Continente #201- Popular

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#NoAr2017

# 201

ano XVII • #201 • set/2017 • r$ 13,00

POPULAR

CONTINENTE

Gente que cria a conexão perfeita entre vida e arte

Caxangá Golf & Country Club

100 95

w w w. c o q u e t e l m o l o t o v. c o m . b r

INGRESSOS: www.sympla.com.br/noar2017 | Barchef

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Apoio:

Player o cial:

Mídia o cial:

Realização:

SET 17

GIOVANI LINN DA DIIV O TERNO RINCON MUITO CURUMIN CIDREIRA (+ METAIS) SAPIÊNCIA MAIS QUEBRADA Patrocínio:

FICÇÃO Um alemão chega aos trópicos de Zeppelin

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ENSAIO VISUAL As fotografias de “sangue” de Labastier


Educação de qualidade é uma bagagem que a gente carrega para a vida toda. O Programa Ganhe o Mundo segue transformando a vida de milhares de estudantes da rede pública estadual. Já são mais de 5,4 mil embarques para um intercâmbio no exterior. Só este ano, serão mais 1.030 beneficiados. Desde 2015, o Programa passou a contemplar, também, jovens talentos do esporte e da música, com o Ganhe o Mundo Espor tivo e o Ganhe o Mundo Musical. A experiência de estudar em outro país, de conhecer outra cultura, ensina para a vida. É com essa bagagem, que os nossos estudantes embarcam para um futuro melhor.


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Nesta Edição Cultura popular, hoje São muitas as temporalidades do agora. Enquanto pessoas ao redor do planeta se transportam de trem-bala ou mesmo sem sair do lugar, via mensagens de internet, outras se deslocam a pé ou em transportes que só operam algumas horas do dia. E isso não deveria colocar ninguém em inferioridade ou superioridade em relação ao outro, apenas se tratar de uma realidade sobre a qual nem sempre pensamos. Na pequena Ilha do Massangano, no sertão do São Francisco, os moradores têm 12 horas por dia para entrar e sair do lugar, pois este é o tempo de funcionamento da balsa que os transporta desde o continente. Na ilha, circulam a pé em ruas de barro, mantêm hortas domésticas e contam para si histórias dos seus antepassados. Uma dessas histórias é vivida – na verdade, dançada – pela comunidade local há, pelo menos, um século, o samba de véio, uma das manifestações da tradição que foi visitada pela repórter da Continente Luciana Veras e pela fotógrafa Hélia Scheppa. Já nas primeiras conversas na Redação sobre essa pauta de “cultura popular”, tínhamos interesse em ouvir os mais variados brincantes de Pernambuco e saber deles como realizavam suas festas e brincadeiras numa sociedade que coloca em privilégio palavras como tecnologia, desenvolvimento, conectividade, virtualidade. Como mantinham, custeavam e atraíam a comunidade e o público para suas atividades e criações. Sim, porque sabíamos de várias dificuldades enfrentadas pelos grupos artísticos de matriz popular, ainda que encontrem apreço pelo que produzem. Uma fala da antropóloga da UFPE Lady Selma Albernaz, também ouvida pela reportagem, sintetiza a força das manifestações populares que resistem, ao afirmar que elas se mantêm tanto tempo e a despeito das mudanças porque expressam quem são essas pessoas, ainda muito antes de elas existirem, porque elas fazem parte de comunidades que preservam valores, moralidade e um lugar no mundo. Numa palavra: têm identidade. Isso é bastante coisa, e o resultado da nossa investida em campo nos trouxe um painel diversificado e rico de como esses artistas populares estão equilibrando tradição e contemporaneidade. Esperamos que você, leitor, seja mobilizado pelo que dizem essas vozes da cultura tradicional que lhe oferecemos nas páginas a seguir. Nossa capa: Corina de Jesus. Foto: Hélia Scheppa

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6 Entrevista Cynthia Enloe

Feminista norte-americana fala sobre suas pesquisas a respeito das mulheres nas relações internacionais

12 Curtas Grupo Corpo

Novo espetáculo da companhia mineira, Gira, estreia este mês em São Paulo e faz homenagem ao orixá Exu

16 Portfólio Gui Mohallem

Artista diz gostar de sair da zona de conforto, trabalhando com fotografia e ativismo

24 Reportagem Cultura popular

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Grupos que fazem das manifestações artísticas de matriz tradicional um lugar de identidade

42 Artigo Marcelo Gomes

Pesquisadora francesa Sylvie Debs, analisa – filme a filme – a cinematografia do pernambucano

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Crítica

Ladainha Leitura do recente trabalho da poeta Bruna Beber aponta para um livro em tom mais grave

58 Ensaio Açúcar

Mostramos em primeira mão fotografias de Ricardo Labastier comentadas por Juan Esteves

65 Lançamento Quem é essa mulher ?

Leia trecho do livro que analisa a condição da mulher nos poemas-canções de Chico Buarque

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74 Ficção Se um viajante num remoto dia de verão…

Escritor Fernando Monteiro cria narrativa a partir do aporte do Zeppelin no Recife, nos anos 1930

84 Indicações Sugestões de livros, filmes, discos, exposições e programas de TV disponíveis este mês

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Online + Cartas + Expediente

88 Saída Por Kambiz Derambaksh

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Entrevista CYNTHIA ENLOE

“SER APENAS MULHER NÃO É SUFICIENTE” Feminista norte-americana, que esteve no Brasil em julho, busca entender a vida real das mulheres como parte central da compreensão política do mundo TEXTO SUZANA VELASCO

Em meados dos anos 1970, a norteamericana Cynthia Enloe foi pioneira ao levar os estudos feministas para a pesquisa em relações internacionais, um campo em que o papel da mulher era frequentemente deixado de lado, por sua suposta falta de protagonismo. Ao analisar como a vida de mulheres é afetada pela guerra e pelas relações econômicas globais, a teórica lançou perguntas que antes não faziam parte da análise acadêmica: como o trabalho globalizado e precário afeta as mulheres, como a militarização molda seu papel social e relações de gênero. Quatro décadas depois, Cynthia Enloe reafirma a importância do que chama de “curiosidade feminista”, ou seja, um olhar sobre o mundo a partir do lugar das mulheres – ainda que aparentemente à margem – na política internacional. “O patriarcado se moderniza”, afirma, em entrevista no Rio de Janeiro, onde esteve em julho para dar um curso organizado

pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica. Além das amigas feministas, um veterano da Guerra do Vietnã ajudou a despertar em Enloe a tal curiosidade feminista, ao contar que mulheres vietnamitas eram pagas para lavar roupas dos militares americanos. Ela já era professora na Universidade de Clark, em Massachusetts, nos Estados Unidos. Desde então, passou a “levar a sério”, como costuma dizer, a vida concreta das mulheres como parte central do entendimento político do mundo. Em livros como Bananas, beaches and bases, Maneuvers: the international politics of militarizing women’s lives e Nimo’s war, Emma’s war: making feminist sense of the Iraq War, a autora pensa as relações de poder por meio de mulheres de soldados e diplomatas, trabalhadoras de fábricas, enfermeiras, prostitutas. Aos 79 anos, Enloe continua enérgica e ávida por histórias. Em palestra na universidade

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DIVULGAÇÃO

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Entrevista

Trump é tão ingênuo e desinformado, que provavelmente pensa que está em condições iguais, mas Putin está no controle carioca, contou sobre como grupos de ativistas feministas conseguiram incluir um artigo sobre gênero no Tratado sobre Comércio de Armas da ONU, de 2013, inserindo brasileiras que reuniram dados sobre violência doméstica e mortes de mulheres por armas de fogo. Depois de muita resistência, incluiu-se no artigo 7 a exigência de que a exportação de armas leve em conta o risco de se “cometer ou facilitar atos de violência baseada em gênero ou atos de violência contra mulheres e crianças”. “Não há a menor chance de o tratado ser ratificado nos Estados Unidos hoje, assim como não havia no governo Obama”, afirma. Nesta entrevista, Enloe compara Vladimir Putin, na Rússia, e Donald Trump, nos Estados Unidos, cujos modelos patriarcais de governo, segundo ela, manifestam-se de diferentes formas. Enquanto Putin foi criado dentro do Estado Soviético e ambiciona recuperar sua grandiosidade territorial, Trump mostra ignorância sobre o funcionamento do Estado e vincula sua ideia de nação à xenofobia. É por isso que, afirma Enloe, movimentos feministas nos Estados Unidos têm se

