Continente #199 - Hermilo Borba Filho

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# 199

HERMILO BORBA FILHO AOS 100 ANOS DO SEU NASCIMENTO, ENCENADOR E ESCRITOR TEM PARTE DE SUA OBRA RELANÇADA

#199 ano XVII • jul/17 • R$ 13,00

CONTINENTE

LITERATURA JUL 17

A PRODUÇÃO EM LÍNGUA ESPANHOLA NA ÁFRICA

E MAIS: JORGE LUIS BORGES FOTOLIVRO MICHEL MELAMED DUBAI


Revolução Republicana

EM PERNAMBUCO,

A luta pioneira de bravos guerreiros

QUALIDADE FAZ ESCOLA. São várias as conquistas recentes do nosso ensino público. Conquistas que são resultado

de muito trabalho e investimento. As escolas da rede estadual estão mais modernas e bem equipadas. Incentivam os nossos estudantes a aprender. Eles sabem que educação de qualidade é capaz de transformar as suas vidas. E que é isso o que a nossa escola pública, hoje, oferece: um futuro melhor para milhares de jovens pernambucanos.

1º lugar do Ensino Médio no IDEB

37 escolas técnicas estaduais (10 novas desde 2015)

Menor taxa de abandono escolar no Ensino Médio

46 quadras já entregues pelo Programa Quadra Viva

Maior rede de ensino em tempo integral do país

Mais de 5 mil embarques pelo Programa Ganhe o Mundo

368 escolas em tempo integral (39 implantadas em 2017)

Novas modalidades desde 2015: Ganhe o Mundo Esportivo e Ganhe o Mundo Musical

51% das vagas do Ensino Médio em escolas em tempo integral

Passe Livre RMR disponível para mais de 260 mil alunos

Pernambuco comemora os 200 anos da Revolução Republicana, deflagrada em 6 de março de 1817. Para celebrar a data, a Cepe lança a História da Revolução Pernambucana em 1817, de Muniz Tavares, com notas de Oliveira Lima. Um texto clássico sobre o movimento que primeiro defendeu a instauração de uma República no Brasil e narrou a luta dos bravos guerreiros pernambucanos contra o arbítrio.




JULHO 2017

ACERVO DE FAMÍLIA/CORTESIA

aos leitores Uma boa notícia é que, neste ano do seu centenário, a obra de Hermilo Borba Filho (1917–1976) será relançada pela Cepe. Toda, não, mas seus contos, algumas peças e romances. Como escreveu o colaborador Luiz Roberto Leite Farias, a obra do escritor conversa com a literatura contemporânea brasileira. “Ao olharmos para a sua literatura, desde sua última publicação – o pequeno romance póstumo Os ambulantes de Deus, em 1976 –, ainda é possível ver sua obra dialogando com temas e aspectos da literatura do século XXI, apesar de esta ter, aparentemente, se domesticado um pouco quanto a experimentos formais. O fato é que Borba Filho utilizou-se de todas as possibilidades que, desde James Joyce, até então, a forma do romance permitia, resultando – especialmente em Agá – numa obra de leitura desafiante, de sentido aberto, fragmentada, de enredo mínimo ou nenhum, com a forte presença da ironia e da metalinguagem, ou seja, quanto a esse último aspecto, uma literatura que dialoga consigo mesma, muitas vezes pela voz do narrador que discute seu próprio processo de criação artística e escrita”, aponta Farias,

que compartilha com o professor Anco Márcio Tenório Vieira a matéria de capa desta edição da Continente. Outro assunto que nos mobiliza nesta edição, também ligado às Letras, é a pouco conhecida – no Brasil – literatura de matriz hispânica produzida na África. Quem nos traz essas informações são os pesquisadores e professores da UFRN Rogério Mendes e Amarino Queiroz, que produziram um dossiê que indica um cenário tantas vezes inóspito de criação literária, como explicita, em entrevista exclusiva à revista, o escritor guinéu-equatoriano Juan Tomás Ávila Laurel, que teve de se exilar do seu país (submetido a uma ditadura há quase meio século), mas que, por isso mesmo, realiza uma obra combativa, política, intrinsecamente ligada às tradições da Guiné Equatorial. Por fim, leitor, não gostaríamos de nos despedir sem lhe antecipar que, a partir de agosto, a Continente terá um novo projeto editorial, que visa a uma fruição dos conteúdos diferente da atual, mesmo que continuemos a navegar pelo território do jornalismo cultural. Acompanhem e comentem a mudança!


sumário Portfólio

Simone Mendes 6 Colaboradores +

Continente Online

7 Cartas

+ Expediente

66 Entremez

Ronaldo Correia de Brito Crônica tirada de uma enfermaria de hospital

68 Leitura

Jorge Luis Borges Livro registra encontro do escritor, em sua casa, com um grupo de crianças nos anos 1980

8 Entrevista

Jean-Claude Bernadet Professor, pesquisador e cineasta questiona os limites e definições entre o documentário e a ficção

18 Balaio

Hélio Oiticica Como estaria o orgíaco artista nos seus 80 anos?

58 Claquete

Cannes Em sua 70ª edição, o festival aponta uma safra cinematográfica mediana, sem filmes memoráveis

62 Palco

74

Na maior parte do tempo aquarelista, a artista passeia tanto por um universo ligado à infância e à memória, quanto pelo campo do erotismo e da luta feminista

12

Matéria Corrida José Cláudio Sérvulo Esmeraldo

84 Sonoras

Compositores fantasmas Quem ouve uma música mal sabe o exército de letristas que se esconde atrás dela

88 Criaturas

Marisa Monte Por Sávio Araújo

Michel Melamed Para o multiartista, o estético e o político sempre caminham juntos

Especial

Literatura africana Pouco conhecidos no Brasil, escritores nascidos no Marrocos, Guiné Equatorial, Saara Ocidental e Camarões têm uma profícua produção em língua espanhola

38 CAPA ILUSTRAÇÃO Pedro Zenival

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Capa

Viagem

Escritor, dramaturgo, encenador, o palmarense completaria agora 100 anos. Este ano, parte de sua obra, há muito esgotada, está sendo relançada pela Cepe

Cidade situada nos Emirados Árabes atrai turistas devido à sua megalomania highttech e cosmopolita, mas esconde em algumas áreas elementos ligados às tradições

Comportamento

Visuais

No Recife, as peladas de bairro se apropriam de diversos espaços urbanos, indo além da prática esportiva, tornando-se também um modo de reivindicação pelo direito à cidade

Editores brasileiros têm investido neste tipo de produto, que amplia o entendimento da fotografia em todas as suas potencialidades no mundo contemporâneo

Hermilo Borba Filho

20

Futebol

52

Dubai

34

Fotolivro

76

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Jul’ 17


colaboradores

Amarino Queiroz

Anco Márcio TenórioVieira

Luiz Roberto Leite Farias

Rogério Mendes

Professor de Literaturas e Culturas Hispânicas da UFRN

Professor do Programa de Pósgraduação em Letras da UFPE

Pesquisador e mestre em Teoria da Literatura pela UFPE

Professor de Literaturas e Culturas Hispânicas da UFRN

E MAIS

Beatriz Macruz, jornalista. Biagio Pecorelli, poeta, ator e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da USP. Clarissa Gomes, jornalista e fotógrafa. Guilherme Carrara, jornalista e doutorando em Artes e Mídia. Mariana Camaroti, jornalista, radicada em Buenos Aires. Mariane Morisawa, jornalista, radicada em Los Angeles. Sávio Araújo, ilustrador, caricaturista e artista plástico.

HERMILO BORBA FILHO

ÁFRICA HISPÂNICA

Em sintonia com a matéria de capa desta edição, o nosso site vai disponibilizar ao internauta a edição na íntegra da Continente Documento, dedicada ao escritor e dramaturgo Hermilo Borba Filho, publicada em julho de 2007, quando ele teria completado 90 anos. A edição reuniu textos de Sônia Maria van Dijck Lima, Luís Augusto Reis e Germano Rabello. Além disso também vamos disponibilizar um conto do autor, selecionado de uma das duas publicações (Os ambulantes de Deus e Contos – Hermilo Borba Filho) que a Cepe Editora lança este mês.

Leia sugestões de publicações de autores citados na nossa matéria especial e links de como chegar às suas obras também no ambiente digital.

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PORTFÓLIO Veja no site da revista outras aquarelas da artista plástica Simone Mendes na galeria que montamos sobre seu trabalho.


cartas

EXPEDIENTE GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO GOVERNADOR

VIA FACEBOOK

Paulo Henrique Saraiva Câmara SECRETÁRIO DA CASA CIVIL

GRÁTIS A “cultura do grátis” nos diz muito também sobre como a maioria dos brasileiros convive bem com a corrupção do dia a dia, aquela que nos engana com microvantagens que se nos apresentam “gratuitamente”, ao fim e ao cabo, e são cobradas pelo viés dos macroprivilégios concedidos para uma minoria. #RevistaContinente é vida inteligente no cipoal editorial de nossos dias. LUIZ AUGUSTO LIMA SILVA

Tema interessante e digno de boas reflexões!!! AILTON FRANCISCO

Fui leitor assíduo durante muitos anos da revista Continente. Pena que não posso mais ler a novidosa (esta palavra existe no idioma de Cervantes), por razões diversas, sobretudo, da crise. Pena! Obrigado Continente por resistir à crise. Eu não pude. AMAURI RODRIGUES

RAJASTÃO O Rajastão é um dos lugares mais incríveis em que já estive até hoje. Já faz quase dois anos que estive lá, em uma residência artística, em acampamentos no deserto de Thar. Pode não ser o lugar com as paisagens mais bonitas, onde eu estive pode não ser o lugar mais confortável, mas certamente foi onde encontrei algumas das pessoas mais incríveis que já conheci – em todos os vilarejos.

Antônio Carlos Figueira COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE PRESIDENTE Ricardo Leitão DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO Ricardo Melo DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO Bráulio Mendonça Meneses

Sem falar na cultura, né? Mas não vou escrever textão. Por essas e outras, adorei o convite da Carolina Albuquerque para participar dessa edição da Continente. O texto traz um pouquinho da experiência dela na Índia, as fotos trazem um pouquinho da minha, mas apesar de cada uma ter visitado o lugar em circunstâncias diferentes, esse trechinho do texto mostra que a gente concorda que a Índia é incrível: “A monotonia não define o seu povo. Muito menos as tradições que ali se mantêm há mais de 5 mil anos. O Rajastão não guarda nada de uniforme e previsível. Vibra a cada esquina”. ANA CAROLINE DE LIMA

Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - Cepe SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL Luiz Arrais REDAÇÃO Adriana Dória Matos (editora) Mariana Oliveira (editora assistente) Débora Nascimento e Luciana Veras (repórteres especiais) Maria Helena Pôrto (revisão) Olívia Mindêlo (Continente Online) Hallina Beltrão e Janio Santos (diagramação) Agelson Soares Santana (tratamento de imagem) Joselma Firmino de Souza (produção gráfica) Eduardo Montenegro, Erika Muniz, Maria Júlia Moreira e Sofia Lucchesi (estagiários) CONTATOS (81) 3183.2780 /Fax: (81) 3183.2783 redacao@revistacontinente.com.br

PARTEIRAS A gente enche os olhos de lágrimas. Especial incrível sobre marginalização das parteiras. Confira! SABBAHANA CAVALCANTI

MARKETING E VENDAS Daniela Brayner, Rafael Lins e Rosana Galvão e- mail: marketing@cepe.com.br ATENDIMENTO AO ASSINANTE 0800 081 1201

Pense num orgulho... Rainha mesmo, viu? Tia Dôra <3 ANTÔNIO VITTAL NETO

Fone/fax: (81) 3183.2750 e-mail assinaturas@revistacontinente.com.br EDIÇÃO ELETRÔNICA www.revistacontinente.com.br

VOCÊ FAZ A CONTINENTE COM A GENTE O nosso objetivo é fazer uma publicação cada vez melhor, e, para isso, contamos com você. Envie seus comentários, suas críticas e sugestões. A Continente se reserva o direito de publicar apenas trechos e não se

compromete a publicar todas as cartas enviadas à redação. A seção de cartas recebe colaborações por e-mail, redes sociais e correio. As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone.

REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PARQUE GRÁFICO Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife/Pernambuco CEP: 50100-140 - (81) 3183.2700 Ouvidoria: 3183.2736 ouvidoria@cepe.com.br

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JEAN-CLAUDE BERNARDET

“Ninguém nunca conseguiu definir o documentário” Prestes a completar 81 anos, o professor, ator, escritor e cineasta, autor de importantes obras de reflexão sobre o fazer cinematográfico, questiona a validade de continuarmos enquadrando filmes em gêneros TEXTO Beatriz Macruz

CON TI NEN TE

Entrevista

Famoso por seu pensamento que não separa a política da estética, o professor, ator, escritor e cineasta Jean-Claude Bernardet produziu algumas das mais importantes reflexões sobre o cinema e o documentário brasileiros. É da política que ele parte para construir sua controversa, mas consistente, análise de que o Cinema Novo seria um produto da classe média brasileira, no livro Brasil em tempo de cinema (Brasiliense, 1967), pelo qual foi duramente criticado por Glauber Rocha e outros realizadores do movimento. O livro, no entanto, permanece uma referência incontornável da reflexão sobre cinema e cultura no país – assim como o próprio Cinema Novo, como ele faz questão de lembrar. Sua crítica do filme Cabra marcado para morrer – publicada no livro Cineastas e imagens do povo (Companhia

das Letras, 1985), resultado de sua pesquisa acadêmica – foi considerada pelo próprio diretor, Eduardo Coutinho, uma obra à altura de seu documentário. Assim como ocorria a Coutinho, falecido em 2014, Bernardet é pouco afeito a grandes temas e definições categóricas sobre a linguagem cinematográfica. Em uma tarde de maio, no seu apartamento no 30º andar do Edifício Copan, no centro de São Paulo, ele recebeu a Continente para uma conversa em que reafirmou seu encantamento pelo documentário e por tudo aquilo que chama de “dramaturgia do real”. E, prestes a completar 81 anos em agosto, segue a embaralhar as fáceis convenções: “Documentário e ficção me parecem duas categorias absolutamente gratuitas, que eliminam as nuances e as contradições de uma obra”.

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CONTINENTE Estou certa em afirmar que se pode observar, no seu trabalho como escritor e crítico, a prevalência da reflexão sobre o cinema-documentário? JEAN-CLAUDE BERNARDET Pode ser que sim, mas já escrevi sobre ficção, como no livro Brasil em tempo de cinema. No caso do livro Cineastas e imagens do povo, por exemplo, eu precisava fazer um recorte. Era a possibilidade que tinha de ganhar uma bolsa na universidade para essa pesquisa, e meu orientador achava interessante falar da produção documental. Mas eu já tinha escrito sobre documentário antes, era algo que me interessava desde que percebi que a própria definição de documentário começava a vacilar – isso me aconteceu quando entrei em contato com a obra de Jean Rouch, ao assistir a Crônica de um verão (1961). Sempre houve em mim uma espécie de sedução pela “dramaturgia do real”. Presto muito atenção ao caráter teatral da nossa vida


NINIL GONÇALVES/DIVULGAÇÃO

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diária – que se dá a todo momento, inclusive agora entre eu e você –, a essa espécie de “microdramaturgia”. Por isso que assistir a Crônica de um verão foi tão importante para mim. Porque a dramaturgia de Rouch incorpora uma série de elementos que costumavam ser eliminados dos filmes: os suspiros, as hesitações, as frases inacabadas, as interrupções e as retomadas de ideias… São o que passei a chamar de rebarbas. Escrevi um texto sobre o Crônica que justamente se chamava As rebarbas do mundo.

documentário? Por que isso seria um documentário, se é tudo encenação? Mas o que interessa no filme é que ele não se preocupa com a diferença entre pessoa e personagem, não se coloca esse problema, essa divisão. Da mesma forma, Émile Zola e Charles Dickens, grandes romancistas que trabalharam o conceito de realismo na literatura, saíam a campo como repórteres, para depois escrever seus livros de ficção. Ou, ainda, ao assistir a um canal de notícias como a GloboNews,

Entrevista

REPRODUÇÃO

CON TI NEN TE

do filme em que ele é exibido etc. É exatamente o mesmo processo da chamada ficção. Portanto, documentário e ficção me parecem duas categorias absolutamente gratuitas, que eliminam as nuances e as contradições de uma obra. Para escolas de cinema e mesmo editores de veículos jornalísticos, é muito mais fácil usar esse vocabulário prédeterminado do que tentar investir em um pensamento mais arriscado, e ainda que seja difícil se livrar desse vocabulário, porque senão a gente

CONTINENTE O que é o documentário? JEAN-CLAUDE BERNARDET Existe uma definição clássica para o documentário, de que é tudo aquilo que é filmado, mas que teria acontecido independentemente da filmagem. Por exemplo, você pode filmar um discurso, uma tomada de posse de um presidente, e este evento aconteceria independentemente disso. Essa definição ignora, porém, o enquadramento, a montagem, o acompanhamento sonoro, a organização narrativa das ideias… Este mesmo discurso de posse, que aconteceria independentemente de qualquer filmagem, se transforma em narrativa em função dessas variáveis, em função do momento narrativo

não sai da pergunta ‘vamos falar de quê?’. É preciso fazer um esforço de não se prender a ele. CONTINENTE Você pode dar algum exemplo prático? JEAN-CLAUDE BERNARDET Desde o fim dos anos 1950, Jean Rouch trabalhava uma linha de renovação dramatúrgica nesse sentido. Em Eu, um negro (longa de 1958, em que Rouch acompanha a jornada de um jovem nigeriano até a capital da Costa do Marfim em busca de trabalho), o jovem protagonista refaz a viagem para o filme. Ele já tinha feito aquela viagem, e voltou e refez todo o caminho com a equipe. Então, por que chamamos isso de

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você rapidamente se dá conta que, evidentemente, os entrevistados são cuidadosamente selecionados para dizer o que o canal quer que eles digam, ou seja, eles são atores. Curiosamente, há poucas semanas assisti a uma entrevista sobre uso de drogas no canal, em que a repórter falava sobre o perigo das drogas. Entrevistada, uma senhora de uns 50 anos especializada no tema respondeu que o maior risco no uso de drogas são as substâncias que são misturadas a elas para a venda e consumo – como a cocaína que vem com talco, o que, segundo esta senhora, faz muito mal para saúde. Quando ouviu isso, a repórter ficou apavorada, porque a entrevistada


disse que o perigo no uso de drogas não são as drogas em si. A repórter ficou claramente incomodada e insistiu, disse que não queria que seus filhos fizessem uso de maconha, por exemplo, pois faz mal para a cabeça; ao que a especialista respondeu que “em pequenas doses não faz mal nenhum”. Essa entrevistada escapou ao padrão, a esse verdadeiro trabalho de casting em que só se convida para entrevistas pessoas que coincidem com a ideologia política da GloboNews. Evidentemente, eles tem um enorme repertório de especialistas, professores, referências nos mais variados assuntos, mas achar que programas jornalísticos como esse pertenceriam a uma categoria documental, porque refletem a realidade, é uma ilusão total. Nem estou colocando a ideologia política do canal, com a qual não concordo, em questão, mas aplicar a definição de documentário a isso me parece muito ingênuo. Inclusive, aplicar a própria palavra jornalismo – se entendermos o jornalismo como um procedimento rigoroso que se preocupa com os fatos – me parece ingênuo também. CONTINENTE Você disse antes que Dickens e Zola saíam a campo como repórteres. JEAN-CLAUDE BERNARDET É verdade. Mas a ficção, tal como a produziam, se tornava uma condensação da realidade. Os personagens-tipo que se observam no realismo de Dickens e Zola são construídos a partir de uma soma de particularidades do real. Para escrever Germinal, Zola acompanhou os horários e a jornada de trabalho dos operários, foi aos bares que eles frequentavam etc. Quando ele descreve como os operários chegam à cidade ao amanhecer, vindos das periferias, ele descreve o que ele viu. Mas é a soma das informações particulares que ele levantou que cria sua narrativa. Isso pode ir muito mais longe: para escrever o final de Madame Bovary, Flaubert pesquisou quais os efeitos do envenenamento por arsênico no corpo humano. Com isso, ele escreveu esse capítulo

absolutamente fantástico em que Madame Bovary agoniza depois de tomar arsênico. Ora, o que aconteceu com esse capítulo? Ele foi adotado pela literatura médica para documentar os efeitos provenientes da ingestão de arsênico. Portanto, não faz nenhum sentido, diante da complexidade de uma produção estética, de uma produção ideológica, a gente separar as coisas nessas pequenas categorias. As coisas ficam muito mais difíceis quando essas categorias, essa segurança de

“Uma das posições que ainda me parece atual sobre o documentário é a do cineasta francês Jean Vigo, em um texto sobre seu filme A propósito de Nice (foto), em que ele fala do “ponto de vista documentado”. Mas isso, um ponto de vista documentado, pode ser uma ficção” vocabulário, começam a tremer. Mas eu sou amplamente a favor de fazê-las tremer, de que tenhamos um discurso mais hesitante diante das obras, e, ao mesmo tempo, mais preocupado com suas formas de produção. CONTINENTE Você se refere às formas materiais – aos meios técnicos de produção – ou à forma da produção da linguagem? JEAN-CLAUDE BERNARDET Não acho que as duas coisas estejam muito distantes. Considera-se, por exemplo, que pertence ao mesmo gênero – o documentário – um filme sobre o acervo da Pinacoteca do Estado, em que se pode controlar perfeitamente a luz e o enquadramento, para valorizar pictoricamente a imagem de um

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acervo de obras de arte; e também um filme que pode ser feito agora mesmo, com entrevistas de transeuntes aqui embaixo (do Edifício Copan, onde vive Bernardet) na Av. Ipiranga, sobre a possível renúncia de Michel Temer, por exemplo, e no qual você não tem controle sobre como a luz vai incidir durante as entrevistas e nem sobre quem pode se recusar a falar para a câmera. Esses são dois exemplos de documentário e, no entanto, suas condições de produção seriam absolutamente diversas, que exigem competências técnicas diversas, mas nosso vocabulário insiste em colocálos numa mesma categoria. CONTINENTE Existe alguma definição de documentário com a qual você concorda? JEAN-CLAUDE BERNARDET Como você vê, toda vez que se tentou definir o que é o documentário, ninguém conseguiu. Uma das posições que ainda me parece atual é a do cineasta francês Jean Vigo, em um texto sobre seu filme A propósito de Nice (1930), em que ele fala do “ponto de vista documentado”. Mas isso, um ponto de vista documentado, pode ser uma ficção. A produção do Zola como romancista, de que falávamos antes, partia desse ponto de vista documentado. Ou mesmo a produção desse filme (aponta para o cartaz do filme Memórias do Subdesenvolvimento, 1967, do cubano Tomás Gutierrez Alea, apoiado na poltrona onde está sentado), parte de um ponto de vista documentado. Vigo chegou a uma expressão que não é dogmática, que não é apenas uma definição de dicionário, e que incorpora essa diversidade de procedimentos que pode ocorrer num filme; afirma a obra como obra, não como reflexo da realidade; cria uma relação entre a obra e a realidade que não é de reprodução. Que incorpora os dois exemplos de que falávamos antes: o filme sobre o acervo da Pinacoteca e o filme sobre a possível renúncia de Temer. Mesmo o acervo da Pinacoteca tem um posicionamento, na seleção e disposição das obras; e na forma como elas serão mostradas. Um ponto de vista pode ser transparente ou não, mas pressupõe um posicionamento, não é mesmo?


DIVULGAÇÃO

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IMAGENS: DIVULGAÇÃO

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CON TI NEN TE

Portfólio

Simone Mendes

SENTIMENTOS E MEMÓRIAS TEXTO Eduardo Montenegro

Seja na sala, no quarto, na porta da geladeira ou pintadas nas paredes, as cores de Simone Mendes são vistas por todos os lados de sua casa: estão em ímãs, em quadros, ou em papéis bem organizados em sua mesa de trabalho. Seu apartamento parece uma extensão de sua aura afetiva e criativa, como numa exposição de sua criatividade, que se nutre do sentimento, da memória e do mais íntimo de si mesma. É uma artista que se relaciona com a vida de maneira intensa, e expressa suas experiências em cores aquareladas, ou em cadernos que usa como diários. A jornada artística de Simone começou ainda em Ouricuri, cidade onde nasceu e formou boa parte do que é hoje, lá no sertão pernambucano. Naquela época, rabiscava alguns desenhos, buscando ou imitando os traços de Mafalda. Entretanto, foi somente quando cursou (e depois largou) Arquitetura na Universidade Federal de Pernambuco, que seu desenho começou a ser mais elaborado. Isso aos 19 anos, em 2003: eram traços simples, ainda imaturos, somente com rostos e faces felizes povoando quase uma página inteira de um caderno. No entanto, “a arte é um caminho solitário”, como ela mesma define, e sentiu uma necessidade de partilhar, de trocar. O contato com os ilustradores Gustavo Aimar, Mauricio Planel e Romolo Eduardo levou ao que Simone cataloga como “uma volta para o analógico”, já que por muito tempo criou seus desenhos utilizando o recurso digital. Era tempo de utilizar a técnica da aquarela. CONTINENTE JULHO 2017 | 14


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trabalho de O Simone nos remete à leveza lúdica da infância

Nestas páginas 2 PONYO

anArt feita F sobre o filme da Studio Ghibli

IDENTIDADE 3 A boneca com chapéu de cacto é a assinatura da artista

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IMAGENS; DIVULGAÇÃO

CON TI NEN TE

Portfólio

É importante contar um pouco sobre Simone para compreender que seu modo de desenhar está ligado à história pessoal. O fato de ter produzido até meados de 2012 e 2013 somente obras de temática infantil relaciona-se com a perda da sua mãe ainda muito cedo, com 14 anos de idade, em 1997. “Não somos preparados para a morte”, diz a artista, em entrevista à Continente. Não somente a perda da mãe interferiu no seu processo criativo, mas também a simbologia do Sertão: é fácil encontrar cactos em suas aquarelas, principalmente na imagem que é sua assinatura: um rostinho envolto com um chapéu em formato de cacto. “Eu já passei por uma crise por ser tachada ou vista apenas como uma artista que faz ilustrações infantis”, conta Simone, fazendo aspas com as mãos. Foi daí que veio a ideia de se aprofundar em conteúdos mais eróticos, explorar a sexualidade feminina, porém, em contemplação direta com seu modo de desenhar e pintar. Em 2013, sua primeira exposição individual, na Casa do Cachorro Preto, em Olinda, mostrou uma de suas primeiras aquarelas eróticas. O erotismo de Simone Mendes é sutil, delicado, quase escondido. São cogumelos em formatos de pênis, ou baleias num ménage à trois um tanto imperceptível para quem bate o olho rapidamente. Uma de suas outras crises foi notar que nenhuma de suas criações possuía uma veia crítica à situação política atual. Talvez, de fato, um de seus trabalhos

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4-5 TÉCNICA É através da aquarela que a artista realiza a maioria de suas obras 6 a 8 ERÓTICO E FEMINISTA Trabalhos mais recentes de Simone Mendes têm trazido temáticas combativas

mais explicitamente político tenha sido a arte que fez para o coletivo Deixa Ela em Paz, com uma vaca profana na frente. Porém, ela mesma reconhece: “Mas a maneira que eu vivo já é (política). As pessoas estão muito distantes, está tudo muito seco. A arte aproxima, traz suavidade. Nesse sentido, eu acho que estou fazendo minha parte”. Sua própria maneira de viver, dando aulas no Laboratório de Aquarela, ali mesmo na sua casa, mostra que ser artista vivendo exclusivamente de sua arte é também ser resistente. Suas obras atuais transitam entre o erotismo e a solidão, numa “necessidade de aprender a ficar só, não é à toa que meu trabalho está diferente. Estou num momento em que eu acharia estranho se meu trabalho não refletisse isso”.

