# 200
CONTINENTE
www.revistacontinente.com.br
ano XVII • #200 • ago/2017 • r$ 13,00
CONTINENTE
OSMAN LINS
Um olhar sobre as cartas trocadas entre o escritor e suas filhas
AGO 17
DOCUMENTA Corpos fora do padrão são a tônica da mostra alemã
HOBSBAWM Historiador britânico completaria 100 anos em 2017
Ministério da Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Cultura de Pernambuco, Fundarpe, Museu do Estado de Pernambuco e Santander apresentam:
EM PERNAMBUCO, QUALIDADE FAZ ESCOLA.
PROGRAMAÇÃO
julho e agosto
Ouvindo Música no Museu do Estado de Pernambuco
2017
Iniciando o segundo semestre de 2017, a programação do Ouvindo e Fazendo Música no MEPE (Museu do Estado de Pernambuco) para os meses de julho e agosto amealha os mais diversos estilos musicais.
São várias as conquistas recentes do nosso ensino público. Conquistas que são resultado de muito trabalho e investimento. As escolas da rede estadual estão mais modernas e bem
ADAM EVALD 01/07 • SÁBADO • 17h
RENATO BANDEIRA E SOM DE MADEIRA 08/07 • SÁBADO • 17h
VITOR BRAUER E JONATHAN TADEU 15/07 • SÁBADO • 17h
TERRY HARMONICA BEAN 22/07 • SÁBADO • 17h
FELIPE S. 29/07 • SÁBADO • 17h
HENRIQUE ALBINO TRIO 05/08 • SÁBADO • 17h
SABIÁ SENSÍVEL 12/08 • SÁBADO • 17h
FEMI TEMOWO 19/08 • SÁBADO • 14h
SHUFFLE DEMONS 26/08 • SÁBADO • 17h
equipadas. Incentivam os nossos estudantes a aprender. Eles sabem que educação de qualidade é capaz de transformar as suas vidas. E que é isso o que a nossa escola pública, hoje, oferece: um futuro melhor para milhares de jovens pernambucanos.
1º lugar do Ensino Médio no IDEB
Menor taxa de abandono escolar no Ensino Médio
Maior rede de ensino em tempo integral do país
368 escolas em tempo integral (39 implantadas em 2017)
51% das vagas do Ensino Médio em escolas em tempo integral
PATROCÍNIO
37 escolas técnicas estaduais (10 novas desde 2015)
46 quadras já entregues pelo Programa Quadra Viva
Mais de 5 mil embarques pelo Programa Ganhe o Mundo
Novas modalidades desde 2015: Ganhe o Mundo Esportivo e Ganhe o Mundo Musical
Passe Livre RMR disponível para mais de 260 mil alunos
PRODUÇÃO
SÁBADOS COM MAIS MÚSICA NO RECIFE
APOIO
Ouvindo Música no Museu do Estado de Pernambuco. INGRESSOS Programação regular: R$6,00 Pessoas acima de 60 anos e estudantes: R$ 3,00
MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO Av. Rui Barbosa, 960 Graças Recife – Pernambuco – Brasil – 52011-040 Telefone: 81 3184.3174 / 3170 E-mail: museu.mepe@gmail.com Agendamento para visita guiada: 81 3184.3174 Horário de funcionamento Ter a sex 9h às 17h Sáb e dom 14h às 17h
REALIZAÇÃO
SECRETARIA DE CULTURA
MINISTÉRIO DA CULTURA
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Nesta Edição A nova Continente #200 “Escrever, para mim, virá talvez a adquirir, algum dia, um sentido mais preciso e elevado. No momento, representa um modo de não sucumbir”, escreveu Osman Lins, numa das cartas destinadas às filhas, Litânia, Letícia e Ângela. O escritor passou a se corresponder com elas após mudar-se para São Paulo. Parte desse acervo epistolar tão íntimo e inédito – cedido à Continente por suas filhas, a quem voltamos a agradecer – foi transformada numa bela crônica pelas mãos do historiador e escritor José Luiz Passos, que amalgama as vozes de primeira e terceira pessoas numa celebração da memória e do afeto ao aclamado autor de Avalovara. Eis o texto de capa desta edição, que inaugura a nova fase da revista, em seu número 200. Nossa última grande mudança aconteceu em abril de 2009, na Continente #100. Agora, chegamos a um contexto social, político e cultural diferente, que vem, a cada dia, desafiando o jornalismo a encontrar novos espaços e atualizar suas formas de estar no mundo. Respondemos ao momento com layout e proposta editorial mais contemporâneos, adensando a qualidade de um conteúdo que há 17 anos vem legitimando a publicação no cenário do jornalismo cultural brasileiro. Em vez das seções destinadas a linguagens culturais, a revista terá boa parte de seus textos distribuídos por gêneros jornalísticos, tais como reportagem, entrevista, artigo, ensaio, crítica. A literatura, o cinema, o teatro, as artes visuais, a música e as outras temáticas que sempre correram as páginas da Continente seguirão por aqui, surgindo aos leitores de modo mais híbrido e livre. Em paralelo à modificação na revista impressa, o site acompanha as transformações, tornando o conteúdo ainda mais alinhado e acessível em diversas plataformas. No endereço www.revistacontinente.com.br, os leitores encontrarão não apenas as matérias das edições impressas, mas ainda conteúdos exclusivos. As colunas de José Cláudio (Matéria Corrida) e Ronaldo Correia de Brito (Entremez), antes publicadas na Continente impressa, migraram para o endereço eletrônico, onde também teremos uma nova coluna, a da nossa repórter especial Débora Nascimento. Ao longo deste início de século XXI, acompanhamos a cena cultural local, nacional e internacional, sempre entendendo a cultura em seu sentido mais amplo, sempre tendo clareza, também, de que somos uma revista feita em Pernambuco, com os pés fincados por essas bandas, mas o olhar no horizonte e no futuro. Vida longa à Continente! Nossa capa: Osman Lins. Foto do arquivo da família
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6 Entrevista Roberto Menescal
Ícone da Bossa Nova, compositor e instrumentista relembra histórias dos seus 60 anos de carreira
14 Curtas Lama dos dias
Em fase de filmagem, documentário resgata a cena recifense durante o surgimento do manguebeat
18 Portfólio Vânia Mignone
Artista trabalha narrativas em obras formatadas através da acumulação
26 Reportagem Documenta de Kassel
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Em sua 14ª edição, mostra propõe um olhar sobre a resistência dos corpos marginalizados
38 Artigo María Zambrano
Pensadora espanhola investigou a essência do fenômeno poético e os seus vínculos com a filosofia
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Perfil
Eric Hobsbawm No centenário de seu nascimento, historiador britânico tem sua trajetória revisitada
50 Inédito Osman Lins
As cartas trocadas entre o escritor, que viveu durante anos em São Paulo, e suas três filhas
60 Crítica Gabriel e a montanha
No filme, o diretor Fellipe Gamarano Barbosa volta a pensar sobre a empatia
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65 Lançamento O massacre da Granja São Bento
Livro-reportagem narra a história do assassinato de seis guerrilheiros da VPR em Pernambuco
74 Ensaio Sinos
No século XXI, a compreensão de sua linguagem, seus toques e significados, já não existe
82 Crônica O filme da vida dela
Cronista curitibano Luís Henrique Pellanda escreve sobre um instante de suspensão
84 Indicações Sugestões de filme, série, show, exposição e disco disponíveis neste mês
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Online + Cartas + Expediente
88 Saída Por Samuca
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Entrevista ROBERTO MENESCAL
“EU NÃO SABIA O QUE ERA CARNEGIE HALL” Prestes a completar 80 anos, compositor, instrumentista, produtor e um dos ícones da Bossa Nova fala sobre os momentos marcantes dos 60 anos de sua carreira, como os bastidores do movimento musical TEXTO DÉBORA NASCIMENTO
“Dia de sol, festa de luz.” Foi exatamente assim, de forma errada, que Roberto Menescal começou a cantar O barquinho, na sua malfadada performance no concerto da Bossa Nova no Carnegie Hall, em 21 de novembro de 1962. Diante de uma plateia de 3 mil pessoas, que contava com espectadores como Dizzy Gillespie, Miles Davis, Tony Bennett, Gerry Mulligan e Herbie Mann, a atrapalhada – e ainda desafinada – apresentação na casa de espetáculos da Sétima Avenida de Nova York era efeito do nervosismo do estreante, que ali cantava em público pela primeira vez. Por uma desorganização da produção e dele próprio, acabou tendo que colocar a voz na sua composição lançada um ano antes e que logo se tornou um dos clássicos bossa-novistas. Naquela data, com apenas 25 anos, o capixaba radicado no Rio de Janeiro, “playboyzinho de Copacabana”, integrava a comitiva do evento que
levou o new brazilian jazz para o mundo. O deslize do músico foi apenas um dos atropelos daquele histórico evento que, felizmente, não prejudicou a expansão internacional da bossa nem a carreira de seus expoentes, como João Gilberto, Antonio Carlos Jobim e o próprio Roberto Menescal. Além de renomado compositor (coautor de O barquinho, Você, Nós e o mar, Ah, se eu pudesse e Rio, essas com seu principal parceiro, Ronaldo Bôscoli, e de Bye, bye, Brasil, com Chico Buarque), transformou-se também num dos músicos mais requisitados do país. Sua trajetória de instrumentista começou há exatos 60 anos, quando, em 1957, passou a acompanhar Sylvinha Telles. Em 1958, com Luiz Carlos Vinhas, Bebeto, Henrique e João Mário, o músico formou o Conjunto Roberto Menescal, tocando nos shows e discos de diversos artistas, como Maysa, Vinicius de Moraes, Dorival Caymmi, Nara Leão e Elis Regina.
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Concentrado na zona sul do Rio, o movimento, que simbolizava o clima ameno e desenvolvimentista do governo de Juscelino Kubitschek (1955–60), perdeu o sentido com a instauração da ditadura militar, em 1º de abril de 1964, menos de dois anos depois daquela apresentação no Carnegie Hall. Mas seus integrantes seguiram trajetórias vitoriosas, como Menescal, que, entre 1970 e 1986, trabalhou como produtor e diretor da gravadora Polygram/Philips (atual Universal), liderando um casting que, entre outros, incluía Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia. Nesta entrevista por telefone, o compositor, músico e produtor, que em outubro completa 80 anos, fala sobre as seis décadas de trabalho na música brasileira, o mercado fonográfico, a relação com a música pernambucana, a conturbada amizade com João Gilberto, e revela algumas histórias de bastidores, como a daquela performance no Carnegie Hall.
ALCIONE FERREIRA
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Entrevista
CONTINENTE Como é a sua ligação com a música pernambucana? ROBERTO MENESCAL Minha primeira ligação não foi nem com a música, foi com um músico. Quando eu tinha meus 18 anos, fui estudar com Moacir Santos. Tive a sorte de cair na mão dele. Foi vital, não só pelo meu lado musical, mas também como pessoa. Ele me deu muita lição de vida. Eu ficava fascinado, queria sempre saber como ele era, de onde veio. Ele veio de lá do sertão pernambucano e, de repente, vira esse músico maravilhoso, que depois foi vitorioso no Brasil e nos Estados Unidos. Isso me deu um rumo na vida, me fez pensar que tudo é possível. Depois, eu não tive mais muito contato com a música pernambucana nem com o estado. Comecei a viajar, e minhas viagens foram muito mais para o exterior. Mas, um dia, vim aqui em Pernambuco, 12 anos atrás, e tive contato com Luciano Magno, que é esse guitarrista maravilhoso, um dos maiores que eu conheço do Brasil, quiçá, do mundo. E a gente começou a ficar amigo. De repente, eu vinha fazer uma coisa junto com o trio dele no Recife. E, depois, vim para Garanhuns, em 2007, participar de um festival da música, e conheci algumas pessoas, como a cantora Andrea Amorim. Ficamos amigos, depois gravamos juntos. Não sei se foi nesse festival ou no do ano seguinte, me pegaram no aeroporto e eu subi também para Garanhuns com André Rio. Não sabia quem ele era, só no meio do caminho fui saber, e a gente foi criando essa relação. Nesse mesmo festival, fiz uma música para o Luciano (Samba Magno). André Rio pôs a letra. Então, foi se formando um grupinho. Depois, eles me chamaram para fazermos uns shows. Ano passado, fizemos mais alguns, agora esses (Paço do Frevo, Teatro RioMar e Porto de Galinhas) e depois seguiremos para a Europa. CONTINENTE Você começou falando sobre Moacir Santos, e essa já era uma das minhas perguntas. Queria saber o que era ensinado nessas aulas, quanto tempo durou esse curso. ROBERTO MENESCAL Passei um ano com ele, estudando toda semana. E era engraçado, porque ele me dava aula, depois falava: “Senta aqui no sofá”, e ficava me dizendo coisas. Por exemplo, perguntei a ele: “Posso fumar aqui?” Ele
Quando eu tinha meus 18 anos, fui estudar com Moacir Santos. Ele ensinava música comparando com a vida. Foi meu primeiro grande mestre falou: “Pode, claro, eu fumo também.” Aí, eu fumava e via que ele não fumava, e perguntava: “Moacir, você fuma ou não fuma?” “Eu fumo, mas fumo um cigarro por dia, que é melhor do que os 20 que você fuma. Você não sabe o que é fumar um cigarro por dia, esperar aquelas 24 horas pra fumar apenas um cigarro.” Aquilo, na realidade, era uma dica, inclusive musical: não precisa usar tanta nota, use as notas boas na hora certa. Então, ele me ensinava música comparando com a vida. Foi um ano de muito aprendizado. Foi meu primeiro grande mestre. CONTINENTE Antes da Bossa Nova, o que você tocava? ROBERTO MENESCAL Comecei a tocar violão muito tarde, com 17 anos. A primeira música que me fez sair de casa para comprar um disco foi Boiadeiro, de Luiz Gonzaga. Fiquei louco com essa música, ouvi no rádio e foi uma coisa. Mas, fora disso, eu ouvia mesmo o que se tocava no Brasil inteiro, o samba-canção. O samba-canção dominava a Rádio Nacional, no Rio, com aquelas cantoras todas, Marlene, Emilinha.
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CONTINENTE Tinha Antônio Maria também, compositor pernambucano. ROBERTO MENESCAL É o compositor mais triste que eu conheci, porque as músicas dele eram tipo “Ninguém me ama, ninguém me quer”, aquele drama. CONTINENTE Era o fim da esperança. ROBERTO MENESCAL Eu me sentia esquisito, pensava: não posso, com 18 anos, estar tocando e cantando “Ninguém me ama…”. Porque, naquela época, eu achava exatamente o contrário, que todo mundo me amava. Eu, aquele menino de Copacabana, playboyzinho. Então, achava aquilo esquisito, apesar de adorar. Sabia tudo quanto era samba-canção. Mas começamos um grupinho, uma coisa mais solar, mais esperançosa. E começamos a brincar com isso sem nenhuma intenção profissional, e fomos fazendo. Aí, chega um cantor: “Vem cá, me disseram que vocês têm música.” E foi aí que nasceu espontaneamente isso que se chamou mais tarde de Bossa Nova.
REPRODUÇÃO
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CONTINENTE Qual foi o sentimento que o tomou ao fazer aquela apresentação no Carnegie Hall? ROBERTO MENESCAL Primeiro, confesso que eu não sabia nem o que era Carnegie Hall. Eu lembro que uma pessoa do Itamaraty me telefonou convidando, e eu falei: “Eu não posso, porque marquei uma pescaria em Cabo Frio com os amigos.” Aí, ele falou: “Puxa, mas vai todo mundo.” Aí, o Tom Jobim me telefonou: “Menesca, você não vai porque tem uma pescaria? É importante esse show.” E um pedido de Jobim pra mim era uma ordem. Ele era meu grande mestre também, como Moacir. E eu fui, não sabia o que era Carnegie Hall, não sabia o que era nada. Aí, chega nos Estados Unidos, a gente desembarca, e eu fui o primeiro a passar pelo controle de passaporte. Quando eu passei, vi uns sete músicos daqueles que a gente amava e tinha todos os discos. E a gente sonhava com aquela música. De repente, falei: “Turma (nessa época, não se usava ainda o termo galera), olha só, a gente chegando
aqui e tem Gerry Mulligan ali”, e fui citando os nomes que estavam lá. Eu achava que, por acaso, eles estavam por lá. Aí, o cara que estava recebendo a gente disse: “Eles vieram receber vocês.” Não entendi: “Eles conhecem a gente?” “Claro que conhecem! Vieram receber vocês.” A gente não tinha noção de que nossa música tinha ido antes. A música do Tom, Desafinado, já estava tocando bastante por lá. Isso era uma vitória incrível do Brasil. Então, foi uma grande emoção, uma maravilha a gente ter ido, e nossa música foi para o mundo dali em diante. Mas teve o lado bom e o lado triste, porque eu fui o único que voltou, tinha marcado o meu casamento, que aconteceu dois meses depois. Quando vi, minha turma toda já estava em Los Angeles, na Califórnia, em Nova York, outros foram pra França, pra Itália, México, e eu voltei para o Brasil sozinho, e vi que, na verdade, era isso mesmo: acabou aquela turminha que ficava fechada ali fazendo música e se abriu para o mundo. Foi ótimo! Mas eu fiquei um pouco sem chão.
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pernambucano Moacir O Santos abriu os caminhos da música para Menescal
CONTINENTE Como foi a sua apresentação? ROBERTO MENESCAL A gente ficou uma semana lá em Nova York, dando entrevistas, e conhecendo aqueles músicos todos, que seriam inalcançáveis pra gente. Num dia, estava na casa de um; depois, na casa de outro. Veio a apresentação, e eu nunca fui cantor, não é a minha cantar. Sou mais instrumentista, compositor. E chega lá, na véspera, não preparei nada com ninguém. Tinha que ter tocado com Oscar Castro Neto, com Sérgio Mendes, eles se ofereceram. Mas chegou na véspera, eu perguntei: “Como é que a gente faz?” Aí, tanto um quanto o outro falaram: “Cara, aí não dá mais para preparar o negócio com você.” E eu virei pro produtor e disse: “Não vai dar para eu me apresentar.” Ele falou: “O quê?! Você veio, está há uma semana aqui, passeando, indo na casa dos músicos todos, e agora não vai se apresentar? Está anunciado!” Entrei no Carnegie Hall, que é assustador. Você entra por trás, e é a aquela coisa de fundo de teatro, rua decadente, entradinha de teatro. Quando você entra, vê aquele palco, aquela plateia fabulosa; levei um susto e tive que cantar. A primeira vez que cantei na vida foi no Carnegie Hall. Acho que ninguém fez isso, estrear no Carnegie Hall. Mas durou um dia a carreira de cantor. No dia seguinte, eu disse: “Não quero cantar mais, não.” CONTINENTE Você atribui o fim do ciclo da Bossa Nova a esse show, porque as pessoas se dispersaram? Ou foi o golpe militar, dois anos depois, que acabou com o clima bossa-novista no país? ROBERTO MENESCAL Acho que as duas coisas. Essa dispersão pelo mundo, na realidade, foi um renascimento, o final de um ciclo no Brasil, onde a gente se encontrava todo dia, toda noite. Ao mesmo tempo, as raízes da nossa música foram se abrindo para todo o mundo, do Japão aos Estados Unidos. E, por outro lado, logo depois começa a ditadura, o golpe militar, e a gente leva aquele susto. Começam também a aparecer compositores que eu chamo de “compositores da
Entrevista 2
REPRODUÇÃO
J oão Gilberto e Astrud Gilberto, em Copacabana
ditadura”, que surgiram com a missão de lutar contra aquele regime, mesmo os compositores que já estavam sendo conhecidos, como Edu Lobo, o próprio Marcos Valle. E eu, aquele playboy de Copacabana, que jogava futebol na praia, não me sentiria honesto, se fizesse isso. De repente, a terra era de ninguém. Meu parceiro, Ronaldo Bôscoli, falou assim: “Beto, a gente vai ter que hibernar um pouco, esperar passar esse regime totalitário, pra gente voltar a fazer a nossa música.” Você está ouvindo? CONTINENTE Estou ouvindo. ROBERTO MENESCAL Aí, nós hibernamos. Eu fui tocar com a Elis Regina, e saí pelo mundo trabalhando. Depois, fiquei 15 anos sem tocar, porque entrei para a gravadora Polygram e fui alçado ao cargo de diretor artístico. E, com 80 artistas de primeiro time, não tinha tempo pra dormir, imagine pra tocar. Parei de tocar, não fazia mais música. Fiz Bye, bye, Brasil, porque era para a trilha do filme de Cacá Diegues. Fiz com Chico. Minha carreira de compositor tinha passado para segundo plano, até que voltei em 1985. Larguei a Polygram, larguei tudo, fui para o Japão, gostei novamente da vida de música. CONTINENTE Quando você perguntou “está ouvindo?”, lembrei da história de João Gilberto, que ligava para você de madrugada, passava horas falando e perguntava: “Está ouvindo?” Você respondia “sim”. E ele: “Então, repita tudo o que eu disse.” ROBERTO MENESCAL Eu sofri muito essa situação. Ele dizia: “Rapaz, você está dormindo.” “Não estou, não, João.” “Então, repita o que eu falei.” CONTINENTE Queria que você falasse sobre a sua relação com João Gilberto. No livro Ho-ba-la-lá, de Marc Fischer, você disse (para o jornalista alemão): “João é perigoso, tem uma coisa de sombrio, ele muda as pessoas com quem tem contato. Capaz de mudar você também.” E aí você fala que as pessoas faziam tudo o que ele pedia. E você era uma dessas pessoas. ROBERTO MENESCAL É verdade. Eu fui escravo. Agora, você sabe o final desse livro, né? O autor se matou.
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CONTINENTE Sim. ROBERTO MENESCAL Ele (Marc Fischer) falava assim: “Por que você o acha perigoso?” “Rapaz, tem que tomar cuidado, porque você vai perder sua personalidade.” Ele dizia: “Não é possível.” E perdeu, né? Você vê que o cara era um daqueles alucinados por João Gilberto, como tem no mundo até hoje. Acabou se matando, porque, sei lá, achou que realizou a obra que ele queria. E que não tinha mais nada na vida pra fazer. O João tem uma personalidade muito forte. Eu sempre falava para as pessoas: “Não chega perto do João, que você está perdido.” O cara não acreditava: “O quê? Comigo não, eu não gosto da música dele.” Cinco minutos depois, o cara estava: “Sim, João, o que você quer? Do que você precisa?” É impressionante o domínio dele sobre as pessoas, sobre a plateia. A força dele aparece naturalmente. CONTINENTE Como foi o seu primeiro contato com ele? ROBERTO MENESCAL Eu ia muito aos ensaios do Trio Irakitan. Aí, eles
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mostraram Ho-ba-la-lá e Bim-bom. Fui conhecendo a música do João. E, um dia, era o aniversário de 30 anos do casamento dos meus pais. Eles nunca tinham dado uma festa na vida, e deram uma festa de gala, todo mundo com aquelas roupas finas, as mulheres bem-produzidas. E eu, garoto, fiquei na porta recebendo as pessoas e os presentes. De repente, tocou a campainha. Abri, era um cara desconhecido. Pensei: “Deve ter vindo entregar alguma coisa.” Falei: “O que é?” Ele disse: “Você tem um violão? Eu queria tocar.” Mas ele não falava quem era ele. Abri a porta um pouquinho e mostrei: “Olha, está havendo uma festa aqui em casa, um montão de gente.” Aí, ele falou: “Ih, é grave, hein? Mas a gente não pode tocar?” Eu sem saber quem era. “Pô, cara, é difícil, eu tô aqui recebendo as pessoas.” “Mas não tem um lugarzinho que a gente possa tocar?” Aí, eu falei: “Entra comigo aqui rapidinho.” Entramos no quarto, o violão estava na cama. Ele pegou e já fez: “É, amor, ô, ho-ba-la-lá…” Falei: “Pô, você é o João Gilberto?!” Ele falou: “Sou, como é que você sabe?” Falei:
Fiquei dependente do João (Gilberto) durante anos. E lá (em Nova York), eu falei: ‘João, tenho que me soltar.’ Todo dia eu ouvia: ‘Vem cá, o que você vai fazer?’ “Por causa da tua música.” E ficamos tocando. Ele falou: “Não dá pra gente ir embora, não?” Ele me arrancou da minha casa, da festa dos meus pais. Saí com ele e fui mostrando as casas de Nara Leão, do Carlinhos Lyra, da turma toda. Fomos de casa em casa. Fiquei três dias fora com João. A gente tocando, com a mesma roupa. Aí, ficamos muito amigos. Fiquei dependente do João durante anos. Até no concerto do Carnegie Hall, fiquei muito dependente do João. E lá, eu falei: “João, eu vou me mandar, porque minha vida está complicada, tenho que me soltar um pouco.” Porque todo dia eu ouvia: “Vem cá, o que você vai fazer? Me empresta teu violão, que esqueci o meu.” Eu ficava muito dependente dessa relação; fazendo minha vida, tudo, mas sempre tinha uma coisa. Aí, em 1962, falei: “João, vou me mandar, porque vou ter que achar meus caminhos.” Ele falou: “Rapaz, que sacanagem…” E ainda me cobrou! Mas a última vez que nós estivemos juntos foi ali. CONTINENTE Mas, ainda assim, vocês mantiveram contato por telefone?
ROBERTO MENESCAL Muito pouco. Porque falei: “João, não posso ficar aqui às três da manhã.” Aí, ele dizia: “Mas, rapaz, Caymmi fica.” “Mas eu não tenho o tempo do Caymmi. Ele está feito na vida. Eu tenho que me fazer.” Ele disse: “Então, tá. Sacanagem…” Ainda me botou uma culpa na cabeça. Mas continuei com a admiração total por ele. Acabei de receber um livro de um japonês sobre o João, que descreve todas as formas como ele canta cada música. É outro escravo do João Gilberto. No livro João Gilberto, um cara diz: “Esse é o maior cantor que eu conheci na vida.” O outro fala: “A Barbra Streisand é muito boa, o Frank Sinatra é muito bom. Mas ninguém chega aos pés do João Gilberto.” Isso no mundo todo, as pessoas que conheceram e admiram a arte dele. E você vê que a gente acaba conversando sobre João Gilberto. E, se bobear, a gente fica até de noite conversando sobre João Gilberto. CONTINENTE Mas eu queria falar sobre outras coisas também, como a sua parceria com Ronaldo Bôscoli. Como era o processo?