sua representação política como não patriarcal, ou, pelo menos, de forma não caricatural. Nos Estados Unidos, Trump está perdendo credibilidade. Não tenho dados científicos, mas parece que cerca de 40% das pessoas que votaram em Trump não querem ser desiludidas, desapontadas, enquanto de 10% a 15% de seus eleitores estão mudando de lado. Eles não vão admitir para jornalistas ou CONTINENTE Assistimos à emergência de cientistas políticos, talvez nem admitam líderes políticos contemporâneos que parecem em casa, sobretudo se a mulher votou em estereótipos de dominação patriarcal, como Hillary Clinton, mas devem estar falando Donald Trump, Vladimir Putin, Recep Tayyip uns com os outros: “Entendi algo errado”. Erdogan, todos chefes de Estados altamente Há outros líderes para se falar, como militarizados. Eles representam um novo machismo na política mundial? Há algo novo em Temer, como Al-Sisi no Egito, mas Putin, Erdogan e Trump são os mais como o patriarcalismo molda seus governos? CYNTHIA ENLOE O que está acontecendo visíveis. Eles não são cópias-carbono uns dos outros. Putin, por exemplo, vem é em parte uma reação, uma tentativa da maquinaria de Estado, sua escola de algumas pessoas que investem foi a KGB (serviço secreto soviético). em modos patriarcais de organizar a Ele cresceu no Estado Soviético, e ali sociedade e fazer políticas de governo. Há uma reação dessas pessoas, incluindo aprendeu a sobreviver, a ser assertivo e se dirigir ao país de forma arrogante. Já mulheres, em reassegurar quase uma Trump não sabe nada sobre o Estado. Ele versão caricatural da masculinidade. teve que conhecer as leis de zoneamento Mas não é assim em todo lugar. Não é de Nova York e de outras cidades, na França nem no Canadá, onde o líder mas nunca teve que aprender sobre a mais patriarcal, Stephen Harper, perdeu maquinaria do Estado. as eleições e Justin Trudeau tentou forjar vinculado às lutas dos imigrantes. A pesquisadora ainda analisa a relação histórica do feminismo com diversas formas de nacionalismos e com a extrema-direita contemporânea, e ressalta a importância das histórias individuais para se pensar nos efeitos da guerra na vida das mulheres.

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REPRODUÇÃO

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E ncontro entre os presidentes Vladimir Putin e Donald Trump

observa como Trump se relaciona com o Pentágono, ele sabe tão pouco, que tudo que faz é respeitar os generais, com quem nunca teve relações antes. É um respeito superficial, porque ele gosta da versão de masculinidade de ombros largos. É muito ingênuo. Seu secretário de defesa (James Mattis), que foi um general, afirmou recentemente: “Vou deixar que os generais façam a política externa militar americana”. Você pode imaginar Putin fazendo isso? Nunca. Putin nunca confiaria num grupo de generais, a menos que pensasse que os controla. Então, mesmo o militarismo em torno do nacionalismo e da xenofobia não é o mesmo.

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Putin e Trump parecem ter um bromance (expressão inglesa surge nos anos 1990, a partir da união entre as palavras brother + romance, para indicar um relacionamento social íntimo entre homens heterossexuais, um gesto reativo à segunda onda do feminismo nos Estados Unidos), mas a relação não é igualitária. Trump é tão ingênuo e desinformado, que provavelmente pensa que está em condições iguais, mas Putin está no controle. E uma das diferenças é que Putin sabe como manipular a maquinaria de Estado e a opinião pública, enquanto Trump nunca trabalhou numa organização complexa, nem mesmo de uma burocracia corporativa. Ele foi sempre o chefe de um negócio de família, nem começou de baixo, como alguns empresários ricos fazem para formar seus filhos. Ele recebeu um milhão de dólares do pai, não teve que lutar pelo seu caminho. As masculinidades que operam aqui não são as mesmas. CONTINENTE Quais são as semelhanças entre eles? CYNTHIA ENLOE Ambos estão tentando projetar sua masculinidade vinculada

a uma versão contemporânea do nacionalismo, e isso eles têm em comum. Mas mesmo o nacionalismo americano em 2017 não é uma cópia do russo. O tipo de nacionalismo que alimentou o apoio para a conquista da Crimeia não é o equivalente do nacionalismo americano no Afeganistão. Há semelhanças, como o tratamento de minorias étnicas em ambos os países, e o nacionalismo russo usado para controle dos chechenos tem alguma ressonância nos Estados Unidos. Mas o medo de imigrantes não tem uma analogia imediata com os medos russos. A Rússia tem medo de não ser o grande poder, mas não por suas fronteiras abertas. A partir de tudo que Putin disse, sua aspiração parece ser recriar o estado soviético territorialmente. Ele é uma figura da era soviética, sente raiva, ressentimento e talvez mesmo vergonha de que muito do império com que cresceu foi perdido, o que chamamos de estados pós-soviéticos, particularmente os bálticos. Em nenhum dos casos eles controlam os militares de seus países, mas Trump é ignorante. Se você

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CONTINENTE Você sustenta que as nações são criadas de acordo com relações patriarcais. Vivemos um tempo de novos nacionalismos, de reforço da ideia de nação como um espaço fechado e seguro. Como uma visão feminista para o mundo pode responder a essas novas formas de nacionalismo? CYNTHIA ENLOE Feministas de todos os tipos provavelmente passaram mais tempo pensando no nacionalismo do que qualquer outro grupo de pesquisadores, jornalistas, professores, ativistas. Pelo menos, desde meados dos anos 1970, elas têm tentado pensar nisso, não só escrevendo, mas criando estratégias. Como se aliar a nacionalismos que tenham o mesmo objeto contra o qual se quer lutar? Você é uma feminista da Nicarágua nacionalista no movimento sandinista e quer se livrar de Somoza (ditador) porque você acha que ele é o clássico fantoche da república das bananas, por exemplo. As feministas da Nicarágua falaram muito sobre isso nos anos 1970 e 1980. Elas se dão conta de que o movimento sandinista, apesar de apoiar a luta contra a política imperialista, neocolonialista de Somoza, não era necessariamente antissexista. As feministas nicaraguenses, que eram ativas contra o Somoza e ao modo de vida americano, se dão conta de que o nacionalismo não necessariamente leva ao desmantelamento do modo sexista de organizar famílias, lugares de trabalho e vida social. Vemos isso de país a país, onde muitas feministas e não feministas lutaram juntas em


Entrevista 2

JAVIER SORIANO/AFP

F eministas espanholas em apoio às comunidades de imigrantes

movimentos nacionalistas. Aconteceu no Vietnã, na China, na Coreia do Sul, na Nicarágua. Cada uma delas escreveu e falou muito sobre o momento em que se conscientizaram: “Ah, não há nada inevitável num movimento nacionalista liderado por um homem gerar justiça para mulheres”. CONTINENTE Como é ser feminista nos Estados Unidos hoje? CYNTHIA ENLOE Conheço muitos tipos de feministas. Nenhuma delas apoia por um minuto sequer a atual versão do nacionalismo americano. Por isso, muitas se lançaram no apoio a movimentos de imigrantes, além do ativismo contra uma política externa militarista. Muitas mulheres apoiam esse nacionalismo xenofóbico, mas elas não são feministas. Na Rússia, é muito difícil ser feminista. Mas elas existem, como as Pussy Riots, e foram elas que se opuseram à campanha de Putin para anexar a Crimeia e foram particularmente veementes contra a campanha para avançar sobre a Ucrânia Oriental, e pagaram o preço. Ser uma feminista russa, nos dias de hoje, é se opor à versão de Putin do nacionalismo russo. CONTINENTE E também lutar pelos direitos LGBT? CYNTHIA ENLOE Sim, esses movimentos se veem juntos. Uma das coisas que feministas em muitos países descobriram é que o nacionalismo tem essa visão atrofiada e estreita do que é a nação e quem é bom para a nação. Mas há nacionalismos contemporâneos interessantes, como o escocês. Nos anos 1960, ele já tinha feministas, mas era uma luta dentro do movimento, com seus “bons garotos escoceses”. Na sua remobilização atual, desde o primeiro referendo, quer dizer, pelos últimos 10 a 15 anos, o feminismo está dentro do SNP (Partido Nacional Escocês), que luta por direitos reprodutivos e LGBT, contra o abuso sexual, pela voz de mulheres no partido. Não é de se surpreender que o SNP seja liderado por uma mulher, e uma mulher feminista (Nicola Sturgeon). Ser apenas mulher não é suficiente.

