM. É no centro que funcionam a Lia Rodrigues Companhia de Danças, a Escola Livre de Dança da Maré, o MaréCine e o Ponto de Cultura Rede de Arte da Maré. Entre 2008 e 2009, organizou o projeto << dança para todos >>, que oferecia aulas gratuitas de dança contemporânea e consciência corporal para jovens e crianças. Ou seja, não é exagero afirmar que Lia trabalha para dar à juventude da Maré o vislumbre de um futuro para além de tiroteios e preconceito. “A favela não é, absolutamente, apenas o lugar de violência e da
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pobreza. É um espaço rico em diversidade de manifestações culturais e artísticas, com um comércio efervescente, e lugar de moradia e de vida de milhões de brasileiros”, opina a coreógrafa. Nascida em São Paulo, formou-se em balé clássico e chegou a cursar História na USP, porém os ventos afetivos e artísticos a empurraram para a França, onde integrou a Compagnie Maguy Marin. Foi no Rio, contudo, que fundou a companhia, em 1990. A carreira de Lia, 61 anos de idade e mais de 40 de atuação profissional, é repleta de prêmios e comendas – em 2007, recebeu do governo francês a medalha de Chevalier des Arts et des Lettres; em 2014, o Prêmio Prince Claus, do governo holandês; e, já neste 2017, recebeu o prêmio Bravo Bradesco por Para que o céu não caia. Sua trajetória também se caracteriza por diversos espetáculos que muito lhe orgulham, a exemplo de Pindorama (2013), Piracema (2011) e Pororoca (2009) e Aquilo de que somos feitos (2000). Foi sobre arte, dança, política e a cultura como resistência no Brasil de 2017 que ela falou, por e-mail, à Continente.
ADRIANO VIZONI/FOLHAPRESS
CONTINENTE JUNHO 2017 | 9
SAMMI LANWEER/DIVULGAÇÃO
CON TI NEN TE
CONTINENTE Como a criação artística veio a partir de um relato que nos impele a olhar para o céu sob o risco de tomarmos parte na sua queda também? LIA RODRIGUES Participar da campanha Jovem Negro Vivo, da Anistia Internacional, com uma ação nas ruas da Maré com os estudantes da Escola Livre de Dança da Maré e estudantes de dança convidados, foi um dos momentos que marcaram o início dessa criação, que nasceu do sentimento de perplexidade diante dos acontecimentos no Brasil, no mundo, no planeta. Como uma reação a esse momento que parece sem respostas. Então nos lançamos aos ensaios, encontros e conversas com uma pequena centelha, imaginado como criar uma brecha, uma pequena trégua combatente. Assim como os estudantes secundaristas que ocuparam as escolas em São Paulo e que agora ocupam as escolas no Rio de Janeiro, como o movimento LGBT, como o movimento a favor do aborto, contra a cultura do estupro, o primeiro assédio, entre tantos outros. Foram nove meses de trabalho no Centro de Artes da Maré e nos perguntamos: diante de tantas catástrofes e barbáries, que todos os dias nos assombram e emudecem, neste contexto de drásticas mudanças climáticas que escurecem o futuro, o que nos resta a fazer? Como imaginar formas de continuar e agir? O que cada um de nós pode fazer para, a seu modo, segurar o céu?
Entrevista CONTINENTE Para que o céu não caia nasce das palavras de Davi Kopenawa em A queda do céu. Ele diz que a floresta está viva, mas vai morrer, se os brancos insistirem em destruí-la e, se morrerem também os xamãs, o céu desaba. Há muita sabedoria no pensamento dele, mas também há força e um alerta. Como surgiu a ideia de transpor o livro para o palco? LIA RODRIGUES Na verdade, Para que o céu não caia não é uma transposição do livro para o palco. Leio, desde muito tempo, artigos e entrevistas de Eduardo Viveiros de Castro. Mais recentemente, li Metafísicas canibais e o livro que ele escreveu junto com Deborah Danovisky, Há mundos por vir. E também li antes de ser lançado aqui no Brasil o livro A queda do céu, de Davi Kopenawa.
Esses livros e escritos foram o ponto de partida para desenvolvermos essa peça, uma criação coletiva com os 10 artistas bailarinos, com a assistência de direção e de coreografia de Amália Lima e dramaturgia de Silvia Soter. Vivemos momentos assustadores, tristes e inquietantes. Fazer uma nova criação requer uma inclinação à esperança, em especial na Maré – esse lugar onde os direitos civis dos moradores são desrespeitados, local onde, segundo a Anistia Internacional, “a relação da polícia com os moradores é marcada por abusos e violências, consequência de uma abordagem voltada para a guerra ao tráfico que criminaliza o conjunto da comunidade, em especial os jovens negros”.
CONTINENTE JUNHO 2017 | 10
CONTINENTE Os dançarinos da sua companhia que interpretam Para que o céu não caia sobem ao palco tingidos, como indígenas preparados para um ritual, e se alternam em movimentos fortes, quase como uma coreografia de pajelança. De que modo os rituais indígenas se imiscuíram no seu processo criativo? Para preparar um espetáculo como esse, você se alimenta de montagens anteriores suas ou vai em busca de um repertório específico de referências para construir a narrativa em movimentos? LIA RODRIGUES Meus trabalhos são construídos em colaboração muito estreita com os artistas bailarinos da companhia e com a minha assistente e parceira de tantos anos, Amália Lima. É sempre muito rico o processo até chegarmos na forma final. Eu os provoco e eles me provocam com
leituras, conversas, improvisações. A cada vez que começamos um processo de criação, lançamo-nos perguntas e problemas. E as nossas experiências vão se organizando em torno disso. Cada trabalho forma um universo próprio que alimenta a criação. Eu me sinto pescando num mar cheio de ideias. E somos nós que povoamos esse mar de ideias-peixes: peixes-livros, peixes-textos, peixes-imagens, peixesconversas, peixes-sonhos. Depois, é jogar a vara e pescar. O processo de criação é bastante caótico. Ou, melhor dizendo, ele é extremamente organizado dentro de uma lógica própria e única a cada vez. Cada processo nos leva a um universo a ser descoberto. Usamos todos os recursos necessários para colocarmos uma ideia em cena, sem nos preocuparmos se eles são do universo do teatro, da literatura, da filosofia, da política, da música ou da dança. Cada criação pede uma maneira específica de trabalhar. É sempre novo: partir de novas inquietações, experimentar maneiras de se mover e pensar. É um trabalho árduo, um longo processo. E é preciso tempo para entender o corpo do outro, entender a língua que estamos falando e construir uma língua em comum, sem que se aplainem as ricas diferenças de cada um dos artistas envolvidos. Os artistas que dançam na companhia precisam ter muito desejo, inquietação e empenho para se lançarem ao desconhecido. Além de estarem abertos para uma convivência em grupo, que é sempre intensa, com suas delícias e dificuldades. Algumas vezes também trabalhamos com uma encomenda e acho um desafio interessante, uma restrição que me intriga. CONTINENTE Claudia Andujar, uma das entrevistas da Continente para o especial sobre os indígenas no Brasil de 2017 que publicamos em abril, nos contou que se sentiu bastante emocionada ao ver o espetáculo na 4ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. “Foi uma performance de muita força. Todo mundo saiu de lá emocionado”, disse a fotógrafa. Como você percebe o espetáculo no atual contexto sóciopolítico-cultural do Brasil? E, já que a sede da sua companhia fica no Complexo da Maré, como sua criação reflete tudo isso?
LIA RODRIGUES Acho que tudo o que fazemos está inserido num contexto social e político. O fato de a companhia trabalhar diariamente na Maré, de estar mais próxima dos projetos desenvolvidos pela Redes da Maré desde 2004, altera e contamina o que criamos. Sem dúvida, o lugar onde estamos está inscrito no nosso corpo e na maneira de nos movermos. São experiências estéticas impregnadas do encontro da companhia com a Maré. Um encontro pleno em suas diferentes intensidades, seus fracassos
“O título da minha última criação é Para que o céu não caia (foto). Mas o céu já está caindo. A questão é o que fazemos para segurá-lo, cada um à sua maneira. E, aqui no Brasil, muito trabalho nos espera para diminuir essa imensa desigualdade”
e vitórias, de buscas alternativas para sair de alguns impasses. Acho que essa ideia de encontro das diferenças, de mistura e de invasão vem mesmo permeando meu trabalho nos últimos anos. É claro que essa escolha de estar na Maré muda o meu trabalho. Tem uma expressão de que eu gosto: “a gente tem que outrar”. A gente tem que virar o outro. Não virar o outro totalmente, mas olhar para a diferença e achar uma coisa que às vezes não combina, mas não faz mal, a gente está junto mesmo sem combinar. Meu encontro com a Maré é também assim. A favela não é absolutamente apenas o lugar de violência e da pobreza. É um espaço rico em diversidade de manifestações culturais e artísticas,
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com um comércio efervescente, e lugar de moradia e de vida de milhões de brasileiros. A questão é a ausência da atuação do Estado. Quando eu decidi instalar a minha companhia de dança em uma favela, estava ciente de que estaríamos diante de situações muito específicas, resultantes das desigualdades econômicas e sociais. Mas, para mim, o ato artístico não pode ser limitado à criação de uma obra de arte. Precisamos ocupar um espaço e criar um território. A decisão de desenvolver o meu trabalho na Maré significa tomar uma posição política e ir contra a tendência de exclusão dessa grande parte da população do Rio de Janeiro. Nos tempos que correm, nos quais mais e mais muros e barreiras são construídos e onde territórios são ferozmente defendidos e demarcados, propomos fazer o movimento inverso e descobrir novas oportunidades de partilha, diálogo e criação. CONTINENTE Como a arte e a cultura podem atuar na resistência em um país cuja democracia está em escombros após um golpe? LIA RODRIGUES Trabalhar com cultura no Brasil é um árduo trabalho! Nós, artistas, compartilhamos a imprevisibilidade dos recursos para a manutenção de nossas atividades, e cada um de nós procura estratégias diferentes para continuar criando. Posso afirmar que fazer arte no Brasil é um processo contínuo de afirmação, investimento e resistência. Tenho 61 anos e trabalho como artista desde os meus 18 anos. Os próximos passos no meu trabalho de criação estão conectados com esses tempos sombrios que estamos vivendo aqui no Brasil e no mundo. Como projetar o futuro então? E, se alguma esperança há, onde ela reside? Só sei que há de ser uma esperança combatente. O título da minha última criação é Para que o céu não caia. Mas o céu já está caindo e vai acabar caindo sobre nossas cabeças. É uma certeza. A questão é o que fazemos para segurá-lo, cada um à sua maneira. E, aqui no Brasil, muito trabalho nos espera para diminuir essa imensa desigualdade. E também acredito (ou procuro ainda acreditar) que a criação artística, nesse mundo a cair, pode ser ainda um campo de batalha, uma arma a ser empunhada e brandida.
DIVULGAÇÃO
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FOTOS: DIVULGAÇÃO
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CON TI NEN TE
Portfólio
Juliana Lapa
O ABISMO DO DESENHO TEXTO Sofia Lucchesi
Mulheres, homens, animais, criaturas míticas, florestas, montanhas e
cidades imaginárias são parte do universo da artista Juliana Lapa. Conduzida pelo fantástico, a desenhista encontra seus caminhos de acesso ao subconsciente. Sua relação especial com as técnicas em grafite, desenvolvida à lentidão de detalhamento artesanal, deu início a um trabalho de mergulho profundo, em que produz desenhos de quase um metro e meio. “Quando comecei a utilizá-lo, vi que conseguia acessar coisas muito profundas com o escuro do grafite, com a luz e o brilho que ele proporciona. É um material básico, rústico. É um mineral”, conta a artista. Nascida em Carpina, Zona da Mata Norte de Pernambuco, a artista de 31 anos é autodidata e desenha desde criança, mas há apenas três anos quis dedicar-se inteiramente à prática artística. Antes disso, Juliana fez faculdade de Direito, quase entrou na política – candidatou-se à vereadora na sua cidade natal em 2008 – e trabalhou com produção cinematográfica.
CONTINENTE JUNHO 2017 | 14
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fantástico e o O erótico se fundem neste desenho, que compõe a série Animal incomum
Nestas páginas 2 CURAMATA
série foi exibida A na Casa do Cachorro Preto, em agosto de 2016
3-4 GRAFITE Nas obras Duração de tempo tolerável e Mata Norte, ela utiliza a técnica com a qual mantém uma relação especial
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FOTOS: DIVULGAÇÃO
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CON TI NEN TE
Portfólio
Em seu ateliê e casa, no Bairro de Casa Amarela, no Recife, trabalha em cinco ou seis obras ao mesmo tempo, permanecendo em constante “estado de desenho”, num processo em que coloca seu corpo em exaustão – como se o lápis fosse uma extensão dele. “O que eu procuro é não ter controle do traço, empurrá-lo contra parede, ir até o meu limite… Faço ‘desenhos de exaustão’, gosto de exaurir a técnica, até cansar a mão mesmo, de doer. Expandir o desenho, sem pegar atalhos. Busco a perda do controle, não me atenho a uma ideia preconcebida. Desenhar, para mim, é como ficar diante de um abismo”, conta a artista sobre seu processo. Com uma rotina disciplinada, Juliana chega a dedicar 10 horas diárias à prática do desenho e da pintura, começando ao nascer do sol. A série em grafite Animal incomum – uma referência direta ao termo
kaiju, gênero de filmes japoneses como Godzilla e Gamera – traz seres gigantes em cidades fantásticas, de personalidade própria, quase humanas. Símbolos e memórias afetivas dão vida a cidadespersonagens, com inspiração no livro Cidades invisíveis, de Ítalo Calvino. A literatura é parte importante da vida da artista, que cresceu rodeada por livros do acervo pessoal de seu pai. Além de Calvino, o olhar sociológico de Gilberto Freyre e Josué de Castro também influi em suas obras. A giganta, o primeiro trabalho da série, teria sido cartaz do festival Janela Internacional de Cinema em 2015, mas foi considerado “obsceno” e “lascivo” por um dos patrocinadores e teve que ser substituído. O desenho acabou entrando para o catálogo do festival. Na “escavação”, em pastel a óleo sobre madeira, Juliana encontrou um descanso para o trabalho pesado, “de mina de carvão”, que produz com o grafite. Na série Outros esquemas do corpo, as pinturas passam por uma espécie de processo arqueológico,
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riscando e “cavando” a madeira, num percurso intuitivo de investigação que revela os vestígios do que havia sido feito anteriormente. Como parte do processo artístico e de autoconhecimento, a artista mantém diversos cadernos com anotações e desenhos, cada um com funções específicas. Ela, que conta nunca sair de casa sem um caderno, dedica um deles para o registro de seus sonhos. Florestas e matas são elementos que surgem constantemente em seus trabalhos e, para a ela, simbolizam a representação do seu inconsciente. Isso começou com um episódio particular, após uma viagem à Amazônia. “Em certo momento, era noite e eu lembro estar lá dentro, no meio do mato. Era um lugar escuro, cheio de animais que me assustam, cheio de espinhos, plantas e possíveis ameaças à minha vida. É um lugar hostil e desconhecido, como o meu inconsciente. A floresta é como se fosse um campo interno meu, caótico, escuro e em que eu tenho medo de entrar.”
5 PAISAGEM ÁRIDA SOLAR
A memória afetiva de Juliana Lapa, nascida em Carpina, sobre a Zona da Mata Norte aparece em vários desenhos MAPA 6
SENTIMENTAL
az parte da série F Outros esquemas do corpo, na qual a artista risca e "cava" as pinturas em pastel a óleo
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SLOW ART DAY
Cem anos de um galã Dean Martin (1917– 1995) é um dos raros artistas de Hollywood a ter mais de uma estrela na Calçada da Fama. São três: para o trabalho no cinema, na TV e na música. Em todas essas áreas, o descendente de imigrantes italianos se destacou. O começo do percurso que o levou ao sucesso profissional se deu em 1946, quando se aliou a um também desconhecido artista para formar uma dupla, Jerry Lewis. Em 11 anos, estrelaram 16 filmes. A vitoriosa parceria só foi encerrada porque Martin, que sempre fazia o papel de galã nas comédias, passou a se sentir subutilizado. Os roteiros privilegiavam as falas de Lewis. Ao contrário da expectativa, Martin sobreviveu à carreira solo e fez trabalhos revelantes, como Os deuses vencidos (1958), com Marlon Brando e Montgomery Clift; Deus sabe quanto amei (1958), com Shirley MacLaine e Frank Sinatra; Onde começa o inferno (1959) e Onze homens e um segredo (1960). Neste último, atuou ao lado dos amigos do Rat Pack, grupo masculino que, às vezes, poderia contar com a presença de Judy Garland, Shirley McLaine e Lauren Bacall (que criou o apelido). Bem-humorado, charmoso e carismático, Dean Martin dividia com Frank Sinatra a liderança da turma. Sua última apresentação em público foi exatamente com Sinatra e Sammy Davis Jr. “A satisfação que tenho de trabalhar com esses dois vagabundos é a de que damos mais risadas do que o público.” DÉBORA NASCIMENTO
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A FRASE
“Memória é vida. Por ser transmitida por grupos humanos, está em permanente evolução.” Eric Hobsbawm, historiador que faria 100 anos este mês
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O movimento slow ficou conhecido quando propôs a desaceleração dos hábitos alimentares, o slow food. Dentro dessa ideia de que precisamos ir um pouco mais devagar, surgiu também a proposta da slow art, cujo dia se comemorou em 8 de abril. A proposta é de que as pessoas passem mais tempo apreciando uma obra, indo além da média de 15 a 30 segundos de apreciação, apontada por dados do New York Times. Uma ação voluntária mundial marcou a data propondo que o visitante passasse por cinco obras, observando cada uma delas por cerca de 10 minutos. Depois, os grupos se reuniam para discutir sobre a experiência. Essa atividade parece pertinente, quando se percebe que, em linhas gerais, o público que frequenta exposições tem aumentado, mas que essa frequência não é sinônimo de empatia com os trabalhos. Boa parte passa batido pelo que vê e aproveita para fazer algumas selfies. MARIANA OLIVEIRA
Balaio APRECIANDO UM ABACAXI Dois estudantes ingleses, Ruairi Gray e Lloyd Jack, viraram artistas do dia para a noite. Em maio, os universitários deixaram um abacaxi que haviam comprado por cerca de R$ 4,00 num espaço vazio dentro de uma exibição artística, na Universidade Robert Gordon, na cidade de Aberdeen, Escócia. Dias depois, quando voltaram ao local, a fruta ainda estava lá, agora elevada à categoria de obra de arte, protegida por uma redoma de vidro. Em depoimento ao jornal Daily Mail, Gray disse: “Eu vi um espaço vazio na exposição e decidi ver quanto tempo o abacaxi ficaria lá ou se as pessoas acreditariam que aquilo era arte”. Acreditaram. (MO)
ARQUIVO
GUARDIÕES DA SESSÃO Um homem e uma mulher se conheceram pela internet. Marcaram o primeiro encontro num cinema em Austin, no Texas. Mais precisamente numa sessão de Guardiões da Galáxia Vol 2. Não se sabe se ela não estava interessada no filme de aventura ou na companhia, mas começou a teclar no celular. Após vê-la absorta na tela por 20 minutos, ele sugeriu que teclasse do lado de fora da sala de exibição. Ela, então, foi embora e o deixou sem a carona da volta. Numa mensagem, o enjeitado cobrou o dinheiro do ingresso (U$ 17,31), recebendo uma negativa. Revoltado, processou-a para ser reembolsado. Segundo o advogado, “teclar no celular é uma violação à política do cinema. Os danos podem ser pequenos, mas a causa é justa, dado que o comportamento da acusada é uma ameaça à sociedade civilizada”. Agora, a ré ameaça processá-lo também por ter contatado sua irmã mais nova exigindo o valor do bilhete. “Não sou uma mulher má. Eu só saí de um encontro”, disse, completando que a obrigação de pagar pelo cinema era dele. (DN)
O Pulitzer faz 100 anos Nos Estados Unidos, o maior prêmio de jornalismo é o Pulitzer. Ele dá aos vencedores locais o prestígio equivalente ao conferido pelo Esso, no Brasil. É como um passe, pelo qual o jornalista alça outro patamar na sua carreira. Ele vem sendo ofertado desde 1917, através da nova-iorquina Columbia University, a partir da doação de um milhão de dólares feita à instituição (isso, em 1903) pelo jornalista e editor húngaro Joseph Pulitzer (acima), para que ali fosse criado um curso de Jornalismo. O prêmio veio como um atestado de excelência do curso. Mesmo restrito a matérias publicadas em jornais norte-americanos, o Pulitzer tem repercussão mundial. Muitos dos seus vencedores tornam-se livros, que ganham traduções pelo mundo – são 21 categorias, sendo as de maior apelo internacional as reportagens investigativas e internacionais e aquelas que ressaltam o texto bem-realizado, como as de Criticism, Commentary e Feature Writing. Boa parte desses premiados está disponível online. Em edições brasileiras, podemos citar o editor da New Yorker David Remnick como um atestado de qualidade do Pulitzer. Basta ler O túmulo de Lênin – Os últimos dias do Império Soviético (pelo qual o jornalista ganhou o prêmio, em 1994) e Dentro da floresta, coletânea de perfis, para usufruir a boa leitura. ADRIANA DÓRIA MATOS
DELAÇÃO PREMIADA O que nos vem à cabeça ao ouvir a expressão “delação premiada”? A expressão jurídica, que se popularizou ao aparecer constantemente nas manchetes dos noticiários, introjetou-se no imaginário brasileiro como prenúncio de revelações bombásticas sobre novos antigos esquemas de corrupção. Em videoarte publicada no site da revista Zum, a artista Giselle Beiguelman e o curador Nelson Brissac atentam para além do discurso falado. Os cubículos fechados e quase vazios onde os depoimentos acontecem e a indiferença dos envolvidos – expressa pela linguagem corporal – são elementos que compõem a Estética da delação premiada. Em alguns casos, o não dito pode dizer mais do que a palavra. SOFIA LUCCHESI
PIRATAS X PIRATAS No mês passado, hackers pediram à Disney um resgate para não divulgar o novo Piratas do Caribe: a vingança de Salazar. O estúdio não pagou a quantia exigida pelos “sequestradores” do filme, que estreou no dia 25, tendo no elenco Johnny Depp, Geoffrey Rush, Keira Knightley, Orlando Bloom e Javier Bardem, além de participação especial de Paul McCartney (foto). O não pagamento também foi a resposta da Netflix em abril, quando hackers cobraram um valor para não publicar a nova temporada de Orange is the new black. (DN)
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JANIO SANTOS
CON TI NEN TE
CAPA
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O que está por trás desta oferta? Como a estratégia do gratuito, surgida no final do século XIX, colabora com a movimentação de produtos, serviços e ideias no mundo contemporâneo e influencia o comportamento do público TEXTO Débora Nascimento
Há exatos 20 anos, o Radiohead
lançava OK Computer. Sem saber, com esse terceiro disco da carreira, a banda inglesa publicava o último grande álbum do rock antes da derrocada da indústria fonográfica como a conhecíamos até então – comandada pelas gravadoras. Distribuído pela gigante EMI, o disco vendeu 5 milhões de cópias físicas em todo o mundo e foi aclamado pela crítica como uma obra-prima. Dez anos depois, em outubro de 2007, já num mercado totalmente diferente, dominado pelos downloads gratuitos, o quinteto anunciava seu sétimo trabalho, In rainbows, mas com uma diferença: além de liberálo gratuitamente, informou que, se o público quisesse pagar pelo download, poderia, ele mesmo, estabelecer o seu preço. Ao contrário de grupos como o Metallica, que estavam brigando com os próprios fãs, o Radiohead moldou-se ao novo ambiente e ainda conseguiu, com isso, uma forma de divulgar o
lançamento. A liberdade que deu ao ouvinte repercutiu nas páginas de jornais e sites de notícia e se tornou a mais emblemática e bem-sucedida estratégia de divulgação de um disco em meio ao tipo de comportamento que caracterizaria o consumidor a partir dos anos 2000: a relutância em pagar por qualquer coisa. O lançamento do Napster, que liberava músicas gratuitamente através do sistema P2P ou peer-to-peer (par a par, em que cada computador conectado realiza as funções de cliente e servidor), foi decisivo para a transformação comportamental que se estabeleceu a partir de 1999, como o encerramento de uma era e o início de outra, na qual obter coisas gratuitamente passou a gerar uma nova forma de cultura, a cultura do grátis. Isso vem moldando a Geração Y ou Millennial, acostumada a ter (quase) tudo de graça, de forma extremamente rápida e – por que não? – descartável.