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ROBERTO MENESCAL Era um processo meio de casamento. A gente é completamente ao contrário. Ele, noite; eu, dia. Acho que isso completava a gente e isso gerou muita música. O Ronaldo era um grande letrista. O Caetano mesmo falou: “Ronaldo Bôscoli foi um dos maiores letristas que eu conheci.” E o Ronaldo, por sua vez, teve uma hora que, quando a Tropicália entrou forte mesmo, falou: “Beto, não dá pra fazer mais letra depois de Caetano, Gil, Chico, essa turma.” Aí foi quando eu entrei para a Polygram também, e a gente parou de compor. Fizemos mais umas duas ou três músicas. Mas eu já estava com a cabeça em outro lugar. E ele estava fazendo música com outras pessoas também. Mas foi meu grande letrista. Ele tinha um ciúme de mim, por eu estar sempre viajando com as cantoras. Até me apelidou de Rabo de Cometa, dizia que eu estava sempre atrás de uma estrela. Porque a vida também me abriu para trabalhar com as grandes cantoras. Aliás, o Brasil é o país das cantoras. Estou sempre com uma cantora daqui, uma cantora de fora. Gravei recentemente um disco com uma pessoa que adoro, Stacey Kent, uma cantora de jazz americana. Minha carreira é meio fora do que está acontecendo na TV, na rádio. CONTINENTE Hoje a diversidade musical é muito maior; antes, ficava tudo muito dominado pelas gravadoras. Como você observa esse novo cenário? ROBERTO MENESCAL Hoje todo mundo tem seu estudiozinho caseiro. Isso é bom. Tem o lado ruim também. Aparece muita coisa ruim. Essa diversidade está acontecendo de uma forma muito grande. Agora quem se salva, a gente vai ver aos poucos. Na verdade, é o fim de um ciclo, que começou nos anos 1920, no século passado, quando o samba veio, o jazz veio, o cinema veio e a televisão, isso tudo veio trazendo uma série de artistas. Estou falando da área de música, mas também de todas as áreas, dança, cinema… Mas, na área de música, os Estados Unidos projetaram esses cantores todos. Acho que esse ciclo está se fechando agora.
Entrevista FOTOS: REPRODUÇÃO
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oberto Menescal (quinto à R esquerda), com seu grupo, que acompanhava Maysa músico tocou em shows O e discos de Elis Regina enescal esteve em Recife M este ano para apresentação no Paço do Frevo
CONTINENTE Você, que tem acompanhado esse mercado há 60 anos, qual a avaliação que faz dele? ROBERTO MENESCAL Tem uma turma que faz música como investimento, a música sendo reconhecida por investidores, como o cara que investe na bolsa de valores. Isso é principalmente o sertanejo. Pegam um garoto começando, fazendo um showzinho com 300 pessoas, avaliam o cara, botam dinheiro, cobram um percentual alto dele. Esses artistas acontecem muito rapidamente e com uma estrutura que ninguém teve até hoje. Então, dominaram o país. Nunca pensei que o sertanejo fosse entrar no Recife, por exemplo, e entrou, como entrou em qualquer lugar do Brasil e está chegando ao Japão e a vários lugares do mundo. Mas esse domínio tem uma duração, porque é uma música que não te faz pensar muito. Na nossa música, a gente pensava muito nas harmonias, queria puxar o público para um degrau acima. Ao mesmo tempo, nunca tive tanto trabalho na música como tenho agora. Porque tem a turma que vive da mídia e a que quer “outras coisas”, procura na internet. Tudo o que a gente faz está cheio de público.
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CONTINENTE Você está prestes a fazer 80 anos. Como é a expectativa de chegar a essa idade? Isso tem um peso pra você? ROBERTO MENESCAL Vou fazer 79,99 – aquele preço de remarcação. Uns amigos de colégio, de vez em quando, vêm falar comigo – penso: “Pô, esse cara foi meu colega, ele tem minha idade.” Aí, acho o cara acabado, não só fisicamente, não, mas mentalmente, intelectualmente. “O que você faz?”, pergunto. “Eu tô aposentado.” “Eu sei, mas o que você faz?” “Ah, tô aposentado.” Pô, aquilo me bate um negócio. Fico pensando: “Como é que eu posso não fazer nada?” Então, não concebo
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ALCIONE FERREIRA
uma coisa dessas. E eu tenho de estar me lembrando de que estou fazendo 80 anos, senão vou fazer estripulias. Adoro trabalhar, trabalho como muito pouca gente. Então, não tem esse negócio dessa idade pra mim. Acho que tudo é atitude. Vim, nesses últimos 20 anos, preparando a minha cabeça para o lado bom. O país está ruim, a gente sabe, está uma desgraça, mas estou sempre falando: “Não, mas isso é bom, é o princípio de um fim.” Estou sempre achando que está tudo bom. Se está chovendo, falo: “Oba! Vou arrumar o armário hoje de manhã.” Se está sol, “Vou lá para fora, ver minhas plantas”. Então, estou sempre procurando o lado bom da vida. E isso te leva adiante, a atitude com você mesmo, o teu físico, não deixar o corpo arquear. Estou sempre levantando o ombro. Digo “Vamo lá” pra mim mesmo, como se estivesse me comandando. O caminho é muito grande pela frente.
Nunca pensei que o sertanejo fosse entrar no Recife, por exemplo. Mas esse domínio tem uma duração, pois é uma música que não te faz pensar muito
DÉBORA NASCIMENTO, jornalista e repórter especial da Continente.
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Curtas LAMA DOS DIAS
O zeitgeist do Recife no início dos anos 1990 Segunda-feira, 10 de julho de 2017, 11h30: sob um céu nublado, de tom cinza-esbranquiçado, cerca de 40 pessoas entram e saem do número 190, na Rua de Santa Cruz, centro do Recife. Naquela manhã, o casarão havia sido cedido para abrigar a equipe de Lama dos dias, seriado com direção de Hilton Lacerda e Helder Aragão. Dessa forma, o amplo quintal tinha sido transformado no bar Oásis, um fictício espaço dedicado à difusão da incipiente produção musical no início dos anos 1990. O Oásis não foi batizado assim por acaso, explica Hilton Lacerda à Continente: “Houve um bar chamado Oásis, que ficava em Olinda, perto do hotel Quatro Rodas, e foi lá onde aconteceu o primeiro show de Chico Science, junto com as bandas Orla Orbe e Lamento Negro.” Lama dos dias, como o nome sugere, relaciona-se com o movimento manguebeat, indutor da recondução de Pernambuco ao panteão da música brasileira contemporânea a partir de 1994, quando saíram Da lama ao caos e Samba esquema noise, os álbuns de estreia de Chico Science e Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, respectivamente. Contudo, os sete capítulos de 26 minutos da trama – projeto de um núcleo criativo liderado por Hilton, produzido pelo REC Produtores Associados e com exibição assegurada pelo Canal Brasil – não documentarão a ascensão destas duas bandas, e sim recriarão o
zeitgeist da capital pernambucana que possibilitou o surgimento do manguebeat. “Com a liberdade da ficção, vamos falar de 1990, um ano icônico, quando a redemocratização pós-ditadura foi ofuscada pela eleição de Collor e havia a expectativa de alguma coisa que pudesse acontecer para melhorar a situação”, detalha Hilton. Ele e Helder Aragão, o DJ Dolores, formavam o duo Dolores & Morales, que, entre outros feitos, concebeu o projeto gráfico de Da lama ao caos e dirigiu o clipe de Livre iniciativa, música de trabalho de Samba esquema noise. O retorno ao ponto “onde tudo afunda”, como diz Lacerda, se dá com entusiasmo por parte deles e empolgação da equipe e do elenco. “Helder e Hiltinho têm toda a propriedade para fazer essa série. Não existiria um documentário melhor do que a ficção”, comenta Roger
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de Renor, apresentador e produtor cultural que, vez por outra, vira ator, “mas só nos filmes dos amigos”. Em Lama dos dias, Roger vive Curt, o estrangeiro que é dono do Oásis e abre suas portas para a Psicopasso, a banda sobre a qual se alicerça o enredo do seriado. “Qualquer semelhança é mera coincidência. Tá vendo aquele sofá vermelho? Foi da Soparia”, diz, referindo-se ao bar do qual foi proprietário, fundamental para a expansão do manguebeat. Perto dele, Débora Leão amamenta seu filho, Brian Lucas, de apenas 10 meses – “baby Brian”, o mascote do set. Conhecida nas searas do hip hop recifense como Negrita MC, ela foi indicada pela cantora Isaar. Sua personagem é Boyzinha, a vocalista da Psicopasso. “Ela é uma mulher empoderada, negra, lésbica e com um discurso altamente político”, define a MC/atriz.
JOÃO LUCAS/DIVULGAÇÃO
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Completam o trio da Psicopasso o guitarrista Cruzado (Enio Damasceno) e o dançarino Nego Queen (Edson Vogue); ao redor deles, gravitam o produtor EZK (Matheus Tchôca) e Francisco (Tiago Mercês), que servem de elo entre as aspirações da banda e o que Hilton Lacerda define como “a esquerda universitária”. Na sequência prestes a ser rodada naquela segundafeira de julho, os integrantes deste núcleo estão em ação. As amigas Luli (Louise França) e Adriana (Isadora Gibson) chegam ao Oásis, onde se encontrarão com Farmácia (Geyson Luiz) e Bill (o pianista Vítor Araújo). São quatro estudantes que se dividem entre ir à ou fugir da faculdade, montar um programa de rádio e pesquisar novas paisagens sonoras. Louise, filha de Francisco França, o Chico Science, cavou sua participação ao tomar conhecimento da série. “Estou aqui por enxerimento”,
brinca a vocalista da Afrobombas e Coisinha. Durante as gravações de um documentário sobre o legado do seu pai, ao entrevistar Helder Aragão, ela ficou sabendo do projeto. “Disse logo que queria participar”, sorri. A maioria deles vivencia sua primeira incursão no audiovisual. Renata Roberta, atriz responsável pela produção de elenco, conta que o processo de casting driblou a via tradicional: “O que normalmente se faz em seleção de elenco é procurar os atores e atrizes, chamar para um teste ou pedir um material e escolher a partir daquilo. Mas cada pessoa é muito mais do que ela pode mostrar em três minutos. Fomos atrás de encontros. O processo é um convite para encontrarmos a dinâmica de uma realidade na ficção”. Uma outra atriz, Nash Laila, fez a preparação do elenco. O resultado, no set da Rua de Santa Cruz, mostrava-se satisfatório: Geyson
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seriado Lama dos O dias é composto por sete episódios e tem direção de Hilton Lacerda e Helder Aragão
e Vítor irradiavam entrosamento – seus personagens são inseparáveis – e a Psicopasso, já no palco, tinha o feeling de uma banda de verdade. No esteio do pacto que se estabelece entre qualquer produto audiovisual e sua audiência (uma espécie de transe calcado na crença de uma narrativa que se desvela tal qual na “vida real”), o Oásis, naquele momento, era ali. O propósito de todos consistia em, como uma máquina do tempo, transportar elenco, equipe e, a posteriori, o público para um rolê “na quarta pior cidade do mundo”, como canta Chico Science em Antene-se. A jornada, porém, residirá mais na pele e comportamento do elenco e menos na composição imagética. “Optamos por não marcar a imagem com as referências habituais dos anos 1990, e sim deixar que o público entre a partir da aproximação da câmera, da convivência com a corporalidade dos atores”, explica o diretor de fotografia Breno César, reprisando a parceria da série Fim do mundo com Hilton Lacerda. A contemporaneidade de Lama dos dias está nos discursos atuais, como o de Boyzinha; na presença de Maeve Jinkings e Julio Machado, protagonistas de filmes recentes de cineastas pernambucanos (O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, e Joaquim, de Marcelo Gomes); nas canções da Psicopasso, compostas por Helder Aragão para operar como elementos narrativos; e no próprio tema da fertilidade cultural de uma cidade submersa em desigualdades e adversidades, como o Recife de 2017. E, numa chave que denota muito da precisão dramática de Hilton Lacerda, a exemplo do que se viu no longa Tatuagem (2013), num enclave entre passado, presente e futuro: “A ficção nos deixa livres para oferecer uma noção de possibilidade. Percebo que o momento da série, 1990, guarda semelhanças com o Brasil em que estamos vivendo agora. Como criar alternativas?”, arremata o diretor. LUCIANA VERAS
Curtas BEATRIZ PERINI/DIVULGAÇÃO
BOOGARINS
3º disco firma a neopsicodelia da banda goianiense “Existe uma tradição brasileira de rock psicodélico, com certeza. Mas a Boogarins não é uma banda fazendo um trabalho de homenagem”. É o que afirma, no New York Times, o crítico Ben Ratliff sobre o quarteto goianiense. Pela marcante identidade musical e envolventes execuções ao vivo, para muito além do psychedelic rock saudosista, a banda ganhou destaque no cenário de música independente do país e já tem o trabalho reconhecido – e elogiado – internacionalmente. De volta ao Brasil, após turnê pela América do Norte com mais de 30 shows em cinco semanas, a Boogarins lança agora, pelo site norteamericano Consequence of sound, o seu terceiro álbum de estúdio, Lá vem a morte, que também está disponível para audição no YouTube, acompanhado da vibe glitch art que as projeções e texturas visuais desenvolvidas pelo artista visual Rollinos sugerem. São oito faixas distribuídas ao longo de pouco menos de 30 minutos de duração. Depois da estreia, em 2013, com As plantas que curam, o grupo – formado por Fernando “Dinho” Almeida Filho (voz e guitarra), Benke Ferraz (guitarra e sintetizadores), Raphael Vaz Costa (baixo) e Ynaiã Benthroldo (bateria) – apresentou ao público Manual ou guia livre de dissolução dos sonhos (2015). Repetindo este intervalo de dois anos, é a vez de Lá vem a morte (2017), com influências que vão de Milton Nascimento e The Olivia Tremor Control a Astrobrite e ao pop de Kanye West, no álbum Yeezus (2013). As faixas de Lá vem a morte foram gravadas no segundo semestre do ano passado, enquanto a banda estava em turnê em Austin (Texas). Carregado de certa descrença e letras com ironia mais ácida que nos dois álbuns anteriores – sem renunciar ao lado onírico, característica do som feito pelo Boogarins –, este pode ser considerado um trabalho que explora o sensorial. “Estávamos longe das nossas verdadeiras casas por meses por causa das turnês, então esse sentimento
meio deprê também está impregnado no disco”, explica Benke Ferraz em entrevista à Continente. Em uma mesma música, é possível experimentar três ambientações sonoras diferentes, mas há um fio condutor, a melancolia, que perpassa todo o conceito do disco. Ele se inicia com a faixa Lá vem a morte parte 1 e finda com Lá vem a morte parte 3. Álbum de duração relativamente curta para um LP nos modos convencionais, mas extenso para se classificar como EP, sua definição na página do Facebook da banda é certeira: um “EP longo / LP curto”. Nos três discos, a identidade sonora da Boogarins – de “rock progressista” ou “shitty jazz”, como definem seus integrantes – é evidente, mas neste último as melodias ganham sintetizadores pesados e mais ruídos, algo facilmente percebido numa breve audição dos dois primeiros. Outro ponto é que o baixo e a bateria ganharam mais robustez. Segundo Ferraz, as criações da Boogarins vêm de muita análise do que já foi feito anteriormente. Talvez por isso Lá vem a morte não repita o que eles vinham fazendo. Mas a surpresa do álbum fica pelo lançamento sem aviso prévio, alternativa escolhida pelo grupo para experimentar a liberdade dos modelos da indústria atual proporcionada pela internet. Sobre o disco, o guitarrista complementa: “Tínhamos bastante coisa gravada, pensando num registro
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mais longo, mas durante nossa passagem por Austin, em março deste ano, gravamos mais coisa e conseguimos fechar bem o conceito pra esse EP longo, pensando em ter um material de inéditas lançado para a turnê norte-americana que acabamos de fazer. Talvez não seja o jeito mais esperto de se lançar e gerar um grande fluxo concentrado de plays, mas as músicas funcionam e vão chegar a quem tiver de ouvir”. Além dos discos de estúdio, o grupo vem utilizando a internet para disponibilizar singles, como A pattern repeated on, parceria com o produtor norte-americano John Schmersal, Elogio à instituição do cinismo, Olhos e Desvio onírico, álbum de gravações ao vivo que saiu em vinil em junho deste ano. “Vamos fazer o lançamento oficial do Desvio em São Paulo no Sesc Belenzinho, em agosto. Não sei se vamos lançar mais coisa inédita em 2017, mas, fora isso, pretendemos tocar bastante pelo Brasil”, afirma Benke Ferraz. Sobre o apuro nas escolhas dos arranjos e as motivações estéticas do grupo, o guitarrista pontua: “Tudo que lançamos oficialmente como canção do Boogarins acaba sendo sons de melodias mais bonitas e bem definidas, que passeiam pelas texturas que criamos. Mas ouvindo o Desvio onírico, dá pra ver que também somos bem influenciados pela sujeira alta e pesada, característica de Goiânia.” ERIKA MUNIZ
SOFIA LUCCHESI/DIVULGAÇÃO
TEATRO DE BONECOS
Mão Molenga comemora 30 anos com exposição Se fazer teatro, por si só, já é um ato de resistência, fazer teatro de bonecos é algo ainda mais potente. Demanda certa “artesanalidade” do tempo: só é possível ensaiar uma peça se houver bonecos ou um protótipo feitos. Há 30 anos, os jovens universitários Carla Denise, Fátima Caio, Marcondes Lima e Fábio Caio encenavam O retábulo da barafunda, primeiro espetáculo oficial do recém-formado grupo Mão Molenga, na antiga Galeria Metropolitana de Arte – atual Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam). A peça fez tanto sucesso, que se estendeu por uma temporada de quatro meses seguidos. De lá para cá, muito mudou, menos a vontade do grupo em persistir fazendo arte. Nadando contra o fluxo de hiperestímulos do mundo
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contemporâneo, onde as realidades virtuais têm afastado cada vez mais o público dos teatros e das atividades manuais, estar corpo a corpo, matéria a matéria, com os bonecos do Mão Molenga causa o mesmo impacto em crianças, jovens e adultos que nos 1980. Em comemoração às três décadas de atividade ininterrupta – com a produção de 18 peças e participação em duas séries televisivas –, está em cartaz no Sesc Santo Amaro, desde maio, a exposição Mão Molenga: cenas de uma história. Com apoio do Funcultura e parceria do Sesc, a mostra traz o material produzido para a série Brasil 500 anos, exibida na TV Escola entre 1998 e 2003, o que exigiu um trabalho de restauração de dois anos. Neste mês, será lançado o catálogo virtual da exposição. Os últimos três espetáculos do Mão Molenga (Babau, O fio mágico e Algodão doce) tratam de questões profundas e existencialistas. São abordagens que fogem ao lugar-comum, investindo no lúdico e cativando plateias de todas as idades. “Em Algodão doce, o plano de fundo são histórias de mal-assombro,
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F átima Caio, Marcondes Lima, Fábio Caio e Carla Denise, fundadores do Mão Molenga
mas que trazem as questões ecológicas, problemáticas sobre o preconceito racial e sobre a opressão do homem em relação ao meio ambiente no contexto brasileiro, coisas que permeiam o nosso imaginário”, conta o encenador Marcondes Lima sobre a peça, que tem apresentação marcada para o dia 26 de agosto, no Teatro Marco Camarotti. Apesar de ser uma arte muito ligada às crianças, e, talvez por isso, pouco valorizada, o teatro de animação é uma forma de expressão que se diferencia do que é feito pelos meios de comunicação de massa. “Há uma ligação entre a infância e o boneco, apesar de ser uma representação milenar utilizada por adultos em rituais e tradições antigas. Existe uma tendência, do ponto de vista artístico e político, em colocar o que é atribuído à criança num patamar abaixo, de menor importância”, explica a encenadora Carla Denise. SOFIA LUCCHESI
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Portfólio
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em título, acrílica S sobre MDF, 90 x 90 cm, 2016 (página anterior) em título, técnica S mista sobre papel 51,5 x 52,5 x 4 cm (cada), 2015 em título, colagem S e pintura sobre MDF, 40 x 40 cm, 2016
Vânia Mignone
NOS INTERVALOS DOS ACONTECIMENTOS TEXTO Adriana Dória Matos Primeira cena: um carro se desloca pela estrada. É noite. Passam curvas, túneis, arbustos, árvores. Em movimento, avistam-se vestígios de civilização, umas edificações ermas, antenas, postes, luminosos. Os letreiros indicam: Atibaia, Jaguariúna, Pirassununga, Princesa D’Oeste, Porto Feliz. Destinos: Campinas – Tupã. Interseções: Amparo/Limeira. Obras, desvios, neblina, ar seco, muita claridade em São João da Boa Vista. Caso precise, há borracharia. São 18 takes de enquadramentos variados,
cortes, fragmentos, sugestões de extraquadros. Quanto tempo esse veículo-narrador circula por essa estrada em que não desponta vivalma, em provável alta velocidade, não se sabe, mas ele alcança a madrugada. Cenas de corte: – Um carro visto em plongée, de uma janela de quarto andar, talvez. Está escuro, o veículo é vermelho e a porta do motorista está aberta. Abandono, saída de emergência? Pode ser que alguém bata à porta…
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– Na frente de um bilhar estridente, a primeira personagem aparece. A mulher está em primeiro plano, mas não olha para a câmera, seu interesse recai para a direita… – Do outro lado da rua, dois carros passam com faróis altos, um hotel vagabundo de beira de estrada se oferece na calçada. Tudo é vermelho e saturado. (Quando um dos carros faz a curva no quarteirão adiante, depara-se com um homem e uma mulher num jogo sensual de olhares. O letreiro diz: “A valsa”. Apenas um vaso de antúrios testemunha o encontro.)
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Cenas de interior: frames de quatro cômodos. Ao contrário do vermelhão externo, aqui os ambientes são caiados de branco. Branco e preto, bem chapado também. As legendas informam: “Pele de cobra”, “Hotel Barcelona”, “O divã”, “Palco-quarto”, tudo em maiúsculas, numa fonte de corpo bem espesso. Os quartos estão quase nus, poucos objetos. “Palcoquarto” é o mais surreal deles (aliás, tudo que vimos até aqui tem uma aura meio de sonho, de pesadelo): no centro do quarto, uma cama com o estrado aparente, um amontoado
de lençóis nos seus pés; à esquerda e à direita, dois criados-mudos, dos quais saem fios que trazem holofotes nas extremidades, como se fossem tentáculos que avançam para o primeiro plano.
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Vânia Mignone diz que não planeja essas cenas previamente. Não faz esboço, nada. Não mantém sketchbooks, essas coisas. Seu trabalho acontece direto na superfície, seja o papel ou a madeira. Muitas vezes, trabalha com os dois materiais ao mesmo
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tempo, num processo de acréscimos, sobreposições, porque, como prefere deliberadamente não saber o que vai desenhar, pintar, riscar, pode ser que a superfície escolhida se torne menor do que a narrativa que se apresenta; então, ela faz a montagem – edita o que conta acrescentando espaço. Assim, o processo tanto pode ser um quadro que vai crescendo à medida das necessidades, ou, à moda das histórias em quadrinhos e do cinema, a história se constrói quadro a quadro. Quando isto acontece, temos mais claramente
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Portfólio a sensação de estarmos diante de outra coisa que não pintura. A artista, nascida em Campinas, em 1967, cultiva, como todos, seus métodos e idiossincrasias. Isso de não racionalizar o trabalho diz muito do resultado a que assistimos. No seu processo de criação, ela conta que, quando tenta planejar, percebe o quanto o racional traz o conhecido, aquilo que ela já fez. Criar a partir disso seria um mero gesto autotélico. Então, ela canaliza a emoção, o inconsciente. O emocional suspende o racional e, nesse momento, entende o curso que pretende tomar e parte para a criação. Não saber aonde vai chegar implica riscos e imprevisibilidade, e isso é o que parece lhe interessar. De acordo com esse método, seu trabalho tornase cumulativo: ela cola, encaixa, aumenta papéis e placas, até que dê por finalizada a obra. A pintura pode começar pela colocação de uma cor, uma palavra, um recorte, uma paisagem. Mesmo feito de somas e acréscimos, seu trabalho é sintético, são poucos os recursos narrativos, seu léxico é simples, remetendonos diretamente àquilo que convencionamos chamar de cultura popular e cultura pop.
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A artista conta que sempre precisou da arte para se expressar. Primeiro era o balé, mas, quando chegou a hora da formação acadêmica, não tinha graduação em dança em Campinas, onde sempre morou. Ficou ali meio na corda bamba, sem destino, até que foi fazer Publicidade. Foi bem pouca a relação com criação, claro. Depois disso, estudou Educação Artística, ainda tateando sobre si mesma. No curso encontrou um meio para se expressar: a xilogravura, que, como oferece resistência, sendo mais difícil de dominar que outras técnicas, obrigou-a à síntese. No fim do curso, a xilo era sua expressão. Isso eram os inícios dos anos 1990,
e Vânia começou a participar de salões, a se profissionalizar, e logo a pintura foi tomando o lugar da gravura, embora esta não tenha sido abolida, e sim, ao contrário, incorporada à sua expressão. A superfície da sua pintura não traz apenas as emendas que ela vai promovendo ao acrescentar páginas à narrativa, que realiza com tinta e pincel. Afora esses materiais, ela usa as goivas que servem à xilogravura para riscar a superfície da pintura, um gesto que produz relevo e sombra diferentes daqueles da tinta. Ainda sobre materiais, Mignone também cita os papéis impressos que adquire em sebos, uma matriz impura que soma outra camada de informação e textura às suas histórias. A xilogravura, lá do início, é fundadora de uma habilidade técnica, mas também de linguagem e construção de mundo. Através da xilo, Vânia Mignone trava contato com mestres eruditos do gênero, como Oswaldo Goeldi e Rubens Gerchman, mas também com os de matriz popular e da literatura em cordel. Ao somarmos a essas referências no campo da arte o gosto pessoal, a vivência e as influências da formação, revelam-se vários dos elementos compositivos de sua obra: estão lá as placas de rua, outdoors e letreiros, uma cultura gráfica expressa em cartazes e fotografias, e – destacadamente – o cinema e as HQs. Sobre essas influências, a artista conta episódios prosaicos e determinantes na mesma medida. Assim como várias cidades brasileiras, Campinas sofre a desvalorização dos espaços para fruição da arte e, Vânia observa, nas últimas duas décadas, houve uma grande decadência desses espaços na sua cidade. “Minha formação visual foi toda no cinema”, diz ela, ecoando a história de gerações que vão mais ao cinema que ao museu. Quando foi estudar arte, relembra, nunca tinha visto ao vivo obras de grandes
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fuga, acrílica A sobre MDF, 180 x 360 cm (8 partes de 90 x 90 cm), 2010 verdade e é A minha, acrílica sobre MDF, 40 x 80 cm, 2012
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Portfólio mestres. Foi conhecer a Bienal de São Paulo quando estava na faculdade. Mas ela pondera: foram justamente os “caminhos tortos” – o fato de não ter tido uma formação precoce em arte – que a levaram a um trabalho original, autêntico. Portanto, como afirma, tudo que está na sua pintura lhe é intrínseco. Há outros ingredientes compondo esse caldo: a MPB (dos anos 1980, principalmente, que é a dos seus anos de formação) e a poesia, sobretudo a concreta. Olhando em retrospectiva, Mignone sabe a riqueza de não se saber, de se perder, porque todo desvio de rota integra hoje seu trabalho. Ainda sobre desvios de rota: é deliberada sua opção de permanecer em Campinas e frequentar muito pouco o circuito da arte. O isolamento, neste caso, é uma estratégia para se manter íntegra e aprofundar-se no seu trabalho.