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CONTINENTE De fato, muitas mulheres são hoje lideranças de extrema-direita, como Marine Le Pen, da Frente Nacional, na França, e Frauke Petry, do partido Alternativa para a Alemanha. CYNTHIA ENLOE O patriarcado, seja ele militarista, nacionalista ou capitalista – ou comumente os três juntos – não conseguiria se sustentar por seis meses, se não houvesse tantas mulheres que pensassem que ele é bom para sua respeitabilidade, sua fé religiosa, sua segurança no lugar de trabalho, seu casamento. O patriarcado em todas as suas formas, e ele tem muitas, porque é adaptável. O patriarcado de hoje não se parece ao do século XIX, mas ele ainda existe. O patriarcado se moderniza. Às vezes, nos movimentos nacionalistas xenofóbicos, os homens que frequentemente tomam as decisões de liderança escolhem uma mulher deliberadamente, porque pensam que elas representam sua noção da nação, mesmo que, na verdade, elas sejam políticas de carreira e não se pareçam à figura doméstica que eles fantasiam.

CYNTHIA ENLOE Como mulheres mantêm sua alma feminista quando entram para a vida pública oficial, em que a atmosfera é tão masculinizada? Muitas conseguem, e normalmente porque elas se mantêm pessoalmente ligadas aos movimentos de mulheres. Elas não se tornam apenas um membro do partido. Margareth Thatcher, por exemplo, chegou ao poder quando o feminismo britânico estava em seu auge, vibrante, nos anos 1980, e nunca foi tocada por ele. Seus melhores amigos eram outros homens conservadores do partido. Ela também excluiu muitos homens, porque tinha ressentimento dos que tentassem mostrar suas credenciais aristocráticas, já que era a filha do dono de uma mercearia. Os homens de quem ela se cercou foram aqueles que também subiram de vida, da classe média. Mas as mulheres que mantiveram sua alma feminista são aquelas que não se deslumbram, são as que mantêm contato regular com as ativistas, às vezes de forma desconfortável, de pressão.

CONTINENTE Mulheres têm conseguido novas formas de fazer política?

CONTINENTE Imagino que tenha havido desconforto com ativistas no

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Conheço muitos tipos de feministas. Nenhuma delas apoia por um minuto sequer a atual versão do nacionalismo

começo das negociações do Tratado sobre Comércio de Armas da ONU. CYNTHIA ENLOE Loucura, pôr um critério de gênero num tratado internacional de comércio de armas! Às vezes, você tem que ser louca, mas não pode ser louca sozinha. CONTINENTE Em seu livro Nimo’s war, Emma’s war: making feminist sense of the Iraq War (A guerra de Nimo, a guerra de Emma: compreensão feminista da Guerra do Iraque, em livre tradução, sem edição no Brasil), há histórias de vida de quatro iraquianas e quatro americanas completamente diferentes para pensar sobre os efeitos da Guerra do Iraque. Por que você decidiu unir mulheres das duas nacionalidades? CYNTHIA ENLOE As mulheres nunca estão apenas num lado da guerra. O que você aprenderia sobre a operação militar no Haiti, se quatro haitianas falassem sobre como vivenciaram as operações de paz brasileiras, além de quatro mulheres brasileiras que, de uma forma ou de outra, estão ligadas aos militares brasileiros enviados para o Haiti, seja porque elas trabalham para eles, ou porque são suas mulheres ou filhas?

CONTINENTE Você afirma que “o pessoal é político”. Neste caso, por que olhar para histórias individuais é importante para entender decisões de guerra e suas consequências? CYNTHIA ENLOE Porque a história de cada mulher é muito complicada. A mulher que inspirou o livro, Nimo, era dona de um salão de beleza. Tantas mulheres iraquianas que tinham empregos e os perderam nos anos 1990, e Nimo ainda tinha um negócio, quando os Estados Unidos invadiram o Iraque em 2003. Como ela conseguia? Isso me fez pensar em empregos de mulheres em tempos de guerra. Como elas sustentam a si e suas famílias? Nimo me inspira a perguntar qual a história do envolvimento de mulheres iraquianas no trabalho pago – não apenas o trabalho doméstico, não pago – e o que acontece desde os anos 1950 até os primeiros sete anos da guerra americana no Iraque. Eu nunca tinha pensado nisso. Não se ouvem histórias de mulheres que trabalham durante a guerra, a única de que ouvimos falar é Rosie the Riveter (Rosie, a Rebitadeira), operária de fábrica durante a II Guerra Mundial. Ela é chamada assim porque trabalhava com

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uma rebitadeira na produção de tanques e navios. Ela era a propaganda do governo americano para encorajar mulheres a assumir trabalhos na fábrica e os homens poderem se unir ao Exército. Agora temos ouvido mais sobre mulheres que trabalharam em fábricas de munições no Reino Unido, na I Guerra Mundial. O termo britânico popular para elas era canário, porque elas ficavam amarelas por causa dos gases tóxicos que inspiravam. O nome é fofo, mas elas estavam sendo envenenadas fazendo esse trabalho perigoso nas fábricas. CONTINENTE Como você vê a ideia de libertação das mulheres não ocidentais da opressão, frequentemente usada como justificativa para intervenções militares no Oriente Médio? CYNTHIA ENLOE A proteção de mulheres pode ser usada por qualquer governo militarizado em qualquer lugar, no Ocidente, na América Latina, no Oriente Médio, na Ásia, na Europa. Protegêlas ou civilizá-las são dois argumentos que muitas mulheres acham atraentes, mas geralmente são utilizados por governos de homens, para que se apoiem operações militares de conquista ou expansão. O primeiro argumento é “temos que fazer isso para proteger nossas mulheres”; o segundo é “temos que fazer isso para proteger as mulheres deles”, e isso geralmente em nome de civilizá-las, dando-lhes as vantagens da liberdade que não têm em casa. A maior parte das feministas que trabalham com militarização chama a atenção para isso. Depois do 11 de Setembro, um dos grupos mais dramáticos foi de viúvas de New Jersey, cujos maridos trabalhavam em finanças e foram mortos naquele dia. Semanas depois, elas vieram a público como viúvas e disseram: “Não entrem em guerra em nosso nome, não pensem que vão invadir o Afeganistão porque sentem muito por nós e pela nossa perda”. Nos anos 1990, as Mulheres de Negro (grupo antimilitarista) também falaram isso na Sérvia: “Não em nosso nome”, “não usem a alegação de que estão cuidando de nós para entrar em guerra”. O militarismo nunca é bom para mulheres a longo prazo, mesmo que, no curto prazo, algumas se sintam patriotas e valorizadas. SUZANA VELASCO, jornalista, mestre em Relações Internacionais pela PUC–Rio.


Curtas JOSÉ LUIZ PEDERNEIRAS/DIVULGAÇÃO

Curtas

DANÇA

Grupo Corpo faz homenagem a Exu, no espetáculo Gira A origem do termo gira está nos ritos do candomblé, em que os movimentos ritualísticos são apresentados em círculos. Na umbanda, uma das mais cultuadas religiões nascidas no país, patrimônio imaterial do Rio de Janeiro, as giras são manifestações às entidades nos terreiros. Durante as rodas, oferendas, danças e passes se intercalam para compor o ritual, que, na maioria das casas, dirige-se em primeiro lugar ao orixá Exu – responsável pela dinâmica e pela ligação entre o mundo espiritual (Orum) e o mundo terreno (Ayié), segundo a cosmologia das religiões de matriz afro-brasileiras. A potência de Exu foi a inspiração que a companhia mineira de dança Corpo e o trio paulistano Metá Metá buscou para criar o espetáculo Gira. Tudo começou com um convite de Paulo Pederneiras, diretor artístico e cenógrafo do Corpo, ao trio Thiago

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França, Juçara Marçal e Kiko Dinucci, para que sugerissem uma temática e criassem a trilha sonora. “Logo pensamos no orixá Exu, pois trata-se de uma divindade totalmente ligada ao movimento, ao corpo, e temos um encantamento especial por essa divindade. Sempre que possível, gostamos de exaltar as características dele, que foram sendo demonizadas no Brasil, sobretudo por causa do sincretismo religioso. Seu símbolo é um falo, ele é uma força que não se domina. Talvez, por isso, ocorreu essa demonização”, explica Juçara, voz emblemática do Metá Metá. Com toda autonomia de criação para as músicas, o único briefing foi que precisava ter pulso, já que os movimentos marcados

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são características da linguagem do grupo mineiro em vários outros espetáculos, a exemplo de Parabelo (1997), Nazareth (1993) e Dança sinfônica (2015). O resto ficou ao critério dos três. “A gente dá toda liberdade e gosta muito dessa ideia de deixar que os outros nos influenciem. A gente acredita que isso é fundamental”, afirmou o coreógrafo do grupo, Rodrigo Pederneiras, à Continente. Com tema definido, Rodrigo comenta a necessidade de leituras e pesquisas de campo, para só assim partir para a criação coreográfica. Como já faz parte das obras do Corpo, o que se vê em Gira não se resume a tentativas de imitação dos movimentos ritualísticos, mas identidade. “Nunca