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FOTOS: DIVULGAÇÃO

TV PRA DORMIR

Hélio Oiticica vive Não há como fugir à indagação – mais curiosa que cética – de como estaria Hélio Oiticica hoje, aos 80 anos. A inquietação que marcou sua orgiástica obra se estenderia a que dimensões? Quando morreu de um AVC aos 42 anos, em 1980, o artista tinha voltado de uma longa temporada de residência em Nova York, na qual se dedicou muito à escrita. Um dos méritos de sua atuação, inclusive, era o fato de que ele estava sempre escrevendo, colocando em texto a reflexão de sua ação artística. Então, por mais delirante e anárquica que seja sua obra, ela é calcada em ideias muito claras e bem-urdidas. Sua obra é um manifesto em movimento, daí a sua relevância, sobretudo quando tudo em volta se torna rígido e convencional. Do vídeo experimental Hélio Oiticica, realizado por Ivan Cardoso em 1979, um ano antes da morte do artista, podemos extrair imagens e falas sínteses dele. Enquanto um negro dança com um Parangolé, em off, o artista conclama: “Contato não contemplativo. Espectador transformado em participador. Proposições em vez de peças. O artista não mais como criador de objetos, mas como propositor de práticas. Descobertas apenas sugeridas, em aberto. Proposições simples e gerais, ainda não completadas. Situações a serem vividas”. Tudo livre e aberto, como deveria ser a vida. ADRIANA DÓRIA MATOS

CON TI NEN TE

A FRASE

Segundo a Associação Mundial de Medicina do Sono (WASM), 45% da população mundial tem algum distúrbio de sono. Para ajudar os insones a fazerem as pazes com o travesseiro, os publicitários espanhóis Víctor Gutiérrez de Tena e Francesc Bonet basearam-se na ideia de que as pessoas costumam “dar pescadas” com imagens e narrativas enfadonhas e criaram a Napflix – plataforma de vídeos para cochilar. Dentre as dezenas de “obras” disponíveis, há opções como a movimentação de um aquário e a chuva caindo numa janela. Quem não conseguir dormir com esses registros, pode assistir ao canal ao vivo da Nasa no YouTube, que mostra o nosso planeta a partir da Estação Espacial Internacional, ou ver os filmes A balada de Narayama (1983), de Shohei Imamura, e Tio Boonmee, que pode recordar suas vidas passadas (2011), de Apichatpong Weerasethakul. Se nada disso resolver, melhor procurar um médico. DÉBORA NASCIMENTO

Balaio MUNDO POP POLARIZADO A cena da música, especificamente a pop, é bastante competitiva. Muito mais para mulheres. No início do século XXI, o mundo do entretenimento se deliciou com as rixas que Britney Spears e Christina Aguilera supostamente tinham. Mais recentemente, as indiretas trocadas por Madonna e Lady Gaga renderam discussões acaloradas nos fóruns de música. Atualmente, o alvo tem sido a hitmaker Katy Perry. Após lançar Chained to the rhythm e Bon Appétit, a artista não conseguiu o sucesso de seus trabalhos anteriores. A mídia, é claro, “caiu matando”, além de apoiar e noticiar a intriga entre ela e Taylor Swift. EDUARDO MONTENEGRO

“A sátira é uma lição, a paródia, um jogo.” Vladimir Nabokov, 40 anos da morte do escritor

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ARQUIVO

DORIA GRAFITEIRO O prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB), não cansa de surpreender. Além de desfilar pela cidade com suas fantasias de gari, pedreiro e pintor de muro cinza, ele agora também está na onda do grafite. Quem diria. Para quem começou seus primeiros dias de gestão este ano comprando briga justamente com os artistas de rua que fazem São Paulo ser, há décadas, uma das principais galerias a céu aberto do mundo, é no mínimo estranha essa história de ele agora querer apoiar a pintura urbana. Mas, acreditem: no fim de maio, estava lá ele, na zona norte paulistana, empunhando um spray de tinta vermelha, de onde saiu um coração, emblema do projeto São Paulo, Cidade Linda. O gesto foi para inaugurar a primeira área do MAR (Museu de Arte de Rua), iniciativa que seleciona grafiteiros para colorir SP. O prefeito quer regulamentar uma arte incontrolável por natureza. Como diria Filó: “Ô coitado!”. OLÍVIA MINDÊLO

CANÇÃO COMO ARMA Deleite para os ouvidos, a música também pode ser um elemento de tortura. E não estamos falando de Despacito, que está tocando em todos os lugares. E, sim, da técnica para obter confissões em interrogatórios ou a rendição de um inimigo. Costumeiramente, o governo norte-americano utiliza o método, proibido pelas Nações Unidas e pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos. No Natal de 1989, o general panamenho Manuel Noriega havia se escondido na embaixada do Vaticano na Cidade do Panamá, após o exército dos EUA ter invadido o país. A tropa ergueu uma parede de som e, sem trégua, tocou rock a todo volume. No irônico repertório, I fought the law (The Clash), Panama (Van Halen) e All I want is you (U2). A Igreja queixou-se a Bush pai, a guerra musical foi interrompida por três dias e, em 3 de janeiro de 1990, o general, acusado de tráfico de drogas, entregou-se. Na “Guerra ao Terror”, Enter Sandman, do Metallica, era a preferida como “arma”. Por dias seguidos, os prisioneiros também foram expostos a músicas infantis. Uma agente americana contou à Newsweek: “Durante o treinamento, eles me obrigaram a ouvir a canção de Barney e seus Amigos, I love you, por 45 minutos e eu nunca mais quero passar por isso”. (DN)

A primeira #GreveGeral Este ano, a primeira Greve Geral do Brasil completa um século. A atual Constituição prevê: “É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”. No entanto, em outros tempos – como no Estado Novo e sob a vigência da Constituição de 1937 –, fazer greve era considerado um delito. Naquela manifestação de 1917, cerca de 400 operários – na maioria mulheres – da fábrica têxtil Cotonifício Crespi, localizada na Mooca (SP), paralisaram suas atividades para exigir aumento de salários, melhorias nas condições de trabalho e redução das jornadas. Rapidamente, a movimentação se espalhou até chegar aos estados do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Em 11 de julho daquele ano, a mobilização ganhou novas dimensões, com a morte do jovem espanhol José Martinez durante conflitos com a polícia. Apesar de vários militantes terem sido presos e de vários dos acordos não terem sido cumpridos, a primeira Greve Geral foi um marco da organização dos trabalhadores enquanto classe, do surgimento de sindicatos e da impulsão das conquistas trabalhistas, políticas e sociais, como a consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943. ERIKA MUNIZ

SAUDAÇÕES, ESTRANGEIROS! Durante a 14ª edição da documenta, que acontece até 17 de setembro em Kassel, na Alemanha, é comum ver helicópteros e patrulhas da polícia rondando a cidade, para onde acorrem visitantes do mundo todo para visitar a mostra. Em meio ao medo de um suposto ataque terrorista, somado ao preconceito, os movimentos antimigratórios têm crescido por toda a Europa. Nesta que é uma das maiores e mais importantes exposições de arte do mundo, monumento instalado na principal praça de Kassel se opõe ao fluxo e celebra o estrangeiro. Na obra do artista nigeriano Olu Oguibe, Monumento do estrangeiro e do imigrante, se lê em alemão, inglês, árabe e turco: “Eu era um estranho e vocês me acolheram”, citação retirada da Bíblia. SOFIA LUCCHESI

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ACERVO DE FAMÍLIA/CORTESIA

CON TI NEN TE

CAPA

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HERMILO BORBA FILHO

O encenador Como diretor, ele combateu a “mercantilização” e o “aburguesamento da arte”, opondo-se a tudo que fosse “imitação da vida”, valorizando a interpretação dos atores TEXTO Anco Márcio Tenório Vieira

Criado em 1940, o Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP) tinha um papel secundário na cena teatral do Recife, quando Hermilo Borba Filho (1927–1976) assumiu, em 1945, a sua direção. Para refundá-lo, Hermilo escreve um manifesto que não só orienta, a partir de então, os passos do TEP, mas também muitas das reflexões que irão calçar, a partir de 1947, a sua coluna diária Fora de Cena, na Folha da Manhã (Recife) e, posteriormente, em 1960, a sua atividade de encenador no Teatro Popular do Nordeste (TPN). Uma das preocupações desse manifesto, e que terminou por se tornar um cavalo de batalha para Hermilo, é denunciar os “maiores entraves” do nosso teatro: o seu “aburguesamento”, a sua “mercantilização” e a sua dramaturgia irrelevante. Para reverter esse estado de coisas, Hermilo defende um teatro “genuinamente brasileiro” que se

alimente de assuntos nacionais e possa revelar a “potencialidade” das narrativas que povoam o imaginário popular. Entremeando o campo da dramaturgia com o da encenação no combate à “mercantilização” e ao “aburguesamento da arte”, ele se opõe tanto às obras que, quando levadas ao palco, buscam “imitar ou reproduzir a vida” (o teatro, para Hermilo, não é a continuação da vida no palco), quanto aos cenários que, dentro da arquitetura cênica, se sobrepõem aos demais elementos cênicos. O que se deve valorizar é a interpretação dos atores, defendia; o cenário, no caso, deve apenas sugerir ou promover a imaginação do expectador. Buscando efetivar uma literatura dramática “genuinamente brasileira”, o TEP lança, em 1946, o Concurso de Peças do Teatro do Estudante. Em seu regulamento, lemos que “Os autores deverão pensar alto e livremente, apresentando, de preferência, os

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problemas brasileiros, através de personagens e situações, sem medo ou vergonha deles, e aproveitando os motivos humanos e telúricos regionais do Brasil”. Alinhado com o Movimento Regionalista de 1926, o TEP entrega a presidência da Comissão Julgadora a quem vinha pensando o Brasil a partir dos conceitos de Tradição, Região e Modernidade: Gilberto Freyre. Apesar de não obter o voto de Freyre, Uma mulher vestida de sol, de Ariano Suassuna, fica com o primeiro lugar; José de Moraes Pinho leva o segundo prêmio, com O poço. A iniciativa do TEP deu frutos. Entre 1945 e 1960 (ano de criação do TPN), o Teatro do Nordeste (nome dado por Paschoal Carlos Magno às peças escritas por nordestinos e que tinham como matéria fabulatória o universo humano e cultural da sua região, apesar da diversidade ideológica e estética dessas obras) revelou um


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número significativo de novos autores, a exemplo de Aristóteles Soares, José de Moraes Pinho, Sylvio Rabello, Isaac Gondim Filho, José Carlos Cavalcanti Borges, Osman Lins, Luiz Marinho, Aldomar Conrado, Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho. No entanto, se não foram apenas os “motivos humanos e telúricos regionais” que irmanaram Freyre e Hermilo, mas também as suas aversões por uma arte fundada nas estéticas realista e naturalista, Hermilo, atento à carpintaria do teatro, sabia que para perfazer-se um teatro “genuinamente brasileiro” era necessário ir além desses mesmos “motivos humanos e telúricos”. Não bastava constituir uma dramaturgia “genuinamente brasileira” nas suas substâncias de expressão e nas suas formas dramáticas, faziase também necessário se voltar para um novo modo de encenação. Modo de encenação esse que o Teatro do Nordeste só irá conhecer com o TPN: seja na sua primeira fase, entre 1960 e 1963; seja na segunda, entre 1965 e 1970; e, por fim, entre 1974 e 1975, quando o pano cai em definitivo.

Um dos méritos do Teatro do Nordeste foi revelar autores como Sylvio Rabello, Isaac Gondim Filho e Ariano Suassuna HOMEM ORQUESTRA

Como nota Luís Augusto da Veiga Pessoa Reis em livro definidor sobre o teatro e a critica teatral hermiliana – Fora de cena, no palco da modernidade (2008) –, o amadurecimento teórico do Hermilo encenador se deve, em grande parte, ao período em que ele esteve à frente da sua coluna Fora de Cena. Nessas páginas, ele sistematizou muitas das suas reflexões sobre a dramaturgia europeia e americana; meditou sobre as principais teorias e críticas teatrais do seu tempo, a exemplo do teatro épico e antiilusionista de Bertold Brecht; ponderou sobre as encenações levadas aos palcos do Recife (texto, direção, cenário, figurino, maquiagem, iluminação,

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sonorização, atores); declinou a sua opinião sobre a dramaturgia brasileira e, principalmente, sobre os “espetáculos populares” do Nordeste. Assim, o Hermilo que funda com Ariano Suassuna, em 1960, o TPN, é um Homem Orquestra que tem pleno domínio da teoria dramática, da crítica teatral, da história do teatro, da dramaturgia, da cultura popular e, como se não bastasse, da linguagem do romance, do conto e da novela. Defendendo que os “espetáculos populares”, como o bumba meu boi, o fandango, o mamulengo e o pastoril, devem ser encarados em seus aspectos cênicos e não como meras manifestações folclóricas – pois só assim eles poderiam “indicar aos eruditos certos caminhos que até então não haviam sido explorados” na construção de uma dramaturgia ou de uma encenação erudita brasileira de larga compreensão e “aceitação popular” (uma dramaturgia e uma encenação que se inscrevessem na tradição do “teatro popular” ocidental ou ocidentalizado) –, ele, Hermilo, dá ao Teatro do Nordeste um dos


TEP 1 Aloísio Magalhães, Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna, na apresentação da peça A barraca

2-3 ESPETÁCULOS POPULARES Para Hermilo, a palavra popular ganha o sentido de uma obra que encerra “a visão épica e coletiva do mundo”

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Assim, a palavra popular perde, aqui, a concepção de manifestação cultural feita pelo povo, ou mesmo das formas artísticas que traduzem uma visão de mundo das camadas populares, como são os “espetáculos populares”, e ganha outro sentido: o de uma obra erudita que encerrava “a visão épica e coletiva do mundo”. No caso, uma arte erudita de “aceitação popular”; que contém temas que devem ser compreendidos e discutidos pelo povo; que não impõe “uma visão prédeterminada do mundo”; e que pulsa com a sua carne e o seu sangue.

ANTI-ILUSIONISTA

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procedimentos cênicos que lhe faltavam para dar conclusão a um teatro “genuinamente brasileiro”: a encenação. Não só: como se tudo dependesse dele, Hermilo cria uma encenação que se revela de vanguarda ao transigir, de modo inovador, as formas dos “espetáculos populares” com a forma do anti-ilusionismo de Brecht. Frise-se, no entanto, que esse teatro de “aceitação popular” que o TPN almejava não era sinônimo de algo “formalístico”, “sem comunicação com a realidade”, “frívolo,” “estéril”, como era a arte “burguesa” e “mercantilizada”; muito menos um teatro “fácil”, “meramente político”, “gratuito”, “alistado”; ou mesmo um teatro que fosse uma mera “concepção de

mundo das classes subalternas”, como defendiam, à época, tanto o Movimento de Cultura Popular (MCP), no Recife, quanto o Centro Popular de Cultura (CPC), da União Nacional dos Estudantes (UNE). Para Hermilo e Ariano, o “teatro popular” era aquele que se inscrevia na melhor tradição do teatro ocidental ou ocidentalizado: os trágicos gregos, a comédia latina, o teatro religioso medieval, elisabetano e do século de ouro espanhol; as obras de Molière, Gil Vicente, Goldoni, Goethe e Schiller; e os brasileiros que realizavam um “teatro dentro da seiva popular coletiva”: Aristóteles Soares, Sílvio Rabelo, José Carlos Cavalcanti Borges, Osman Lins, José Morais Pinho, Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho.

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Munido dessa nova concepção de popular, Hermilo vai transigir três conceitos distintos: o de “teatro popular”, o de “espetáculos populares” e o de teatro épico e antiilusionista de Bertolt Brecht. Em um primeiro momento, ele percebe que tanto os “espetáculos populares” quanto o teatro épico de Brecht estão, cada um ao seu modo, assentados em uma mesma forma de encenação anti-ilusionista. Em seguida, ele vai buscar ler os procedimentos formais do teatro anti-ilusionista de Brecht pelos procedimentos formais dos “espetáculos populares”, e viceversa. Nesse entremear dos haveres de um e de outro, Hermilo vai delineando as bases do seu “teatro popular”. Vamos por etapas. Estudando os “espetáculos populares”, a exemplo do bumba meu boi, Hermilo nota que dois pontos nele se destacam: primeiro, “o ator do bumba é uma mistura de improvisação e tradicionalismo”; segundo, o espectador da “dança dramática” também se faz partícipe do espetáculo. Hermilo ainda nota que o “lugar da ação” dramática em que ocorre o espetáculo do bumba meu boi (caracterizado por uma


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“ausência total de decoração”) é o mesmo em que ocorre a representação. Representação essa que envolve, como “parte do jogo”, um diálogo entre os atores e um público que “grita piadas, aplaude, tudo isso sem que o interesse diminua”. Esse transigir, esse diálogo concomitante entre espaço cênico, ação dos atores, música, dança e público, fratura o ilusionismo do teatro clássico e perfaz o que Hermilo passa a chamar de “espetáculo total”. Não só: relacionando esse espetáculo dramático com o “teatro popular”, Hermilo nota que neles os atores “improvisam como na comédia italiana, usam travestis como no teatro elisabetano, usam máscaras como no teatro grego, dançam como no teatro oriental, fazem acrobacias como no teatro chinês, cantam como nas óperas, dão pancadas como nas velhas farsas medievais”. No que diz respeito ao método antiilusionista de Brecht, os atores, ao modo do corifeu do teatro clássico, adotam um “efeito de distanciamento” em relação aos seus personagens. Quando se faz necessário, interrompem a ação

dramática e se dirigem diretamente ao público que, por sua vez, é levado a experimentar o objeto da representação com uma sensação de “estranheza”. Assim, ao interromper a ação, os atores saem dos seus personagens fictícios, colocam em suspensão os seus personagens, e, de modo crítico, comentam com o público presente uma dada situação ou mesmo algumas ideias que foram colocadas no decorrer da peça. Esse teatro que, de certo modo, encerra um caráter didático e pedagógico, vem substituir o “conflito” da forma dramática clássica pela ideia de “contradição”, evitando, assim, que a peça tenha um desfecho conclusivo. Entremeando os haveres dos procedimentos formais de Brecht com os haveres dos “espetáculos populares”, Hermilo vai perseguir um anti-ilusionismo que não se dá nem no distanciamento do ator com o seu personagem, nem com o público espectador, muito menos na própria ação dramática, mas, sim, inscrevendose na própria constituição da forma dramática. Dois bons exemplos são as encenações de A pena e a lei, de Ariano

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Suassuna, em 1960, e de O inspetor, de Nikolai Gogol, em 1966. Peça em três atos, A pena e a lei é composta a partir do entremez para mamulengos – Torturas de um coração –, escrita em 1951. O primeiro ato é A inconveniência de ter coragem; o segundo, O caso do novilho furtado; e o terceiro, Auto da virtude da esperança. No primeiro ato, os atores (a matéria animada) interpretavam os seus papéis como bonecos do mamulengo (a matéria inanimada); no segundo ato, ora os atores atuavam como humanos, ora como bonecos; por fim, no terceiro ato, os atores agiam apenas como humanos. Aqui, nessa encenação, Hermilo toma o teatro de mamulengo não em sua substância de expressão, mas em sua forma dramática. Assim, o anti-ilusionismo se fazia manifesto ao reverter o aguardo do público: desejando encontrar uma encenação de mamulengo (no caso, uma matéria inanimada – o boneco – que finge ser matéria animada, um humano), ele, o espectador, se deparava com a matéria animada fingindo ser matéria inanimada.


4 ENSAIO Parte do elenco do TEP reunida em 1948 TPN 5 Ao fundar o grupo, nos anos 1960, seu objetivo era trabalhar com o “teatro arte”

No caso de O inspetor, o ator, para representar os seus personagens, lançava mão das máscaras como os brincantes dos espetáculos populares. Ainda ao modo desses brincantes, o ator trocava de máscaras e, por decorrência, de personagem na frente do público e, caso assim desejasse (e a ocasião merecesse), dirigia-lhe a palavra, fraturando todo o ilusionismo do espetáculo. Com essas encenações, Hermilo reitera o que dissera no Manifesto do TEP: primeiro, o teatro não era imitação ou reprodução da vida. Segundo, o cenário, tal como nos “espetáculos populares”, deve ser secundário na arquitetura cênica, pois o lugar em que se representa é também o lugar da ação. Sendo secundário, o cenário deve apenas sugerir, instigando a imaginação do espectador, convidando-o a criar ou perfazer o que lhe é insinuado pela peça. Terceiro, é a interpretação, as ações e os diálogos dos atores que devem ser valorizados em uma encenação. Ao contrário do ator brechtiniano, que mantém um “efeito de distanciamento” em relação ao objeto da representação como forma de chamar a

Hermilo preferia chamar a atenção do espectador para o texto, para os modo de interpretação, para a ação dramática atenção do espectador para determinada passagem da peça e, por sua vez, “conscientizá-lo” da necessidade de se posicionar criticamente ante a realidade que o circunda, Hermilo prefere chamar a atenção do espectador para o texto, para o modo como os personagens interpretam cada uma das suas falas e, por sua vez, para a própria ação dramática. Há, no seu anti-ilusionismo, um tênue limite entre o ilusionismo do texto (promovido pela sua ficcionalidade) e o anti-ilusionismo que é promovido tanto pelo lugar em que se representa a ação quanto pelo cenário que deve apenas sugerir; tanto pela troca de máscaras (logo, de personagens) realizada pelos atores no lugar em que se desenvolve a ação dramática quanto

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pelo ator que finge ser um boneco inanimado e, ato após ato, abandona o fingimento e torna-se apenas e somente matéria animada. Ou seja, na encenação hermiliana texto e interpretação contêm, em si, e quando tensionados, elementos suficientes para que possam provocar alguma reação no espectador; reação que prescinde do “efeito de distanciamento”, como queria Brecht. Ao perceber que a arte é essencialmente forma (seja como estilização das ideologias do seu tempo, seja como um conjunto de regras que dispõem, integram e organizam os elementos da encenação), e que seria somente pelo entremeio das diversas formas dramáticas (eruditas ou populares) que se poderia dar ao Teatro do Nordeste uma encenação inovadora, de vanguarda, Hermilo pôde escapar tanto das estéticas teatrais que encaravam a cultura popular como folclore (caminho que muitos da sua geração terminaram por sucumbir) quanto das encenações paternalistas, “demagógicas”, que vivem de promover a “mercantilização” dos “espetáculos populares”.


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PROSA Confessional e autobiográfico Nos romances e contos que escreveu a partir dos anos 1950 até sua morte, Hermilo Borba Filho realizou uma obra de resistência política e autoexposição TEXTO Luiz Roberto Leite Farias

Nos anos 1950, o pernambucano Hermilo Borba Filho, após um longo período dedicado a uma carreira bemsucedida na dramaturgia, lança sua primeira obra de ficção literária, Os caminhos da solidão (1957), e só volta a publicar sete anos depois, Sol das almas (1964). Mas é a partir do lançamento de sua tetralogia, Um cavalheiro da segunda decadência (1966 –1972), que sua literatura alcança destaque da crítica em todo o Brasil e no exterior, recebendo também o prêmio Chevalier de L’Ordre des Arts et des Lettres do governo francês. Os romances da tetralogia – Margem das lembranças (1966), A porteira do mundo (1967), O cavalo da noite (1968) e Deus no pasto (1972) – narram a vida do personagem Hermilo, em tom altamente confessional, ao longo do século XX, através de todas as convulsões políticas e guerras que atribularam o Brasil e o mundo. Dentre os dramas políticos vividos pelo protagonista, destaquem-se duas ditaduras, a de Getúlio Vargas, nos anos 1930 –1940, e a ditadura militar dos anos 1960 –1980. Esses

momentos da história do Brasil marcariam consideravelmente a ação e o desenvolvimento dos personagens do autor pernambucano, sempre às voltas com a resistência em meio a um sangrento jogo de poder, especialmente em sua obra-prima, Agá (1974), último romance publicado em vida, e que vem a ser um verdadeiro memorial da tortura e dos abusos do poder de estados totalitários. Quando Hermilo Borba Filho inicia sua tetralogia monumental – de aproximadamente mil páginas –, já na primeira página de Margem das lembranças, o narrador apresenta seu projeto de literatura: “Teço, neste papel, um passado real, às vezes, e, outras, puramente imaginado na esperança de que no fim Deus confunda o que vivi e o que inventei e me dê um saldo favorável para uma modesta pensão no Purgatório”. Esse projeto literário, e até ardiloso – ao tentar passar uma perna em Deus com as narrativas –, caracteriza bem o que foi boa parte da obra de ficção de Hermilo Borba Filho: uma literatura

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carregada no tom confessional e autobiográfico, uma literatura que se utiliza do romance como forma perfeita para seu objetivo, ou seja, dar conta de uma vida inteira, de uma totalidade da experiência ou, como diz ainda seu personagem: “Eu estou na balança. Todos os meus atos estão num dos pratos da balança. De um lado, os demais: muitos deles sou eu, metamorfoseado, irreconhecível, adulterado; do outro, eu mesmo, integral, de carne, as pernas penduradas no vazio. E me jogo numa longa viagem do útero à morte”. Quando começou a publicação dos livros de Um cavalheiro da segunda decadência, Hermilo Borba Filho já havia lançado dois romances relativamente convencionais, mas, a partir do primeiro volume da tetralogia, Margem das lembranças, o autor — já perto dos 50 anos de idade — surge com um comando e renovação da linguagem surpreendentes, o que, no romance brasileiro, eram tarefas capitaneadas por Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Hermilo Borba Filho passa, então, a dominar uma


linguagem fluida, às vezes levemente pontuada, lírica, onírica, de êxtase, e muitas vezes desesperadamente erótica. Em sua literatura, os narradores apresentam-se totalmente desnudados, com uma coragem tremenda em passar a limpo a vida, não sem certa reação, na vida real, de outros “coadjuvantes” que poderiam ser reconhecidos na biografia do autor pernambucano. Isso levou Borba Filho a se defender sobre o assunto, sobre a ambiguidade biográfica de seus romances (em entrevista publicada na revista Veja, em 1976, uma semana após sua morte): “(…) são escritos na primeira pessoa do singular, parecendo contar muita coisa da minha vida, escandalizando pela rudeza e pela nudez, a minha nudez e a dos outros, obsessivamente fiel à frase de James Joyce: ‘Não sei escrever sem ferir ninguém’. E à minha própria declaração: ‘Se não me poupo, como vou poupar os outros?’”. Certamente, a expressão “parecendo contar muita coisa da minha vida” é a deixa para a indecisão nesse tipo de literatura ficcional. Embora

A partir da tetralogia Um cavalheiro da segunda decadência, Hermilo mobiliza a crítica nacional e internacional alguns prováveis inspiradores dos personagens tenham se queixado, nunca será possível saber, em detalhes, o que foi factual ou simplesmente inventado pelo autor.

ERÓTICA E MÍSTICA

Hermilo Borba Filho, de tanto escandalizar “pela rudeza e pela nudez”, acabou por ficar um pouco marcado pela fartura de sexo em suas páginas, e – diga-se de passagem – belas páginas. Isso levou o autor a falar diversas vezes sobre o assunto, como na entrevista à revista Ele e Ela, coletada pela escritora Sonia Maria Van Dijck Lima, em Hermilo Borba Filho: fisionomia e espírito de uma literatura (1986): “O que acontece é que eu considero o sexo uma coisa normal

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(o que é a anormalidade?), própria do homem, enorme, divina. As criaturas dos meus romances copulam tanto quanto qualquer criatura de carne e osso, tanto como se come, bebe, se dorme. Os mais requintados, os mais poetas, inventam coisas. Mas o exemplo já vem da Bíblia…”. Além dessa espécie de sexo naturalista, quase animal, o aspecto divino – em relação ao sexo e o erotismo – não pode ser desprezado, assunto já tão discutido por George Bataille em O erotismo (2013). Olhando por esse viés, é possível ver que os personagens hermilianos, em geral, parecem, muitas vezes, perderemse em vidas totalmente dissolutas. No entanto, com o desenvolver das narrativas do autor, é possível ver que a presença do sexo e do erotismo se afastam de uma ação por pura luxúria e lascívia, indo, portanto, em direção a uma busca por coisas relacionadas simbolicamente com o erotismo, no caso, com a própria ideia de Deus, o que sempre pareceu ser o propósito da longa tetralogia: uma purgação e uma busca de amadurecimento espiritual. O sexo, assim, muitas vezes funciona como um gatilho para visões e devaneios, em vários momentos de sua literatura, nos quais Hermilo Borba Filho, do alto de sua forma estilística, imprime toda a carga poética a sua prosa, como na passagem do segundo volume, A porteira do mundo, em que ele se eleva em delírio aos céus do Recife, após uma noite tórrida com uma prostituta do Bairro do Recife Antigo: “E todas as luzes se extinguiram: do Sol, da Lua, das estrelas, dos postes, das casas, dos fifós, era uma treva asfixiante, minha barba crescia e formava uma escada por onde iam subindo os bêbados, as prostitutas, os pederastas, todos os cornos do mundo, padres simoníacos, políticos, ladrões e assassinos e, enquanto subiam, alcançando a minha boca eu os cuspia para o infinito e era engraçado de ver as cabriolas que davam, um olho para aqui, um culhão para ali, um baço acolá, todos os corações se reunindo num só, crescendo, ainda opaco, pouco a pouco iluminando-se e tornando-se rubro, cercado por estrelas de espinhos que se enterravam cada vez mais na carne, tudo isto porque, mais uma vez, eu encontrara Deus na merda”.


CON CAPA TI NEN TE IMAGENS: REPRODUÇÃO

Além dos aspectos autobiográficos, confessionais e da forte presença do erotismo, a literatura de Hermilo Borba Filho é marcada pela sátira às relações de poder na sociedade. Seus romances não se calam na defesa da liberdade do homem e na luta contra os abusos do poder, contra a repressão e a tortura dos que se rebelam contra estados autoritários. Como diz ainda o autor, na entrevista à revista Veja, pouco antes de morrer: “Pertenço a uma ‘cultura de resistência’ e justamente porque a liberdade e a dignidade do homem estão em crise é que utilizo a única arma que tenho – minha ficção – para combater a intolerância sob qualquer aspecto em que se apresente”. Depois, mais à frente, ele dispara: “Não vejo como o artista possa ficar indiferente, com escapismos, à sua época. A literatura bem-comportada prefere desconhecer a cultura de resistência e se refugia em campos onde os valores do homem atual são relegados a um plano de masturbação intelectual. Não participa, não age, não se compromete, enfim, tem nojo das mazelas do homem. Como praticar uma literatura que se alheie totalmente das torturas, dos campos de concentração, da fome, das guerras, dos genocídios, dos cinismos políticos, da diplomacia econômicofinanceira? Como burilar um verso de amor se a qualquer momento podemos, pela explosão, desaparecer? Amor é denunciar tudo isto. Esta é a nossa missão: gritar. É infelizmente a época para isso: para uma literatura de gritos, de protesto ou morte”.