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A crítica oferece ideias proveitosas sobre a obra da artista, e ouvi-la é um exercício de aproximação e identificação. Moacir dos Anjos, por
exemplo, escreveu: “As pinturas de Vânia Mignone são da ordem do incômodo e do desassossego, daquilo que não se sabe ou que não se quer nomear de modo pleno. Há nelas, quase sempre, a presença de figuras humanas sozinhas, apartadas do convívio de alguém mais. São mulheres ou homens situados em lugares aos quais a artista nega identificação precisa; espaços onde não há sequer distinção possível entre frente e fundo, igualados em planos de cores únicas.” Agnaldo Farias diz que suas pinturas “estampam imagens poderosas de solidão e descontinuidade e que se referem ao mundo todo, das paisagens desoladas até cenas extraídas do cotidiano, da ordem ordinária das casas, com seus ambientes e arranjos previsíveis”. Incomunicabilidade, silêncio, economia de gestos e ditos. Se fosse para comparar com a fotografia, a pintura de Vânia Mignone poderia ser irmã das fotos do norte-americano Todd Hido e do cineasta alemão Wim Wenders. Ambos expressam essa incomunicabilidade opressiva e atraente. Assim como Mignone, eles se colocam a vagar pelas cidades vazias
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– seja dia ou noite – ou se metem em recintos lúgubres, abandonados. Os gestos que supomos existir a partir dessas imagens são todos intervalares, alguém esteve ali ou está por ali, no entanto, ausente no momento da nossa presença. Não há encontro possível. Pontuando a relação da obra da artista com um item da comunicação vernacular, Cauê Alves comenta: “Não faz muito tempo, os cartazes nas fachadas de cinemas, teatros e salas de espetáculos eram pintados à mão. Ao contrário da padronização dos cartazes executados com programas de design gráfico e photoshop, cada sala de cinema fazia a sua versão em pintura. Eram invenções genuínas e viajantes, que hoje parecem se opor à mesmice da indústria cultural. Sem qualquer nostalgia, Vânia Mignone recorre à visualidade desses cartazes antigos. É como se sua pintura composta por quatro placas de compensado avermelhada – com as palavras ‘o grito’ e, grafado ao contrário e espelhado, ‘o eco’ – ilustrasse um filme imaginário. Apesar do título estridente, a pintura é silenciosa e, de fato, reverbera na memória do espectador como se já fizesse parte de nosso repertório visual.”
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Cena final: Colaram uns lambelambes nos muros do bairro. Num deles, lê-se: “Sessão 19h, Sábados, As Gêmeas”. São duas ruivas que brincam com fogo. O lambe-lambe de Iraci anuncia: “A volta da maior acrobata do mundo”. Dizem que esse retorno causou ciumeira no circo. A se conferir. Por enquanto, o picadeiro está vazio e escuro, mal se distinguem os objetos de cena. Daqui a pouco deve começar o ensaio. As ilusionistas
também são bailarinas e dançam com collants de lantejoulas. São sensuais e fazem um truque incrível com leques. As ruivas incendeiam a plateia. Mas, espera aí, que labareda é aquela? Ninguém viu ou sabe como… O circo queimou, queimou, queimou a tarde inteira. Aquele carro que passava pela estrada viu a labareda lá de longe. ADRIANA DÓRIA MATOS, jornalista, professora universitária e editora da Continente.
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Sem título, técnica
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mista sobre papel, 51,5 x 52,5 x 4 cm (cada), 2015
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em título, acrílica S sobre MDF, 180 x 180 cm, 2015
OS CORPOS QUE EXISTEM, MAS NÃO IMPORTAM A edição deste ano da documenta de Kassel, um dos principais eventos de arte contemporânea do mundo, coloca em pauta diversas crises vivenciadas globalmente, com destaque para os grupos que não são reconhecidos nos poderosos mecanismos de legitimação social TEXTO BÁRBARA BURIL
Reportagem “Quando se pode considerar que um corpo existe? O que conta como um corpo? Pode o corpo ser a propriedade de alguém? E se ele for a propriedade de alguém, mas o proprietário e o tal sujeito do corpo não coincidirem? Que tipo de subjugação política é essa?”, provoca o filósofo Paul B. Preciado, no ensaio My body doesn’t exist (em português, Meu corpo não existe), que integra o livro The documenta 14 reader, antologia de poemas, documentos e imagens que orientaram a curadoria da exposição de artes visuais, realizada este ano em Kassel, na Alemanha, e em Atenas, na Grécia. No texto, Preciado, que também é o curador de Programas Públicos da documenta 14, problematiza a crise epistêmica que surge quando um corpo transita de um gênero para outro nas sociedades onde o regime político de gênero concebe apenas a existência de dois tipos de corpos: os masculinos e os femininos.
Paul B., que iniciou em 2015 um processo de transição, testemunhou, ele mesmo, a crise dos velhos regimes de gênero: no registro civil de Barcelona, onde deu entrada na “retificação de atribuição de sexo no certificado de nascimento”, teve de mostrar um documento médico que comprovava a sua “disforia de gênero” e outro que atestava o fato de ter ingerido testosterona sintética. Ao entregar os dois documentos, Preciado não pôde senão renderse a um sistema onde, para ver-se reconhecida em seu gênero e seu novo nome, a pessoa trans é constrangida não somente a passar por exames médicos, mas também a aceitar um diagnóstico de anormalidade. Durante o processo de transição, Preciado também enfrentou entraves na adoção do nome “Paul Beatriz” (chamava-se Beatriz Preciado até 2015), impostos com a justificativa
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Monumento para os Oestrangeiros e refugiados,
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do artista nigeriano Olu Oguibe, alude ao sentimento de hospitalidade em uma cidade marcada por intensas migrações
de que esse nome causava uma “ambiguidade sexual”, embora existam vários “José María” na Espanha. Viu o seu registro de nascimento ser destruído semanas antes de ter o seu novo nome publicado no Registro de Nascimento Civil, passando dias sem, a rigor, existir. Se houvesse a manutenção de dois registros de nascimento ou um registro especial de pessoa trans junto ao registro de nascimento anterior, isso significaria que o Estado, em seus procedimentos legais, reconheceria a existência dos corpos trans. Mas, para o Estado espanhol (e para muitos outros), estes corpos não existem. Ou não importam. Os corpos que não existem para os poderosos mecanismos de legitimação social estão representados em muitas das obras escolhidas para integrar a documenta 14, inaugurada no dia 8 de abril em Atenas e no dia 10 de junho
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Reportagem OLAF KOSINSKY/DIVULGAÇÃO
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em Kassel. Na Grécia, a exposição foi até 16 de julho; na Alemanha, segue até o dia 17 de setembro. As duas versões coexistiram, então, durante os meses de junho e julho. Pela primeira vez, aquela que é considerada “as Olimpíadas das artes visuais” acontece também fora da Alemanha. Orientada pelo tema e lema Aprendendo de Atenas, a 14ª edição da documenta utiliza a cidade grega como metáfora das crises vivenciadas globalmente em diversos setores: desde as econômicas, experienciadas intensamente na Grécia (mas também em outros lugares do mundo), até as migratórias, chamadas por alguns críticos de “crise humanitária”, passando pelas ambientais e políticas. Ao acontecer em Atenas, ícone da democracia no mundo, a documenta também aproveita para refletir sobre as crises nas democracias representativas globais. Essa amplitude temática parece achar um denominador comum nos corpos que existem, mas não importam. Não por acaso, o Programa Público da documenta 14, dirigido pelo
filósofo Paul B. Preciado, dedica-se mais intensamente a eles através do Parlamento dos Corpos, uma série de iniciativas voltadas a representar e a documentar as pessoas que resistem a medidas de austeridade e a políticas xenófobas. Nas obras da documenta, não diretamente vinculadas ao seu Programa Público, os corpos também persistem. É possível encontrar-se com os corpos queer e com a integridade dos corpos que foram despedaçados, nas obras da artista Lorenza Böttner; mas também com os de mulheres, em Cecilia Vicuña; com os de prostitutas, nas criações de Annie Sprinkle e Beth Stephens; com os de ciganos, em Nikhil Chopra; com os de imigrantes, em Olu Oguibe; com os negros, em Ali Farka; e ainda com os imigrantes turcos, na obra dedicada a Halit Yozgat, assassinado por neonazistas em Kassel, em 2006. Nos espaços expositivos ocupados pela documenta em Kassel – sendo os principais deles o Fridericianum, a Neue Galerie, a Neue Neue Galerie, a documenta Halle e a Kulturbanhof –, deparamos os corpos que, sim, existem, mas que, por não
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encarnarem a regra, não importam para os mecanismos de legitimação brancos, heterossexuais e colonialistas. É inegável toda a aura de contradição e polêmica que cerca esta edição da documenta: póscolonial no seu discurso, mas por muitos considerada colonialista em suas práticas de inserção no cenário social e artístico na Grécia; livre no seu processo criativo, mas refém dos tradicionais esquemas privados de patrocínio; portadora de uma vontade de transformação social, ao mesmo tempo que frequentemente isolada dos espaços de socialização que extrapolam o campo da arte. Apesar de todas essas contradições, fazem-se presentes, na exposição, os corpos que não importam, mas existem. Ainda que possam ser representados, no final, por corpos mais convencionalmente legitimados.
CORPOS ABJETOS
As obras da falecida artista chilena Lorenza Böttner (1959-1994) mostram exatamente um corpo que, ao não se enquadrar nas regras de
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aul B. Preciado problematiza a crise Pepistêmica que surge quando um corpo
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transita de um gênero para outro
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L orenza Böttner trabalha com o próprio corpo, que se coloca fora das regras e é tido como monstruoso
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saúde e normalidade, ganha o seu lugar apenas na norma do que é monstruoso. Lorenza Böttner, nascida Ernst Lorenz Böttner, no Chile, em uma família de origem alemã, teve os dois braços amputados depois de um choque elétrico que levou ao escalar um poste de luz. Após este acidente, Lorenza Böttner seguiu com a mãe para a cidade de Lichtenau, próxima a Kassel, onde cresceu sendo considerada deficiente. Recusou o uso de próteses e desenvolveu o interesse pelas artes, o que a levou a estudar pintura na Escola de Arte de Kassel. Como trabalho de conclusão de curso, escreveu a tese intitulada Behindert? (em português, Deficiente?), em que questionava a categoria de deficiência, rejeitava a equiparação da deficiência com aquilo que é freak ou monstruoso e refletia sobre as habilidades dos pés e da boca na atividade da pintura. Na época, adotou o nome Lorenza, passando a afirmar publicamente uma identidade feminina. Nos seus desenhos, pinturas e fotografias, veem-se representações suas nas quais a ausência de braços e a ambiguidade sexual não só não impedem a sensualidade de um corpo que comumente é dessensualizado na categoria do monstruoso, como se tornam justamente os elementos de sua sensualidade. Ao contrário de freak, o corpo de Lorenza é representado, nos seus desenhos, pinturas e fotografias, de modo sensual porque misterioso em suas ambiguidades, e também sensível, como na pintura em que ela se representa alimentando um bebê com uma mamadeira ou pintando uma tela com um pé, como se estivesse dançando balé. A subjetividade transgênera e sem braços de Lorenza exige, assim como também exige Preciado, modos e discursos de representação que afirmam a existência trans não como um desvio que precisa ser corrigido, mas como uma existência que se legitima em sua dignidade humana, não monstruosa. As obras de Lorenza Böttner – desenhos, fotografias pessoais, pinturas, convite de lançamento e outros documentos – podem ser encontradas na Neue Galerie. É possível ver, na produção de Lorenza, aquilo que aponta Judith Butler no livro Bodies that matter (em
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português, Corpos que importam), referindo-se aos corpos abjetos: eles não só fortalecem exatamente as normas ao comporem as margens dela, como também se qualificam como o oposto dos corpos que importam, “dos modos de viver que contam como ‘vida’, das vidas que vale a pena proteger, das vidas que merecem ser salvas, das vidas que merecem o luto”. Os corpos que não causam luto são precisamente os corpos que não importam. As suas tragédias não estão nos jornais. Como teria dito Butler, o corpo do turco Halit Yozgat também não importa. Em 2006, o jovem de 21 anos foi assassinado dentro da lan house de sua família na cidade de Kassel, na região de Hesse. Tornou-se a nona vítima de uma série de assassinatos de imigrantes na Alemanha. Estranhamente, comprovou-se a presença do agente do Serviço Secreto da região de Hesse na lan house, no mesmo dia do assassinato de Yozgat. Andreas Temme disse que não escutou as balas, não sentiu o cheiro da pólvora, nem viu o corpo de Halit no chão quando foi embora. Em vez de investigar a estranha presença de Temme na lan house no dia do assassinato, a polícia alemã se dedicou a investigar a vida da família dos
assassinados: se havia antecedente criminal, envolvimento com drogas ou se estavam legalizados no país. Ao contrário do que aconteceria se as vítimas fossem alemãs, não se viveu um luto coletivo. Um dos trabalhos mais interessantes da documenta 14 é justamente a série de documentos – fruto de investigações, pesquisa, ativismo social e criação artística da Sociedade Amigos de Halit – que problematiza o que se chama de “NSU-Complex”, um composto de terror neonazista e de um ciclo crescente de racismo institucional e estrutural em disseminação na sociedade alemã contemporânea. A presença de um trabalho que não se enquadra tão facilmente nas definições mais tradicionais de “obra de arte” torna-se uma questão secundária diante da importância dos documentos ali apresentados. O material compreende registros dos protestos que, semanas após o assassinato de Halit Yozgat, foram organizados, sob o slogan No 10th Victim (em português, Não à décima vítima), pelos parentes das vítimas de violência racista. A obra também reúne depoimentos dessas famílias (ouve-se neles o desamparo diante da falta de solidariedade e apoio
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imulação realizada Spara a obra No 10th
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victim, sobre o assassinato do turco Halit Yozgat, em Kassel
do Estado alemão), e ainda uma simulação de alto nível realizada pela Forensic Architecture – uma agência de pesquisa sediada em Londres, que fornece evidências novas para investigações com base em análises arquitetônicas –, na qual se comprova, através de testes de som e cheiro e de simulações temporais, que Andreas Temme estava na lan house no momento do crime e que seria impossível ele não ter ouvido o som das balas, sentido o cheiro da pólvora e visto o corpo de Yozgat no chão. A conclusão que se tem, com a simulação, é que ou Andreas Temme foi testemunha do assassinato do jovem turco ou foi ele mesmo o próprio assassino. A versão contradiz aquela que ainda é tomada como verdadeira pelo Estado alemão, para o qual não há qualquer envolvimento de Temme – só em 2011 foi anunciado publicamente que os assassinatos tinham sido cometidos por um grupo de neonazistas, o Nationalsozialistischer Untergrund (NSU), e, mesmo após essa comprovação, não houve pedido
de desculpas oficial à família de Halit pelo desrespeitoso tratamento recebido na ocasião do assassinato. A obra pode ser encontrada na Neue Neue Galerie. Todos os documentos foram concedidos pelos membros da Sociedade Amigos de Halit, que se formou durante os encontros do Parlamento dos Corpos. Desde junho, também se vê em criação a Sociedade dos Amigos de Lorenza Böttner, voltada para a defesa da diversidade física e neurológica das pessoas. Uma das propostas mais interessantes do Parlamento dos Corpos é justamente incentivar a formação de Open Form Societies (em tradução livre para o português, Sociedades de Formas Abertas), grupos que se encontram para discutir questões que concernem a todos os envolvidos, através de leituras, escritas, palestras e debates. Desde 2016, outras sociedades vêm se constituindo, como a Sociedade pelo Fim da Necropolítica, coordenada por Paul B. Preciado, e a Sociedade Noosférica, orientada pelo artista Angelo Plessas. A ideia é que essas sociedades transformem as imaginações políticas segundo um encontro mais afetivo que representativo, como acontece de modo geral nas democracias representativas no mundo.
O evento traz reflexões sobre como o medo dos corpos que não se encaixam na norma e o terror aplicado a esses corpos compõem o pano de fundo das vidas nas sociedades capitalistas contemporâneas C O N T I N E N T E AG O S TO 2 0 1 7 | 3 1
Reportagem FOTOS: MAYARA MARQUES
m A happening, o Eartista Dimitris Alithinos põe
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um corpo feminino numa espécie de sessão de tortura
HETEROTOPIAS
Assim, nas obras encontradas na exposição, exprimem-se também reflexões sobre como o medo dos corpos que não se encaixam na norma e o terror aplicado a esses corpos compõem o pano de fundo das vidas nas sociedades capitalistas contemporâneas.“Apesar do chamado militante, empoderador – Esqueça o medo! –, formulado pelo artista Artur Zmijewski em 2012 como o título de sua 7ª Bienal de Berlim de Arte Contemporânea, o mundo como o conhecemos hoje permanece um lugar (e tempo) de mais medo que esperança. De fato, o medo é a moeda comum do neoliberalismo – precisamente porque ele pode ser mais facilmente capitalizado do que o desejo e a alegria sem limites”, escreve o diretor artístico da documenta 14, Adam Szymczyk, no ensaio Iterabilidade e alteridade – aprendendo e trabalhando de Atenas.
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A obra Acropolis redux (The director’s cut), do artista sul-africano Kendell Geers, por exemplo, apresenta uma série de estantes e prateleiras de aço ocupadas por arames farpados de várias qualidades, como se estivéssemos em um depósito de materiais que serão usados posteriormente para cercar espaço e proteger territórios – Geers engajouse aos 15 anos com o Movimento Antiapartheid na África do Sul, e muitas das suas obras refletem sobre as contradições morais e éticas do sistema apartheid. A obra, que integra a coleção do Museu Nacional de Arte Contemporânea (EMST) de Atenas, pode ser vista no museu Fridericianum, onde também estão outros itens da coleção que foi concedida temporariamente à documenta de Kassel. É no Fridericianum, aliás, que está a maior parte das obras criadas por artistas gregos. Lá se encontra A happening, de Dimitris Alithinos, onde se vê a representação do corpo de uma mulher deitada no chão com as mãos atadas. Ao seu
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lado, um gravador de som onde um rolo de fita já foi completamente gravado. Mesmo assim, ele continua girando, como se não houvesse mais ninguém no local para desligar a gravação. A posição da mulher e o símbolo do gravador lembram, então, uma sessão de tortura. Apesar de essas obras terem sido criadas em momentos históricos bastante diferentes do atual (a primeira é de 2004 e a segunda, de 1973), elas se unem no presente por ambas aludirem a lugares que funcionam, ironicamente, como não-lugares. Ou, como diria Michel Foucault, por aludirem ambas a heterotopias: espaços de desvios, lugares onde estão os indivíduos cujos comportamentos ou corpos desviam em relação à média ou à norma exigida. São as casas de repouso, as clínicas psiquiátricas, mas também os campos de concentração, as prisões, as salas de tortura. O medo de todos aqueles corpos e modos de vida que não se encaixam na norma se traduz, então, na criação desses espaços diferentes, “um espaço de contestação simultaneamente mítica
s arames farpados Outilizados pelo artista
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sul-africano Kendell Geers fazem referência às demarcações de território
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e real do espaço em que vivemos”, escreve Foucault. O choque causado pelo Monumento para os estrangeiros e refugiados, do artista nigeriano Olu Oguibe, ligase justamente à ousadia artística de situar os não-lugares no centro daquilo que é tomado como um lugar. O obelisco de 16 metros, erigido no centro da Königsplatz, um dos pontos mais centrais de Kassel, tem em sua estrutura a seguinte frase, tirada de Mateus 25:35: “Eu era um estranho e vocês me acolheram.” A expressão é lida em cada uma das quatro faces do obelisco num idioma específico: inglês, alemão, turco e árabe, as línguas mais faladas na pequena cidade hessiana.“Penso que minha intenção
era reconhecer e registrar a longa história da cidade com a migração dentro e fora de Kassel, na Europa e no resto do mundo. Como afirmei em outro lugar, todos nós somos viajantes, no final do dia, e todos os viajantes esperam que, não importa o propósito de sua jornada, haja alguém pelo caminho que seja gentil o suficiente para dizer, nas palavras famosas de Bob Dylan: ‘Entra, e eu vou te dar abrigo da tempestade’”, conta Oguibe – que também é professor de arte e estudos afro-americanos da Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos – para a Continente (confira a entrevista completa no site). Assim, o lugar escolhido para situar o obelisco foi não só essencial na
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A imigração também é tema da
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obra Hopscotch (em português, Amarelinha), do grego Vlassis Caniaris
construção do sentido da obra como também fez com que ele incorporasse um forte elemento político. Se tivesse sido erigido às margens da cidade, poderia ser considerado um ultraje à presença (nada tímida) dos imigrantes em Kassel. Estando na Königsplatz (o único local na cidade onde se encontram regularmente a parte do norte, menos privilegiada e predominantemente imigrante, e a parte mais nativa e mais afluente do sul), o monumento subverte as dualidades lugar/ não-lugar, imigrante/nativo ou margem/centro, unindo-as sob o denominador comum do sentimento unificador de hospitalidade. Como relata Oguibe, o monumento já provocou uma série de reações na população local: “A resposta pública para o trabalho foi esmagadoramente positiva em cada canto. Nós até recebemos relatos de pessoas chorando quando viam o obelisco. Jovens agora se reúnem lá, pessoas se sentam na base do obelisco para socializar, ou para esperar pelo trem, ou para usar o wi-fi público, e foi exatamente isto o que eu planejei criar, ou seja, um trabalho com o qual as pessoas se sentissem suficientemente confortáveis a ponto de terem um senso de propriedade, enquanto ao mesmo tempo a obra comunicasse uma mensagem universal poderosa.” O artista nigeriano, que há décadas realiza pesquisas sobre arte pública, conta que estas reações foram, de alguma maneira, previstas por ele. “Eu sou muito sensível à política e à logística do espaço aberto, e tento usá-las em meu pensamento como fatores no momento que realizo um trabalho a ser situado em local público”, conta. Como resultado, já há uma certa pressão social para que o monumento continue na Königsplatz, mesmo após a documenta. Devido ao impacto e à repercussão positiva da obra entre os residentes em Kassel, Oguibe recebeu o Prêmio Arnold Bode 2017 das mãos das
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instalação A Parthenon de livros, da argentina Marta Minujín, é composta por publicações que são ou já foram proibidas anu Cennetoğlu B fez uma intervenção na fachada do Fridericianum, adicionando a frase Being safe is scary (em português, Estar seguro é amedrontador)
Apesar da intenção de desafiar o próprio modelo expositivo, desestabilizando-o, o que ainda se percebe é uma mostra que funciona nos moldes tradicionais das grandes exposições de arte autoridades municipais. O prestigiado prêmio, que traz o nome do fundador da documenta, tem o valor financeiro de 10 mil euros e o simbólico de reconhecer os artistas contemporâneos que tenham emprestado os seus esforços mais intensamente à arte contemporânea. Além do monumento de Olu Oguibe, a heterotopia do imigrante também é explorada na obra Hopscotch (em português, Amarelinha), do artista grego Vlassis Caniaris, na qual se vê um grupo de homens com malas antigas e paletós diante de um jogo de amarelinha. Em cada quadrado, lê-se uma palavra específica em alemão. Na primeira, “comissão de trabalho”, depois “desorientação”, em seguida “consulado”, “situação de trabalho” e assim vai. Cada quadrado da amarelinha refere-se a um lugar ou condição que um recém-chegado tem que ocupar até se integrar em uma sociedade. O jogo da amarelinha surge como teste de inclusão social, assim como o exame de testosterona é o teste para a inclusão em um novo gênero. Ou, como também escreve Preciado, assim como a pessoa trans,
o migrante e o refugiado são apátridas. São os viventes de heterotopias. “Eles deram um passo para fora da linhagem do estado-nação, mas também do patriarcado. Eles todos experienciam a suspensão temporal de seus status políticos. É demandado tanto da pessoa trans como dos refugiados que nós destruamos nossos certificados de nascimento para que possamos nos ‘integrar’ na sociedade dominante que bondosamente nos recebe”, escreve Preciado, ironicamente. Na fachada do Fridericianum, a frase Being safe is scary (em português, Estar seguro é amedrontador), intervenção da artista Banu Cennetoğlu, traz uma inversão. E a inversão aqui presente evidencia o que há de heterotópico no “mundo real”, no mundo em que vivemos segundo a norma, no mundo onde não cabe o desvio. Como é famosamente conhecido, a premiê da Alemanha Angela Merkel, respondendo ao BILD-Zeitung sobre que tipos de sentimentos a Alemanha lhe suscita, disse: “Eu acho que uma janela bem-fechada! Nenhum país pode fazer janelas tão boas e bem-
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fechadas.” Estar a salvo, dentro de um quarto onde as janelas estão bemfechadas, surge como um cenário amedrontador na obra da artista Banu Cennetoğlu. No entanto, até dentro do quarto onde as janelas estão bemfechadas, existe o lugar do desvio. E este lugar é, para Michel Foucault, o lugar da compensação.