EXPOSIÇÃO

A resistência pela arte durante a II Guerra Mundial

tivemos a pretensão de reproduzir um terreiro. Tinha algumas coisas definidas na cabeça, como não usar dança afro. Então, a ideia era fazer um trabalho de dança contemporânea, mas baseada em certas atitudes e movimentos que a gente foi buscar na umbanda. Queríamos um espetáculo genuinamente em homenagem a Exu”, afirma Rodrigo, que declara estar fascinado pela umbanda e pelas pessoas que conheceu durante todo percurso criativo, tanto que agora se tornou frequentador da Casa do Divino Espírito Santo, em Belo Horizonte. Toda essa imersão da equipe acabou repercutindo na linguagem da companhia, pois, segundo Rodrigo, Gira o fez retomar o uso dos braços que

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E spetábulo Gira estreia este mês em São Paulo, cumprindo temporada em outras cidades

há alguns anos tinha sido minimizado. “Nesse espetáculo, eu voltei com isso de uma forma muito violenta.” Além disso, o figurino, assinado por Freusa Zechmeister, colabora para que os bailarinos tenham os braços livres. Com apresentações agendadas em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre, o grupo comenta que pretende vir ao Recife. “Não temos nada marcado, temos que ver só os custos para levar. Mas seria maravilhoso fazer no Santa Isabel. Adoro aquele teatro!”, diz Rodrigo Pederneiras. ERIKA MUNIZ

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Em algum momento, no ano de 1974, Monika Stranska Zolko e sua filha, Karen Zolko, foram visitar o Museu Judaico de Praga. Durante a visita, a mãe reconheceu – numa pintura – uma assinatura bastante familiar. As letras revelavam o nome de Erika Stranska, sua irmã, que fora raptada pelos nazistas, aos 12 anos, durante a invasão do Terceiro Reich à Tchecoslováquia. Na tentativa de presentear sua mãe, Karen enviou um e-mail para o curador do museu, mas descobriu que não somente existia um desenho criado pela tia, mas 30 deles. Com ajuda de sua filha Adriana, descobriram Hannelore Brenner, escritora alemã, autora de As meninas do quarto 28, que relatava o cotidiano de 50 prisioneiras em Theresienstadt, um gueto para artistas, intelectuais, cientistas e outros judeus, o mesmo lugar para onde Erika Stranska fora levada dois anos antes de morrer em Auschwitz. A partir dessa descoberta, e da união entre a família Zolko e a autora, surgiu a exposição de mesmo nome, como forma de ilustrar as páginas impressas. A exposição está em cartaz no Recife, na Galeria Janete Costa, no Parque Dona Lindu, até 29 de outubro, com entrada gratuita. “A intenção é fazer os visitantes terem a sensação de estarem no mesmo local que elas, de se colocarem na mesma situação. Conscientizar que tivemos o holocausto, e também a ideia de até onde um ditador psicopata pode chegar”, explica Karen Zolko, também do comitê curatorial. A exposição já passou por diversos países, inclusive Israel, porém, foi em terras brasileiras que a curadoria encontrou mais espaço para adicionar outros elementos visuais e narrativos à mostra. Segundo Dody Chansky, trazer As meninas do quarto 28 para o Recife foi um desafio necessário e simbólico. Afinal, foi aqui que se estabeleceu a primeira sinagoga das Américas, a Sinagoga Kahal Zur Israel,


GISELLI CARVALHO/DIVULGAÇÃO

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hoje um museu na Rua do Bom Jesus, no centro histórico da cidade. “Na Alemanha, o nazismo ainda é muito ensinado na escola, por isso, lá a exposição foi mais íntima. Aqui, no Brasil, ainda se nota uma carência desse ensino, por isso adicionamos elementos cenográficos para ajudar na compreensão do que foi aquela época”, explica Dodi. Um dos elementos que usaram foram desenhos mostrando a saída de judeus para o “temido Leste”, além de uma reconstrução do minúsculo quarto no qual as meninas ficavam e uma reprodução da mala onde os desenhos ficaram guardados e escondidos. Além dos próprios elementos cenográficos, os desenhos das crianças também estão disponíveis para apreciação. O trabalho da curadoria de selecionar as obras revela uma estrutura narrativa de aperfeiçoamento de técnica, como em paralelo à própria narrativa histórica. Os primeiros são simples, de traços ainda imaturos, feitos com grafite; os subsequentes, no entanto, já são pinturas ou aquarelas bem-

trabalhadas, algumas com técnicas difíceis de serem reproduzidas, como o reflexo do sol num rio. As meninas daquele cômodo, por sua vez, na tentativa de ajudar umas às outras, criaram uma sociedade secreta, chamada Ma’gal, que em hebraico significa círculo, perfeição. O estandarte, com um pedaço do original, também se encontra em exposição na galeria. Seu lema: “Você confia em mim, eu confio em você. Você sabe o que eu sei, não importa o que acontecer, você não me trairá, e eu não trairei você”. Na verdade, como Theresienstadt era um gueto cheio de artistas, as meninas do quarto 28, no alojamento L410, receberam aulas de desenho com Friedl Dicker-Brandeis, que conseguiu levar para a prisão alguns materiais na sua mala. O trabalho de Friedl foi considerado uma das bases para a arte-terapia. Segundo o que se sabe, as aulas de Friedl – aluna e membro da Bauhaus, escola fechada e perseguida pelos nazistas por ser considerada de esquerda e “antigermânica” –, não tinham o intuito de reproduzir os horrores que viviam naquela cidade-

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ostra está em cartaz M na Galeria Janete Costa, no Parque D. Lindu, até 29 de outubro

prisão. O que aprendeu na escola, reproduziu no gueto, as mesmas paletas de cores, as técnicas, tudo remetia à vanguardista Bauhaus. “Quando um espírito encontra sua própria força e se afirma sem medo do ridículo, então uma nova primavera de criatividade irrompe”, escreveu a professora em 1943. Assim, recitava histórias e, no final de cada uma, dizia às alunas que precisavam de uma capa e, assim, as pinturas e desenhos surgiam. Pensar em holocausto é pensar em subserviência ao nefasto, somente possível porque seres humanos permitiram que acontecesse, como sugere uma faixa no centro da exposição. Em tempos em que o antissemitismo cresce, com “direito” a passeatas de neonazistas em Charlottesville, nos EUA, olhar para a história é se ver no espelho – como nos espelhos espalhados pela exposição –, questionando: e se fosse com você? EDUARDO MONTENEGRO


RENATO FILHO/DIVULGAÇÃO

SHOW

Cancioneiro nacional de matriz romântica em cena Quase 20 anos depois de sua última apresentação em Pernambuco com o sucesso A máquina (2000), o dramaturgo e diretor João Falcão retorna ao Recife, sua cidade natal, em parceria com a cantora e atriz Isadora Melo. O encontro entre gerações artísticas distintas deu origem ao espetáculo musical Dorinha, meu amor, com repertório de canções que perpassam de Noel Rosa a nomes da música contemporânea, como o pernambucano Juliano Holanda – que subirá aos palcos junto à Isadora durante a temporada de dois meses no Teatro Arraial Ariano Suassuna. A temática do amor no cancioneiro brasileiro é a premissa do espetáculo, que tem estreia marcada para o dia 7 de setembro, às 20h. Dorinha, meu amor, canção composta por Mário Reis – contemporâneo de Ary Barroso, conhecido como “bacharel do samba” – no final dos anos 1920, não é apenas parte do repertório, mas é um tipo de persona encarnada por Isadora para as interpretações do espetáculo – que é show, mas tem forte influência teatral. “Dorinha é muitas pessoas, mas não é Isadora. É um personagem criado a partir dos caminhos de uma procura por outras vozes, outros corpos”, explica a cantora e atriz de 27 anos, que lançou seu primeiro disco solo, Vestuário, em 2016. “Eu e Isadora tivemos essa ideia a partir de uma oficina que ministrei no Recife no ano passado, que era sobre cantar músicas brasileiras em situação de personagem. É um espetáculo baseado no amor em diversas situações, esse ‘estado’ de apaixonamento por outra pessoa. São pequenas histórias e situações, baseadas nas canções do repertório”, conta o diretor, que já havia trabalhado com a artista em Gabriela, o musical e na minissérie global Amorteamo. Com o repertório ainda em aberto, o critério de escolha se dá a partir de composições brasileiras nos últimos 100 anos. Sobre o processo de criação, ainda em andamento, Isadora conta: “O amor

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está muito presente em todas as fases da canção brasileira, em vários pontos de vista, e ainda é algo muito presente na música contemporânea. Nesse sentido, Dorinha é um musical sobre o amor em suas várias formas na canção. Até agora, tem sido um grande painel sobre o que pode ser o amor”. Para a realização de Dorinha, foi lançada uma campanha de financiamento coletivo na internet, ainda disponível, que conta com a participação de mais de 50 colaboradores. A montagem é uma produção pequena e colaborativa, com Juliano Holanda e Rafael Marques – diretores musicais do espetáculo –, bastante presentes durante toda sua concepção, que trará um convidado