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O Google, que se destacou pelo seu sistema de buscas, surgido em setembro de 1998, é possivelmente o maior símbolo dessa época que vivemos. Afinal, é a mais bem-sucedida empresa que vive (e lucra) em torno do grátis, com rendimento líquido em 2016 de R$ 5 bilhões – esse valor pode ser até maior ou menor, pois, numa metalinguagem, essa informação foi encontrada numa busca no próprio Google. “Essa é a Geração do Google e ela cresceu online presumindo que tudo que é digital é grátis. Eles internalizaram a dinâmica de mercado sutil da economia do custo marginal quase inexistente, da mesma forma que nós internalizamos a mecânica newtoniana quando aprendemos a pegar uma bola. O fato de estarmos criando uma economia global em torno do preço zero parecia tão óbvio, que mal chegava a ser notado”, afirmou o jornalista Chris Anderson, no livro Grátis: o futuro dos preços, lançado em
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2009, um ano após o estouro da crise econômica nos Estados Unidos. Essa mudança no comportamento no público vem sendo percebida pelo produtor musical Paulo André Pires, realizador há 24 anos do Abril Pro Rock, festival recifense de impacto nacional, que lançou diversas bandas. “É como se a plateia estivesse acostumada aos shows gratuitos e não quisesse mais desembolsar para ouvir música. A Nação Zumbi há oito anos não toca no festival, porque sempre se apresenta no Carnaval. Só neste ano não tocou. Então, fez um show particular e lotou. Não sou contra o show gratuito, sou contra a falta de política cultural. Os shows gratuitos toda semana no Pátio de São Pedro nem revitalizaram a área nem fortaleceram a cena musical, porque não eram planejados, pensados, eram feitos no ‘vai fazendo’. Não basta montar o palco e botar o som. É preciso fazer um trabalho maior. Conheço alguns nomes que não conseguem fazer um show privado porque não têm público fora do esquema gratuito. Acho que a Terça Negra (o evento gratuito a que o produtor se refere, no Pátio de São Pedro, no centro histórico
Usar o grátis como tática mercadológica não é garantia de um resultado positivo, como a parceria entre o U2 e a Apple do Recife) é uma política pública eficiente porque apresenta uma música que não encontra espaço nas casas de shows pagos”, avalia. Nem todas as vezes usar o grátis como tática mercadológica é garantia de um resultado positivo. Em 2014, para divulgar o iPhone 6, a Apple, em uma parceria com o U2, fez uma surpresa para 500 milhões usuários do iTunes. No dia 9 de setembro, nos smartphones e computadores, foi disponibilizado o novo álbum da banda irlandesa, Songs of innocence. O que parecia ser um plano genial acabou surtindo um inesperado efeito. O grupo e a companhia não levaram em consideração que, primeiro, estavam invadindo os celulares das pessoas; segundo, nem todo mundo é fã
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do U2, principalmente essa nova geração de ouvintes de música e, por fim, o disco era um dos mais fracos do quarteto. Não demoraram a surgir, nas redes sociais, reclamações dos agraciados, que, sim, se tornaram a principal notícia musical do dia, e não o disco gratuito em si. A empresa, que gastou 100 milhões para distribuir Songs of innocence, teve que lançar e divulgar uma ferramenta para o usuário poder apagar o brinde dos celulares e computadores. O primeiro exemplo de serviço gratuito “virtual” (não digital, virtual) vem exatamente da área musical: o conteúdo reproduzido pelo rádio. Quando o aparelho foi popularizado, no início do século passado, surgiu o primeiro embate na indústria musical. As transmissões eram feitas ao vivo e os músicos recebiam por elas. Com o sucesso do veículo, os músicos passaram a cobrar cachês maiores, afinal estavam sendo ouvidos por milhares de pessoas. A lógica é que, se essas mesmas pessoas estivessem numa casa de shows, eles lucrariam mais. Como naquela época ainda não existia medição de audiência eficaz,
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a American Society of Composers, Authors and Publishers (Ascap), que detinha o contrato da maior parte dos artistas, estabeleceu direitos autorais de 3% a 5% sobre o faturamento publicitário em troca do direito de executar as músicas. Como resposta, as estações de rádio extinguiram as apresentações ao vivo e passaram a executar as músicas gravadas, anunciadas por um locutor, que seria chamado de disk jockey (DJ). As gravadoras reagiram vendendo discos com o alerta “Não licenciado para a transmissão por rádio”. Em 1940, no entanto, a Corte Suprema decretou que as emissoras poderiam reproduzir uma gravação, se comprassem o disco. No duelo, a Ascap convenceu seus associados a pararem de gravar. Com uma seleção de músicas menor, as empresas criaram o próprio órgão de direitos autorais, a Broadcast Music Incorporated (BMI), que foi em busca de novos artistas. A partir daí, gêneros como rhythm and blues, country e western, antes ignorados, ganharam espaço nas rádios. Muitos desses músicos, de origem humilde e alheios à discussão
pela valorização dos cachês, permitiram que as estações de rádio executassem gratuitamente suas composições. Com isso, o rádio se tornou o principal meio de divulgação de música, status que passou a ser abalado a partir dos anos 2000, com os downloads gratuitos, e 2005, com o surgimento do YouTube. Como aumentou a oferta de artistas querendo suas músicas nas rádios, em vez de pagá-los, as emissoras passaram, inclusive, a receber para tocar músicas, o chamado “jabá”. O jogo se inverteu. E as taxas de direitos autorais continuaram baixas. Essa gratuidade da audição da música, através do rádio, contribuiu para que o mercado musical se estabelecesse. Os artistas passaram, então, a lucrar mais com a venda de ingressos para shows e discos.
ISCA
Mais de meio século depois dessa grande farra na indústria fonográfica, com músicos vendendo milhões de cópias e rádios e gravadoras alcançando lucros estratosféricos, as trocas de arquivo, a pirataria, o download gratuito pareciam que iam acabar com tudo.
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RADIOHEAD 1 Estratégia do lançamento de In Rainbows entrou para a história
2 U2 E APPLE Parceria que disponibilizou disco no iTunes foi um fiasco
Então, a Apple surgiu com a venda de faixas isoladas através do iTunes, o que destruiu de vez com o conceito de “álbum de rock”, como era, por exemplo, o citado OK Computer do Radiohead. E depois surgiriam as plataformas de streaming, que parecem ser a solução possível para quem quer continuar vivendo de música. O Spotify, o mais popular desse tipo de serviço, disponibiliza uma opção gratuita, em que o usuário não tem as vantagens do manejo da versão paga, mas é uma forma de prender o futuro assinante, que, por R$ 16,90 mensais, têm o direito de ouvir todas as músicas existentes no catálogo, mais de 30 milhões – uma espécie de ampliação dos antigos clubes do disco, nos quais o cliente pagava uma quantia mensal e recebia em casa alguns lançamentos. O serviço gratuito do Spotify é, na realidade, pago pelos assinantes. Hoje, são mais de 100 milhões. A lógica é
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3-4 CHRIS ANDERSON Em livro, jornalista aponta tendência à gratuidade GOOGLE 5 Empresa é o maior símbolo do grátis
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igual ao sistema das academias de ginástica, que oferecem descontos por pacotes de longos períodos. Os clientes que não se exercitam com frequência, sem perceber, estão pagando para que os novatos tenham descontos e os assíduos se beneficiem. Na Dinamarca, uma academia de ginástica chegou a oferecer um programa em que o cliente não paga nada, se aparecer uma vez por semana, pelo menos. Mas, se faltar uma semana, pagará a mensalidade integral. Isca para atrair consumidores, ninguém raciocina muito sobre o que está por trás da gratuidade. O Google, maior empresa voltada para o grátis, surgiu em 1998, na Califórnia. Criou uma forma veloz, eficaz e simples
de pesquisar conteúdo na internet. Derrubou, com isso, os sistemas de buscas que existiam na época. Ao demarcar território entre 1999 e 2001, criou, entre 2001 e 2003, um autosserviço para os anunciantes elaborarem anúncios correspondentes às palavras-chave de busca e darem lances pelas posições de maior visibilidade para suas empresas. A corporação também gerou outros serviços para fincar de vez a marca. Hoje, oferece quase 100 produtos, de software de edição de fotos a aplicativos de processamento de textos e planilhas eletrônicas. Dentre os serviços, está o Gmail, lançado no dia 1o de abril de 2004. Até então, o maior provedor de
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e-mail era o Yahoo, com 125 milhões de usuários – a maioria usava a versão gratuita, com 10 megabytes de armazenamento. Quem quisesse mais, teria que pagar de 25 megabytes a 100 megabytes, e evitava, também, os anúncios. O Google, então, lançou gratuitamente seu serviço de e-mail com 1 gigabyte de armazenamento (mil megabytes) – 100 vezes a capacidade do Yahoo. No mês seguinte, o armazenamento grátis do Yahoo passou de 10 a 100 megabytes e logo seria aumentado – os usuários premium que haviam pago por essa capacidade de armazenamento seriam reembolsados. No final do ano, alcançou o 1 gigabyte e, em 2007, anunciou armazenamento ilimitado de graça. Enquanto isso, o Gmail só aumentou aos poucos seu armazenamento grátis, que hoje é de 15 gigabytes, mas se tornou líder do mercado, embora o Yahoo ofereça um 1 terabytes (1 mil gigabytes), porque sua interface é mais inteligente e está interligada a outros serviços, como Google Docs.
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SEGURANÇA
Mas a bomba da gratuidade estourou. Em março do ano passado, o Gmail revelou que dados de seus usuários foram hackeados. A empresa informou que o alvo eram “ativistas, jornalistas e políticos com posições corajosas pelo mundo” e que o percentual atingido era de 0,1% de seu 1 bilhão de usuários. Ou seja, 1 milhão de pessoas. Já em março deste ano, o Departamento de Justiça dos EUA acusou dois agentes russos e dois hackers pelo roubo de 500 milhões de contas do Yahoo em 2014. Foram acessadas informações como nomes, endereços de e-mail, números de telefone, datas de nascimento e senhas criptografadas. Já a agência federal alemã contra crimes digitais (BSI) denunciou, em maio, que o Yahoo não colaborou com a investigação sobre os roubos virtuais de dados, que aconteceram entre 2013 e 2016. Após ataques cibernéticos nas eleições presidenciais francesas e norte-americanas ligadas à Rússia, o governo alemão está apreensivo sobre possíveis interferências nas eleições que ocorrem em setembro. Vladimir Putin negou seu envolvimento.
Os usuários costumam não questionar sobre as implicações em torno da oferta de serviços grátis Fora esses episódios, os e-mails e os sistemas de busca já vêm sendo fontes de informações ao próprio governo norte-americano e órgãos de segurança. Há o caso de um homem que estava fazendo pesquisa, em seu computador, sobre tipos específicos de assassinatos. A polícia, então, bateu em sua porta e o prendeu. Na averiguação, foi revelado que ele estava buscando informações para construir um texto. Era Jerome Schwartz, roteirista da série de TV Cold Case. O fato está relatado em Sujeito a termos e condições (2013), documentário que demonstra como as corporações e governos têm acesso às informações através de bancos de dados de serviços gratuitos, permitidos de serem acessados pelos usuários ao
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clicarem o “aceitar” em um termo de uso, que geralmente ninguém lê. Além de Google versus Yahoo, outra batalha entre empresas que envolveu produtos gratuitos aconteceu quando a Netscape lançou um navegador grátis, o Navigator. Feito para funcionar melhor com o próprio software patenteado de servidor de web da empresa, foi uma tentativa de abocanhar parte do lucrativo mercado de sistemas operacionais de servidores das Microsoft. Bill Gates, então, desenvolveu seu navegador gratuito, o Internet Explorer, e o incorporou a todas as versões de seu sistema operacional. Com isso, a Microsoft afetou o crescimento da Netscape e teve que realizar ações antitruste e pagar multas por comportamento anticompetitivo. A acusação é de que a empresa estava vinculando um produto gratuito a um pago, assim como acontece com o McLanche Feliz, que dá o brinquedo “de graça”, mas o preço está embutido no combo sanduíche-batatas-refrigerante. Uma empresa pode usar a estratégia do grátis, desde que não estabeleça um monopólio, que afasta os concorrentes
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do mercado. Os “prejuízos” da Microsoft foram milhões de dólares pagos em multas e honorários dos advogados, além da reputação arranhada – Bill Gates aumentou sua fama de ganancioso, iniciada na guerra contra a Apple. “Vinte anos atrás, as 100 principais empresas da lista da Fortune extraíam alguma coisa do chão ou transformavam um recurso natural (minério de ferro ou petróleo) em algo que era possível segurar”, afirmou Seth Godin, no livro Unleashing the ideavirus. Hoje, somente 32 das 100 principais empresas produzem coisas palpáveis, entre equipamento aeroespacial, automóveis, substâncias químicas, alimentos, moldagem de metal. As outras 68 processam ideias, não recursos. Como apontou Chris Anderson: “O século XX representou, em grande parte, uma economia dos átomos. O século XXI será igualmente uma economia dos bits. Qualquer item grátis na economia dos átomos deve ser pago por algum outro item, e é por isso que o grátis tradicional cheira tanto a uma isca – você está pagando, de uma forma ou de outra. Mas o grátis na economia dos bits pode ser
realmente grátis, excluindo totalmente o dinheiro da equação. Hoje em dia, os modelos de negócio mais interessantes estão descobrindo maneiras de ganhar dinheiro em função do grátis. Mais cedo ou mais tarde, toda empresa precisará descobrir formas de utilizar o grátis ou competir com o grátis, de uma forma ou de outra”. Segundo ele, este século inventou uma forma de gratuidade que definirá a próxima era.
PRIMÓRDIOS
Em 1895, Pearle Wait, um carpinteiro de LeRoy, Nova York, pensou em popularizar a gelatina em pó (inventada por Peter Cooper). Resolveu, então, acrescentar diversos sabores, misturou sucos de fruta, açúcar e corantes e deu a ela o nome de Jell-O. Sem sucesso, acabou vendendo a marca em 1899, por 450 dólares, a um interessado chamado Orator Frank Woodward. Aliado a um publicitário, Woodward, depois de elaborar o anúncio “A sobremesa mais famosa da América”, pensou que poderia criar uma demanda a partir da distribuição de um livro de receitas gratuito informando sobre
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diversas maneiras de usar a gelatina. Quanto mais distribuía de porta em porta a publicação, mais vendia o alimento. E o slogan fictício acabou se tornando realidade. Paralelamente a isso, King Gillette, um vendedor de tampas de garrafa, inventor e paradoxalmente anticapitalista, publicava, em 1894, The human drift, livro utópico em que defendia que toda a indústria deveria ser realizada por uma única corporação de propriedade do público e que os norte-americanos deveriam viver em uma cidade chamada Metropolis, com toda a energia vinda das Cataratas do Niágara. No entanto, ele tinha o propósito de viver de algum invento, um dos grandes ideais do século XIX – assim como hoje há, dentre os geeks, o desejo de criar algum aplicativo que seja, ao mesmo tempo, gratuito e rentável, como o Instagram, cofundado em 2010 pelo brasileiro Mike Krieger e vendido em 2012 ao Facebook por um R$ 1,8 bilhão. Voltando a Gillette… Ele sempre ouvia um conselho do seu patrão: invente algo que as pessoas usem e descartem.
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6 JELL-O Para vender gelatina com sabor, proprietário distribuiu livros de receitas KING GILLETTE 7 Empresário, cujo rosto ilustra seu produto, deu amostras gratuitas do aparelho para vender lâminas de barbear
Um dia, enquanto fazia a barba com uma navalha gasta, teve uma ideia. Em vez de afiar a lâmina, ele poderia descartá-la e usar outra. Depois de anos de experimentação, surgiu o modelo perfeito de aparelho e lâmina de barbear. Para vender a lâmina, Gillette distribuiu, primeiro, os aparelhos. Criou a necessidade e firmou um modelo de negócios que influenciaria diversas marcas e produtos no futuro. Quem nunca recebeu uma proposta de ganhar um celular gratuito, mas, para isso, teria que assinar um plano anual com uma operadora? Quem nunca tomou um cafezinho pago numa máquina instalada gratuitamente em seu escritório?
CONSUMO DE MASSA
A ideia do grátis ajudou a consolidar o mercado de consumo de massa no século XX e se tornou um recurso bastante utilizado nas agências publicitárias. “Quando um produto está ingressando num determinado mercado, está em fase de lançamento, é muito comum o uso de versões promocionais gratuitas que favoreçam o primeiro contato dos consumidores com
“Zero é um poderoso botão emocional – uma fonte de empolgação irracional” Dan Ariely o produto. São amostras distribuídas gratuitamente ou experiências como, por exemplo, degustação de alimentos em supermercados. Costuma ser uma estratégia eficaz e infalível de divulgação, porque favorece o awareness, ou seja, o conhecimento e a consequente lembrança do produto/ marca. Se o produto/serviço for de boa qualidade e acessível ao públicoalvo, vem a despertar o desejo pelo consumo pago”, explica a publicitária e professora de Comunicação da UFPE Izabela Domingues. No livro Previsivelmente irracional, o professor de psicologia e economia comportamental Dan Ariely descreve experimentos sob o efeito da palavra “grátis” nos seres humanos. “Zero
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não é apenas outro preço. Zero é um poderoso botão emocional – uma fonte de empolgação irracional.” Em um dos testes, os pesquisadores venderam dois tipos de chocolates: trufas Lindt da Suíça e Kisses da Hershey’s. As trufas custavam U$0,15 e os Kisses, U$0,1. Os clientes consideraram mais a qualidade do que o preço: 73% escolheram a trufa. Então, quando apenas o Kiss passou a ser gratuito, as pessoas descartaram as trufas. Experiência real, espontânea e semelhante aconteceu com a Amazon. A promoção de entrega gratuita a partir de U$ 25 estimulava a compra de mais de um livro. O esquema foi próspero em diversos países, menos na França. O motivo: o site francês havia cometido um erro, configurou o valor de remessa em 1 franco. Essa pequena quantia evitou completamente a compra do segundo livro. Quando a Amazon consertou, os franceses passaram a consumir igualmente ao resto do mundo. “A maioria das transações tem uma vantagem e uma desvantagem, mas, quando alguma é ‘Grátis!’, esquecemonos da desvantagem. O ‘Grátis!’ tem
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uma carga emocional tão poderosa, que achamos que o que está sendo oferecido é imensamente mais valioso do que realmente é. Por quê? Acho que é porque os humanos têm um medo intrínseco da perda. A verdadeira sedução do ‘Grátis!’ vem ligada a esse temor. Não existe uma possibilidade visível de perda quando escolhemos um item ‘Grátis!’ (afinal, ele é grátis). Mas suponha que tenhamos escolhido um item que não seja gratuito. Agora corremos o risco de tomar uma decisão errada – a possibilidade de perda. E, então, se tivermos escolha, optaremos pelo item grátis”, avaliou Dan Ariely. O gratuito pode trazer benefícios tanto para quem recebe quanto para quem oferece. O exemplo atual mais gritante é o Facebook. Criado em 2004 para conectar os estudantes de Harvard, o site suplantou o Orkut (2004-2014), lançado pelo Google apenas um mês antes, e se tornou a rede social mais frequentada do mundo, com número de frequentadores já perto dos 2 bilhões. O seu vitorioso mecanismo, na realidade, é um contrassenso: os usuários não pagam para acessar o
site, mas o seu conteúdo, principal atrativo, é alimentado diariamente pelos próprios beneficiários da gratuidade. E a empresa ainda lucra duplamente com isso, vendendo as informações de seus clientes a seus anunciantes. O CEO Mark Zuckerberg sabe que o sucesso do Facebook reside num motivo, todos – ele, sua empresa, seus anunciantes, seus usuários – estão, afinal de contas, trocando uma moeda preciosa: a imagem.
DINHEIRO VIRTUAL
Já há algum tempo, além dos serviços grátis, o mundo caminha para não usar mais o dinheiro em papel, a exemplo do Uber, em que não há pagamento direto ao motorista. “A comunidade financeira internacional já desenvolve um sistema de pagamentos global baseado em moedas como a bitcoin, de valor universal, que não só eliminará a intermediação de recursos (enfraquecendo os bancos), como também extinguirá operações de câmbio (reduzindo os papéis dos bancos centrais). Estamos nos aproximando de uma época em que
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recursos universais serão criados a partir do valor de nosso trabalho e serão usados para transacionar mercadorias de serviços em qualquer lugar do mundo. Músicos, por exemplo, venderão suas criações diretamente a seus fãs e consumidores do mundo todo, sem que o dinheiro passe por bancos, gravadoras, distribuidoras e afins”, escreveu o consultor financeiro Gustavo Gerbase. O designer Pedro Melo vem usando esse recurso. “Eu estava numa dessas fases em que precisava viajar pra esfriar a cabeça e conhecer coisas novas. Pedi demissão, acabei noivado, dei um tempo da família, da igreja, dos planos… Fazia pouco tempo que havia decidido pintar em madeira, estava gostando e não queria perder o ritmo. Minutos antes de fechar a mala de viagem pra Europa, em 2013, cortei seis pedaços de madeira. Coloquei na mala sabendo que iria pintar e trocar essas pinturas com estranhos. Não fazia ideia do que trocaria. Chegando a Barcelona, fiz minha primeira troca, um quadro pintado na hora trocado por um café e mais um suco. Foi fantástica
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8 PEDRO MELO Designer oferece seus quadros em troca de gratuidade em serviços e produtos 9 LULA PINTO Jornalista e professor fez trabalho voluntário para a campanha Ocupe Estelita
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a experiência, pela aceitação e pelo papo e conhecimento com a dona do estabelecimento. Numa troca dessa, caiu a ficha sobre qual era a ‘missão’ do projeto. Conhecer pessoas e a moeda pra isso é trocando ‘experiência’”. Segundo ele, já não tem mais ideia da quantidade de vezes que fez essas trocas. “Foram coisas pequenas e grandes, aí deixei de contar. Pra mim, a primeira de todas as vantagens é a de ter uma experiência diferente por onde passei. Aquela sensação de ‘deixar a marca’ naquela cidade, de conhecer alguém, lugar, coisa através do que gosto de fazer ‘brincando’. O projeto, de fato, é muito mais ‘antropológico’ do que material. De todas as trocas, com certeza, muitas vou levar para o resto da vida, e a outra pessoa também. Até amigos, assim, venho fazendo. Mas, é claro, que rolam ‘vantagens’, como, por exemplo, fazer um quadro e ganhar diárias mais passeio de lancha e cerveja. Isso é fantástico.” A ideia inspirou outras pessoas. “Conheci uma menina em 2014. Logo depois que ela viu meu projeto sair num blog, decidiu juntar as coisas e fazer um mochilão. E, vez ou
“Estamos envolvidos numa lógica que não vê possibilidades fora da relação ‘trabalho, ganho em dinheiro’” Lula Pinto outra, recebo uns e-mails de pessoas usando a ‘troca’ como argumento para umas mudanças pessoais. Isso é bacana, artistas fazendo isso.” O grátis não traz somente vantagem ao consumidor, mas também ao profissional que realiza algum trabalho voluntário. O jornalista e professor Lula Pinto, em 2013, resolveu destinar parte de seu tempo ao movimento Ocupe Estelita, campanha contra a construção do projeto Novo Recife, onde fica o Cais Estelita, no Bairro de São José, área central da cidade. “Foi imediata a percepção de que deveria me envolver pessoalmente, depois que começaram a derrubar os galpões. Naquele momento, eram poucas as pessoas envolvidas com o trabalho de
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comunicação, que é desgastante. E me senti na obrigação de chegar junto para ser coerente com minhas preocupações e posicionamento.” Por cerca de um ano, o jornalista produziu releases, gerenciou as redes do movimento e alimentou o site com conteúdos produzidos por ele ou outras pessoas do grupo de comunicação. “A gente se acostumou a pensar que os ganhos são necessariamente monetários, porque estamos envolvidos até o talo numa lógica de economia de mercado que não vê possibilidades fora da relação ‘trabalho, ganho em dinheiro’. Mas ganhei muita experiência, novos amigos, um novo amor, um entendimento mais apurado e atual das lutas urbanas. E todas essas coisas, inclusive o amor, o dinheiro não compra. O envolvimento torna concretas e reais as formas que temos de ver o mundo e é necessário estar coerente com essa forma de ver. Ao se envolver, a gente tem a chance de ganhar ainda mais uma coisa: integridade, potência pessoal e coletiva, maturidade e fé. Foi o melhor trabalho que eu já fiz.” Desde o surgimento da Jell-O e da Gillette, o universo dos produtos e serviços “de graça” cresceu e tem hoje incontáveis exemplos: downloads, ligação gratuita, feira de troca-troca, hortas comunitárias, PDFs de livros, Wikipedia, site do New York Times, Linux, YouTube, passeios virtuais por museus, eventos ladies free, assinatura gratuita de cartão de crédito, reciclagem de material, software livre, serviços comunitários, Wi-Fi e ketchup da lanchonete. Ironicamente, o grátis é uma ínfima amostra da utopia comunista dentro do pandemônio capitalista, um artifício que colabora com a manutenção do sistema econômico e contribui para torná-lo suportável. Karl Marx (1818-1883), que faleceu poucos anos antes do advento do grátis no capitalismo, possivelmente escreveria um livro sobre esse paradoxo.
KARINA FREITAS
CON TI NEN TE
COMUNICAÇÃO
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FAKE NEWS Verdade falseada
Todo dia, uma maior parcela da população mundial se conecta pelas redes sociais e faz circular, com velocidade instantânea, informações nem sempre confiáveis TEXTO Fábio Lucas
Uma das bases filosóficas de
validação do conhecimento científico é a possibilidade, defendida por Karl Popper, de que a verdade seja falseada. Somente assim as hipóteses na ciência podem avançar e ganhar respaldo na realidade, sendo submetidas aos filtros da crítica e da coerência entre a teoria e os fatos. Nos últimos meses, outro tipo de falseabilidade vem recebendo a atenção da considerável parcela da população mundial conectada pelas redes sociais: as fake news, ou notícias falsas. Sem o rigor da epistemologia, a Continente aproveita a atualidade do tema – objeto de intenso debate no meio acadêmico e na mídia global – para abordar, por mais de um ângulo, a falseabilidade dos fatos que circulam, com velocidade instantânea, nas redes sociais da internet. Depois de provarem o seu alcance na influência que teriam exercido na eleição de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos, as notícias falseadas passaram a ser alvo de campanhas publicitárias em defesa da imprensa em todo o mundo. Campanhas realizadas por veículos
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isolados, como o New York Times, ou por entidades como a Associação Nacional dos Jornais (ANJ), no Brasil, têm pregado o discurso de que as mentiras lançadas e disseminadas nas redes sociais devem ser combatidas com o resgate da confiança na credibilidade nos meios de comunicação e, antes disso, no exercício do jornalismo. A Organização das Nações Unidas (ONU) entrou na briga contra as fake news, especialmente através da Unesco, com declarações de sua diretora-geral, Irina Bokova. “A mídia como atividade empresarial está sendo abalada em seu núcleo, com o advento das redes digitais e das mídias sociais. Jornalistas cidadãos estão redesenhando os limites do jornalismo”, disse ela, referindo-se ao desafio das empresas de comunicação e realçando a importância de um “jornalismo original, crítico e bemfundamentado, orientado por altos padrões profissionais e éticos, e por uma educação em mídia de qualidade”. No Brasil, o slogan da campanha da ANJ, publicada em diversos veículos do país, em maio,
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dizia: “Nunca se precisou tanto da imprensa. Compartilhe isso”. O duopólio que domina a internet – Google e Facebook – foi chamado a participar dos esforços contra a suposta onda de desinformação que assustou até governos de potências como a Alemanha. A chanceler Angela Merkel se pronunciou sobre o assunto, exigindo medidas concretas do Facebook. Aliás, entre os alemães, essa história tem dolorosa lembrança: a expressão Lügenpresse era usada por Adolf Hitler para atacar o que denominava como imprensa mentirosa. Outra potência europeia se voltou para a questão. Nos dias que antecederam o segundo turno presidencial na França, foi levantada a suspeita sobre o uso de fake news para prejudicar o candidato Emmanuel Macron, que terminou se sagrando vitorioso. Meses antes, em fevereiro, o projeto CrossCheck foi lançado em Paris, conjuntamente, pelo Google e pelo Facebook, em parceria com grandes veículos franceses de comunicação. Enquanto isso, nos Estados Unidos, Trump ataca a imprensa tradicional desde os primeiros dias de mandato, chamando os grandes jornais do país, como o NY Times e o Washington Post, de produtores de fake news, numa manobra diversionista que inflamou ainda mais os ânimos. O duelo do presidente norte-americano com a mídia possui outras nuances. No entanto, sobretudo após a manifestação do governo e de parlamentares na Alemanha, os mecanismos de checagem das informações na internet, bem como de inibição da distribuição de notícias falsas, devem ser aprimorados por causa da pressão política que tomou conta do debate acerca do tema. Um professor da Universidade de Nova York, Jeff Jarvis, manifestou à imprensa norte-americana uma preocupação que não deve ficar fora do debate. “Cuidado com o que desejamos. Queremos mesmo colocar o Facebook e o Google como censores do mundo? Queremos que decidam o que é real e fake, verdadeiro e falso?” De fato, a instauração da checagem da informação com o intuito de legitimá-la carrega, junto, a possibilidade de manipulação similar à que ostentam as fake news.
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A reação institucional às notícias falseadas rebate na qualidade do jornalismo praticado pelas grandes empresas de mídia – qualidade posta em xeque pela crise de financiamento dos meios de comunicação – que deságua invariavelmente na eterna discussão sobre imparcialidade perante os fatos. Rebate na atração das pessoas ao que se parece com a verdade que querem ver, e, ainda, na afronta à liberdade de expressão que se vincula à virtual proibição de proliferação de boatos. De onde vêm as notícias falsas – e para onde vai a sociedade da informação a partir do reconhecimento de que o falseamento dos fatos, amplamente compartilhado, é um fato, em si, inescapável?