LIMITES
Aquela que é considerada uma das maiores exposições de arte contemporânea do mundo, a documenta, chega à sua 14ª edição com a intenção de refletir sobre as condições dos corpos que não se encaixam na norma. Na maior parte dos trabalhos artísticos escolhidos para integrá-la, realmente veem-se reflexões bastante provocativas sobre o cenário de crise no qual vivemos. Em seu discurso curatorial, mas também nos trabalhos que ocupam os espaços expositivos em Kassel, a documenta traz os sentimentos de vergonha, frustração, medo e desorientação, que parecem, realmente, compor uma espécie de estado de espírito global. Percebem-se esses sentimentos em obras como o Parthenon de livros, de Marta Minujín, Nós (todos) somos o povo, de Hans Haacke, Os desastres da guerra, de Daniel García Andújar, e tantas outras criações que não poderiam ser exploradas aqui largamente, pelas dimensões limitadas do presente texto, em comparação com a megalomania artística que é a documenta. Esta questão, aliás, parece ser uma das mais problemáticas da documenta 14. O diretor artístico Adam Szymczyk ressaltou, na conferência de abertura da exposição, que a documenta seria orientada, nesta edição, pelo que ele chamava de aneducation – um misto de prática social e princípio pedagógico que exige que se abandonem preconceitos, que se mergulhe no não saber, que se “desaprenda”, para que se possa aprender novamente. Só seria possível “aprender de Atenas”, como diz o título desta edição, através do princípio da aneducation: entrando em um lugar sem a bagagem anteriormente acumulada de ideias preconcebidas, no que poderia também ser interpretado
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como uma postura não colonialista de entrada em um território alheio. O problema desse princípio é que, para muitas pessoas que chegaram a conhecer a versão ateniense da documenta, ele não foi exatamente realizado: não teria havido uma troca realmente produtiva entre o cenário artístico local e a equipe da documenta, que teria chegado a Atenas como um óvni, utilizando a cidade apenas como “espaço cenográfico” (confira no site a crítica de Moacir dos Anjos). Em Kassel, este tipo de incômodo não é percebido, porque, afinal, como diz o slogan da cidade, repetido inclusive nos anos em que não há documenta, Kassel é “a cidade da documenta”. Mas o que se vê como a principal problemática da mostra também está associado ao princípio da aneducation: espera-se que, de alguma maneira, o evento em si, no seu modo de se apresentar, também proponha uma desautomatização dos modos pelos quais normalmente se vê uma exposição. Como o próprio Szymczyk escreve no ensaio Iterabilidade e alteridade – aprendendo e trabalhando de Atenas, fez parte do processo de criação da documenta a invenção de ferramentas que pudessem desmantelar os termos do engajamento com uma exposição, visando a desafiar
a própria exibição. O princípio da aneducation também tinha a intenção de abalar a própria estabilidade da mostra. Assim, a documenta deveria propor, a todas as pessoas envolvidas, dos visitantes aos produtores, “gestos simbólicos e práticos, intervenções, celebrações e rituais”. Não é bem isso o que se dá na exposição. “O problema da documenta é que tudo aqui é para ver, nada é para brincar, para jogar”, problematiza o artista paquistanês Rasheed Araeen, autor de obras que requerem a interação do público com a criação, como acontece em Shamiyaana – food for thought: thought for change, que ele montou em Atenas. Araeen armou uma tenda onde servia comida mediterrânea, a fim de que o público pudesse se encontrar de modo celebrativo e ritualístico. A interação proposta por Shamiyaana, junto com o Monumento para os estrangeiros e refugiados, de Olu Oguibe, parece ser uma das exceções à regra da normalidade expositiva ainda encontrada na documenta. De fato, a mostra, no seu modo de se apresentar, não difere em nada das exibições que podem ser vistas em museus comuns da Europa. Cada espaço conta com as suas obras e cada obra com as suas placas informativas,
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ikhil Chopra também N trabalha com os corpos de sujeitos migrantes, grupo recorrentemente marginalizado hamiyaana – S food for thought: thought for change, de Rasheed Araeen, foi montada em Atenas e propõe uma interação direta com o público
onde estão escritos o nome e a data de nascimento do autor, o nome e a data de criação da obra. Além disso, são dezenas de obras por espaço expositivo, o que torna a experiência do visitante não só cansativa – é preciso ler e ver muitos itens a cada visita – como confusa. Não há tempo de digerir cada obra, porque, logo depois que se vê e se sente o impacto de uma criação, devese passar para outra. Como resultado, é impossível não sentir cansaço e desorientação no final do trajeto. Assim, apesar das intenções de desafiar o próprio modelo expositivo, desestabilizando-o, o que ainda se percebe é uma mostra que funciona nos moldes tradicionais das grandes exposições de arte. Esta dificuldade
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de romper a estabilidade da documenta chega a ser abordada pelo próprio Szymczyk: “Esta estabilidade parece difícil de ser superada, especialmente em grandes exibições como a documenta, que depende, em uma miríade de modos, do seu contexto de produção – uma complexa, mas não inteiramente invisível rede de interesses políticos e comerciais – e que lida com a demanda do sucesso instantâneo, seguido pela expectativa de uma inteligibilidade imediata do conteúdo produzido.” O claro engessamento da documenta enquanto modelo expositivo e as polêmicas que tangem ao modo pelo qual a instituição se inseriu em Atenas, a ausência de artistas
brasileiros, a pouca representatividade dos artistas latino-americanos e o acesso à exposição por um público de privilegiados mostram-se, então, como os principais problemas da 14ª documenta. Mas é preciso lembrar que estes não são problemas específicos desta edição: desde que foi criada, em 1956, a documenta se enquadra no modelo das grandes exposições de arte; traz inevitavelmente em seu discurso a voz do Estado alemão, já que é uma instituição pertencente à Fundação Federal de Cultura da Alemanha; e, por sua localização no Norte geográfico, político e social, sempre teve o seu acesso restrito. Se esta edição não tivesse vindo com o discurso de
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questionar toda esta ordem, não teria sido acusada de cinismo. Mesmo assim, entre uma documenta que aceita a sua condição de Norte e se fecha em si mesma, à semelhança de uma “janela bem bonita e bem-fechada”, como diria Angela Merkel, e outra que, pelo menos, assume a condição de navio (ainda que um navio do Norte), a“heterotopia como excelência”, como diria Michel Foucault, preferese aqui a segunda opção. BÁRBARA BURIL, jornalista, mestre em Filosofia pela UFPE. * A repórter foi a Kassel através de uma parceria entre a Continente e o Centro Cultural Brasil-Alemanha (CCBA).
Artigo
OS CAMINHOS DO PENSAMENTO DE MARÍA ZAMBRANO Há 113 anos nascia a formuladora da razão poética, uma forma especulativa situada entre a criação poética e as indagações de caráter filosófico TEXTO EDUARDO CESAR MAIA
Em uma ocasião de homenagens pós-
tumas, o pensador e ensaísta basco Fernando Savater se referiu à filósofa María Zambrano, primeira mulher a ganhar o prestigiado Prêmio Cervantes, usando de uma sugestiva analogia bélica: “uma franco-atiradora necessária, à margem de todo academicismo”. De fato, Zambrano foi uma das pensadoras mais interessantes e idiossincráticas do século passado, e sua “marginalidade” vai muito além – como alguns poderiam supor – de qualquer consideração sobre preconceitos de gênero na filosofia: sua forma especulativa se constituiu e se realizou deliberadamente às margens da filosofia “oficial”, ainda que sem abdicar do diálogo com essa tradição. Um dos mais respeitados estudiosos de sua obra em nossos dias, o professor Francisco
José Martín, da Universidade de Turim, defende a ideia de que a concepção de filosofia da pensadora espanhola alcançou uma forma tão particular – e divergente da tradição racionalista ocidental – que a difusão de suas ideias acabou sendo dificultada, mesmo entre especialistas. Assim, infelizmente, também no Brasil, seu nome é desconhecido fora do circuito acadêmico – e muito pouco conhecido dentro dele. Considero meu primeiro contato com sua obra uma verdadeira descoberta: comprei num sebo no Centro do Recife uma edição velhinha de Filosofía y poesía e enxerguei ali, já na leitura dos primeiros parágrafos, algo fora do ordinário, tanto do ponto de vista conceitual quanto no que se refere ao estilo literário plasmado em forma ensaística. Afinal, era filosofia ou literatura?
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A disjuntiva (isto ou aquilo) ainda se me impunha como algo intransponível naquele tempo. Depois de alguns anos, e superada a visão dicotômica e empobrecedora à qual eu mesmo me aferrava, a pergunta simplesmente deixou de fazer sentido para mim. Mas, antes de tratar disso, acho que é de bom-tom apresentar brevemente as circunstâncias vitais da pensadora.
VIDA, INFLUÊNCIAS E EXÍLIOS
María Zambrano Alarcón nasceu na cidade andaluza de Vélez-Málaga (Espanha), no dia 22 de abril de 1904 – há 113 anos, portanto –, e passou a maior parte da infância e adolescência em Segóvia. Aos 24 anos, em Madri, realizou estudos de Filosofia, tendo como mestres figuras como Ortega y Gasset, García Morente,
REPRODUÇÃO
Julián Besteiro e Xavier Zubiri. Em 1932, Zambrano substituiu Zubiri na cátedra de Metafísica da Universidad Central e começou a colaborar na importante Revista de Occidente; depois, na Cruz y Raya e na Hora de España. Durante esses anos que precederam seu exílio, conheceu e fez amizade com Bergamín, Luis Cernuda, Jorge Guillén e Miguel Hernández. Por razões políticas, Zambrano deixou a Espanha, e toda sua vida como exilada, pesem todas as dificuldades, foi muito fecunda em produção literária e em relacionamentos com intelectuais, artistas e políticos. No México, conheceu Octavio Paz e León Felipe; na França, fez amigos como Albert Camus e o poeta René Char. Viveu também em países como Porto Rico e Cuba, sempre
exercendo a docência em diversas universidades. Somente em 1953 ela pôde retornar à Europa, fixando residência em Roma. No ano de 1978, mudou-se para a Suíça e, finalmente, em 1982, retornou à Espanha, onde faleceu em 1991.
SEU TEMPO E OUTROS
A influência no pensamento de Zambrano das correntes filosóficas do seu tempo é muito clara: filosofia existencial, fenomenologia e, sobretudo, vitalismo vão ser parte da sustentação e da motivação da sua peculiar forma de especulação intelectual; por outro lado, suas grandes fontes de estudo e pesquisa estavam no passado: os gregos antigos, o pensamento neoplatônico de Plotino e a ética e a metafísica – inexoravelmente enredadas – de Espinosa.
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Mas nenhuma de suas influências posteriores foi tão profundamente enraizada quanto sua formação filosófica junto a José Ortega y Gasset. Vários temas e noções que ela vai trabalhar durante toda a vida foram assimilados do pensamento de seu principal professor. A razão poética zambraniana não poderia surgir sem a revolução conceitual impulsionada pelo raciovitalismo orteguiano — que engloba, simultaneamente, a noção de perspectivismo filosófico, a crítica a uma tradição racionalista que oblitera os problemas fundamentais do indivíduo humano, e a incorporação ao pensar da noção de vida como realidade radical, que se impõe frente aos conceitos abstratos da filosofia tradicional. A razão vital de Ortega buscou superar, unindo-os, racionalismo e vitalismo.
Artigo REPRODUÇÃO
Não se pode separar o homem de suas circunstâncias, dirá Ortega, reivindicando que a única realidade radical é a vida: a razão deveria, portanto, parar de construir abstrações sobre abstrações, conceitos a respeito de conceitos. Todo conhecimento parte da vida, e até a razão é só uma parte (um atributo) dela – é razão vivente –, pelo fato de que viver, para o homem, é dotar de sentido (logos) sua existência. A razão, pois, não poderia ser nada senão um modo de ser do homem. A discípula irá se diferenciar do mestre naquilo que é justamente o fulcro do pensar zambraniano: o método, ou, o que dá no mesmo em seu caso, o estilo. A razão poética é uma ruptura no discurso racional, uma quebra a um nível a que não chegou o próprio Ortega y Gasset. Para “criar” esse novo pensar – que em si já é criação incessante –, María Zambrano fez uso de elementos próprios da poética: metaforização, atitude criadora e imaginativa que pudesse refletir, de algum modo, a dinamicidade da vida e sua infinita multiplicidade. Em livros como Senderos, El hombre y lo divino e, principalmente, Filosofía y poesía, Zambrano percorre um caminho de investigação a fim de rastrear a essência do fazer poético e das relações dessa atividade com a filosofia. O seu método, a razão poética, parece ter sido uma elaboração progressiva; e é ele, o método, que confere unidade à produção intelectual da filósofa – mais até do que suas temáticas.
OS CAMINHOS DO PENSAMENTO
“O próprio do homem é abrir caminho, porque, ao fazê-lo, põe em exercício o seu ser; o próprio homem é caminho”, escreveu Zambrano. A citação é um ótimo exemplo para ilustrar duas coisas: primeiramente, em relação ao seu estilo literário, vê-se que utiliza a linguagem metaforizada para carregar a sua concepção de um sentido vital; e, em segundo lugar, que o autor de Caminhos do bosque, Martin Heidegger, foi outra grande influência para a filósofa. Aliás, a ideia heideggeriana do homem como um eterno projetar-se no tempo parece que teve muitas reverberações, tanto na filosofia como na literatura. Essa mesma concepção está presente, por exemplo, em Ortega y Gasset (“El hombre es quehacer”), ou em Antonio Machado (“El camino se hace al caminar”); e, também, para citar um exemplo literário brasileiro, em
rtega y Gasset foi um Oprofessor essencial na
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formação filosófica de Zambrano
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Vários temas que ela vai trabalhar foram assimilados do pensamento de Ortega y Gasset. A razão poética zambraniana não poderia surgir sem o conceito de raciovitalismo orteguiano Guimarães Rosa, quando ele sugere que o real não está nem no princípio nem no fim, mas dispõe-se para cada um durante a travessia, que é a vida mesma. A razão poética, como método para uma recepção vital dos acontecimentos, é que vai promover a “creación de la persona”, através desse caminho que é a existência. Para tanto, inicia-se como “conocimiento auroral”: visão poética e atenção disposta à recepção – sem rechaçar o que vem do espaço exterior, permanentemente aberta e nascente. A partir de então, a razão poética se dará plenamente, como ação metafórica, à maneira dos poetas, realizando um vínculo através das palavras. E, neste ponto, pode-se vislumbrar novamente a visão de Heidegger, para quem o pensador autêntico e o verdadeiro poeta estão necessariamente ligados ao mesmo ato e ao mesmo testemunho do ser.
POESIA E FILOSOFIA
Investigar a essência do fenômeno poético e perscrutar os seus vínculos com a filosofia: eis a instigante tarefa a que se propõe María Zambrano em uma parte considerável de suas escrituras.
A filósofa considera – em aproximação ao pensamento de Unamuno e de Antonio Machado – poesia e filosofia como “palavra no tempo”, já que, como ela mesma disse, “na vida humana o decisivo é o tempo”. O vínculo, em síntese, que Zambrano faz entre essas duas formas de expressão humana é o de que ambas são a palavra tentando “nos curar da ferida do tempo”. A consideração sobre a temporalidade como problema central da existência surge a partir da noção de que tanto a filosofia como a poesia nasceram da admiração e do pasmo humanos ante o que nasce e o que morre, pela ação impetuosa e inexorável do tempo. Esta inexplicável condição, a da finitude, suscita uma resposta humana, criadora; uma revolta pela existência e pela permanência. A forma primeira em que se estabelece a luta pela vida nos deuses e em todos os seres, segundo a teologia de Hesíodo, é a luta contra o tempo (Cronos, o deus que engolia seus próprios filhos). A poesia é a primeira resposta criadora à voracidade do tempo: “O poeta é o homem devorado pela nostalgia de um tempo perdido dentro deste tem-
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po em decadência”; é aquele que tenta devolver ao homem a inocência perdida e atingir o fundo da sua alma, longe da diversidade das horas vividas. Aqui está fortemente presente uma influência neoplatônica: nessa busca por uma idade de ouro e na esperança de uma unidade “mais além do ser e da essência”. Poesia, assim entendida, imiscui-se à filosofia, e já não podemos perceber os limites de cada uma. Unamuno uma vez disse que “filosofia e poesia são irmãs gêmeas, ou talvez sejam a mesma coisa”.
O REAL E A APREENSÃO RACIONAL
O filósofo hermeneuta Wilhelm Dilthey separava a mera explicação da verdadeira compreensão: “Explicamos mediante meros processos intelectuais, mas compreendemos mediante a cooperação de todas as faculdades anímicas na apreensão.” De maneira mais simples, mas não menos sábia, o nosso Rosa dirá: “A gente só sabe bem aquilo que não entende.” De maneira análoga, Zambrano compreendia a experiência poética como uma forma de apreensão do real, uma forma de sabedoria que se dá não por silogismos ou por sequências dialéticas, mas por uma conexão vital com o real. O filósofo italiano Benedetto Croce (1866-1952) tentou separar ou diferenciar filosofia e poesia afirmando que a primeira é sistemazione do universo, enquanto que a segunda é a sua ritmazione. Porém, a experiência da modernidade – buscando, talvez, nas origens de ambas as formas de expressão humanas, um novo caminho – tornou cada vez mais sutis os limites entre poesia e filosofia. Na obra ao mesmo tempo filosófica e literária de María Zambrano, esses limites simplesmente deixam de fazer sentido.
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A edição das Obras completas (em quatro tomos) de María Zambrano começou a sair em 2015 pela Editora Galaxia Gutenberg, e seria um grande acontecimento intelectual por estas bandas se alguma boa editora resolvesse publicar, mesmo que não em sua totalidade, boas traduções. Para ficar com três títulos fundamentais, eu destacaria El hombre y lo divino, Filosofía y poesía e Persona y democracia. EDUARDO CESAR MAIA, crítico literário, mestre em Filosofia, doutor em Teoria da Literatura e professor da UFPE.
JUAN ESTEVES/DIVULGAÇÃO
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O LONGO SÉCULO DE
HOBSBAWM A jornada crítica e ideológica do historiador britânico – nascido em 1917, ano da Revolução Russa – que testemunhou e averiguou os principais acontecimentos dos séculos XIX e XX TEXTO MARCELO ABREU
Quando lançou a autobiografia Tempos interessantes, publicada em 2002, o historiador Eric Hobsbawm, senhor de sua erudição e dos seus (então) 85 anos de idade, manteve o estilo levemente depreciativo, característico de falar de si mesmo. No livro, chegou a escrever sobre o legado que pensava deixar: “É provável que meu nome figure nas histórias de algum campo especializado de atividade, como o marxismo no século XX, e talvez surja em algum livro sobre cultura intelectual britânica. Além dessas possibilidades, se meu nome desaparecesse completamente, não haveria lacuna perceptível no relato do que sucedeu na história do século, na Grã-Bretanha ou fora dela.” Passados 15 anos daquele texto, porém, a obra deixada por Hobsbawm continua sendo lembrada e respeitada por boa parte do mundo letrado. O interesse por suas análises, neste ano em que se comemora o centenário de
seu nascimento, mostra que sua obra vem passando no teste do tempo. Seus livros estão traduzidos em cerca de 40 línguas, e pelo menos 16 títulos de sua autoria estão em catálogo no Brasil. Hobsbawm era um daqueles intelectuais da primeira metade do século XX: de pensamento abrangente, obra volumosa e engajamento político. Sua vida longa o tornou testemunha pessoal de dramas políticos do século quase todo. Seus cursos e viagens por vários países fizeram com que um grande número de pessoas, na academia e fora dela, parasse para ler seus livros, artigos e entrevistas e ouvir suas palestras. O início da trajetória pessoal já indicava o surgimento de um cosmopolita destinado a viver intensamente o século XX. Eric John Ernest Hobsbawm nasceu em Alexandria, no Egito (então sob o domínio britânico), filho de uma
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austríaca e de um comerciante inglês de origem judaica. No mesmo ano de 1917, quatro meses depois do seu nascimento, ocorreria a Revolução de Outubro na Rússia, acontecimento central na sua futura vida intelectual. Ainda criança, mudou-se com os pais para Viena, foi educado em língua alemã e tomou contato de perto com o tumulto na Europa Central, onde o Império Austro-Húngaro havia deixado de existir poucos anos atrás. Nos anos 1930, mudou-se para Berlim e, adolescente, viu a chegada do nazismo ao poder. Emigrou para a Inglaterra, onde entrou na vida acadêmica, formou-se em Cambridge e ingressou no Partido Comunista. “O que me atraiu para a história, em primeiro lugar, foi a leitura de Karl Marx. Ele proporcionou-me a consciência de que, sem a história, seria impossível entender o que se passa no mundo”, disse ao jornalista
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leitura de Karl Marx Fqueoi aatraiu Hobsbawm
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para a história
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italiano Antonio Polito, que publicou, no livro O novo século, uma longa entrevista com o historiador. Seu trabalho começou a se destacar internacionalmente com a publicação do livro A era das revoluções, em 1962. A obra tratava do período entre 1789 e 1848, abordando a revolução industrial inglesa, a revolução francesa, e prosseguia até os movimentos revolucionários de 1848, ano também da publicação do Manifesto comunista, de Marx e Engels. Seu texto conjugava erudição humanística, estatísticas demográficas e econômicas das fontes mais diversas e um olhar atento para fenômenos culturais como música e literatura, ajudando a contextualizar uma determinada época com precisão. A obra logo atingiu um público amplo, muito além das fronteiras da academia, a despeito do texto denso, cheio de enumerações de coisas díspares – como, por exemplo, dados econômicos do norte da Itália e do sul da Inglaterra, de épocas diferentes – no meio de frases muito longas, o que tornava a leitura lenta.
Em 1975, Hobsbawm deu prosseguimento à história contemporânea com a publicação de A era do capital (1848 a 1875). Assumindo o papel de especialista em século XIX, continuou no tema 12 anos depois ao publicar A era do império (1875 a 1914). Cunhou então a expressão “o longo século XIX”, período de 125 anos (entre 1789 e 1914) que condensou as mudanças que moldaram o mundo contemporâneo como o conhecemos. Além do século XIX, Hobsbawm expandiu seus interesses para áreas pouco lembradas na historiografia de então. Já em 1959, com o pseudônimo de Francis Newton (inspirado num trompetista que tocava com a cantora norte-americana Billie Holiday), havia lançado o livro The jazz scene, reunindo textos de uma coluna que publicou durante anos no jornal New Statesman. Hobsbawm, nascido em 1917, ano da primeira gravação de um disco de jazz, cresceu com a música norte-americana. Na década de 1990, em entrevista ao tradicional programa da rádio BBC, Desert Island Discs, que
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estimulava o convidado da semana a escolher músicas que levaria para uma ilha deserta, no meio de quintetos de Schubert e cantatas de Bach, ele colocou, entre suas preferidas, Parker blues, de Charlie Parker, e He’s funny that way, cantada por Billie Holiday. Também em 1959, Hobsbawm escreveu Rebeldes primitivos – estudo sobre as formas arcaicas dos movimentos sociais nos séculos XIX e XX, enfocando fenômenos como bandoleiros, salteadores, turbas urbanas e movimentos camponeses. Elaborou melhor o tema, 10 anos depois, num livro intitulado Bandidos, no qual analisa seitas milenaristas, amotinadas urbanas pré-industriais que tinham “sido esquecidas ou até mesmo consideradas pouco importantes por haverem tentado tratar dos problemas dos pobres numa sociedade capitalista utilizando equipamento inadequado ou historicamente obsoleto”. A espinha dorsal de sua carreira – a trilogia sobre o século XIX – havia consagrado Eric Hobsbawm quando ele, já septuagenário, embarcou
Apesar de ser repetidamente rotulado pela imprensa como “o último marxista” e de sua obra dividir opiniões nos meios intelectuais ingleses, Hobsbawm não era sectário no seu mais extenso projeto. Um livro sobre o século XX, que então se aproximava do fim. Sua fama mundial ficou ainda maior com o lançamento de A era dos extremos, livro no qual ele analisa o que chamou de “o curto século XX”. Sua delimitação até hoje causa polêmica. Hobsbawm estabeleceu o começo do século em 1914, com a deflagração da Primeira Guerra Mundial, e o seu término em 1991, com o fim do comunismo e a desintegração da União Soviética.
COMUNISMO
O envolvimento de Hobsbawm com o comunismo começou ainda em Berlim, quando ele tinha 14 anos e entrou para a Associação de Alunos Socialistas, uma ramificação da Liga dos Jovens Comunistas da Alemanha. Já na Grã-Bretanha, entrou para o Partido Comunista em 1936 e permaneceu até o esfacelamento da agremiação, nos anos 1990. Esse longo envolvimento tornou-se polêmico, e viria a gerar acusações de omissão na denúncia dos crimes do período stalinista (1924-1953).
Na verdade, Hobsbawm nunca teve uma posição dogmática sobre o marxismo. Chegou a assinar um manifesto condenando a invasão soviética da Hungria, em 1956. Apoiou a Primavera de Praga, em 1968. Em diversos outros momentos, criticou o regime soviético. Mas, ao contrário de outros historiadores de esquerda, que partiram em debandada depois da denúncia dos crimes de Stalin, ele nunca renegou suas ideias. Reconhecia abertamente ter uma relação afetiva com o marxismo que remontava à juventude, e não via razão para abandonar as ideias do passado, mesmo sabendo de todos os problemas que acompanharam a implantação do socialismo real no Leste Europeu. Para demonstrar independência intelectual, gostava de propalar que as autoridades da extinta URSS não se dispuseram a traduzir nenhum dos seus livros para o russo. “Embora eu fosse sabidamente membro do Partido Comunista e editor da edição inglesa das Obras escolhidas de Marx e Engels, pelos critérios da ortodoxia soviética, os livros não eram ‘marxistas’.”
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Apesar de ser repetidamente rotulado pela imprensa como “o último marxista” e de sua obra dividir opiniões nos meios intelectuais ingleses, Hobsbawm não era sectário. Curiosamente, para quem organizou os 12 volumes da coleção História do marxismo, publicados no Brasil pela Editora Paz e Terra, ele se deu o direito de criticar a produção teórica sobre Marx. Em Tempos interessantes, relembra um congresso ao qual compareceu, organizado para comemorar o sesquicentenário de nascimento de Karl Marx, realizado em Paris, justamente durante o mês de maio de 1968. “Nesses congressos”, escreveu, em que “um pelotão de burocratas ideólogos da União Soviética contribuía com monografias extremamente tediosas sem qualquer interesse, os participantes se sentiam estimulados a deixar o salão de conferências e ir passear nas ruas”.