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o longo da temporada A no Teatro Arraial, cantora Isadora Melo receberá no palco vários convidados

especial diferente a cada apresentação. Durante a temporada entre os meses de setembro e outubro – sempre às quintas-feiras –, vão subir no palco do Teatro Arraial oito músicos e intérpretes convidados: Zé Manoel, Ylana Queiroga, Rafael Cavalcanti, Isaar, Thiago Martins, Almério, Flaira Ferro e Jr. Black. “É uma ação entre artistas e amigos, pessoas que se admiram. É algo pequeno, mais intimista, que envolve muita gente, desde esse processo de arrecadação de recursos”, explica o diretor. SOFIA LUCCHESI


GUI MOHALLEM

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Portfรณlio C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 7 | 1 7


FOTOS: GUI MOHALLEM

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Portfólio

1 a 4 Fotos sem título da

série Welcome home (2012), pigmento mineral sobre papel algodão, 110 x 160 cm

Gui Mohallem

NA DIREÇÃO DO MEDO TEXTO Sofia Lucchesi

Há, no medo, uma potência ambivalente. Por vezes, ao nos depararmos com o desconhecido, passamos por um conflito entre forças: repulsão e atração. O instinto é fechar os olhos ou fugir diante daquilo ou do outro que é diferente de nós, mas existe também uma outra pulsão, uma vontade latente, um tipo de força magnética que impossibilita qualquer tentativa de desvio do olhar. O medo parece ser o desejo que impulsiona a libido do fotógrafo e artista visual Gui Mohallem. Seja numa festividade pagã em uma floresta nos Estados Unidos, seja no Líbano tumultuado devido à guerra com a Síria, ele busca, quase sempre, fugir das suas zonas de conforto, caminhando

“na direção do medo”, como ele próprio define. Seu trabalho “não é fotográfico, é performático”, diz. Sente as experiências e faz uso dos registros fotográficos como um recurso para entender melhor tudo o que foi vivido – e o que se vive –, ressignificando memórias, o que demanda uma temporalidade própria (chegou a passar cinco anos trabalhando num mesmo projeto). Nem sempre faz retratos, mas o eixo fundamental de sua obra é o olhar para o outro, o diferente que também é semelhante. O algo de “fora” que habita em nós. Mohallem nasceu no ano de 1979, em Itajubá, Minas Gerais, filho de libaneses – e isso diz muito mais sobre ele. Decidiu estudar Cinema

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na USP, em São Paulo, depois de um intercâmbio na Austrália, onde produziu um documentário, ainda com pouquíssimo conhecimento cinematográfico. Na verdade, ele cresceu sem muitas referências artísticas: “lá em casa nunca teve nada na parede. Morávamos num vale; então, só tinha sinal de um ou dois canais de TV aberta. A referência imagética que eu tinha era muito pobre”, conta. “Em um certo momento da faculdade, fui passar um tempo na França. Comecei a levar meu portfólio a alguns lugares por lá. Uma curadora da Maison Européenne de la Photographie disse que meu trabalho parecia com foto de viagem, como outras


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Portfólio pessoas disseram. A diferença é que ela explicou que me faltava referência e me deu o calendário do Mês da Fotografia. Sempre tive uma sede muito grande, então, quando entendi que a falta de referência era um problema, fui lá resolver”, disse, em tom bem-humorado, em entrevista à Continente. Foi convidado a participar de uma residência artística por pessoas que o conheciam através do site Flickr – trabalhos que continuam disponíveis na internet. Sua primeira série fotográfica exposta foi Ensaio para a loucura. “Loucura tem a ver com essa vontade de conectar, daquilo que compartilhamos… Ao mesmo tempo, tive problemas com esse título. Como tenho certeza que o que eu chamo de angústia é o que você chama de angústia? Como sei que o que estou vivendo é compartilhado com outra pessoa? Estamos infinitamente isolados.” O projeto era mudado a cada vez que era reexposto. Na segunda mostra, Mohallem fez uma convocatória aberta aos que se disponibilizassem a contar uma história íntima apenas para ele. Os encontros eram realizados em lugares escolhidos pelos inscritos, e dessa experimentação surgiram as fotos da série. São figuras em movimento, borradas, algumas muito distantes da fisionomia humana, que chegam como imagens perturbadoras a quem vê, mas apenas o artista e os participantes sabem realmente o que se passou ali. Welcome home – em português, “bemvindo a casa” ou “ao lar” – é resultado dos cinco anos em que Mohallem esteve numa fazenda nos Estados Unidos, participando da celebração pagã Beltane, festividade que marca o início do verão. As imagens têm certo ar de mistério, um silêncio que traz o fotógrafo não como mero observador, mas como uma presença subjetiva. É um trabalho de corpo, para o qual os sentidos precisam estar aguçados – olhos, ouvidos, pele, boca e nariz atentos.

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5 Herança #3, objeto. Parafina, pigmento e emulsão fotográfica 12 x18 x7 cm (2013)

6 Herança #1, objeto. Parafina, pigmento e emulsão fotográfica 12 x18 x7 cm (2013)

7-8 Fotos sem título da série Tcharafna (2014), pigmento mineral sobre papel bambu, 48 x 72 cm e 80 x 140 cm

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Portfólio Se a fotografia é um recurso para entender – “digerir” – o que se viveu, o processo analógico de Welcome home foi importante para permitir ao fotógrafo um novo olhar sobre os registros. Com as capturas em superexposição à luz, as fotografias perdem a referência da realidade – revelam-se em apenas duas cores e têm traços menos definidos. O resultado se dá por conta de uma colorização posterior feita manualmente por Mohallem, reconstruindo as memórias em sua temporalidade analógica, com as imagens ganhando novos significados a partir desse toque, que é de um sentimento pós-experiencial, com a euforia do instante já apaziguada. A superexposição não foi uma escolha premeditada de como o resultado final viria a se tornar, aconteceu naturalmente para que a fotografia interferisse o mínimo possível na experiência vivenciada. O artista não regulava a luz quando fazia os registros e usava a câmera em autofoco. Relacionar-se, é delicado. O contato com o outro leva a um processo de perda do controle, inaugurando um campo de imprevisibilidade. “Amar alguém é amar também suas linhas de fuga”, diz o filósofo chilenobrasileiro Vladimir Safatle. O processo

Exposição Terra,

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curadoria Gabriel Bogossian, Galeria Emma Thomas, São Paulo (SP), 2015

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de reconstrução de si a partir do outro envolve boa parte do trabalho de Mohallem, que se transforma a cada realização de suas trajetórias artística e pessoal – difíceis de serem dissociadas. “Nós temos muito esse ímpeto de ‘penetrar’ o outro, que é fazer as pessoas mudarem de ideia, no sentido de ‘converter’ o outro para o nosso pensamento, ou fazer o outro comprar, ou consumir de algum jeito, admirar, ou seguir, ou dar like… Eu quero ser atingido. Prefiro estar vulnerável. Vulnerabilidade é uma escolha”, diz. “Tento estabelecer uma relação sujeito-sujeito, e não sujeito-objeto. Tenho pavor à postura da fotografia que coloca o fotógrafo ‘dono da produção da imagem’, que olha pra você e lhe julga segundo os valores dele, lhe ‘achata’ e lhe trata como ‘objeto’. Ninguém deveria ser objeto. Todos os encontros são encontros de dois desejos. Os nossos desejos precisam estar em acordo.” Foi na faculdade que conheceu o trabalho de Claudia Andujar, quando um professor lhe mostrou o livro Yanomami. A relação profunda que a fotógrafa suíço-brasileira desenvolveu com os índios foi inspiradora para o artista. “Lembro o quanto que eu fiquei abalado com o livro. Pedi pra ficar no

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S em título, da série Terra. Pigmento mineral sobre papel de bambu, 80 x 120 cm, 2015

intervalo sozinho na sala com o livro, fiquei emocionado, porque entendi que essa pessoa tinha uma evolução espiritual tal, de entrega tal, que conseguia fazer aquilo. É um trabalho muito honesto. Aquilo virou minha referência, mesmo tendo certeza de que nunca vou conseguir chegar nesse mesmo lugar”, conta.