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DISRUPÇÃO DA REALIDADE?
Pesquisador do Berkman Klein Center para Internet e Sociedade da Universidade Harvard (EUA), o jornalista e escritor David Weinberger acredita que o fenômeno das fake news afeta não apenas o jornalismo, mas o próprio conceito de notícia, e também de realidade. Para ele, a mudança é saudável. “Muitas pretensas notícias são mentiras. Mas não estamos mais limitados àquilo que a mídia nos mostra como ‘as notícias’ – e aqui me refiro à mídia legítima que busca a verdade”, diz ele para a Continente. Uma consequência dessa mudança é que agora podemos nos aprofundar o quanto desejarmos num tópico. Outra é mais importante: no
1 FRANÇA Nas eleições deste ano, levantou-se a suspeita do uso de notícias falsas para prejudicar Emmanuel Macron, que terminou vitorioso DAVID WEINBERGER 2 Jornalista e pesquisador norte- americano acredita que as fake news afetam o conceito de notícia, e também de realidade
aprofundamento, topamos com redes de indivíduos falando sobre o assunto, articulando sentidos e conexões, dando opiniões, perguntando e explicando a questão uns para os outros. “Descobrimos que há tanto para saber sobre um assunto, de tal forma, que só conseguimos fazê-lo juntos”, pontua Weinberger, exdiretor do Harvard Library Innovation Lab, onde organizou estudos sobre o futuro das bibliotecas. No emaranhado de informações e pontos de vista disponíveis em rede, as pessoas precisam manter uma inteligência crítica para discernir o que encontram. “Sabemos que nem todos podem estar certos, então temos que aprender a separar aqueles que valem a pena ser escutados. Percebemos que sempre seremos imperfeitos, e vamos precisar melhorar continuamente neste aspecto”, acredita David Weinberger. “Viemos de um tempo em que a mera publicação de algo sinalizava um grau de seriedade, o que nos treinou a aceitar o que líamos como confiável simplesmente porque
Junto às fake news mora a “pósverdade”, relativismo que desmerece especialidades, fatos e provas estávamos lendo”, lembra o também escritor, ex-professor de Filosofia. “Agora, qualquer um pode publicar, o que é uma evolução incrível e de alcance mundial, mas muitos de nós ainda não abandonamos o velho treinamento de leitura e apreensão da realidade.” Além disso, Weinberger menciona a tendência que as pessoas têm de procurar e acreditar nas informações em que já acreditavam. “É como a genuína compreensão funciona: assimilamos o novo através do contexto do que nos é familiar. As fake news jogam com essa estrutura básica da razão”. Neste sentido, avista-se um potencial inovador e simultaneamente de ruptura
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no exame do que espelham as fofocas, mentiras e boatos postados freneticamente nas redes sociais. Um termo da moda utilizado para caracterizar as transformações em curso com o avanço da tecnologia digital – disrupção – talvez contenha parte da explicação sobre o fenômeno, ainda por ser devidamente esmiuçado pelos pesquisadores sociais e teóricos da comunicação. Como resvala na apreensão que as pessoas podem ter da realidade, a disrupção ligada às fake news atinge a noção básica de verdadeiro e falso, e por isso, deve ser vista além da onda superficial. Com graduação em Jornalismo pela UFPE, doutora e mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com doutorado sanduíche na McGill University (Canadá), Ariane Holzbach também enxerga o benefício coletivo no advento das fake news – ou sua intensificação em escala virtual. “Notícias falsas se espalham basicamente porque costumam tratar de questões
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prementes socialmente e porque são críveis em vários níveis, ou seja, parecem ‘verdade’ para muitos perfis de leitores”, explica. “Mais do que meramente julgar, precisamos entender melhor esse fenômeno. Por exemplo, acredito que o espraiamento das fake news comprova que determinados temas precisam ser mais debatidos e compreendidos socialmente”, diz Ariane. Para o também professor da UFF, Fernando Resende, a internet é lugar de muitos crédulos. E as fake news se espalham “porque a internet é este lugar onde as coisas se aglutinam e escoam”, diz Resende, sem creditar algum “valor” nas fake news propriamente ditas. “A internet é um lugar extremamente propício hoje para a difusão de histórias, verdadeiras ou não”, afirma o professor do curso de Estudos de Mídia e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação do Departamento de Mídia e Estudos Culturais da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde coordena o Laboratório de Experimentação e Pesquisa de Narrativas da Mídia.
JORNALISMO NA BERLINDA
Para Ariane Holzbach, é sintomático que o fenômeno atinja em cheio a atividade jornalística. “A ‘notícia’ fundamentou historicamente toda a formação e legitimação do jornalismo como uma ferramenta social distinta de outras, como a literatura. As fake news, em vários sentidos, desestruturam a principal ferramenta dessa profissão, potencializando um fenômeno em curso vinculado à própria crise de identidade do jornalismo no Ocidente a partir da popularização da cultura digital.” Ela não pensa nas fake news como uma onda que tenha surgido do nada, espontaneamente. “Todo fenômeno tem razões historicamente construídas e acontece processualmente. As mídias sociais permitiram com mais facilidade que um gigantesco grupo social – os ‘não políticos’, os ‘não jornalistas’, por exemplo – desenvolvesse um espaço potencialmente compartilhável para expor seus pensamentos e emoções”,
3 ARIANE HOLZBACH A pesquisadora brasileira afirma que as fake news apontam que alguns temas precisam ser mais debatidos e compreendidos socialmente 4-5 HISTÓRICO As notícias falsas sempre estiveram presentes no jornalismo
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As mídias sociais têm relação direta com as fake news, na medida em que são lugares propícios para a difusão de histórias
aponta Ariane, no que podemos tomar como um detalhamento do trabalho colaborativo de sentido para a realidade, sugerido por David Weinberger. “Essas pessoas não vão desistir ou perder a vontade de se expressar, seja se apropriando de convenções do jornalismo, seja utilizando qualquer outra ferramenta social, através de plataformas como as mídias sociais. Posto isso, não tenho a menor dúvida de que estamos vivenciando um processo de reconfiguração profunda que se relaciona com a legitimação do jornalismo e da profissão de jornalista.” No processo de reconfiguração em curso, Holzbach crê não haver
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mais espaço para a separação dicotômica entre mídia ‘tradicional’ e outras mídias. “Essa separação não faz mais sentido, e o jornalista deve ao máximo compreender e lidar com isso.” E a compreensão do fenômeno, por sua vez, exige o resgate da falsificação das notícias antes da era digital. “A história do jornalismo é abarrotada de notícias falsas historicamente desenvolvidas, inclusive, pelos próprios jornalistas. Só no Brasil, por exemplo, ‘notícias’ como o nascimento do Bebê Diabo, no ABC Paulista, ou do Mão Branca, na Baixada Fluminense, mostram que a ‘culpa’ não está nem na tecnologia nem nas pessoas que não são jornalistas”, ressalta Ariane. “Essa questão, portanto, está além da cultura digital ou das mídias sociais. Seria preciso, eu diria, discutir mais para não se demonizar a ferramenta sem se compreender o fenômeno.” Para Fernando Resende, as mídias sociais, pela natureza do ambiente em que estão instaladas, têm relação direta com as fake news, na medida em que são lugares propícios para a
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difusão de histórias. “São os novos ambientes onde também (e esta palavra é importante, pois ali outras relações também se fazem presentes) se produzem e se espalham boatos. Penso que não se trata de nada mais profundo, mas, com certeza, duradouro”, aponta o coordenador do Laboratório de Experimentação e Pesquisa de Narrativas da Mídia, para quem o futuro das notícias falsas no mundo virtual é bastante promissor, pois elas seguirão se propagando. O importante, na visão do professor da UFF, “é referendar a relevância do papel que cabe aos órgãos competentes (ou sujeitos responsáveis) por preservar as verdades dos fatos: sempre foi assim, mas, nos dias atuais, mais que nunca, são eles os responsáveis por organizar os fatos, apurando-os de forma competente e só divulgá-los a partir do trabalho de apuração e investigação devidamente realizado”. O pesquisador do Instituto Reuters, Richard Sambrook, sintetiza como a questão pode ser tratada daqui por diante. “As empresas de
tecnologia precisam assumir maior responsabilidade sobre os impactos públicos de suas plataformas. Os políticos precisam reconhecer que a comunicação e a compreensão dos fatos mudaram. O jornalismo precisa igualmente entender o poder das fake news, dos memes e outros adventos da cultura digital. E o público precisa de um padrão mais alto de educação midiática para tentar compreender o que está consumindo”.
DEMOCRACIA E FAKE NEWS
O impacto dessa disrupção que põe jornalistas e empresas de comunicação na berlinda pode ser visto, portanto, além das fronteiras da mídia. Para David Weinberger, um dos grandes efeitos é a alimentação do cinismo, da indisposição de crer em qualquer acontecimento. “Uma coisa é questionar tudo com o objetivo de achar o que é digno de crença. Outra é não acreditar em nada, quando nos é dito repetidamente que as fake news estão em toda parte.” O pesquisador de Harvard indica outro impacto crucial: a erosão do senso
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de autoridade. “É bom porque nos deixa mais céticos em relação ao que lemos. Porém, traz o efeito negativo de nos fazer imaginar que não há verdadeira autoridade para nada. É uma conclusão equivocada. Não existe autoridade que não mereça questionamento, mas algumas fazem melhor do que outras o trabalho de nos trazer a verdade.” Nesse ponto, o uso político do fenômeno turbinado pelas redes sociais desponta. “É importante recordar que as fake news têm sido promovidas como conceito por indivíduos no poder”, diz Weinberger, “com a intenção de subverter a autoridade tradicional (da mídia) em seus próprios interesses. O presidente Trump, que mente várias vezes antes do café da manhã, fala sobre fake news o tempo inteiro porque não deseja que acreditemos nas fontes que nos dizem a verdade”. No caso de Trump e de outros políticos que pegaram carona no termo, a deturpação das fake news é dupla: além de designar o mau uso da informação noticiada, traz o conceito desvirtuado
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pelo populismo incomodado com a imprensa livre. Pesquisador do Instituto Reuters e ex-diretor da BBC, Richard Sambrook chama a atenção para o fato de que a democratização dos meios de comunicação deveria ser uma coisa boa, “mas as fake news e a desinformação deliberada que elas projetam são tóxicas”. Ainda mais porque o fenômeno é impulsionado pelo efeito de câmara de eco “onde as pessoas reforçam seus preconceitos, acreditando somente naquilo que estiver de acordo com suas próprias visões predispostas”. Além disso, o maior impacto é a confusão causada nos consumidores de informações falsas. “Se as pessoas estiverem equivocadas sobre o mundo, elas não podem fazer boas escolhas para suas vidas. Isso afeta a política, o debate cotidiano e a vida pública.” Sambrook, que produziu a cobertura da BBC sobre a queda do Muro de Berlim, em 1989, divisa um risco maior a respeito do tema que, por ora, rebate mais na política e no jornalismo. “Por baixo das fake news mora a ‘pós-verdade’, o relativismo que desmerece especialidades, fatos e provas. Essa é uma característica perigosa, pré-iluminista”, adverte. “A informação é a moeda do nosso mundo. Negócios, política, discurso social e relações internacionais se baseiam na suposição de informação acurada, compartilhada.” Para Sambrook, a insegurança da informação abre um vácuo na confiança creditada a instituições que formam o sustento da democracia. Não é à toa que um especialista em fake news, Jonathan Albright, da Elon University, cunhou a expressão “máquinas de micropropaganda”, voltadas à produção instantânea de opinião pública através da reação maciça a assuntos políticos e eventos midiáticos. Tais microinstrumentos de persuasão ganham escala e sentido no universo livre das redes sociais. Os sinais de desestabilização foram lidos antes da eleição de Donald Trump, ou mesmo do referendo na Grã-Bretanha, que terminou optando pela saída dos britânicos da Comunidade Europeia – onde se diz que as fake
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news desempenharam um relevante papel de desinformação. Em 2013, o Fórum Econômico Mundial divulgou um relatório em que preconizava o risco global associado à tecnologia da informação, incluindo no mesmo patamar o terrorismo, ciberataques e falhas na governança global. Na visão do apocalipse da pósverdade, os órgãos de comunicação emergem da crise como sentinelas da ‘verdade’ referendada como tal. Será um peso excessivo? O papel do jornalismo na democracia não deveria ser alterado diante das fake news, de acordo com Fernando Resende. É algo que precisa ser reiterado e reforçado sempre. “A existência das fake news, ao que me parece, só ganhou, tecnologicamente falando, um novo ambiente. Os boatos sempre existiram e o jornalismo sempre teve como missão ir contra os boatos e a favor dos fatos apurados”, diz ele.
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6 RICHARD SAMBROOK Diz que as fake news reforçam preconceitos, levando as pessoas a acreditarem somente naquilo que estiver de acordo com suas próprias visões predispostas
Ariane Holzbach muda a perspectiva. “Acho que a pergunta deve ser invertida: qual o papel da democracia no jornalismo? Nesse sentido, a democracia evoca necessariamente a sempre almejada liberdade de expressão, ainda que essa expressão possa ter consequências complexas, nem sempre autoevidentes e até negativas para a política hegemônica, por exemplo. De qualquer forma, a democracia tem como premissa o diálogo e a representatividade. O jornalismo e as outras instâncias sociais hegemônicas precisam, então, dialogar e representar. Se não fizerem isso, outras instâncias farão”.
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Artigo
JÚLIA SILVEIRA FAKE NEWS, MÍDIA E DEMOCRACIA Jornalismo é disputa de narrativas e versões para se construir discursivamente uma verdade. Não existe relato imparcial e objetivo, mas recortes e enfoques intencionalmente elaborados a partir de escolhas editoriais e mercadológicas. No entanto, reconhecer o caráter subjetivo da mídia não significa, de forma alguma, abrir mão do rigor na apuração e divulgação do conteúdo noticioso. Declarações que nunca existiram, associações indevidas, calúnias e boatos são alguns dos recursos comuns das chamadas fake news (notícias falsas), que precisam ser denunciadas e combatidas. A proliferação de notícias mentirosas não é um fenômeno recente. As primeiras gazetas e pasquins que surgiram no século XV já veiculavam histórias inverídicas, geralmente atreladas a interesses políticos ou econômicos. No entanto, o advento das novas tecnologias da informação e comunicação amplia a produção e o alcance dos conteúdos noticiosos e, portanto, também das fake news. O ciberespaço modifica profundamente a experiência e o tempo do fazer jornalístico, permitindo que o público tenha acesso a um volume imenso de informações em tempo real. Sites de redes sociais, como o Facebook e o Twitter, e os serviços de messengers e chats, como o WhatsApp, tornam a produção e divulgação de conteúdo mais simples e descentralizada. Neste cenário de fugacidade e maior horizontalidade dos processos comunicativos, o compartilhamento de boatos se prolifera com rapidez. E, como grande parte desses conteúdos chega até nós através de conhecidos, amigos e familiares com os quais temos uma relação de confiança, muitas vezes não checamos a veracidade dos mesmos. Quando reverberadas, as fake news podem ter grande impacto social,
O efeito mais devastador desses conteúdos é quando eles trazem discursos de ódio, discriminação e intolerância cultural e até mesmo político. As recentes disputas eleitorais no Brasil e no mundo são provas da influência que as narrativas tendenciosas ou falsas podem ter sobre a opinião pública e das graves consequências desse fenômeno. O efeito mais devastador, no entanto, é quando esses conteúdos afloram discursos de ódio, discriminação e intolerância. Muitas vezes servem de ilustração e justificativa para posicionamentos racistas, machistas, LGBTfóbicos ou religiosamente intolerantes. Além disso, muitas vezes as fake news desencadeiam linchamentos virtuais – e até mesmo físicos – e deterioram a imagem de pessoas, públicas ou não, de forma significativa e até mesmo irreversível. Um dos casos mais emblemáticos nesse sentido ocorreu no Brasil, em 2014, quando uma mulher foi espancada até a morte em Guarulhos (SP) após boatos circularem no Facebook. Ela foi injustamente acusada de sequestrar e praticar rituais violentos com crianças. Uma pesquisa recente, encomendada pela Universidade de
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Oxford, entrevistou profissionais da comunicação de 24 países, inclusive do Brasil, e 70% afirmaram que a crescente preocupação com as notícias falsas tende a fortalecer o jornalismo. Lançar luz sobre os focos dessas inverdades poderia, segundo alguns analistas, fortalecer o papel da imprensa tradicional como fonte de informação mais confiável e legítima. Mas essa avaliação é uma previsão arriscada. A proliferação e descentralização dos veículos midiáticos é um processo irreversível e já sabemos que as fake news estão presentes também nas grandes corporações e nos governos e suas diversas instâncias. Nesse sentido, mais interessante do que a perspectiva que legitima as grandes empresas midiáticas em detrimento dos conteúdos que circulam na internet é o debate sobre a democratização da comunicação. Descentralizar os meios de produção midiática, combater os oligopólios e regulamentar as concessões públicas é fundamental para ampliar os olhares e a agenda da imprensa. Também é urgente garantir efetiva representatividade dos diversos segmentos sociais na mídia e construir pedagogicamente uma visão crítica do que produzimos e consumimos nos diversos meios de comunicação. Essas medidas podem apontar um caminho para (re)pensarmos o jornalismo, resgatando suas vocações de serviço público e promoção do bem comum.
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LIVRE-PENSAR A “caminhadologia” de Lucius Burckhardt Professor suíço, nascido em 1925, cumpriu à risca a missão do filósofo, de problematizar a sociedade em que viveu a partir da experiência prática da crítica das experiências urbanas TEXTO Bárbara Buril
CON TI NEN TE
ESPECIAL
1 PERFORMANCE Ação de criticar o uso excessivo de carros aconteceu em 1992, em Kassel
Em 1992, na cidade alemã de
Kassel, um professor e seus alunos realizaram uma caminhada por uma das maiores avenidas da cidade, a Frankfurter Straße, carregando para-brisas nos braços, mas sem a proteção do carro. Tratava-se de uma atividade prática da disciplina Percepção e Trânsito, do curso de Arquitetura, Planejamento Urbano e Paisagem da Universidade de Kassel, que tinha a intenção de problematizar como as experiências urbanas são diferentes de acordo com o meio de transporte utilizado pelo indivíduo. “Há hoje uma Sociedade ParaBrisa no Reino Unido que ainda imita o nosso modelo. Ela se dedica ao tema principal da caminhada em
Kassel: o que nós experienciamos através de um para-brisa? Nós ainda não estamos conscientes de como o para-brisa limita a nossa percepção”, explica o professor da disciplina em questão, Lucius Burckhardt, em conversa com o curador e crítico de arte Hans Ulrich Obrist, publicada no livro Warum ist landschaft schön: die Spaziergangswissenschaft (em tradução livre para o português, Por que a paisagem é bela: a caminhadologia), publicado pela editora Martin Schmitz, em 2006. Lucius Burckhardt, mais além de economista, sociólogo, artista, desenhista e (por que não?) performer, foi um livre-pensador suíço nascido em 1925 que problematizou os caminhos pelos quais se orientavam a política,
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a paisagem, o design, a arquitetura e o consumo em uma Europa ainda social-democrata, mas beirando o que hoje se observa como um continente imerso na lógica neoliberal. Através de suas aulas e de seus variados desenhos, ensaios e artigos publicados em revistas especializadas, Burckhardt desenvolveu críticas ousadas às formas de vida no capitalismo, sempre problematizando um modo de interação entre o sujeito e a cidade na qual o indivíduo até passa pela urbe, mas o contrário nem sempre acontece. A sua provocadora crítica da arquitetura ganhou um nome irônico: spaziergangswissenschaft, no alemão; strollology, no inglês; ou caminhadologia, em livre tradução para o português.
Burckhardt criou uma ciência do caminhar que, embora não se constituísse segundo os rigorosos parâmetros científicos, ousava se chamar de ciência, em uma espécie de ironia ao status que se dava, no meio acadêmico, ao que se considerava ciência. Mas Lucius sempre esteve consciente de que a caminhadologia se tratava de “um assunto menor”. “A caminhadologia é uma crítica do planejamento que começou a surgir depois da Segunda Guerra Mundial. Ela começou, na verdade, a partir da observação de que havia uma intensa automobilização da sociedade. Cada pessoa tinha um carro e começaram a existir muitos estacionamentos para carros na cidade. Assim começou a
pesquisa de Lucius. Ele vivia em Basel, na Suíça, e observava que a cidade estava sendo reconstruída sob a lógica do automóvel. A caminhadologia ganhou contornos de disciplina em 1980”, explica Martin Schmitz, professor da cátedra Annemarie & Lucius Burckhardt da Kunsthochschule Kassel, editor na editora Martin Schmitz e curador, tendo sido o curador-chefe da programação de fílmica da documenta 9, em 1987. Martin Schmitz se graduou no curso de Arquitetura, Planejamento Urbano e Paisagem na Universidade de Kassel, foi orientado por Lucius Burckhardt durante os seus estudos e já editou cerca de 10 livros com os ensaios, artigos e desenhos publicados dispersamente
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por seu ex-orientador. Além disso, foi curador e amigo de Annemarie Burckhardt, esposa e parceira profissional de Lucius, cujos trabalhos merecem uma matéria à parte. Em entrevista concedida à Continente em fevereiro, em Berlim, Martin Schmitz contou como Lucius Burckhardt foi um pensador pioneiro na crítica ao planejamento urbano e como ele estabeleceu uma relação amigável e cooperativa com os seus alunos. Burckhardt dava aulas em um sofá na Universidade de Kassel, não tinha hora marcada para orientar os alunos (normalmente, na Alemanha, os professores universitários se encontram com os seus alunos em horas definidas coladas nas portas de
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suas salas, as sprechstunde) e não seguia o métier acadêmico. “Era possível conversar com ele ou na sua mesa de trabalho diretamente ou através de uma visita aos Burckhardt durante as férias de verão nos arredores de Basel”, comentou Schmitz, apontando que o bom humor dos Burckhardt era inesquecível. Lucius faleceu em 2003 e Annemarie, em 2012.
DESLOCAMENTOS
Embora a caminhadologia seja relativamente conhecida na Suíça, Alemanha, Áustria e em alguns circuitos especializados nos Estados Unidos, como aponta Schmitz, ela é praticamente desconhecida no Brasil (até a data de publicação desta matéria, não se encontrou nenhum artigo, ensaio ou página da web dedicada ao assunto em português). Algo realmente inesperado para um trabalho que, embora dê conta de uma realidade completamente diferente da brasileira, pode ser bastante pertinente em um cenário consolidado no Brasil de reflexão sobre os caminhos seguidos por uma lógica arquitetônica que prioriza a maximização do lucro, em detrimento da experiência do sujeito. Burckhardt, seguindo uma espécie de crítica romântica à forma de vida moderna, questionava não só o
Burckhardt questionava todas as formas de locomoção que não davam ao sujeito a experiência do deslocamento crescente uso de carros na Europa, mas também todas as formas de locomoção que não proporcionavam ao sujeito a experiência do deslocamento. O metrô subterrâneo, por exemplo, chegou a ser criticado pelo pensador em diversos artigos, porque o indivíduo simplesmente iria de um lugar para o outro como um paraquedista. “Atualmente, a pessoa chega à frente de várias construções interessantes do mesmo modo que um paraquedista, mas por baixo da terra, pelo metrô”, escreve Lucius, no ensaio Spaziergangswissenschaft, em 1995. Embora o ponto de vista de Burckhardt possa soar como uma “reclamação de barriga cheia” para o brasileiro, mais especificamente para o recifense, que só tem como meios de transporte ou ônibus e o metrô abarrotados ou o carro que pouco sai do lugar, é preciso que ele seja compreendido como uma crítica
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2 PARCERIA Lucius e Annemarie realizaram diversos trabalhos juntos
4 CAMINHADAS Burckhardt realizava atividades fora de sala de aula com seus alunos
MARTIN SCHMITZ 3 É a maior referência mundial no trabalho de Burckhardt
ZEBRA CROSSING 5 Chamava a atenção sobre o direito do pedestre andar na cidade
mais ampla à forma de vida que vem com a modernidade. É claro que, se o Recife recebesse linhas de metrôs mais efetivas, resolveríamos o nosso problema da falta de mobilidade urbana, mas permaneceríamos inseridos na rotina casa – trabalho – casa, alienados das experiências de vida possíveis de serem vividas nos trajetos entre um lugar e outro. É comum ver que, nos vagões de metrô, as experiências individuais não vão além da audição de músicas em celulares, a leitura de livros ou a interação nas redes sociais. Com seu exame dos meios de transporte modernos, Burckhardt defende que o resultado de um planejamento que ignora a paisagem do deslocamento seria o desprezo por um urbanismo gradual (que insinua para o caminhante que ele está indo de um lugar para outro), em favor de um urbanismo no qual os lugares precisam ter, em si, toda a experiência do caminho. Em outras palavras, a rota atualmente tem que ser subsumida, representada no ou ser representada pelo objeto arquitetônico em si. E o objeto arquitetônico precisa ser autossuficiente para que a viagem ou o trajeto seja percorrido. “Modos modernos de transporte tendem a tornar uma jornada por si
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no ensaio O pintor da vida moderna, de 1863 (aquele que se sente em casa quando na rua, o “espectador apaixonado”, aquele que é “o centro do mundo” quando no mundo), morre simbolicamente 10 anos depois com o nascimento do indivíduo blasé de Simmel, completamente indiferente ao que acontece na cidade.