O ROMANCE AGÁ

Ao fim dos anos 1960, apesar de toda a paixão de Hermilo Borba Filho pelo teatro e a cultura popular, sobre os quais escreveu inúmeras peças teatrais e textos teóricos, seus problemas cardíacos afastaram-no mais e mais dos palcos e das salas de aula. Ao final da vida, parecia estar feliz com o resultado de sua ação como escritor de romances e contos, como atesta a pesquisa sobre o pensamento teatral de Borba Filho, de Luís Augusto da Veiga Pessoa Reis, Fora de cena, no palco da modernidade: um estudo do pensamento teatral de Hermilo Borba Filho (2008). E é em 1974, quando o autor já tinha sua saúde e forças totalmente deterioradas, que ele publica

1-2 AGÁ Um dos capítulos deste romance de 1974 é uma história em quadrinhos

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Sua literatura é marcada pela presença do erotismo e pela sátira às relações de poder na sociedade seu último romance em vida, Agá, um insuspeitado tour de force para um coronário crônico e sobrevivente das pioneiras cirurgias do coração, no Brasil. E já de saída, essa – aparentemente – inocente denominação de Agá como um “romance”, apresenta-se como problema para o leitor, porque a obra é narrada por uma dezena de personas, com a adição de alguma função ou papel: “Eu, embaixador”; “Eu, padre”; “Eu, guerrilheiro”, “Eu, hermafrodita” etc. Apesar dessa variedade, todos aparentam ter alguma unidade na

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personalidade, nas memórias da infância, no nome das companheiras – no caso, a quase onipresente Eva – sugerindo que todos realmente não passam de um “Eu, Agá”, ou um “Eu, ator”, que troca constantemente as máscaras ao longo da ação. Há também o problema do “enredo” desse romance inusitado. Afinal, qual é a história ou aventura de Agá? Os diversos narradores vivem seus episódios em espaço e tempo ora diferentes, ora em momentos quase simultâneos. No entanto, mais uma vez, as narrativas sugerem uma constante, um fio espaçotemporal que os liga: todos os narradores vivem em estados dominados por um poder autoritário e opressor, com algumas indicações históricas ou topográficas que os situam no Brasil e na América Latina, entre os anos 1960 e o ano de 2005, sem falar na história em quadrinhos no centro do livro, que faz um apanhado histórico


TRECHO DO ROMANCE AMBULANTES DE DEUS O período foi de calamidade: houve um carnaval triste porque tudo o que ia acontecer estava pairando no ar, na cidade e no rio; Cipoal avançando poucos metros por dia, parecia até que recuava, os viajantes calados, ensimesmados melhor dito, cada um na sua, recolhidos tal caramujos, em todos uma grande dispricunia, cada qual mais encaranguejado que o outro, pareciam avariados do juízo; é, houve um carnaval triste, com uns pobres duns caboclinhos descendo a ladeira, arcos e flechas na batida monótona e sem gosto, penas descoloridas, cocares desbotados, dançava um prum lado e outro pra nem-te-ligo, mal acertavam o passo, assim mesmo persistiram na beira do rio os três dias convencionais, mas os da jangada nem bem nem mal prestavam atenção, não prestavam, estavam mesmo encafifados, havia coisa no ar, estava para acontecer, aconteceu. Houve um golpe militar, um tristíssimo golpe militar em nome da liberdade; e nesse golpe militar viam-se cabeças rolando no meio da rua, pernas penduradas nos fios elétricos, testículos nos açougues, intestinos enlaçados nas árvores; miolos esparramados pelo calçamento; e houve a morte lenta, conseguida depois de cada centímetro de dor; e houve um morto em cada casa e os homens se transformaram em inimigos dos homens e houve paradas militares e os civis se refugiaram em tocas de bichos; e a jangada teve de permanecer parada à espera de ordens; e houve viúvas puxando pelos cabelos os cadáveres dos maridos no meio da rua; e houve mortos que mesmo depois de mortos vinham passear no meio da rua, as feridas abertas, de cara triste, e os soldados passavam e atiravam neles e abriam novas feridas e riam e bebiam; e houve quem dissesse que ia chegar um vaso de guerra para bloquear a fuga dos subversivos pelo rio e as patrulhas passaram a policiar as margens e vez por outra, por desfastio, davam rajadas de metralhadoras nos viajantes da jangada; e houve mais: missas negras, necrofilia, torturas do coração, luto perene, lágrimas de sangue, empalamentos, pesadelos revividos, interrogatórios indolores, fornos de cremação, hinos nacionais, oratória democrática e desfiles. E houve a cheia. 2

brasileiro de quase 500 anos do martírio e da aniquilação de rebeldes. Em Agá, Hermilo Borba Filho testa todos os limites da forma do romance, pelo menos quanto à maneira pela qual o autor vinha desenvolvendo sua literatura. E, embora os elementos de confissão, erotismo e resistência se mantenham, o contexto brasileiro (no auge dos anos de chumbo) e da vida pessoal do autor – talvez pressentindo a própria morte – levam a narrativa às últimas consequências, ao acirramento de seu estilo, com o romance sendo fortemente assolado pelas revelações mais íntimas, muitas vezes imersas em franco estado de loucura. O romance é também impregnado do grotesco, ou seja, nas imagens do corpo e de seus fluidos, nas deformações, na monstruosidade e nas hipérboles das ações e da linguagem. Por tudo isso, as páginas de Agá são impregnadas de masturbadores, de hermafroditas

em cópulas as mais variadas e em diversas combinações. Há também o dilaceramento e o despedaçamento de prisioneiros torturados, e que têm seus sacrifícios comparados ao de Cristo, em bela alegoria de uma Santa Ceia realizada nos porões da tortura. Por fim, em Agá, os militares, ditadores e políticos que exercem o poder são representados nas situações mais grotescas, em meio a bizarrices sexuais com fezes de prostitutas e sendo seduzidos, em situações hilárias, pelo ardiloso Agá Hermafrodita, um dos melhores anti-heróis da literatura de Hermilo Borba Filho. Assim, em Agá, o poderoso é visto, se seguirmos uma concepção de Michel Foucault, em seu Os anormais (2010), como um poderoso bufão e grotesco – curiosamente atual. São ditadores e poderosos que se autorrebaixam e chocam todos aqueles que poderiam esperar ações superiores dos que estão no alto do poder. É um

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poderoso que se autodeprecia e se rebaixa em comportamentos circenses e animalizados, enquanto, ao mesmo tempo, mata e tortura com prazer sádico. Por essa compreensão dos poderosos bufões, Agá é uma obra que deveria ser, mais do que nunca, relida.

OS CONTOS

Hermilo Borba Filho, ainda no início dos anos 1970, também se dedica aos contos. Quanto a esses, Borba Filho foi ficcionista primoroso, e sua trilogia de contos atesta o nível de excelência ao qual o autor pernambucano chegou, embora ele não tenha mais experimentado tanto com a forma. Mas os livros de contos, O general está pintando, Sete dias a cavalo e As meninas do sobrado – que ele preferia chamar de novelas – são fruto de um controle total da técnica da escrita, do estilo literário e do conhecimento profundo da arte popular.


CON CAPA TI NEN TE FOTOS: ACERVO DE FAMÍLIA/CORTESIA

4 DUELO Brincadeira entre Erico Verissimo e Hermilo Borba Filho

TRECHOS DE CONTOS

AFETOS 5 Com o escritor Osman Lins e a companheira de palco e vida, a atriz Leda Alves

A enchente Quando os cavalos na estrebaria se levantaram e se morderam nos beiços um do outro, aos coices as tábuas voaram, o cão ergueu as orelhas, na espera, a cabeça deitada ainda e sobre ela, à procura de calor, a ovelha, isto no mais alto, a chuva caindo, a água nos gorgolejos de corrente, os bichos atentos, mas somente atentos, havia um olho que os espiava e era o olho de quem não se sabia, no mundo líquido uma volta que dava já formava um remoinho, o funil na velocidade maior arrastando o que ia de cambulhada: panelas, copos de ágata, quadro de santo, flores artificiais, cachepô, um minueto e almofadas, uma cortina de contas de mulungu, as riquezas da casa.

(in: As meninas do sobrado) Episódio do Homem Bissexto Só era visto uma vez por ano, precisamente na quarta-feira de cinzas, ao meio-dia. Passeava pelas ruas vazias da cidade, observado pelos que não haviam entrado na brincadeira, os foliões dormindo. Trajava uma roupa verde-escuro, camisa listrada e gravata amarela, chapéu cor de chocolate, sapatos brancos, ritmando seus passos com uma bengala retorcida, entrava ano e saía ano. Por isso, apelidaram-no de Roupa-Só. Andava olhando em frente, sem cumprimentar ninguém, parecia não estar vendo nada. Num dos anos, parou na esquina do Clube Literário, onde ainda flutuava um vago odor de lançaperfume do último baile, uma serpentina dependurada do fio elétrico acariciandolhe levemente o rosto macilento, afilado, imberbe, com olhos verdes grandes e redondos, e ali ficou muito tempo, escultura, sem se mexer, inquietando os moradores do outro lado da rua, até que apareceu um vira-latas, cheirou- lhe a perna, ergueu a pata traseira, e mijou. Ele continuou parado, bloco, imutável, ainda, por muito tempo, findo o qual pôs-se a caminhar, os primeiros passos deixando a marca aquosa do pé. Tentouse espalhar a lenda de que era uma alma penada que entrava no antigo corpo morto e saía do cemitério para as suas andanças, para ver e apalpar os pecados cometidos durante o entrudo. Mas isso eram estórias das beatas que voltavam da igreja com uma cruz de cinza na testa. (in: O general está pintando)

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Os contos, fortemente inseridos no realismo mágico e nas narrativas populares do cordel, do teatro de marionetes, dos autos e mistérios, também são carregados do grotesco: nas bizarrices dos relacionamentos amorosos entre humanos e animais, em As meninas do sobrado; nas caracterizações monstruosas dos filhos de um latifundiário, em Sete dias a cavalo, que mais parecem ter saído de um quadro de Bosch e os sete pecados capitais; e também na força do corpo grotesco feminino, que atualiza, sobremaneira, a literatura de Hermilo Borba Filho, especialmente quanto às discussões sobre a normalização e o controle do corpo da mulher, como no belíssimo O arrevesado amor de Pirangi e Donzela ou o Morcego da meia-noite — em O general está pintando. Nesse conto, uma personagem marginal e pária da sociedade, Donzela, uma

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mendiga, consegue transtornar toda a estrutura social de uma cidade, ao seduzir o controlador das horas da comunidade, o vigia Pirangi, levando a pequena comunidade ao caos e a eventos escatológicos. Por fim, no conto que dá o título ao livro O general está pintando, os militares surgem como pequenas marionetes mecânicas e cômicas, que realizam os preâmbulos para a realização de um hobby, uma tarde de pintura de um general. Este, depois de acenar para as madames e assoviar alguma cantiga, enquanto sorve uma bebida, só consegue o tom desejado de vermelho com o sangue de uma criança. Dessa forma, percebe-se que, mesmo nos contos – e sua linguagem altamente poética –, Borba Filho continuava sua empreitada de fustigar o regime militar, e assim o autor seguiu, em sua ficção, até o fim.


REDESCOBERTA

Em 2017, no ano do centenário de nascimento de Hermilo Borba Filho, ao olharmos para a sua literatura, desde sua última publicação – o pequeno romance póstumo Os ambulantes de Deus, em 1976 –, ainda é possível ver sua obra dialogando com temas e aspectos da literatura do século XXI, apesar de esta ter, aparentemente, se domesticado um pouco quanto a experimentos formais. O fato é que Borba Filho utilizou-se de todas as possibilidades que, desde James Joyce, até então, a forma do romance permitia, resultando – especialmente em Agá – numa obra de leitura desafiante, de sentido aberto, fragmentada, de enredo mínimo ou nenhum, com a forte presença da ironia e da metalinguagem, ou seja, quanto a esse último aspecto, uma literatura que dialoga consigo mesma, muitas vezes pela voz do narrador que discute seu próprio processo de criação artística e escrita. No entanto, segundo a professora Leyla Perrone-Moisés, no recémlançado Mutações da literatura no século XXI

A última publicação do escritor foi o pequeno romance póstumo Os ambulantes de Deus, lançado em 1976 (2016), a literatura parece ter voltado a uma forma mais conservadora e de uso segundo as convenções realistas, algo do qual Hermilo Borba Filho vinha se afastando, quando faleceu. Ainda assim, seguindo Leyla PerroneMoisés, se pudermos comparar a literatura de Borba Filho com algumas das tendências dos últimos anos, é possível fazer relações com os gêneros das distopias e, especialmente, com o gênero da autoficção. Quanto à autoficção – essa forma confessional ambígua –, a literatura de Hermilo Borba Filho pode ser relacionada com a obra de escritores como José Castello, Cristóvão Tezza, Sérgio Sant’Anna, Miguel Sanches Neto, entre outros, em que a ficção

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se confunde com a autobiografia e, muitas vezes, os narradores – como o personagem Hermilo – carregam os mesmos nomes dos autores. Já quanto ao renovado interesse por distopias, como o 1984, de George Orwell, e em meio a recentes tentações fascistas e a disseminação da intolerância, da homofobia, da misoginia e da xenofobia, no Brasil e no mundo afora, a literatura de Hermilo Borba Filho soa mais do que nunca como advertência e reflexão, como no romance Agá. Nesta obra, um romance escrito sob a sombra de uma bomba nuclear e da tortura, o Brasil é representado como um país oprimido e privado de toda e qualquer liberdade do homem. Por fim, há muito ainda o que se explorar ou se redescobrir na obra de ficção literária de Hermilo Borba Filho, uma arte que apresenta o que de melhor a literatura pode propiciar aos seus leitores: ela não só provoca um novo olhar sobre a realidade e a existência, mas, principalmente, nos encoraja sempre a nos colocarmos uns nos lugares dos outros.


CON CAPA TI NEN TE ACERVO DE FAMÍLIA/CORTESIA

LANÇAMENTOS Reedição da obra faz compilações

Neste mês, títulos contendo seus contos e novelas estarão disponíveis. Ainda este ano, peças e trabalho ensaístico serão publicados TEXTO Luciana Veras

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Em uma das primeiras páginas de Os ambulantes de Deus, novela publicada pela editora Civilização Brasileira poucos meses após a morte de Hermilo Borba Filho (1917-1976), o personagem Cipoal filosofa sobre as encruzilhadas que laceiam vida e morte. Ele é o barqueiro-líder de uma nau que, ao longo da narrativa, será povoada por tipos nordestinos em sua essência: a prostituta Dulce-Mil-Homens, o poeta Cachimbinho-de-Coco, o mendigo Nôdos-Cegos, o bicheiro Amigo-Urso e o caminhoneiro Recombelo. Inquirido por Dulce acerca do medo da morte, Cipoal retruca com a sagacidade típica dos personagens criados pelo dramaturgo, encenador e escritor pernambucano: “Quando a gente nasce, encontra todo mundo rindo, contente, a gente não, a gente chorando, de tristeza deve ser. Quando a gente morre, todo mundo está chorando, triste, então com certeza a gente está rindo, contente, sem querer mais nada com o mundo”. Decerto se pode inferir, a partir deste livro póstumo, que Hermilo, acossado por problemas cardíacos, poderia não querer mais nada com o mundo quando dele se despediu. No bojo das comemorações do centenário do seu nascimento, contudo, há de se aprofundar as relações com sua obra e seu legado. Os ambulantes de Deus encabeça as novas edições que a Cepe Editora entrega às livrarias já neste mês de julho. O outro título é o volume que compila a produção de contos do autor nascido em Palmares, na Zona da Mata Sul. O general está pintando (1973), Sete dias a cavalo (1975) e As meninas do sobrado (1976), pela primeira vez reunidos em um único tomo, estão na proa das celebrações que a editora organizou. No dia 8, o Museu do Estado acolhe o lançamento das novas edições que serão, à luz do presente, reinterpretadas, como vislumbra o escritor Fernando Monteiro, no prefácio de Os ambulantes de Deus. Para ele, Hermilo “é daqueles autores cuja ausência mais cumpre ser lamentada, à medida que os tempos tornam-se especialmente difíceis num amplo sentido. Tudo que vivemos no Brasil da hora presente (de confronto político a se refletir fortemente no contexto sociocultural) faz de Hermilo uma grande lacuna entre as consciências


IMAGENS: REPRODUÇÃO

1 DOIS VOLUMES Capas das obras contendo a novela Os ambulantes de Deus e a compilação de contos

despertadas para o significado do momento atual e das quais muito dependerá a conciliação do país”. Ainda em julho, no 27º Festival de Inverno de Garanhuns, os livros serão debatidos durante a programação da Praça da Palavra. Em setembro, a terceira edição da Feira Nordestina do Livro – Fenelivro, evento realizado pela Companhia Editora de Pernambuco, também homenageará Hermilo. “Nesses eventos, divulgaremos os relançamentos da parte literária dele. Poderemos até relançar outros livros, a depender das negociações com os herdeiros. Ainda no segundo semestre, vamos promover o lançamento de todo o teatro de Hermilo Borba Filho, reunindo sua produção teatral em uma única publicação, e também de um livro sobre o Teatro Popular do Nordeste, importante instituição teatral da qual ele foi o principal encenador”, antecipa Ricardo Leitão, presidente da Cepe. A tarefa de escrever sobre o TPN coube ao pesquisador e professor Luís Augusto Reis, cuja produção acadêmica investiga as contribuições do dramaturgo para o teatro nacional – vide Fora da cena, no palco da modernidade: um estudo do pensamento teatral de Hermilo Borba Filho (2008), fruto da sua tese de doutorado, atualmente esgotado. Reis encarou o “desafio”, por sentir no convite da editora “uma missão”. “Tenho

O volume de contos reúne O general está pintando (1973), Sete dias a cavalo (1975) e As meninas do sobrado (1976) trabalhado muito na UFPE, onde hoje estou na Diretoria de Cultura da PróReitoria de Extensão e Cultura, porém, diante dos 100 anos do nascimento dele e de todos os meus estudos, percebi que tinha que escrever. Foi um mergulho intenso em centenas de documentos inéditos. É, aliás, um livro montado em cima de documentos, e talvez essa tinha sido a forma que encontrei para diminuir o efeito do meu envolvimento afetivo. Meus pais foram do TPN, cresci nesse universo”, conta Luís Reis. Boa parte desses documentos veio do acervo preservado por Leda Alves, viúva de Hermilo. “Ela guardou uma verdadeira fortuna da memória do TPN. Me passou duas malas cheias de itens, como borderôs de bilheteria dos espetáculos, os programas, as críticas, as cartas… É um livro de muita imagem, porque o TPN tinha essa preocupação do registro, mas é também um trabalho ensaístico. Há um pouco

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de interpretação minha sobre essa que considero a grande obra teatral de Hermilo. O TPN surge quando ele já tinha morado em São Paulo e circulado o mundo. É o grande projeto autoral dele para a cena brasileira”, detalha. O pesquisador considera o período entre 1966 e 1970 “a fase áurea” do TPN, quando se evidenciava a vanguarda do pensamento de Hermilo: “Ele montava uma Antígona, de Sófocles, com as pessoas vestidas de camisetas de malha e calça de brim. Era um leitor voraz de Artaud e Brecht e, portanto, sua cena era emancipada e seu projeto estético, bastante rigoroso. Quando o TPN abriu sua sede, na Avenida Conde de Boa Vista, os experimentos ficaram mais ousados, como a montagem de O inspetor, de Gogol. Uma outra camada interessante do livro é que, por meio das encenações do TPN, todas as tensões e contradições da cena política eram expostas. Havia muita controvérsia”. Segundo Luís Reis, as peças e a postura do TPN ofereciam um “conteúdo político inequívoco”. Nos anos 1970, o país vivia sob a égide da ditadura militar e o teatro era via de denúncia e resistência. Quatro décadas depois, os escritos ficcionais e a práxis dramatúrgica de um autor e encenador ressurgem para engrossar o cordão dos que não se envergam aos ventos hostis.


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DUBAI Megalomania árabe Com o edifício mais alto, o hotel mais luxuoso e o shopping mais visitado do mundo, a estrela dos Emirados Árabes Unidos mergulha cada vez mais no selvagem capitalismo TEXTO Guilherme Carréra FOTOS Clarissa Gomes

1 DUBAI MARINA

uma das áreas mais É nobres da cidade

Como numa ficção científica, quem se adentra em Dubai parece ganhar um crachá de figurante para a refilmagem de Blade runner, aquele clássico dos anos 1980 em que a arquitetura high-tech desenhava uma sociedade futurista. Ao contrário do filme de Ridley Scott, no entanto, a maior cidade dos Emirados Árabes Unidos nada tem de projeção. Está aqui e agora. O horizonte preenchido por edifícios espelhados, as vias urbanas emulando autoestradas e as estações de metrô em formato de nave espacial fazem parte da rotina diária de 2,7 milhões de pessoas. Além delas, 14,9 milhões de turistas-figurantes puseram os olhos sobre toda essa ostentação somente no ano passado – um recorde para a cidade, segundo a Organização Mundial do Turismo. A maioria deles aterrissa interessada em explorar o que há de superlativo. E não é pouco. O principal destino talvez sejam os 829,8 metros de altura do Burj Khalifa, o edifício mais alto do planeta. Inaugurado em 2010, demorou seis anos até que o projeto de Adrian Smith, o mesmo nome à frente do nova-iorquino One World Trade Center, fosse aberto para visitação. Os elevadores costumam levar 60 segundos até o 124º andar, onde dezenas de turistas competem

Toda essa grandiosidade relacionada à cidade está ligada à exploração do petróleo na região pela melhor selfie com o skyline de Dubai ao fundo. “Não se trata de ser o mais alto, mas de ter orgulho de ser o mais alto”, define a voz do alto-falante, enquanto o ascensor cumpre seu itinerário vertical. De volta ao solo, há conexão direta para o Dubai Mall, até 2013 o maior shopping center por área construída do mundo, quando o ultrapassou o New Century Global Center, em Chengdu, na China. Ainda assim, são impressionantes 1.124.000 m². Em 2016, o centro comercial recebeu nada menos que 80 milhões de visitantes, de acordo com Mohamed Alabbar, no comando do grupo Emaar Malls. “Somos o mais visitado destino de varejo e estilo”, ufana-se. O complexo de entretenimento oferta 22 salas de cinema, 120 restaurantes, 1,2 mil lojas e 14 mil vagas de estacionamento. Ostenta, ainda, um aquário de extravagantes dimensões: 10 milhões

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de litros de água para 33 mil animais marinhos de 300 espécies diferentes. Embora abrigue também um hotel de luxo com 244 suítes, o viajante em busca de exclusividade faz check-in mesmo em outra paragem. Conhecido como o único sete estrelas do mundo, o Burj Al Arab tem como menor suíte um quarto nada modesto de 169 m². O maior deles pode chegar a 780 m². Erguido em uma ilha artificial a 280 metros do continente, o hotel é destino certo de chineses com orçamento polpudo. De acordo com o Jumeirah Hotels & Resorts, responsável pelo empreendimento, no ano de 2011, as reservas feitas pelo mercado chinês chegaram a 25% da totalidade. No câmbio atual, uma diária na famosa Royal Suite sai em torno de R$ 80 mil. Toda essa megalomania tem origem em oito letras: petróleo. A história remonta aos anos 1960, quando a procura por jazidas era ainda uma obstinação. Em 1966, foram, enfim, localizadas, possibilitando as exportações já a partir de 1969. A década de 1970, portanto, colheu os frutos desse investimento. Com a formação dos Emirados Árabes Unidos em 1971, após a independência à Inglaterra ter sido declarada, Dubai logo se posicionou como a capital econômica, sendo Abu Dhabi a capital


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política. Os altos preços do petróleo propiciaram a modernização da cidade, o que atraiu, e segue atraindo, de investidores de terno e gravata a trabalhadores braçais do Oriente Médio. Uma olhadela nos dados demográficos ajuda a entender seu crescimento meteórico. Em 1977, a população, que em 1969 era de apenas 59 mil pessoas, chegou a 207 mil. Em 1990, bateu a casa do meio milhão. Hoje, o curioso é que a indústria petrolífera representa menos de 5% do PIB, já que o lucro de turismo, comércio, aviação e construção civil disparou nas últimas décadas. Apesar de o centro financeiro estar repleto de arranha-céus, ainda há muito onde se construir. E as multinacionais agradecem. A consequência da entrada do capital estrangeiro não apenas impulsionou o setor econômico, mas acabou também incitando a mistura de culturas que já se vê nas ruas de Dubai. Ali, a monarquia pode até ser absolutista, mas é o capitalismo que é selvagem. Muçulmanos devem seguir o riscado no que diz respeito a vestir burcas e túnicas, espelhando a tradição

Na margem norte do Dubai Creek, o universo árabe ganha mais força, com seus mercados de especiarias que os antecede. Por outro lado, aos estrangeiros fica permitido, por exemplo, tomar sol em trajes de banho em frente ao mar do Golfo Pérsico. Biquíni, no fim das contas, é sinônimo de dinheiro no caixa.

LADO B

Esse convívio calculado ajuda a decifrar um pouco esse lugar no qual tradição e modernidade se equilibram numa corda bamba em que, quase sempre, a segunda opção sai vitoriosa. Uma das formas de se livrar do tal crachá de figurante é rumar para as margens do Dubai Creek, uma laguna que faz as vezes de canal navegável. Em sua margem sul, a Dubai antiga respira. Distante do reduto hoteleiro,

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o centro histórico é formado por uma arquitetura de traçado árabe, onde mercados de rua não precisam rivalizar com shopping centers. Na margem norte do Dubai Creek, o universo árabe ganha ainda mais robustez. Os barquinhos de madeira que fazem a travessia são chamados de abras. Seu trajeto dura alguns minutos e custa apenas um dirham, a moeda local, equivalente a R$ 1. Do outro lado, as ruas vão ficando mais estreitas, os restaurantes, menos sofisticados, e o trânsito, mais caótico. O atrativo de Deira, como essa região é chamada, são os soukhs tradicionais: mercados de especiarias, tecidos e ouro. A ressalva, aqui, é o assédio dos vendedores. Depois da abordagem intrusiva, vem a fase da negociação. Um teatro de barganha que só termina quando o cliente ameaça ir embora sem comprar. A ida ao deserto de Rub’ al-Khali, por sua vez, deveria ser mais uma oportunidade para fugir do quê ocidental que impera na área urbana de Dubai. O passeio, em tese uma imersão na cultura beduína, pode frustrar quem esperava mais simplicidade ou


2 VISUAL

o topo do Burj D Khalifa, é possível ver os arranhacéus que cortam a cidade e também as áreas para novos empreendimentos

3 BURJ AL ARAB

Da praia avista-se o hotel, o único sete estrelas do mundo

4-5CENTRO HISTÓRICO

Distante do setor hoteleiro, é formado por uma arquitetura de traçado árabe

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menos afetação. Diariamente, por volta das 14h, uma manada de jipes 4x4 parte dos hotéis em direção às dunas no entorno da cidade. Passeio no dorso de camelos, jantar típico sob tendas e apresentação de dança fazem parte do pacote para gringo ver. A bebida alcoólica, inclusive, tem livre circulação nessas ocasiões – o que é uma exceção, já que em Dubai cerveja, uísque, vinho e afins só podem ser consumidos em bares e restaurantes localizados dentro de hotéis. A orla da praia, por exemplo, está recheada de quiosques. Mas o teor alcoólico é nulo. A mão de obra que possibilita o bate-estaca de arranha-céus, a condução dos jipes 4x4 e os garçons de bares sem cerveja vem, em sua maioria, de países como Bangladesh, Etiópia e Paquistão. Esses trabalhadores – a mídia internacional vem denunciando –, invariavelmente, sofrem com más condições de trabalho, sobretudo na construção civil. Quando perguntei se o taxista que me levava ao aeroporto era natural de Dubai, ouvi um “quem é daqui não dirige táxi, moço” como resposta.

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Prosperar, segundo o paquistanês, é missão quase impossível. A menos que você seja um executivo europeu ou um milionário indiano, dois dos perfis mais comuns nos bairros-bolha de Dubai. “Preciso renovar meu visto de trabalho a cada dois anos e isso custa caro. Sem falar que esse mesmo visto não me permite estudar. Ou seja,

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não tenho muito o que fazer.” Como a segurança é infinitamente superior a de seus países de origem, esses trabalhadores vão ficando – ainda que nas franjas desse capitalismo blade runner. Mas, afinal, quão futurista uma cidade pode se proclamar, quando parece ainda enfrentar problemas de um passado onipresente?


HALLINA BELTRÃO

CON TI NEN TE

ESPECIAL

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LITERATURA A voz hispânica da África TEXTO Rogerio Mendes

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Em geral, no Brasil,

quando pensamos em literatura africana, nos remetemos a uma produção em língua portuguesa, mais facilmente traduzível pela proximidade linguística, ou nos mantemos ignorantes quanto à pluralidade de vozes, idiomas, gêneros, temas e autores que ali, hoje, têm praticado variadas expressões literárias. Nesse contexto, é curioso também observar o nosso desinteresse quanto à produção literária africana de matriz hispânica, sobretudo, quando somos tão próximos territorialmente de países latino-americanos cuja literatura está relacionada – ontem e agora – com aquela em língua espanhola produzida na África – Marrocos, Guiné Equatorial, Saara Ocidental e Camarões. Aqui, a partir de textos introdutórios, artigo, entrevista e traduções inéditas no Brasil, realizadas por pesquisadores do assunto, pretendemos criar um território de aproximação com a literatura de matriz afro-hispânica e, assim, promover um espaço de intercâmbio com esse contexto ignorado e, ao mesmo tempo, tão próximo.