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A experiência de Welcome home levou Mohallem para o passo mais difícil: depois de achar um lugar para chamar de “casa” em um país estrangeiro, decide ir conhecer suas origens no Líbano, país que seu pai deixou há mais de 60 anos. Foram duas viagens, uma em 2012 e outra em 2013, período de violência acirrada por conta dos conflitos envolvendo a guerra civil síria e a rivalidade entre xiitas e sunitas. Tcharafna significa algo como “prazer em conhecê-lo”, não exatamente em tradução literal. As fotos são uma junção de “horror e poesia”: lugares inóspitos, passagens bloqueadas, frutos, o sangue amargamente “doce”. Um vídeo – usado na exposição, que também virou fotolivro e está disponível no site do artista – mostra uma conversa entre ele e uma tia que conheceu na viagem.


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Em Tcharafna também se inicia uma pesquisa do artista com parafina – que resulta numa série de objetos vermelhos, “ensanguentados”, com fotos encontradas nos álbuns da família no Líbano. Essa pesquisa se desdobra no seu trabalho subsequente: Terra. Com as questões de Tcharafna ainda reverberando, costurou uma narrativa mais livre, sem um deslocamento datado. “Eu tenho uma questão que é entender quais são os custos de migrar e quais são os custos de ficar na guerra civil. E voltei do Líbano sem entender qual dos dois é pior”, diz o artista. Terra mira para um lugar diferente, um deslocamento simbólico para um território flutuante de novas experimentações, mas ainda é uma tentativa de entender os vazios que vão sendo deixados – o que faz ponte com a questão migratória. No meio da galeria, um bloco de uma tonelada construído com a terra da própria cidade do artista e parafina remete à sensação de vazio que ficou. Sobre Terra, a crítica colombiana Julia Buenaventura escreveu: “Tratase de uma terra ambígua. As fotos da exposição ou vídeos, como Paisagem.2 – que, através de várias camadas de imagens, mostra o movimento das sombras das árvores e, com ele, o vento que as move – são imagens cuja localização geográfica não é identificável. Na frente deles, o espectador está observando qualquer lugar do mundo. Há uma perda de terra, de identidade e origem que Mohallem mostra através de sua história, mas revela uma situação típica do indivíduo contemporâneo”. Atualmente, Gui Mohallem não está trabalhando em nenhum projeto artístico. Dá palestras e oficinas em várias cidades do país – motivo de sua última visita ao Recife, em que a entrevista para a Continente foi realizada –, mas suas energias têm se concentrado nas ações enquanto ativista pelos direitos humanos, especialmente os direitos LGBT. “Eu não sei como meu trabalho como ativista pode chegar dentro do universo da arte, mas, se eu realmente quero ir para o ‘outro’, isso faz muito sentido.”

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SOFIA LUCCHESI, estagiária da Continente e fotógrafa.

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CULTURA POPULAR Assentada no presente, e não no passado, como muito se acredita, a criação de matriz tradicional se mantém como resistência de uma classe subalterna que, nas suas dinâmicas, alia com precisão vida e arte TEXTO LUCIANA VERAS FOTOS HÉLIA SCHEPPA

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PETROLINA, SERTÃO DO SÃO FRANCISCO

“Essa música vem da onde?”, irrompe a pergunta numa casa na ilha que fica no meio do Rio São Francisco, em Petrolina. A dona da residência se chama Amélia Oliveira da Silva, dona Amélia para a maioria dos cerca de mil habitantes daquele pedaço de terra de cinco quilômetros quadrados, uma divisa fluvial entre Pernambuco e Bahia. É ela mesma quem se encarrega de responder – “Daqui mesmo, não vem de lugar nenhum, não, filha” – com um sorriso no rosto e a vitalidade no olhar que dribla seus 81 anos. Amélia, “a pretinha da Ilha do Massangano”, como se descreve, é uma das líderes do samba de véio. E o samba de véio é o símbolo massangano e petrolinense por excelência. A Ilha do Massangano parece obedecer a uma outra temporalidade: suas ruas são de barro, as pessoas circulam a pé, só há atendimento médico uma vez por mês e a chegada ao local se dá por meio de uma travessia de balsa curta e barata – R$ 1,50 por cinco minutos de trajeto –, que funciona entre 7h e 19h. Lá, ainda se cultivam frutas e hortaliças para consumo próprio e para venda nas feiras de Petrolina ou de Juazeiro. As crianças brincam no meio da rua e, atentas numa tarde ensolarada de julho, cercam Amélia, Chiquinha e Félix Ubaldo, Francisca Claro, Corina de Jesus, Eva Oliveira, Creusa Nogueira, Ailton Oliveira e Derivaldo do Nascimento, quando estes começam a dançar, tocar e cantar. Ter crianças ao redor daquele rito musical é um sinal de atualização, conforme a história que todos narram. Há mais de 100 anos, o samba começou a ser dançado na ilha – só “samba”, sem o véio, que seria acrescido já nos anos 2000, em uma esperta jogada de marketing.“A gente não acompanhava o samba naquela época. Além de ser tarde, criança não podia acompanhar. Na hora em que os adultos saíam, as crianças ficavam em casa. Mas meu avô me ensinava a sambar”, conta Francisca Claro, Chica, para todos. Um dos precursores do folguedo foi Manoel de Oliveira, pai de Amélia e barqueiro que ganhava a vida transportando mercadorias entre as cidades ribeirinhas. Certa feita, aportou no Massangano e por

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lá ficou. Com ele, veio a brincadeira que durava o mês de janeiro inteiro. “O samba começava no dia 1º de janeiro e ia de casa em casa. Dia sim, dia não. Às vezes, começava até no dia 31 de dezembro, para amanhecer no dia 1º. Mas, como não tinha energia e não tinha nada, quando o sol se punha, já se pensava que era meia-noite”, lembra Chiquinha Ubaldo. “Era a festividade do Dia de Reis. O batuque, a gente tocava com o tamborete, que é feito com couro de boi ou de bode. Quando esfria, tem que botar no fogo para esquentar. E com

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ele a gente sai para zoar. A brincadeira é sempre de noite. A turma sai e brinca o samba pela rua, indo de casa em casa. Se eu chego na sua casa, canto o Reis lá fora e, quando acabo de cantar, se você quiser que eu fique, diz ‘pode entrar’; se não quiser, diz assim ‘só quero o Reis’ e o samba vai para a outra casa”, detalha dona Amélia. A cantiga de Reis abre o único registro fonográfico conhecido dessa manifestação sertaneja, um CD que poucos daqueles brincantes têm para ouvir, dar ou vender. Seus versos


Há mais de um século

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começou-se a dançar o samba de véio na Ilha do Massangano

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F élix Ubaldo e Amélia Oliveira integram o grupo de brincantes de Petrolina

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dizem: “A partir do Oriente, a chegada dos três reis (…), o primeiro trouxe ouro, o segundo trouxe incenso, o terceiro trouxe mirra (…) quem quiser saber quem é, abra a porta e saia fora”. Pois em janeiro – todos contam – as noites na Ilha do Massangano se preenchem com o ritual de ancestralidade: a partir da formação rítmica composta por tamborete (um banco de madeira que ganha outro sentido), timbal, pandeiro, triângulo e cavaquinho, os cânticos e danças se sucedem, com destaque para a “imbigada”, o passo em que as barrigas se tocam no umbigo, e para o sacolejo de uma das dançarinas com uma garrafa na cabeça. No resto do ano, para aquelas pessoas, em sua maioria na faixa etária do que se convencionou chamar de terceira idade, a reunião para o congraçamento que ora denominam “samba” e “reis”, ora “reisado” ou “batuque”, é esporádica, mas sempre bem-vinda. Na Ilha do Massangano, é um convescote noturno, “pois todo mundo trabalha e só chega no fim da tarde”, diz Eva, sobrinha de Amélia e uma das dançarinas que cadencia com precisão o trupé, ou as passadas dos pés descalços na areia, com o toque dos instrumentos. Fora dela, podem subir até em palcos, desde que Raimunda Sol Posto, moradora local, exvereadora de Petrolina e responsável por cunhar o nome samba de véio, ou outro produtor cultural, tenha a ideia de leválos para se apresentar em outras cidades. Já foram ao Recife, Garanhuns, Floresta, Paulo Afonso e Salvador. Querem ir ao Rio de Janeiro, mas dona Amélia tem medo de avião. Entre os integrantes, há quem se queixe de dores nos joelhos, há quem acredite que o samba morrerá logo, há quem defenda que a tradição nunca se extinguirá e há quem veja naquilo que alcançam, ao se juntar, o legado concreto dos antepassados negros e indígenas. “Antes, tudo aqui era mata, não tinha essa vila. Aqui na ilha viviam os quilombolas refugiados, os índios. A mãe do meu avó era índia brava, foi pegada de cachorro na mata. Nós somos de negro, de índio, de tudo”, sintetiza Chica Claro. Para todos os integrantes do samba de véio, manter acesa aquela liturgia e assim legitimar o ato de sair de casa para cantar e dançar não é um costume passível de questionamentos ou revisões. Não se


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trata de um capricho, tampouco de uma necessidade financeira – muito embora apreciem, claro, quaisquer retornos obtidos, sejam monetários, sejam de reconhecimento para além das vias de barro da ilha. Participar do samba é um chamado ao qual não se opõem. Nunca vão se opor, na verdade. Não é o que fazem, e, sim, o que eles são. Estar no samba transcende a compreensão de quem olha para as tradições da cultura popular como mera repetição ou algo fadado a desaparecer. Naquela tarde de um sábado, desafiando a própria convenção natural de que só concretizam a brincadeira depois que o sol se põe, colocaram suas vestes coloridas, percorreram quilômetros, alguns a pé, e vieram

mostrar à Continente o que, afinal, era essa música, esse brinquedo, essa explosão. Ao chegar na garupa de uma moto, celebrada pelos seus pares assim que a viram saltar, Corina de Jesus resumiu: “Foi o menino que estava lá na venda que me avisou. Danço há muito tempo, nem sei quando foi que comecei. Só sei que, se hoje era pra sambar, eu tinha que vir”.