NOS ANOS 1960
A rebelião jovem dos anos 1960, que pegou Hobsbawm já como um “velho esquerdista” (tinha 51 anos em 1968), foi tema de muitas de suas reflexões. “Parecíamos usar o mesmo vocabulário, mas não parecíamos falar a mesma língua”, escreveu na autobiografia, sobre a relação com os jovens que protestavam nas ruas. Em suas obras mais recentes, gostava de ressaltar a mudança de parâmetros do que é ser um revolucionário depois da revolução dos costumes que tomou conta do Ocidente há 50 anos. Para ele, maio de 1968 não teria sido uma tentativa malograda de fazer uma revolução, mas a efetiva ratificação de outra coisa. Uma nova postura “que aboliria a política tradicional (…) por meio do slogan ‘o que é pessoal é político’”, escreveu. “Olhando para trás, é fácil ver que interpretei de forma equivocada o significado histórico da década de 1960.” Apesar das divergências, o historiador se considerava alguém que não conseguia “sobrepujar a admiração pelos perdedores combativos, ainda que estejam equivocados”. Na verdade, Hobsbawm dialogava facilmente com intelectuais de outras cores ideológicas, e estava longe do jargão comunista tão
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ovens tomaram as Jruas de Paris, em
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maio de 1968
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Para ele, maio de 1968 não foi uma tentativa malograda de fazer uma revolução, mas a ratificação de uma nova postura “que aboliria a política tradicional” comum nos trabalhos de ciências humanas produzidos pela esquerda. Já nos tempos como aluno de graduação, reconhecia valor no campo adversário: “Creio que aprendi muito com um professor de Cambridge, Michael Postan, que emigrara do Leste Europeu, pois era o único que acompanhava os debates no continente, e que conhecia a obra de pensadores como Marx e os sociólogos e historiadores russos. Evidentemente, sendo um ‘russo branco’, era fervorosamente anticomunista. Mas sabia do que falava.” Na França, mantinha um diálogo frequente com os historiadores da École des Annales. Tinha proximidade com intelectuais italianos e gostava de acompanhar os acontecimentos na América Latina, onde esteve várias vezes, em Cuba e no Brasil. Mas suas posições estavam longe de ser consensuais, até mesmo na esquerda. O historiador brasileiro Daniel Aarão Reis Filho, professor da Universidade Federal Fluminense e especialista em
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marxismo, reconhece a importância de Hobsbawm, mas faz algumas ressalvas. “O fato de ter sido marxista, embora não dogmático, marcou-o com uma tendência indulgente e um tanto arrogante em relação a outras propostas anticapitalistas. Por outro lado, seu eurocentrismo, às vezes irritante, mas comum entre os intelectuais europeus, às vezes o faz perder a especificidade do que acontece em outras regiões do mundo.” Aarão Reis acha que as “obras de divulgação” sobre as revoluções do século XIX são também “referências inescapáveis” e que o autor tem uma posição de “interlocutor incontornável” no debate histórico. Mas afirma também que, “como a maior parte dos intelectuais progressistas europeus do século XX, Hobsbawm é marcado por um certo ‘terceiro-mundismo’ algo ingênuo e também por uma dificuldade grande de formular críticas específicas, o que provém de um complexo de culpa muito comum nestes intelectuais do ‘primeiro mundo’”.
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Primeira Guerra AMundial foi iniciada em
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1914 e encerrada em 1918
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m 1991, estátuas de Lênin Eforam derrubadas em
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vários países que faziam parte do bloco comunista
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Hobsbawm estabeleceu o começo do século XX em 1914, com a deflagração da Primeira Guerra Mundial, e o seu término em 1991, com o fim do comunismo e a desintegração da União Soviética DESFAZENDO MITOS
Hobsbawm sempre teve interesse muito agudo por fenômenos ligados ao nacionalismo e à formação do estado-nação baseado em identidades étnicas. Ele próprio sendo judeu, não se absteve de apontar o Estado de Israel como parte do que chama de “uma mitologia” que muitas vezes justifica a criação de estados nacionais: “Não há a menor dúvida de que o mito histórico da expulsão da Palestina e o sonho do retorno só foram percebidos como programa político no fim do século XIX.” Em 1984, numa palestra na Universidade de Davis, na Califórnia, disse: “O sionismo ou, nesse sentido, qualquer movimento nacionalista moderno, não poderia ser concebido como um retorno a um passado perdido, porque o tipo de estado-nação territorial, dotado do tipo de organização que ele visava, simplesmente não existiu até o século XIX.” Para ele, a atividade profissional dos historiadores é “desmantelar essas mitologias, a menos que se contentem em ser servos dos ideólogos. Essa é uma contribuição importante, e os
políticos não costumam agradecer aos historiadores por ela”, disse, na mesma ocasião. Sempre atento às armadilhas do trabalho historiográfico, Hobsbawm chegou a dizer que “pensava que a profissão de historiador, ao contrário, digamos, da do físico nuclear, não pudesse, pelo menos, produzir danos. Agora sei que pode. Nossos estudos podem se converter em fábricas de bombas”, afirmou, em artigo publicado na New York Review of Books, em 1994. Eric Hobsbawm passou a vida profissional dentro das universidades. Além de estudar em Cambridge, fez toda a carreira como professor no Birkbeck College, em Londres, e, depois de aposentado, em cursos regulares na New School for Social Research, de Nova York. Com isso, observou vários modismos acadêmicos e exerceu seu poder de crítica sobre eles, condenando o que chamou de “nebulosidade intelectual” e “marxismo vulgar”, que começaram a pairar nas universidades a partir dos anos 1970. “Nas últimas décadas, tornou-se moda, principalmente entre pessoas
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que se julgam de esquerda, negar que a realidade objetiva seja acessível, uma vez que o que chamamos de ‘fatos’ apenas existiria em função de conceitos e problemas prévios formulados em torno dos mesmos. Qualquer tendência a duvidar disso é considerada ‘positivismo’ e nenhum termo desqualifica mais do que esse, exceto ‘empirismo’”, escreveu no prefácio do livro Sobre história.
BARBÁRIE TECNOLÓGICA
Considerado um revolucionário na política, Hobsbawm era um moderado quando tratava de outros aspectos da sociedade e era um crítico da noção de progresso. “Desde o início da industrialização, a novidade que cada geração traz é muito mais marcante que a sua similaridade com o que havia antes. Entretanto, há ainda uma parte muito grande do mundo e dos assuntos humanos na qual o passado retém a sua autoridade, onde, portanto, a história ou a experiência, no genuíno sentido antiquado, opera do mesmo modo que operava no tempo de nossos antepassados”, disse, durante a palestra na Universidade de Davis, em 1984. “Infelizmente, uma coisa que a experiência histórica também ensinou aos historiadores é que ninguém jamais parece aprender com ela. Mas temos de continuar tentando.” Hobsbawm morreu em 2012, aos 95 anos, e deixou reflexões que se aplicam bem ao mundo de hoje. No artigo Socialismo ou barbárie?, publicado originalmente na New Left Review, no início dos anos 1990, ele escreveu: “As coisas não se acertarão sozinhas. É isso que os socialistas lembram aos liberais. Se essa ação pública e de planejamento não for iniciada por pessoas que acreditam nos valores da liberdade, razão e civilização, será iniciada por pessoas que não acreditam nesses valores. Rosa Luxemburgo nos advertiu de que a alternativa real da história do século XX era ‘socialismo ou barbárie’. Não temos o socialismo: acautelemonos contra a ascensão da barbárie, especialmente da barbárie combinada com alta tecnologia.” MARCELO ABREU, jornalista, professor e autor de livros como Viva o grande líder: um repórter brasileiro na Coreia do Norte.
ARTE SOBRE FOTOS DE REPRODUÇÃO
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“SEU PAI” Autor pernambucano traça uma crônica afetiva sobre a intensa correspondência – nunca publicada – do escritor Osman Lins com suas três filhas, Litânia, Letícia e Ângela TEXTO JOSÉ LUIZ PASSOS
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Quando a filha de Osman tinha sete anos, na segunda série, num teste em sala de aula, ela desenhou um balão com palavras ligadas por setas e escreveu, as casas das formigas ficam em geral perto das árvores, para que elas possam usar a sua casca para construir uma casa forte, com quartos fortes, que não vão ser destruídos por nenhum dos inimigos das valentes formigas, que constroem tudo isso escondidas, com coisas seguras que encontram nos diferentes lugares por onde viajam, quando não estão ocupadas e têm mais tempo para descansar do trabalho, assim como as férias, que nós, os humanos, gostamos de ter depois de um longo ano na escola, onde aprendemos todo dia coisas novas para mostrar ao nosso pai, quando ele vem e nos visita. E essas eram as visitas de Osman. Agora, maior, a menina que adivinhava a intenção das formigas corrige o pai em cartas trocadas entre o Recife e São Paulo. Osman sorri. A primeira imagem que lhe vem à cabeça, revendo as cartas num maio abafado, neste momento difícil pelo qual está passando, é, sem dúvida, o nascimento da filha, ela saltando com
surpresa de dentro da mulher que ele viu amadurecer, saltando num gesto súbito, violenta e de olhos fechados, suja de sangue, presa ao umbigo. Nada se compara a isso, à criança abrindo os olhos enquanto ele lhe penteava as mechas coladas à carequinha, como a careca dele, que aumenta mais e mais neste meio ano de quimioterapia. Osman tentou pôr esse nascimento, qualquer nascimento, dentro de um romance. Mas, por escrito, é mais fácil matar alguém do que mostrar o seu parto. E nesses últimos meses ele passa mais tempo imaginando as suas despedidas. O nascimento é o contrário disso. É um oi supremo. Pois, que início e fim se atem com paixão, ele pensa. Nem tudo cabe num romance, embora o essencial da vida só se possa alcançar à sombra da fantasia. Por isso, Osman volta à cena do nascimento e, mais recentemente, às tiradas risonhas da filha mocinha, tiradas contra ele próprio, o seu pai estrangeirado. É assim que ele afinal lança mão, nepótica e egocentricamente, das próprias criaturas, de suas azias, da graça desconcertada nas personagens das quais se orgulha, que são como
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filhas, porque só mesmo o humor de um rebento seu poderá, talvez, dissolver-lhe o mal de hoje, e hoje, ele escreve, é o último dia de maio. Sabe? Tenho uma certa fixação no espírito, em reação ao mês de maio. Todos os anos, fico pensando na possibilidade de descobrir alguma igreja suburbana, onde seja rezado o terço, com a ladainha cantada e meninas oferecendo flores à Virgem, como antigamente. Osman levanta os olhos, vê o Cristo em cruz de dois palmos, numa peanha em cima da mesinha do quarto, ao lado do pássaro de vidro azul. Mas sempre acontece que estou ocupado, ele escreve, e os dias se passam, passam-se as noites, vai-se o mês, e vou sempre adiando a procura para o ano seguinte. Talvez seja melhor nem procurar. Vai ver que essas cerimônias se acabaram, só existem na minha memória, ele pausa, pensa, e lhe faz a pergunta. Há por aí, ainda, minha filha, alguma coisa de parecido com isto? Faz a pergunta e, então, tira os olhos do papel na máquina. Do lado de fora, pela janela, Osman acompanha uma revoada de pardais. A luz da manhã desce leitosa de um céu paulista nublado, e ele
“Suas palavras de certo modo me tocaram. Sou muito sensível às nossas relações com o tempo. A aventura humana me impressiona muito, e as nossas reações ante a vida, mais ainda” C O N T I N E N T E AG O S TO 2 0 1 7 | 5 3
recomeça. Uma vez, na Itália, em Assis, a cidade de São Francisco, eu estava na Basílica, ao anoitecer. Era em maio. Nessa época do ano, em certa parte da Europa, os dias acabam tarde. Não sei que horas eram. Ainda estava claro. Não, porém, dentro da Basílica. De repente, escutei vozes que cantavam. Era a ladainha dos monges e dos seminaristas. Traziam velas e sobrepelizes vermelhas, ou é minha memória que inventa esses detalhes? Não sei. Mas é assim que os vejo. Fiquei lá sentado num canto, eu, estrangeiro, vindo de tão longe, escutando aquelas vozes, cantando a mesma música que eu tantas vezes já tinha escutado quando criança, na minha cidadezinha do interior. Depois, saí, fui embora. Foi a última vez, creio eu, anos atrás, que reencontrei, numa noite de maio, alguma coisa dessas antigas noites tão lembradas. E agora novamente ele para, a filha entenderia isso? Talvez, da idade que tem, já sinta que o que ficou para trás às vezes volta sem aviso. Um pássaro e as suas mangas, um peixe e os seus recifes. A memória e os seus gatilhos. Ao lado da máquina de escrever há uma xícara de café. O gato chamado Concriz está ao pé da poltrona. Quando a gente se explica, quando procura esclarecer as coisas, ele escreve, tudo fica mais fácil e natural. E sabe? Suas palavras de certo modo me tocaram. Sou muito sensível às nossas relações com o tempo. A aventura humana me impressiona muito, e as nossas reações ante a vida, mais ainda. No ano passado, quando cheguei a Paris, tive uma profunda tristeza, das maiores que senti. Na mesma noite em que cheguei, procurei ver os espetáculos, queria tomar contato, logo nessa primeira noite, com a cidade. Mas quase todos os espetáculos começavam às oito. Então, só havia cinema. Saí à procura do cinema, os meus pés doíam com o sapato de sola grossa, por causa do frio, não achei logo o cinema e de repente percebi que não estava sentindo encanto algum em sair em busca de uma sala em Paris, estava sem alegria na alma, descobri isto e uma melancolia me invadiu, pensei que havia mudado muito desde que estive ali pela última vez, dois anos atrás, pensei que devia ter envelhecido, nesses dois anos, mais do que supunha, e que talvez certa luz que conservava em mim e que de certo
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“Apesar dos meus momentos de alegria, e de que eu amo profundamente a alegria, acho que não sou mesmo alegre. Meu apelido, nos tempos de colégio, era Tristeza” modo me ilumina, uma luz que é certa expressão de viço, agora estava extinta. A minha juventude tinha passado e eu, enfim, começava a envelhecer. Mas agora estou lendo o meu próximo romance. Por sinal, é a primeira vez que faço uma leitura corrida do livro, do princípio ao fim. Não imaginava que houvesse escrito um livro tão angustiado e tão triste. Apesar dos meus momentos de alegria, e de que eu amo profundamente a alegria, acho que não sou mesmo alegre. Meu apelido, nos tempos de colégio, era Tristeza. E, no eco deste apelido, ele para. Havia, também, um sentimento novo em Osman. Quando se começa a circular por aquele despojado quarto lotado de personagens, partícipes de vidas diferentes e incomunicantes, provisoriamente bloqueados ao redor do autor que, com segurança, está esboçando novas paisagens, enfim, uma vez que se chega à extremidade direita deste quarto, é possível ver Osman sentado em sua cadeira giratória, absorto na carta que escreve. Ele é o único, entre seus contemporâneos, a ostentar a própria ausência. Ao lado da máquina
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de escrever, Osman pôs a reprodução da pintura do rosto de uma mulher, que lembra o que ele descreveu como a face nunca vista de sua própria mãe. Com grande insistência ele transforma a mãe em anjo oculto, em espectro. Quando a imagem finalmente aflora da máquina, seus traços se impõem a várias personagens. Como seria se a sua filha sentisse essa mesma ausência, a falta dele, já então refeito em musa e esfinge? Osman espanta a ideia, sacudindo a cabeça, e volta a escrever, este é só um bilhete para lhe dizer que, voltando à casa, tive muitas saudades da sua presença, minha filha. Lembrei-me de você lendo na cadeira e rindo, e lembrei-me dos seus cuidados, recomendando que não deixasse a porta aberta. Isto aqui, evidentemente, é sempre muito vazio, mas esta semana pareceu mais deserto ainda. Sinto muito a sua falta. E sabe? Não imagina como essas passagens da sua juventude, por cá, me fazem bem. É como um sol, um verão, uma festa. Quando tinha mais ou menos a sua idade, morava em frente a uma casa de um vendeiro chamado Montinho. Ele tinha três filhas
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“Escrever, para mim, virá talvez a adquirir, algum dia, um sentido mais preciso e elevado. No momento, representa um modo de não sucumbir, de não ir levando ao azar o curso da minha vida” solteironas. Não me lembro mais como se chamavam, embora recorde muito bem seus rostos e até suas vozes. Tinham um irmão meio doido, cego de um olho, com a cabeça pelada, mas bonzinho. Pois bem, na véspera de São João essas solteironas soltavam, de suas janelas, centenas de fogos. Não havia quem soltasse mais do que elas. O irmão, nessa noite, metia-se no quarto para ficar longe dos fogos, tinha medo que algum estourasse e fizesse mal ao olho bom. Essa história não tem sentido nenhum. Mas acaba de saltar da minha memória, pelo simples fato de ser véspera de São João. Mas não é engraçada? Diante da máquina, Osman ri sozinho, e continua. O nome do Recife está hoje em todos os jornais daqui, por causa da bomba que explodiu no aeroporto e que era destinada ao general Costa e Silva. Triste. Por compensação, sonhei esta noite com você. Estava de saia, não me lembro da cor, blusa de quadrinhos azuis e brancos, por onde lhe aparecia a barriga, e um chapeuzinho cor-derosa, sem aba, com um laço atrás. Eu passava você por cima de um portão de madeira. Você ria, e eu também.
Osman pausa. Descansa as mãos no colo. Olha Concriz ressonando, ouve o rumor do trânsito lá fora, buzinadas, motores acelerando entre os intervalos do sinal vermelho. Antigamente, já que hoje estou no antigamente, diz Osman, quando se queria dizer que uma jovem estava muito bonita, ou que um sujeito tinha feito um discurso muito bom, quando enfim se queria exprimir admiração por alguém, dizia-se, Fulano deu de macaca, Fulana está dando de macaca. Pois quando olho para sua fotografia, digo cá comigo, esta mocinha está dando de macaca. E para Osman, essa revelação lhe traz a fartura de uma nova tristeza. A casa está calada. Esta cidade, o rosto da mãe, os pássaros, a distância da filha em outra cidade que ele deixou para trás, tudo colabora com o enjoo do café. De cabeça, ele lista palavras, lembra as que usou, um fausto declinante. Ensambladas, gavelas, estuque, obsedar, avelório, carunchos, iólipo, lucarnas, imota, salmodia, lianas, adejantes, ambarinas, aflar, nédio, racimo e ameias. Hoje a vida corre no sentido dos novos objetos. E a propósito, Osman escreve, meus parabéns pelo
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carro novo. Estou admirado. Você, que leva meses para comprar um par de sapatos, comprou um carro tão depressa. Parabéns pelas duas coisas, pelo carro e pela decisão. Está bom mesmo? E você? Está contente agora, que possui o famoso Volkswagen dos seus sonhos? Mas tenha cuidado. É um carro mais possante e mais rápido, e aí no Recife há muitos acidentes. Quanto ao piano, minha filha, já lhe disse há muito tempo que deveria vendê-lo. Não sei se você tem algum apego sentimental a ele. Seja como for, é desnecessário conserválo, já que abandonou a música. Ainda lembro a primeira vez que você tocou em público, vestida de organdi, seu pai com um terrível desarranjo intestinal. A sua calma surpreende. É verdade, a calma dela o impressionava, Osman joga os olhos para o lado da estante, a parede coberta de livros, pilhas crescendo do assoalho até a altura da segunda prateleira, em nenhuma ordem aparente senão a da memória. No seu livro mais recente Osman se pergunta, poderei, entretanto, descrever as cidades que flutuam no seu corpo como refletidas em mil pequenos olhos transparentes? As cidades que flutuam, Amsterdã, Veneza, o Recife, se confundem com o corpo das mulheres que amou e referiu, inventadas. Solerte, ebriez, proxeneta, auguraz, tisnado, lesto, aflar, nastros, báculo e efebos. E da mesma forma que os pavões ostentam as cores da cauda, logo ocultando-a, as cidades que elas abrigam, todas radiosas nesta noite em que, extasiado, esqueço o peso do mundo, tornam-se visíveis, sem que elas interrompam a frase iniciada e sem que gesto algum me autorize a concluir que a revelação é voluntária. Osman sacode a cabeça, como se espantasse insetos. Estou muito contente de fazer essa próxima viagem com você. Por vários motivos. Um deles é a alegria de lhe proporcionar esse presente, principalmente levando em conta que você não vem tendo férias há muito e quase não sai do Recife. Outro é que passaremos alguns dias juntos, o que há tanto não sucede, a não ser por estas cartas e pelas reportagens que lhe mando. Viu a revista desta semana? Meu livro, que entrou em décimo lugar, na semana seguinte subiu para o sétimo e agora já aparece em quarto. Disseram que a contagem de pontos foi igual à do
Inédito
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sman, durante o Olançamento de A
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rainha dos cárceres da Grécia, na Livro 7, em 1976, com suas filhas Ângela e Letícia
com a Ofilhaescritor Litânia e o neto
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Alexandre, em 1976
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REPRODUÇÃO
terceiro lugar, mas que, não sei por que motivo, colocaram o meu em quarto. Não faço questão. O quarto lugar naquela lista é muito mais do que eu jamais esperaria para um livro elaborado como o meu. Depois de uma longa pausa e um gole de café morno, Osman olha o envelope em cima da mesa, a postos com selos e o endereço da destinatária. Ele escreve, tenho observado que o Correio, nos últimos tempos, está pior. Com a numeração por zonas, o que deveria apressar enormemente a entrega, esta passou a ser feita mais devagar. Não sei por que, tudo no Brasil é assim. Vou lhe mandar, também, justamente com esta carta ou logo depois, um cheque correspondendo à renovação de assinatura da revista, e me alegra saber que está interessada. Deve-se ter uma ideia, pelo menos aproximada, já que a censura hoje é grande, do que vai pelo mundo e pelo país. Tépido, desquieto, esbate, engastes, senectude, ataviado, radioso, zurzir, ubres, esmaecer, tosão, azo, períneo, esconso. Como lhe dizer isso? Para a nossa viagem, leve uma bagagem tão leve quanto possível. Sapato não leve mais de um par, fechado, mais ou menos cômodo. Meias compridas, que não precisam ser de lã. Camisetas, se possível de mangas compridas, mas no máximo três camisetas. Uma saia mais ou menos grossa e um par de calças compridas. Por mim, dispensaria tailleur ou coisa parecida. Levarei, comigo, no avião, uma blusa de malha, de mangas compridas, para você vestir na viagem daqui para Lisboa. Levarei também um mantô e talvez um chapéu de pele. Veja se consegue aí, com alguém, tomar emprestado um par de luvas. Luvas boas, quentes, são muito caras e seria bom se não precisássemos comprá-las. Pijama e chinelos. Objetos de toalete. Lenço para a cabeça. A quem presenteei uma dessas sombrinhas que encolhem? Seria bom levá-la. Vá pronta para lavar suas roupinhas à noite, antes de dormir. De manhã, com o aquecimento nos quartos de Paris, estão secas. Mas agora, lhe confesso, que absurdo. Quase me alegro com a sua doença, por causa das cartas, que ficaram mais longas, mais despreocupadas. Como eu dizia, tudo, ou quase tudo, tem seus pontos positivos. Também não estou me sentindo bem. Sem forças. Afinal, é novembro. Felizmente está chegando o
“Para fazer com que alguém nos escute, é indispensável que esse alguém tenha uma certa predisposição para nos escutar. Qualquer pessoa que pretenda dirigirse aos demais tem de estar preparada para isto, para essa surdez” fim do ano letivo. Desde que comecei a ensinar, foi este o ano que me deu mais trabalho. Por cima de tudo, ainda me meti a dirigir a tal peça, com os meus alunos. Mas confesso que me deu prazer. De tudo que fiz até hoje na área do ensino, foi esse trabalho que mais me alegrou. Osman nota o fato com um certo humor, na tolerância de outras inconveniências. Mas também se pergunta, o que me destrói fisicamente, além do tempo? Escrever, para mim, virá talvez a adquirir, algum dia, um sentido mais preciso e elevado. No momento, representa um modo de não sucumbir, de não ir levando ao azar o curso da minha vida. Resta a memória. O Recife, muros cor de chumbo da Casa de Detenção, São Pedro dos Clérigos com sua esbelta fachada e as pedras do calçamento cheirando a frutas podres, barcaças de pequena cabotagem, seus mastros oscilando no Cais da Alfândega, a lua refletindo-se no rio, do Recife, fração do mundo, muitos dos seus habitantes não mais distanciados, não mais estranhos, estão integrados no meu ser através deste amor e de minha filha. Venusta, livor, fuste, plastrons, jarretes,
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riba, abonaxis, ruflo, sedenho, ceroso e coruscante. Mesmo assim, ainda me sinto mal. E Osman conclui, apenas uma última coisa, minha filha, em resposta ao que você me contou. Para fazer com que alguém nos escute, é indispensável que esse alguém tenha uma certa predisposição para nos escutar. Que, de certo modo, já aguardasse as nossas palavras. Qualquer pessoa que pretenda dirigir-se aos demais tem de estar preparada para isto, para essa surdez. A humanidade não pede para ser exaltada, mas para ser adormecida. O que nos sustenta, se queremos falar, se queremos escrever, é reconhecer que o verdadeiramente importante não é tanto ser ouvido, mas dizer. Se alguém chega a fechar os ouvidos para não escutar o que dizemos e assim não ser perturbado, abalado, alertado, já conseguimos bastante por, apenas, dizermos isto, a pura e simples verdade daquilo que nos toca. Beijos, seu pai. JOSÉ LUIZ PASSOS, escritor pernambucano, autor de Nosso grão mais fino (2009), O sonâmbulo amador (2012) e O marechal de costas (2016).