CON ESPECIAL TI NEN TE DIVULGAÇÃO

As relações políticas e sociais observadas entre os espaços hispanoamericanos, africanos e europeus possuem raízes históricas que reiteram a noção de colonialidade e configuram o corrente sistema geopolítico global. Do século XV aos dias de hoje, o legado colonial, para Walter Mignolo (2003), ambivalente conceito que também se apresenta como modernidade em perspectiva periférica, aperfeiçoou mecanismos de controle de trabalho; modos de produção, inclusive, de conhecimento; comunicação e linguagens fundamentados a partir de princípios e ambições ocidentais, tendose como base uma espécie de missão integradora universal. Desse modo, a partir de espaços de convivência interculturalizados, coabitados também por interesses em desacordo, geraramse racismos e negaram-se genealogias de povos independentes em detrimento de uma pretensa e absoluta razoabilidade de referências distantes. Desde então, a base étnica constitutiva na África e América Latina foi compreendida como otredad – a incapacidade de perceber o outro como igual – e sua genealogia, sistemas políticos e criativos questionados pelo desdobramento de uma complexidade colonial que persiste. A estratégia de instituir planos hegemônicos globalmente pelas grandes potências econômicas contribuíram para que espaços com pouca visibilidade política sentissem a necessidade de revisar, do ponto de vista epistemológico, experiências históricas no intuito de garantir soberania de vozes culturais marginalizadas. Acredita-se dessa forma que, preservando o patrimônio cosmogônico, individual e coletivo dessas culturas, seria possível otimizar as relações entre as diferenças e garantir a legitimação de particularidades em meio ao gradual processo de uniformização política e cultural planetária. Nessa perspectiva, as atenções voltam-se para os estudos dos discursos por serem mediadores de fronteiras e fluxos que sugerem e autorizam domínios políticos, inclusive, subjetivos. São mecanismos que incutem no tempo imaginação e sugestões valorativas como forma de ampliar, de maneira negativa, ocupações e/ou isolamentos. É nessa

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É revelante conhecer a existência de uma África de língua espanhola e os marcos que a unem à cultura latino-americana

circunstância que se reconhece o momento propício para (re)pensar o modus operandi das relações críticoeducativas que envolvem os estudos literários e, mais especificamente, dos estudos literários hispânicos atuais. As matrizes de natureza política e subjetiva, como a Literatura, por exemplo, na conjuntura global, também possuem raízes históricas que contribuem para compreender as tensões e distensões de um sujeito que não pode, em absoluto, dar conta isoladamente de sua totalidade. Por meio de narrativas, a noção de colonialidade – do imaginário – ainda se faz presente e, inevitavelmente, relaciona-se a uma diplomacia perversa que aproxima territórios e pessoas, mas incute violências ao não reconhecer,

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ou reconhecer parcialmente, valores e tradições culturais distintos. Tomando-se como referencial o interesse pela contribuição epistemológica e vivencial de “afrossaberes”, considerando-os de suma importância, principalmente se enunciados a partir de seus próprios sujeitos e produções, oportunizam-se valores e representações ignoradas por muitos. É dessa maneira que se tornam pertinentes questionamentos sobre a importância de revisar, e reavivar, histórica, epistemológica e vivencialmente, as disposições sobre o patrimônio crítico e criativo que tornam invisíveis autonomias de vozes e corpos independentes, entre América e África espanholas, que se interseccionam por similaridades em naturezas políticas, históricas e linguísticas. Vislumbrase, como objetivo, reconhecer nas aproximações estéticas e culturais entre os dois espaços, latino-americano e africano, a oportunidade de repensar-se e reconhecer-se a partir das próprias experiências históricas e difundir valores negligenciados por uma herança colonial comum em seus métodos e ações.


1 REPRESSÃO Há quase 50 anos, a população da Guiné Equatorial vive sob regime ditatorial, que conta com o suporte de potências internacionais

Para Boaventura de Sousa Santos (2014), a revisão de epistemologias modernas apresenta-se como desafio teórico para dar inteligibilidade a um mundo que, apesar de diverso, ainda possui dificuldades em articular-se como tal. A ideia também se legitima pela busca do reconhecimento de contribuições culturais africanas com vistas a dar uma maior visibilidade ao negro no processo de formação social e literária em âmbito de alcance local e global. Trata-se de um desafio ético, na medida em que se observa o silenciamento de ancestralidades por condutas politicamente questionáveis que até os dias de hoje esvaziam, gradativamente, a noção do particular em detrimento de vias que uniformizam o entendimento do diverso. Apesar de mais comuns em espaços de língua

portuguesa, os estudos afrodiaspóricos não se desenvolveram a contento no contexto hispânico no Brasil. Sim: existe uma literatura afro-hispano-zmericana. Sim: existe uma literatura hispano-africana e por razões semelhantes as que motivam a existência e valores de uma literatura afro-brasileira. É por estranhar o não investimento nas particularidades afrodescendentes no contexto de língua espanhola que se justifica essa discussão. É preciso reiterar a importância da África no processo civilizatório global como dado positivo; é igualmente importante observar que a noção de hispanismo não se restringe à bilateralidade América-Espanha; é relevante conhecer a existência de uma África de língua espanhola e os marcos que unem e nos separam como ferramenta de instrução e humanismo. Portanto, aprofundar as diretrizes de estudo sobre etnia e literatura, aqui, desse modo, ultrapassa o sentido reivindicatório sugerido pelos Estudos Culturais, quase sempre articulado a partir da perspectiva de subalternidade. A ideia aqui consiste em reabilitar, articular e incluir linguagens e representações como exercício democrático que, por meio de uma simetria dialógica, visa substituir a beligerância do descaso retórico ou mero isolamento ou, ainda, como prefere Enrique Dussel (1997), “práxis racional da violência”, por oportunidades e esclarecimentos interessados em arregimentar a ideia de civilização a partir da ampliação de redes que dão acesso ao (re)conhecimento das particularidades ignoradas do que se compreende como diverso.

Trecho

AS ESCURIDÕES DE TUAS MEMÓRIAS NEGRAS* TEXTO Donato Ndongo-Bidyogo TRADUÇÃO Rogério Mendes O livro Las tinieblas de tus memorias negras tem como narrador principal uma criança que, por meio de sua voz, mostra a realidade guinéequatoriana dos anos 1950, marcada pela fidelidade à tradição e ao clã e o regime colonial franquista, marcado pelo fascismo fundamentado em práticas nacionalistas e católicas. A contradição entre esses dois mundos justifica a angústia da protagonista. Trata-se do primeiro título de uma trilogia, Los hijos de la tribu, que conta a história de uma geração de guiné-equatorianos nascidos durante o período colonial espanhol. Os temas subsequentes que compõem a trilogia são a ditadura em Guiné Equatorial, na figura de Francisco Macías (1969-1979) (Los poderes de la tempestad) e a migração guinéu-africana para a Espanha (El metro). Detalhe importante é que o ritmo da narrativa da novela segue o ritmo adotado pela tradição oral africana. (…) seu tio Abeso queria que você fosse tão bom caçador quanto ele por prestares atenção às armadilhas que havia na floresta. Às vezes, você encontrava uma gineta presa, antílope ou porco-espinho. Das vezes em que te chamei para caçar com espingarda matamos tucanos, javalis e até mesmo elefantes e crocodilos. Você estava sempre atento com respiração e postura adequadas, lépido, entre as árvores. Quando o som dos disparos acontecia, só voltavas a aparecer quando os canos das espingardas deixavam de exalar o cheiro da pólvora. Você corria até a queda do esquilo voador ou esperava seu tio arrematar o javali com mais um tiro. Caminhavas às vezes todo o dia seguindo as pegadas gigantes de uma manada de elefantes entre a neblina com aparência de coelho de dorso manchado, parado aos olhos do seu tio por te notar tenso, atento a sons que gradualmente tornavam-se perceptíveis no mesmo tempo em que percebias muitas vezes uma serpente de chifres perseguindo nossos movimentos. Você parecia não se cansar ou sentir medo porque além de você gostar desses passeios seu tio te dava segurança. Teu Tio Abeso foi maior do que o seu pai; o sucessor da tradição familiar; o líder natural da nossa tribo e linhagem. Eu contei a você como Motulu Mbenga, o seu bisavô, estabeleceu-se e fundou a cidade onde agora você vive com a proteção totêmica dos animais, como o jacaré, que o ajudou a atravessar o avô rio Ntem, bem antes do seu pai, ao ser derrotado pelos conquistadores franceses, fugir para o sul? O jacaré era, talvez, o mais importante dos tabus, já que protegia os chefes, anciãos, crianças e mulheres grávidas de sua linhagem das maquinações dos inimigos bruxos e espíritos perversos. Foi protetor zeloso e intangível dos indivíduos e comunidades descendentes de Motulu Mbenga. O jacaré tinha que ser respeitado, dizia Tio Abeso, e não deveria ser tocado. Seriam condenados à morte expiatória os descendentes de Motulu Mbenga que ferissem ou matassem, mesmo que acidentalmente, um jacaré. Você fazia perguntas ingênuas do tipo: “e se o jacaré atacasse?” O Tio Abeso nunca disse que um jacaré atacou um descendente de Motulu Mbenga porque se isso acontecesse era sinal de mau presságio e grandes males poderiam acontecer na Comunidade. Daí, talvez, o motivo de tantos ataques aos homens brancos depois de sua chegada. * Las tinieblas de tu memoria negra, de Donato Ndongo-Bidyogo, é o primeiro romance africano de língua espanhola que está sendo traduzido em língua portuguesa por uma equipe de tradutores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), da Universidade de Brasília (UnB) e da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). O trecho aqui traduzido pelo professor Rogério Mendes Coelho (UFRN) encontra-se nas páginas 89-90 da edição da Fundamentos (Madrid, 1987).

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CON ESPECIAL TI NEN TE HALLINA BELTRÃO

CONTEXTO A África de língua espanhola e suas literaturas TEXTO Amarino Queiroz

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Dentre os idiomas europeus que se

apresentam como línguas oficiais, de educação e de expressão literária no contexto africano, ou seja, o francês, o inglês, o espanhol e o português, por certo o castelhano se perfila como o mais invisibilizado de todos. Em sua ocorrência na África, este idioma ibérico está concentrado em áreas descontínuas de parte da costa atlântica setentrional do continente, de características marcadamente arábicas, berberes e francesas (Marrocos, Saara Ocidental, Argélia) e num pequeno enclave da zona litorânea ao sul do deserto do Saara, de forte influência banta, correspondente ao território da República da Guiné Equatorial. Não obstante, a considerável ascensão da escrita literária produzida originalmente em espanhol por autores e autoras africanos vem despertando especial interesse em alguns setores das críticas hispanista e africanista ao redor do mundo.


Nas antigas possessões espanholas das Canárias, Ceuta e Melilha, ainda que suas expressões literárias sejam enquadradas e assimiladas como “literatura espanhola”, encontrando exemplos em Maribel Lacave, das Canárias, ou em Mohamed Toufali, de Melilha. Em alguns territórios afroarábico-francófonos do Marrocos e região de Tinduf, Argélia, sede dos acampamentos para refugiados políticos do Saara Ocidental: apresentam prosa e poesia fortemente influenciadas pela tradição árabe oral e escrita. Nos dois países oficialmente hispanófonos do continente (Saara Ocidental e Guiné Equatorial), onde é flagrante a convivência e a interação com as literaturas orais e escritas em línguas vernáculas (árabe hassania, no caso do Saara, e fang, bisio, bubi, crioulo anobonês, no caso da Guiné Equatorial). Em algumas áreas subsaarianas bantófonas/francófonas/anglófonas (Camarões), nas quais, por diversos motivos, é ascendente a utilização do castelhano como língua original de criação na prosa ficcional, na poesia e no ensaio.

DISPOSIÇÃO DIASPÓRICA De acordo com o crítico de literatura Mbaré Ngom (2007), a expressão “literaturas africanas de língua espanhola” daria conta do conjunto representado pelos textos literários africanos originalmente escritos e veiculados em castelhano. Em livre interpretação, sugeriríamos que o conceito aponta para um conjunto ainda mais amplo, que compreende textos literários africanos originalmente escritos e veiculados em língua castelhana, mas que, ao ultrapassar os espaços convencionados das fronteiras nacionais ou das oficialidades linguísticas, avança e interage por territórios culturais diversos, assim identificados:

DISPOSIÇÃO INTERNA

Compreende manifestações circunscritas às fronteiras territoriais do continente africano.

Agrupa regiões do continente americano que têm em comum o passado colonial espanhol e a migração forçada de populações africanas escravizadas. Seus textos tematizam ou referenciam matrizes africanas, mesclando elementos da oralidade tradicional ou contemporânea com o letramento em língua espanhola. América Central e Caribe oficialmente hispanófono, com nomes como Nicolás Guillén, Georgina Herrera e Nancy Morejón, em Cuba; Carlos Wilson “Cubena” no Panamá; Sherazada Vicioso, na República Dominicana, ou Quince Duncan e Shirley Campbell, na Costa Rica. América do Sul, com Manuel Zapata Olivella e Mary Gureso, na Colômbia; Luz Chiriboga, no Equador; Nicomedes Santa Cruz, Lucía Charún Illescas e Mónica Carrillo, no Peru, ou Virginia Brindis de Salas e Cristina Rodríguez Cabral, no Uruguai.

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POEMAS TRADUZIDOS TRADUÇÃO Amarino Queiroz Metade vinho, metade água. Metade ceiba, metade álamo. Metade espiga, metade cana. Metade argola de escravo, metade escudo de armas. (Os mulatos – Raquel Ilombe, Guiné Equatorial) Tive sede, e os teus dedos me serviram o orvalho. Tive fome, de pão, de paz, e os teus cantos me saciaram. Com a capa das estrelas agasalhaste a noite gélida, aproximaste a lua e a brisa marinha. Espírito, Alegria, esperança, como compensar-te, diz-me, como superar a magia. (Sarauita – Zahra Hasnaui, Saara Ocidental) Um minuto de silêncio vale mais do que um século de aplausos. Silêncio. Fechas os olhos e vês passar diante de ti séculos de história carregados de piadas que os homens fizeram. Uns que passaram por reis infelizes, Outros por felizes comerciantes, Todos ostentam a inocente tristeza De homens que não merecem o que tiveram. Fechas os olhos e com isso compreendes que a história pretende uma só coisa: ainda que não seja fácil tarefa, tornar o culpado inocente e sem pecado o que cometeu uma sorte de horrores. E que os bons sejam enterrados vivos para que não pequem. (Silêncio, silêncio – Juan Tomás Ávila Laurel, Guiné Equatorial)

DISPOSIÇÃO PENINSULAR

Reúne escritores e escritoras de diferentes nacionalidades africanas que, por razões de ordem pessoal, política ou profissional estabeleceram no território espanhol a sua plataforma de atuação. Dentre estes, Landry Miampika, do Congo; Abdoulaye Bilal Traoré, do


CON ESPECIAL TI NEN TE DIVULGAÇÃO

POEMAS TRADUZIDOS TRADUÇÃO Amarino Queiroz A minha voz é de Eva pecadora a mesma que alentou minha flecha de amazona e chorou solidões do castelo cativa. A selva escutou o ressoar dos meus tambores e os céus os meus gritos na fogueira. Lutei contra o francês em Aragão e contra a Espanha na Venezuela sou Penélope fiel e Mariana Pineda. Lutei em Marrocos e em Argel, segui Dolores por cárceres e exílios e do Vietnã trago ainda cicatrizes abertas. Hiroshima me viu regar seu solo e o Saara bordar sua bandeira. Me buscaram sem cessar na Argentina, do Uruguai chorei torturas e tristezas e no Chile, posta de pé, cantava com Violeta sou Juana, Alfonsina e sou Gabriela o deserto conhece as minhas noites sem fronteiras e o Caribe os dias que andei pela serra. Sou a mulher a mulher que pariu os filhos todos que povoam o planeta. Sou deusa que caminha buscando paraísos na Terra sempre amando sem descanso sempre crescendo sem trégua. (Sinais de identidade – Maribel Lacave, Canárias) Um beijo, somente um beijo, separa a boca da África dos lábios da Europa.

1

1 ARGÉLIA Em acampamentos para refugiados políticos do Saara Ocidental, a literatura apresenta influência da tradição oral e escrita árabe

(Um beijo – Limam Boisha, Saara Ocidental)

Senegal; Boni Ofogo e Inongo ViMakomé, dos Camarões, além de vários autores saarauis e equato-guineenses. Embora o governo espanhol se refira às cidades de Ceuta e Melilha e ao Arquipélago das Canárias na condição de comunidades autonômicas, a situação política dos três territórios apresenta-se delicada. Existem organizações como o Movimiento por la Autodeterminación e Independencia del Archipiélago Canario – MPAIAC, que defendem textualmente a

autonomia político-administrativa das ilhas, considerando-as colônias da Espanha a oeste da África. Esses segmentos pela independência encontram, porém, dentro do próprio território canário, setores que tanto defendem a manutenção do atual status político-administrativo como negam a africanidade das ilhas. Já as regiões de Ceuta e Melilha são reivindicadas pelo governo marroquino e por grupos que apoiam sua reanexação àquele país norte-africano.

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Em Tinduf, Argélia, a presença do castelhano se faz sentir na especial condição de idioma de resistência, tanto através da comunicação diária e de sua adoção no ensino como pelo seu cultivo na criação musical e literária. De acordo com Francisco Cenamor (2008), no mundo árabe, o saaraui é conhecido como um povo de poetas e sua atividade apresenta, em síntese, três influências principais: a tradição oral fortemente apegada à natureza e às vivências de seu país, a poesia em castelhano da Espanha e da América e a luta pela sua autonomia e autodeterminação. A Generación de La Amistad constitui um dos mais ativos grupamentos de escritores reunidos em torno da causa saaraui no exílio. Compõem esse coletivo nomes como Limam Boisha, Chejdan Mahmud, Ali Salem Iselmu, Mohamed Salem, Bahia Awah, Luali Lehsan Salama, Saleh Abdalahi ou Zahra Hasnaui. Divididos, pois, entre os


FRAGMENTOS Um camaronês escreve em espanhol por capricho, por paixão pela língua castelhana e também para comunicar, para mostrar ao mundo que se pode escrever em qualquer idioma. Hoje, existe nos Camarões mais alunos que estudam o espanhol que pessoas que falam castelhano em toda a Guiné Equatorial. Logo se falará do boom da literatura hispano-africana como se falou um dia na Espanha e na Europa do boom da literatura hispanoamericana. Cada vez somos mais os que desde a África escrevemos em espanhol e também há muitos africanos imigrantes na Espanha que começaram a escrever. É somente uma questão de tempo. (Fragmento de entrevista, Mbol Nang, dos Camarões) Emèno: Te escrevo estas linhas quando estou chegando a essa idade na qual, em nossa cultura e realidade negra africana, o homem já caminha obrigado ao seu encontro com os antepassados. Não posso te dizer a minha idade porque ignoro os anos que tenho. Ali não nos fixamos neles. Não existem. Nossa idade é o tempo vivido, os acontecimentos sucedidos, as batalhas travadas, as experiências acumuladas… Diferentemente dos nativos daqui, nós não vamos ao encontro do tempo, esperamos que seja ele que venha a nós. E assim se passa, chega, nos invade, nos preenche, depois nos arrasta. (…)

mundos arábico-africano e europeuibérico, além de desenvolverem intensa relação com o universo hispano-americano, muitos dos autores saarauis refletem, também ao longo de suas obras, uma multiplicidade de vivências culturais que, por sua vez, reivindicam, real e simbolicamente, a ampliação desses espaços. O caráter híbrido flagrado através das expressões literárias guinéuequatorianas alimenta também as relações que envolvem, ao mesmo tempo, e numa ordem bastante peculiar, a relação dialógica entre o oral e o escrito, o tradicional e o contemporâneo, o hispânico e o africano. O escritor e crítico Donato Ndongo (2006) chama a atenção para o fato de que o universo literário em língua espanhola começaria a encontrar, especificamente nessa produção africana da Guiné Equatorial, a convergência para o terceiro vértice de um eixo que

configura, na atualidade, a geografia linguística de um idioma oficialmente partilhado por europeus, americanos e africanos. Isso se não quisermos considerar, diga-se de passagem, a expressão asiática conformada na vasta e igualmente ignorada literatura filipina em espanhol. A aposta de Ndongo-Bidyogo é a de que a literatura guinéu-equatoriana cumprirá o seu papel na tarefa de revitalizar a língua e a cultura em língua espanhola, uma vez que tanto uma como a outra já não poderão ser compreendidas, se as dissociarmos do aporte afro. Ainda que muitos dos autores camaronenses sejam literariamente bilíngues ou trilíngues, torna-se cada vez mais consistente a presença de ensaístas (Monique Nomo Ngamba, Sosthène Onomo-Abena, MichelYves Essissima, Wilfried Mvondo) e de poetas e ficcionistas (Robert Marie Johlio, Alain Lawo-Sukam, Romuald-

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(Tempos de escuridão (Carta a Emèno) – fragmento – Inongo Vi-Makomé, dos Camarões)

Achille Mahop Ma Mahop, Germain Metanmo, Michel Feugain, Guy Merlín Tadoun, Marcel Kemadjou, Tikum Mbah Azonga) que escrevem textos originais em castelhano e ao mesmo tempo transitam por gêneros e sistemas literários e linguísticos diferenciados, acumulando, assim, uma expressão significativamente plural. Essa escrita, caracterizada inicialmente pelo testemunho da emigração e do exílio, vem se ampliando tematicamente e envolvendo escritores das mais variadas procedências, entre os quais poderíamos destacar Agnès Agbotón, do Benim; Jammet Kalilu, de Gâmbia; Sidi Seck, do Senegal; Sukeina Taleb, Ebnu e Fatma Ghalia, do Saara Ocidental; María Nsúe, Remei Sipi e


CON ESPECIAL TI NEN TE Justo Bolekia, da Guiné Equatorial; Mohamed Rekab, Said Jedidi e Mohamed Sibari, do Marrocos; ou, ainda, Mbol Nang e Céline Clémence Magnéché Ndé, dos Camarões. Nessa trajetória, evidencia-se o caráter polifônico de grande parte dos discursos identitários e culturais, formatados muitas vezes a partir de experiências literárias à margem, ainda que produzidas em contextos onde também a língua castelhana comparece como protagonista, lado a lado com outros idiomas de literatura. Por esse motivo, a visibilidade dos textos poéticos, ficcionais e ensaísticos africanos em língua castelhana fazse tanto oportuna como necessária e inevitável, como bem demonstra o contexto americano oficialmente falante de espanhol, cujos exercícios criativos tematizam ou referenciam matrizes abertamente africanas. Tanto o território nacional espanhol como seu panorama literário vêm sendo ocupados gradualmente por um segmento de cidadãos escritores e escritoras de procedência variada, não se limitando àqueles oriundos das antigas colônias e protetorados espanhóis na África. Toda essa movimentação aliada ao interesse de um curioso público leitor passou a chamar a atenção do mercado editorial, o que teria motivado também a criação, por parte do Instituto Cervantes, de uma biblioteca africana que veicula amostras de obras originais assinadas em castelhano por esses autores e autoras.

É sobretudo a partir do exílio na Espanha que se desenvolve praticamente toda a atual literatura hispanosaaraui e onde se encontra sediada uma de suas principais plataformas, a anteriormente referida Generación de la Amistad Saharaui. É também a partir da antiga metrópole colonial que os guinéuequatorianos vêm abrindo um expressivo espaço literário, no qual Donato Ndongo e Juan Tomás Ávila Laurel se perfilam, entre outros, com os conterrâneos Trifonia Melibea Obono Ntutumu e Francisco Zamora Loboch. As trajetórias literárias hispano-africanas e afrohispânicas tem revelado escritores e escritoras hispanógrafos atuantes nos diversos quadrantes do mundo contemporâneo. O exercício de transversalidade cultural e linguística que caracteriza o conjunto sinaliza, individual e/ou coletivamente, distintas motivações estéticas e faz emergir, de forma cada vez mais consubstanciada, uma cartografia cultural que tanto aproxima como distingue essas experiências daquelas operadas a partir da realidade peninsular e mesmo da hispanoamericana. Sob essa perspectiva de abertura e ampliação dos caminhos já trilhados, faz-se necessário que o conhecimento e o estudo das produções literárias africanas de língua espanhola não permaneçam relegados à obscuridade e ocupem, efetivamente, seu merecido lugar junto ao público leitor brasileiro.

Perfis

DOZE AUTORES PARA

AGNÈS AGBOTON

Nascida em Porto Novo, em 1960, ano da independência do território do Daomé, atual República do Benim. Após passagem pela Costa do Marfim, onde prossegue com seus estudos, transfere-se para Barcelona em 1978. Contista e poeta, adaptou relatos tradicionais africanos à língua castelhana e catalã. Entre seus livros encontramse Na mitón. La mujer en los cuentos y leyendas africanos (2004); Eté utú (cuentos de tradición oral) e De por qué en África las cosas son lo que son (2009).

JUSTO BOLEKIA BOLEKA

Natural de Santiago de Baney, Bioko, Guiné Equatorial. Doutor em Filologia Moderna pela Universidade Complutense, é catedrático de Filologia Francesa na Universidade de Salamanca. Poeta, crítico literário e mediador cultural, é um dos poucos estudiosos da língua e literatura bubi e especialista em linguística africana. Vive em Barcelona.

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CÉLINE CLÉMENCE MAGNECHÉ NDÉ

Nasceu em Bamenda, Camarões, em 1967. É licenciada em Língua e Literatura e doutora em Filologia Hispânica. Atualmente, é professora de Língua e Literatura Espanhola e Africana na Universidad de Dschang, tendo publicado artigos dedicados especialmente aos contos e à literatura oral africanos em revistas especializadas, bem como compilação de recontos orais camaroneses em castelhano.

LAUNDRY-WILFRID MIAMPIKA

Nascido no Congo-Brazaville (1966), é doutor em Filologia Hispânica pela Universidad de Alcalá de Henares (ESP), onde leciona. Licenciado em Filologia Hispânica pela Universidade de Havana, cursou Estudios Hispánicos y Latinoamericanos pela Universidade de Paris 8-Saint Denis. Ensaísta, publicou Voces africanas (2000) e Transculturación y poscolonialismo en el Caribe (2005), e coeditou De Guinea Ecuatorial a las literaturas hispanoafricanas (2010) e La palabra y la memoria: Guinea Ecuatorial 25 años después (2010).


LER A ÁFRICA HISPÂNICA

DONATO NDONGO

Natural de Alén-Efak, Niefang, Guiné Equatorial. Jornalista, escritor e político, é um dos mais reconhecidos escritores africanos de língua espanhola. Foi diretor de centros culturais voltados à cultura africana em Malabo e Murcia. Foi professor convidado na Universidade de Missouri e UNAB. Autor de publicações sobre literatura, política e cultura guinéu-equatoriana. Atualmente, vive em Madrid.

MARÍA NSÚE ANGÜE

Uma das escritoras mais reconhecidas da Guiné Equatorial, María Nsúe Angüe nasceu em Ebebeyín, em 1945. Autora do primeiro romance escrito por uma mulher, publicado em seu país (Ekomo, 1980), de sua carreira também fazem parte o jornalismo, a poesia e a prosa (contos), em que os temas mais frequentes são a opressão da mulher e a sociedade africana pós-colonial, muito inspirada na literatura popular da etnia fang.

INMACULADA DÍAZ NARBONA

INONGO VI-MAKOMÉ

RAQUEL ILOMBE

REMEI SIPI

Professora titular de Filologia Francesa da Universidade de Cádiz onde ensina Literatura Africana. É importante investigadora, tradutora e compiladora dedicada à iteratura da África francófona e hispanófona. Centra sua investigação nos estudos pós-coloniais e de gênero com publicações em diversos países (Espanha, França, Canadá, Inglaterra, Alemanhã etc.). Diretora da Revista Francofonía (Universidade de Cádiz).

Pseudônimo utilizado por Raquel del Pozo Epita, nascida na Guiné Equatorial (1939) e falecida em Madri (1992). Poeta, prosadora, cantora e pintora, manteve em toda a sua trajetória uma grande atividade cultural, na qual se destacaram os recitais de poesia e música, além de exposições de sua obra pictórica. Foi a autora do primeiro livro individual de autoria feminina na Guiné Equatorial (Ceiba, 1978) e do primeiro livro de contos dedicado à infância e à juventude em seu país (Leyendas guineanas, 1981).

Natural de Lobé, Camarões, viveu sua infância e juventude em Malabo, Guiné Equatorial. Abandonou a medicina para dedicar-se ao trabalho de ensaísta, novelista, dramaturgo e narrador de contos africanos, sendo um dos poucos hispano-africanos a dedicar-se à literatura infantil. Vive na Espanha, onde também é colunista do jornal La Vanguardia, escrevendo sobre imigração africana.

Natural de Rebola, ilha de Bioko, Guiné Equatorial. Ativista e escritora especialista em temas de mulheres africanas e mulheres imigrantes. É presidente da Associação de Mulheres Africanas E’Waiso Ipola, responsável por defender os direitos das mulheres africanas. Dedica-se à narrativa de contos tradicionais africanos. Vive em Barcelona.