BAGAGEM CULTURAL
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só insignificante e abstrata, uma vez que eles focam apenas no destino”, defende Burckhardt, no mesmo ensaio mencionado anteriormente. É interessante perceber que o pensador tece uma crítica à modernidade através de sua ciência do caminhar, de modo semelhante ao filósofo e sociólogo Georg Simmel, por exemplo, no ensaio A metrópole e a vida mental, de 1902. Simmel defende, segundo uma interpretação psicológica, que a vida mental nas cidades se vê fortemente afetada pela lógica do dinheiro. A atitude blasé, traduzida em um comportamento de completa indiferença dos sujeitos para com outros indivíduos e com a cidade, estaria relacionada, segundo Simmel,
com o dinheiro, “o mais assustador dos niveladores, pois expressa todas as diferenças qualitativas das coisas em termos de ‘quanto?’”. O dinheiro tornar-se-ia o denominador comum de todos os valores, porque extrairia irreparavelmente a essência das coisas, seu valor específico e sua incomparabilidade. Como escreve Simmel, “o indivíduo se tornou um mero elo em uma enorme organização de coisas e poderes que arrancam de suas mãos todo o progresso, espiritualidade e valores, para transformá-lo de sua forma subjetiva na forma de uma vida puramente objetiva”. O indivíduo flâneur tão exaltado pelo poeta Charles Baudelaire
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Burckhardt retoma justamente essa crítica específica à cidade moderna a partir de sua caminhadologia, que pode ser interpretada como uma crítica da arquitetura e do urbanismo, um método pedagógico, um modo de experiência estética ou uma provocação artística. Mas, como enfatiza, a caminhada da caminhadologia não é a mesma caminhada tradicional, pois é uma caricatura do modelo principal. “Ela herdou o vagar da distância do flâneur da realidade, no entanto, perdeu o seu tom nostálgico. A caminhadologia foi criada a partir de nosso senso de ironia”, explica Burckhardt ao curador Hans Ulrich Obrist. A caminhadologia parte do pressuposto de que o indivíduo percebe a paisagem de acordo com um certo background pessoal, formado por itens simbólicos como experiências afetivas, narrativas literárias e impressões visuais já marcadas anteriormente na memória. Como método pedagógico, foi usada em atividades ao ar livre, nas quais Burckhardt saía em grupo com os seus alunos por diversos lugares da cidade de Kassel. O resultado dessas caminhadas era que cada aluno deveria dizer quais lugares pelos quais eles passaram seria mais bonito, formando um “colar de pérolas” gráfico, no qual cada estudante marcava com um ponto os lugares que os tocaram. O fato de os “colares” serem tão semelhantes confirmava, na prática, o seu argumento de que as paisagens são percebidas segundo uma certa bagagem cultural – neste caso, bastante semelhante entre os alunos. Além da caminhada com parabrisas, Lucius Burckhardt realizou outras provocadoras críticas urbanas. Com os seus alunos, ocupou vagas
CON ESPECIAL TI NEN TE IMAGENS: REPRODUÇÃO
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reservadas para carros na Rua Neue Fahrt, em Kassel, com bancadas de aula. Para ele, um considerável espaço público é perdido com carros estacionados, além de custar bastante para os cofres alemães. “Mas por que apenas um carro? Eu poderia estacionar o meu guarda-roupa, o fogão da cozinha ou uma bancada na rua”, provoca Burckhardt, em artigo dedicado à caminhadologia. Na noite antes da ação, eles “estacionaram” mesas e cadeiras para 30 pessoas em vagas de estacionamentos. “Ali, no dia seguinte, ficamos sentados por duas horas, discutindo transporte público. (…) Fomos obrigados pelas autoridades a hastear uma bandeira vermelha e outra branca, durante o evento. Pergunta: por que os donos dos carros estacionados também não são obrigados a fazer o mesmo?”, escreve, equiparando o carro a qualquer outro bem privado – o que é um posicionamento bastante interessante nos tempos atuais, levando em consideração inclusive o cenário brasileiro. Ou seja: por que não podemos, então, estacionar outro bem privado além do carro? Burckhardt também realizou outra interessante intervenção urbana com
Burckhardt desejava uma cidade na qual as pessoas pudessem viver a própria vida em todo o seu potencial os seus alunos em 1993, o ZEBRA crossing. Eles produziram um tapete com estampa de zebra e rolaram-no em qualquer lugar que quiseram, inclusive em uma estrada com seis faixas, para que a atravessassem quando quisessem, sem dependerem de que os carros parassem. A ação chamou a atenção para o direito do pedestre de andar livremente. As críticas radicais de Lucius se dirigiam até para os semáforos: para ele, a ideia de que o pedestre deveria esperar o carro parar para poder andar seria inconcebível, pois ele deveria poder andar e parar quando e como quisesse. Embora a metrópole idealizada por Lucius Burckhardt só possa ser factível atualmente se concebermos uma catástrofe capaz de “zerar tudo” para que seja construída uma nova cidade, na qual a experiência
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do sujeito seja o primeiro critério de qualquer plano arquitetônico, é interessante perceber a busca de Burckhardt por ambientes mais autênticos. Para ele, a escuridão, por exemplo, seria um elemento importante nas paisagens noturnas, contra todas as orientações urbanísticas que seguiam a lógica do quanto mais iluminado, melhor. Para ele e seus alunos (é interessante perceber, nos seus escritos, como os diálogos com os seus alunos são constitutivos de suas opiniões e teorias sobre diversos temas), o uso intenso de iluminação nas ruas não só custaria muito dinheiro para os cofres públicos, como também não resolveria o problema da falta de segurança. As causas da falta de segurança seriam outras.
PAISAGEM POTENTE
A crítica de Lucius Burckhardt à artificialidade da arquitetura é interessante não apenas pelos seus argumentos, mas pelo modo como ele os ancora: nas ações políticas e artísticas realizadas coletivamente, tirando as suas teorias do simples academicismo. Um dos experimentos mais interessantes de Lucius Burckhardt aconteceu
em um shopping. Ele tinha três jardins móveis e “desempacotou” o jardim italiano em frente a uma loja italiana, a fim de mostrar como o ambiente natural entrava em choque com o artificial, mas o efeito foi reverso: “Nós pensamos que isso causaria uma agitação. Não foi o caso. (…) Neste ambiente, o efeito é completamente perdido. Porque tudo aqui é simulação e então você pode simular tudo o que quiser e não é percebido. (…) Nem uma escada de avião levantaria uma sobrancelha nestes arredores. As pessoas diriam: “Oh, é uma propaganda do aeroporto”, conta Lucius Burckhardt. O que Lucius Burckhardt desejava era uma cidade que proporcionasse as condições para que as pessoas pudessem viver a própria vida em todo o seu potencial, com a liberdade de andarem por onde quisessem e a que horas desejassem, que pudessem frequentar lugares públicos e encontrar pessoas espontaneamente. Uma “paisagem potente”, como ele define todas as paisagens livres da sensação de manipulação – que superavam a característica de terem sido feitas pelos homens, seu aspecto manmade-ness – foi vista por ele em 1992, durante a documenta 9, em Kassel. Como ele aponta, era possível ver em todos os relatos de jornais e resenhas de revistas de arte que o evento dedicado à arte contemporânea era um completo desastre. A cidade estava lotada e uma série de problemas de produção fez com que as filas estivessem gigantes. Lucius Burckhardt e a sua esposa, a artista Annemarie Burckhardt, não precisaram enfrentar as filas, pois já moravam na cidade. “Algum tempo passou antes que percebêssemos que se tratava de uma paisagem potente. Verdade, ela foi planejada – apesar disso, ninguém esperava que ela mudasse como mudou. Ela foi, na verdade, um desastre. (…) Então se passaram algumas semanas até que percebêssemos que se tratava de uma grande atração. Pessoas interessantes se encontravam ali e se ajudavam, uns usando o guarda-chuva dos
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6-8 OBRAS Burckhardt utilizava diferentes técnicas e suportes para questionar a paisagem e o desenvolvimento urbano
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outros para ir ao depósito de bagagens e voltavam quando o céu abria. Uma pessoa era eleita para buscar café para outras pessoas da fila, mas era surpreendida de repente com um banho completo, então tinha que voltar para pegar os guarda-chuvas enormes do café para ir a fila e depois tinha que voltar”, narra Lucius Burckhardt, em um de seus ensaios. Algumas das intervenções urbanas realizadas por Lucius com os seus alunos aconteceram durante as edições da documenta, mas elas sempre buscavam sair do centro a fim de questionar as margens. De alguma maneira, é possível dizer que Lucius Burckhardt era um pensador marginal por pensar fora
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dos limites das lógicas já disseminadas de produção desenfreada, consumo intenso e desperdício. É através de suas descrições das paisagens potentes que ele mostra que a fusão de atividade humana, lazer humano e sorte em uma paisagem não é uma utopia, mas uma possibilidade. Aliás, é tão possível e viva que, como escreveu Adam Szymczyk, o curador da 14ª edição da documenta, que tem início este mês na cidade de Kassel: “Annemarie e Lucius Burckhardt continuam a ser uma inspiração para a documenta 14”. Diferentes eventos já foram realizados neste ano em Kassel sobre o trabalho dos dois pensadores, inclusive uma caminhada.
RAJASTÃO A terra do clã dos rajputs Boa parte do território da província, maior em extensão geográfica da Índia, é ocupada pelo deserto, que foi berço da civilização veda, uma das primeiras e mais antigas do mundo TEXTO Carolina Albuquerque FOTOS Ana Caroline de Lima
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Viagem
O caminho de Jaisalmer para Jodhpur
(duas cidades turísticas da província do Rajastão, no Noroeste da Índia) dura cerca de sete horas num ônibus local. A paisagem que se descortina ao longo do trajeto exibe tons de dourado. Pela janela, o cenário se desenha pela aridez da terra e vegetação. O ambiente é preenchido por um ar seco e cálido de uma manhã inevitável de sol. O calor é quase palpável e sensível aos olhos. O deserto do Thar que cobre grande parte da região rajasthani é monótono e, em alguma medida, hostil. Porém, a dureza da paisagem não define a região, destino apontado como um dos mais turísticos do país. A monotonia não define o seu povo. Muito menos as tradições que ali se mantêm há mais de 5 mil anos. O Rajastão não guarda nada de uniforme e previsível. Vibra a cada esquina. O Ocidente se acostumou a pintar a Índia com as cores vibrantes e as tradições insólitas. Narrada pelas lendas de príncipes e princesas que habitavam os suntuosos palácios e fortes reais. Esse imaginário deve muito ao Rajastão. O nome da província significa literalmente “terra dos rajputs”, palavra em sânscrito
que se traduz por “rei”. Até a ascensão ao poder dos rajputs, a região chegou a ser dividida em 36 clãs reais. Contudo, a soberania do clã dos “guerreiros reais” perdurou do século VI até o século XIX, quando começou o seu declínio. Durante esse governo, a região foi dividida em 19 principados, duas chefias principais e o distrito britânico de Ajmer-Merwara. É hoje a maior província em extensão geográfica da Índia (10% do território nacional), resultado das inúmeras empreitadas bélicas e expansionistas comandadas pelos vários impérios. De acordo com dados oficias do governo do Rajastão, a população atual da província é de 68.548.437 milhões, desses, 75,1% habitam áreas rurais, enquanto 24,9% estão em zona urbana. Do total populacional, uma porcentagem de 13,5% é formada por tribos. Envolto em aura mística, o deserto, que ocupa cerca de três quintos do seu território, foi o berço da civilização veda, uma das primeiras e mais antigas do mundo. Os vedas deram origem ao hinduísmo moderno, religião mais difundida no país.
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1 TRAJES
eja na zona rural ou S urbana, as mulheres se vestem de maneira impecável 1
De alguma forma, a história sobre reis e marajás (os grandes chefes) permanece viva aos olhos e à experiência turística. As principais cidades do Rajastão, como Jaipur, Jodhpur, Jaisalmer e Udaipur, são visitadas por milhares de pessoas a cada ano, pela imponência de seus fortes e palácios. Legados da época em que o poder estava concentrado nas mãos das famílias reais, esses monumentos históricos constituem o roteiro indiano mais óbvio. Para uma experiência mais autêntica, seria necessário dedicar mais tempo às ruelas das grandes cidades, aos mercados públicos, nos centros históricos, e às pequenas comunidades étnicas que persistem nas áreas rurais e desérticas do Rajastão. A herança arquitetônica é apenas uma fração do surpreendente universo paralelo que a região tem a oferecer aos seus visitantes.
JODHPUR
Imaginemos um dia comum, no centro da cidade antiga de Jodhpur. O sol de um vermelho alaranjado intenso desponta no céu empoeirado junto com um estridente som. Os primeiros raios iluminam as paredes das construções pintadas de azul (a velha cidade azul). A prece que vem da mesquita se mistura ao sino tocado pelos devotos do hinduísmo e seus mantras. O centro da cidade antiga de Jodhpur não tarda a ferver, de calor e frenético vaivém. As pessoas, os tuk-tuk, os ambulantes e vendedores, os carros, as motos, o cheiro da comida de rua, as crianças, as vacas sagradas, as ruelas, a sujeira, o calor, o incômodo barulho das buzinas. O caos paira adiante. Não há como escapar. Jodhpur está entre as cidades mais populosas da região, logo depois da capital, Jaipur. Tudo acontece nesse quadrante de ruelas, circundado pelos muros que
No Rajastão, é possível ter contato com as diversas práticas religiosas indianas, visitando templos e conhecendo rituais demarcam a cidade antiga de Jodhpur. Caminhar pelo lugar é um convite ao onírico. Pois ali, no meio da multidão de indianos, não constitui uma surpresa se deparar com um elefante que passa pelas ruas estreitas, bem diante dos seus olhos. Ou um camelo. Vários deles, aliás, param no sinal vermelho assim como os carros, obedecendo às leis de trânsito. Perceber a dinâmica daquele povo também se mostra uma rica experiência. Um grupo de mulheres que senta de cócoras, posição de “descanso” comumente adotada
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pelos indianos, enquanto comem samosas (tipo de pastel de massa frita recheada com batata e especiarias indianas). Parte dos coloridos sáris (veste tradicional indiana) arrastase pelo chão, tomado pela poeira e pelo lixo. Um senhor de turbante colorido, sentado de cócoras, desfruta calmamente de um masala chai (bebida quente indiana feita à base de leite, gengibre, cardamomo, canela, pimenta do reino, cravo da índia e chá-preto). As mulheres e os homens rajasthani apresentam-se como se estivessem numa festa de gala. Do turbante (pagri) ao sári (ghagras), passando pela típica joalheria, tudo tem um aspecto particular. O Rajastão nos convida, a todo momento, a vivenciar a tradicional cultura milenar e o modo de vida contemporâneo, que parecem conviver em raro equilíbrio. E são as pessoas e o modo de vida adotado por elas que compõem o vibrante quadro da cultura local.
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de comprimento. Um homem que não o usa é considerado “despido”. É possível identificar um indivíduo pela casta, crença, religião e região baseando-se nas cores e no estilo de amarrar o turbante, ainda que o seu uso se mantenha mais pela tradição que por razões religiosas. Conta-se que o estilo do turbante muda a cada 15 quilômetros. Isso porque existem mais de mil tipos de turbantes e formas de usá-lo. Originalmente, o povo da região começou a vesti-lo para manter a cabeça úmida e fria, amenizando o calor do deserto. O tecido era deixado de molho em água durante a noite e atado à cabeça pela manhã. Outra utilidade é a de servir como um travesseiro ou um cobertor no momento de tirar uma soneca no meio do dia, em qualquer lugar, um hábito muito comum aos indianos. Mais que tudo, o turbante é um símbolo de orgulho, prestígio, respeito e “realeza” para aqueles que o usam. Enquanto isso, as crianças rajasthani têm seus olhos pintados de negro pelo kajal, ou kohl. Cheia de simbolismo, essa prática também se mantém desde tempos muito antigos. As famílias do Rajastão acreditam que, ao pintar os olhos dos bebês, os protege dos espíritos do mal. Trata-se também de uma questão de estética, pois, ao usar a tintura, os olhos se destacam, tornandose grandes e atrativos.
Viagem
ROTA RELIGIOSA
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Na zona rural ou urbana, as mulheres dali se vestem de maneira impecável. Seja uma trabalhadora de campo que sai para coletar madeira ou uma senhora da alta sociedade. O cuidado com a aparência e o apreço à tradição se nota do tornozelo à cabeça. “A joalheria do Rajastão, especificamente dos arredores de Jodhpur, é única e autêntica. Grandes e brilhantes pulseiras e colares significam prosperidade, beleza, felicidade”, conta o comerciante de Jodhpur Amit Kothari. O odhni ou sári, roupa que vestem as rajasthani, tem 300 centímentos de
comprimento e 150 de largura. De acordo com o estilo local de se vestir, uma ponta deve estar atada à camiseta. Daí, desenrola-se a saia que cobre toda parte inferior do corpo. O tecido termina quando a ponta oposta encobre, como um véu, o rosto, os cabelos e o ombro direito. As cores e a estampa são particulares de cada casta, tipo de costume ou ocasião (como casamentos). O ato de cobrir a cabeça e, muitas vezes o rosto, é específico dessa região. Por sua vez, o turbante (pagri) é um adereço indispensável ao homem rajasthani. Chega a medir 25 metros
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A Índia é caracterizada pela sua diversidade de crenças e práticas religiosas. Foi exatamente no território do subcontinente indiano que nasceram quatro das principais religiões do mundo: hinduísmo, budismo, jainismo e o siquismo. O Rajastão é um lugar interessante para aqueles que querem ter contato com as diversas práticas religiosas indianas, pela sua diversidade de templos e rituais. A cidade de Bikaner está na rota turística dessa região pelo peculiar templo Karni Mata, ou Templo dos Ratos, situado em Deshnoke (a 30 quilômetros de Bikaner). Nesse local sagrado, acredita-se que vivem mais de 20 mil ratos negros, e alguns brancos, estes últimos considerados um “bom agouro”, quando vistos. A adoração a esse animal, conhecido como kabbas, é creditada a lendas e ao folclore local.
2-3 JODHPUR
O centro da cidade reflete a típica confusão das matrópoles indianas, onde pessoas, carros e animais circulam livremente
4 TRADIÇÃO
As crianças rajasthani têm seus olhos pintados de negro para afastar os espíritos do mal
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Duas histórias são difundidas pelos devotos. A primeira conta sobre uma tropa de 20 mil soldados desertados que chegou à vila de Deshnoke. Quando Mata (deusa hindu) soube da fuga do campo de batalha, transformouos em ratos, como ato de punição, e ofereceu-lhes um templo. Então, os soldados, em gratidão, prometeram à entidade servi-la para sempre. A outra remete ao personagem do hinduísmo Lakshman, enteado da deusa Karni Mata, que se afogou no lago de Kapil Sarovar, enquanto bebia água. Mata, então, implorou a Yama, o deus da
morte, para poupar sua vida. Ele a atendeu, permitindo a reencarnação do enteado no corpo de um rato. Outros templos chamam a atenção por sua arquitetura, história ou exotismo. Em Jaisalmer, dentro da imensidão do forte (são 460 metros de comprimento e 230 de largura, onde atualmente se encontram casas residenciais e comércio), está localizado o templo jainista Rishabhadeva. Ele foi construído com a típica pedra amarela feita com a areia do deserto, mesmo material usado para erguer o forte. Por fora e
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por dentro, são observadas inúmeras esculturas que retratam as entidades divinas da religião jainista. Muitos devotos do hinduísmo chegam à pequena cidade de Pushkar para ir ao templo do Brahma, um dos poucos na Índia dedicados ao deus da criação. Brahma também é nome da casta da qual fazem parte os intelectuais, filósofos, cientistas, poetas. Esse templo, datado do século XIV, foi erguido com pedras de mármore. Construída em torno do lago sagrado, Pushkar é um destino histórico de peregrinação dos hindus. Como no Rio Ganges de Varanasi, 52 degraus de escadaria cercam o lago, para as quais os devotos se dirigem para banhar-se e purificar-se nas águas sagradas. Principal cidade turística mais ao sul do Rajastão, Udaipur, a cidade dos lagos, é envolta pelo verde, destoando da aridez do deserto que compõe a paisagem de grande parte da província. É uma das cidades mais ricas da Índia, para onde vão os casais em lua de mel, devido ao clima romântico e à luxuosa infraestrutura de hotéis e restaurantes. O centro histórico cresceu no entorno do Lago Pichola. Exatamente às suas margens, foi erguida a cidade-palácio que oferece uma vista panorâmica espetacular da cidade e do lago.
ANGOLA A inteligência do pinote
Vertente da capoeira conceituada por Mestre Pastinha em Salvador, na década de 1940, tem sua maior característica na expressão poética e estética ligada à mimetização da natureza TEXTO Julya Vasconcelos FOTOS Roberta Guimarães
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Tradição
O corpo esguio, negro e leve de Mestre Alexandre – vestido elegantemente com calças brancas, ajustadas com um cinto, e camiseta preta – desliza em movimento constante do chão para o alto, de um lado para o outro. Às vezes, na ponta dos pés, às vezes, tocando os dedos no chão, como se o tamborilasse. Noutras, encostando o rosto e as pernas no piso de cimento da Escola de Capoeira Angola N’golo Bantus, numa rua de terra chamada 2a Travessa Joaquim Nabuco, na Cidade Tabajara, Olinda, onde dá aulas e promove rodas há mais de uma década. Os movimentos têm delicadeza e firmeza comoventes, em um vaivém sem princípio ou fim, como se cada movimentação puxasse a seguinte e assim sucessivamente, sem quebras. O corpo inteiro dança, ginga, ritmado, alternando entre uma vagareza meio felina e repentinos pinotes, enfiadas de pernas,
mergulhos no chão. Parece terral, e, por mais que os corpos subam, eles voltam como que atados à terra. Rodrigo, um dos seus discípulos, abaixa o corpo comprido, descendo lentamente com as mãos paralelas em frente ao rosto como se segurasse algo entre as palmas. De repente, esses dois corpos, tão distintos, passam a compartilhar um diálogo que deve ter algo de fantástico, como se ali pudesse ser constatada a existência da telepatia, pois onde entram os braços de um, afasta-se o tronco do outro segundos antes, como se soubessem ler antecipadamente o corpo/mente do outro. Por vezes, as cabeças se tocam, as mãos encontram o corpo do outro como se tateassem, como se quisessem compreender a textura e a densidade do outro. Às vezes, depois de um golpe, eles se olham sorrindo, ou gargalham, e o som ecoa na pequena casa da Cidade Tabajara. É uma brincadeira, e não é.
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A capoeira praticada por Mestre Alexandre é a chamada capoeira de angola, ou capoeira-mãe, que teve seus fundamentos definidos, por assim dizer, por Mestre Pastinha, em Salvador, na década de 1940. Ela é diferente da capoeira-regional, mais popular, que é uma prática mais esportiva e acrobática, aproximando-se de uma luta marcial, fundada pelo também soteropolitano Mestre Bimba. “A movimentação da capoeira de angola vem toda da natureza. As árvores, os bichos, o cair de uma folha, a água do rio”, explicou Mestre Alexandre, enquanto tomava um suco de acerola, fruta colhida dos pés plantados no fundo da escola. Segundo Mestre Pastinha, a capoeira é uma atividade física, um esporte e uma luta, mas é também “uma reza, um lamento, uma brincadeira, uma vadiação, uma dança, um canto, uma comunhão”. Essa irmandade com a arte, com o que há de expressão estética e poética na prática
da capoeira, parece ser uma das maiores características da angola. “A capoeira de angola tem a presença de códigos gestuais e estéticos muito específicos, que não acontecem nas outras capoeiras. Por exemplo, os toques de berimbau, a construção da bateria, tudo isso tem um claro diferencial. Existe também a ‘chamada’, que é um gesto que acontece e pode acontecer por motivos diferentes. Geralmente, a explicação mais tradicional é que é um momento de harmonização do jogo. É uma pausa em que o capoeirista está se harmonizando. Às vezes, um golpe, uma energia, um campo energético que se abre e se instaura. Cada capoeirista lida com isso de um jeito. É um momento de suspensão do jogo. Um chama, o outro para, e vai ao encontro dele responder à chamada. Esse é um código muito específico”, explica Gabriela Santana, capoeirista e professora pesquisadora do Departamento de Dança da UFPE.
Gabriela é responsável por um projeto de extensão iniciado em 2015, chamado Capoeira no CAC, que logrou reunir alguns dos principais mestres de capoeira de Pernambuco sob a justificativa de mapeá-los, estabelecer diálogos e fomentar a prática. A ação deu origem ao recém-lançado videodocumentário Jogo aberto, importante material de registro e reflexão.
CHAMADAS E GESTOS
No meio do jogo, Mestre Alexandre espalma as mãos, com os braços semiesticados horizontalmente, e vai ao encontro das mãos de Rodrigo. O rapaz repete o gesto do mestre e encosta suas mãos nas dele. De repente, os dois parecem dançar um bolero suave: dois passos pra frente, dois passos pra trás, e esse movimento se repete algumas vezes. A energia é suspensa, e os olhos todos parecem
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pairar nas mãos coladas das capoeiras. A música continua com o som do berra-boi (o principal berimbau dentre os três usados nessa modalidade de capoeira, tem som mais grave e também pode ser chamado de gunga), dos pandeiros, do reco-reco, do agogô, do atabaque. Os oito instrumentos que ditam os ritmos da angola. É bonito, como se a cumplicidade entre os jogadores se evidenciasse ainda mais. A qualidade ritualística é explosiva nesse momento. Mestre Alexandre diz que, no entanto, é preciso não se enganar: a chamada pode ser um blefe, uma cilada, e terminar numa rasteira de surpresa, num “aú” desconcertante, num “rabo de arraia” fatal. “É uma coisa bruta e sutil, a capoeira de angola. Tem a maldade, mas você aplica se quiser. Tem a pancada, tem a rasteira, mas tudo dentro do contexto. Se sai dali, o berimbau chama; tem que respeitar o berimbau”, explica.
Tradição
CON TI NEN TE
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ESTILO LAPIDADO
A “malícia” e a “mandinga” são essenciais dentro da capoeira de angola. Ser angoleiro é também usar a malícia o tempo todo. Segundo Mestre Pastinha, no dossiê do Iphan Rodas de capoeira e ofício dos mestres de capoeira, esse aprendizado tem que dar condições para que cada aprendiz desenvolva seu estilo próprio de dissimulação, beleza, continuidade e elegância em seus movimentos, toque e cantos. A singularidade e a beleza são perseguidas incessantemente. O estilo de cada jogador/dançarino/capoeira é lapidado e exaltado constantemente pelos praticantes, numa busca por identidade. Ninguém joga igual a ninguém, segundo Pastinha.
Ainda segundo seu depoimento no dossiê, há “o descompromisso alegre da vadiação, a malícia ácida da malandragem, a espiritualidade dos rituais religiosos, a beleza das danças e toques. A celebração e a comunhão de um povo não cabem em técnicas e conceitos”. Para Alexandre, praticar a angola é também um ato político e de resistência, principalmente no que diz respeito à reverência a uma ancestralidade africana, além de uma filosofia de vida. “Enxergo os espaços de prática de capoeira como verdadeiros quilombos”, afirma o mestre. Para a contramestra Di, a capoeira também é muito mais complexa do que apenas uma
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dança, ou uma luta, ou um jogo. “A própria capoeira de angola tem sua espiritualidade”, diz, enquanto senta em um tronco seco em meio às muitas árvores do terreno do sítio da Dona Geni, na zona rural de Olinda. Um cheiro forte de manga-espada madura toma conta de tudo. Olhando para o chão, é possível ver dezenas de pontos amarelados entre as folhas secas caídas das árvores. As crianças do sítio, que são também alunas de capoeira da contramestra Di, em um projeto de formação que encabeça sozinha há cerca de seis meses, passam catando as mangas, subindo nas árvores. Miguel sobe alto, conversa com os saguis. O corpo atlético de Di revela uma prática corporal constante, e o seu discurso, que passeia entre o conscientemente político e libertário, nos dá uma pista do quanto a capoeira de angola é também uma escola de formação intelectual e espiritual para os seus seguidores. “A capoeira tem tudo a ver com isso aqui, com a natureza. É o seu habitat”, afirma Di, olhando as copas frondosas das mangueiras do terreno. Depois, enquanto caminha por sobre terra, plantas e lixo (o sítio fica em uma comunidade carente na zona rural de Olinda, e há um claro descompromisso com a coleta de lixo, só para citar um dos problemas), mostra que ali mesmo nascem os vegetais que são a matéria-prima do berimbau. Pega um galho e faz menção à forma fina do instrumento, tão essencial ao jogo de capoeira. “É muito estranho ainda ouvir que o capoeira é um vadio. Uma forma de expressão corporal que atravessou anos e anos! No mato, cultuando a natureza, cantando, dançando. Muito triste ser visto como vagabundo porque se tem essa filosofia de vida. Eu estou sempre conectada com a natureza e a capoeira.” “Essa é uma filosofia de vida”, diz Di, que se chama na verdade Adriana Luz do Nascimento e começou na capoeira aos 13 anos de idade. A capoeira é seta tão afiada na vida dos homens e mulheres que encaram esse caminho, que é menos uma atividade que uma filosofia. Vive-se a capoeira. “A capoeira de angola me deu um norte, uma direção, me fez descobrir qual a
1 BERIMBAU Na modalidade, são usados três, um deles com um som mais grave, também chamado de gunga CONTRAMESTRE DI 2 Reivindica direitos iguais e respeito às mulheres dentro desse ambiente predominantemente masculino MESTRE ALEXANDRE 3 Para ele, a prática da angola é um ato político e de resistência
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a figura da mulher. “No candomblé, por exemplo, a figura da mulher é central. A capoeira precisa também compreender essas questões”, completa. Gabriela observa uma tomada de consciência por parte das mulheres, principalmente em Pernambuco. “A mulher está muito mais reconhecida como alguém que organiza, mas não necessariamente como quem lidera e instrui as outras pessoas. Isso tem a ver com o nosso próprio processo, estamos sempre sendo colocadas à prova, sendo caçoadas, coagidas, intimidadas, e de maneiras muito sutis e perversas. Já existem discussões, e muitas mulheres já estão sensibilizadas, algumas mestras também vem questionando isso. Temos que perguntar: como eu me imponho sem reproduzir?”, questiona.