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Em Pernambuco, no ano de 2017, a cultura popular se posiciona em fricção – ora de embate, ora de cumplicidade – com a contemporaneidade. Não está, contudo, em fogo morto, estanque ou desmobilizada, e prossegue como uma declaração genuína sobre a arte

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que dela deriva e, em especial, sobre aqueles que se dedicam a cultivá-la. “Essas manifestações se reproduzem numa fronteira nítida entre vida e arte. A cultura popular só se mantém de longa duração, de profundidade temporal, porque ela diz algo sobre quem são essas pessoas. Fala delas, diz como são suas vidas, expressa esses valores, um tipo de moralidade e um lugar no mundo. É um elemento de identidade: uma maneira de dizer quem eles são em contraposição a quem são os outros. E só se mantém no tempo porque constantemente se renova por quem a faz e é compreendida por quem decifra seus códigos”, pontua a antropóloga Lady Selma Albernaz, professora do Departamento de Antropologia e Museologia da UFPE.


A cultura popular se mantém porque diz algo sobre quem são essas pessoas, expressa seus valores, um tipo de moralidade e um lugar no mundo, aponta Lady Selma Albernaz

va Oliveira, também Eilhéu e brincante do samba

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de véio, que se relaciona aos festejos de Reis

No mundo fugaz, folguedos como cavalo-marinho, caboclinho, maracatu rural ou de baque solto, boi, ursos, maracatu de baque virado, reisado, pastoril, coco em suas diversas ramificações, ciranda ou quadrilhas juninas e o artesanato popular sobrevivem por sua pujança artística e por serem marcos identitários. Marcos de Nuca, Luiz Antônio e Cida Lima, por exemplo, são mais do que artesãos a expor na Alameda dos Mestres da Feira Nacional de Negócios do Artesanato – Fenearte; são a identidade de Tracunhaém, Caruaru e Belo Jardim, são

o aprendizado familiar que carregam e são a revitalização do barro. E são persistentes. Não se envergaram à sentença de um material arcaico nem ergueram, de sua arte, uma prisão para si. Marcos, primogênito de Manoel “Nuca” Borges, falecido em 2014, adicionou elementos seus aos leões de cerâmica que notabilizaram seu pai. Luiz Antônio, há quase seis décadas na ativa, fundou uma associação no Alto do Moura, lugar que ajudou a colocar no mapa estadual do artesanato, e hoje mostra suas peças icônicas, que representam as profissões, ao lado das criações do filho Leonel. Cida, por sua vez, mobiliza esforços para, diante de um forno por oito horas diárias, produzir 500 peças para uma edição da feira. A 18ª Fenearte, transcorrida em julho no Centro de Convenções, no Recife, movimentou entre R$ 40 milhões e R$ 42 milhões ao longo de 11 dias, segundo o governo de Pernambuco. Trata-se de uma vitrine de impacto positivo para os artesãos e uma prova de que, além de elemento de identidade, a cultura popular é um item consumível. Na engrenagem capitalista, é mercadoria

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de alto quilate. Mas há algo nesses artesãos que os une aos brincantes, aos entusiastas, aos que pelejam na difusão e aos que não se apartam da cultura popular. Juntos, são a expressão do que Lady Selma Albernaz pensa como “uma cultura subalterna em uma sociedade estratificada em classes sociais”. Compõem a cultura do povo, dos trabalhadores, que seguem a lutar. “A cultura popular é uma cultura de resistência, sobretudo. Extremamente festiva, mas de resistência em vários aspectos – sociais, econômicos, afetivos, lúdicos, éticos. A resistência se dá também no modo de chamar. Convencionou-se chamar esses grupos de cultura popular, mas, na verdade, popular é o que está tocando no rádio, é Wesley Safadão, é o brega que se ouve em todo canto”, observa a historiadora Alexandra de Lima Cavalcanti, que entre 2009 e 2013 respondeu pela Coordenadoria de Cultura Popular da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco – Fundarpe. A tradição, oriunda das comunidades, era resiliente por princípio. “Há uma dificuldade grande de ter registro do


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começo das manifestações, dos seus percursos, porque elas não ‘existiam’ há 100 ou 200 anos. Não eram consideradas. É possível encontrar algum vestígio na literatura e, muitas vezes, em denúncias policiais. A principal fonte de pesquisa documental dos grupos nos séculos XVIII e XIX é a denúncia policial. Pode procurar registros de grupos que causavam algazarra e baderna; eram sempre tachados dessa forma. Eram grupos marginalizados e perseguidos pelas autoridades ou por líderes religiosos. No Carnaval, era permitido que brincassem quase como se fosse um favor – ‘ah, isso não é cultura, é só uma brincadeira’. Daí o Carnaval ter se tornado a festa da cultura popular por excelência”, acrescenta a historiadora.

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Foi o signo da resistência do samba de véio, por exemplo, que capturou o olhar do pesquisador e jornalista Jota Menezes. “Como puderam resistir durante mais de 100 anos, e garantir que uma manifestação cultural tão influente não sucumbisse diante de tanta opressão capitalista? A preservação da cultura é um ato de resistência e a festa pode ser de transgressão”, diz Jota, que dedicou seu mestrado na Universidade Estadual da Bahia aos aguerridos petrolinenses. Transgressão, nesse caso, significa não adotar os valores e papéis atribuídos pelas convenções sociais e culturais. “Eles assumiram a noção de protagonismo e levam isso adiante. Para mim, é até mais importante do que manter aquela cultura. Em Petrolina, se você perguntar qual é a manifestação mais forte, a resposta vai ser samba de véio. E não fica restrito à ilha. O Teatro do Sesc foi batizado com o nome de dona Amélia, com ela ainda viva. Estamos falando de uma mulher negra, que mora em uma ilha onde, séculos atrás, indígenas e escravos se refugiavam. Isso é significativo em uma sociedade tradicionalista, governada por uma oligarquia que se reveza há mais de 60 anos no poder”, sublinha. Tal constatação se torna ainda mais relevante, quando se pensa que a ideia de uma cultura popular nasce com a modernidade e, desde sua gênese, reflete a divisão social. “A divisão de uma cultura erudita e uma outra, de massa,

Alexandra de Lima Cavalcanti pontua a dificuldade de se encontrar registros antigos de manifestações populares, salvo em denúncias policiais de “algazarra” e “baderna” é uma classificação histórica. Acontece, segundo o historiador Peter Burke, a partir da era moderna. Na Idade Média, a estratificação era pelo sangue, dividindo a sociedade entre nobreza e camponeses. Mas, quando um nobre sentava-se à mesa com um camponês, comiam os dois do mesmo modo. É a ascensão da burguesia que quebra essa questão do sangue para demarcar a posição social dos indivíduos na sociedade. A cultura passa a ser um elemento de distinção. Quando se começa a estudar isso, há uma ideia de ir em busca do que restou dessa cultura popular, antes que ela desaparecesse dentro de uma cultura nova que se pautava pela racionalidade do conhecimento científico e que fazia uma crítica àquilo que era considerado inverídico, fantasioso e imaginativo”, pontua a antropóloga Lady Selma Albernaz. Ela sustenta que estabelecer uma cultura popular servia ao propósito de delimitar os territórios nacionais – “precisava-se da alma do povo para dar substância à nação e fazer a diferenciação entre as nações” –, mas que, para tanto, surgia a primeira

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tentativa de enquadrá-la, limpando “suas impurezas, seus excessos” para melhor traduzir a alma autóctone. É quase como se, para celebrá-la, fosse necessário controlar o que a antropóloga e professora da UFPE rotula como “elementos estéticos obscenos e indecentes” e assim proceder a uma “limpeza de sua profusão simbólica”. “A cultura popular enaltece o nascimento, a vida e a morte, trata da nossa perenidade e de um corpo em contato com mundo. Quebra com o ideal científico baseado em Descartes, da separação de corpo e mente, no qual esse corpo era algo a ser visto pela biologia para compreender o seu funcionamento e a parte mental tinha que ser desconectada para exprimir a mais completa e cristalina racionalidade. Tudo que a cultura popular fazia contrastava com essa lógica: era indecente, indecorosa, com ênfase na sexualidade, na escatologia, em um corpo impuro e contaminado pelo mundo, que os folguedos contrapunham aos intelectuais da modernidade”, anota Lady Selma Albernaz.