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JUAN TOMÁS AVILA LAUREL

Nascido na Guiné Equatorial (1966), sua obra caracteriza-se por um compromisso crítico com a realidade social, política e econômica. Essas preocupações traduzem-se numa consciência histórica sobre a Guiné Equatorial, em particular, e sobre a África, em geral. Tem mais de uma dezena de livros publicados, entre estes, os romances e livros de relatos curtos La carga, El desmayo de Judas, Nadie tiene buena fama en este país e Cuentos crudos. Autor também de ensaio, poesia e teatro.

ZAHRA HASNAUI

Natural de El Aaiún, Saara Ocidental. Professora e tradutora pela Universidade Complutense, é uma das responsáveis por constituir o grupo de escritores do Saara Ocidental, conhecido como Generación de la Amistad, em prol da causa de emancipação cultural saaraui (o Saara Ocidental é uma região que tenta emancipar-se do Marrocos e que atualmente se encontra em guerra civil por essa razão. Região de língua espanhola, possui uma literatura profícua, que desperta cada vez mais interesse no contexto das hispanidades). Zahra atualmente vive na Espanha.


CON ESPECIAL TI NEN TE ANA BRIGIDA/RA/DIVULGAÇÃO

Entrevista

JUAN TOMÁS ÁVILA LAUREL “MEU PROJETO É SOBREVIVER. DIA APÓS DIA” TEXTO Rogério Mendes

Juan Tomás Ávila Laurel é,

possivelmente, uma das mais representativas vozes políticas e literárias da África de língua espanhola. Natural da Guiné Equatorial, é respeitado escritor, dramaturgo, conferencista internacional e um dos mais ferrenhos críticos a uma das mais sangrentas e longevas ditaduras africanas, conduzida por Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, desde os anos 1970, há quase 50 anos, portanto. Colônia Ibérica de 1471 a 1968, e regida por ditaduras oligárquicas desde então, a Guiné Equatorial é o país com o maior PIB per capita do continente africano, 69º do mundo, em razão de ser o terceiro maior produtor de petróleo da África Subsariana; entretanto, ocupa a 144ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano (ONU, 2014). Menos da metade da população tem acesso à água potável e 20% das crianças morrem antes de completar cinco anos. Entre golpes institucionais e com apoio e sustentação política internacional das maiores potências econômicas do globo, incluindo-se o Brasil, o regime totalitário de Mbasogo encontra em Juan Tomás Ávila Laurel um dos seus maiores antagonistas. Razão pela qual é perseguido político até os dias correntes. Conhecido na comunidade acadêmica global como “Valiente”, é reconhecido por equilibrar tradição ancestral e política global em seu projeto estético-literário. Algo que pode ser visto em alguns títulos de sua vasta obra, tais como: La carga (Editorial Palmart, 1999, novela); Historia intima de la humanidad (Editorial Pángola, 2000, poemário); Áwala cu sangui (Editorial Pángola, 2000, relatos); El fracaso de las sombras (Centro Cultural Español de Malabo, 2004, teatro); Cuentos crudos (Centro Cultural

Español de Malabo, Contos, 2008); Diccionário basico de la dictadura guineana (Ceiba Ediciones, 2011, ensaios), além de sua recente novela afrofuturista Panga Rilene (Calambur, 2016). Esta entrevista foi concedida por e-mail por Juan Tomás Ávila Laurel a partir de alguma cidade africana. CONTINENTE Você é um escritor guinéuequatoriano, africano, alfabetizado e educado em língua espanhola, o que é natural, relevando-se o contexto histórico de seu país, apesar de muitos não suporem que existam na África hispanofalantes. Alguns o consideram um escritor africano; outros, um escritor hispânico e ainda há aqueles que o consideram, acima de tudo, um escritor. Quais as implicações da necessidade do enquadramento acadêmico, político e ideológico pelos críticos para um escritor que prioriza, sobretudo, o humanismo e a liberdade? JUAN TOMÁS ÁVILA LAUREL O que se pode passar a um autor com minhas características, que responde a esses nomes e sobrenomes, é o sentimento de estar em busca de uma tradição literária próxima dos seus leitores.

“Na Guiné Equatorial, a construção de uma tradição literária depende dos testemunhos de sua própria comunidade” Isso se dá porque venho de zonas geográficas onde os aspectos artísticos estão vinculados à oralidade. O que pode ocorrer a um escritor nessas condições é que ele seja visto como uma “ave rara”. Na Guiné Equatorial, a construção ou o estabelecimento de uma tradição literária depende dos testemunhos de sua própria comunidade. É necessário dizê-lo, porque eu poderia ser confundido com escritores de outras margens da hispanidade cujas referências são distintas. As comunidades das margens sabem que eu sou um “antagonista”. Alguém cujas credenciais têm que se olhar com “lupa inglesa” (Laurel usa o termo ironicamente, para citar o esforço que o Ocidente faria para reconhecer uma literatura marginal/periférica a partir de seus

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valores e prerrogativas). Já se sabe que o que é dito por mim não carece de maiores explicações. Se não houvesse nascido numa zona que sofreu com um processo de colonização seguido de uma ditadura, que viveu as arestas mais ásperas de ambas as situações, sobre a minha vida e obra não haveria o que falar. Não faz sentido um escritor originário de um lugar em que pesem as condições descritas apenas limitar-se a flertar com as musas. É preciso dar um passo à frente. Muitas vezes nos deparamos com pessoas ou escritores bem-instruídos, mas que não têm referência alguma do lugar de sua procedência, como se a geografia e a história tivessem sido inventadas hoje. É preciso saber se seus potenciais leitores passaram pelo inferno.


isso aconteça, e isso deveria chamar a atenção dos intelectuais dessas zonas. Não o farão os políticos, porque há muito tempo se sabe que os seus objetivos consistem em não resolver nenhuma questão pública. Definitivamente, a realidade dos países latino-americanos e africanos que sofreram a colonização ainda alimenta a ideia de que se desenvolvam com um tempo histórico que não os pertence. Impõe-se a busca de um caminho próprio, pois está claro que não pode haver democracia, autogoverno ou liberdade quando há um grupo estável que está roubando os demais. Não se pode constituir comunidade solvente se a corrupção interfere. África e América Latina têm suas culpas ao não saberem identificar e eliminar os elementos que causam seus atrasos. Esqueci de dizer que a relação entre América Latina e África deveria servir para que as elites políticas, principalmente de toda América Latina, soubessem que não precisam ir à distante África para se encontrarem com negros que ignoram e marginalizam. Os países latino-americanos poderiam responder que os mesmos governantes africanos tampouco se preocupam com seus negros.

CONTINENTE América Latina e África são regiões que possuem histórias semelhantes. São regiões cujos povos sofreram traumas civilizatórios desde os tempos coloniais e sentem, até hoje, dificuldades para consolidar autonomias políticas e governos soberanos. Nossos líderes, quase sempre, estão alinhados em projetos e modelos políticos com prioridades distantes da realidade da população. O significado prático de ideias como democracia e liberdade muitas vezes nos parecem inviáveis. Por quê? Qual a responsabilidade ou importância da América Latina e África no atual contexto global? JUAN TOMÁS ÁVILA LAUREL África e América Latina sofreram com a colonização e a implementação dos ambiciosos planos das potências europeias quase ao mesmo tempo. A irrupção dessas potências interrompeu o processo histórico dessas regiões,

instaurando um sistema produtivo para seus próprios benefícios. Houve um período breve de reflexão em que se colocou em dúvida essa irrupção, e foi o que se chamou de independência, mas foi um processo emancipatório que apenas se apresenta como nome, sem conteúdo real, porque a produção de riqueza para o benefício dos herdeiros das potências coloniais não cessou. Na África, dá-se a impressão de que o poder está nas mãos africanas, mas permanece a apropriação dos recursos pelas elites, que são lacaios das mesmas potências. Evidentemente, a existência dessas potências não exime as elites africanas de sua culpa, mas é importante destacar o paradoxo que está implícito: a esperança de que as antigas potências sejam parte da solução. É impossível que

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CONTINENTE Para nós, na América Latina, a ideia de hispanismo, ao menos relacionado às Letras, em contexto político e acadêmico, sempre priorizou uma polarização entre Espanha e América hispânica. Sabemos que essa circunstância não corresponde à realidade. Existe uma literatura de língua espanhola consolidada e reconhecida também na África e Ásia, sem esquecermos os fenômenos fronteiriços spanglish, portunhol, chicano e suas respectivas literaturas. Qual a sua análise, do ponto de vista político, artístico e linguístico sobre a relevância da língua espanhola como expressão no contexto global? JUAN TOMÁS ÁVILA LAUREL Parece que, quando um grupo é marginalizado, sente dificuldades de identificar os elementos para encontrar um caminho ou uma via alternativa para suas questões. Deixe-me colocar um exemplo de outro contexto: é estranho observar milhares de nigerianos vidrados na Liga Inglesa de Futebol, enquanto outros milhares de africanos que poderiam e gostariam de jogar futebol para os seus muitas vezes são impossibilitados de fazê-lo. O necessário, na circunstância


CON ESPECIAL TI NEN TE DIVULGAÇÃO

em que perguntas, é tentar entender os desdobramentos das dinâmicas populacionais e a relutância em reconhecer os valores da periferia. Em todo caso, essa periferia deve persistir, pois, em outras áreas do conhecimento, ocorreu que o inicialmente preterido pelas elites passou depois a ser reconhecido como essência em suas respectivas artes. Acredito que um autor tem mais condições para triunfar se tem apoio e reconhecimento local, ainda que os exemplos do contrário sejam abundantes. Acredito, ainda, que – à parte das expressões locais, sempre enriquecedoras – as literaturas da periferia têm que ser rigorosas com a norma, pois sei que apenas o conhecimento das normas básicas de uma arte pode romper para, depois, conseguir uma heterodoxia exitosa. Isso acontece tanto com a língua quanto com os pressupostos teóricos. Uma coisa que o mundo hispânico faz mal é render-se à aparente superioridade do mundo cultural anglo-saxão quando, em contrapartida, parte dessa hispanidade, que não é emergente, é também ignorada. Uma parte das populações do mundo latino-americano, e muitos africanos, gostariam de ser anglofalantes. Trata-se de um assunto que deveria fazer refletir as comunidades nas que se produz essa deserção cultural. CONTINENTE A Guiné Equatorial destacase, também, por sua literatura, já que no país há grandes escritores e intelectuais, dentre os quais poderíamos elencar Donato Ndongo, Justo Bolekia Boleka, María Nsué Agüe, Remei Sipi, Juan Balboa Doneke. É comum observá-los como destacados catedráticos e conferencistas em diversas universidades, inclusive, na Europa e nos Estados Unidos. As obras desses autores são cada vez mais reconhecidas. Porém, percebe-se que há muitos desses intelectuais que não vivem na Guiné Equatorial, ainda que se observe outros vivendo lá e os que vão e voltam. Podemos dizer que os comprometimentos com as realidades do país relativizam-se, na medida em que esses fluxos acontecem? Podemos pensar em narrativas distintas para essas diferentes circunstâncias? JUAN TOMÁS ÁVILA LAUREL Bom, uma parte disso já foi comentada. Existe realmente uma necessidade imperante em encontrar acolhida e também reconhecimento fora da

Guiné Equatorial. Deve-se considerar o caráter oral da comunidade guineana e o fato de uma das caraterísticas do regime político do país ser a predileção pela incultura. Se os cargos diretivos e políticos estivessem em mãos de pessoas com formação adequada, não haveria espaço para a legião de analfabetos que controla o poder nacional. Então, o que acontece na Guiné Equatorial é que muitos escrevem e, além disso, lutam contra a opressão. Isso faz com que escritores peçam permissão às musas para fazer ouvir sua voz. Além do mais, já sabem que, se não falassem da literatura de seu país, dificilmente encontrariam comunidade que pudesse acolhê-los. Finalmente, há de se saber que Guiné é uma ditadura, e a sobrevivência é um dos fatores determinantes da vida humana. É normal que uns, os que vivem no país, sintam que, se falarem mais do que devem, podem acabar na miséria. Para mim, o que é pior é não apenas não dizer nada sobre a

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situação, mas colocar-se à disposição do detentor do poder. Ou seja, se os que calam já outorgam, imaginem os que falam a favor dos criminosos? Existe nesse assunto muita confusão. Ante a situação de opressão, o que se exige de um escritor não é que altere o conteúdo de sua produção, adaptando-a a supostos reivindicativos, mas comprometer-se com o que de fato acontece, como outros atores, aos que ninguém exige que alterem ou produzam conteúdos que podem não estar ao alcance. É um ato de traição não dar a cara pelos teus, se tua voz pode chegar mais além que a deles. CONTINENTE Em 2011, você fez uma greve de fome com o objetivo de chamar a atenção do mundo para o regime totalitário da Guiné Equatorial. Na ocasião, houve apoio considerável da comunidade global, inclusive, escritores e intelectuais brasileiros. Desde então, vozes guiné-equatorianas ganharam reconhecimento e força. Desde sua manifestação, o que mudou na realidade política, social e cultural de seu país?


individualmente denunciam do país. Evidentemente, sou um deles. Fazer a greve, sair do país e voltar foi importante para que a gente não se cale ante os abusos, ainda que isso aconteça num ritmo mais lento do que desejaríamos. Em todo caso, as estruturas do poder, de qualquer poder, são insuficientemente fortes para que o mesmo não vacile pelo ativismo cibernético. A situação exige dar um passo adiante. CONTINENTE Em 2013, o governo brasileiro perdoou dívidas da Guiné Equatorial e apoiou a entrada do país na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, mesmo sendo a língua portuguesa a quarta língua falada no país. Os Estados Unidos se aproximaram do país e, a exemplo do governo chinês, nele atuam na exploração comercial e mineral, com o argumento de que investir na Guiné Equatorial significa investir no desenvolvimento da

“Como muitos países da África, a Guiné é uma comunidade que escapa às reflexões racionais de sua própria realidade” JUAN TOMÁS ÁVILA LAUREL O que supus sobre a greve é que muita gente que não tinha informação da situação do país se informou. E como, naquele tempo, eu vivia na Guiné Equatoriana, a greve fez com que muitas pessoas que tinham medo de expressarem seu descontentamento soubessem que a via correta era alçar a voz, ainda que fosse do Exterior. Posso dizer que, desde aquela greve, muitos jovens que estavam em uma atitude passiva passaram a ter mais atitudes e a serem mais ativos nas redes sociais. De fato, desde aquela greve, o governo guineano bloqueou o Facebook e outras redes sociais várias vezes. No momento em que agora escrevo, muitas redes sociais estão parcialmente bloqueadas. Eu mesmo acesso a rede da Guiné com um programa que fiz o download para o desbloqueio. Devo dizer que, antes da greve, muitos guineanos tinham cuidado ao se expressarem por estarem no país. Agora, é possível encontrar casos isolados de guineanos que

economia. Nota-se, com isso, cortesias e atenções diplomáticas incomuns de países relevantes na corte global, que ignoram uma das ditaduras mais antigas e sangrentas da África. A impressão que passa é a da indiferença ante o crime humanitário. Como manter a esperança em um país que é a terceira maior economia da África e, ao mesmo tempo, possui 60% da população em condições mínimas de sobrevivência? JUAN TOMÁS ÁVILA LAUREL Acredito que nem o Brasil nem os Estados Unidos podem tomar-se exemplos de países onde a sensibilidade pela democracia ou a liberdade de outros países sejam de interesse. A China, por exemplo, constituiu-se como o país que encobriu a hipocrisia norte-americana na temática dos direitos humanos e da democracia. A China tinha a vantagem no comércio internacional justamente por seu nulo interesse nos direitos humanos e na democracia. É um país com direito a veto no Conselho de Segurança da ONU. Haveria de se perguntar no que acreditava a ONU, ao observar que um de seus membros

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proeminentes nunca havia dito nada sobre o descumprimento dos direitos humanos em nenhum país, além de não os cumprir ele próprio. Acredito que, neste assunto de ser pobres na riqueza, são os próprios guineanos que devem tomar consciência. Como muitos países da África, a Guiné é uma comunidade que escapa às reflexões racionais de sua própria realidade. Fazer esforços para encontrar um caminho de autossuficiência é difícil nos países africanos, em que o pensamento mítico e as variadas maneiras de superstição lançaram suas raízes. Devo terminar dizendo que o cristianismo também é uma forma de superstição. CONTIENTE Seu último livro, Panga Rilene (2016) está sendo reconhecido como uma obra fundamental em língua espanhola. Para alguns críticos, a obra atualiza um sentido de humanidade que, aos poucos, foi desvirtuado. A ideia de que somos orientados para um mundo que não existe é bastante significativa. O que significou para você escrevê-lo? JUAN TOMÁS ÁVILA LAUREL De todos os adivinhos, espíritas e magos que tentaram predizer o futuro, os únicos que fizeram um mundo distante de sua contemporaneidade – sem pretender fazê-lo, e com pasmosa exatidão – foram os escritores. Podemos mencionar Julio Verne e Aldous Huxley, o autor de Um mundo feliz. Depois de ler Panga Rilene, que é obra minha, cresço na convicção de que, para os indivíduos de raça negra, o futuro está cheio de nuvens carregadas – negros nubarrones (nuvens negras). Panga é um livro de ficção científica que alguns críticos enquadrariam como afrofuturista. Acredito que é uma de minhas obras fundamentais e, até onde saiba, não foi bem-recebida. Ao responder estritamente à pergunta, digo que, ao ser guineano, o provável é que os escritores esperem que aborde o âmbito guineano ou, como muitos, o africano. Aos que pensam assim, deveria ser perguntado por que enquadram os escritores, como se faz com Julio Verne, se o rótulo pretendido não tem correspondência? CONTIENTE Quais são seus projetos atuais? JUAN TOMÁS ÁVILA LAUREL Acredito que meu projeto é sobreviver. Dia após dia.


CON TI NEN TE

COMPORTAMENTO

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FUTEBOL A arte de resistir

Prática se relaciona diretamente com a cidade, pois se realiza em seus espaços públicos, sendo ferramenta de relação comunitária e reação ao crescimento urbano TEXTO E FOTOS Sofia Lucchesi

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CON COMPORTAMENTO TI NEN TE Em 21 de junho de

1970, o cineasta, poeta e escritor Pior Paolo Pasolini assistia à derrota de seu país, Itália, para a seleção de Carlos Alberto, Pelé e Jairzinho, numa goleada de 4 x 1 que rendeu ao Brasil o troféu da Copa do Mundo naquele ano. Ainda impressionado com criatividade e irreverência do futebol brasileiro, Pasolini escreveria sobre as diferenças entre o “futebol de prosa” e o “futebol de poesia”, no artigo A linguagem do futebol, publicado no jornal Il Giorno no ano seguinte. O cineasta define o futebol brasileiro como de caráter poético, que, em oposição à “prosa estetizante” do estilo italiano – atido à organização coletiva e às regras do “código” formalístico –, é marcado pela “habilidade monstruosa de driblar” e pela possibilidade de “invenção” de gols por jogadores em qualquer posição. A poética do futebol brasileiro talvez possa ser explicada pela formação primária de seus jogadores: a famosa “pelada” de rua, da praia, das calçadas, dos campinhos de areia nos bairros. Apesar de, em sua chegada ao país ao final do século XIX, ter sido uma prática restrita à elite branca – somente em 1920 os negros passaram a ser aceitos –, não foi possível conter a popularização do esporte, que ganhou as periferias brasileiras. É no futebol de várzea – de rua ou de bairro – o lugar em que, talvez, encontramos as raízes dessa essência poética e libertária do vocabulário futebolístico que impressionou o cineasta italiano.

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O dialeto varziano, se assim podemos chamar, possui códigos próprios, envolvendo relações além-campo complexas, intrínsecas ao seu discurso. Sendo o futebol de várzea uma prática que se relaciona diretamente com a cidade – é realizada em seus espaços públicos –, é também uma ação que sente na pele as mudanças urbanísticas drásticas que têm acontecido nos últimos 30 anos – no caso das metrópoles brasileiras, como o Recife. A Continente esteve em Brasília Teimosa, Coque e Santo Amaro para conhecer times que atuam – alguns deles há mais de 20 anos – em comunidades, e utilizam o futebol como ferramenta para melhoria da vida comunitária. Documentada em ensaio visual, a investigação coloca em evidência a periferia recifense através do futebol. Visitar um desses campos arenosos é ver, com clareza, a disparidade social e econômica da capital pernambucana. Marcada pela horizontalidade da “arquitetura de urgência” – casas com remendos

A poética do futebol talvez possa ser explicada pela formação primária dos jogadores na “pelada” de rua e improvisações, muitas vezes com tijolos aparentes –, a paisagem periférica contrasta com os prédios altos vistos ao longe.

SANTO AMARO E O CAMPO DO 11

Em Santo Amaro, bairro com tradição na cultura do futebol de várzea, existem 26 clubes em atuação e 22 times extintos ou fora de atividade nos dias de hoje. Do bairro, já saíram atletas para o Santa Cruz, Sport, Náutico e até para a Seleção Brasileira. Um dos times mais antigos em atividade em Santo Amaro é o União. Em 30 anos de história, o clube formou muitos jogadores que se tornaram craques: “Treinamos Cássio, que jogou no Sport; Jacó, no Serrano;

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1-3 SANTO AMARO O Campo do 11 é um dos lugares mais importantes para o futebol no bairro

4 COQUE Em muitas comunidades, o esporte é uma das poucas opções de entretenimento

Nino, no Santa Cruz; Marquinhos Paraná, que foi para o Cruzeiro e hoje mora no Japão… Acho que já tivemos algo em torno de 20 jogadores que se profissionalizaram e foram para equipes grandes em Pernambuco e fora do estado também”, conta Marconi Gadelha, diretor e treinador do União. “Mais importante do que isso, o futebol, para nós, é um trabalho social para tirar os jovens da ociosidade. Além de conquistar vários títulos e amigos, também conquistamos a nossa comunidade.” O União, assim como vários outros times do bairro, surgiu em torno do Campo do 11. O espaço é palco de muitas memórias do futebol em Santo Amaro, mas também é marcado pelos conflitos do bairro, mais especificamente, entre as comunidades de Santo Amaro e João de Barros. Em contrapartida


CON COMPORTAMENTO TI NEN TE

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5-7 BRASÍLIA TEIMOSA O Mogi Mirim, nomeado em homenagem ao time paulista, atua há 25 anos na comunidade

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ao ponto de vista de que o futebol seria um “instrumento de controle” para as massas, aqui ele se torna uma ferramenta para tomada de consciência e pacificação de conflitos. Por causa da guerra do tráfico, durante muito tempo, havia uma rixa entre as comunidades João de Barros e Santo Amaro – que ficam no mesmo bairro. Os times da “João”, como chamam seus moradores, não podiam jogar no Campo do 11, como relembra Fábio Lima, jogador do clube Os Miseráveis: “Em 2009, o governo

do estado realizou o Campeonato Santo Amaro pela Paz. Tivemos que ir até lá escoltados pela polícia, dentro do micro-ônibus da Polícia Militar, pois muitos dos integrantes do meu time estavam envolvidos com o tráfico naquela época. Foi emocionante pisar no Campo do 11 com a camisa d’Os Miseráveis pela primeira vez. O futebol quebrou barreiras e, hoje, Santo Amaro é bem mais tranquilo. Todos os jogadores do meu clube também saíram do tráfico por causa do futebol”, conta Fábio.

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IDENTIDADE

Para o fotógrafo e artista plástico recifense Iezu Kaeru, que pesquisou o futebol de várzea recifense durante dois anos para a exposição O jogo da bola – junto com o fotógrafo mineiro Eustáquio Neves –, “existe uma linguagem e códigos próprios do futebol de várzea, tanto na linguagem verbal quanto corpórea. É uma arte do cotidiano e tem muito a ver com identidade”. Segundo Neves, “o futebol não institucional é uma prática que tem a ver com resistência.


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Independe da iniciativa privada ou do poder público para acontecer, e está em todos os lugares, em todas as classes sociais. Nas comunidades, reúne pessoas e traz o sentimento de união. É uma das poucas formas de entretenimento, pois nesses locais não existem cinemas ou teatros”, explica o fotógrafo mineiro. Ao ocupar os espaços urbanos, o futebol acaba se tornando, naturalmente, uma forma de reivindicação pelo direito à cidade. Seja no Coque, em Brasília Teimosa

ou Santo Amaro, persistir jogando é uma forma de resistir a uma cidade caótica e em constante mutação. “Há 20 anos, tinham mais campos de várzea. Está ficando cada vez mais difícil jogar futebol. Essess campos estão se extinguindo. Passamos por momentos difíceis, especialmente porque não temos nenhuma ajuda financeira. É tudo por nossa conta”, explica Edimilson da Silva, do Parma Futebol Clube, que nasceu na Avenida João de Barros, no trecho em que passa por Santo Amaro, em 1994.

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Ao estimular a criação de vínculos afetivos, o futebol traz a ideia de pertencimento, fortalecendo tanto as identidades individuais quanto coletivas de seus praticantes. Há no campo, como espaço físico e imaginário, a potência de uma liberação energética e emocional. Em campo, explodem os conflitos e as forças de quem carrega nas costas o dia a dia árduo, sendo também testemunha de uma verdadeira catarse coletiva. O futebol, como linguagem aberta à imaginação e criação, pode ser também um lugar de aberturas.


BAC FILMS/DIVULGAÇÃO

Claquete

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CANNES Entre o choque e a gentileza

Este ano, o festival não trouxe obra memorável, mas apontou tendências entre os cineastas: tocar nas feridas do mundo e ter um olhar mais generoso sobre a humanidade TEXTO Mariane Morisawa, de Cannes

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1 THE SQUARE O filme faz uma crítica ao elitismo do mundo das artes


square, do sueco Ruben Östlund (de Força maior, 2014). Christian (o ótimo Claes Bang) é diretor de um museu de arte contemporânea em Estocolmo, o que pressupõe: culto, esclarecido, tolerante, feminista, ambientalista, sem preconceitos. E, claro, veste-se bem com roupas caras de grife, mora num apartamento de luxo mobiliado com peças de design e dirige um Tesla. Não há motivo para supor que ele não seja uma boa pessoa. Mas, aí, roubamlhe a carteira e o telefone, num golpe simples, e sua bolha estoura. Curioso como, em princípio, Christian acha quase divertido o que aconteceu – uma demonstração, talvez, da raridade desse tipo de ocorrência na Suécia –, mas, de brincadeira, resolve tomar a justiça em suas próprias mãos, ou seja, descobrir quem foi o assaltante e exigir seus pertences de volta. “De brincadeira”, vai ao prédio que o localizador do celular mostra e espalha

A seleção destacou filmes que discutem a falta de compreensão do outro, o privilégio, a ganância, o egoísmo, e a injustiça

O Festival de Cannes pode

ser considerado uma espécie de termômetro, apontando o que anda na cabeça dos cineastas. Na edição 2017, a de número 70, a seleção destacou produções que discutem o privilégio, a ganância, o egoísmo, a injustiça, a falta de compreensão do outro, mesmo quando o indivíduo, a organização, a sociedade ou classe se consideram modernos e civilizados. Talvez nenhum filme represente mais essas tendências do que o próprio vencedor da Palma de Ouro, The

cartas ameaçadoras, basicamente acusando todos os moradores daquele lugar de serem potencialmente criminosos. A partir daí, tudo desanda. O filme também faz uma crítica ao elitismo no mundo das artes, o que acaba soando um pouco postiço, ainda que The square do título refira-se a uma obra que convida à tolerância. Os mesmos temas se repetem em Happy end, o novo longa-metragem de Michael Haneke. Por se passar em Calais, a cidade onde milhares de pessoas acamparam na tentativa de atravessar para o Reino Unido, muita gente achou que se trataria de uma obra sobre a crise de refugiados. Eles aparecem, mas o filme, como tantas vezes no caso do diretor austríaco, foca na classe média alta/aristocracia. Aqui, na família Laurent. O patriarca, Georges (Jean-Louis Trintignant), apresenta sinais de demência. Sua filha, Anne (Isabelle Huppert), tenta livrar a

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construtora da família de um acidente que resultou na morte de um operário, enquanto procura transformar seu inepto filho Pierre (Franz Rogowski) num homem de negócios. O irmão de Anne, o médico Thomas (Mathieu Kassovitz), tem sua vida transformada quando a filha adolescente, Eve (Fantine Harduin), vem morar com ele depois de sua mãe parar no hospital. Haneke usa menos violência que o habitual, mas é agudo nas observações do comportamento de classe e na convivência “civilizada” com os empregados, por exemplo. Em Nelyubov (Loveless, em inglês), de Andrey Zvyagintsev, que levou o prêmio do júri, as ambições burguesas de um casal no meio de um divórcio feio são um reflexo de sua classe na Rússia de hoje. Boris (Alexey Rozin) e Zhenya (Maryana Spivak) estão tão dispostos a se odiar e a se jogar em suas novas vidas – ele, com o emprego confortável e a namorada grávida, ela, com o amante rico –, que só descobrem depois de dias que o filho adolescente (Matvey Novikov) sumiu. A busca que se segue enfoca um país transtornado. Krotkaya (A gentle creature, em inglês), de Sergei Loznitsa, leva bem mais adiante a ideia de personagens que simbolizam uma classe ou todo um país, como o cineasta já tinha feito em trabalhos anteriores, a exemplo de My joy. Aqui, uma mulher sem nome (Vasilina Makovtseva) passa por todos os tipos de provação e enfrenta compatriotas monstruosos ao tentar descobrir o que aconteceu com o marido numa prisão. Ninguém é bonito, agradável ou rico, mas todos são um sintoma – ou causa – do país em que vivem. A classe não importa, a opressão e o abuso de poder estão em todas as partes. O filme é potente até embarcar numa alegoria que apenas reitera o que foi dito e usar o estupro como recurso duvidoso. O único brasileiro em Cannes, Gabriel e a montanha, de Fellipe Gamarano Barbosa, ganhou dois prêmios na paralela Semana da Crítica. O longa é baseado na história real do amigo de infância do diretor, Gabriel Buchmann, que morreu no monte Mulanje, em Malauí, depois de uma aventura de 10 meses com o objetivo de conhecer de perto a realidade da África. Gabriel


LES FILMS DU LOSANGE/DIVULGAÇÃO

2 HAPPY END Em seu novo filme, Michael Haneke volta a focar na classe média alta

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PYRAMIDE FILMS/DIVULGAÇÃO

Claquete

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(João Pedro Zappa), um jovem de classe média alta e branco, que acabou de ser aceito por uma universidade norte-americana, dorme na casa de desconhecidos e tenta se inserir na comunidade, vivendo como eles, ainda que, no fundo, isso seja impossível. Voltando à competição, Good time, dos irmãos Josh e Benny Safdie, relata, de certa forma, uma aventura. Os irmãos Connie (Robert Pattinson) e Nick (Benny Safdie) roubam um banco, o que termina jogando Nick, que está no espectro autista, na prisão. O crime, feito em parte por necessidade, mas também porque Connie acha que pode, coloca-o numa jornada maluca por Nova York para tirar o irmão da cadeia. Os Safdie (de Amor, drogas e Nova York, de

2014) ecoam Martin Scorsese e Sidney Lumet dos anos 1970 e 1980, fazendo um filme de pura ação. Connie pode não ser rico, nem tão inteligente, mas age como privilegiado – prova de que há diversos níveis de privilégio, e não é preciso dirigir um Tesla para isso.