ANGOLA EM PE
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minha missão no mundo. Pra mim, é uma mãe que só me ensinou, que só me deu força, me fez querer ser quem eu sou. Ajudou diretamente na minha formação enquanto mulher, pessoa, visão de mundo. É paixão, filosofia, missão”, resume a contramestra.
MULHER ANGOLEIRA
No domingo, dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, Di procurou desmarcar as fotos agendadas pela Continente para aquele dia. Queria ir com um grupo de amigas e capoeiras à passeata marcada para a data. “É muito importante para mim e para elas”. A reivindicação por direitos iguais e respeito dentro do espaço predominantemente masculino da
capoeira é uma questão forte para Di. “O número pequeno de mulheres sempre me incomodou. Convivendo em um ambiente masculino, você precisa se impor. Meu mestre me incentivava, mas havia momentos em que eu percebia que fazia pouco. Tinha que correr muito atrás. Rompi com meu mestre para buscar meu caminho de autonomia como mulher angoleira.” As mesmas questões são levantadas pelas professoras Mônica e Gabriela Santana. “Eu me maltratei muito dentro da capoeira, tive que me masculinizar. Não quero mais fazer isso, quero ser quem eu sou”, diz Mônica, que acredita que a capoeira de angola ainda precisa amadurecer a sua matriz africana, que é muito centrada na dualidade e valoriza
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No Alto da Sé, Cidade Alta de Olinda, Severino José Magalhães, 47 anos, faz sua roda um domingo sim, outro não. Apelidado Nino Faísca, por sua agilidade nas rodas, desde que jogava a capoeira-regional, é um dos mais antigos praticantes da angola em Pernambuco. Com seu boné preto, um berimbau a tiracolo, caminha devagarinho em frente à Academia Santa Gertrudes, senta (com um sorriso que não lhe sai do rosto) e começa a contar como a tradição angoleira chegou a Pernambuco, nos anos 1980, o que se confunde também com sua história como angoleiro. “Vim a conhecer o Mestre Sapo, aí comecei a treinar com ele a capoeira de rua, e todo sábado pela manhã estávamos ali na Praça do Diário (no centro do Recife), jogando capoeira com Mestre Teté, Mestre Barrão, Mestre Todo Duro (que hoje em dia é boxeador), e vários outros de todas as partes. A gente jogava sempre e, pra ganhar o pão de cada dia, passava o chapéu. Até que um dia apareceu o Mestre Cobra Mansa,
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Tradição
4 MESTRE SAPO A maioria dos mestres pernambucanos jogou com ele
5 NINO FAÍSCA É um dos mais antigos praticantes da angola em Pernambuco
Cobrinha, lá de Salvador, numa dessas rodas. E lá chegou e jogou a capoeira dele. Até então, a gente não conhecia, e foi uma surpresa pra todos. Aí, Sapo olhou e disse: ‘É essa a capoeira que eu quero. Que capoeira é essa?!’ Ficou todo mundo encantado”, contou Nino. A partir daquele encontro, a relação entre Mestre Sapo e Mestre Cobra Mansa se estabelece. Sapo vai a Salvador aprender aquela capoeira potente, e leva seus dois principais alunos, Nino Faísca e Marcelo Baiacu. Assim começa a história da capoeira de angola em Pernambuco, na figura ainda central e controversa de Humberto Ferreira de Mendonça, o famoso Mestre Sapo. Praticamente, todos os professores, mestres, contramestres e trenéis de angola passaram pelas suas mãos.
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6 HERANÇA DE ANGOLA Grupo, cuja sede é em Olinda, é um dos mais ativos do estado
SAPO E COBRA MANSA
Na enladeirada Rua Ilma Costa, em Bonsucesso, Olinda, a porta de madeira da casa de número 243 dá acesso à Associação de Capoeira Angola Mãe. Mestre Sapo abre a porta, depois de alguns minutos do soar da campainha. O homem de quase 70 anos ostenta longos dreads grisalhos. Abre a porta, faz algumas perguntas, mas não quer dar entrevista. Diz que vai abandonar a capoeira, que seu nome já está marcado. Sapo tem uma relação conturbada com seus antigos alunos e não acredita na diplomação de mestres através do reconhecimento da comunidade. Para ele, assim como era para o Mestre Pastinha, apenas um mestre pode reconhecer um novo mestre. Muitos dos mestres pernambucanos foram
reconhecidos por suas comunidades, por seus trabalhos sociais, pelo tempo de dedicação à capoeira. Mestre Sapo não os reconhece. Suas famosas rodas, que aconteciam aos domingos, estão suspensas. O grande vão, do que já foi uma fábrica de isopor, é um espaço cheio de memória. Fotografias de Pastinha, Cobra Mansa, Mestre Rogério. Cartazes, instrumentos, recortes de jornal. As paredes da associação abraçam a roda de capoeira pintada de amarelo no chão. Mestre Sapo aponta as fotografias, conta do encantamento de ver pela primeira vez Cobra Mansa jogando a angola, do reconhecimento como mestre pelo Mestre Rogério, do Rio de Janeiro. É tudo o que fala. O professor Caíca, coordenador do Grupo de Capoeira Herança de Angola, na Cidade Tabajara, também foi aluno de Sapo, ficando no seu grupo até 2000. O seu espaço é um dos mais ativos do estado, com rodas e aulas constantes. No entanto, de um modo geral, há pouco incentivo e estrutura para os angoleiros. Os mestres, professores e trenéis não conseguem
Mesmo reconhecida como Patrimônio Imaterial do Brasil, a prática da capoeira ainda oferece pouca autonomia aos mestres sobreviver de sua arte, com dificuldades para manter espaços e atividades. Nino Faísca, Di, Alexandre, Sapo, e tantos outros mestres vivem a mesma situação, apesar de a capoeira ser reconhecida como Patrimônio Imaterial do Brasil. Para Caíca, que também é formado em História pela UFRPE, este é um problema histórico de falta de valorização da cultura negra. “Pernambuco nunca incentivou a prática da capoeira! Porém, a resistência venceu até mesmo a proibição do Código Penal republicano. Hoje, somos patrimônio imaterial. A cultura negra sempre aprendeu que o nosso valor nunca poderá depender de reconhecimento externo. E, em
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Pernambuco, a repressão era mais severa. Tivemos o presídio nacional dos capoeiristas, a Casa de Detenção de Fernando de Noronha. Tivemos a transformação da capoeira no frevo, como estratégia de sobrevivência. Nunca nos inclinamos ao poder instituído. A busca por espaços próprios se configura na perpetuação de ‘quilombos’, em consonância com a liberdade pedagógica deixada por nossa ancestralidade”, afirma. Já são quase 21h. As roupas elegantes de Mestre Alexandre e seus alunos não resistem ao calor de Olinda e estão molhadas de suor. Um a um, os discípulos vão atravessando a porta da N’golo Bantus, passando pelas fotografias, pela imagem do Preto Velho que adorna a parede ao lado da porta. Um Bob Marley em tecido observa as atividades do grupo. Alexandre vai até a rua de terra, observa a despedida de todos, e volta ao espaço que o dignifica. “Eu vivo a capoeira dia a dia, e isso é que me fortalece. Eu não sou mestre não, eu zelo pela capoeira de angola, apenas. Deixo ela correr como um rio.”
REPRODUÇÃO
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QUADRINHOS Uma nova safra de pernambucanos
HQs lançadas no Comic Con Experience, realizado no Recife, no último mês de abril, mostram que a produção do estado continua se reinventando e desdobrando novas estéticas TEXTO Germano Rabello
1 PINDORAMA É ambientada num futuro distópico em que parte do Recife foi tomada pelo mar
Quadrinhos novíssimos de Pernambuco, disponíveis para o distinto público. São eles: Pindorama, de Erick Volgo e Lehi Henri; Não tenho uma arma, de Roger Vieira; Fliperama, de Laerte Silvino; Algumas assombrações do Recife Velho, de André Balaio, Roberto Beltrão e Téo Pinheiro; Timo, de Raul Aguiar; e Vagaluz, de Thales Molina. O que existe em comum entre essas obras? Quase nada. Cada uma trabalha com referências diferentes, com estéticas diferentes. Cada uma teve formas diversas de se transformar em realidade, de se financiar. Talvez existam alguns pontos de convergência também. Vamos passar uma lupa nessas questões. A primeira coisa em comum é que os criadores aproveitaram para lançá-los num megaevento chamado Comic Con Experience (CCXP), que chegou ao Recife em abril, depois de várias edições anuais em São Paulo. O nome original em inglês se refere à “convenção de quadrinhos”, mas hoje em dia o termo é restritivo; o espectro dessas convenções, originalmente organizadas por fãs,
tornou-se muito mais ambicioso. São grandes eventos dedicados à cultura pop, com várias linguagens contempladas: cinema, séries, games, desenhos animados. E, claro, para honrar seu nome, sobrevive o espaço das histórias em quadrinhos. Esses lançamentos são prova de que os quadrinhos pernambucanos continuam se reinventando e se desdobrando em novas estéticas. Pindorama, de Erick Volgo (roteiro) e Lehi Henri (arte), é ambientada num futuro distópico em que metade do Recife foi tomada pelo mar. Na história, isso acarreta também o domínio do crime organizado sobre o que restou dela, sobretudo na parte alagada, onde os desafetos são jogados aos tubarões. A narrativa usa o véu da ficção para falar de coisas bem atuais. Nem precisa muito esforço para acreditar nisso, uma vez que a violência é uma realidade do nosso cotidiano e, nesses tempos de aquecimento global, o afogamento é o futuro bem provável da cidade. Há também uma gangue liderada pela travesti Maria Bonita, que
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toca o terror assaltando a cidade. O protagonista, Samuel, é um jovem nos seus 20 e poucos anos, que reluta com participar da sociedade, sentindo o tédio e a inadequação de quem ainda não conseguiu assumir plenamente a vida de adulto. Os temas são atuais, interessantes, mas há uma dificuldade em aprofundar-se neles. Isso se deve parcialmente ao fato de que Pindorama é planejada como uma série, estruturada em 10 episódios, assumindo uma influência das séries audiovisuais, o que tem sido uma tendência bem forte também nos quadrinhos americanos, de uns tempos pra cá. “Esse quadrinho é absolutamente influenciado por séries de TVs e esse é, inclusive, nosso objetivo último”, confirma Erick Volgo, que afirma ter visto mais de oito mil episódios de séries de TV. De toda forma, a leitura do volume poderia ser mais satisfatória em si mesma, visto que é um projeto que demanda tanto tempo para ficar pronto, para ser lido e apreciado. Os temas e os aspectos psicológicos dos
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personagens poderiam ir além. A arte de Lehi Henri é exuberante, virtuosa no uso das cores. Isso funciona de forma extraordinária, sobretudo para o começo da história, em que predomina a apresentação do cenário. Paira no ar alguma dispersão, justo quando a narrativa começa a engrenar, pede uma aproximação maior dos personagens, de suas ações e reações. E do tempo, que é o domínio da história em quadrinhos por excelência. É aí que fica aparente a relação maior dele com a ilustração, também evidenciada na paleta de cores que muda de forma randômica, sem conseguir dar unidade ao visual da história.
SEM PALAVRAS
É próprio dessa nova geração de artistas o domínio bem maior de técnicas digitais. O certo é que eles cresceram numa época de abertura mais intensa, em que a exposição às tecnologias faz com que tenham uma naturalidade maior na arte digital, e, a partir de suas páginas pessoais, a troca com o mundo é muito mais ampla. São ilustradores que têm um toque mais universal, mais cosmopolita, como no caso do traço de Raul Aguiar e Thales Molina. Os dois mobilizaram um financiamento coletivo (crowdfunding) para gerar esse primeiro lançamento da Rochedo Press. São duas HQs em uma só publicação, ligadas pelo fato de não terem palavras. “A narrativa sem texto foi para que tivéssemos uma marca registrada na publicação Rochedo Press, que é colaborativa. Como eu e Raul temos estilos muito diferentes, seguimos essa linha pra definir melhor o público”, afirma Thales Molina. O trabalho dele, Vagaluz, é o mais enigmático e talvez o mais maduro deste lote, acertando a linguagem no onírico. O próprio traço, mais realista, mais aberto à sujeira e ambiguidade, com cores e motivações mais soturnas e sutis, define um outro público. A diagramação é também intrincada, lembrando trabalhos de quadrinistas como Guido Crepax ou Charles Burns. A trama é simples,
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porém, aberta a mil interpretações, um vaga-lume voando na noite, fascinado por outras fontes de luz. Exceto que esse vaga-lume é possivelmente uma transformação do homem que aparece nas páginas iniciais. Enfim, vale a pena ler e tirar suas conclusões. No quadrinho de Raul, Timo é uma criança que está fugindo junto com o pai de uma cidade devastada pela violência. Mas, aqui, a ignorância e o fascismo são os vilões. É uma ode ao poder da imaginação e da literatura. E também uma homenagem ao mundo dos video games, tanto na
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trama como no visual supercolorido. lembrando as imagens pixeladas desta mídia eletrônica. O estilo de Raul já é icônico, bem-conhecido em ilustrações no mercado editorial. A trama é simples e aberta ao público infantojuvenil. “Essa pegada com visual mais game será uma constante nas próximas histórias. No momento, não me vejo fazendo HQs adultas, e queria criar uma aventura divertida que tivesse como pano de fundo o amor pelos livros”, diz Raul. Assim como Thales, o seu background é de ilustrações, infográficos, design editorial.
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O assunto dos games em Timo nos conecta diretamente com o novo trabalho de Laerte Silvino: Fliperama é uma homenagem bem-bolada do artista à cultura dos jogos digitais. O que aconteceria se uma pessoa pudesse entrar nesse mundo fictício, e atravessar todos aqueles perigos e fases, correndo risco de perder a vida, de se machucar? Ninguém em sã consciência faria isso, talvez apenas alguém que tivesse algo de muito precioso a buscar, mais importante que sua própria vida. “Eu falo de fliperama e máquinas de ficha, coisas dos anos 1980 e 1990, que para os jovens de hoje são retrô”, diz o artista. A HQ é de uma linguagem bem acessível a todas as idades, chegando a um final surpreendente. “Há um tempo, queria fazer uma história mais solta, mais aventuresca, algo que sensibilizasse todas as faixas etárias. Eu tinha essa história na cabeça há anos”, diz o criador. Silvino usou os próprios recursos para realizar a publicação e, em
VAGALUZ 2 Tem um traço realista, mais suscetível à ambiguidade TIMO 3 HQ oferece trama simples, aberta ao público infantojuvenil
4 FLIPERAMA É uma homenagem à cultura dos games
parte por isso, a HQ concebida em cores teve de ser impressa em preto e branco, para baratear os custos. “Isso, para mim, fez grande diferença, esteticamente”, explica. Faz sentido, já que as cores comunicam muito a emoção do quadrinho e a estética dos jogos. Mas continuam lá as qualidades do traço, a comunicação precisa da diagramação bem-resolvida. Silvino é um dos poucos dessa lista que, além de ilustrador, tem um trabalho regular com os quadrinhos. Ele é o artista de algumas adaptações literárias como Juca Pirama, de Gonçalves Dias, e do mais recente A Iara, sobre o mito indígena.
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LENDAS
Algumas assombrações do Recife Velho nos traz algumas lendas urbanas. É uma tradução para os quadrinhos do livro de Gilberto Freyre, realizada por André Balaio e Roberto Beltrão (roteiros) e Téo Pinheiro (arte e cores). O livro de Freyre, em meio a alguns arcaísmos, faz um relato instigante, registros do imaginário coletivo mais sombrio da nossa cidade, parcialmente ficcionalizados de histórias de terror e assombração que circulavam na cidade. Os roteiros tomam pequenas liberdades criativas, já que estão em outra mídia, mas, no geral, são fiéis ao livro de Gilberto Freyre. Sobre a gênese do projeto, Balaio comenta: “Eu e Roberto Beltrão, que fazemos o site O Recife Assombrado, somos amigos de infância. Nosso interesse pelas assombrações pernambucanas começou no fim dos anos 1980 e foi justamente através do livro de Freyre, que na época
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5 TERROR Algumas assombrações do Recife Velho reúne lendas urbanas 6 PRETO E BRANCO Não tenho uma arma traz questões universais como a relação mãe e filho
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estava fora de catálogo”. E a outra parte da formação sobre histórias em quadrinhos era completada com o fino das revistas de terror da época, como Kripta, Calafrio, Monstro do Pântano e Dylan Dog. No geral, é eficiente o trabalho do ilustrador Téo Pinheiro, o seu senso de composição. É parceiro de Balaio em obras anteriores, como Malassombro (2016) e A rasteira da perna cabeluda (2015), ambas em preto e branco, sendo aí que sua arte fica mais valorizada. Segue uma linha à moda antiga, old school, em alguns pontos um tanto engessada, mas condizente com as escolhas dos roteiros também. Sobre o uso das cores neste Algumas assombrações do Recife Velho, considerando que é uma obra do gênero de terror, poderiam ser priorizados os tons mais sóbrios ou escuros. Há momentos em que a colorização computadorizada parece
sair do controle e chamar atenção demais para si. Ou é excessivamente clara. E isso se junta ao fato de que parece tudo muito plano, sem relevo. Basta lembrar alguns clássicos de terror em quadrinhos, do recém-falecido Bernie Wrightson desenhando o Monstro do pântano, ou de Mike Mignola, em Hellboy, e a gente descobre o que está faltando: sombras. Muitas sombras, até mesmo nas cenas diurnas. É esse uso do contraste entre luz e sombra que sempre distinguiu as melhores HQs e filmes de terror. As páginas que mais funcionam das Assombrações são justamente aquelas em que as sombras estão melhor delineadas. Ao folhear os trabalhos anteriores de Téo em parceria com Balaio, percebe-se que o uso da cor alterou drasticamente a arte. As cores podem e devem chegar, só que é preciso ter cuidado em seu uso, elas
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devem estar a serviço da narrativa, conscientes do que significam. Pode-se tranquilamente evitar o excesso dos dégradés, talvez incorporar a simplicidade das estórias em quadrinhos mais antigas. Sempre funciona. Isso é que falta para melhorar a identidade visual tanto de Assombrações do Recife Velho como de Pindorama: é preciso haver uma definição maior, uma escolha mais consciente do uso das cores na página. Uma armadilha de satanás para qualquer aspirante a quadrinista, que nem sempre tem a ver com falta de conhecimento técnico, mas com não saber aplicar esse conhecimento.
FOFURA NOS TRAÇOS
Roger Vieira não correu esses riscos, publicando de forma independente e sem qualquer financiamento o seu Não tenho uma arma, em preto e branco. Theo e sua mãe vivem à margem
da sociedade, em contato com a natureza, enquanto o mundo lá fora traz sinais de guerra. É uma HQ que funciona, tem o seu apelo, mas me deixou com um sentimento ambíguo em sua leitura. A história comove por mostrar as relações universais entre mãe/filho e criança/natureza, mas nem por isso deixa de ser um tanto vaga, e os personagens idem. A arte é deliciosamente simples, espontânea, mas mostra também um dos perigos que corre a atual geração de quadrinhos, uma tendência à infantilização, ao excesso de fofura nos traços. Isso está presente também em Timo, em Fliperama, e digo isso não exclusivamente para criticar, mas também para incitar só artistas a alcançarem novos níveis. Roger é um exímio quadrinista e tem tido espaço para publicar excelentes HQs curtas na Folha de Pernambuco. Mas a construção de um personagem para uma narrativa maior pede outra densidade. Algumas das páginas de Não tenho uma arma parecem supérfluas, o que é estranho numa HQ tão curta. A aproximação do universo infantil não é um problema em si, mas os clichês que parecem percorrer as formas. Até mesmo quando a proposta não é infantojuvenil. Um exemplo
Um dos perigos que corre a atual geração de HQs é a tendência à infantilização, ao excesso de fofura nos traços bem famoso e icônico dessa tendência no Brasil: os gêmeos Fábio Moon & Gabriel Bá (Daytripper, Dois Irmãos), com seus personagens excessivamente amigáveis, com sorrisos no rosto o tempo todo. Hoje em dia, há um movimento estético no sentido de tornar as HQs mais palatáveis, agradar aos olhos, em oposição ao que acontecia nas gerações anteriores, que se preocupavam em afirmar que HQs poderiam funcionar para conteúdos adultos. Talvez seja a influência dos emoticons e emojis com que todos nos comunicamos hoje em dia. Em alguns quadrinhos, uma exploração preguiçosa da expressão facial ou corporal leva tudo a ficar repetitivo, de um cartunesco padrão. Mesmo no modo cartum, os personagens no papel são atores, e dependemos de suas boas atuações para nos convencer dos seus sentimentos. Precisam de uma gama maior de sentimentos e nuances,
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precisam de uma corporalidade que possa transmitir além das palavras. De forma geral, os roteiros também podem melhorar, aprofundar-se, mesmo nas histórias relativamente curtas. O domínio da narrativa pode fazer com que elas tenham mais níveis de alcance. A originalidade, botar o que é seu no papel, também faz toda a diferença. Nessa lista pernambucana de novos criadores de quadrinhos, percebese que boa parte dos trabalhos é de neófitos na área, aventurando-se em narrativas longas. A ideia de coletividade, de produção constante de HQs curtas está meio em desuso, assim como os fanzines (em que pesem ótimas exceções como a Hellcife HQ ou o projeto Mutirão). A mais famosa antologia feita no Recife, a Ragu, está há tempo sem dar notícia. Isso sugere um nível maior de individualismo ou é simples sintoma dos tempos? Sem resposta, acredito na produção constante e em maiores trocas como forma de aperfeiçoamento. Esta produção recente, que mescla de veteranos e novatos nos quadrinhos, dá uma ideia do potencial desse meio de comunicação e também dos seus criadores. É um momento bom para os quadrinhos e promete desdobramentos interessantes.
DESMESURA Kunyn encena o argentino Copi
Grupo, que se debruça nas tensões da homoafetividade e da homossexualidade, resgata texto do dramaturgo que faleceu em 1987 em decorrência da Aids TEXTO Mateus Araújo
Palco 1 DESMESURA Traz para o palco a discussão sobre a soropositividade
Na primeira cena de Desmesura – espetáculo que o Teatro Kunyn estreou em maio e continua em temporada neste mês no Centro Cultural São Paulo, capital paulista –, três atores nus propõem ao público uma votação: cada pessoa vai colocar uma bola branca dentro do recipiente em frente àquele artista que ela imagina ser soropositivo. O visível constrangimento de socializar o julgamento já nos desloca uma reflexão dura e necessária sobre o preconceito e os estigmas associados a uma doença que a sociedade ainda silencia. A peça é inspirada na vida e na obra do ator, desenhista e dramaturgo argentino Raul Taborda, o Copi, falecido em 1987 em decorrência de complicações do HIV/Aids. O jogo proposto entre passado e presente na narrativa que une Copi ao elenco do Kunyn, 30 anos depois da morte dele, coloca em cena um olhar sobre a
abordagem da epidemia da síndrome de imunodeficiência – realidade na vida de 36,7 milhões de pessoas no mundo, segundo dados da ONU. O Kunyn é um grupo cuja pesquisa cênica se debruça nas tensões da homoafetividade e da homossexualidade. Nessa trajetória, surgida em 2010, estão três peças: Dizer e não pedir segredo, Orgia – Ou de como os corpos podem substituir as ideias e Desmesura. Todas elas estruturadas, cada uma à sua maneira, em confissões dos atores para seu público. Da primeira até a mais recente, as obras foram erguendo um discurso sobre descoberta, aceitação e ratificação da sexualidade, tomando como norte vieses e falas de diferentes tons. Na nova montagem, o mergulho na obra de Copi aponta para um amadurecimento das reflexões do Kunyn sobre ser e estar no mundo, preocupado com a atualidade da
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fala, sobretudo no que diz respeito à transgeneridade, visibilidade e, mais precisamente, soropositividade. Neste caso, com um olhar pautado pelo sarcasmo, acidez e jocosidade intrínsecos à obra de Copi. Para o ator e dramaturgo Ronaldo Serruya, que, além de protagonizar a montagem, assina o texto, ao colocar Copi no centro da discussão, levanta-se um questionamento sobre a exclusão do argentino da história do teatro mundial como resultado de preconceito. “A primeira coisa que me vem à cabeça, ao ‘descobrir’ Copi neste momento, é pensar por que um autor como ele, que foi contemporâneo de vários autores importantes que chegaram, penetraram e se mantiveram no teatro, estudados e montados, não teve esse mesmo espaço nas escolas de formação em teatro”, comenta Serruya. “Existe uma
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escolha de barrar alguns discursos e de tomar outros como norma. Copi tem uma obra profundamente transgressora para o tempo em que ele escreveu e para o tempo em que a gente vive.”