PEDRO SOTERO/DIVULGAÇÃO
Crítica
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A COMPLEXA RELAÇÃO ENTRE MUNDOS DIVERSOS Em Gabriel e a montanha, o jovem diretor Fellipe Gamarano Barbosa segue refletindo sobre as possibilidades de nos colocarmos no lugar de um outro que vive numa realidade diferente TEXTO MARIANE MORISAWA, DE CANNES
Em julho de 2009, Gabriel Buchmann, de 28
anos, desapareceu ao subir o Monte Mulanje, no Malaui, a última etapa de uma viagem de um ano pela África e pela Ásia, antes de começar seu doutorado em Políticas Públicas na Universidade da Califórnia – Los Angeles (UCLA). Após 19 dias de buscas, seu corpo foi encontrado num vão embaixo de uma pedra, sem feridas aparentes, com seus pertences intocados. O diretor Fellipe Gamarano Barbosa conhecia Buchmann desde a infância – os dois estudaram juntos no Colégio São Bento, um dos cenários principais de seu longa-metragem anterior, Casa grande (2014). Resolveu fazer um filme sobre os mistérios dos últimos 70 dias da vida do amigo. Gabriel e a montanha estreou em maio na Semana da Crítica do Festival de Cannes, de onde saiu com dois prêmios: o France 4 Visionário, entregue pelo júri presidido por Kleber Mendonça Filho, e o de distribuição, oferecido pela Fondation Gan. No filme, não há suspense sobre o que aconteceu com Gabriel (interpretado por João Pedro Zappa): a primeira cena mostra seu corpo sendo descoberto, no vão sob a pedra, no meio do mato, por Luka White e Bernard Nyove, os dois homens que realmente o encontraram. A partir dali, o filme refaz os passos do jovem brasileiro por Quênia, Tanzânia, Zâmbia e Malaui, tentando desvendar as razões e emoções por trás de suas escolhas. Em Cannes, Fellipe Gamarano
Barbosa disse que nunca achou mórbido falar da morte do amigo – chegou ao ponto de usar, com autorização da mãe de Gabriel, as roupas e objetos deixados pelo rapaz. O cineasta teve como guia as fotos extraídas da câmera encontrada ao lado do corpo. Foi muito graças a essas imagens que ele conseguiu algo que lhe parecia essencial: filmar nos lugares onde Gabriel esteve presente, com as pessoas que realmente passaram por ele em seus momentos finais, e com quem João Pedro Zappa de fato contracena. Esse cuidado em recuperar, detalhe a detalhe, os últimos dias de Gabriel parece ultrapassar a dimensão estética: desde o princípio, o diretor viu seu segundo longa-metragem de ficção como um trabalho espiritual, para ajudar o amigo a compreender que morreu, por que e como, e ajudálo na passagem. O resultado na tela reflete tanto essa pegada bastante realista quanto um certo ar transcendental, que vem também da própria paisagem: o leste da África (tão pouco visitado pelos brasileiros), que a equipe de 13 pessoas percorreu durante mais de dois meses num caminhão-ônibus, inclusive subindo o Monte Kilimanjaro, a 5.850 metros de altura. A fotografia de Pedro Sotero – que trabalhou com Gamarano Barbosa também em Casa grande e em Laura (2011), documentário em longametragem – busca o naturalismo, deixando espaço para aparecer a paisagem exuberante, acolhedora
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Crítica MAURO PIZZO/DIVULGAÇÃO
ellipe Gamarano FBarbosa e sua
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equipe passaram dois meses na África para as gravações
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ator João Pedro O Zappa teve a responsabilidade de interpretar Gabriel Buchmann
e, por vezes, ameaçadora, evitando o cartão-postal. As pessoas com quem Gabriel conviveu – as famílias que o receberam, seus guias em vários pontos da cidade, os guerreiros Maasai – não apenas reencenam seus momentos com o protagonista da história, como falam, em off, suas impressões sobre aquele brasileiro divertido que não queria ser tratado como Mzungu, ou estrangeiro. É este um dos pontos centrais: Gabriel Buchmann não queria ser visto como turista. Ele ficava na casa de pessoas que conhecia pelo caminho, perguntando na “cara dura” se podia se hospedar com elas em vez de hotéis. E convivia com os anfitriões, comia da mesma comida – uma das famílias que o abrigaram chegou a batizar um filho com seu nome. O único momento em que se permite ser um pouco mais turista é quando sua namorada Cristina (interpretada por Caroline Abras) vem encontrá-lo. Os dois ficam
em hotéis (baratos) e visitam alguns pontos turísticos – e é nessas horas que aparecem os maiores conflitos, quando, por exemplo, perdem um passeio de elefante porque Gabriel está mandando um e-mail para a mãe no cyber café. Essa recusa ao turismo é uma postura invejável e interessante. Acontece que Gabriel não apenas não quer ser turista, mas também não quer ser visto como estrangeiro. “Não sou Mzungu, sou brasileiro”, diz a uma certa altura no filme, como se o fato de ser brasileiro significasse sumariamente não ser branco e ser irmão, por causa da proximidade evidente com a África. Como, porém, seria possível para ele despir não apenas os hábitos de quem teve uma criação privilegiada no Brasil – que o levaria a viajar por um ano e, se tudo tivesse dado certo, estudar nos Estados Unidos –, mas também a própria cor de sua pele, numa parte do mundo em que a maioria é negra? Por mais que ele fosse consciente e tivesse culpa de classe, o privilégio ficava sempre evidente – até na boa ação de doar parte do seu dinheiro para as pessoas que encontrava.
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DIFERENÇAS DE CLASSES
Nesse sentido, ao falar de privilégio e culpa de classe, Gabriel e a montanha converge com Casa grande, o primeiro longa-metragem de ficção de Fellipe Gamarano Barbosa. Casa grande também era inspirado numa história real bastante próxima ao diretor: a ruína financeira de sua família quando ele estudava cinema em Nova York. O cineasta, então, imaginou como teria sido passar por isso se, ainda adolescente, estivesse ao lado de seus pais e irmãos. Assim surgiu o personagem Jean (Thales Cavalcanti), um tímido garoto de 17 anos que estuda no Colégio São Bento e mora numa casa de três andares no nobre bairro do Itanhangá, Rio de Janeiro. No plano que abre o filme, a distância, vemos quando o patriarca Hugo (Marcello Novaes) sai da jacuzzi e percorre vários cômodos, fechando as portas e apagando as luzes – do primeiro andar, depois do segundo e por fim do terceiro, dando a noção do tamanho da tal casa grande. Lá, além dos dois, moram a mãe de Jean, Sônia (Suzana Pires), a irmã, Nathalie (Alice Melo), e uma empregada doméstica, Rita (Clarissa Pinheiro). Há
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outros dois funcionários, o motorista Severino (Gentil Cordeiro) e a cozinheira Noêmia (Marília Coelho). A relação é de proximidade distante, como costuma ser no Brasil: os empregados sentam-se à mesa para tomar café, mas os patrões nada sabem sobre suas vidas. Hugo tenta esconder da família os problemas financeiros, mas aos poucos eles vão se anunciando, na menção de uma dívida, ou na demissão do motorista. Como Jean tem um relacionamento próximo com Severino, que o ajudou em sua primeira vez com uma prostituta, a versão que lhe contam é que o motorista está de licença. Para Jean, não ter mais um motorista é bom. Só assim ele consegue ter alguma liberdade para explorar a cidade – afinal, quase todo brasileiro de classe média alta costuma viver em gaiolas de ouro, sejam apartamentos e casas cheios de grades ou carros com portas e vidros bem-fechados. Casa grande, claro, não se refere apenas ao tamanho da construção para uma família de quatro pessoas, mas também a Casa-grande & senzala, livro fundamental do pernambucano Gilberto Freyre sobre as relações de classe e raça no Brasil. Ao
Ao falar de privilégio e culpa de classe, Gabriel e a montanha se aproxima de Casa grande, o primeiro longa-metragem de ficção de Fellipe Gamarano Barbosa C O N T I N E N T E AG O S TO 2 0 1 7 | 6 3
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asa grande, C protagonizado pelo jovem Jean (Thales Cavalcanti), faz um retrato da classe média alta brasileira
fazer esse retrato da classe média/média alta brasileira, Casa grande se aproxima, aliás, de O som ao redor (2012), de Kleber Mendonça Filho, com quem divide parte da equipe, incluindo o diretor de fotografia Pedro Sotero. Mas, enquanto O som ao redor é um filme-mosaico, com vários personagens principais, Casa grande tem uma estrutura mais convencional, com a transformação de um adolescente num adulto, em primeiro plano, e uma certa referência às telenovelas. Nos momentos em que tenta ser mais incisivo sobre questões como racismo e sistema de cotas, resvala no didatismo, especialmente na cena onde Luiza (Bruna Amaya), que Jean conheceu no ônibus, confronta a família do namorado sobre sua posição em relação à justiça
das cotas e à definição de quem é ou não negro/indígena no Brasil. O resultado é bem melhor quando o racismo vem num diálogo aparentemente banal, como na cena em que Hugo diz ao filho e a seus amigos – entre eles, um aluno divertido e brilhante que vai estudar economia, como Gabriel Buchmann – que a admiração por mulheres negras é um “gosto adquirido”. Jean, porém, não é igual a seu pai. Mas talvez não seja tão diferente quanto deseja. Em seu olhar para o mundo há uma certa ingenuidade, que se estende, por vezes, ao filme em si. De qualquer maneira, Casa grande é um avanço em relação a Laura, primeiro trabalho em longa-metragem do diretor, sobre uma argentina criada no Brasil que frequenta as altas rodas em Nova York. É óbvia a fascinação do cineasta pelo tema de seu documentário – a protagonista vai se revelando problemática, contestadora, protetora de sua privacidade, resistente
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ao próprio filme e ao diretor, que, ingenuamente, tenta ajudá-la com seu problema de acumulação. Ele é obrigado a se colocar no filme e mostrar, também, suas próprias fragilidades e contradições, tanto quanto as da personagem, de quem perde o controle. Mesmo sem ser um documentário, como Laura, Gabriel e a montanha assimila, em alguns momentos, o registro do gênero. No filme, Fellipe foi à África tentar descobrir respostas sobre aqueles últimos dias de seu amigo. Encontrou algumas, mas não todas, mesmo conversando com as pessoas que estiveram com Gabriel. Algumas coisas simplesmente não fecham, e o diretor deixa que elas estejam na tela, sem, no entanto, ser totalmente explícito sobre as contradições, especialmente em relação à entrada de Gabriel no Malaui e à sua subida, sem guia, ao Monte Mulanje. A memória pode ser falha, afinal; os relatos, divergentes (ou mentirosos); e a verdade absoluta, fugidia. Mas, como o diretor de fotografia Pedro Sotero já explicava à personagem Laura, seja em qualquer gênero ou formato, “não existe filme da vida real”. O Gabriel que aparece no filme é muito mais complexo do que o adorável rapaz gente fina aberto para o mundo, que queria conhecer a pobreza de perto e, posteriormente, ajudar os pobres; que parecia não ter medo de nada, e até ser um pouco descuidado. Ele por vezes se mostra arrogante, um tanto machista. O filme evita o simplismo e compõe uma impressão mais multifacetada da viagem de Gabriel pela África, sem necessariamente igualar pobreza a valores nobres, o que em si é um estereótipo. Ele discute, no fim, quão próximos verdadeiramente podemos estar das realidades ou das pessoas por quem sentimos empatia e até que ponto podemos nos colocar no lugar de um outro vindo de outro universo. Com menos certezas do que seu trabalho anterior, Gabriel e a montanha representa um passo adiante na busca de Fellipe Gamarano Barbosa pela compreensão das relações complicadas entre dois mundos. MARIANE MORISAWA, jornalista radicada em Los Angeles.
Lançamento
O massacre da Granja São Bento LEIA OS TRECHOS INICIAIS DO LIVRO (LANÇADO ESTE MÊS, COM O SELO DA CEPE EDITORA), QUE CONTA A HISTÓRIA DO EXTERMÍNIO DE SEIS GUERRILHEIROS DA VANGUARDA POPULAR REVOLUCIONÁRIA, A VPR, EM PERNAMBUCO, EM 1973 C O N T I N E N T E AG O S TO 2 0 1 7 | 6 5
Lançamento
O
Capitão do Exército dos Estados Unidos Charles Rodney Chandler era um dos muitos militares estrangeiros matriculados em cursos civis de especialização no Brasil, em 1968, por meio de programas de intercâmbio entre os governos brasileiro e norte-americano. A bolsa de estudos na Escola de Sociologia e Política da Fundação Armando Álvares Penteado, localizada no bairro nobre de Higienópolis, região central de São Paulo, foi uma das gratificações que o capitão recebera na condição de veterano da Guerra do Vietnã – país onde, desde 1965, os Estados Unidos mantinham tropas militares. Nascido em 23 de julho de 1938, na pequena cidade de Claiborne Parish, estado da Louisiana, Chandler graduouse em 1962, na Academia Militar de West Point, estado de Nova York, a principal escola de oficiais dos Estados Unidos. Era casado com Joan Koteletz Chandler, com quem tinha quatro filhos: Darryl, Jeffrey, Todd e Luanne. Na manhã de 12 de outubro de 1968 – mesmo dia em que, no município de Ibiúna, a pouco mais de 70 quilômetros da casa de Chandler, a polícia desbaratava um imenso congresso clandestino da União Nacional dos Estudantes (UNE), levando presos 719 estudantes –, o capitão retirava sua perua Chevrolet Impala, em marcha à ré, da garagem de sua casa, na Rua Petrópolis, 375, bairro do Sumaré. Pelo retrovisor, Chandler percebeu quando teve a saída bloqueada por um Fusca. Do carro, saltou um homem com um revólver Taurus, calibre 38, e desferiu seis tiros à queima-roupa. Em seguida, outro homem desceu do automóvel e, com uma rajada de metralhadora INA, calibre 45, acertou mais 14 tiros no capitão. A 15ª bala não saiu porque o mecanismo automático da INA travou. Sua esposa Joan e o filho Jeffrey, de quatro anos, que abrira o portão da garagem, assistiram a Charles ser devorado pelos tiros de metralhadora. De dentro da casa, Todd, de três anos, escutou os disparos e correu para fora, onde encontrou o pai morto no banco do Impala. Após a execução, a família Chandler embarcou em um avião militar de volta aos Estados Unidos, onde o capitão foi sepultado com honras militares e postumamente promovido a major. A autoria do assassinato foi reivindicada por um grupo até então pouco conhecido pelos órgãos de inteligência da repressão: a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). A sentença de morte do capitão fora decretada um mês antes por um tribunal revolucionário capitaneado pelos guerri-
A VPR reivindicou o assassinato do militar americano Charles Rodney Chandler
lheiros Onofre Pinto, o Ari, e João Carlos Kfouri Quartim de Morais, o Maneco, ambos pertencentes ao novo grupo armado. A proposta de execução de Chandler foi levada à VPR por Marco Antônio Braz de Carvalho, o Marquito, dirigente do Agrupamento Comunista de São Paulo e homem de confiança de Carlos Marighella – àquela altura, o mais procurado pelo regime militar. A alegação de que o capitão, como veterano do Vietnã, era um agente enviado pela Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, a CIA, para assessorar o governo brasileiro no combate à subversão foi suficiente para a aprovação do que os guerrilheiros chamaram de justiçamento.
O LIVRO
O AUTOR
O MASSACRE DA GRANJA SÃO BENTO conta parte da história do grupo guerrilheiro urbano Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), de seus militantes e do assassinato de seis deles, em circunstâncias obscuras, na Granja São Bento, Paulista -PE. Trata-se de um livro-reportagem que tem grandes personagens, como a guerrilheira paraguaia Soledad Barrett e o lendário cabo Anselmo, um agente duplo que traiu muitos companheiros.
LUIZ FELIPE CAMPOS formou-se em Jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco, em 2011. Ainda frequentando a universidade, concebeu O massacre da Granja São Bento como trabalho de conclusão de curso. O livroreportagem, que foi ocupando sua vida nos anos subsequentes, teve o auxílio fundamental de Jorge Barrett, irmão de Soledad Barrett, uma personagem fascinante e crucial da história.
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A partir de então, a militante Dulce Maia, a Judit, foi incumbida de apurar e fazer levantamento da rotina do capitão e seus horários de entrada e saída de casa. A sentença decretou que o norte-americano deveria ser executado em 8 de outubro, no primeiro aniversário de morte de Ernesto Che Guevara. Naquele dia, no entanto, o capitão não saíra de casa, obrigando os guerrilheiros a adiar a ação. Por volta das 7h do dia 12, conduzindo o Fusca roubado dias antes, Pedro Lobo, um dos fundadores da VPR, deu início à operação de justiçamento. Conduziu o carro até o bairro de Santo Amaro, na zona sul de São Paulo, onde buscou Diógenes José Carvalho, o Luís, e, em seguida, à Avenida Doutor Arnaldo, onde Marquito os aguardava num ponto de ônibus, de terno, gravata e óculos escuros. De lá, os três iniciaram o percurso de aproximadamente três quilômetros até o número 375 da rua Petrópolis, no Sumaré. Levavam consigo um pequeno arsenal: uma metralhadora INA acompanhada de três carregadores com 30 balas cada, dois revólveres, uma granada e uma carabina M-2, que seria usada em caso de serem perseguidos pela polícia. Às 8h15, o filho do capitão abriu o portão da garagem. O primeiro a efetuar os disparos, com o revólver, foi Diógenes. Marquito desceu em seguida e metralhou o oficial norte-americano. Lobo permaneceu no carro durante a ação, que não durou mais do que alguns segundos. Diógenes ainda mirou o Taurus em direção à esposa do capitão, que gritava incrédula, mas não atirou. Antes de fugirem do local, os guerrilheiros deixaram panfletos com as mensagens: “Justiça revolucionária executa o criminoso de guerra no Vietnâme, Chandler, e adverte a todos os seus seguidores que, mais dia menos dia, ajustarão suas contas com o Tribunal Revolucionário”; “O assassinato do Comandante Che Guevara, na Bolívia, foi cometido por ordem e orientação de criminosos de guerra como este Chandler, agente imperialista notório, e responsável pela prática de inúmeros crimes de guerra contra o povo do Vietnâme”; “O único caminho para a revolução no Brasil é a luta armada”; “A luta armada é o caminho de todo revolucionário no Brasil”; “Criar um, dois, três,vários Vietnâmes.” No depoimento que deu origem à sua biografia, Pedro Lobo negou que o filho do capitão norte-americano estivesse por perto. “Observei toda a operação e não vi nenhuma criança por lá. Isso foi a polícia que inventou para nos difamar”. O fato é que, por meio do assassinato de Chandler, a esquerda armada enviava uma mensagem clara à ditadura: violência seria, a partir de então, combatida com violência.
***** A escolha pelos meios armados como estratégia de combate ao regime parecia inevitável. Em um conhecido texto publicado na revista Tricontinental, em abril de 1967, Ernesto Che Guevara já sustentava que era preciso criar na América Latina muitos Vietnãs – ou seja, grandes focos de resistência armada às tiranias locais, que guardavam entre si ao menos um ponto em comum: o apoio explícito dos Estados Unidos, imbuídos da missão geopolítica de conter o avanço do ideário socialista na América Latina.
O fato é que, por meio do assassinato de Chandler, a esquerda armada enviava uma mensagem clara à ditadura Entre 31 de julho de 1967 e 10 de agosto de 1967, a cidade de Havana, em Cuba, recebeu a 1ª Conferência da Organização de Solidariedade aos Povos da América Latina (OLAS). A abertura da conferência aconteceu no salão do hotel Habana Libre, em Vedado, a cerca de quatro quilômetros do centro histórico da capital cubana, reunindo centenas de organizações comprometidas com a causa socialista na América Latina. O texto final pregava “a necessidade do estabelecimento de um comando unificado político e militar, para a condução da luta armada, na estratégia de libertação nacional contra o imperialismo ianque”. E concluía: “Nós, revolucionários da nossa América, da América ao Sul do Rio Bravo, sucessores dos homens que nos deram a primeira independência, armados de uma vontade inquebrantável de lutar e de uma orientação revolucionária e científica e sem outra coisa a perder além das cadeias que nos oprimem, afirmamos que nossa luta constitui uma contribuição decisiva à luta histórica da humanidade para livrar-se da escravidão e da exploração. O dever de todo revolucionário é fazer a revolução.” Movimentos guerrilheiros eclodiram em todo o mundo, influenciados basicamente por duas escolas revolucionárias: a chinesa e a cubana. A primeira propunha a guerrilha a partir do campo, dirigida pelo partido revolucionário, prevendo uma guerra prolongada e difícil. Era a estratégia que estava derrotando os Estados Unidos no Vietnã. E a segunda, de caráter mais urgente, previa a formação de grupos guerrilheiros e início imediato de ação armada,
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para construir um exército popular. A VPR – e a maioria das organizações formadas no Brasil – decidiu pela escola de Havana, onde boa parte de seus militantes havia se exilado e recebido treinamento armado após o golpe que depôs João Goulart, em 1964. O novo grupo foi formado a partir de remanescentes da Política Operária (Polop) e do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) – fundado pelo político gaúcho Leonel Brizola. Um de seus diferenciais em relação às demais organizações armadas era a origem militar de boa parte de seus membros, vindos principalmente da Marinha e do Exército. Em 13 de dezembro de 1968, com a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), esgotaram-se os meios convencionais de oposição à ditadura: o Congresso Nacional foi fechado, entidades estudantis e sindicatos foram colocados na clandestinidade e manifestações populares de rua foram proibidas. O resultado disso, como verifica o relatório do projeto Brasil: Nunca Mais (1985), desenvolvido pelo ex-arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, foi a hipertrofia da clandestinidade. Os setores que antes combatiam o governo pelos meios legais foram empurrados para os porões da vida clandestina. “De 1969 em diante, o que se registra é, então, uma nítida regressão das manifestações estudantis em benefício do crescimento das ações clandestinas e das operações armadas”, cita o relatório. O documento também informa que as organizações armadas eram compostas, essencialmente, por estudantes universitários, sindicalistas e, em menor parte, por camponeses e operários. Alguns dos principais órgãos de repressão ainda não haviam sido criados antes do AI-5. O Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI/Codi) e a Operação Bandeirantes (Oban) foram montados apenas em 1969. A repressão passou a reconhecer a guerrilha como modalidade nova de subversão, para a qual ainda não estava preparada. […]
O INFORMANTE O companheiro Jônatas precisou percorrer mais de 3.500 quilômetros, ao longo de quatro países, antes de desembarcar em Santiago do Chile, na noite de 22 de novembro de 1971, uma segunda-feira quente de fim de outono. O percurso até a capital chilena obedecia ao rigor dos esquemas de segurança que orientavam a vida na clandestinidade. O transporte aéreo era opção descartada, já que os aeroportos eram como ratoeiras para gente envolvida em atividades políticas consideradas ilegais. Era preciso ainda que o trajeto fosse fragmentado em várias paradas – para se certificar de que não estava sendo seguido. Sempre de ônibus, partiu de São Paulo para a cidade fronteiriça de Uruguaiana, no Rio Grande do Sul. Na Argentina fez paradas em Santa Fé, Córdoba e Mendoza, de onde seguiu pela Carretera Andina para Santiago, a oeste da Cordilheira dos Andes – seis horas de uma das mais charmosas viagens do continente, atravessando o cordão montanhoso com vista para o monte Aconcágua, ponto mais alto das Américas e do Hemisfério Sul, a quase 7 mil metros acima do nível do mar. Na mesma noite, hospedou-se no Splendid Hotel. O tempo era curto. Precisava estabelecer contato com os colegas da VPR
exilados em Santiago para viabilizar um projeto no mínimo audacioso: a volta da militância armada ao Brasil com um reagrupamento guerrilheiro na região Nordeste. No entanto, fosse em Santiago, Havana ou Paris, o assunto entre os exilados brasileiros era só um: a deduragem havia se tornado o esporte número um do Brasil. As grandes cidades estavam abarrotadas de gente infiltrada e informantes da polícia. A própria VPR já havia decidido pela desmobilização e a convocação de um congresso para discutir o futuro da organização. Em 7 de agosto daquele ano de 1971, um comunicado do Comando da VPR no Brasil determinou: “Suspensão das ações armadas; suspensão de reuniões com condições de segurança precárias; redução ao mínimo indispensável à circulação dos militantes; estabelecimento de contatos apenas encaminhamentos urgentes e comunicações (suspensão da duplicidade de contatos com outras organizações); comunicação imediata às outras organizações da atual perspectiva política da organização, isto é, que a organização está praticamente extinta no Brasil e que estamos desmobilizados definitivamente; criar excepcionais condições de segurança para todos os quadros queimados”. O mesmo documento avisa aos militantes da Vanguarda no exterior: “A O. (organização) no Brasil chegou agora ao esgotamento total. Estamos sem as mínimas condições de atuação e sem possibilidades, por mais remotas, de tirar uma definição consequente, que sirva de guia para uma prática revolucionária.”
***** Manuel Cabieses Donoso, chefe de redação da revista Punto Final, que chegava quinzenalmente às bancas de Santiago, recebeu Jônatas em seu escritório às 17h daquela terça-feira, 23 de novembro. O jornalista, um combativo esquerdista de bigode cheio e cabelos repartidos, explicou ao brasileiro que a maneira mais simples de contatar seus compatriotas seria ir direto à Embaixada de Cuba, onde havia uma pessoa encarregada de tais assuntos. Deixou ainda o telefone de sua irmã, Mercedes Cabieses, que talvez pudesse ajudá-lo. Na mesma noite, não viu sinal do prédio diplomático no endereço fornecido por Cabieses, Avenida Los Leones, 1346, no elegante bairro da Providência. Ficou sabendo que a chancelaria havia mudado de endereço, agora sediada na esquina das ruas Los Estanques e Pedro de Valdívia, a menos de um quilômetro dali. Era tarde e ligou para Mercedes Cabieses. Ela contou que, depois da eleição de Salvador Allende, quase 10 mil brasileiros atravessaram o continente com destino ao Chile, entusiasmados com as promessas de socialismo do novo chefe de Estado. Esperavam encontrar um clima propício que assegurasse, nas palavras dela, além de cama e mesa, um entrosamento com os partidos de esquerda chilenos – o que, de acordo com ela, não aconteceu. Passaram dificuldades para arranjar emprego, estiveram sob constante vigilância policial, e foram avisados pelo próprio ministro do Interior que seriam expulsos caso tratassem de política. Alguns deles foram procurados pelo Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), que pensava em aproveitar experiência e instrução técnica adquiridas em Cuba. O MIR defendia a legalidade do governo e vivia uma guerra aberta contra o
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A notícia do cabo Anselmo no Chile logo se espalhou entre a comunidade de brasileiros exilados
lista, e isso era o suficiente para desconfiar. Bombardeou o brasileiro com perguntas – “Morou em Cuba? Quem o despachou de volta para o Brasil? Como entrou no Chile?” Buscava cruzar informações, ligar pontos, mas Jônatas foi convincente, dando nomes, locais, fazendo a autocrítica dos erros práticos da organização. Era uma de suas especialidades: falava sempre de uma forma envolvente, sedutora, com um magnetismo que dominava seu interlocutor. O diplomata anotou o endereço do Splendid Hotel e assegurou uma resposta até a segunda-feira seguinte, 29 de novembro de 1971. Jônatas não contava com o prazo extenso, mas foi obrigado a entender. O motivo: o primeiroministro de Cuba, Fidel Castro, estava em Santiago desde o dia 10 daquele mês, em agenda oficial. A visita, prevista para durar dez dias, já entrava pela sua segunda semana, e toda a embaixada acompanhava de perto a agenda de Fidel. Julián prometeu que trataria do caso com urgência, mas admitiu que só conseguiria responder após o retorno de Castro a Cuba. O retorno prometido nunca aconteceu, mesmo depois de esgotado o prazo estabelecido por Julián. Jônatas insistiu telefonando para a embaixada, mas a resposta era sempre a mesma: Julián não estava. Sabia o significado das evasivas: não desejava tratar do assunto. A visita de Fidel ao Chile continuava, dia após dia, e só terminaria no início de dezembro.
***** Patria y Libertad, grupo paramilitar de extrema-direita, que assinava seguidos atentados para desestabilizar Allende. – Tenho uma amiga que pode ajudá-lo – disse Mercedes. Entre as dezenas de brasileiros exilados no Chile, Jônatas buscava um velho conhecido com quem estreitara relação nos tempos de Havana: Onofre Pinto, paulista de Jacupiranga, ex-sargento do Exército e mais forte liderança da VPR, o único capaz de viabilizar seus projetos de desembarcar a luta armada de volta no Brasil.