FEMININO

O filme também fala de uma masculinidade tóxica, e não foi o único. Geu-hu (The day after, em inglês), do prolífico Hong Sangsoo, que tinha outro filme fora de competição e disputou o Urso de Ouro em Berlim, em fevereiro, tem um personagem principal masculino, como de praxe nos longas do diretor, bastante inepto, por mais intelectual que seja. Casado, Bongwan

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NELYUBOV 3 Longa russo trata da briga burguesa de um casal no meio do divórcio

(Kwon Haehyo) trai sua mulher com Changsook (Kim Saebyuk), uma funcionária da editora que dirige. Quando a amante decide partir, ele contrata uma nova profissional, Areum (a ótima Kim Minhee), que é confundida pela mulher com a amante. E, para piorar, Changsook volta. Nem é preciso dizer que Bongwan não faz nada para realmente resolver a situação. Geuhu provavelmente não passaria no teste de Bechdel – aquele que estabelece regras para medir a qualidade das personagens femininas, como elas terem nomes próprios ou conversarem entre si sem ser em referência a um homem. É importante notar o fato porque foi citado pelas quatro mulheres do júri presidido por Pedro Almodóvar – a diretora alemã Maren Ade, a atriz chinesa Fan Bingbing, a diretora francesa Agnès Jaoui e a atriz americana Jessica Chastain. É fato que a quantidade de personagens femininas interessantes foi bem minguada nesta 70a edição – a seleção oficial de Cannes tem sido frequentemente criticada pela baixa presença de cineastas do sexo feminino, por exemplo, apesar de ela ter sido mais abundante nas mostras paralelas. A participação francesa foi especialmente decepcionante, apresentando mulheres como satélites ou objetos sexuais do pobre artista (em Rodin, de Jacques Doillon), fazendo biquinho, dividida entre dois homens – gêmeos! – manipuladores (em L’amant double, de François Ozon) e como objeto embelezador pendurado no braço de um gênio do cinema, no caso, JeanLuc Godard (em Redoutable, de Michel Hazanavicius). Nem o melhor deles – 120 batidas por minuto, de Robin Campillo, que levou o Grande Prêmio do Júri – escapou, dando quase nada a fazer à ótima atriz Adèle Haenel. O que nos leva a O estranho que nós amamos, de Sofia Coppola. A delicada cineasta – que levou o prêmio de direção – fez uma versão do filme de Don Siegel de 1971, com Clint Eastwood no papel do soldado da União que, ferido, é acolhido por mulheres no


INDICAÇÕES sul, durante a Guerra de Secessão. Aqui, Colin Farrell é o soldado, e as mulheres – com Nicole Kidman, Kirsten Dunst e Elle Fanning à frente – ganham mais relevo e poder do grupo. No fim, o tão gentil soldado pode não ser o que parece, e as mulheres, aparentemente indefesas num mundo em que os homens vão para o campo de batalha, não são tão frágeis assim. As mulheres de Sofia Coppola têm o direito de serem más, o que é uma boa notícia. É também o caso da empresária Lucy Mirando vivida por Tilda Swinton em Okja, de Bong Joon Ho. Junto com The Meyerowitz stories (New and selected), de Noah Baumbach, o longa marcou a primeira – e provavelmente última – participação da Netflix na competição em Cannes. Como há uma janela de três anos em vigor na França entre a exibição no cinema e no streaming, não houve acordo para que o filme estreasse nos cinemas do país, fazendo com que o festival estabelecesse que, a partir do ano que vem, todo longa disputando a Palma de Ouro precisa ter distribuição francesa garantida. Em Okja, Lucy Mirando é uma empresária que se acredita muito distante de seu pai e de seu avô, responsáveis, por exemplo, pela fabricação de Napalm, mas que não hesita em explorar um animal para consumo humano e separar uma menina coreana de seu único amigo.

SÉRIES NA COMPETIÇÃO

A entrada da Netflix foi uma das novidades da 70a edição, que também incluiu séries – Twin Peaks, de David Lynch, e Top of the lake: China girl, de Jane Campion – na programação. Quanto a Lynch, está distante de tudo

o que foi apresentado em Cannes, retomando e expandindo seu universo próprio, indecifrável e fascinante. Um exemplo para qualquer cineasta. Também houve o curta de realidade virtual feito por Alejandro GonzálezIñárritu e Emmanuel Lubezki, a dupla por trás de O regresso. Carne y arena coloca o espectador no meio do deserto, ao lado de imigrantes ilegais tentando atravessar a fronteira entre o México e os Estados Unidos e sendo pegos pela polícia, aponta para novos caminhos do cinema e também dá um tapa na cara dos privilegiados que frequentaram a Croisette entre 17 e 28 de maio – mesmo que eles sejam liberais, antirracismo e pró-imigração, como o Christian de The square. Acima de tudo, Cannes-70 evidenciou um certo cisma no cinema mundial: de um lado, filmes dispostos a tocar nas feridas do mundo recorrendo ao choque (The square, Krotkaya, The killing of a sacred deer, de Yorgos Lanthimos); de outro, aqueles que procuram tratar a humanidade com certa delicadeza mesmo em seus piores momentos (120 batidas por minuto, Geu-hu, Wonderstruck, The Meyerowitz stories, Hikari, de Naomi Kawase, Good time). O choque, aparentemente, venceu. A verdade é que foi um festival mediano, com poucas – ou nenhuma – obras realmente memoráveis. E isso, infelizmente, costuma apontar para uma safra cinematográfica pouco inspirada.

COMÉDIA

DRAMA

Dirigido por Rosemberg Cariry Com Sílvia Buarque, Gero Camilo Lume Filmes

Dirigido por Denys Arcand Com Éric Bruneau, Marie-Josée Croze Fênix Filmes

OS POBRES DIABOS

O REINO DA BELEZA

O imaginário do circo é muito presente nos confins do Nordeste. É na junção entre a pobreza material, o aspecto mambembe e a resistência criativa que o diretor cearense Rosemberg Cariry opera neste seu retorno. O elenco – que traz Chico Diaz, Everaldo Pontes e Zezita Matos – personifica a trupe do Gran Circo Teatro Americano, que arma sua lona em Aracati, litoral do Ceará. Cariry imprime à narrativa o tom de um livreto de cordel - artesanal e onírico, mas, ao mesmo tempo, com uma observação aguda sobre a realidade.

O cinema do canadense Denys Arcand é o das relações humanas e suas contradições. Foi assim com As invasões bárbaras (2003) e é assim com O reino da beleza. Luc (Éric Bruneau), arquiteto ambicioso, começa um caso extraconjugal com uma mulher que conhece em Toronto. Há desejo recíproco, mas isso também existe no seu casamento com Stéphanie (Mélanie Thierry), que talvez não seja tão sólido quanto aparenta. Arcard filma com elegância e sobriedade nos diálogos, duas marcas registradas.

DRAMA

ROMANCE

MULHER DO PAI

Dirigido por Cristiana Oliveira Com Maria Galant, Marat Descartes Vitrine Filmes

Em seu primeiro filme, que levou troféus no Festival do Rio e o prêmio do júri da Abraccine na 40ª Mostra de São Paulo, em 2016, a diretora Cristiana Oliveira constrói uma pungente narrativa sobre os ritos de passagem da adolescência. Numa pequena cidade gaúcha, Nalu (Maria Galant) tem 16 anos e uma relação protocolar com o pai, Ruben (Marat Descartes), que é cego e demanda cuidados. Tudo muda, porém, com a chegada de uma professora uruguaia, cuja presença altera o frágil equilíbrio entre pai e filha.

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UM INSTANTE DE AMOR

Dirigido por Nicole Garcia Com Marion Cotillard, Louis Garrel Mares Filmes

Em 2016, Marion Cotillard voltava à competição oficial em Cannes com este filme, que chega agora às telas brasileiras. Na adaptação da cineasta francesa Nicole Garcia para o bestseller italiano de Milena Agus, Marion é Gabrielle, que mora num vilarejo francês no pós-II Guerra Mundial. Seus pais armam um casamento com um fazendeiro espanhol (Alex Brendemühl), mas ela se apaixona profundamente por um militar casado (Louis Garrel) que conhece durante um tratamento de saúde.


PERFORMANCE A arte “promíscua” de Michel Melamed

A visão de que o estético e o político são indissociáveis e a mistura de meios e linguagens – como literatura, teatro e cinema – são marcas do trabalho performático do artista TEXTO Biagio Pecorelli

Palco Em Pintura Modernista, ensaio

de 1960 que integra o volume Clement Greenberg e debate crítico, o crítico norteamericano Clement Greenberg, baluarte da arte moderna, afirma que “[a] essência do modernismo […] reside no uso de métodos característicos de uma disciplina, não no intuito de subvertê-la, mas para entrincheirála mais firmemente em sua área de competência” [1]. Àquela altura, 1960, a arte da performance já se desenhava, tanto nos Estados Unidos como na Europa, como um gênero artístico híbrido, que antecipava aspectos impuros do pós-modernismo e se constituiria, ao longo das décadas seguintes, como uma “indisciplina artística” (como aponta Tânia Alice, em Performance como revolução dos afetos). No Brasil, artistas pioneiros como Flávio de Carvalho já perfaziam desde os anos 1930 uma obra mestiça, que transitava entre a arquitetura, a pintura, o teatro, a música e experiências que levavam o corpo a embates radicais no cotidiano urbano. De todo modo, a década que se iniciava quando Greenberg escreveu

seu ensaio tenderia a implodir, no bojo da contracultura, os “aspectos essenciais” e os “efeitos exclusivos” de cada campo artístico, levando parte considerável dos artistas, especialmente aqueles ligados à performance, a manter o caráter autorreflexivo da arte moderna, mas a instaurar, a partir de então, uma visão promíscua, tanto no sentido de fundir as linguagens como de diluir as fronteiras entre arte e vida, entre o estético e o político, entre a “cultura genuína” e o kitsch. O trânsito livre entre arte e vida, o recurso à chamada “baixa cultura”, a visão de que o estético e o político são indissociáveis e a mistura de linguagens são marcas do trabalho performático do artista brasileiro Michel Melamed. Poeta, ator, performer, diretor, cineasta, roteirista, apresentador de TV, Michel despontou para o grande público após o sucesso do espetáculo Regurgitofagia (2004): uma inovadora experiência teatral na qual o ator se colocava no palco como parte de uma engenhoca que transformava estímulos sonoros em descargas elétricas sobre seu corpo. Lá pelas tantas, Michel

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1 MONÓLOGO PÚBLICO Em seu novo espetáculo, Michel Melamed recorre às memórias familiares

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vomitava – cena quase ilustrativa para uma peça que se propunha criticar o conceito de antropofagia ou, pelo menos, a ponderar quanto à assertiva oswaldiana de que, no cerne da formação cultural brasileira, está nossa vocação para devorar o inimigo. Não seria necessário, já no século XXI, distinguir aquilo que nos cabe deglutir daquilo que devemos, por lição histórica, regurgitar? Qual seja, os choques “reais” levados por Michel em cena pareciam materializar a substância relacional do teatro, de todo teatro, à medida que a mínima reação sonora vinda da plateia (o riso ou o aplauso, por exemplo) sacrificava instantaneamente o desempenho do ator em cima do palco, o que conferia ao espetáculo um quê de sadismo e reflexão política. Regurgitofagia integrava o que o artista chamou inicialmente de Trilogia Brasileira, da qual fizeram parte ainda Dinheiro grátis (2006) e Homemúsica (2007). No primeiro,


JULIA RODRIGUES/DIVULGAÇÃO

Michel se dispôs a utilizar estratégias discursivas, as mais ardilosas, para “extorquir” dinheiro dos espectadores em cena, novamente evidenciando esse fio de cumplicidade que se estabelece entre o ator e o público quando soa o terceiro sinal. Em Homemúsica, Michel esteve acompanhado de uma banda, investigando mais especificamente a fronteira entre a palavra falada e a palavra cantada. O traço comum dessa Trilogia – além, é claro, do fato dos três espetáculos terem sido escritos e atuados pelo próprio Michel – é a relação franca, “direta”, frontal que o ator estabelece com o público, herança de suas primeiras experiências artísticas ao microfone do CEP 20.000, famoso evento literário da noite carioca, fundado nos anos 1990 pelos escritores Guilherme Zarvos e Chacal. Privilegiando esse eixo de comunicação palco-plateia à maneira de um spoken word ou de um

Um traço comum aos seus trabalhos é a relação franca, “direta”, frontal que o ator estabelece com o público stand up comedy, o teatro promíscuo de Michel Melamed relega o drama a segundo plano, e junto a ele as categorias de “ficção” e “personagem”. Mesmo no assombroso Adeus à carne ou go to Brazil (2012), quando a verborragia dos espetáculos anteriores foi estancada num teatro de imagens, Michel roteirizou e dirigiu um “sambicídio” que quis pôr a nu a estrutura ficcional de um Brasil que, às vésperas de abrigar uma Copa do Mundo e uma Olimpíada, gabava-se de ter sido considerado a sexta potência econômica mundial.

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MONÓLOGO PÚBLICO

Atualmente, o ator apresenta, no Canal Brasil, um programa de entrevistas intitulado Bipolar Show e leva aos palcos o seu mais recente espetáculo Monólogo público (2017). Neste, Michel recorre a memórias familiares para alçar o acontecimento teatral a uma experiência política radical em sua linguagem. Um palco sobre o palco onde o performer alterna um estado, digamos, apenas comunicativo, um self as context, e ações visivelmente mais formais, vestidas de recursos de luz e som, sugerindo inicialmente uma esquizofrenia entre intimismo e extroversão, tanto na forma (confissão poética x mise-en-scène) como no conteúdo (histórias sobre sua mãe, sobre seu pai x chistes sobre o atual cenário político brasileiro). Gradualmente, o espetáculo vai diluindo essa fronteira e produzindo,


Palco enquanto linguagem, uma espécie de vertigem, análoga àquela que talvez sintamos ao notar, dia após dia, a histórica promiscuidade entre o público e o privado na vida política brasileira. Quebras sucessivas de mise-enscène, uma dramaturgia aforismática (alguns dirão twittteira) e um roteiro de ações que funciona por procedimentos de collage impedem um pensamento conclusivo sobre o que vemos e ouvimos, submetendo a peça ao crivo das singularidades e da multiplicidade de interpretações dos espectadores, que se veem convocados a compor a obra. Uma entrevista concedida ao teatrólogo Antônio Abujamra, no programa Provocações (TV Cultura), anos atrás e disponível agora no Youtube, é, nesse sentido, ainda emblemática. O mestre pergunta ao jovem poeta: “Você acha a poesia uma coisa muito rara?”, ao que Michel responde “Não, ao contrário, eu acho o ordinário raro”, e o mestre o contesta veementemente: “A poesia é raríssima!”. Claro, reconhecida a grandeza dos clássicos, Michel deglutiu a herança de Marcel Duchamp, Joseph Beuys e Allan Kaprow – isso para ficar apenas com três nomes inebriantes do século ido. Duchamp nos disse que tudo pode ser arte, Beuys que todo ser humano é um artista e Kaprow, que há mais arte nos movimentos de fregueses dentro de um supermercado que na dança contemporânea. Três golpes irreversíveis na aura da obra de arte, golpes que a esvaziam enquanto objeto e, por conseguinte, empoderam o olhar. É no fundo – Beuys tem razão – um projeto tão promíscuo quanto humanista para a arte este projeto do qual Michel participa. E a crítica observa nos trabalhos de Melamed algo de narcisista ou autocentrado, o artista mostra em cena, com espetáculos como Monólogo público, que não vê distinção entre o eu e o político, tal como no célebre verso de Rimbaud: “Je est un autre”.

Entrevista

MICHEL MELAMED “HOJE É TUDO E HOJE É O QUE FOR” A entrevista que se segue foi realizada com o artista durante a temporada do Monólogo público, no auditório do Museu de Arte de São Paulo (Masp). CONTINENTE Vou começar com uma frase de Artaud:“Ninguém alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou senão para sair do inferno”. Você é poeta, ator, performer, diretor, cineasta, roteirista, apresentador. Tem algum inferno por trás de tudo isso? MICHEL MELAMED Claro que sim! Por trás, pela frente e por baixo, principalmente. As chamas vêm de baixo. Mas, se tem o inferno, é porque tem a promessa de paraíso. Então, faz-se o trabalho porque existe uma sensação de inadequação continuada. Faz-se o trabalho porque o mundo é um vale de lágrimas, o mundo é inaceitável. Faz-se o trabalho porque é um grito de tentativa de qualquer coisa desesperada. Faz-se isso tudo numa condição desagradável, de muita angústia e contradições, conflitos de várias espécies e, curiosamente, e fugidiamente, durante poucos breves momentos após a realização, existe o paraíso. Os trabalhos que eu proponho são todo esse inferno, mas, na hora que estreia, cara, não tem uma vírgula. Era isso que eu queria mostrar. Agora, essa sensação demora menos que o inferno, então convivo mais com ele. CONTINENTE É um paliativo? MICHEL MELAMED Eu não diria que é um paliativo, porque seria subestimar a capacidade do paraíso. Quando ele chega, chega em gozo e esplendor. Mas, é a maior parte do tempo a condição natural da vida… É estranho eu falar isso também porque, enfim, tenho uma carreira, vivo do meu trabalho, sou um cara não tão feio, nem tão burro, sou branco no Brasil, nasci na classe

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média… é uma condição muito favorável, mas também fiz análise o suficiente pra saber que não vou abrir mão da minha singularização. Minha condição mental, minhas questões e minha sensibilidade em relação ao mundo são infernais. CONTINENTE Você iniciou sua trajetória no CEP 20.000. É curioso olhar para esse percurso e ver que a palavra nunca bastou para você, ao passo que você também nunca pôde abdicar dela. MICHEL MELAMED A questão é exatamente essa, não vejo dessa maneira, não vejo com essa separação em que eu pudesse dizer “ah, estou na palavra e agora estou migrando da palavra para outro tipo de linguagem ou atividade”. Não me relaciono com as coisas nesse lugar, elas são muito mais promíscuas. Estou super na defesa do promíscuo. Na peça, o meu texto usa a promiscuidade entre o público e o privado, mas acho que é um desrespeito com a palavra promiscuidade. Retomei, esses dias, o dicionário, para me certificar disso, porque eu estava sentindo – e todas as leituras dela são muito mais lindas que a cotidiana – que é a ideia de uma mistura de algo inadequado, que não deveria ser feito. Ao contrário, promiscuidade é toda a sacanagem boa, toda mistura de coisas diferentes. Então, sou promíscuo. CONTINENTE Quando, onde e sob que circunstâncias a performance – não apenas enquanto prática ou um gênero artístico, mas como um conceito que atravessa o teatro e a história da arte – contaminou o seu trabalho? MICHEL MELAMED Eu acho que tem muito a ver com o CEP 20.000. Por natureza, ele era essa integração de linguagens. Comecei a fazer minhas coisas e elas já eram híbridas. Então, eu ia falar poemas, a galera subia e falava poemas no microfone, por alguma razão, eu amarrava sacos de lixo com água nas pernas, entrava com a maior dificuldade – era uma performance. Se eu sabia que era performance? Ainda não. Curiosamente, na época em que estreei meu primeiro espetáculo, o Regurgitofagia, a performance não era uma coisa muito falada ainda. Então, fui procurado por algumas pessoas na época que me davam esse crédito, esse título ou mesmo essa pergunta “ah, você é um performer?”, ou me questionavam, e eu também ficava um pouco ressentido,


CAROLINA VIANNA/DIVULGAÇÃO

CONTINENTE Tanto na sua Trilogia brasileira como nesse espetáculo novo, o público se depara com um ator em cena, você, performando um texto que você mesmo escreveu e, no caso do Monólogo, fazendo da própria memória familiar o seu texto. Como falar de si mesmo pode ser um ato político? MICHEL MELAMED Cara, eu não entendo a sua pergunta. Quando você não fala a partir de si? Você fala a partir de si sempre! Não acho que se eu falar da bala Juquinha, eu estou falando menos ou mais de mim do que se eu comentar sobre o meu bisavô, porque senão a gente está entrando numa área de aferição do quê? Que nível de intimidade e compromisso com o quê? Só pelo fato de eu nomear uma relação de parentesco, é isso que define que estou no campo da intimidade? Só se fala de si mesmo e tudo é política. Falar de si mesmo é falar de tudo, é falar de política.

porque achava que estava fazendo teatro também. E, às vezes, me procuravam e falavam: “você é um performer”, eu falava: “não, eu sou ator”. Ou, o contrário: “você é ator”, e eu falava: “não, sou poeta”. “Você é um poeta”, “não, sou diretor”. Tive esse incômodo, hoje não tenho mais. Hoje é tudo e hoje é o que for, hoje não tenho a menor presunção de querer controlar como sou recebido pelo outro. CONTINENTE Somos tudo e nada… MICHEL MELAMED Não! Estou mais pra ser tudo. Sou tudo! Eu já trabalhava de maneira presentificada, já havia quebra de mise-en-scène, todos os códigos mais basilares, os parti pris da performance estavam todos presentes no meu trabalho como interesse, consequência, causa. Era parte daquilo tudo. E aí fui pesquisando vários artistas etc. Cheguei ao ponto até de ter uma experiência como SEEWATCHLOOK (filme e série dirigida

“Para mim, promiscuidade é toda a sacanagem boa, toda mistura de coisas diferentes. Então, sou promíscuo” por Michel Melamed e exibida pelo Canal Brasil em 2015). Na série, tive a oportunidade de entrevistar Vito Acconci, o pessoal do Fluxus, todo mundo. Estava em Nova York, vi muita coisa, me envolvi. Então, hoje, quando a gente estreia o Monólogo público, acho que é a mistura de todas as perguntas e respostas que a gente fez até agora, acho que é um espetáculo de teatro, acho que é uma performance, acho que é poesia, acho que é qualquer coisa que qualquer um queira chamar, até palestra do TED eu tô aceitando. É stand up, é tudo, é qualquer coisa.

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CONTINENTE Fragmentar e saturar são escolhas estéticas deliberadas ou uma condição do artista no século XXI? MICHEL MELAMED Ambos. Somos fragmentados. A gente está conversando e eu já pensei que horas são, na peça, olhei, eu ia comer, ia pedir um chá, todo mundo está pensando, olhando, olha a cara dessas pessoas, tem 300 coisas acontecendo ao mesmo tempo. Porque o discurso racional, oral, está conduzindo nosso diálogo, ele não é prioritário. Está fragmentado o que está acontecendo aqui, é humano isso. E, por fim, como procedimento me interessa. Porque eu acho que há um exagero na linguagem linear, acho que ela tem sido usada persuasivamente. No drama burguês, historicamente, é belo você ver a experiência de se engajar em determinados tipos de história – Brecht já não vai achar isso –, mas isso está no jornalismo, em mil lugares e acho que a gente tem que contar pras pessoas que elas têm que dar um passo pra trás e perceber não só a narrativa. Vejo todo mundo falando que a disputa é pela narrativa – golpe ou impeachment? A disputa pela narrativa é a disputa por quem tem o maior caminhão de som, quem grita mais alto, a história contada pelos vencedores. A disputa é anterior a isso, é pela linguagem, é pela construção das relações, dos campos, as escolhas dos signos, dos corpos. BIAGIO PECORELLI


Ronaldo Correia de Brito ESCRITOR

ENTREMEZ

CRÔNICA TIRADA DE UMA ENFERMARIA DE HOSPITAL Lucas tinha 22 anos quando veio do

presídio para cuidar de um ferimento no pé. Durante uma rebelião de detentos ele se machucou, não recebeu atenção médica e a infecção ganhou os ossos. Ao vê-lo, ninguém apostaria tratar-se do mesmo garoto que, aos dezoito anos, foi flagrado com vinte e uma pedras de crack. Em quatro anos, emagrecera mais de trinta quilos. O retrato de admissão no presídio parecia de outra pessoa. Os olhos perderam o brilho e a vontade. Lucas carregava o corpo e a condenação sem julgamento. Desde os dezessete anos se metera no tráfico, consumindo e disputando territórios de venda entre os grupos rivais, numa cidade da Zona da Mata Sul de Pernambuco, onde a monocultura da cana e o legado da escravidão condenaram as pessoas à violência e à miséria. Num tiroteio de facções, uma bala atingiu a bexiga de Lucas e ele perdeu o controle sobre a vontade de urinar. Caminhava normalmente, mas fazia uso de fraldas descartáveis. Preso numa unidade ressocializadora, voltou para casa, ao consumo e ao tráfico, depois de meses. Nunca conhecera o

pai. A mãe o acolhia como se ele fosse um castigo de Deus. No tempo em que ficou internado, ela o visitava com resignação e apatia. Deixava folhetos contendo a Palavra, colava alguns nos azulejos da enfermaria e cantava hinos com as mãos erguidas para o alto. Numa das visitas, trouxe o pastor da igreja evangélica que costumava frequentar, pagando um dízimo mensal de dez por cento do salário. Isolado por causa da bactéria que destruía o pé e a perna, Lucas não aceitava a comida e emagrecia visivelmente. Chamaram o médico clínico para assumir o caso e diagnosticou-se tuberculose no pulmão, em estágio bem avançado. Começaram um novo tratamento e pediram que Lucas usasse máscara para não contaminar as pessoas. Vigiado por dois agentes penitenciários, dia e noite, seu isolamento tornouse maior, a tristeza um miasma sombrio como o dos mangues onde ele crescera entre os caranguejos. As bactérias e os bacilos minavam sua vida em decomposição. No dia em que o médico revelou a tuberculose,

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Lucas não tremeu. Mas quando lhe disse que o teste para AIDS havia sido negativo, os olhos do rapaz se encheram de lágrimas, ele fez um sinal da cruz atrapalhado e agradeceu a boa notícia. Dois garotos de dezessete anos se internaram com várias fraturas. Presos durante uma perseguição policial, fugiam em um carro roubado. O veículo capotou algumas vezes, sem matar ninguém. Quatro militares vigiavam os menores, além dos dois agentes civis responsáveis por Lucas. O clima nas enfermarias tornou-se igual ao das prisões, tumultuado e explosivo, com armas expostas, prontas a disparar. As fardas, os coletes à prova de bala, os revólveres e fuzis se misturavam aos ingredientes hospitalares: gritos, gemidos, sangue, fezes e pus. Os policiais cuidavam para os novos detentos não fugirem, nem serem resgatados por suas quadrilhas. Nervosos e agressivos, mantinham-se em permanente estado de alerta. Os garotos pareciam inofensivos e alheios ao futuro sombrio. Algemados nas camas de ferro, não aparentavam a alta periculosidade descrita no laudo pericial, nem a criminalidade dos currículos.