HUMOR E SARCASMO
Na opinião da professora e pesquisadora Renata Pimentel, referência no estudo da obra do dramaturgo argentino no Brasil, ele toca com “uma potência metafórica imensa em questões de gênero e representatividade, discutindo, para além das filigranas dos discursos e nomeações, as pautas de reivindicações de setores minoritários em suas especificidades”. “Ele até ironizava com humor os movimentos de reivindicações gays e lésbicos daquela época. No entanto, faz de sua arte um espaço privilegiado para a discussão crítica e representação bem-humorada de toda a ‘taxonomia’
O Kunyn levanta questionamento sobre os preconceitos que levaram à exclusão de Copi da história do teatro mundial das dissidências sexuais avant-garde, desnudando os falsos moralismos.” Renata é autora do livro Copi: transgressão e escrita transformista, tradutora das peças do argentino para o português e assessora teórica da maioria das montagens brasileiras, como é o caso de Desmesura, da qual é a dramaturgista. “Copi falou sobre questões quando elas nem haviam sido nomeadas e ainda eram embriões ou nem visíveis”, destaca a escritora. “A Aids, por exemplo, é uma das temáticas-
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eixo da vida de Copi (dizia ele, que foi tão vanguardista, que a Aids o contaminou antes de qualquer outro), e, portanto, se converte ele próprio (autor e obras) em uma ‘plataforma’ para discutir o tema, pois que tematizou ele mesmo esse assunto.” Em Desmesura, Copi conversa com seus personagens e se questiona sobre a própria vida, as escolhas e os acasos. “Tentamos, com esta dramaturgia, levar à discussão este problema que continua incômodo, assunto-tabu e em índices novamente crescentes de casos de contaminação. Também, para escancarar as hipocrisias que cercam o modo como o tema ainda é tratado”, explica Renata Pimentel. Em 2017, décadas depois da grande epidemia do vírus HIV, numa sociedade em que o tratamento antirretroviral mudou a realidade de vida de milhares de pessoas, os textos de Copi surgem para preencher parte
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2 OCUPAÇÃO COPI O diretor e ator Fabiano Freitas encenou O homossexual ou a dificuldade de se expressar no evento realizado no Sesc Copacabana, em 2015
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ANATOMIA 3 DO FAUNO
Montagem levou ao palco a vivência com o HIV no contexto LGBT
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de uma lacuna nas abordagens sobre soropositividade, no teatro brasileiro. Longe de visões melancólicas e trágicas, que permearem os debates artísticos até o final do século XX, o argentino possibilita, com seu humor e sarcasmo, um novo olhar em sintonia com o movimento do tempo e o avanço da ciência. “A nossa ideia, nesse espetáculo, é de fazer com que as pessoas estejam conectadas ao tempo em que elas vivem. É muito assustador perceber como as referências das pessoas ainda são basicamente historicistas, estagnadas em determinado momento do passado”, afirma Ronaldo Serruya, que, em 2015 e 2016, realizou a oficina O Corpo Interdito, sobre movimentos de interdição do corpo no século passado – incluindo a Aids. “Quando chegávamos à discussão da Aids, as referências estavam plantadas na década de 1980, como se nada tivesse
sido construído de lá pra cá. As pessoas que têm HIV não estão morrendo mais; elas estão vivas. Então, se vamos falar sobre esse tema, precisamos criar narrativas de vida e de tudo que significa estar vivo no mundo hoje: se relacionar, trabalhar e estar na vida.” Ainda segundo o dramaturgo, a obra de Copi possibilitou ao coletivo um entendimento maior sobre muitas das questões que estão sendo colocadas em pauta na contemporaneidade, como a ideia de protagonismo e lugar de fala. “A gente sai desse processo, por tudo que aconteceu nele e discutiu nele, muito mais conscientes dessas questões do que como a gente era há dois anos.” O caráter confessional dos espetáculos do Teatro Kunyn reforça essa percepção de Serruya. “Esse texto traz questões que atravessavam a vida desse artista (Copi), mas que também atravessam a vida dos artistas que estão
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hoje encenando essa obra – no sentido de que esses assuntos (sobretudo o HIV/Aids) atravessam a vida de pessoas do nosso tempo, que estão se relacionando, transando, conhecendo outras pessoas. Até porque é engraçado perceber como, de alguma maneira, sublimamos assuntos e fazemos com que eles, de certa forma, não existam, quando eles estão ali, à nossa frente.”
AFIRMATIVOS
A busca por uma narrativa sintonizada com a realidade atual é um dos nortes apontados pelo diretor e ator Fabiano Freitas, do Teatro de Extremos, do Rio de Janeiro, e um dos idealizadores da Ocupação Copi, em 2015, no Sesc Copacabana. Para Freitas – que na ocasião encenou O homossexual ou a dificuldade de se expressar, até então inédita no Brasil –, a desatualização da abordagem da Aids no teatro escancara uma
crise artística de narrativas. “A gente carece de narrativas que sejam mais contemporâneas e que digam mais ao nosso tempo e sobre o nosso tempo. Muitas das narrativas, no cinema, no teatro ou na televisão, quando tocam na questão, ainda é a partir de uma abordagem dos anos 1980 e 1990: a morte eminente e visão fatalista. Elas revelam muito pouco do que vivemos hoje”, analisa. Lançada em 2015, em São Paulo, a peça Anatomia do fauno, do Laboratório de Práticas Performativas da USP e do Teatro da Pomba Gira Coletivo de Criadores, é um dos exemplos contemporâneos de montagens que levaram ao palco a vivência com o HIV no contexto LGBT. Na montagem, mais de 20 homens construíram cenas com base em performances e improvisações coletivas, norteados pela memória afetiva de cada artista. Entre o material
Esses trabalhos têm buscado abordar a soropositividade num contexto mais atual, longe de visões melancólicas levantado com os perfomers, o coletivo percebeu que o sexo quase sempre esteve associado a questões como a rejeição, a culpa, o medo e a repressão, segundo o dramaturgista Alexandre Rabelo, responsável por “costurar” os fragmentos do trabalho. Entre as criações, a soropositividade, inevitavelmente, surgiu na abordagem como um tabu a ser desconstruído. “No início, evitava-se falar disso até nas mesas de bar após os ensaios, mesmo sendo tácito que entre as dezenas de pessoas
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que passaram pelo processo havia alguns soropositivos”, conta Rabelo. “Ainda assim, um dos performers foi corajoso e trouxe a temática numa improvisação. Nossa abordagem foi a do medo do contágio, apenas. Esse era nosso lugar de fala.” No espetáculo, o Fauno contrai o vírus e, após sofrer com isso, recupera suas forças e celebra a vida. “Era isto o que queríamos: mostrar que sabíamos qual era o lado denso, mas dar uma virada sem chororô”, explica. “Precisamos tirar o estigma ligado à soropositividade. Precisamos entender que ela não é atributo de gays, mas um problema da humanidade. A arte pode mostrar que o contágio não é uma sentença de morte, e que pode, inclusive, como acontece com muitos amigos, servir para que se celebre ainda mais a vida. A soropositividade pode, sim, ajudar a formar um olhar mais voltado para a essência.”
É TUDO VERDADE/DIVULGAÇÃO
Claquete
DOCUMENTÁRIO Da América Latina à URSS Festival É Tudo Verdade propôs um panorama reflexivo do gênero a partir de dois intensos processos históricos ocorridos no século XX TEXTO Beatriz Macruz 1
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Duas importantes datas históricas
– os 100 anos da URSS, e os 50 anos do movimento que ficou conhecido como Nuevo Cine Latino Americano – ganharam destaque na 22a edição do É Tudo Verdade. Realizado entre abril e maio deste ano, em São Paulo e no Rio de Janeiro, o festival especializado em documentários apresentou uma mostra dedicada à produção documental da URSS e uma retrospectiva da obra do documentarista brasileiro Sergio Muniz, que fez parte do movimento e do Comitê de Cineastas Latino-Americanos, reunido pela primeira vez em 1967. O documentarista e poeta Sergio Muniz guarda muito vivas as memórias da formação do Comitê de Cineastas Latino-Americanos; que levaria a encontros, exibições e produções cinematográficas, caracterizando um período de intensa parceria e intercâmbio cultural entre cineastas latinos, cujo marco inicial foi o Festival de Vinã del Mar, em 1967, que se estendeu até o final da década seguinte e ficou conhecido como Nuevo Cine Latino Americano (NCL). “Este primeiro encontro foi uma descoberta mútua. Mostrou que, apesar da diversidade de filmes e temas, havia uma unidade entre esses cineastas, na sua maneira de se aproximar do cinema”, conta o diretor. Um exemplo claro dessa afinidade estética compartilhada pelos cineastas do continente naquele período é justamente o documentário de estreia de Muniz: Roda & outras estórias (1965), um filme-colagem sobre os primeiros meses da ditadura militar brasileira, embalado por canções do então desconhecido cantor e compositor Gilberto Gil. No mesmo ano, o documentarista cubano Santiago Álvarez lançou Now, estupenda reflexão em forma de mosaico sobre o racismo nos EUA. “Santiago filmou o Now ao mesmo tempo em que eu filmava o Roda”, relembra Muniz, “e isso foi antes de nos conhecermos; então não dá pra dizer que um inspirou o outro, eram filmes irmãos e nós éramos compadres, é o que dizíamos”, conta. Roda & outras estórias e Now são também precursores da linguagem do videoclipe e, assim como muitas realizações do mesmo período,
são documentários abertamente políticos. O intercâmbio cultural promovido pelos diretores membros do Comitê do NCL permitiu que a fundamental obra documental de Álvarez circulasse fora de Cuba, por todo o continente latino-americano. Muniz relembra variados projetos de cineastas que se firmaram na esteira dos encontros do Comitê, como a Escola de Documentário de Santa Fé, fundada por Fernando Birri, e o grupo Cine de la Base, ambos na Argentina; o pioneiro do cinema em língua indígena Jorge Sanjinés, da Bolívia; e mesmo o Cinema Novo brasileiro, que surge no início da década de 1960, para se tornar uma das principais referências de atuação para essa geração de cineastas latinos que viria a seguir. “Havia um horizonte comum, que também já aparecia, por exemplo, nos filmes do Glauber Rocha. Ainda que fossem em sua maioria ficcionais, ele
“A força estética desses filmes é interessante para nos perguntar sobre o cinema que fazemos hoje” Luis Felipe Labaki propunha uma revisão de linguagem do cinema, muito influenciada pela realidade brasileira e latino-americana”, explica Muniz. Ele ressalta que havia um ímpeto de conhecer e transformar a realidade através do cinema, “muito por conta do momento político que experimentávamos no continente”, principalmente após a Revolução Cubana, nos anos 1960, e que mudaria radicalmente na década seguinte. Esse mesmo ímpeto de se aproximar da realidade de maneira mais direta foi o que motivou Sergio e outros realizadores brasileiros – como Geraldo Sarno, Paulo Gil Soares, Maurice Capovilla, Eduardo Escorel, entre outros – a se juntarem no projeto de documentação audiovisual de cultura popular brasileira que, organizado pelo empresário e fotógrafo Thomas Farkas, ficou conhecido como Caravana Farkas. Viajando pelo nordeste do país entre os anos 1960/70, fez uso tanto
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de técnicas de reportagem tradicionais quanto de narrativas ficcionais para documentar a geografia, a religiosidade, personagens e histórias da região em pequenos documentários. São desta época alguns de documentários mais inventivos de Sérgio Muniz, como Beste (1969), que mostra como se prepara uma beste, arma rudimentar utilizada antes do aparecimento da pólvora e das armas de fogo, enquanto uma narração em off informa que o filme se passa exatamente no mesmo dia em que o homem pisa pela primeira vez na Lua.
RETROSPECTIVA RUSSA
Cocurador da retrospectiva 100: de volta a URSS do É tudo verdade, mestre em Cinema pela ECA-USP, Luis Felipe Labaki descreve um desejo similar de transformar a realidade como a particularidade da produção cinematográfica soviética: “Desde o início da experiência revolucionária, o documentário foi considerado um dos caminhos possíveis para expressar as transformações da sociedade”. É o caso do pioneiro Dziga Vertov – cuja obra fundante da linguagem documental no cinema é objeto da pesquisa de Labaki – e de seu filme Avante, soviete (1926). Tratava-se de “um filme de encomenda”, para o qual Vertov recebeu a tarefa de registrar o trabalho dos sovietes da prefeitura da cidade de Moscou. Mas, em vez de relatar de forma linear quais eram estas obras e trabalhadores, o diretor fez uma reflexão poética sobre o papel deles em toda URSS. Labaki exemplifica que “no filme, cartelas e legendas não têm função descritiva, mas amarram a narrativa num discurso sobre os sovietes em todo o território, que aborda também a superação das dificuldades e destruições da guerra civil, uma memória ainda muito presente em toda sociedade russa, o que obviamente não deixou as autoridades muito felizes com o filme”. Segundo ele, apesar de algumas vezes desagradar as autoridades, Dziga Vertov nunca foi propriamente censurado pelo governo, mas encontrou dificuldades para produzir, uma vez que “as instâncias de produção e aprovação dos filmes se tornaram cada vez mais burocráticas”.
FOTOS: É TUDO VERDADE/DIVULGAÇÃO
Claquete
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Labaki, porém, esclarece que, sobretudo na primeira década da URSS, quando não havia ainda a imposição do realismo socialista e o estado estava se organizando, havia debate público e estético em torno dos filmes, mesmo quando desagradavam por alguma razão. “Desde a primeira década da URSS, já havia muitos procedimentos diferentes de documentário”, comenta, “que apontavam para caminhos e soluções de linguagem muito diversos, que nos levam até o documentário russo contemporâneo”. Outro exemplo é O grande caminho, filme de 1927, que traça um panorama da primeira década de URSS. Segundo Labaki, a diretora Esfir Shub realizou o filme como resposta e alternativa a diversas críticas que Vertov recebeu; de que seu trabalho como documentarista era demasiado poetizante e individualista. Apesar de celebrar uma efeméride, Shub fez um filme preocupado em situar historicamente o espectador em relação a todas as imagens, documentos e registos apresentados, construindo com rigor “outro tipo de documento cinematográfico, a partir de outra relação com a imagem, muito eficiente como registro histórico”, esclarece o curador.
É na preocupação com a formação política que dialogam as ações dos meios audiovisuais russo e latino-americano A inusitada mistura entre documentário e encenação em Diante do julgamento da história, de 1965, também dá conta da potência diversa da produção documental na URSS. Trata-se de um filme em formato de entrevista, em que um personagem real – ex-opositor do governo revolucionário, um senhor de 80 anos, supostamente arrependido – faz um relato de sua vida a um historiador fictício, ator contratado. Labaki observa que Diante do julgamento da História é um exemplo de como “você pode fazer um filme com toda segurança e controle possíveis, mas, mesmo assim, ele pode soar contrarrevolucionário”, ou sob outra perspectiva, “mostra como um filme pode ser bom, apesar de toda censura prévia em torno dele”. De fato, a fonte de interesse e controvérsia do filme está no fato de que o personagem real, que deveria
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se apresentar como um “derrotado pela história”, ao fazer uma revisão de sua trajetória política, é muito mais rico e interessante que o historiador fictício que o entrevista, ainda que todas as falas do filme sejam roteirizadas. “Mesmo com a crescente burocratização das produções e da necessidade de roteiro pré-aprovado para filmar, esse filme, por apresentar esse personagem tão complexo, ficou três dias em cartaz e depois foi retirado”, explica Labaki. Ainda assim, segundo ele, é um projeto que só poderia existir e causar incômodo dentro “daquelas condições específicas de produção” da URSS.
CONDIÇÕES ADVERSAS
Já a documentarista Marina Goldovskaya, que recebeu uma retrospectiva individual na edição de 2015 do É tudo verdade, sempre bateu de frente com temas incômodos para o governo soviético, especialmente o stalinismo, ao mesmo tempo em que se aproximava de dramas humanos e histórias mínimas em seus documentários, que problematizam a repressão e a violência do estado soviético. Estreou na direção em 1972 e, em 1988, dirigiu o documentário O poder de Solovki, em que entrevista
5 Página 64 1 DZIGA VERTOV
Pioneiro soviético foi um dos responsáveis pela construção da linguagem documental 4
ex-internos do Solovki, um dos mais famosos campos de trabalho forçados soviéticos. Hoje, aos 75 anos, radicada nos EUA desde 1990, teve um de seus mais recentes filmes, O gosto amargo da liberdade (2010) – que conta a história do assassinato da jornalista russa Anna Politkovskaya – exibido uma só vez na televisão aberta russa. Assim como ela, o documentarista russo Vitaly Mansky veio a São Paulo a convite do festival apresentar seu longa Relações próximas (2016), em que documenta o dia a dia de sua família, dividida entre duas cidades na Ucrânia, após o início do conflito com a Rússia, em 2014. Ele também exibiu apenas uma vez seu longa em território russo, de onde saiu com o prêmio de “evento cinematográfico do ano”, mas sem nenhuma possibilidade de distribuição ou financiamento para seus próximos filmes. Ele observa que, mesmo no período soviético, realizadores como Vertov e Goldovskaya foram criticados e tiveram a produção de alguns de seus filmes dificultada; mesmo assim, conseguiram financiar seu trabalho dentro do estado soviético. Mansky conta que os documentaristas russos contemporâneos trabalham “sem financiamento, pelas bordas da
“Nosso esforço nos anos 1960/70 sobrou para o documentário, que assimilou a riqueza do momento” Sergio Muniz
sociedade” numa Rússia cada vez mais autoritária e conservadora. Ainda assim, segundo Mansky, o documentário é talvez o único meio que o público russo encontra no cenário político contemporâneo, “para refletir e analisar questões políticas e existenciais”. De fato, Relações próximas é um filme que discute a guerra – trata da disputa territorial e da intervenção da Rússia na Ucrânia – através dos dilemas e angústias que surgem da rotina familiar de Mansky. Não há nenhum registro de batalha ou violência, mas a tensão entre os familiares – que só se comunicam por redes sociais e telefone –, apartados pelo conflito em território ucraniano, é crescente. Depois que o filme foi finalizado, o documentarista precisou deixar a Rússia e passou a viver na Estônia. “Gostaria de poder dizer que meu filme não é um filme político”, ponderou, “mas a política se torna
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Nestas páginas 2 VOCÊ TAMBÉM PODE DAR UM PRESUNTO LEGAL
Esquadrão da Morte em foco no média-metragem
3 SERGIO MUNIZ
Cineasta integrou o projeto de registro da cultura popular nacional conhecido como Caravana Farkas
4 RELAÇÕES PRÓXIMAS
Filme enfoca o cotidiano de duas famílias apartadas pelos conflitos entre Rússia e Ucrânia
5 VITALY MANSKY
Para o diretor, o documentário é único meio que o público russo tem “para analisar questões existenciais”
inevitável, uma vez que ofereço uma abordagem singular e distante de qualquer discurso político, sobre um conflito genuinamente político”. “Espero que meu trabalho logo transcenda a esfera política em direção à esfera das questões puramente humanas, onde a arte reside de fato”, afirmou Mansky. Para Luis Felipe Labaki, por outro lado, há diversos aspectos políticos importantes que advêm da produção documental russa e soviética. Ele recorda o trabalho de formação de jovens cineastas empreendido por Dziga Vertov: “É uma faceta política ainda pouco reconhecida do Vertov, que produziu manifestos, textos e cartas que tinham um sentido prático, eram verdadeiros manuais de como começar a fazer filmes”. Segundo Labaki, para além do rigor e inventividade formais, pelos quais foi consagrado em sua obra-prima, O
INDICAÇÕES homem com a câmera (1929), Dziga Vertov nutria a preocupação de passar seu conhecimento adiante. “Um dos jovens que saiu de um círculo de formação conduzido pelo Vertov se tornaria mais tarde outra importante referência do documentário soviético, o cineasta Iliá Kopálin”, pontuou.
LUGAR DO CINEMA
É na preocupação com uma formação política que essas ações do meio audiovisual latino e russo dialogam. Com o intuito similar de retratar e transformar a realidade, nasceu na Argentina o grupo de orientação marxista Cine de la Base. Liderado pelo documentarista Raymundo Gleyzer, o grupo organizava oficinas e projetava filmes em bairros, escolas, universidades e fábricas antes e durante a ditadura militar argentina. Filmes como Ni perdón ni olvido (1972) e Los traidores (1973) tiveram de ser filmados e exibidos clandestinamente. Em 1976, Gleyzer acabou detido pelo estado e permanece desaparecido. Sergio Muniz conta que, nesse mesmo período, era muito difícil encontrar um filme brasileiro que contestasse abertamente a ditadura militar à qual estávamos submetidos, “o que não quer dizer que não estivéssemos contra o regime, mas não estávamos maciçamente organizados, como era o caso do argentino Cine de la Base”. Ele rememora também a trilogia A batalha do Chile, de Patricio Guzman, sobre o golpe de estado que destitui Salvador Allende e instaurou uma ditadura militar no país, cuja
montagem começou no país e terminou no exílio. No Brasil, experiências pontuais nasceram, contudo, do intercâmbio com outros cineastas e movimentos de resistência no continente, como o documentário Você também pode dar um presunto legal, sobre a atuação do Esquadrão da Morte sob o comando do delegado Sergio Paranhos Fleury. Dirigido pelo próprio Sergio Muniz, em 1971, o filme, porém, só foi finalizado e exibido nacionalmente a partir de 2006; e curiosamente viralizou nas redes sociais brasileiras no início de 2017. Muniz credita esse fato curioso à tarefa – que é também, segundo ele, um legado – de “dar continuidade a esta história”. Para ele, uma geração que atravessou um período ditatorial não consegue recuperar o fôlego sozinha. “O que ficou do nosso esforço dos anos 1960 e 70, sobrou para o documentário, que assimilou a riqueza e a responsabilidade daquele momento”, diz. Já para Luis Felipe Labaki, o legado diz respeito às perguntas que os filmes deixam para o cinema e o tempo presentes: “A força estética que filmes como estes trazem e o que eles nos mostram são interessantes para nos perguntar sobre o cinema que fazemos hoje e sobre o que ele nos mostra. Como O homem com a câmera é um filme que faz uma reflexão sobre o lugar do cinema na sociedade soviética daquele momento, ele serve para que nos perguntemos: e hoje, qual é o lugar do cinema na nossa sociedade?”
AVENTURA
CINEBIOGRAFIA
Dirigido por Patty Jenkins Com Gal Gadot, Robin Wright Warner
Dirigido por Mika Kaurismäki Com Malin Buska, Sarah Gadon Flashtar
MULHER MARAVILHA
A JOVEM RAINHA
Da heroína a pilotar um avião invisível nos desenhos animados à amazona que assume sua condição de líder para impedir uma catástrofe em tempos de guerra: muito já se falou da Mulher Maravilha, porém a superprodução que a Warner coloca em cartaz neste junho é a primeira em que Diana Prince (Gal Gadot) surge com a força de um discurso feminista. A diretora é uma mulher e, com exceção de Chris Pine, os grandes personagens cabem a atrizes como Connie Nielsen e Robin Wright.
Fato: na Suécia do século XVII, Cristina virou rainha após a morte do pai, Gustavo II. Ela foi criada como um garoto até assumir o trono, aos 12 anos. Ficção: Mika Kaurismäki adiciona imaginação a esse episódio da história escandinava e transforma a jovem rainha (interpretada por Malin Buska) em uma regente questionadora e apaixonada pela condessa Ebba Sparre (Sarah Gadon), sua dama de companhia. A reconstituição é impecável, mas o filme vale pelo retrato de uma mulher que ousou se contrapor às regras.
DOCUMENTÁRIO
COMÉDIA
DIVINAS DIVAS
Dirigido por Leandra Leal Com Rogéria, Jane Di Castro Vitrine Filmes
Impossível falar das artistas travestis no Brasil sem ressaltar as divas que a atriz Leandra Leal radiografou em seu primeiro documentário. Era seu avô, Américo Leal, quem dirigia o Teatro Rival, no centro do Rio de Janeiro, um dos primeiros espaços abertos para os shows de homens vestidos de mulher, nos anos 1960. Décadas depois, Rogéria, Marquesa, Jane Di Castro, Eloína dos Leopardos e Fujika de Halliday, entre outras, rememoram suas existências sem negar a revolução comportamental que ajudaram a deflagrar.
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KIKI – OS SEGREDOS DO DESEJO Dirigido por Paco León Com Natalia de Molina, Anna Katz Imovision
“Madri não é moderna. Parece que é, mas não é.” A frase é de uma das personagens desta divertida saga de encontros e desencontros através do sexo – com toda a contradição e as surpresas que amar e transar carregam na contemporaneidade. Na capital espanhola, há o casal de longa data com rotina morna na cama, a mulher que interage com uma outra, o homem que resolve investir numa paquera virtual… Não importa o ângulo, a abordagem do diretor Paco León é leve, engraçada e nada pudica.
DIVULGAÇÃO
1 A MISSÃO Publicação da obra de Heire Müller pela n-1 traz um rasgão individualizado na capa
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Leitura
Da cidade de livros tornou donos estes olhos sem luz, que só concedem em ler entre as bibliotecas dos sonhos insensatos parágrafos que cedem as alvas a seu afã.
EDIÇÃO Em busca da elegância gráfica
Editoras apostam na publicação de obras com projetos gráficos mais elaborados e criativos, focando num público afeiçoado às formas materiais do livro TEXTO Erika Muniz
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Em vão o dia prodiga-lhes seus livros infinitos, árduos como os árduos manuscritos que pereceram em Alexandria. Poema dos dons, Jorge Luis Borges
A diversidade de suportes de leitura, desde a revolução eletrônica, torna-se cada vez maior. No entanto, percebe-se certa preferência, por parte dos leitores, pelo livro em seu formato analógico. Há, ainda, os que não dispensam a oportunidade de aquirir edições com projetos editoriais mais sofisticados. “Pensar o conteúdo do livro relacionado com o projeto gráfico faz toda a diferença”, afirma Marília Garcia, da Luna Parque. O número de editoras brasileiras que oferecem um apuro minucioso nas diversas etapas dos processos de edição gráfica, e até nas
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Leitura escolhas de seus conteúdos, vem crescendo. Atualmente, esta variedade acaba ampliando o público leitor, estimulando a criação de eventos e de novas alternativas para a distribuição destas obras. “Há um motivo pelo qual o mercado da música migrou quase que inteiramente para o digital e o de livro não. A experiência de ler um livro é atravessada pela interação com o objeto livro. Uma boa composição como a escolha da tipografia e o tamanho de letra certos tornam essa experiência muito mais prazerosa. Ilustrações e um projeto gráfico pensado de maneira complementar ao texto permitem uma expansão e apreensão melhor do conteúdo. O toque, o cheiro, tudo isso conta”, afirma Júlia Fagá, gerente de comunicação da Ubu Editora. Com uma equipe formada inteiramente por mulheres – entre elas, a diretora artística Elaine Ramos, responsável pela direção artística da extinta Cosac Naify por 11 anos – e de modo independente, a editora está localizada no Largo do
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Arouche, em São Paulo. O catálogo da Ubu se volta para textos e criações artísticas que contribuam para o debate contemporâneo, buscando inovar, mas também cuidando para que os projetos gráficos mantenham o diálogo com o recheio. “Para textos densos, por exemplo, o cuidado vai mais no sentido de prover o leitor de facilidade ao manipular os livros, como é o caso da Coleção Argonautas”, explica Fagá. Entre os destaque está a reedição de Os sertões, organizada por Walnice Nogueira Galvão, em comemoração aos 150 anos de Euclides da Cunha, que traz, além do texto integral, ensaios e críticas de autores como a própria organizadora, Antonio Candido, Luiz Costa Lima, Gilberto Freyre e outros. No conjunto de editoras que primam por um projeto editorial bastante cuidadoso e vêm investindo no desafio de ampliar sua lista de edições está a Carambaia. Entre os diferentes gêneros já publicados pelo selo – como a prosa, o ensaio, a crônica –, este ano, a equipe pretende agregar o teatro. A proposta
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2-3 OS SERTÕES Edição da UBU do clássico de Euclides da Cunha reproduz páginas das cadernetas de campo do autor
do catálogo é misturar obras mais a outras menos conhecidas de autores já consagrados, que ainda não tenham seus principais livros publicados no Brasil, a exemplo da edição de Jaqueta branca, do norte-americano Herman Melville – autor de Moby Dick –, texto que até então era inédito no Brasil. Outro título de destaque na Carambaia é Salões de Paris, com 21 crônicas escritas pelo autor de Em busca do tempo perdido, Marcel Proust. Em 2016, a editora paulista lançou sua versão de Dom Casmurro, de Machado de Assis, com projeto gráfico assinado pela designer Tereza Betttinardi. Os exemplares, com as mesmas dimensões do original publicado em 1899 pela carioca Livraria Garnier (17,5 x 11,5 cm), são numerados e trazem uma antiga técnica de decoração de livros, em que as imagens são apresentadas nas laterais das páginas quando o
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livro está fechado. “Por que a pessoa vai comprar um livro de Machado de Assis nosso e não uma edição estudantil ou lê-lo em formato digital de graça? É uma edição cuidadosa, diferente. Esse leitor, provavelmente mais experiente, já leu Machado, mas quer ter uma edição caprichada. Isso demonstra como um mesmo autor, uma mesma obra, pode ter diferentes funções para diferentes públicos. Um mesmo autor pode funcionar em diferentes versões, em diferentes edições, a gente vê isso acontecer muito lá fora”, explica o diretor editorial Fabiano Curi à Continente.