***** A recepcionista da Embaixada de Cuba no Chile encaminhou Jônatas para a sala de um homem chamado Julián. Foi recebido de imediato. Antes de assumir o posto na embaixada, Julián visitara alguns brasileiros refugiados ou clandestinos em Cuba e já contava com a informação de que a regional de São Paulo da VPR estava queimada com gente infiltrada. – Onde foi parar o Palhano? – perguntou Julián. – Foi preso em São Paulo. Talvez esteja morto – respondeu Jônatas. Aluísio Palhano, 49 anos, ex-presidente do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro, entrou no Brasil vindo de Cuba ainda em 1970, acompanhado de companheiros de organização. Foi preso em 9 de maio de 1971, em São Paulo, e levado à Casa da Morte, em Petrópolis, na região serrana do Rio, onde morreu 11 dias depois. Julián sabia apenas que Palhano engrossava a lista dos companheiros caídos nas mãos da repressão na capital pau-
– Tenho uma notícia para você – falou Mercedes por telefone. Era uma sexta-feira, 26 de novembro de 1971. Marcaram um encontro e poucas horas depois Jônatas foi apresentado à ativista do MIR em quem apostava todas as suas fichas. – Estou procurando algum brasileiro da VPR – contou o brasileiro. – Conheço José Duarte – disse a moça. – Pode marcar – respondeu Jônatas. Caiu como uma luva. A sorte lhe havia sorrido pela primeira vez em muito tempo, e dali em diante seria sua inseparável companheira. Ponto marcado para a terça-feira, dia 30, às 18h, em frente ao Banco Estado na Alameda Bernardo O’Higgins, a principal via da cidade. Duarte e Jônatas eram velhos amigos. Abraçaram-se longa e efusivamente. Duarte estava acompanhado de um casal de militantes mineiros, Maria do Carmo Brito, a Lia, e Ângelo Pezzuti – antes da chegada de Onofre a Santiago, Lia havia se tornado a primeira mulher a dirigir uma organização guerrilheira na América Latina. – Podem ficar tranquilos. É gente da mais absoluta confiança – disse Duarte a Lia e Ângelo, referindo-se a Jônatas. Conversaram brevemente sobre os antigos colegas. A clandestinidade fizera com que muitos deles desaparecessem – mortos ou escondidos nos cafundós do mundo. Zé Duarte atualizou o velho companheiro: seu irmão, Antônio Duarte, vivia na Suécia, e o amigo Avelino Capitani estava ali no Chile, articulando-se com exilados do MR-8 (Movimento Revolucionário Oito de Outubro). A aparência de Duarte chamou a atenção. Estava irreconhecível, envelhe-
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O cabo Anselmo mudou de lado e passou a ser informante do delegado Fleury
Onofre Pinto, ex- sargento do Exército, era a mais forte liderança da VPR no Chile
cido, magro, com o rosto cheio de rugas e sulcos profundos. Duarte despediu-se, conspiratório, alegando que não poderia circular pelo centro, por onde andavam muitos brasileiros. Não queria ser visto, fosse sozinho ou acompanhado. Sentaram-se os três, Lia, Ângelo e Jônatas, num bar e pediram chopes. Jônatas explicou que, por conta da viagem, não pôde continuar cobrindo os pontos (encontros entre militantes clandestinos) com os companheiros, em São Paulo, mas que, se não fosse a Santiago, não conseguiria reagrupar o pessoal no Nordeste – o que considerava a prioridade para a VPR. Conversaram sobre a morte de Carlos Lamarca, no que todos concordaram que o MR-8 parecia ter abandonado seu maior comandante. – Conheço a região, aquilo não é lugar para guerrilha – disse Lia sobre o sertão baiano, onde Lamarca foi caçado e morto. Mataram a curiosidade sobre como andavam as coisas no Brasil. As notícias que chegavam ao Chile falavam de prisões em efeito dominó, o que acabou despertando a desconfiança de que haveria homens infiltrados a serviço da polícia repassando informações sobre os pontos, planos e aparelhos usados na guerrilha urbana. – Na minha área, não, só se for do lado que Moisés não me passou – defendeu-se Jônatas, que tinha na capital paulista a maior parte de seus contatos. Moisés era o ex-sargento da Marinha José Raimundo da Costa, pernambucano do Recife e principal homem da VPR no Brasil. – E o cabo Anselmo? – perguntou Lia.
– Está vivo e em segurança – respondeu. Havia poucos meses, em agosto, uma carta remetida pela militante Inês Etienne Romeu, presa no Dops desde maio de 1971, trazia a denúncia de que José Anselmo, o lendário cabo Anselmo, havia sido preso e “entregara-se à repressão”. De acordo com a carta, o ex-marinheiro agora colaborava como informante do delegado Sérgio Fleury. Repercutida entre os exilados brasileiros, a denúncia de Inês conseguia explicar como tanta gente havia desaparecido em São Paulo, naquele último semestre. Jônatas ora respondia, ora desconversava – era muito bom nisso. Para ele, mesmo com as quedas e todo o aparelhamento policial que estraçalhara a guerrilha no país, lotando celas e pavilhões penitenciários, era hora de retomar a ação ofensiva, possivelmente em algum lugar do Nordeste. Contou que havia descoberto, no Recife, antigos túneis cavados pelos pernambucanos na resistência à invasão holandesa do século XVII. Essas covas, segundo ele, poderiam ser usadas para abrigar um estado-maior guerrilheiro. Ângelo escutava calado, na maior parte do tempo, confuso com toda aquela história. “Como é que um cara chega e diz isso tudo? Ele devia dizer que chegou para um contato com a organização x. Agora, para dizer que está preparando a volta de gente...”, comentaria Ângelo, alguns anos mais tarde, já morando em Paris, em entrevista publicada n’O Pasquim. A aparência do companheiro também chamou a atenção de Ângelo. Jônatas discursou sobre a satisfação de trabalhar onde a revolução estava, de fato, se fazendo cotidianamen-
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te, apesar de todas as dificuldades. Às vezes até passavam fome, disse. “No pré-consciente, no entanto, eu me dizia: esse cara tá tão bem nutrido, queimado de sol, com cabelo grande”. Falava com o sorriso no rosto e parecia um homem perfeitamente saudável. O casal ficou dividido: estavam com a pulga atrás da orelha com toda aquela demonstração de bravura e coragem, ainda mais partindo de um companheiro que estava no Brasil e que, por isso, não podia ignorar a desvantagem em que se encontravam os grupos guerrilheiros em relação aos órgãos de repressão política da ditadura. Contrariava inclusive a decisão da VPR de recolher as armas. Por outro lado, foram, de certa forma, seduzidos pelo falatório do companheiro Jônatas. “Foi um cara que me impressionou muitíssimo”, disse Ângelo, na mesma entrevista ao Pasquim. E foi por isso que Jônatas conseguiu um encontro com Ribeiro – Onofre Pinto – para dali a alguns dias. Sua impressão, porém, era de que aquele chope de boas-vindas estava próximo de se tornar uma inoportuna pedra no sapato. “A moça e o rapaz me reconheceram”, datilografou horas mais tarde no registro que manteve durante a estada em Santiago, como um diário de viagem. Estava correto. Não foi sem propósito que Lia perguntara pelo tal cabo Anselmo. Ângelo não fazia ideia, mas ela puxou à memória: aquele homem, que agora propunha um novo e perigoso empreendimento guerrilheiro no Brasil, se tornara bastante famoso nos dias que precederam o golpe de 1964 – ainda que seu nome fosse bem mais conhecido do que seu próprio rosto. Nos jornais, aparecia falando para multidões ou carregado, como herói, por jovens marinheiros. O homem que acabava de se despedir presidira a Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, com sede na Rua São José, centro do Rio de Janeiro, e se notabilizara como líder da rebelião em que centenas de marinheiros reivindicaram melhores condições de trabalho e a conquista de direitos civis como estudar, casar, votar e andar à paisana nas horas de folga. Metido na clandestinidade desde que instaurada a ditadura, nascido José Anselmo dos Santos, em Itaporanga D’Ajuda, cidade próxima a Aracaju, capital de Sergipe, o mítico cabo Anselmo era um tipo vaidoso, que gostava de ser reconhecido e bajulado, e em diversas ocasiões apelava para o “você sabe com quem está falando?”. Na viagem a Santiago, ao contrário, fizera questão de não ser identificado. Começaram a ligar os pontos: se era verdade que o cabo Anselmo fora preso, então como ele estava ali em Santiago, seis meses depois, saudável, falante e cheio de planos?
***** A notícia do cabo Anselmo no Chile logo se espalhou entre a comunidade de brasileiros exilados. Muitos não tinham notícias dele havia um ano. Com as mortes e prisões em série, as organizações de esquerda estavam débeis e fragilizadas, e uma nuvem de desconfiança pesava sobre todos. Os grupos acusavam abertamente uns aos outros. Ninguém confiava em ninguém, e cada um que encontrasse uma teoria para chamar de sua. Em suas memórias, Avelino Capitani, exdirigente da AMFNB, definiu o Chile daqueles tempos como
O ex-marujo já tinha em mente onde montaria o aparelho: Olinda, cidade histórica ao norte do Recife um “imenso laboratório”. “Era o caos”, escreveu. Por isso, a denúncia de que o cabo Anselmo havia trocado a guerrilha pelo trabalho de agente duplo da polícia soava como uma enorme fantasia, coisa de filme de espionagem. “A maioria da VPR encarava com ótimos olhos a presença dele em Santiago e acreditava que aquilo iria estimular a militância”, recorda Aluizio Ferreira Palmar, um dos homens do grupo em Santiago àquela altura. Onofre não só desqualificou as informações vindas de Inês, no Brasil, como atacou o comportamento de todos os que acreditavam na história. Acusou Lia de trabalhar para a repressão e insistiu que Inês deveria tê-lo confundido com outro sujeito, Edgard Aquino Duarte, que estava preso no Dops paulista, bastante parecido com o cabo – mais tarde descobririam que Anselmo e Aquino foram presos na mesma ocasião, no apartamento de um deles em São Paulo, em maio de 1971. As denúncias continuariam chegando, mesmo depois que Anselmo partiu de Santiago. Onofre, como uma metralhadora verbal, disparava contra todos os que acusavam o companheiro de traição. A intransigência de Onofre intensificou mais as enormes divergências que já rachavam a VPR. De um lado, uma maioria comandada pelo ex-sargento. Do outro, alguns poucos gatos pingados, entre os quais Lia e Ângelo, para quem a chegada de Onofre ao comando da VPR no Chile fora nada menos que um golpe dentro da organização. Ele chegou a Santiago ainda em 1971, quando o comando local estava nas mãos de Lia. Veio de Havana a pedido do Coletivo de Cuba, com a atribuição de exigir prestações de contas de todo o pessoal da
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VPR no exterior – em suas próprias palavras. Era um sujeito enérgico e centralizador. Negro, forte e alto, não suportava ser chamado de Negão, um de seus apelidos. Acreditava que derrubar a ditadura brasileira era uma missão que passaria diretamente por suas mãos e ordens. Como ex-sargento, nutria uma verdadeira adoração pela hierarquia e pela disciplina. Por sua formação militar, era visto como um homem de poucos dotes intelectuais por parte da militância de esquerda – a que vinha do movimento estudantil e das profissões liberais. Segundo Pedro Viegas, mais um ex-marujo vivendo no Chile, Onofre “nada tinha de teórico marxista, mas sua dedicação à prática revolucionária era inquestionável”. Do Chile, Onofre fez com que Jamil, que era o responsável pela VPR em Paris, repassasse todas as informações da Europa e exigiu que Lia e Ângelo fizessem o mesmo. Argumentava que existia uma crise de confiança em relação a Ângelo no Chile. Em seguida dissolveu o Coletivo do Chile, interrompendo as reuniões periódicas do grupo. Dividiu os exilados em células, de acordo com critérios próprios, cada uma com um coordenador. Para Ângelo e Lia, do outro lado, a crise que sacudia a VPR, tanto no Brasil quanto no exterior, exigia a convocação de um congresso que discutisse o futuro da organização. Naquela mesma noite do encontro no bar, um homem bateu à porta da casa onde morava o casal de mineiros. A mãe de Lia atendeu, e escutou o sujeito dizer, com ar conspiratório e voz de espião de cinema, que procurava “o homem”. As desconfianças eram tão grandes, que Onofre enviara um capanga, com medo de que Ângelo e Lia pudessem ter desaparecido com o cabo.
***** Apesar das denúncias, o encontro entre Anselmo e Onofre aconteceu numa manhã de quinta-feira, início de dezembro, sem maiores desconfianças. “Com Onofre, a conversa foi fluida e fácil”, escreveu o cabo em seu registro de viagem. “Com palavras escolhidas e rodeios esotéricos, mostreilhe que era o herdeiro moral e político de Palhano e Moisés, os dois esteios da VPR, sendo que o primeiro não teve condições de desenvolver sua capacidade”, continuou. O ex-sargento estava disposto a proteger o ex-marinheiro, e blindá-lo contra as acusações que vinham do Brasil e repercutiam em Santiago. Como ninguém aceitava voltar para São Paulo, Anselmo se colocou como o responsável pelo reagrupamento da VPR no Nordeste. “(Onofre) temia por minha segurança. Não queria que eu continuasse em São Paulo. Afirmei que estava por sair, mas antes deveria
concluir o trabalho que Moisés deixara. (...) Não tive outra saída. A pressão contra São Paulo e Rio é muito grande.” O ex-marujo deixou aquele encontro-relâmpago com a autorização para a missão. Já tinha em mente onde montaria o aparelho, embora ainda não tivesse revelado a Onofre: Olinda, cidade histórica ao norte do Recife, Pernambuco. Era um município grande e populoso, onde poderia montar sua fachada sem maiores problemas. “Os recursos financeiros para viabilizar o projeto vieram da Argélia, onde estava guardado o que restara do cofre do Adhemar, por meio do Jamil”, conta Aluizio Palmar. Para a missão no Nordeste, Onofre colocou 300 mil dólares à disposição de Anselmo – quase metade dos 700 mil dólares de que a VPR dispunha. O recurso inicial, 50 mil dólares, cobriria o aluguel de uma casinha no Varadouro, um dos bairros centrais de Olinda; a compra ou aluguel de um pequeno sítio em Abreu e Lima, ao norte de Olinda; a compra de um Fusca e mais o que bastasse apenas até conseguir um trabalho que garantisse o seu sustento diário. Manteriam correspondência, e receberia mais dinheiro sempre que necessário. Onofre insistiu ainda em colocar um guarda-costas na cola de Anselmo, pelo menos até que ele entrasse em segurança no Brasil, mas não conseguiu convencê-lo. “Saí fora da deferência, porque não sabia quem seria, como iria atuar para assegurar-me a vida no caso de um pega, nem se era conhecido de quem estivesse operando na fronteira”, justificou o cabo no seu relato de viagem. Anselmo deixou Santiago e seguiu de ônibus até Uruguaiana. Caso estivesse acompanhado do guarda-costas, a história provavelmente teria terminado com uma imensa chuva de balas ali mesmo no posto de imigração. Foi um golpe de sorte. Na fronteira, era o próprio delegado Sérgio Fleury quem o aguardava. Para Fleury, não havia cabo Anselmo ou Jônatas. Aquele era o agente Kimble – alcunha inspirada no personagem Dr. Richard Kimble, do seriado de televisão norte-americano O Fugitivo. Era o preferido entre todos os seus “cachorros” – nome usado pelos militantes de esquerda para designar os que trocavam de lado e colaboravam com o regime que antes os perseguia –, uma peça fundamental para desmontar o que ainda restava dos agonizantes grupos guerrilheiros. Mais que uma corriqueira operação policial de “combate à subversão”, como outras tantas que naquele exato instante aconteciam em diversas partes do Brasil, o engenhoso plano de Fleury era desferir um golpe de misericórdia na esquerda armada. Da fronteira, em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB), levantaram voo com destino a São Paulo. A arapuca estava sendo montada.
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OS SINOS QUE DOBRAM E OS HOMENS QUE NÃO SE DOBRAM TEXTO VICTOR HERINGER ILUSTRAÇÕES KARINA FREITAS
Ensaio
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Ensaio
Em comparação com a vizinha
Tiradentes, São João del-Rei é uma Nova Déli mineira. Tiradentes é cenográfica, calada e impassível em suas fachadas coloniais, muitas delas falsamente coloniais, construídas recentemente, mas no velho estilo, para dar a impressão de autenticidade. São João é maior, mais vibrante, suja e bagunçada: ali convivem supermercados e igrejas barrocas (os templos máximos de suas respectivas épocas); lojas de capinhas de celular e o Fortim dos Emboabas; as casas do povo, construídas como deu, e os casebres cartão-postal do centro histórico. Em suas vielas e avenidas, veem-se turistas, estudantes, doidos mansos, toda sorte de gente em sua sina orgânica. No ar, misturam-se o barulho dos motoboys, o grito dos bêbados, o riso das meninas e o badalar dos sinos. Passei horas tropeçando nas ruas crocantes de São João, em companhia do ator franco-espanhol Charles González e alguns amigos da região. Estávamos ali para o Festival Artes Vertentes – ele atuando em sua trilogia de mulheres em hospícios (Camille Claudel, Teresa d’Ávila e Sarah
Kane), eu lançando um romance e fazendo leituras. Mas naquele momento estávamos em busca de cerveja, sob os olhares severos das igrejas, que nossos amigos explicaram traçar uma cruz na planta da cidade. Mostraram-nos a rua das casas tortas e a casa do Tancredo Neves, na frente da qual, na última vitória de Dilma, a cidade inteira foi festejar. Tanto eu quanto Charles nos encantamos com a loucura sãojoanense, depois de dias enclausurados na beleza calculada de Tiradentes, onde se dava a maior parte das atividades do festival. Na nossa confusão de línguas – francês, espanhol, português, inglês –, tentamos traduzir o maravilhamento aos anfitriões. E às nossas falas se misturavam os sinos. Quando sentamos para beber, lá estavam os sinos. O dia inteiro os ouvimos, em ritmos e tons diversos. Mais de um são-joanense nos confessou que os acha insuportáveis. Tocam o tempo todo, não o tranquilo belémbelém que nos ensinam na escola, mas um poéimmmm, poéimmmm capaz de endoidecer um sujeito.
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“Os sinos daqui falam”, me disse uma menina. “Cada toque significa uma coisa. Quando morre alguém, quando nasce, quando é dia santo…” Perguntei se ela sabia identificar os diferentes toques. Respondeu que não, nem os outros. Quase ninguém sabia. Ali, na nossa babel de mesa de bar, os sinos eram a única coisa realmente intraduzível, como se falassem as mil línguas incompreensíveis que se falam em Nova Déli. Um dia, conheci uma velha senhora que, incapaz de sair da cama, chamava suas filhas por meio de um sininho, quando queria comer, ir ao banheiro ou trocar o canal da TV. Era sempre o mesmo toque, cada vez mais insistente, porque as filhas se distraíam. A gente se acostuma com qualquer coisa, e qualquer som, inclusive o Concerto para piano nº 2 de Rachmaninoff, pode virar ruído de fundo. Até Bach vira música de elevador. Nos templos budistas do Japão, os bonshō, enormes sinos em forma de (em vez do tradicional formato ocidental: Ω) e sem badalos, servem para chamar os monges aos rituais,
Ali, na nossa babel de mesa de bar, os sinos eram a única coisa realmente intraduzível, como se falassem as mil línguas incompreensíveis que se falam em Nova Déli marcar as horas e dar alarmes. O maior deles, em Chion-in, pesa 74 toneladas. São necessárias 25 pessoas para manejar o martelo que o faz soar. Os bonshō são mágicos: seu som induz o estado meditativo e é tão penetrante, que as almas do mundo inferior o escutam. Os sinos rituais do hinduísmo (ghanta) trazem boa sorte e afastam espíritos maus. Geralmente são colocados na entrada dos templos, para que os devotos avisem que estão entrando na casa dos deuses. O mantra que os acompanha diz o seguinte: “Toco este sino para invocar a divindade, para que adentrem forças nobres e virtuosas; e para que forças demoníacas, de dentro e de fora, se afastem.” Os ghanta energizam os chacras e trazem equilíbrio para o iogue. Nas casas de campo da classe média brasileira, não é incomum encontrar, pendurados nas varandas, sininhos que a brisa balança para trazer bons ventos e prosperidade às famílias. Um dos grandes sonhos da classe média brasileira é visitar Londres e ouvir o Big Ben.
OS DOBRES
Durante o festival, apresentei-me algumas vezes na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, com altares aos santos negros, como São Benedito, padroeiro dos cozinheiros, entalhado empunhando uma abóbora. Uma capela, como me contaram, construída e frequentada apenas por escravos. A peça que apresentei – um dueto com Stela do Patrocínio, mulher, negra, interna da Colônia Juliano Moreira – era curta. Eu falava entre um movimento de Schumann e outro. Passava o restante do tempo na sacristia-camarim, sob o olhar amável de um Jesus de braços abertos, castanho de olho azul, que me incomodava profundamente. Parecia querer me falar alguma coisa. Ou, pior, que eu lhe dissesse algo. No segundo dia, explorando a sacristia, descobri a escada que dá para a torre sineira. Para fugir do olhar do Cristo, subi. Não sou católico, não sei se é pecado, mas subi e fiquei ouvindo o Schumann lá de cima. Não sou católico, mas sou penosamente jovem: tirei fotos dos sinos, postei no
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Instagram, o que tampouco sei se é pecado. Em nenhum momento atinei para a complexidade sonora daqueles instrumentos. Foram um silêncio para mim, foto com pouco ruído. Os sinos em geral, nunca os compreendi. Sabia o básico: que dão as horas e chamam para a missa. Do mesmo modo, confundo-me quando ouço fogos de artifício no Rio de Janeiro: pode ser gol do Flamengo, pode ser queda de presidente, pode ser que chegou droga na boca de fumo… Na Evocação do Recife, Manuel Bandeira, ainda menino, já sabia a língua deles: De repente nos longes da noite um sino Uma pessoa grande dizia: Fogo em Santo Antônio! Outra contrariava: São José! Se a igreja aqui ao lado desse o toque de incêndio, eu só perceberia quando sentisse o cheiro de fumaça. Sou capaz de reproduzir fielmente a melodia de um daqueles velhos modems da internet discada, mas os sinos me escapavam totalmente. Quando voltei de Minas, resolvi aprender. O dialeto sineiro das Gerais (São João del-Rei e Ouro Preto, sobretudo) tem uma gramática complexa. Suas unidades essenciais são três: a pancada, quando se move somente o badalo para fazer soar um sino imóvel; o dobre simples, no qual se inclina o sino para que o badalo bata uma única vez na campânula; e o dobre duplo, em que se pendula o sino para que o badalo bata duas vezes nas paredes de bronze. Em uma segunda camada estrutural, há o repique: a junção de várias pancadas em dois ou três sinos diferentes, formando unidades rítmicas complexas, nas quais os sineiros podem imprimir seus je ne sais quoi pessoais. Como em toda linguagem, há espaço para a expressão individual e para o engenho artístico. A partir dessas partículas básicas, criaram-se dezenas de toques diferentes. Quando morre alguém, por exemplo. Caso o defunto seja homem, os sinos dão três dobres simples; se é mulher, dois. Se quem morreu foi o papa, há toques mais complexos, de hora em hora – algo similar ocorre quando falece alguém que “prestou grandes serviços à ordem
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ou irmandade” (imagino que se refiram a doações, também, em dinheiro). Quando morre uma criança com menos de sete anos, toca-se o clens fúnebre, lentamente, pianissimo. Em uma carta aberta ao povo mineiro, o Sr. Paulo Roberto d’Angelo de Carvalho, ex-sineiro de todas as torres de São João del-Rei, em defesa de sua nobre tradição, lista os nomes dos toques, que, assim enfileirados, parecem a procissão fonética de um mundo perdido. Leia em voz alta: “tostolim ou tens-tolim, terentena, tchens, tanquins, clens, batucada, canchiquinha, tenstens, tencão do rosário, tencão festivo, tencão atravessado, senhora morta, toque de santos, toque de Angelus comum, toque de Angelus de Páscoa, toque de almas, toque de agonia, toque de parto, toque de rebate, combate, dobre de finados, dobre de Via Sacra, dobre fúnebre para homem irmão, homem mesário, mulher irmã, mulher mesária, padre, bispo e papa; dobre das chagas, entrada de missa, chamada de sineiro, chamada de irmãos, principiada. E o mais festivo, o repique com dobro, destinado para anunciar festa religiosa ou saída da procissão”. Soa como um cortejo radiante. Lembra a cena do funeral em Sonhos (1990), de Akira Kurosawa: em vez de caminharem calados e graves, os vivos dançam e cantam ao carregar o caixão, ao som de banda de música e, claro, sinos. A morta, uma velhinha da vila, viveu o bastante. Por que não celebrar? O toque de calamidade se chama “toque de rebate”: pancadas descompassadas no sino maior, logo reproduzidas no sino médio, para avisar de incêndios e outros desastres. Esse era provavelmente o ruído fixado na Evocação do Recife, que citei acima. Podemos, portanto, imaginar mais uma camada sonora no poema. O mundo espectral dos sinos invade a convenção de fantasmas amáveis do Bandeira.
TEORIA GERAL DO SINO
Os sinos, não só os de Minas Gerais, falam dos dois campos humanos essenciais: o amor e a morte. Nos seus poéins-poéins, o humano nasce,1 ama e morre – a tríade biológica por excelência. Por isso há toques para nascer, toques para se unir à coisa amada e toques para morrer.
A cada badalada que dá as horas, a vida cotidiana estaca e, aos mais meditabundos, lembra a finitude da existência. É um memento mori (lembrate de que vais morrer) e um carpe diem (porque vais morrer, aproveita a vida). Para os fiéis, o chamamento à liturgia é também um convite à vida maior que a vida, da qual eu, macumbeiro e ateu, tenho profunda inveja. O sino é um dos raros instrumentos que nos conectam ao ritmo geral do cosmo. Bendito seja o infeliz que primeiro bateu metal contra metal e viu que era bom.