MARIA JÚLIA MOREIRA

Novos presos chegaram às enfermarias, com guarnições de mais quatro homens, estabelecendo-se uma atmosfera de front. Os médicos assistiam os detentos com indiferença pelos seus dramas, numa tentativa de se protegerem, diziam. Não perguntavam por suas histórias, limitando-se a examinar as fraturas e feridas. Os policiais queriam que todos eles morressem, pois se tratava de bandidos irrecuperáveis para a sociedade, segundo proclamavam aos berros, nos corredores do hospital. A violência das ruas se reproduzia no espaço sagrado de cura, com os mesmos ingredientes de ódio e indiferença. De um lado, prisioneiros considerados bandidos, no lugar de pacientes. Do outro, policiais armados, esperando uma chance de agir. E no meio desse fogo cruzado, a equipe de saúde tentando salvar as vidas, que a maioria preferia mortas. Lucas já não contaminava as pessoas com a tuberculose e foi transferido do isolamento para a enfermaria dos jovens delinquentes. Controladas as bactérias, ele não tinha chances de recuperar a

As fardas, os coletes à prova de bala, os revólveres e fuzis se misturavam aos ingredientes hospitalares função do pé e da perna, pois os ossos haviam sido destruídos. No dia em que o informaram sobre a amputação acima do joelho, ele não manifestou revolta. Aos vinte e dois anos, acostumarase ao destino de sequelado. Um agente penitenciário chamava atenção por ficar a maior parte do tempo estudando. Formado em direito, queria especializar-se na recuperação de menores criminosos. Lia bons livros, parecia diferente dos colegas que falavam alto, diziam palavrões e se envolviam em namoros com as acompanhantes. Quando o médico clínico comunicou o retorno de Lucas ao presídio de origem, onde ele aguardava julgamento há quatro anos pelo tráfico das vinte e uma pedras

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de crack, o agente falou o mesmo que os policiais militares: melhor se tivesse morrido. Não existia nenhum futuro para Lucas. Solto ou na prisão continuaria se drogando. O médico se manteve em silêncio, talvez achasse que não havia recuperação para o agente, por mais que lesse a melhor literatura. Deu as orientações de alta, despediuse de Lucas e desejou-lhe boa sorte. No dia seguinte, escutou-se um tumulto no posto de enfermagem. O clínico reclamava que não tinham enviadas as orientações sobre o tratamento da tuberculose, que deveria continuar por mais cinco meses. Descontrolado, gritava com a equipe. Queria saber se havia ocorrido desleixo ou boicote. Telefonou ao presídio e solicitou que o serviço social viesse apanhar o resumo de alta e as prescrições. Uma enfermeira chegou perto do médico, pediu calma e cochichou alguma coisa, que ninguém ouviu. Desleixo, boicote, que diferença faz? A vida custa barato no rateio dessa gente miserável, vale quase nada, menos que a barganha de Judas.


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Leitura

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INFANTIL O segredo da longevidade de Jorge Luis Borges

História contada pelo escritor a um grupo de crianças que o visitou em casa, nos anos 1980, é retomada em livro por um menino que participou da visita TEXTO Mariana Camaroti, de Buenos Aires

Corria o ano de 1981 em Buenos Aires

e o pequeno Matías Alinovi viveria uma aventura casual e única, daquelas que deixam marcas numa criança para sempre. Junto com os colegas da escola, passaria a tarde na casa de um dos maiores escritores argentinos e mais respeitados da língua espanhola, Jorge Luis Borges. Autor de contos, ensaios, poemas e crítica literária, ele improvisou e impressionou o seu desavisado público com o que seria seu único e jamais escrito conto infantil. Naquela tarde, as crianças sentaram-se no chão da sala de Borges para ouvir atentamente seu relato fantástico e envolvente sobre como havia conseguido chegar a ser tão velho. Borges nasceu em 1899 e, naquele então, somava 82 primaveras. Trinta e seis anos depois, aquele despretensioso relato se tornaria o livro El secreto de Borges (Editora Pequeño Editor), lançado há pouco na Argentina, na Feira Internacional do Livro de Buenos Aires. “Me marcou ver Borges sentado numa poltrona verde, com uma cortina atrás, quando a senhora que o cuidava abriu a porta. E ele contou a história tão bem sobre a sua longevidade, usando recursos que retiveram nossa atenção desde o primeiro instante, fazendo com que aquela tarde ainda hoje esteja tão viva na minha cabeça”, revela o autor. Físico e escritor, Alinovi pensou em

Matías Alinovi convidou Diego Alterleib para ilustrar as 40 páginas do livro em que narra seu encontro com Borges imortalizar aquele momento em um ensaio, artigo ou crônica, mas recuou, diante da ideia ambiciosa de escrever sobre esse grande escritor. “O plano foi amadurecendo, até que um dia deu um estalo: escrever para crianças o que aconteceu com uma criança. E aqui está.” Com capa dura, 40 páginas e ilustrações de Diego Alterleib que ambientam a história, o livro não apenas entretém o leitor com uma boa história infantil, mas também introduz nos pequenos esse ícone da literatura latino-americana. Um resumo da sua vida contextualiza Borges na Buenos Aires em que nasceu, cresceu e envelheceu. Tudo começou quando Matías Alinovi escutou do seu amigo JuanManuel, na saída da escola, que naquele dia, excepcionalmente, não iria mais tarde à praça brincar acompanhado da avó. Não. Naquele dia iria com um tal Borges. A cara do amigo foi

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de tristeza, levando a supor que, certamente, pelo novo acompanhante ,eles não poderiam se divertir tanto como em outras oportunidades. Matías, por outro lado, não tinha a mínima ideia de quem era o acompanhante e, ao chegar em casa, comentou com a mãe a novidade. “Juan Manuel mentiu pra você, Matías”, disse a mãe, explicando que Jorge Luis Borges era um escritor argentino muito famoso e que não poderia ir à praça com o amiguinho. “Ele deve ter escutado esse nome por aí e repetiu”, justificou. Mas era verdade. Na hora combinada, lá estava Juan Manuel do outro lado da rua, esperando para atravessar com um senhor velho, cego e distraído, que se apoiava no seu braço. Como todas as tardes na tradicional Praça San Martín, no coração de Buenos Aires, os estudantes correram para o parquinho, subiram no monumento ao herói nacional e riram, enquanto Borges continuava sentado num dos lindos e antigos bancos de pedra da bela praça. A presença do acompanhante não impediu a diversão da dupla. Obviamente, no dia seguinte, a professora já sabia do acontecido e perguntou detalhes ao menino, que explicou que, junto com a avó, morava com Borges. A avó era quem cuidava daquele ancião cego. A mestra


REPRODUÇÃO

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Leitura Minibio

SOBRE JORGE LUIS BORGES Nascido em Buenos Aires, Jorge Luis Borges (1899–1986) viajou com a família para a Europa ainda pequeno e instalouse em Genebra. Alfabetizado em inglês pela avó, foi leitor e tradutor precoce. Ganhou projeção ao voltar para Buenos Aires e publicar, aos 24 anos, o livro de poemas Fervor de Buenos Aires. Responsável por introduzir inúmeros autores de língua inglesa na Argentina, Borges não deixou de escrever, ditar conferências e dar aulas depois de ficar cego. Filosófica e fantástica, repleta de artifícios verbais e metafísicos, sua obra fascinou leitores desde o princípio. Traduzido em cerca de 30 idiomas, Borges era também um incansável trabalhador das letras e foi responsável por modificar a prosa da língua espanhola. O autor de El Aleph dizia sentir-se orgulhoso não do que escreveu mas, sim, de tudo o que leu ao longo da sua vida, até que uma progressiva cegueira escureceu eternamente a sua visão. “Pouco a pouco fui descobrindo a estranha ironia dos fatos. Eu sempre imaginei o paraíso em forma de biblioteca. E aí estava eu, de certo modo, o centro de 900 mil livros em diversos idiomas e mal podia decifrar a capa e as lombadas”, disse, ao ser nomeado diretor da Biblioteca Nacional. Resignado ao que o destino ironicamente reservou, este grande leitor nunca reclamou do lento entardecer que acometeu seus olhos. E escreveu: “Deus me deu, ao mesmo tempo, livros e a noite”, no Poema de los dones. MC

não perdeu a grande e inesperada oportunidade que se apresentava diante dela. Pediu que Juan Manuel perguntasse a Borges se os meninos do quarto ano do Ensino Fundamental poderiam visitá-lo. A resposta, surpreendentemente, foi sim. A professora disse que os alunos precisavam então preparar perguntas para fazer ao escritor. “Vamos lá, meninos, que perguntas vocês fariam a Borges?” E os meninos, com sua ingenuidade e sensibilidade, foram sagazes em dois temas que continuamente rodearam o autor de Historia universal de la infamia. A primeira foi “Quantas vezes ganhou o Prêmio Nobel?”. Na mosca. A segunda: “Quantas vezes se casou?”. Bingo. Mas a professora disse que não, essas perguntas não poderiam ser feitas. “É uma lástima que ela não tenha deixado fazer essas perguntas, porque as duas eram certeiras. E o que ele teria respondido? Isso me intriga”, diz o autor.

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Borges nunca contraiu matrimônio e, por essas injustiças da vida, nunca recebeu o máximo prêmio de literatura. Apesar da sua consagração e reconhecimento internacional ainda em vida, a sua sexualidade provavelmente influenciou de maneira negativa. Matías lembra um ano no qual, muito cotado para receber o Nobel, Borges chegou ao responder com humor e ironia quando entrevistado a respeito. “Eu sempre serei o futuro Prêmio Nobel. Deve ser uma tradição escandinava.”

O GRANDE DIA

Chegado o dia da visita à casa do escritor, os estudantes foram recebidos pela avó de Juan Manuel, que abriu a porta. Bombons importados aguardavam numa bandeja como boas-vindas. As crianças, por sua vez, levaram um pacote de Sugus (bala popular na Argentina). O escritor estava sentado numa poltrona verde, com seu bastão


DIVULGAÇÃO

Entrevista

MATÍAS ALINOVI “O TÉDIO E A COMPLEXIDADE SÃO INERENTES À LITERATURA” Nascido em Buenos Aires, formado

apoiado ao lado, numa sala solene de piso de madeira e adornada com uma enorme cortina. Imagem guardada como uma fotografia na mente de Matías. A casa de Borges, num bairro portenho senhorial e conhecida por ter uma abundante biblioteca, com livros do mundo todo, era por si só um grande passeio para o grupo. Após perguntar o nome de cada um dos expectadores, o anfitrião confessou que antes de que eles chegassem ele tinha dois medos. O primeiro era que as crianças fossem, já que ele não saberia o que falar para estudantes do quarto ano. O segundo, ainda maior, era que elas faltassem ao encontro marcado. Portanto, agora, disse, estava feliz pois elas haviam ido. Ciente de que sua figura provavelmente impressionaria os visitantes, Borges finalmente disse: “Vou contar para vocês como consegui viver tantos anos”. Aqueles olhinhos

em Física, autor de três livros sobre ciência, um romance, contos, peça de teatro e, agora, também de literatura infantil, Matías Alinovi não concorda com o lugar-comum de que as crianças atuais leem menos. Diz que é um erro que os livros hoje precisem ser interativos e demasiado interessantes para atrair a atenção dos pequenos. CONTINENTE Como escritor, você acha que os livros veem perdendo espaço para a tecnologia e a vida atarefada das crianças e jovens inquietos de hoje? MATÍAS ALINOVI Não acho que a leitura tenha perdido espaço. Há cada vez mais editoras infantis e livros para crianças sendo publicados. É muito difícil substituir o encanto de um livro. As crianças continuam lendo, não apenas em livros. É verdade que nem sempre coisas profundas. Mas a leitura está aí, na internet ou nos livros. CONTINENTE Vivemos numa época em que a internet e a dispersão põem em xeque o interesse pela leitura.

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MATÍAS ALINOVI O mesmo deve ter sido dito quando a imprensa foi criada: é o fim do livro. Mas outro dia li para os meus filhos Relato de um náufrago (de Gabriel García Márquez). Eles adoraram, a história atraiu a atenção deles, apesar de serem crianças que vivem com computador, conectadas à internet. CONTINENTE Sabemos que os argentinos têm a cultura da leitura maior do que outros países. Há muitas livrarias e é comum vê-los lendo livros e jornais em transportes públicos. Você percebeu esse interesse das crianças na Feira Internacional do Livro de Buenos Aires este ano? MATÍAS ALINOVI Sim, as crianças têm interesse na Feira Internacional do Livro, e o meu foi um dos mais vendidos no estande da editora. É verdade que tem muito a ver com a cultura, pela influência europeia, talvez, na cultura argentina. CONTINENTE Os livros precisam ser mais interativos, com sons, recortes, relevos e conteúdo na internet, para atrair e reter a atenção das crianças hoje em dia? MATÍAS ALINOVI Não entendo por que fazem livros tão interativos hoje em dia. Acredito que essa não seja a solução. O tédio e a complexidade são inerentes à leitura. A complexidade é o que faz com que a leitura se sustente. Este é um valor muito desdenhado atualmente, embora seja um grande valor. O que faz com que Homero (autor de Odisseia) seja tão interessante? É divertido, leve? Não! A história precisa ser bem-contada. Se isso acabar na literatura, nada mais restará. MC


INDICAÇÕES DIEGO ALTERLEIB/DIVULGAÇÃO

INFANTIL

GASTRONOMIA

Comunique Editora

Livros de Comida

LUCIANO PONTES Uma andorinha só

Leitura que vagavam pelos detalhes da elegante casa, pousaram então expectantes sobre ele. Daí em diante, Borges começou a fazer o que havia feito a vida toda: contar histórias. Falou que, na enorme casa em que vivia quando pequeno, no Bairro de Palermo, havia um chafariz de onde retirava água. Todas as casas do lugar tinham um poço, abastecidos pela mesma lagoa. Acontece que um vizinho colocou tartarugas no poço, com a ajuda de um balde amarrado a uma corda. Com a luz que lhe chegava de todos os chafarizes, as tartarugas nadavam contentes, levantando a cabeça de vez em quando, espetáculo que os moradores apreciavam de lá de cima. Certo dia, ao refletir sobre essa curiosa fauna que habitava a Lagoa de Palermo, Borges deduziu que não bebia qualquer água, mas, sim, água de tartaruga. E que, como elas viviam muitos anos, provavelmente teriam transmitido a ele a mesma fortuna. Não se sabe até hoje se ele criou essa história ou

se se baseou no livro de Mujica Lainez El hombrecito del azulejo, que também fala de um poço e suas tartarugas. Borges e Mujica faziam parte do mesmo grupo de finos intelectuais da sociedade portenha, que frequentavam os mesmos ciclos e mantinham posições políticas polêmicas e semelhantes. Borges morreria em 1986, aos 87, em Genebra, onde foi sepultado. O extraordinário segredo da longevidade intrigou os alunos, que retornaram andando à escola, próxima àquela casa. O conto do chafariz e a água das tartarugas voltaria à tona em muitas conversas entre Matías e Juan Manuel, como este ano, quando o autor levou ao amigo o livro que acabara de publicar. Juan Manuel, que quando menino não tinha noção da extraordinária casa em que vivia, que o velho Borges era um escritor famoso e que fazia as tarefas escolares rodeado por uma invejável biblioteca universal, ficou feliz em ver em livro um lapso da sua infância. El secreto de Borges voltaria a unir, então, as vidas daqueles dois amigos de escola e praça, de certa forma separadas pelo destino.

DANIEL BUARQUE Comendo Londres

O escritor, ilustrador e designer Luciano Pontes busca inspiração no ditado popular “uma andorinha só não faz verão” e chama a atenção para a necessidade de cuidar do meio ambiente. Mesmo sozinha, a andorinha – que atua como uma espécie de “agricultor” – decide entrar em ação para fazer uma revolução. Numa terra seca e quente, brota um jardim. Quem o plantou?

O jornalista Daniel Buarque desconstrói estereótipo de que a culinária inglesa é a pior do mundo. Ele defende que Londres é, hoje, uma das principais capitais mundiais no quesito gastronomia, afirmando que é possível comer melhor por lá do que em Paris. A obra esmiúça o que se come no país e por que se come. Além de trazer algumas indicações de bons lugares para uma refeição.

TEATRO

COLETÂNEA

MATÉI VISNIEC Os bolsos cheios de pão – E outras peças curtas É Realizações

O dramaturgo romeno, naturalizado francês, é um dos autores mais encenados no teatro brasileiro contemporâneo. O livro traz quatro peças (Os bolsos cheios de pão, O último Godot, A aranha na Chaga e a Segunda tília à esquerda). Visneic é tido por muitos como “o novo Ionesco”, por dar continuidade ao gênero do teatro do absurdo.

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GRAZIELA SCHNEIDER (ORG.) A revolução das mulheres

Boitempo

A obra reúne artigos, atas, panfletos e ensaios escritos por mulheres russas que viveram nos primeiros anos do século XX. A leitura demonstra que esse movimento via como algo fundamental a transmutação do papel e dos costumes impostos à mulher, indo além da igualdade de direitos.



José Cláudio

ARTISTA PLÁSTICO

MATÉRIA CORRIDA

SÉRVULO ESMERALDO

Sérvulo Cordeiro Esmeraldo (Crato, CE, 1929-Fortaleza, 2017). Foi ele tirando as gravuras dele das paredes do Clubinho, Clube dos Artistas e Amigos da Arte, um subsolo na Rua Rego Freitas, em São Paulo, 1956, e eu pregando meus desenhos diretamente na parede, que ninguém tinha dinheiro para moldura. No ano seguinte eu fui para a Itália, Roma, com bolsa da Fundação Rotelini, e Sérvulo para a França, Paris, estudar gravura com Friedlaender. Antes, nossos trajetos foram também parecidos: Sérvulo fazendo parte da Sociedade Cearense de Artes Plásticas, de Fortaleza, e eu do Atelier Coletivo da S.A.M.R., Sociedade de Arte Moderna do Recife. Quando eu estava para voltar, depois desse ano na Itália, Sérvulo, que resolvera demorar-se na França, me chamou para lá. Naquela época, viajar era coisa de rico. Ou marujo. No Brasil, me diziam na cara que eu não podia falar de pintura porque não conhecia a Capela Sistina nem o Louvre. A Sistina agora eu conhecia. Faltava o Louvre. Aí eu fui. Generoso,

Sérvulo. Peguei o trem em Milão. No outro dia de manhã desembarquei se não me engano na Gare du Nort. No topo da escada que dá para a rua estava Sérvulo. Diziam que se você deixar um argentino nu no deserto, no dia seguinte você vai encontrálo vestido e com dinheiro no bolso. Cearense tem parte com argentino. Sérvulo dominava Paris. Tinha não sei quantas casas em que eu podia me hospedar sem pagar nada, tomando conta, casas de brasileiros que saíam de férias e precisavam de alguém para ficar na casa. Me arranjou um talão para comer de graça no restaurante dos estudantes no Quartier Latin. Tinha uma rede de informantes para saber onde ficar de graça, como foi o caso de eu me hospedar na casa para estudantes estrangeiros pobres de Madame Morrin, ou Morin, prinuncia-se “morrán” como o cônsul, em Louvain, na Bélgica, durante a Expo 1958 de Bruxelas. Se não fosse Sérvulo, essa minha viagem de Ali Babá, viagem que os baixa-renda só podem fazer uma vez durante a vida, teria sido bem

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mais resumida, sem a expressão que tomou a partir desse convite de Sérvulo para ir a Paris e dessa ida a Louvain, que já contei tantas vezes: Madame Morrin na manhã da volta, eu já dentro do carro do marido dela que me deixava todos os dias em Bruxelas, me dando um envelope bojudo de dólares dizendo “para você conhecer um pouco mais da Bélgica”, e deu para conhecer museus e cidades da Holanda, Alemanha, Áustria, Suíça e Espanha além da Bélgica. Minha vida teria tomado outro rumo, eu seria outro, se não tivesse encontrado Sérvulo. Em 1988 escrevi o texto abaixo Teseu e o Minotauro para a exposição do artista na Itaugaleria, Brasília, reproduzido no livro Sérvulo Esmeraldo, de Aracy Amaral, São Paulo, Pinacoteca do Estado, 2011: Amigo Sérvulo. Não sei em termos de tipografia o que significa o espaço que me reservas no catálogo, se aí caberá, nessa área, o tamanho do respeito que te tenho em primeiro lugar como artista, sem falar da amizade, do parentesco pelo tipo de vida, sonhos e a coragem de vivê-los, essa


REPRODUÇÃO

palavra arte, de que modo guiou-nos em nossa juventude desde a confluência paulista — parece ontem, não é mesmo? — e já faz 25 anos! —, o enigma da Europa em que te empregarias muito mais a fundo e que não abandonarias sem uma resposta, e como se inscreveu ela, a Europa, na nossa nordestinidade. Cedo compreendeste que não há experiência de arte sem experiência de vida. E assim casaste-te com uma mulher francesa e lá tiveste com ela as tuas filhas ao mesmo tempo em que trabalhavas, com rigor, tua obra, conduzindo-a sem desvios à total nitidez. Não tenho dúvidas de que, como quer Jorge Luís Borges, sejam artistas como tu os verdadeiros europeus de hoje, no sentido de que são os únicos de cultura europeia com suficientes recuo e isenção para extrair da Europa o sumo que os próprios europeus, por demais comprometidos com a sua europeidade, não seriam capazes de o fazer. E justamente pela existência desse ‘espaço de manobra’ de que não dispõem os europeus — e nem brasileiros ou argentinos ou outros

Peguei um trem em Milão. No outro dia de manhã desembarquei na Gare Du Nort. No topo da escada estava Sérvulo sul-americanos oriundos das chamadas ‘áreas abertas’ (vide Marta Traba), expostas ao bombardeio direto de todas as novidades, o que não é o caso do Nordeste —, por esse ‘espaço’, como dizia, se caracteriza (e não pela representação de coisas típicas) o verdadeiro artista nordestino. Chamo atenção para o lado ético da obra de Sérvulo e para a lição que ela nos dá a todos nós brasileiros, obra absolutamente isenta de qualquer apelação nordestinesca, porque o genuíno homem nordestino é aquele, citado uma vez por Aldemir, que procura se assenhorar da tecnologia do branco para servir

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1 ESCULTURA bra de Sérvulo O Esmeraldo. Aço pintado, 31x31x20 cm, década 1980

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à sua pátria, sem desanimar diante da falta de infraestrutura, inventando seus próprios recursos, criando por assim dizer a partir do nada, herdeiro dos heróis anônimos que consertam máquinas de costura nas calçadas e reinventam motores e chassis de caminhão. É essa fibra e qualidade nordestina e popular que anima a obra do erudito em Sérvulo Esmeraldo, que em sua volta, nessa verdadeira explosão atual de sua arte, nos mostra o quanto foi útil a sua demora e o quanto tinha e tem para dizer. Pensando na saga de Sérvulo me lembro da de Teseu e o Minotauro ou, em termos de Nordeste, da de Juvenal e o Dragão. Destemidamente foi lá e voltou intacto das garras do monstro devorador (a Europa) depois de um corpo a corpo de um quarto de século em que se bateu solitariamente nos labirintos da terra estranha, trazendo finalmente de volta a moça — a sua arte —, maravilhosamente experiente e desabrochada, linda como nunca, sem um arranhão. Ai, Dôdôra, eu também estou assim.


ANA LIRA

Visuais FOTOGRAFIA O poder da imagem em forma de livro

Cada vez mais frequentes no mercado editorial do país, os fotolivros ampliam o entendimento de fotografia e as suas possibilidades editoriais e gráficas TEXTO Olívia Mindêlo

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geral que gostaria de dar à história, sempre deixando certa margem de alternativas possíveis”. O trecho foi extraído do livro Seis propostas para o novo milênio (Companhia das Letras, 1990), uma publicação póstuma do escritor italiano, que morreu antes de concluir os textos dessas palestras que viria a proferir na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. O teor de tais falas refere-se ao processo de escrita de Calvino e à literatura de uma forma geral, mas também nos ajuda a pensar, particularmente no trecho acima, outras construções narrativas, como a do nosso tema em questão: a produção de fotolivros. Quando ministra aulas de editoração de livros de fotografia, o

O fotolivro é uma obra do século XX, mas com vocação para o contemporâneo, daí a retomada em maior escala hoje em dia

Cerca de 15 anos antes da

chegada do século XXI, Italo Calvino escreveu: “Em torno de cada imagem, escondem-se outras, forma-se um campo de analogias, simetrias e contraposições. Na organização desse material, que não é apenas visivo, mas igualmente conceitual, chega o momento em que intervém minha intenção de ordenar e dar sentido ao desenrolar da história – ou, antes, o que faço é procurar estabelecer os significados que podem ser compatíveis ou não com o desígnio

fotógrafo e editor Alexandre Belém recorre justamente a essa citação de Calvino para sintetizar um processo caro à feitura das publicações de sua editora, a Olhavê. Um processo caro ainda à centralidade que a imagem assumiu entre nós, ao produzir os mais diversos tipos de discurso neste mundo de urgências. Esse processo chama-se edição, que está no cerne dos fotolivros da Olhavê, especializada em imagem, e de outras publicações do gênero, cada vez mais recorrentes no mercado editorial brasileiro. Não estamos falando de livros de fotografia somente, tampouco do que se convencionou chamar de photobook ou fotolivro mesmo – no Brasil, um termo comumente associado ao serviço de impressão comercial de fotografias digitais em álbuns. Em nosso contexto aqui, entendemos fotolivro como algo “que não é apenas visivo, mas igualmente conceitual”, para trazermos Calvino novamente. Nesse sentido, são publicações que primam por um conceito e convidam ao mergulho, à suspensão do tempo, estando certamente muito mais

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próximas de um livro de arte ou de artista, embora, por razões óbvias, tenha a fotografia como sua matériaprima. Os fotolivros têm um impacto na maneira como entendemos “foto” ou mesmo “livro”, pois o encontro dos dois segmentos tem formado uma área peculiar de conhecimento. Uma das consequências é o reentendimento do que seja prática e difusão fotográfica. Isso amplia os horizontes da fotografia e, a reboque, as possibilidades editoriais, com especial ânimo para as produções independentes ou alternativas, de caráter mais artesanal. Não se trata de uma novidade. Como diz o pesquisador e professor espanhol Horacio Fernández, “o fotolivro é uma obra do século XX”, um gênero vindo, pelo menos, desde os anos 1920, “embora sua história comece antes”. Poderíamos afirmar que sua história acompanha a própria criação e difusão da fotografia, entre os séculos XIX e XX, e cresce com ela, traduzindo seu tempo, suas transformações, suas novas demandas. Talvez isso explique o fato de o fotolivro ser um suporte antigo, mas com vocação e impulsão bastante contemporâneas, pois “devese reconhecer que o interesse pelos fotolivros é muito recente: tem apenas uma década”, como também afirma Fernández, responsável pelo texto e pesquisa de Fotolivros latino-americanos (Cosac Naify, 2011). No caso do Brasil, esse interesse vem se ampliando mais visivelmente a partir desta década. Thyago Nogueira, editor da revista Zum e curador de fotografia contemporânea do Instituto Moreira Sales (IMS), dá seu testemunho disso: “Nos últimos anos e, no caso do Brasil, nos últimos 10 anos, mais ou menos, tem havido uma redescoberta do fotolivro. Fora do país, por volta de 2000, começaram a surgir as primeiras antologias que buscaram reescrever a história da fotografia através dos (foto)livros. Um reconhecimento, um entendimento dessa produção fotográfica. Esses levantamentos históricos nos fizeram perceber que esses livros eram mais importantes do que pareciam; livros que viajaram e formaram gerações de fotógrafos, principalmente em uma


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Visuais

época em que não havia internet. Isso impulsionou uma geração nova a produzir intensamente, uma geração mais interessada em publicar livros do que em expor em galerias e museus. Isso é um entendimento novo”.

LIVROS VIAJANTES

Uma dessas antologias a que se refere Thyago Nogueira é justamente Fotolivros latino-americanos, que, não por acaso, se desdobrou em uma exposição no próprio IMS (RJ), em 2013, com curadoria do autor e organizador da pesquisa. Horacio Fernández é um verdadeiro entusiasta da causa. Em seu livro, apresenta 150 obras datadas desde os anos 1920 e garimpadas a partir de um exaustivo trabalho investigativo pela América Latina. São obras de referência artística, cultural e histórica para o continente, incluindo o Brasil, tendo sido uma parte pincelada para a mostra. Seu documento atesta nossa vocação para o fotolivro – independente da produção europeia – com uma riqueza de informações que sustentam a importância do assunto. Ele reforça sua defesa ao gênero utilizando argumentos como: “os fotolivros

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permitem explicar as semelhanças, as influências, os estilos, tudo o que une os fotógrafos. E também tudo o que os separa”; “os fotolivros movemse ainda mais que os fotógrafos. Às vezes viajam vagarosamente, mas sempre chegam a todos os lugares”; “os fotolivros também podem alterar o cânone da história da fotografia,

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incluindo a latino-americana”. Argumenta ainda que o gênero é um “eficaz meio de apresentação, comunicação e leitura de conjuntos fotográficos”, pois “as exposições são bem menos maleáveis: viajam mal, duram pouco tempo, chegam a menos pessoas. Já nos livros, as ideias e a informação circulam melhor”.


1 AMÉRICA LATINA Livro de Horacio Fernández compila fotolivros latinoamericanos mais antigos, como este exemplar de Horacio Coppola, de 1936 PERNAMBUCO 2 Livro Voto, de Ana Lira, foi publicado pela PingadoPrés e superou as expectativas de venda, ao abordar propagandas políticas desgastadas

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O cenário se mostra tão vasto quanto passível de relativizações. O alcance dos fotolivros pode ser, inclusive, um ponto bem relativo. Na visão de Alexandre Belém, por exemplo, esse interesse mostrase ainda restrito, no Brasil, a uma “bolha” e “o mercado se restringe a um consumo interno” (geralmente

via internet). “Onde a gente pode dizer que o fotolivro borbulha é na Espanha. E lá a pergunta que norteia esse campo é: ‘como vender fotolivro para não fotógrafos?’”. Daí também o entusiasmo do espanhol Horacio Fernández. A coordenadora do Fotolab do curso de Design da UFPE em Caruaru, Daniela Bracchi,

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concorda com Belém: a produção e circulação de fotolivros no país ainda é bem pequena, se comparada à produção fotográfica, o que torna esse um universo limitado, apesar de crescente. Mesmo assim, o entusiasmo pelo gênero não se arrefece; ao contrário, está a plenos pulmões em seu espectro de alcance. A fotógrafa e artista Ana Lira tem uma perspectiva otimista: acredita que o público de fotolivros é amplo no Brasil e existe uma demanda reprimida para esse tipo de publicação, cujo potencial, segundo ela, é alcançar pessoas de outras áreas além da própria fotografia. Colecionadora de fotolivros, Ana ficou impressionada com a repercussão de seu projeto Voto, publicado em 2014, pela PingadoPrés. O conjunto de imagens, feito a partir da observação da ação do tempo sobre cartazes de propaganda política na cidade, esgotou rapidamente a primeira tiragem de 100 exemplares, gerando logo uma segunda, já esgotada na editora. Parece inegável que os fotolivros têm seu apelo, não apenas por reunir imagens em impressões com texturas, gramaturas, visualidades e cheiros, mas por dar a essas imagens outros sentidos através da linguagem do ensaio sob o verniz da edição – este exercício de escolhas, escolhas e escolhas. Se ver uma foto numa exposição tem um sentido único, em um livro nos leva a outro tipo de experiência, diferente, talvez mais duradoura, e não menos proveitosa – a depender da proposta, questão também inerente a uma mostra.