DISTRIBUIÇÃO
A dedicação das editoras não finda quando os procedimentos de feitura do livro se concluem, pois elas consideram a distribuição como outro ponto importante. Facilitar o acesso do leitor ao produto, bem como garantir que chegue aos leitores é parte da atenção destinada. Para os preços não aumentarem, por conta das numerosas etapas que fogem do modelo de indústria tradicional, uma das alternativas de disseminação tem sido vender através de sites e redes sociais. É preciso levar em conta que, quando colocados nas livrarias, os
As edições mais sofisticadas terminam contando também com um modo de distribuição distinto, com foco na internet livros sofrem acréscimos que chegam a 50% de seus valores. “A gente pensa em todo o processo, e também na entrega. No começo, decidimos que as vendas seriam pela internet e, hoje, trabalhamos com poucas livrarias. Como nossos livros têm um valor mais alto, por conta do custo gráfico e do material, se as vendas fossem no formato tradicional, o custo sairia mais alto, por isso, investimos bastante no site”, afirma Curi. Bem análoga é a maneira que a n-1 edições disponibiliza seus produtos. “A gente vende no site e distribui em algumas livrarias. Para o nosso público, livrarias comerciais não são muito interessantes”, afirma o editor e diretor artístico Ricardo Muniz. Voltada para campos da filosofia, antropologia, arte e teatro, a editora oferece, em sua página virtual, informações sobre cada obra, além de comentários de outros
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4-5 JAQUETA BRANCA A Carambaia fez apenas 1.000 cópias da obra de Herman Melville, que ainda não tinha sido publicada no país
autores. Quanto aos processos de criação editorial, eles apresentam um trabalho gráfico apurado, que mescla o industrial ao artesanal. Sobre isso, afirma Muniz: “Cada livro é diferente do outro, uma obra múltipla. Pra nós,é importante que sempre haja algum procedimento manual. Procuramos quebrar a estrutura industrial e inserir alguma coisa à mão, valorizando o trabalho humano”. Todas as intervenções manuais são desenvolvidas a partir do conteúdo das publicações. No caso do livro William James, a construção da experiência, de David Lapoujade, com tradução de Hortência Santos Lencastre, as capas são alinhavadas cada uma por um costureiro específico. “As ideias do William James são as de que a construção da experiência é como um patchwork e o conhecimento também seria isso”, explica o editor. Outro exemplo é Leituras do corpo no Japão, de Christine Greiner, em que, trazendo referências do Oriente, optou-se por desenvolver uma capa que remete à dobradura, quase como
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Leitura em um origami. Cada livro de A gênese de um corpo desconhecido, de Kuniichi Uno, é costurado com uma agulha cirúrgica. Os exemplares de Estamira – Fragmentos de um mundo em abismo, de Estamira Gomes de Sousa e Marcos Prado, são confeccionados com papel kraft, estampados com técnicas de serigrafia e fechados cada um em sacos de lixo, em diálogo com o conteúdo, que traz recortes de discursos de Estamira Gomes de Souza, catadora no Aterro Sanitário do Jardim Gramacho (RJ) e belíssimas imagens de Marcos Prado. Além de sites e redes sociais, as vendas têm acontecido também através de feiras – como a Ladeira, em Salvador (BA), a Plana (Festival Internacional de Publicações de São Paulo), na capital paulista, a Tijuana, no Rio de Janeiro (RJ) e a Desvairada (SP), esta última, exclusivamente
A aposta dessas editoras é que a experiência de ler um livro é atravessada pela interação com este objeto de poesia. Com primeira edição em março deste ano, a Desvairada reúne editoras de diferentes cidades e serve de plataforma para câmbio de informações, vendas e aproximação entre autores, leitores e editoras.
ESCOLHAS PRECISAS
Marília Garcia e Leonardo Gandolfi são dois dos organizadores da Desvairada e responsáveis pela Luna Parque, editora que apresenta publicações com uma elegância gráfica que parece ser simples, mas bastante precisa quanto às escolhas editoriais. Dedicada exclusivamente a iniciativas relacionadas à poesia, a
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SANTAROSA BARRETO
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“pequenina” Luna Parque, como a própria Garcia a define, desenvolve projetos que acabam movimentando a produção poética e estabelecem vínculos entre escritores. Um exemplo disso é a coleção Livros em dupla, em que dois poetas que tenham algum tipo afinidade – conhecendo-se ou não – são convidados a fazerem um livro juntos. Toda a parte gráfica é predeterminada – bem minimalista –, contribuindo para a compreensão do projeto como uma coleção a cada dupla, mudam-se as cores e as ilustrações da capa, mas tudo estabelecendo diálogo com os poemas. Entre os livros concebidos pelo projeto
INDICAÇÕES 6 LUNA PARQUE A editora criou as coleções Livros em dupla e Segunda edição COLETIVO GARUPA 7 A edição de O limite da navalha, de Italo Diblasi, traz uma capa única para cada exemplar O MARTELO 8 Obra de Adelaide Ivánova, também da Garupa, tem uma fina camada de tinta que suja as mãos de quem lê
estão: 20 sucessos, de Fabiano Calixto e Bruno Brum, Gabinete de curiosidades, de Lu Menezes e Augusto Massi, e Caderno americano, de Fabricio Corsaletti e Alberto Martins. “Cada dupla escolhe trabalhar de um jeito, seja a partir de um tema em comum, seja mandando poemas um para o outro e deixando o projeto se desdobrar a partir disso”, conta Marília Garcia, em entrevista à Continente. Por outro lado, com a coleção Segunda edição, a Luna Parque reedita livros que já tiveram uma primeira versão, mas estão fora de circulação. Entre os já lançados está Risco no disco, da poeta Ledusha, originalmente de 1981, e Cigarros na cama, do escritor Ricardo Domeneck, que, na estreia, teve uma tiragem de apenas 100 exemplares, em 2011. “Agora, vamos editar um livro de 1979 do pernambucano Jorge Wanderley, que também nunca mais saiu. Além disso, temos publicado algumas traduções e uma revista literária, a Grampo Canoa, de poesia e tradução”, pontua Garcia. A editora carioca Garupa tem em seu catálogo somente poesia contemporânea e desenvolve livros a partir
de uma perspectiva em que o projeto gráfico quebre a ideia desses objetos como um “receptáculo onde o conteúdo esteja afastado da forma”. A Garupa funciona como uma espécie de “coletivo editorial”, no qual Amanda Cinelli, Daniel Dargains, Xu Xuyi e Juliana Travassos compartilham as diversas funções demandadas pelos processos editoriais. Todos eles possuem alguma relação com arte gráfica e, por isso, há a preocupação visual. “É uma forma de o leitor já ter algum tipo de contato com o texto, antes mesmo de lê-lo. Todos os nossos livros possuem algum tipo de acabamento manual”, afirma a editora. O limite da navalha, do poeta Italo Diblasi, apresenta pedaços de espelhos na capa, trazendo ao conceito questionamentos dos limites entre autor, livro e leitor; em Herói de atari, de Leonardo Marona, o formato do livro é proporcional ao de um cartucho do videogame e mistura referências que vão desde o construtivismo russo à ficção científica. Sobre os processos criativos, Juliana Travassos afirma: “No livro do Italo, percebi que grande parte da poesia dele é em primeira pessoa. Então, para o projeto gráfico, eu precisaria responder a essa primeira pessoa, refletir esse eu no leitor, e por isso, o espelho na capa. O mesmo acontece no da Adelaide Ivánova, que traz como tema um assunto muito sério, por isso as mãos sujas de sangue. A preocupação é sempre partir do texto, para trazer o conteúdo para os projetos gráficos”.
CONTOS
PAULO ZOPPI Ensimesmices Substânsia
Nestes contos, o campinense Paulo Zoppi trafega pela cidade e pela própria mente. Seus textos são de observação e reflexão. Como é peculiar a este gênero, o enredo parte de um acontecimento que desencadeará a breve narrativa. Último, por exemplo, que encerra a antologia publicada pela editora cearense, traz de um indivíduo vivendo a cidade vazia num feriadão.
TEATRO
FABRICE HADJADJ Jó ou a tortura pelos amigos É Realizações
Nesta peça, o pensador francês revisita a história mais antiga da Bíblia, a do sofredor Jó. Logo na primeira cena, deparamo-nos com um Deus que apenas enxerga os seres de perto. Ele travará um diálogo com o Demônio, em conluio contra Jó. A peça são diálogos de Jó com amigos e familiares, numa discussão sobre o valor da fé em Deus.
INFANTIL
THALITA CHIARA Um olhar mágico – A história do cinema para crianças Chiado Editora
A paixão pelo cinema mobiliza Thalita Chiara, que, para a publicação desta sua primeira obra contou com o financiamento coletivo. Ela e a ilustradora Diana Santos partem da ideia de que tudo tem começo, meio e fim para contar a história do cinema dos primórdios aos dias de hoje, nos seus lances fundamentais e na sua técnica peculiar. O livro estimula os pequeninos a criarem seus próprios filmes e postarem no YouTube.
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PERFORMANCE
GUSTAVO PIQUEIRA Valfrido? Lote 42
O livro pode ser um objeto convencional, e ser bom por isso. Ou pode ser anticonvencional, e isso ser melhor. Valfrido? se apresenta neste segundo grupo, por ser uma ótima edição de ações performáticas empreendidas pelo autor, que cria um personagem – Valfrido – em diálogo com a cidade. O que agrada neste volume é o seu elevado grau de inquietação, criatividade e beleza.
Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR
ENTREMEZ
PEQUENOS RELATOS DE HOSPITAL DANIEL
Daniel perdeu a pele do membro inferior direito, da raiz da coxa ao pé. Foi como se descalçasse uma luva. Os músculos sangravam durante os curativos, os nervos expostos doíam. Escutavam-se os gritos de longe. Nem a morfina controlava as dores. O caminhão distribuidor de refrigerantes em que ele trabalhava arrastou-o por um longo trecho de asfalto. O motorista supôs que Daniel tivesse subido na carroceria. Quando percebeu que ele ficara pendurado, o pior já acontecera. Mais grave do que a infecção e as dores era a anemia. Coisa fácil de resolver dentro de um hospital, se Daniel não fosse membro das Testemunhas de Jeová, uma seita que proíbe o uso de qualquer derivado de sangue. Com o nível baixo de hemoglobina, Daniel viu-se condenado a morrer. Os pais proibiram as transfusões e assinaram um termo de responsabilidade por tudo o que viesse a acontecer ao filho. Numa tarde em que não havia acompanhantes no quarto, o médico manteve a seguinte conversa: – Daniel, você é jovem, bonito e
tem um futuro pela frente. Alguma vez já pensou em se casar? – Já. – E em ter filhos? – Também. – Coisa boa, falou o médico e deixou o quarto em que o paciente fora isolado. No dia seguinte, voltou à carga. – Sua religião proíbe o sexo fora do casamento. É isso mesmo? – É sim. – Mas, com toda essa força e saúde eu aposto que você já desejou ficar com a namorada. Fale a verdade, não minta pra mim. A conversa acontecia durante os curativos e as respostas eram dadas entre gritos e caretas. – Desejei, ai, ai... O médico conhecia o caminho que conduz ao sítio onde se guarda a vontade de viver, mais forte do que o desejo pela morte. – Daniel, você pode amar sua esposa e ter muitos filhos. – É sério doutor? – Depende apenas de você. – E o que eu faço? – Aceite o sangue.
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– Com essa condição, não vou ter o primeiro filho. Exausto pela dor, se entrega ao desânimo. – Não posso, meus pais não aceitam. Preferem me ver morto. – Eu sei, eu sei... Habituado a fazer incisões com o bisturi, o médico mexe sem receio na ferida. – E você aceita a vontade deles? Daniel fecha os olhos e as lágrimas escorrem pelos lados. – Sua noiva conversou comigo. Você tem bom gosto. Que garota! Não há resposta à provocação, apenas um tremor no corpo, o que nada significa porque são habituais. Mas, o médico percebe a entrega de quem se deixa vencer pelo cansaço. – Tem um jeito de tomar o sangue sem meus pais saberem? – Pra tudo tem jeito, responde sorridente e emocionado. Tornaram-se rotineiras as idas de Daniel à UTI, onde só eram permitidas visitas de familiares durante uma hora. Explicou-se à família que se tratava de procedimentos especiais,
JANIO SANTOS
num aparelho da unidade de terapia intensiva. Se os pais suspeitavam de alguma coisa, nunca reclamaram. A felicidade em ver o filho melhorando, depois de cirurgias plásticas e cuidados intensivos, impedia de se queixarem. E sempre havia Jeová, a quem eles podiam atribuir o consolo e o milagre da cura.
NATÁLIA
Natália pilotava a moto quando o acidente aconteceu. A companheira viajava na garupa e sofreu poucos ferimentos. No mesmo dia, após exames rotineiros, voltou para casa. Teve sorte disseram. Natália teve azar. A perna direita foi completamente esmagada. Gorda, mesmo depois de uma cirurgia para redução do estômago, ela mal conseguia sentar-se. Durante os quatro primeiros meses de internamento no serviço de trauma, o salão onde Natália trabalhava como cabeleireira fechou. O casamento se desfizera há algum tempo e a pensão do marido tornou-se irrisória para tantas despesas. As duas filhas foram morar com a mãe. A companheira, que assumira o lugar do marido, viajou a São Paulo e nunca deu notícias. Desesperada, Natália
procurou um psiquiatra que a medicou com antidepressivos e ansiolíticos. No ambulatório onde era acompanhada, a infecção não dava sinais de melhora e o destino da perna se revelou sombrio até nas cartas. Natália tinha o costume de jogar o Tarô. No nono mês, tempo de uma gestação a termo, Natália reinternou-se. As fotos de sua tragédia pessoal ganharam a internet, pessoas da cidadezinha onde residia se mobilizaram para socorrê-la, mas seu destino estava nas mãos de um ortopedista, o mesmo que a havia operado na primeira vez e deveria tomar uma nova conduta. Surgiu um companheiro na vida de Natália, rapaz jovem e sensível, que se dispôs a largar tudo e ficar ao seu lado. Ao tomar conhecimento do drama da paciente, o chefe do serviço convocou o especialista. No dia certo e na horta certa, ele entrou na enfermaria e olhou a paciente no rosto. Alto, forte, corado, suava com desconforto, vendo a perna de Natália exposta, sem curativos. – Doutor Tiago, quanto prazer em revê-lo! Desde a minha primeira cirurgia, há nove meses, não voltamos a nos encontrar.
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Além de muito bonita, Natália falava com desenvoltura, se destacando em meio à população humilde de enfermos. Assombrado com a recepção fora de costume, o especialista não se deixou intimidar. – É verdade, é verdade. Mas tenho notícias suas pelos médicos residentes que lhe acompanham. Eles fotografam sua perna e me enviam por whattsapp. Natália enche os olhos de lágrimas. – O Senhor não quer me dar um abraço? Eu gostaria de receber. O abraço é dado com sinceridade e carinho. – Doutor Tiago, há meses essa é a minha casa. Pena, não tenho cadeira para lhe oferecer. Divido este espaço com duas pacientes e três acompanhantes. Depois, com doloroso sarcasmo, que choca a todos pela coragem, ela apresenta a casa imaginária. – Conheça onde eu moro. Aqui é a sala, com sofás e televisão. Ali, o quarto e minha cama king. Mais adiante, o banheiro, a cozinha e o quintal. Tudo humilde, decente e aconchegante. O cômodo da frente eu transformei no salão de cabeleireira. Avalie direitinho, perdi tudo isso em nove meses, quando me transformei em ninguém. O médico e a equipe que o acompanha não sabem como reagir à ousadia. – Vou operá-la novamente, colocar um novo fixador e recuperar sua perna. Natália reage com firmeza. – Não quero cirurgia. Cansei de arrastar esses ossos e músculos podres. Ampute minha perna. O médico empalidece, tenta convencê-la do contrário. – Não é assim como você pensa. Precisamos lutar até o fim, recuperar seu membro. – Cansei de lutar. Quero viver, trabalhar, amar. Com isso que o senhor está vendo, não é possível. Vamos doutor, me ampute. Acuado, o especialista pede um tempo para decidir. Uma semana depois Natália foi operada. Depois que o coto cicatrizou, na consulta de ambulatório, ela falava risonha sobre técnicas de fazer amor com uma única perna. Essa dificuldade já vencera. Difícil era conseguir que o Estado pagasse a prótese. Com ela voltaria a caminhar.
FOTO: AGÊNCIA OPHELIA/DIVULGAÇÃO
MOSTRA Um modus de ver o Brasil Exposição na Oca, em São Paulo, comemora os 30 anos do Itaú Cultural, expondo até agosto cerca de 750 obras de artistas do seu acervo TEXTO Olívia Mindêlo*
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Se “toda vontade de conhecer a arte é
relevante”, como escrevem os curadores Paulo Herkenhoff, Thais Rivitti e Leno Veras, toda vontade de conhecer o Brasil pela arte é desde sempre imprescindível, agora mesmo, urgente. Ainda que tal intento aponte em direção a um território ambíguo, minado de (im) possibilidades, não há como negar o potencial estético – e, portanto, ético – da produção artística frente a outras formas de linguagem que se arvoram de interpretar o país – o caso de nossos meios cotidianos de comunicação, por exemplo. E para não esquecer o crítico Mario Pedrosa, “em tempos de crise, é preciso estar com os artistas”. Deles, as respostas certamente não virão de pronto, tampouco as saídas; se é que virão. Mas onde estão as saídas? Talvez seja no exercício do olhar que podemos desenvolver o músculo do caminhar, o que torna a visita à exposição Modos de ver o Brasil, em comemoração aos 30 anos do Itaú Cultural, em São Paulo, uma ginástica bastante relevante para os dias correntes – com todas as ressalvas inerentes ao percurso. A palavra ginástica aqui não é apenas metáfora, mas também literalidade, visto que é preciso desprender um esforço (mental e físico) para percorrer os 10 mil m² da Oca, onde estão as cerca de 750 obras da mostra, em cartaz até o dia 13 de agosto. Mesmo assim, não há nada a temer: tal qual uma ginástica, existe aqui uma recompensa à saúde do corpo-mente ao fim da experiência. Poderíamos dizer, sem exagero, que, justo por sua dimensão, Modos de ver o Brasil encaixa-se na categoria de uma bienal de menor porte, digamos, mas sem os excessos costumeiros das bienais. A mostra, inclusive, será “sucedida”, em setembro, pelo Panorama da Arte Brasileira, outra agenda expositiva de peso no país, cuja realização se dá nos anos alternados à Bienal de São Paulo. Ambos alocam-se no mesmo complexo cultural do Parque do Ibirapuera, onde também está a Oca – cuja área, aliás, corresponde a mais de um terço do vizinho Pavilhão da Bienal. Como a bienal ou o panorama, a exposição do Itaú Cultural apresentase como um projeto eminentemente de curadoria, com a tarefa de compor uma seleção de trabalhos de grandes
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Visuais artistas brasileiros, em maioria, advindos do Acervo de Obras de Arte Itaú Unibanco, com quase 15 mil obras, sendo um dos maiores do país. Além dessa condição privilegiada, a exposição conjuga a experiência de um curador como Paulo Herkenhoff – cujo currículo vai do MoMA (Nova York) à Fundação Bienal (SP), passando pelo Museu de Arte do Rio (MAR/ RJ) e pela Funarte – com o frescor de dois curadores mais jovens como Thais Rivitti e Leno Veras. Graças ao trabalho competente dos curadores, ao lado do arquiteto Álvaro Razuk, temos uma expografia que impressiona pela qualidade. Ao mesmo tempo, é amiga dos deleites e dos respiros necessários ao exercício da fruição e do pensamento crítico pelo público, que certamente tem muito a ganhar. O grande mérito dos envolvidos foi saber promover encontros inesperados entre obras, técnicas/ linguagens e tempos históricos díspares, porém potentes em seu alinhamento – sem aquelas soluções esvaziadas nas quais se arvoram muitas curadorias de mostras contemporâneas, como é caso das bienais, por exemplo. Na montagem de Modos de ver o Brasil, nada soa gratuito. Além disso, a própria arquitetura espiralada e porosa da Oca, projetada por Oscar Niemeyer, facilita a lógica de correlacionamento entre os trabalhos expostos, como propõe a curadoria. No último pavimento da mostra, no segundo andar do prédio, temos combinações improváveis entre obras colocando-nos diante da ideia de “formação social do Brasil” de uma maneira intrigante, como a arte deve ser. Nesse ambiente, uma pintura de Frans Post do século XVII – típico exemplar documental do período colonial holandês – convive com a produção popular recente, vinda de “dentro”, das mãos de artistas como Heitor dos Prazeres, Mestre Valentim e Djanira. Exemplares do barroco, incluindo Nossa Senhora das Dores, de Aleijadinho, confeccionada em madeira policromada no ano de 1791,
dividem área não só com os demais citados, mas ainda com obras que revisitam a herança barroca – o caso dos trabalhos dos contemporâneos Miguel Rio Branco e Adriana Varejão. Em meio a isso, há exemplares que reclamam o lugar do negro nessa história. Prova disso são as peças de Mestre Didi, como Iyä Agbá – Mãe Ancestral (1998), uma “nervura de palmeira, couro, contas e búzio”, e uma escultura em ferro de Emanoel Araújo. Estão ainda nesse escopo as impressionantes séries fotográficas de Mario Cravo Neto: O Deus da Cabeça (1995-2001) e Eternal now, com as imagens Voodoo figure (1998) e Lua with egg, homage to Brancusi (1992). O último piso da mostra funciona, de fato, como o aprofundamento ou, quiçá, a síntese de um projeto expositivo que se propõe a “ver o Brasil” por múltiplas perspectivas. Nesse espaço, evidencia-se o
O mérito da mostra é promover encontros inesperados entre obras, técnicas diferentes e tempos históricos aspecto germinal de nossas questões e existe uma intenção de revisão crítica de nossa história que não passa despercebida. É, portanto, o ambiente mais didático e bem-resolvido da exposição, e por isso vale a pena começar a visita por lá, pegando logo o elevador no térreo do prédio. Além dos encontros citados acima, o visitante irá se deparar com diálogos, por exemplo, entre cartografias antigas (Nova orbis tabvla – Mapa mundi, de A. F. de Wit, 1675) e novas interpretações de nosso território, como é o caso do “pedaço de terra” esboçado por Jaime Lauriano em “pemba branca e lápis dermatográfico sobre algodão preto”. Feito em 2016, o trabalho intitula-se Novus brasilia typus: invasão, etnocídio, democracia racial e apropriação cultural e pertence às aquisições recentes do Acervo de Obras de Arte do Itaú Unibanco, estimuladas pelos
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curadores para cobrir as lacunas desta coleção. Neste caso, o paulista Jaime Lauriano, jovem artista negro, entra como parte do reforço da instituição ao núcleo afro-brasileiro do acervo, ao lado de nomes como Alcides Pereira dos Santos, Aline Motta, Almandrade, Arjan Martins, Rosana Paulino e outros, que reafirmam o seu lugar de fala sob poéticas veementes. Uma das belas aquisições nesse sentido foi a série Cabeças bori, do baiano Ayrson Heráclito, que nos contempla com um conjunto de fotoperformances em referência ao ritual de oferenda do candomblé, a partir de alimentos oferecidos ao orixá ou santo “de cabeça”. Nessas imagens, o artista pôs em volta de cabeças de negros deitados, elementos como a pipoca, o feijão, o milho, a mandioca, o inhame, o amendoim, o acarajé, em um resultado plástico telúrico, também alusivo ao ciclo vida-morte-vida. O saldo desses encontros promovidos pela exposição é uma amostra bem-conjugada de obras representativas para o país – particularmente daquelas que ecoaram desde São Paulo e adjacências, o que faz jus ao próprio trabalho do Itaú Cultural ao longo desses 30 anos. De forma geral, a mostra dá margem a inúmeras reflexões em torno da ideia de Brasil, em um passeio labiríntico que, como todo ele, traz a reboque impossibilidades. De alguma maneira, corremos o risco de não conseguir sair de determinadas lógicas explicativas que rondam as interpretações da cultura brasileira, mesmo de sua história da arte. Com todo o mérito da mostra, é preciso que se diga, por exemplo, que os “modos de ver o Brasil” proposto pelo projeto desde o título se apresenta como um modus de ver o Brasil a partir de São Paulo, o que não é nenhuma novidade, desde que a cidade assumiu o posto de centro catalisador e definidor não só da economia nacional, mas das práticas discursivas acerca do “país”. Não por acaso, o térreo, o piso da Oca que dá as boas-vindas aos visitantes, propõe “um encontro com São Paulo: sua história, sua arquitetura, seus habitantes e os artistas que criam a partir desse lugar”, tal qual escreve a curadora Thais Rivitti, em seu texto de apresentação.