OS QUE NÃO SE DOBRAM
Embora a linguagem dos sinos de Minas Gerais tenha sido tombada como patrimônio imaterial pelo IPHAN em 2009, seus dias como língua franca estão acabados. O mesmo ocorreu com o latim: antes o idioma de um império, logo a língua do deus cristão, hoje está nas mãos sonolentas dos escassos estudantes de Clássicas, lembrança máxima de que todo poder, por mais impressionante que seja, uma hora tomba. Os sinos de Minas são o testemunho da derrocada do catolicismo (não do cristianismo, note-se) no Brasil: antes uma religião tão onipresente, que utilizávamos sua infraestrutura para comunicar assuntos de natureza civil, hoje seus sinos se tornaram mera curiosidade turística e fonte de dor de cabeça para os que vivem próximo. Não costumo lamentar a decadência dos grandes poderes. Prefiro o latim morto dos calmos acadêmicos das faculdades de Letras ao latim vivíssimo das legiões romanas estuprando gaulesas. Do mesmo modo, prefiro os sinos como exotismo provinciano, coisa frágil a ser preservada por órgãos estatais. Pois antes foram a voz de uma estrutura monstruosa que, na ponta de seus tentáculos, inspecionava o comprimento das saias e decidia quem podia amar quem. E isso foi o de menos. Outros tentáculos os substituíram, mas, pelo menos, podemos levar estes ao laboratório e fazer a necrópsia. Que deles reste somente o vestígio de beleza.2 Sou mais afeito às línguas escusas. Ou melhor, às antilínguas, códigos de comunicação que jamais estiveram no poder e que convivem com ele em constante tensão. Uma antilíngua é a língua de uma antissociedade: um
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evidentemente, Né ascer, o amar primordial. A
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criança que observamos, tão engraçadinha, a se deslumbrar com o mundo é a prova. Depois é que descobrimos que o mundo não é tão amável assim.
acredito Pnoorfimexemplo, de todos os
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exércitos. Todos, não só os de algumas nações (o que nos deixaria em lençóis pouco equânimes). Mas acho que podemos preservar as bandinhas militares. Há poucas coisas mais bonitas do que o coral do Exército Vermelho cantando a Canção dos barqueiros do Volga, com o solo de Leonid Kharitonov. Podem conservar os uniformes, não tem problema. Vocês ficam bonitos de uniforme.
Ensaio
grupo de pessoas que vivem em uma dada sociedade, mas que, por uma razão ou outra, se contrapõem a ela. Em geral, são grupos marginalizados, que desenvolvem uma nova linguagem, incompreensível para a maioria, como instrumento de resistência, ressocialização ou desafio. É por meio da antilíngua, mais do que pelos códigos dominantes, que melhor somos capazes de compreender nosso tempo. Um dos exemplos mundialmente conhecidos de antilíngua é o bangime, um dialeto críptico falado por cerca de 1.500 pessoas no Mali, uma população que se autointitula “os escondidos” (os bangande), descendentes de escravos que se refugiaram em sete vilas ao sul da mítica Timbuktu e desenvolveram uma língua própria, propositadamente confusa para despistar forasteiros, numa espécie de überquilombo. Até hoje os bangande vivem semiapartados da sociedade dogon ao redor (da qual, etnicamente ao menos, fazem parte), arautos de uma resistência linguística impressionante, aliás quase totalmente refratária aos esforços eruditos dos linguistas ocidentais.
Na América do Sul, a antilíngua mais consagrada talvez seja o lunfardo, criado pelas classes baixas de Buenos Aires e Montevidéu, que logo contaminou o tango e encantou escritores hoje célebres, como Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis Borges. No Brasil, mais ou menos na mesma época, Antônio Fraga publicava o seu Desabrigo (1942), um romance escrito no dialeto do Mangue carioca, reduto de putas, artistas, criminosos e outros marginais, incompreensível aos “homens de bem” (na edição mais recente, publicada pela José Olympio, há um glossário ao final). Fraga chegou a ser chamado de “o Joyce do Mangue”, mas morreu esquecido. A antilíngua, por sua própria natureza, raramente chega aos holofotes da sociedade maioral senão como pastiche ou macumba para turista (que foi a sina do lunfardo). Os “homens de bem” estão aí até hoje, Fraga não. Atualmente, no Brasil, o pajubá é a antilíngua que exemplifica perfeitamente o conceito. Como geralmente acontece nas relações língua-antilíngua, o pajubá canibaliza a estrutura básica da língua portuguesa
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e a subverte, sobretudo no vocabulário, em que estão presentes termos oriundos do nagô, do iorubá, do quimbundo e outras línguas de matriz africana. Originalmente falado pelo povo do santo (isto é, devotos dos cultos afrobrasileiros) para evitar a repressão, o pajubá foi adotado pela comunidade LGBTT durante a ditadura militar. Hoje é utilizado em todo o território nacional (às vezes com o nome de bajubá ou endaca), como língua de resistência e socialização de duas populações historicamente perseguidas pelo Brasil majoritário. Hoje em dia, o pajubá é compreendido por um número estrondosamente maior de pessoas do que a linguagem dos sinos de Minas Gerais. Mas sua recente popularização tem dois gumes. Se, por um lado, é testemunho de um certo grau de inserção do povo do santo e da comunidade LGBTT na sociedade brasileira, por outro, pode significar a perda do caráter de resistência da antilíngua. Periga ocorrer com o pajubá o mesmo que aconteceu com o polari na Grã-Bretanha: de criptoleto da comunidade gay, passou ao mainstream cultural (Bona drag, o disco de Morrissey,
Prefiro os sinos como exotismo provinciano. Pois antes foram a voz de uma estrutura monstruosa que inspecionava o comprimento das saias e decidia quem podia amar quem é uma expressão polari que significa “bela roupa”, por exemplo). No entanto, tanto lá quanto aqui, a violência e a intolerância persistem. A evolução social não acompanhou a linguística. Popularizar, às vezes, também é um modo de calar. Essa é a diferença abissal entre a língua do poder e a língua dos destituídos do poder. A língua do poder, como a dos sinos mineiros, por mais injustiçada que pareça ao decair e morrer, tende sempre a contar com a proteção do poder, mesmo que seja um poder de outra natureza (o Estado laico moderno conservando a expressão tradicional de uma religião dominante). A língua dos destituídos, por sua vez, é forçosamente resistente ao poder e começa a morrer quando se aproxima dele. Quem a poderia proteger é impotente por definição, embora não se dobre facilmente à opressão. O poder a engole e a ressignifica, quase sempre para manter tudo como estava. Há um famoso conto de Guy de Maupassant – Mademoiselle Fifi – no qual o padre de uma cidadezinha normanda, em protesto à ocupação
prussiana, se recusa a tocar o sino de sua igreja: “era sua única maneira de protestar contra a invasão, protesto pacífico, protesto de silêncio, o único, dizia ele, que convinha ao padre, homem de doçura e não de sangue”. Ao lembrar esse texto, lembro também que, ainda que historicamente ligados ao poder, os sinos católicos – como em toda linguagem – também podem ser cooptados para a resistência. O silêncio da igrejinha de Maupassant é uma espécie de bolsão de antipoder dentro da língua do poder (um poder distinto do militar, certamente, mas, ainda assim, impressionante – afinal, o catolicismo era muito mais poderoso do que o exército da Prússia). Não propriamente uma antilíngua, mas, ainda assim, um código compartilhado entre oprimidos: “a povoação inteira, entusiasmada com tal resistência, prontificava-se a apoiar até o fim o seu pastor”. Quando confrontados com uma opressão mais urgente, os citadinos se apropriam da infraestrutura de um outro poder para, em silêncio, resistir. Eu me pergunto, nas beiras da ficção, se os sinos das Minas
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Gerais, com sua alta capacidade comunicante, não foram usados no passado para furar o bloqueio massivo da maioria. Já vimos que o sineiro tem certa liberdade para criar, dentro da linguagem dos sinos. Pois imagino um grupelho deles, como inconfidentes, repassando mensagens secretas em seus repiques, sob as barbas onipotentes da Igreja. Mensagens anticlericais? De amor livre? De independência ou republicanismo? Não importa muito, desde que incompreensíveis senão para alguns iniciados, que pouco a pouco vão espalhando a mensagem e disseminando algo novo, a nascer dentro do estômago do poder. Tocavam os sinos de São João, enquanto eu, Charles e nossos amigos bebíamos a magra cerveja dos artistas. Quem sabe o que, no fundo, queriam dizer. VICTOR HERINGER, escritor e artista visual carioca, autor dos romances O amor dos homens avulsos e Glória (prêmio Jabuti 2013), da plaquete de fotos O escritor Victor Heringer, entre outros.
Crônica
O FILME DA VIDA DELA TEXTO LUÍS HENRIQUE PELLANDA
Primeiro, o cenário e os
personagens. Estamos numa rua comum, no Centro de Curitiba. Ela se chama Luiz Leão, e fica perto da casa do cronista. É uma rua sinuosa e de mão dupla. Um meio-fio estreito a divide em duas pistas. De onde está, no cruzamento com a João Gualberto, o cronista vê passar muitos ônibus. Biarticulados, ligeirinhos. Vê estações-tubo lotadas. Durante décadas, muita esperança foi investida em veículos e plataformas dessa natureza. Este seria o nosso passaporte para a modernidade. Hoje, por aqui, ninguém mais se empolga com os ônibus, será que progredimos? O cronista se prepara para atravessar a Luiz Leão a pé. Ele aguarda na esquina do Passeio Público e quer chegar à do Colégio Estadual. Enquanto o sinal não fecha, observa os helicópteros sobrevoando a cidade, e os compara a libélulas gigantes, clichê que automaticamente o transforma no ínfimo habitante de um brejo. Ao seu lado, outra criatura do pântano espera para cruzar a rua. Ele não a conhece. É uma menina de,
talvez, 12 anos. Também olha para o céu. Os helicópteros a enfeitiçam, como mariposas fariam a um gato. Combina uniforme azul, mochila rosa, tênis pretos sem cadarço, óculos de grau de aro roxo. Prende o cabelo castanho com uma tiara de orelhas felinas. Se sua infância já acabou, terá sido contra a sua vontade. E agora, finalmente, a ação. O cronista, que é um ansioso, se aproveita de uma breve trégua no trânsito para correr até o meiofio, cumprindo metade de sua travessia. Distraída, a menina o segue, vagarosa, sem atentar para o sinal ainda aberto. Pisa o asfalto, presumindo-se segura, alheia à veloz aproximação de um ligeirinho, a menos de uma quadra de distância. Um pressentimento ruim obriga o cronista a olhar para trás. Ele vê a menina e vê o ônibus. Faz os cálculos necessários e conclui: por culpa dele, ela será atropelada em cerca de cinco segundos. Assim, para poder salvá-la e redimirse, precisará deformar, o quanto antes, o tempo desta narrativa.
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Apostando na funcionalidade dos imperativos, o cronista grita uma ordem: ônibus, menina, olhe o ônibus. Aponta um lugar às costas da moça, mas ela não olha para este lugar, e nem se vira, apenas encara o homem, sem entendêlo. Pelo jeito, o cronista não é muito bom nisso de se comunicar objetivamente, será um problema seu de dicção ou de carisma? Não se sabe. Só que uma vida está em jogo, e é preciso insistir. Por isso, o cronista gesticula e berra ainda mais alto: o ônibus, menina, o ônibus! Sim, ele chega a exclamar, coisa rara, os curitibanos costumam esquivarse das exclamações, mas em casos como este, de desastre iminente, o seu uso há de ser obrigatório, danese a elegância dos pontos finais, uma criança será arremessada pelos ares, à merda com os pudores pontuativos! Nos olhos da vítima, porém, ele só vê interrogações, embora mudas: o que esse tio quer comigo, será tarado? De medo, a menina até desacelera, será surda? O cronista cansa das próprias conjecturas, a narrativa tem
MARIA JÚLIA MOREIRA
que avançar, um ônibus não pode demorar tantos parágrafos para vencer 100 metros, é hora de abandonar os discursos e as pantomimas! Ele estende um braço à mocinha, estica-se como se colhesse pitangas, vai puxá-la para si, mas ela se apavora, julga-se atacada, dá um passo atrás e petrificase no asfalto, à disposição do acidente. Então é isso, pensa o cronista. Ela morrerá olhando para mim, estava escrito, é este o desejo do roteirista, do diretor, dos produtores associados. Só não será, quem sabe, a vontade do ônibus. Não, ele não quer arremessar uma criança pelos ares, matar não faz parte de suas atribuições, não foi para isso que o montaram. Já buzinou 10 vezes, e vem se refreando de longe, a borracha de seus pneus fritando, cantando a própria inocência: não nasci para atropelar meninas, ainda ontem, na mata, eu alimentava uma seringueira de 200 anos, ainda ontem eu era o lar de amoráveis espíritos da floresta, ainda ontem fui látex no fogo, como é que de repente estou aqui, fedorenta e fumegante, matando uma mocinha?
Mas não, nem o lamento da borracha, nem o teatro do cronista, nada será capaz de salvar a menina. Dentro do ônibus, os passageiros se chocam em vão. Por ela, são lançados uns contra os outros. Esfregam-se, abraçam-se à força. Ninguém ali se conhece, ou conhece a vítima lá fora, mas todos se ferem e embolam para poupá-la, deixam cair bolsas e máscaras. Sim, em nome dessa menina desatenta, tudo se confrange. E então a apelação, a jogada emocional, o lance fantástico. Projetado nas nuvens, entre os helicópteros, o cronista vê um filme. É o curta da vida dela, da moça que vai morrer. Ele a vê nascendo, um bebê brasileiro do século XXI, numa família de classe média, suburbana. A mãe vende roupas, o pai, carros. Ele vê sua irmã caçula, com quem a menina reparte o beliche e as bonecas. Vê natais e páscoas, uma bicicleta de rodinhas, um bufê de aniversário, o celular com adesivos de princesa, as novenas na vizinhança, os cultos na Universal, aulas de inglês e robótica,
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uma praia chuvosa, a casa da dinda em Shangrilá, os jogos de betes no antipó. E vê o instante em que, pela primeira vez, ela se apaixona: é um colega da escola, um piá feio e que tira notas baixas, mas que ela quer beijar um dia, botou isso na cabeça, virou questão de honra. Pena o filme já estar acabando, e os créditos subindo, ao menos é o que parece. Mas só parece. Porque o roteirista aciona os freios a tempo e o ônibus para, e quase encosta na moça, como um dragão carinhoso que lhe farejasse a bunda, empurrando-a para a sequência de sua vida. É uma reviravolta, e o diretor a celebra com um sobe som. O cronista volta a interpelar a menina, tudo bem? Mas a protagonista se mantém calada, cruza a Luiz Leão, quieta, e foge ladeira acima. Vai em busca não daquele beijo, mas, antes, das falas a que tem direito. LUÍS HENRIQUE PELLANDA, escritor e jornalista curitibano, autor dos livros O macaco ornamental, Nós passaremos em branco, Asa de sereia e Detetive à deriva.
Indicações Série
The handmaid’s tale
O filme da minha vida Após duas bem-sucedidas incursões pelo cinema, com Feliz Natal (2008) e O palhaço (2011), o ator e diretor Selton Mello lança seu terceiro trabalho, O filme da minha vida. Baseado no livro Um pai de cinema, do uruguaio Antonio Skármeta (O carteiro e o poeta), o drama ficcional narra o conflito de Tony Terranova (Johnny Massaro), um jovem que sofre com a ausência do pai, Nicolas (o ator francês Vincent Cassel), e encontra no amigo Paco (Selton Mello) o apoio para suprir a carência afetiva.
FOTOS: DIVULGAÇÃO
O serviço de streaming Hulu (ainda não disponível no Brasil), concorrente do Netflix, lançou uma série de peso, The handmaid’s tale. Protagonizada por Elisabeth Moss (Peggy, de Mad men), a produção mostra como a liberdade num país democrático (EUA) foi afetada pela ascensão de um regime totalitário e teocrático, que retirou das mulheres seus direitos civis e as transformou em propriedades do Estado, destinadas apenas a procriar para famílias ricas. A história, baseada no livro O conto da aia (1985), de Margaret Atwood, é uma alerta ao tempo retrógrado em que vivemos.
Cinema
Exposição
Precisão e acaso
Livro
Habitar a infância – como ler literatura infantil O livro de Graça Ramos reúne uma série de pequenos artigos divididos em temas, como políticas públicas e mercado editoral. De modo leve, a autora fala dos clássicos, sem esquecer autores contemporâneos, além de não se esquivar das polêmicas, a exemplo daquela envolvendo títulos de Monteiro Lobato, acusados de preconceito racial. Ao longo dos textos, ela reforça o modo como vê a literatura.
Desde o fim de julho, o Museu do Estado de Pernambuco está abrigando a mostra Precisão e acaso, do pernambucano José Patrício, com curadoria do carioca Felipe Scovino. Sem realizar uma individual na cidade desde 2006, o artista apresenta cerca de 40 obras relativamente recentes – a maioria inédita no Recife – nas quais explora outros materiais, indo além dos dominós que se tornaram um ícone dentro de sua produção. A exposição, vista pelo curador como uma antologia, ressalta o processo de criação de Patrício, que sempre parte de uma regra, formulando uma espécie de “método”. Mas, apesar dessa precisão, o resultado final é desconhecido, é o acaso.
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Livro
Cênicas
Uma dakimakura é “um travesseiro em tamanho família que os japoneses usam para ficar abraçados”. Foi de uma postagem em um blog português (acompanhada da imagem que circulava na internet do tal objeto insólito) que Camillo José teve a ideia para o título de seu segundo livro de poesia: A dakimakura flutuante. O jovem autor pernambucano, atualmente uma das vozes mais originais da poesia experimental, já havia publicado Chave de espadas (2013), pela editora Patuá. Neste mais recente, publicado pela Cepe Editora, ele nos apresenta referências que mesclam elementos da cultura nipônica, estética vaporwave, glitch art, citações de filmes cult, desenhos animados e memes da internet, numa poética sui generis, que remete a um caleidoscópio. Com a publicação, Camillo venceu o 4º Prêmio Pernambuco de Literatura.
Entre os dias 3 e 12 de agosto, acontece a 14ª Mostra Brasileira de Dança, com espetáculos de grupos profissionais em formação, além de performances solo. A abertura do evento nos teatros será feita pelo Balé Teatro Castro Alves (BTCA), com o espetáculo LUB DUB, do coreógrafo coreano Jae Juk Kim, inspirado na diversidade de sons percussivos, promovendo o diálogo entre as culturas afro-brasileira e sul-coreana. A apresentação será realizada nos dias 5 e 6, às 20h, no Teatro de Santa Isabel.
A dakimakura flutuante
14ª Mostra Brasileira de Dança
Disco
As palavras voam
Show
Devendra O feriado de 7 de setembro será interessante no Recife. Ao menos para quem quiser assistir a um show diferente por estas terras: o do músico Devendra Banhart. Ele volta ao Brasil depois de quatro anos e vem pela primeira vez à capital pernambucana, através do Popload Gig!. À beira do Rio Capibaribe, o Catamaran será o espaço onde o norte-americano de origem venezuelana se apresentará com sua banda. O show certamente vai focar nas faixas do seu álbum mais recente, Ape in pink marble (2016). Ele também passará por Salvador, São Paulo e Curitiba. Mais em: https://goo.gl/V2vYBw
Três anos após o solo Almejão, o pernambucano Matheus Mota lança As palavras voam (2017). Musicando trechos da lamuriosa carta de Michel Temer à ex-presidenta Dilma Rousseff em 2015, o artista se vale de uma boa dose de comicidade para se referir ao episódio da política nacional. São dez faixas, entre instrumentais e canções, com títulos que estão frequentes nas pautas de política, como Vice decorativo, Estava em jogo o país, Foro privilegiado e Fim dos tempos.
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ERIC GOMES
OSMAN LINS Estará disponível o especial sobre o autor publicado na Continente #31, assim como o vídeo Quarteto – que fala das cartas de Osman para suas filhas –, realizado por Júlia Kacowicz, Kauê Diniz e Mariana Oliveira, hoje editora assistente desta publicação.
DOCUMENTA 14 Confira a entrevista exclusiva com o artista nigeriano Olu Oguibe e a cobertura do evento feita para o nosso site pela repórter Bárbara Buril, além da crítica do curador Moacir dos Anjos, sobre a etapa da mostra que aconteceu em Atenas.
UM NOVO SITE Assim como estas páginas que você tem em mãos, a Continente Online também está de cara nova. O novo site chega ainda mais alinhado à versão impressa e oferece aos leitores todas as seções e conteúdos da nova edição, além de um material exclusivo. As colunas, por exemplo, passam a fazer parte do site, e incluem agora a da nossa repórter especial Débora Nascimento, que tecerá seus comentários sobre música, cinema, séries de TV etc. Um dos materiais exclusivos deste mês é o especial sobre o mestre rabequeiro Luiz Paixão (acima), a quem dedicamos um perfil, com texto de Erika Muniz e foto e vídeo de Eric Gomes.
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MENESCAL E A BOSSA Resgatamos a matéria de capa da Continente #31, sobre Vinicius de Moraes – outro ícone da Bossa Nova. Também disponibilizamos mais imagens de Roberto Menescal, feitas no ensaio exclusivo de Alcione Ferreira.
EXPEDIENTE
Cartas
Envie seus comentários, suas críticas e sugestões. HÉLIA SCHEPPA
PARTEIRAS
GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO GOVERNADOR Paulo Henrique Saraiva Câmara SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Antônio Carlos Figueira
O especial sobre as parteiras publicado na edição Continente #197 me deixou feliz por perceber a delicadeza na abordagem da revista e, principalmente, a coragem de se aprofundar em um tema que, no Brasil de hoje, é uma trincheira de resistência. Todos os esforços para preservar os saberes das parteiras são parte de uma luta constante. As maiores guerreiras são elas próprias – Prazeres, Dôra, Zefinha e Ana, que nos ensinam a importância do toque, do acolhimento, da paciência e do olhar feminino na hora do parto (e não apenas, mas no cotidiano) e a necessidade de resistir diante da opressão e de um país que parece ter esquecido a sua essência.
COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE PRESIDENTE Ricardo Leitão DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO Ricardo Melo DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO Bráulio Mendonça Meneses
Uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - Cepe SUPERINTENDÊNCIA DE PRODUÇÃO EDITORIAL Luiz Arrais REDAÇÃO
JÚLIA MORIM
Adriana Dória Matos (editora)
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Acho espetacular a revista Continente. É, sem sombra de dúvida, um produto jornalístico que se destaca no mercado com grande maestria. Tem minha preferência. Sempre! WILKER MEDEIROS
SIMONE MENDES
faísca, pra incendiar o teatro paulistano no fogo das tempestades d´ardor irresistível da arte em contracenação com a ágora do nosso tempo, onde pululam fascismos a torto e a direito. TEATRO OFICINA UZYNA UZONA
Texto amplo e essencial sobre a cena teatral de São Paulo. É o Teatro contracenando com a cidade. GUTO MENDONÇA
Mereces todas essas lindas palavras, brejeira de nossos corações. PEDRO AMÉRICO DE FARIAS
TEATRO PAULISTANO (Continente Online)
Olívia Mindêlo (Continente Online) Hallina Beltrão, Hana Luzia e Janio Santos (diagramação) Agelson Soares Santana (tratamento de imagem) Hugo Campos (webmaster)
Eduardo Montenegro, Erika Muniz, Maria Júlia Moreira e Sofia Lucchesi (estagiários) CONTATOS Fone: (81) 3183.2780
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Maravilha erótica sutil! Lindo, lindo, lindo.
Que legal conhecer um pouco mais da história da artista.
Débora Nascimento e Luciana Veras (repórteres especiais)
Esse absurdo-lindo que é o teatro paulistano. A honra-gratidão que é poder estar aqui, nesse momento, vivendo tudo isso. A potência-instiga de ser atravessado e se sentir parte de alguma forma. O relato-afeto de Mateus Araújo, conterrânea aventureira em SP, como eu.
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Teatro Oficina Uzyna Uzona + Satyros + Cia. Mungunzá de Teatro numa matéria-
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SAMUCA, cartunista e chargista de Opinião do Diario de Pernambuco desde 2006.
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Ministério da Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Cultura de Pernambuco, Fundarpe, Museu do Estado de Pernambuco e Santander apresentam:
EM PERNAMBUCO, QUALIDADE FAZ ESCOLA.
PROGRAMAÇÃO
julho e agosto
Ouvindo Música no Museu do Estado de Pernambuco
2017
Iniciando o segundo semestre de 2017, a programação do Ouvindo e Fazendo Música no MEPE (Museu do Estado de Pernambuco) para os meses de julho e agosto amealha os mais diversos estilos musicais.
São várias as conquistas recentes do nosso ensino público. Conquistas que são resultado de muito trabalho e investimento. As escolas da rede estadual estão mais modernas e bem
ADAM EVALD 01/07 • SÁBADO • 17h
RENATO BANDEIRA E SOM DE MADEIRA 08/07 • SÁBADO • 17h
VITOR BRAUER E JONATHAN TADEU 15/07 • SÁBADO • 17h
TERRY HARMONICA BEAN 22/07 • SÁBADO • 17h
FELIPE S. 29/07 • SÁBADO • 17h
HENRIQUE ALBINO TRIO 05/08 • SÁBADO • 17h
SABIÁ SENSÍVEL 12/08 • SÁBADO • 17h
FEMI TEMOWO 19/08 • SÁBADO • 14h
SHUFFLE DEMONS 26/08 • SÁBADO • 17h
equipadas. Incentivam os nossos estudantes a aprender. Eles sabem que educação de qualidade é capaz de transformar as suas vidas. E que é isso o que a nossa escola pública, hoje, oferece: um futuro melhor para milhares de jovens pernambucanos.
1º lugar do Ensino Médio no IDEB
Menor taxa de abandono escolar no Ensino Médio
Maior rede de ensino em tempo integral do país
368 escolas em tempo integral (39 implantadas em 2017)
51% das vagas do Ensino Médio em escolas em tempo integral
PATROCÍNIO
37 escolas técnicas estaduais (10 novas desde 2015)
46 quadras já entregues pelo Programa Quadra Viva
Mais de 5 mil embarques pelo Programa Ganhe o Mundo
Novas modalidades desde 2015: Ganhe o Mundo Esportivo e Ganhe o Mundo Musical
Passe Livre RMR disponível para mais de 260 mil alunos
PRODUÇÃO
SÁBADOS COM MAIS MÚSICA NO RECIFE
APOIO
Ouvindo Música no Museu do Estado de Pernambuco. INGRESSOS Programação regular: R$6,00 Pessoas acima de 60 anos e estudantes: R$ 3,00
MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO Av. Rui Barbosa, 960 Graças Recife – Pernambuco – Brasil – 52011-040 Telefone: 81 3184.3174 / 3170 E-mail: museu.mepe@gmail.com Agendamento para visita guiada: 81 3184.3174 Horário de funcionamento Ter a sex 9h às 17h Sáb e dom 14h às 17h
REALIZAÇÃO
SECRETARIA DE CULTURA
MINISTÉRIO DA CULTURA
# 200
CONTINENTE
www.revistacontinente.com.br
ano XVII • #200 • ago/2017 • r$ 13,00
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