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Visuais

3 SÃO PAULO Clicado nos anos 1970, em um pensionato paulistano, ensaio de Gabriela Oliveira foi publicado em 2016 pela Olhavê e obteve repercussão internacional

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NARRATIVAS

Já é de senso comum, no campo artístico, que o advento da fotografia libertou a pintura. Mais de um século depois, podemos dizer que a libertação da linguagem pictórica, em seu rompimento com a “realidade”, também ajudou a libertar a fotografia de seus referentes tradicionais. Isso deu vazão para os fotolivros se colocarem como um vasto campo de experimentações, favorecido não apenas pelas viradas estéticas da história, mas ainda pelas transformações (e facilidades) tecnológicas. Nesse território de disputas simbólicas, editoras e “autopublicadores” procuram, cada um à sua maneira, imprimir uma marca.

“Um ensaio é para ser lido, não visto”, diz Alexandre Belém, premissa da Olhavê, sua editora de livros de fotografia Com 13 livros publicados e dois no prelo, entre fotolivros e edições teóricas, a Olhavê tem como “lema” o seguinte: “Porque a fotografia pode ser independente do estabelecido”. Sediada em São Paulo, sua linha editorial está, no caso dos fotolivros, bem próxima da fotografia conceitual, com processos de edição que flertam com os da criação. Desde a escolha do material bruto do autor

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até o design, tudo é pensado, de forma independente, pelos editores Alexandre Belém e Geórgia Quintas, ambos pernambucanos. Para tanto, possuem uma metodologia própria, como a utilização de mapas conceituais e outras técnicas de edição junto aos fotógrafos que chamam de “refotografar”. “Entendemos o que queremos, o livro tem que ter uma proposta”, explica Belém, que atuou como fotojornalista por mais de 20 anos. Essa proposta não possui uma fórmula, mas deixa à mostra um caminho estético-editorial. Por exemplo, nas mãos da editora, um ensaio na Ilha do Marajó (PA) ou no Rio de Janeiro deve percorrer trajetos improváveis aos registros das lentes costumeiras, sustentando-se, antes, em uma ideia, pois um “ensaio é para ser lido, não visto”, como Belém costuma dizer. Um caso interessante da Olhavê é o fotolivro Vertentes (2016), de André Conti. O fotógrafo havia clicado o condomínio onde passou a infância nas proximidades de São Paulo capital, mas o seu ensaio impresso vai por “outros” caminhos: atrela-se mais à experiência subjetiva do autor


4 INTERIOR André Conti fotografou o Condomínio Vertentes. Sua narrativa está mais próxima das memórias do que do “real”

naquele espaço do que ao seu referente “real” (o condomínio chamado Vertentes). Um certo ar de abandono e estranheza perpassa suas imagenspinturas, carregadas de simbologias e uma atmosfera de névoa, sombra e escuridão, afinal uma tradução bonita, onírica de suas memórias. De memórias pessoais também é feito o fotolivro 1978 (2016), com imagens em preto e branco de Gabriela Oliveira, uma moça que viveu, na década de 1970, em um pensionato religioso no centro de São Paulo. A publicação foi inserida na lista da revista Zum dos melhores livros de fotografia de 2016 e rendeu uma crítica nos Estados Unidos, levando um colecionador de Tóquio a comprar o trabalho. Também esteve nesse hall de eleitos da Zum em 2016 o fotolivro Ressaca, do artista Jonathas de Andrade. Derivado de um projeto expositivo de 2009, o trabalho foi editado pela Ubu, cujas integrantes vieram da Cosac Naify. A Ubu é outra editora brasileira que tem investido em livros de fotografia, incluindo nomes como Claudia Andujar e Marc Ferrez. As edições da Ubu e da Olhavê são muito elegantes

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e bem-acabadas, mas, no geral, mais simples do que costumam ser as experimentações nesse campo. A abertura de possibilidades gráficas se tornou uma das marcas das publicações independentes que têm apostado nesse filão. A diversidade editorial pode ser atestada em uma breve pesquisa no assunto, em uma volta rápida pelas feiras Plana e Tijuana, hoje referências no país, ou em um olhar cuidadoso pela fotografia que abre esta matéria, clicada por Ana Lira para a Continente, a partir de sua coleção. A fotógrafa tem verdadeira paixão por essa inventividade editorial, pois quebra um formato padrão que fizeram os livros de Sebastião Salgado serem uma verdade a ser seguida. Algumas das publicações recentes mudaram o entendimento da artista de fotolivro,

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como é o caso de Tcharafna, de Gui Mohallem (Pingado-Prés, 2014), justamente pelo formato móvel das páginas do livro. Mesmo assim, a artista, que hoje se autopublica, diz começar a sentir falta de bons ensaios fotográficos; ensaios que possam sair de uma tendência recorrente, hoje, voltada a fotografar elementos do espaço urbano, por exemplo, ou mesmo objetos pessoais. Na perspectiva de Ana Lira, a resposta está na formação, ainda uma lacuna, para que as pessoas aprofundem o conhecimento nesse campo. Por isso, ela mesma tem buscado desenvolver projetos nesse sentido, como a oficina Papel de Foto, que realiza este mês em Caruaru e São José do Egito, com o propósito de ensinar as pessoas a serem autônomas na produção de fotolivros. Com apoio


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Visuais do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura), a oficina é realizada em parceria com Daniela Bracchi, do Fotolab, e Sabrina Carvalho, da Livrinho de Papel Finíssimo, editora pernambucana que publica edições de baixo custo com criatividade e espírito de guerrilha, incluindo fotolivros. As parceiras de Ana Lira, aliás, acreditam ser a qualidade da edição uma problematização, um “nó cego” a ser trabalhado nas publicações de foto. A libertação das formas gráficas, como se vê, nem sempre é garantia de qualidade, principalmente se olharmos os ensaios fotográficos e suas propostas em formato de livro. A questão parece ser consenso entre os que atuam nesse campo. O curador Thyago Nogueira, do Instituto Moreira Sales, acredita ser mais fácil hoje, diante dessa profusão, encontrar livros mais desinteressantes do que interessantes. Ele vê isso como parte “natural” de uma produção aquecida, como é o caso dos livros de fotografia. Por isso, acredita que, após esse momento de frisson, a hora agora é de investir na crítica. A inauguração, em agosto, da biblioteca de fotografia do novo IMS, em São Paulo, com 7 mil publicações do nicho disponíveis ao público (inicialmente), deverá atender tanto à formação quanto ao exercício crítico, tão necessários ao país. O Nordeste seguirá, talvez, se virando… Seja como e onde for, os fotolivros abrem as janelas dos que lidam com a fotografia, mudam nossa maneira de ver imagem, mais ainda de concebê-la.

5 REFERÊNCIA Exemplo de fotolivro de Sebastião Salgado, publicado em 1982 6 CONTEMPORÂNEO Ensaio de Jonathas de Andrade, feito a partir de diário achado no lixo, saiu pela Ubu em 2016

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DIVULGAÇÃO

Sonoras

1 MAX MARTIN Compõe para artistas como Katy Perry, Adele e Taylor Swift

GHOSTWRITERS A fantástica fábrica de hits da música pop

Método de composição encampado pelo produtor e compositor sueco Max Martin demonstra como o gênero vem sendo moldado para permanecer um produto rentável TEXTO Débora Nascimento

No dia 9 de junho, mais um álbum de música pop chegou ao mundo: Witness, o quinto de Katy Perry. Bastante aguardado por fãs, principalmente após a boa impressão causada pelo single lançado em fevereiro, Chained to the rhythm, o disco dividiu a crítica: enquanto o Pitchfork deu pontuação 4,8 e o Allmusic, duas estrelas, a Rolling Stone concedeu

três e o NME, mais generoso, quatro. Em nove das 15 faixas desse lançamento, um nome se repete nos créditos, Max Martin. O compositor e produtor sueco já havia sido responsável por alguns sucessos da cantora norte-americana, uma das best-sellers da música hoje. Dentre eles, I kissed a girl (2008), Hot n cold (2008), California gurls (2010) e Roar (2013) – no

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YouTube, o hit já ultrapassou a marca dos 2 bilhões de acessos. O rosto e a voz de Katy Perry são conhecidos por boa parte dos 9 bilhões de terráqueos, enquanto Max Martin pode circular tranquilamente pelas ruas mundo afora, que provavelmente não será reconhecido, mesmo sendo autor de dezenas das músicas mais executadas nos últimos 20 anos, escrevendo e produzindo para artistas e grupos, como Backstreet Boys, Britney Spears, N’Sync, Kelly Clarkson e Avril Lavigne. Seu nome também consta nos créditos dos dois recentes vencedores da principal categoria do Grammy, Álbum do Ano: 1989, de Taylor Swift (2016), e 25, de Adele (2017). Com 21 hits nº 1 no Hot 100 da Billboard, Max Martin é o compositor com o terceiro número de singles na lista, atrás apenas de Paul McCartney (32) e John Lennon (26). Sua importância na indústria fonográfica é tanta, que ele foi apontado como a terceira pessoa mais influente da Suécia, só perdendo para os membros do ABBA, Anni-Frid Lyngstad e Benny Andersson (2º lugar), e o dono da IKEA, Ingvar Kamprad (em 1º).


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2 SIA Compositora revelou método de realização dos discos de Beyoncé ESTER DEAN 3 Autora de hits de Rihanna, ela quer ter sua própria carreira

Sonoras 2

Nascido num subúrbio de Estocolmo, Martin Karl Sandberg estudou no programa de educação musical pública de seu país e começou a carreira como integrante da banda It’s Alive, que chegou a lançar dois discos. Em 1993, ao assinar contrato com o Cheiron Studios, afiliado da BMG, o produtor Denniz Pop descobriu em Martin o talento para escrever canções pop e o trouxe para sua equipe de compositores, ao mesmo tempo em que o transformava em seu aprendiz na produção. Trabalharam juntos no segundo álbum do grupo pop sueco Ace of Base, The bridge (1995), que vendeu seis milhões de cópias. Em 1995, mesmo ano em que deixou sua banda, Martin foi convocado para trabalhar no debut dos Backstreet Boys, uma boy band recém-contratada pelo selo Jive (BMG) para ocupar o terreno do New Kids on the Block, que, entre 1986 e 1994, vendeu 80 milhões de cópias. Para o álbum, lançado em 1996, o compositor e produtor escreveu seus três primeiros hits, As long as you love me, Quit playing games (with my heart) e Everybody – as duas últimas como coautor. Quando, em 1998, Max Martin criou e coproduziu o primeiro hit de Britney Spears, Baby, one more time, ficou comprovado que os hits iniciais dos BB não foram um lance de sorte. Nesse mesmo ano, Denniz Pop faleceu de

O método de composição da música pop hoje envolve diversos responsáveis por partes específicas de uma canção câncer, com apenas 35 anos, e seu pupilo assumiu o lugar do mestre, construindo um império na indústria musical e uma metodologia de composição que abandona a ideia romantizada de um compositor criando a partir de uma inspiração divina.

QUATRO, CINCO, SEIS AUTORES

Nessa nova forma de encarar o ato de compor, as canções são frutos de criações coletivas, possuem quatro, cinco, seis ou até mais autores. Exemplos recentes disso estão nos discos Witness, de Katy Perry, Blonde, de Frank Ocean, Lemonade, de Beyoncé, e The life of Pablo, de Kanye West (estes três últimos ainda contam com os créditos dos compositores dos samples usados nas faixas). Ao contrário de uma música criada sob a égide da arte, esse mecanismo utilizado por Max Martin tem o simples objetivo de gerar sucessos e lucros.

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Nessa fábrica de hits, o compositor não chega mais com uma música para ser produzida, ela é produzida ao mesmo tempo em que é composta. O cantor costuma aparecer apenas para colocar sua voz. Se tiver peso no mercado, ou seja, se for um best-seller, poderá interferir na letra, na melodia, nos arranjos e ser, inclusive, creditado, a exemplo de Beyoncé, cuja autoria das canções vem sendo alvo de controvérsia. Essa polêmica ganhou força em 2007, quando, creditada como coautora de Listen, do filme Dreamgirls, teve seu nome excluído da lista de compositores na ocasião da indicação da faixa ao Oscar de Melhor Música Original. A Academia leva em consideração as três principais contribuições a uma composição concorrente – ou seja, sua participação foi pequena. Linda Perry, ex-vocalista do 4 Non Blondes e autora de hits de cantoras como Pink e Christina Aguilera, em 2014, ao ser questionada pelo site Reddit sobre como se sentia ao saber que Beyoncé mudava uma palavra e obtinha crédito, respondeu: “Alguns desses artistas acreditam que, se não fosse por eles, sua música nunca chegaria lá. Então, eles pegam uma parte do crédito porque são quem são. Mas todos sabem a verdade sobre Beyoncé. Ela é talentosa, mas de uma maneira completamente diferente”.


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Hoje, Beyoncé emprega um método para elaborar um disco que condiz com esse procedimento de fabricar hits. “O processo com ela é quase um acampamento de compositores. Ela viaja com a gente aos Hamptons e todos nós ficamos juntos em uma casa, em torno de cinco compositores e produtores muito bons. Ela visita cada quarto, contribui e deixa claro tudo o que está sentindo sobre a composição. Beyoncé é meio Frankstein quando faz música, pois vai dizendo ‘eu gosto do verso dessa, gosto do refrão dessa, do pré-refrão dessa. Você pode misturar?’”, contou, em entrevista à Rolling Stone, em 2015, a cantora e compositora Sia, nome por trás de músicas de Katy Perry, Christina Aguilera e Rihanna. Questionado sobre o crédito de Beyoncé em Halo, o compositor, produtor e cantor Ryan Tedder amenizou: “Ela faz coisas em qualquer música que, quando você vai da demo para a versão

final, ela a leva para outro nível que você nunca teria pensado como escritor”. Curiosamente, ao ouvir a demo original, com a voz de Tedder, Halo está lá prontinha. Apenas sem a produção final e, claro, a voz de Beyoncé. No livro The song machine (2015), o jornalista John Seabrook compara esse processo de compor ao “track-and-hook” da Jamaica. Lá, os produtores de reggae costumavam fazer uma batida básica (track) e convidavam vários cantores e compositores para gravar melodias (hook) a partir dela. “Hoje, o track-andhook virou o pilar da música popular. É comum que um produtor mande a mesma batida para várias pessoas — em casos extremos, até 50 — e escolha a melhor melodia entre elas.” E, claro, nesse trajeto podem acontecer atropelos. Foi assim que Halo (Ryan Tedder/E.Kidd Bogart/Beyoncé), divulgada em abril de 2009, ganhou uma irmã gêmea, Already gone (Ryan Tedder/

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Kelly Clarkson), de Kelly Clarkson, lançada em agosto daquele ano. Tedder havia mandado a mesma batida para as duas cantoras. Mas, para Beyoncé, enviou com a letra completa. Os produtores dessas fábricas de hits são sempre homens: David Guetta, Timbaland, Neptunes, o coletivo Stargate, Tricky Stewart, Savan Kotecha, Dr. Luke e Shellback (os três últimos discípulos de Max Martin). Dentre os compositores, há algumas mulheres, as cantoras Makeba Riddick, Bonnie McKee, Skylar Gray e Ester Dean. O cantor fornece ao artista uma demonstração de como deverá ser a interpretação. Responsável por dois hits de Rihanna, Rude boy e What’s my name?, Ester Dean é tão boa cantora quanto a diva de Barbados. Embora seja uma bem-sucedida profissional da composição e do canto, ela vem tentando ter a sua própria carreira como artista e sair da sombra, mas não encontra apoio suficiente – no mercado, ela vale mais na obscuridade do que sob os holofotes. Afinal, está rendendo dinheiro a muita gente. Essa engrenagem tem um alto preço… Segundo uma pesquisa da rádio pública norte-americana NPR, uma gravadora desembolsa, pelo menos, U$ 1 milhão para divulgar uma música, incluindo as estratégias para que uma gravação consiga emplacar nas rádios, escolhendo, inclusive, datas, horários e quantidade das execuções. Os gastos, no entanto, começam bem antes. Para montar o álbum Loud (2010), de Rihanna, a gravadora Def Jam reuniu em torno de 40 pessoas, entre compositores e produtores, e as colocou em 10 estúdios de gravação por duas semanas, com custo diário de U$ 25 mil. Uma única composição tem o saldo final de U$ 75 mil. Essa escala de produção fez com que a cantora lançasse, de 2005 a 2012, um álbum por ano, com exceção apenas de 2008. Todos eles recheados com hits.

TIN PAN ALLEY

Esse mecanismo da música pop, de alguma forma, traz em sua essência a alma do Tin Pan Alley, quando, após o fim da Guerra Civil, editores e compositores se concentraram entre a West 28th Street entre a 5ª e a 6ª


REPRODUÇÃO

4 HOLLAND-DOZIER-HOLLAND Trio compôs sucessos dos artistas da Motown Records

Sonoras

4

Avenida em Manhattan e passaram a dominar o mercado musical nos Estados Unidos até o início da Grande Depressão, quando o fonógrafo e o rádio suplantaram a partitura como veículo de divulgação da música popular, vencida diante do rock’n’roll. “Tin Pan Alley se foi. Acabei com isso. As pessoas podem gravar suas próprias músicas agora”, disse Bob Dylan, em 1985, sobre a forma de atuar desse mercado. Além dos músicos contratados, havia a compra de músicas a compositores, geralmente pobres e desconhecidos. Então, um outro nome ligado à editora era adicionado como autor ou coautor, que, às vezes, poderia modificar um pouco a composição. A empresa obtinha direitos plenos, lucrando com a comercialização dessas partituras. Muitos imigrantes europeus, como o russo Irving Berlin (1888-1989), tornaram-se editores e/ou compositores nesse conglomerado.

Embora Bob Dylan tenha estabelecido a era do singer-songwriter, havia uma quantidade enorme de autores que continuavam a fornecer canções para artistas como Frank Sinatra e Elvis Presley (Otis Blackwell, Mac Davis, Doc Pomus e Mort Shuman, Jerry Reed e a dupla Leiber e Stoller), enquanto as gravadoras muniam-se dos melhores autores para lançar canções de sucesso. Fundada em 1959, com a intenção de contratar apenas artistas negros, a Motown Records tinha um dream team de criadores, como o trio Holland-DozierHolland (Lamont Dozier e os irmãos Brian e Edwin Holland Jr), responsável por escrever, arranjar e produzir joias como Stop, in the name of love e Baby love, com as Supremes, Baby, I need your loving e Reach out! (I’ll be there), com os Four Tops. Em 1967, o HDH, como eles também eram chamados, processou o diretor Berry Gordy Jr. para obter participação nos lucros e royalties.

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Fizeram uma greve de criação e, em 1968, deixaram a gravadora de Detroit, criando seus próprios selos, Invictus Records e Hot Wax Records, sem o mesmo impacto da Motown. Com a saída do trio de ouro, a gravadora montou, em 1967, um outro coletivo de compositores chamado The Clan (R. Dean Taylor, Frank Wilson, Pam Sawyer e Deke Richards) e, em 1969, The Corporation (Berry Gordy, Mizell Alphonzo, Freddie Perren e Deke Richards), que, dentre outros feitos, escreveu e produziu as primeiras três músicas do Jackson 5 que atingiram o 1º lugar das paradas, I want you back, ABC e The love you save. Foi emulando o rastro do Jackson 5 que o cantor, compositor e produtor Maurice Starr, sem alcançar o sucesso como artista nos anos 1970, resolveu montar, no início dos 1980, uma boy band de meninos negros: New Edition. O grupo emplacou os hits Is this the end e With you all the way. Após problemas com o quinteto, Starr preparou outra boy band. Juntou uns adolescentes com boas vozes (nessa época, não havia Auto-Tune) e formou o New Kids on the Block. Os jovens passaram a cantar R&B como se fosse o New Edition branco. Após o último disco, em 1994, o quinteto retornou ao estúdio só em 2008 e ganhou, em outubro de 2014, uma estrela na Calçada da Fama. Coube a Starr conformar-se apenas em posar ao lado de suas criaturas.

BRILL BUILDING

Após o declínio do Tin Pan Alley, despontou um outro agrupamento de escritórios de gravadoras, estúdios e compositores. Concentrados no Brill Building, em Nova York, tinham um objetivo em comum: fazer e lançar hits, principalmente para grupos vocais femininos e ídolos adolescentes. As gravações eram realizadas pelas orquestras mais gabaritadas da época, Benny Goodman, Glenn Miller, Jimmy Dorsey e Tommy Dorsey. Essas composições dominaram as paradas de sucesso, com mais destaque no período entre o alistamento de Elvis


INDICAÇÕES no Exército (1958) e a Invasão Britânica (1964). Um motivo para a decadência do “Brill Building Sound” foi que, com a onda dos cantorescompositores encabeçada por Bob Dylan, alguns dessas dezenas de autores, como Burt Bacharach, Neil Diamond, Carole King, Neil Sedaka e Jerry Landis (hoje mais conhecido como Paul Simon), investiram em suas próprias carreiras. “Muitos escritores querem ser artistas. A maioria deles pode cantar, e muitos deles podem cantar muito bem. Mas, para ser um artista, é outra história. Para ser capaz de realizar, ser a pessoa que todos olhem quando entra na sala, com toda a publicidade e turnês, e então para poder obter esse som no registro – isso não é fácil. Você pode ser um grande cantor, mas, quando ouvimos o registro, está faltando alguma coisa”, afirmou à New Yorker, em 2012, Mikkel Storleer Eriksen, integrante de outra fábrica de hits, o coletivo Stargate. Poucos são os que conseguem trilhar esse caminho inverso, como Sia, Bruno Mars, Ne-Yo e Kesha. Por outro lado, muitos cantores também querem ser compositores, embora pouquíssimos consigam. Na área do pop e do rock, são raros os exemplos, como Lady Gaga, que toca instrumentos e compõe. E mais raros ainda são os artistas múltiplos, como Prince, George Michael, Paul McCartney, Keith Richards, Jack White e Beck, que criam, tocam, arranjam e produzem suas canções. Quando o artista percorre todo esse processo, há a certeza de que 100% de uma canção saiu de sua cabeça. Mas qual o verdadeiro peso que um produtor tem

no resultado final de uma composição? George Martin, por exemplo, exerceu forte influência sobre as músicas dos Beatles, no início da carreira do quarteto. O impacto que as canções dos Beatles tiveram nos anos 1960 tornou-se uma referência e, como tal, sempre tentam alcançá-lo, reprisá-lo. E é exatamente isso que, afinal, toda essa fábrica de sucessos almeja reproduzir. Mas, cada disco dos Fab Four era repleto de composições que não eram apenas hits, mas importantes contribuições para a evolução da música popular. A diferença é que, como processo industrial, a produção atual perde muito daquilo que torna cada canção uma experiência e um documento singular. O cantor pop Justin Bieber pode não ser a pessoa mais indicada para criticar essa engrenagem, mas, em 2015, deu à Billboard uma declaração categórica: “Não posso pular os momentos sombrios, os momentos felizes, as coisas com a ex-namorada. Isso me faz real, melhor do que ‘vamos chamar o Max Martin para escrever um sucesso’. Eu quero que minhas músicas sejam inspiradoras”. Há 20 anos, Max Martin domina as paradas de sucesso e seu esquema é replicado por outras equipes. Um número restrito de compositores e produtores está criando uma quantidade imensa de músicas que vão continuar invadindo rádios, TVs, Youtube, aplicativos de streaming. Com a música popular acorrentada a esse ritmo (para mencionar o título da citada Chained to the rhythm), o que estão sendo moldados são o som e o gosto de uma geração. Se essas canções vão sobreviver ao tempo, só ele dirá.

EXPERIMENTAL

SURF ROCK

LUIZA LIAN Oyá Tempo

WAVVES You’re welcome

A cantora e artista visual paulistana Luiza Lian lançou seu primeiro trabalho solo em 2015 com o álbum homônimo. No mais recente, Oyá Tempo, produzido por Charles Tixier, ela optou por explorar linhas mais experimentais, alinhadas a elementos da umbanda, cantigas para orixás, jazz e da cultura pop. Em vez de fazer um clipe faixa a faixa, Lian preferiu um média-metragem – disponível no Youtube – que abraça o álbum inteiro, e um site.

Dois anos depois de lançar seu último álbum, Wavves retorna com um instigante You’re welcome. O anúncio foi feito noTwitter mesmo, pelo próprio Williams, vocalista da banda. Destaque para a faixa-título, que nos remete a uma euforia tão característica do noise pop, estilo musical que também se assemelha bastante ao trabalho da banda norte-americana. Um dos pontos fortes do álbum, e talvez da banda, é que remonta a um trabalho nostálgico, como feito numa garagem nos anos 1980.

EXPERIMENTAL

REGIONAL

Selo Risco

CURUMIN Boca Natura Musical

“É o seguinte: eu sou homem, branco e heterossexual. Teoricamente, isso faz de mim um BOSTA!” é o que declara O burguês que deu errado, segunda faixa de Boca, do multi-instrumentista Curumin. Em seu quarto álbum solo, lançado no final de maio e realizado com incentivo do edital Natura Musical, o músico paulista conversa com o hip-hop e ritmos variados a partir de sua base eletrônica, dando à Boca uma sonoridade pop e, ao mesmo tempo, experimental.

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Ghost Ramp

FILPO RIBEIRO E A FEIRA DE ROLO Contos de beira d’água Independente

Formado por Filpo Ribeiro, Marcos Alma, Guegué Medeiros (percussão e bateria) e Diogo Duarte (trompete, triângulo e vocais), o grupo traz uma sonoridade que explora uma miscelânea de ritmos: forró, coco, samba de roda, fandango caiçara, reisado e até o lundu, do norte de Minas Gerais, que ganhou uma adaptação na faixa Melado Venâncio. O destaque vai para o xote Chegue devagar. A versatilidade dos músicos possibilitou que vários instrumentos fizessem parte dos arranjos.


CON TI NEN TE

Criaturas

Marisa Monte por Sávio Araújo

Poucas artistas brasileiras conquistam, em suas estreias, o prestígio consensual que Marisa Monte conquistou com o seu primeiro LP, MM. Com bela voz, belo porte e repertório garimpado nas joias da MPB, a carioca de vinte-e-poucos-anos afirmou-se como uma intérprete de personalidade. Agora, aos 50 anos, ela coleciona prêmios e uma história de sucesso, mantendo uma dignidade profissional rara no cenário da música popular.

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Revolução Republicana

EM PERNAMBUCO,

A luta pioneira de bravos guerreiros

QUALIDADE FAZ ESCOLA. São várias as conquistas recentes do nosso ensino público. Conquistas que são resultado

de muito trabalho e investimento. As escolas da rede estadual estão mais modernas e bem equipadas. Incentivam os nossos estudantes a aprender. Eles sabem que educação de qualidade é capaz de transformar as suas vidas. E que é isso o que a nossa escola pública, hoje, oferece: um futuro melhor para milhares de jovens pernambucanos.

1º lugar do Ensino Médio no IDEB

37 escolas técnicas estaduais (10 novas desde 2015)

Menor taxa de abandono escolar no Ensino Médio

46 quadras já entregues pelo Programa Quadra Viva

Maior rede de ensino em tempo integral do país

Mais de 5 mil embarques pelo Programa Ganhe o Mundo

368 escolas em tempo integral (39 implantadas em 2017)

Novas modalidades desde 2015: Ganhe o Mundo Esportivo e Ganhe o Mundo Musical

51% das vagas do Ensino Médio em escolas em tempo integral

Passe Livre RMR disponível para mais de 260 mil alunos

Pernambuco comemora os 200 anos da Revolução Republicana, deflagrada em 6 de março de 1817. Para celebrar a data, a Cepe lança a História da Revolução Pernambucana em 1817, de Muniz Tavares, com notas de Oliveira Lima. Um texto clássico sobre o movimento que primeiro defendeu a instauração de uma República no Brasil e narrou a luta dos bravos guerreiros pernambucanos contra o arbítrio.


www.revistacontinente.com.br

# 199

HERMILO BORBA FILHO AOS 100 ANOS DO SEU NASCIMENTO, ENCENADOR E ESCRITOR TEM PARTE DE SUA OBRA RELANÇADA

#199 ano XVII • jul/17 • R$ 13,00

CONTINENTE

LITERATURA JUL 17

A PRODUÇÃO EM LÍNGUA ESPANHOLA NA ÁFRICA

E MAIS: JORGE LUIS BORGES FOTOLIVRO MICHEL MELAMED DUBAI


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