IMAGENS: ACERVO ITAÚ UNIBANCO/DIVULGAÇÃO
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1 FRANS POST Pintura do século XVII, feita em óleo sobre madeira, traz a representação do período colonial holandês AYRSON HERÁCLITO 2 No mesmo piso de Frans Post está a obra do artista baiano, que revisita a herança africana com as fotografias Cabeças bori
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IMAGENS: ACERVO ITAÚ UNIBANCO/DIVULGAÇÃO
Visuais
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A ÓTICA PAULISTANA
Ora, por que a entrada principal de uma mostra chamada Modos de ver o Brasil abre-se justamente para um discurso sobre uma cidade? Durante a coletiva do Itaú Cultural a jornalistas de diferentes estados, ocorrida na Oca, Paulo Herkenhoff reforçou que “a exposição reflete o acervo, as escolhas da instituição em momentos diversos” e que a curadoria procurou evidenciar as lacunas da coleção ao olhar para a “arte brasileira”. Essas ausências buscaram ser compensadas por meio de um discurso crítico, da aquisição de novas obras, como as do núcleo afrodescendente, e de empréstimos (pagos) de outros trabalhos, o caso da sequência de documentários do Vídeo nas Aldeias, instituição cujo propósito é tornar os indígenas brasileiros donos do seu próprio discurso, a partir da produção audiovisual. Para Herkenhoff, aliás, o legado da organização voltada aos povos
Algumas evidências nas escolhas da exposição reiteram o lugar de São Paulo na legitimação e difusão da arte no país originários é um monumento para o país, assim como a produção dos artistas negros atualmente. No entanto, o curador também comentou que, na exposição da Oca, “São Paulo extravasa por todos os lados”, o que parece ser a bem da verdade – e isso não é reflexo somente da formação do acervo, mas de uma escolha curatorial. É de se surpreender, afinal, estamos diante do trabalho de alguém com o histórico de Paulo Herkenhoff, defensor da descentralização cultural brasileira e do pioneirismo
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do modernismo/modernidade pernambucana, por exemplo. Talvez isso tenha se dado por uma demanda institucional, mas, ao que parece, estamos diante de contradições. A concepção da mostra é contemporânea e não há uma linearidade cronológica ou narrativa – como acontece com a expografia da mostra da Coleção Brasiliana (parte do mesmo acervo), em cartaz atualmente na sede do Itaú Cultural, na Avenida Paulista. Na Oca, vemos uma diversidade expositiva, sem dúvida, mas há um certo conservadorismo no ar, ou uma necessidade de se reafirmar algo. Algumas evidências da mostra reiteram São Paulo como força centrífuga de legitimação e difusão da arte no país. Entre os núcleos temáticos do térreo, por exemplo, estão Modernismo e Outros modernismos – entendendo-se “outros”, segundo explicou um dos curadores, como as
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manifestações modernistas vindas de estados outrem que não São Paulo. Logo na entrada da Oca – e os organizadores ressaltam o seu caráter especial para o projeto –, foi colocada uma escultura de Ascânio MMM retirada da Praça da Sé há 28 anos, na época em que Olavo Setúbal, patrono do Itaú Cultural, era prefeito da cidade. Ao longo da exposição (principalmente no térreo e primeiro andar), há ainda inúmeros exemplares do modernismo paulistano, bem como do movimento concreto e neoconcreto, estes que são alguns dos maiores reforços simbólicos da hegemonia cultural e estética do eixo Rio-SP em relação ao restante do Brasil. Ao que tudo indica, não poderia ser diferente, afinal, parafraseando o próprio Herkenhoff, “a sede do capital determina a circulação dos bens culturais”, ou seja, aquilo que “existe” ou “deixa”
de existir em dado território – questão também evidente nas demais partes, ou centralidades do globo. A compensação dessas questões históricas e impositivas está no próprio projeto curatorial, paradoxal por natureza. Além do discurso crítico na disposição das obras e nos textos de apresentação, a seleção dos artistas e das obras contempla, de alguma maneira, a diversidade cultural brasileira, em linguagens e discursos díspares. De Pernambuco, aliás, estão artistas como Montez Magno, Paulo Bruscky, José Patrício, Marcelo Silveira, Gilvan Samico, Cícero Dias e Aloisio Magalhães. Do Ceará, Leonilson. Do Pará, Berna Reale. De Minas, Cao Guimarães, Paulo Nazareth. Da Bahia, afora os citados (como Emanoel Araújo e Ayrson Heráclito), Virgínia de Medeiros. Mas a questão não são as “representações regionais” e, sim, a multiplicidade
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3 JAIME LAURIANO Paulistano reitera seu lugar de fala como artista negro, em obra que reinterpreta o Brasil a partir do redesenho de seu mapa 4 GERALDO DE BARROS Fotoforma, de 1951, é um típico exemplar do movimento concreto de São Paulo, balizador da estética brasileira no século XX
discursiva que a pluralidade regional e suas linguagens podem proporcionar. Há nordestinos-paulistas, cariocasmineiros, gaúchos e uma suíçayanomami habitante de São Paulo, a fotógrafa Claudia Andujar, cuja poética vai sempre além. Ao adentrarmos a Oca, esse espaço referência de nosso “indigenismo”, devemos, pois, não esquecer de ultrapassar a ótica que, há mais de 500 anos, vem balizando nossa forma de ver o Brasil, que não começou em São Paulo e não deve terminar lá. * A jornalista viajou a convite do Itaú Cultural
José Cláudio
ARTISTA PLÁSTICO
MATÉRIA CORRIDA
TO
Ela gosta de se assinar “To”. Mas o
nome dela mesmo é Maria Tomaselli e, depois de casada, Cirne Lima. Maria Tomaselli Cirne Lima. “O Brasil através dos olhos de uma jovem tirolesa que veio com disposição de se tornar brasileira por amor ao marido” devia ser o título desta crônica, mas ficava comprido demais. Aliás o título da autobiografia também só tem uma sílaba: Kai (www.escritoseditora. com.br e www.facebook.com/ escritoseditora), nome de um dos cachorros que ela teve, do grego Hen Kai Pan, o Uno e o Todo, segundo ela, significando pois a conjunção “e”. “Transforma-se o amador na coisa amada/Por motivo do muito imaginar”, já dizia Camões. No caso, amadora, Maria, e a coisa amada, o filósofo gaúcho Carlos Cirne Lima, autor de Dialética para principiantes, que termina assim: “Conhecer é uma das formas mais nobres da vida. O ser vivo, quando conhece, adquire um dos mais altos degraus na escala evolutiva, ou, em linguagem filosófica, na dialética ascendente. Conhecer nos permite
querer, e querer nos permite amar. Amar é deixar para trás, superados, os degraus inferiores do nosso ser, e alçando voo para o Bem e o Belo, para a Ideia Absoluta, identificarnos espiritualmente com o primeiro princípio”. Desculpem essa citação tão longa, mas talvez fosse mais útil citar, tanto o livro de Carlos quanto o de Maria, do que meus comentários dispensáveis. “Segundo Plotino”, continua Carlos, “só neste retorno ao primeiro princípio, que só se faz por conhecimento e amor, é que o homem fica completamente homem e adquire sua dignidade máxima.” Ainda um pedacinho: “A Ideia Absoluta é, finalmente, Deus. Não aquele Deus de católicos e protestantes, no qual transcendência e imanência são inversamente proporcionais, mas o Deus imanente dos místicos, como Meister Eckhart, Jakob Bohme e tantos outros, o Deus do panenteismo”. O insigne conterrâneo Gentil Cardoso (Recife, 1906–Rio de Janeiro, 1970), que já vi dizer que não foi técnico da seleção porque
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era de raça negra, deixou-nos a frase axiomática “quem se desloca, recebe; quem pede, tem a preferência”. Mas foi Carlos quem se deslocou, de Porto Alegre para fazer doutorado de filosofia em Innsbruck, Áustria, e ele mesmo pediu a moça, natural desta cidade, em casamento, para viver um verdadeiro conto de fadas, não sabendo eu se a autora se dá conta disso nas quinhentas páginas de infinitas curiosidades dos seus olhos que nos olham com uma argúcia incrível, sem idealizações, desde os seus novos parentes brasileiros, por acaso grandes senhores gaúchos, até os serviçais mais miúdos, sempre encantada com tudo e ao mesmo tempo sabendo onde está pisando. Induz sua mãe, que escreveu um livro, Mein Brasilien (Meu Brasil), pai, a família toda a amar o Brasil, mesmo tendo chegado nos anos de chumbo e vendo seu marido destituído de tudo por equívoco; ainda mais seguindo ela um ramo tão adverso como o das artes, apaixonada pela refinadíssima arte da gravura em metal, coisa para iniciados; partindo para a instalação,
REPRODUÇÃO
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1 RISCADOS R ecurso gráfico
aprendido com a húngara Terézia Mora
sua famosa Ocamaloca que a leva aos Pankararu e Xucuru, quando seu marido é escalado para gerir o fechamento da Tacaruna e ela vem parar na Rua do Amparo em Olinda, depois de o marido ter desafiado com o dedo no nariz de certo Ratzinger que viria a ser papa. O Tirol às vezes faz parte da Áustria, às vezes da Alemanha, às vezes da Itália e até da França como depois da Segunda Guerra. Um seu tio, que não dava para nada, aliás dava, se inscreveu no partido nazista, participou da invasão da França e voltou da guerra trazendo de butim um quadro de Raoul Dufy. Eu conversando com o irmão marista Afonso Haus, alemão, hoje com mais de noventa anos, sobre o Tirol, ele disse que o sotaque dos tiroleses é horrível. O amigo Fernando Dourado, que é craque em alemão, disse que a raiva que os alemães têm do sotaque do Tirol é que era o de Hitler, em que ele fazia aqueles discursos raivosos. Pontua todo o livro a discussão sobre o que é arte, qual o papel do artista no mundo, como viver de arte,
Maria conheceu Carlos através de um dos pretendentes a namorado, de um total de dezenove, como chegou a contar elenco que podia por si merecer um livro, esse diálogo com alguém que ela chama de “o Artista”, encarnando as preocupações de nós todos que enveredamos por esse caminho: comparo a sobrevivência do artista ao daquele monge no deserto que, quando estava nas últimas, aparecia um corvo e lhe jogava um pão. Os “riscados”. Foi neste livro Kai de Maria Tormaselli que vi pela primeira vez esse novo tipo de pontuação, os riscados, que ela declara ter tirado da escritora húngara Terézia Mora, do livro O Monstro. “Nada melhor para mostrar como algo aparece e é descartado mas deixa seus vestígios”. Maria conheceu Carlos através de “um dos pretendentes a namorado
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2 KAI Capa da autobiografia de Maria Tomaselli
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meu, de um total de dezenove, como eu cheguei a contar, sem mentira!” A arte de escrever, em Maria Tomaselli, parece uma graça divina, uma perfeição vinda não se sabe de onde, já que seu português chegou depois: por felicidade, na família do marido tinha quem falasse alemão ou italiano. De vez em quando, você se depara com uma página que é um êxtase, nos tira do chão, nos leva ao paraíso, nos causa sensação comparável ao da leitura da janela de Óstia das Confissões de Santo Agostinho. Veja o capítulo Heustädel et terra tremuit que ela própria explica: “São Heustädel, depósitos de feno, para o gado no inverno”. Quanto a et terra tremuit, é expressão que ela usa, apostando no nosso latim, sempre que ocorre alguma coisa extraordinária, significando “e a terra tremeu”, creio eu. Assinalo a presença de um cobertor de lã verde, como premonição dos da Tacaruna que tanto vendi na loja do meu pai em Ipojuca, tendo virado sinônimo de cobertor. Dizia-se simplesmente “um tacaruna”.
FLORA PIMENTEL/DIVULGAÇÃO
Sonoras
BRUNO GIORGI Explorando diferentes texturas sonoras
Músico carioca, que é filho do cantor e compositor Lenine, tem se destacado atuando como produtor ou na engenharia de som, masterização e mixagem de discos TEXTO Camila Estephania
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distintos universos musicais através da produção. Com cerca de 30 trabalhos como produtor ou na engenharia de som, masterização e mixagem, Bruno se multiplica para abraçar todos os projetos e coleciona elogios pela sua contribuição na criação dos discos como É, de Duda Brack, Carbono, de Lenine, e Levaguiã Terê, de Vitor Araújo. Atualmente com 28 anos, o rapaz já tem na conta uma indicação ao Grammy Latino de 2013, pela engenharia de som de Chão, de Lenine. O talento precoce para o estúdio começou a ser desenvolvido antes mesmo que o carioca tivesse consciência do seu interesse pela música. Quando criança, Bruno ficava sob os cuidados de Lenine quando estava fora da escola e constantemente era levado para as gravações dos discos, enquanto a mãe, Anna Barroso, ocupava-se como produtora da Rede Globo. “Quando entrei na faculdade de música, foi engraçado perceber como
Aos 28 anos, Bruno Giorgi foi indicado ao Grammy Latino de 2013, pela engenharia de som de Chão, de Lenine
Entre um show e outro, o músico e
produtor carioca Bruno Giorgi atende o telefone para a entrevista enquanto se acomoda no quarto de hotel. Há cinco anos, desde que passou a integrar a banda do pai, o cantor e compositor pernambucano Lenine, o guitarrista tem sua agenda lotada de viagens e apresentações que inviabilizaram a sua participação ao vivo em shows de outros grupos dos quais já fez parte, como Cícero, Posada e o Clã e a banda pernambucana Rua, mas ainda assim não abre mão de trafegar entre os
todo mundo tocava um instrumento desde muito cedo e eu comecei tarde. Mas muito cedo eu já estava em estúdio, acompanhando o trabalho de gente como Marcos Suzano, Chico Neves e Tom Capone”, relembra ele parceiros de produção do pai. Antes mesmo de Chão, de 2012, cuja produção foi assinada com Lenine e JR Tostoi, Bruno já havia produzido o primeiro álbum da Posada e o Clã e o Do absurdo, da banda Rua, lançado em 2011. “O Chão foi fruto desses dois discos, porque vem da mesma linha de pesquisa, foram dois artistas sobre os quais eu e meu pai discutimos bastante. Disso surgiu o processual do Chão, com a ideia de fugir do óbvio e usar sons do ambiente”, explica Bruno. Em entrevista à Continente, Lenine definiu como total a influência do filho. “Toda a arquitetura sonora que ele criou no disco – a tridimensionalidade do 5.1, o relevo – foi uma tremenda descoberta para mim,
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mudou a minha maneira de conceber um espetáculo”, comentou o cantor, que passou a ter Bruno como integrante da banda a partir da turnê do álbum. Não só Lenine, como também outros músicos, a exemplo de Pupillo e Vitor Araújo, interessaram-se pelo trabalho de Bruno através da banda Rua. “No processo de feitura do disco Do absurdo, nós pudemos compreender outras nuances para a música que estávamos propondo. Desde então, Bruno é da banda, sempre pontuando que sua presença nisso fica sem rosto, mas que inventa as sensações conosco, enquanto música. Além de ser muito inventivo em estúdio, ele está sempre fuçando equipamentos, instrumentos, timbres e isso nos dá confiança de encontrar o som que procuramos, ou simplesmente de sermos descobertos por eles num processo de experimentação a que nos permitimos”, observa Caio Lima, vocalista do grupo, que também contou com a coprodução de Bruno em Limbo (2014).
MODUS OPERANDI
Na pré-adolescência, a premissa libertadora do movimento punk encorajou Bruno a aprender a tocar algum instrumento e finalmente enfrentar os palcos, como se a transgressão sonora fosse a condição que lhe faltava para, enfim, se interessar pelo mundo fonográfico. “Eu gostava de punk e meu pai me apresentava outros discos, como o Cabeça dinossauro. Depois caí para o grunge, pela contemporaneidade mesmo, estava mais próximo de mim”, conta como começou a engordar o cardápio musical, que hoje tem como referências os nomes de Radiohead, Bjork, Sigur Ros, Caetano Veloso e Milton Nascimento. A “guitarra de metaleiro” que Lenine já havia escanteado há anos passou a ser a principal vítima dos atentados musicais de Bruno, aos 12 anos de idade, quando iniciou o aprendizado no instrumento. Mas foi somente no lixo do estúdio Nas Nuvens, do produtor Liminha, que finalmente encontrou sua alma gêmea. Certa vez, a caminho de casa, o menino passou pelo local e encontrou uma guitarra Telecaster Giannini de 1972, detonada, e resolveu carregá-la consigo. “Levei para o estúdio do meu pai, e ele e o
HANNA CARVALHO /DIVULGAÇÃO
1 ESTÚDIO Em ação na na produção de Elã, próximo disco da Kalouv
DIVULGAÇÃO
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Sonoras 2
Tom (Capone) acharam massa. Mais tarde, meu pai me deu um braço novo e, pouco depois, chegou pelo correio um captador com uma cartinha do Tom. Respondi que não podia aceitar, mas ele disse que eu faria a base de dois discos que ele estava produzindo e ficaria pago com isso, porém ele morreu antes (em 2004)”, relembra, sobre a reconstrução do instrumento que usa até hoje por conta de sua sonoridade particular. A curiosidade sobre a mecânica musical logo revelou a busca por explorar diferentes texturas sonoras e novas camadas de audição. “Em determinado momento, percebi que estava compondo só para produzir. Quando comecei a gravar minhas
próprias bandas, fui percebendo o prazer que tinha nisso. O prazer de trabalhar com mais de um laço estético e poder me estender para qualquer âmbito musical. Mas o gosto de fazer um trio de rock ou uma orquestra é o mesmo”, garante ele, que já teve a oportunidade de trabalhar com os dois formatos. A experiência ainda se estende para o samba, com a Casuarina, a música de terreiro, com banda pernambucana Bongar, e o afrobeat, com a Abayomi Orchestra, por exemplo. Nesse último caso, Bruno fez a engenharia de som do disco Abra sua cabeça, que teve a produção de Pupillo, baterista da Nação Zumbi. O bom resultado garantiu a confiança que fez o pernambucano convidar o carioca para
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PALCO 2 Atualmente, ele integra a banda do pai, Lenine
a mixagem de Ottomatopeia, próximo álbum de Otto, atualmente em fase de finalização. “Trabalhar com Bruno me deu tranquilidade para desenvolver toda a estética sonora, sabendo que teria alguém do lado para viabilizar as ideias. Ele tem um background musical que interage com o meu de forma harmoniosa e rápida. Tê-lo pilotando o som é como voar em céu de brigadeiro”, elogiou o baterista. A facilidade para dialogar com tantos gêneros, Bruno atribui ao conhecimento adquirido na Unirio, onde cursou a faculdade de Música. “Meu interesse pelo conhecimento mais formal foi em função de amigos, que já haviam estudado e tinham uma facilidade maior para resolver harmonia e outras questões que apareciam no nosso dia a dia de ensaio”, explica ele, que elege como seus trabalhos mais difíceis a produção do disco Levaguiã Terê, do pernambucano Vitor Araújo, e a gravação ao vivo e mixagem de A saga da travessia, do baiano Letieres Leite e Orkestra Rumpilezz. “Os dois tinham orquestra, por isso ter feito faculdade ajudou, porque o cara traz o que está no papel e você entende. Então você tem que ser didático o suficiente para chegar na estética que ele quer e abrangente o suficiente para abrir o leque”, explica. Essa abertura, inclusive, é um dos maiores trunfos do seu trabalho no estúdio, onde consegue reverter imprevistos em acertos com a mesma paciência de um alquimista que busca transformar metais ordinários em ouro. “Na hora do estúdio, vale tudo. Dentro da arte contemporânea existe uma discussão de como se manter no eixo de criatividade, e se fala muito em estar aberto para o entorno e os erros como parte do processo. Temos que entender que o erro pode ser melhor do que você havia planejado”, observa ele, também sem cair no comodismo de recorrer às regras preestabelecidas. “Existe uma prática de mercado de assumir preceitos, como acreditar que o bombo sempre fica melhor com determinado microfone, por exemplo. Há uma parcela de técnicos que não acredita nisso e
INDICAÇÕES sempre busca alternativas melhores”, justifica ele. Esse tipo de capricho chamou a atenção do maestro Letieres Leite durante as suas gravações com a Orkestra Rumpilezz para a faixa À meia noite dos Tambores Silenciosos, do disco Carbono (2014), de Lenine. Gravado ao vivo com estúdio móvel no Teatro Castro Alves, Leite ficou tão impressionado com a habilidade do rapaz de extrair o melhor som que, ao fim da sessão, deu três tapinhas nas costas do carioca e disse: “Tu vais fazer o nosso disco daqui a três meses”. A gravação e mixagem de A saga da travessia (2016) não só foi aprovada pelo baiano, como também levou Bruno a trabalhar no álbum mais recente do Bongar, Ogum Iê, deste ano, em que o maestro assina a produção.
LEÃO DO NORTE
Além do fato de ter a família paterna em Pernambuco, a música tem sido o principal fator de aproximação com o estado, de onde vem um bom número de suas demandas, que ainda incluem as masterizações dos discos mais recentes da Gudicarmas e Mojav Duo, além do próximo trabalho de A Banda de Joseph Tourton. “Até os 16 anos, eu passava um ou dois meses por ano com avós e tias no Recife, tenho muitos amigos por aí. Acabou que hoje quase todo trabalho que faço tem alguma ligação com Pernambuco. Fico feliz, porque é um lugar que se sobressai musicalmente”, comemora ele, também por ter a prerrogativa de viajar para o estado. Isso porque o músico diz fazer questão de ter o máximo de contato pessoal com as bandas com as quais trabalha. “Sempre visito os que são de outras cidades, porque
não acredito que a internet supra a necessidade de ter um contato físico”, explica ele, cuja dinâmica mais intimista de produção é uma das influências que o falecido Tom Capone lhe deixou. “Ele acreditava que a produção partia de um ambiente tranquilo. Isso, obviamente, me impregnou muito, não sei trabalhar de um forma que não seja fazendo amizade”, comenta sobre as relações de cumplicidade que constrói com as bandas. O guitarrista da Kalouv, Túlio Albuquerque, confirma: “A sintonia que tivemos ajudou bastante a já considerar esse trabalho o que nos dará mais orgulho até aqui. Criamos um forte laço de amizade e reciprocidade, baseado na troca de influências, ideias e energias, nos permitindo dizer que, nesse disco, ele funcionou como um sexto membro da banda”, resumiu ele, sobre a escolha de Bruno como produtor de Elã, próximo álbum do grupo instrumental pernambucano. A interpessoalidade é tão determinante para o carioca, que está entre os motivos pelos quais faz questão de permanecer na banda de Lenine. “Uma vez, antes do show, meu pai perguntou à banda se rolava tocar uma música que a gente nunca tinha ensaiado. É uma confiança que eu admiro muito, por isso é um prazer grande estar no palco”, explica ele, embora reconheça que o lugar que o deixa mais à vontade é o estúdio. “Mas nunca vou parar de tocar, porque, para mim, não existe estúdio sem o palco”, esclarece, para alívio do pai. “Com competência e permanência, Bruno não só conquistou seu espaço, como hoje é peça fundamental em tudo o que eu faço”, disse Lenine.
HIP HOP
GORILLAZ Humanz Warner
POP
FERNANDA BRANCO POLSE Bicho branco Polse
Sete anos depois do inspirado Plastic beach e do controverso The fall, ambos de 2010, Damon Albarn volta a montar o projeto de banda virtual Gorillaz, que, a cada lançamento, envolve novos colaboradores. Desta vez, a lista inclui, entre outros, Carly Simon, Jean-Michel Jarre, De La Soul, Grace Jones e até o antigo rival Noel Gallagher (Oasis). Embora seja irregular em suas 20 faixas que passeiam pelo rock, pop, soul e hip-hop, Humanz, ainda assim, pode figurar na lista dos bons lançamentos.
La Femme Qui Role
ROCK
REGIONAL
MOLHO NEGRO Não é nada disso que você pensou Independente
Não é nada disso que você pensou é o segundo disco de estúdio do trio paraense Molho Negro. Formado pelo vocalista e guitarrista João Lemos, o baixista Raony e o baterista Augusto, o grupo lançou seu primeiro disco, intitulado Rock, em 2012. As influências das bandas Danko Jones, Black Rebel Motorcycle Club e The Vines ressaltam a pegada forte bem característica do Molho Negro. Com riffs intensos, ironia e humor nas letras, o trabalho tem alguns destaques, como Classe média loser e Mainstream.
CONTINENTE JUNHO 2017 | 87
A cantora, compositora e artista visual, natural de Londrina, viveu 10 anos em Belo Horizonte e hoje reside em São Paulo. Foi na capital paulista onde gravou o seu primeiro disco Bicho branco Polse, financiado de forma independente e lançado em parceria com o selo mineiro La Femme Qui Role. São 10 músicas de sua autoria, cujas letras transitam sobre questões femininas e feministas, embaladas em triphop, música eletrônica e pop.
ALMÉRIO Desempena Natura Musical
Natural da cidade pernambucana de Altinho, foi em Caruaru que o cantor Almério iniciou sua carreira musical. Em seu segundo álbum, a produção musical das 11 faixas é assinada pelo músico pernambucano Juliano Holanda. Desempena traz uma sonoridade marcada pela potente voz do artista, além de violões, percussão e pífanos. O universo do teatro também perpassa a formação de Almério, que acaba levando para o palco – e para suas interpretações – uma postura bastante performática.
CON TI NEN TE
Criaturas
Elza Soares por Kleber Sales
Filha de operário e lavadeira, Elza Soares nasceu em 23 de junho de 1937, na Favela Moça Bonita, em Padre Miguel. Obrigada a se casar aos 12 anos, teve o primeiro de seis filhos aos 13. Com essa idade, apresentou-se no programa de Ary Barroso, no qual pôde dar mostras de sua rebeldia. Ary lhe perguntou de que planeta ela vinha.“Do mesmo que o senhor”, respondeu, ao que emendou: “Do planeta fome”.
CONTINENTE JUNHO 2017 | 88
Revolução Republicana
A luta pioneira de bravos guerreiros FUNCULTURA. UM DOS MAIORES E MAIS DEMOCRÁTICOS FUNDOS ESTADUAIS DE INCENTIVO À CULTURA DO BRASIL.
SABE QUAL A MELHOR MANEIRA DE INCENTIVAR A CULTURA PERNAMBUCANA? COM TRANSPARÊNCIA. www.cultura.pe.gov.br/funcultura/
A riqueza cultural do nosso estado é imensa. E valorizar a produção artística local, fundamental. Para isso, existe o Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura), que vem crescendo e se aprimorando a cada ano, prezando sempre pela transparência na distribuição dos recursos. Em 2017, serão investidos mais de R$ 42 milhões em três editais específicos: Geral, Audiovisual e Música, que juntos somaram mais de 2,3
Pernambuco comemora os 200 anos da Revolução Republicana, mil projetos apresentados. Para a inscrição de um projeto, basta estar em deflagrada em 6 de março de 1817. dia com o Cadastro de Produtor Cultural (CPC). Para Hoje,celebrar já são mais de 7 amil a data, Cepe lança a História da Revolução Pernambucana cadastrados em todo o estado. Através de seleção pública, o Funcultura em 1817, de Muniz Tavares, com notas de Oliveira Lima. Um texto democratiza o acesso às verbas destinadas à produção cultural. E contribui clássico sobre o movimento que para mostrar, aqui e lá fora, todo o talento dos pernambucanos. primeiro defendeu a instauração de uma República no Brasil e narrou a luta dos bravos guerreiros pernambucanos contra o arbítrio.
www.revistacontinente.com.br
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FAKE NEWS
PROPAGAÇÃO DE NOTÍCIAS FALSAS SE ALASTRA NA WEB
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CONTINENTE
QUANTO NO PRODUTO S CUSTAM OS S NÃO PAG PELOS QUAIS AMOS NA DA
JUN 17
E MAIS: HQS PERNAMBUCANAS LIA RODRIGUES LUCIUS BURCKHARDT É TUDO VERDADE CAPOEIRA DE ANGOLA