QUADRILHA JUNINA TRADIÇÃO/ FOTO: ANDREA RÊGO BARROS/DIVULGAÇÃO

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A dificuldade dos intelectuais em, séculos atrás, lidar com tal corporalidade não foi dissolvida por completo. Basta ver o dissenso acerca das atualizações das quadrilhas juninas em Pernambuco. “As quadrilhas estilizadas eram motivo de embate entre folcloristas e estudiosos como Mário Souto Maior e Roberto Benjamin, que defendiam um controle sobre a estética das quadrilhas consideradas tradicionais. O que não seguisse isso, deveria mudar de nome”, recorda Lady Selma Albernaz. A Quadrilha Junina Tradição, fundada em 2001 no Morro da Conceição, na zona norte do Recife, seria rechaçada pelo cânone folclórico. Em 16 anos, firmouse como um espaço de “desconstrução da noção biológica de macho e fêmea”, nas palavras de Marcone Costa, seu diretor de articulação política, e uma plataforma para “discutir identidade de gênero e festejar as diversas formas de expressá-lo”. No São João deste ano, havia 17 componentes que borravam as fronteiras entre homens e mulheres. “Teve o bissexual que dançou de dama, a travesti

que dançou de dama, o transexual que dançou de dama… Quebramos com essa regra de que a dama tem que ter uma vagina e o cavalheiro ser um rapaz com pênis. Tratamos isso naturalmente, deixando a pessoa escolher o que ela quer ser, mas sem construir um processo caricato”, expõe Marcone. Em 2013, sete meses antes de a emissora de televisão mais popular do país exibir, pela primeira vez, um beijo entre dois homens no último capítulo da sua novela de horário nobre, a Tradição apostou em um casamento homoafetivo. “A mãe tinha uma didática masculina, levando o filho para a barraca do beijo para ele encontrar uma namorada, mas ele achava um namorado. Acreditamos que a brincadeira popular tem um papel na construção de uma consciência social, ainda mais nessa sociedade ainda conservadora”, complementa o diretor de articulação política da quadrilha de Casa Amarela. Porém, no concurso das quadrilhas daquele ano, a Tradição ficou em segundo lugar. “Há quem diga que perdemos o primeiro lugar por conta do casamento e do beijo entre dois

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As quadrilhas estilizadas e suas atualizações comportamentais

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motivam embates entre estudiosos

homens”, comenta Marcone Costa. Perde-se um título, ganha-se força na atualização de uma manifestação tão nordestina como as próprias composições de Luiz Gonzaga. Em pesquisa proposta para o programa de pós-graduação em Direitos Humanos da UFPE, a mestranda Liana Queiroz mira na renovação que o embaralhamento entre as categorias de gênero e sexualidade traz para o folguedo. “Ao acompanhar o 32º Concurso de Quadrilhas do Recife, de 2016, percebi que em grande parte das quadrilhas juninas do Recife desenhava-se uma multiplicidade de imagens identitárias, pessoas que não atendem a uma linguagem corporal previamente estabelecida. Naqueles corpos brincantes, identifiquei com maior frequência a existência de corporalidades dissidentes, que mobilizavam um processo de ressignificação de conteúdos simbólicos e de mudanças em elementos básicos do folguedo – casamento, coreografia,

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figurino, músicas, temas e marcação”, ressalta a pesquisadora, que vê as consequências mais importantes não somente nas estilizações dos espetáculos, mas também fora de cena. “A criação das caricatas (homens que se apresentavam em personagens femininas com performances exageradas), em 2000, pela Quadrilha Junina Lumiar, do Pina; a encenação de um casamento entre dois homens da Junina Tradição; a primeira noiva junina representada por uma travesti, na Quadrilha Junina Terror do Alto,

ambos em 2013; e o protagonismo longevo de homossexuais de alguns grupos nos bastidores dos espetáculos (direção política, produção, figurinos, coreografia) apontam para a força das quadrilhas, que criam novos personagens, mudam os figurinos, incrementam as coreografias, teatralizam-se, territorializam-se e, mais importante, apresentam uma nova percepção do mundo”, condensa Liana. Desestabilizar arranjos, resistir e se reinventar: em 2017, eis a cultura popular.

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TRACUNHAÉM, ZONA DA MATA NORTE

“Vendi duas casas, um terreno, acabei com os comércios todos que eu tinha, peguei um dinheiro numa conta velha no Banco do Brasil e gastei todinho para criar o maracatu. A mulher, quando soube, teve uma raiva tão grande, que pediu separação a mim”, conta Edmilson Honório da Silva, sem camuflar o sorriso, na sala de uma casa alugada por ele, por R$ 250 mensais, para funcionar como sede do Maracatu Águia Formosa. Corria o ano de 2002,


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quando ele fundou o maracatu. Não era sua primeira incursão nos folguedos – ele já havia brincado cavalo-marinho na Cidade Tabajara, com a família do mestre Manoel Salustiano, tinha passado 27 anos com a Ciranda Estrela, tocara em boi, pastoril e maracatu. “Passei muito tempo em agremiação dos outros, em Carpina, Paudalho, Nazaré e Tracunhaém. Alguns, como Salu, souberam me abraçar. Durante muito tempo, ‘mestrei’ Piaba de Ouro, o maracatu dele. Mas outros não me abraçaram, então pensei ‘pra que ficar

estre Edmilson Honório M vendeu tudo que tinha para criar o Maracatu Águia Formosa, de Tracunhaém

gastando no maracatu dos outros se posso fazer um pra mim?’”, completa Edmilson, conhecido como Boi Preto. Como tantos outros mestres e brincantes do maracatu de baque solto, sua lida era nos canaviais: ele foi cortador de cana, vigilante e, depois, chefe dos trabalhadores que as usinas contratavam por temporada. E, como tantos outros que o antecederam, traz no sangue, no código genético, talvez, uma das características que até hoje definem os mestres da cultura popular em Pernambuco: a abnegação. Mestre Edmilson mora em uma casa que fica metros adiante da sede. Faz poucos meses que se decidiu por alocar todo o material pertencente ao maracatu em outro espaço que não a sua própria residência. A sede tem 45 “arrumações”, ou seja, 45 vestimentas completas. Vê-lo discorrer sobre o traje do caboclo de lança é uma aula de potente simplicidade: guiada (a lança, coberta por fitas); a matinada ou surrão (uma espécie de armadura com os chocalhos na ponta, que se veste como uma pesada mochila); o chapéu ou funil; o ceroulão feito uma calça; a “fofa”, uma bermuda com franja; a liga e ainda a camisa, meia, óculos, lenço, cravo; depois, a tinta para pintar o rosto. Em uma conta de aritmética básica, o valor de tudo contido naquela humilde construção supera, em mais de 10 vezes, o montante que o Águia Formosa recebe para desfilar no carnaval de Pernambuco – uma subvenção de R$ 11.000,00, repassada em duas parcelas, a segunda sempre é paga muitos meses após a folia momesca. “O valor não está no dinheiro, está na dedicação e no amor. Tem vezes que até agiota a gente tem que procurar”, resume o mestre. Outro aspecto do Águia Formosa que espelha os procedimentos de manutenção das tradições é o envolvimento familiar – no sentido mais amplo e contemporâneo, a englobar não apenas parentescos de sangue, mas a fibra que se tece a partir daquela convivência intensa e, em muitos casos, inescapável. Maria da Conceição Vitorino, atual esposa de Edmilson, é a dama do paço do Águia

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Formosa. É ela quem costura as golas do complexo traje dos caboclos de lança, é ela a mãe de santo do maracatu, que, com suas raízes do candomblé, faz o “calçamento” dos integrantes e fantasias – a proteção essencial para se energizar, e energizar a própria agremiação, antes de datas importantes como o Carnaval. Sua filha, Sandra, ajuda na confecção das fantasias; seu filho, Alexsandro, é o mestre caboclo do maracatu. José Pedro da Silva, o Zé Pretinho, amigo e brincante de longa data, é quem toca bombinho – instrumento que, ao lado do tarol, da cuíca, do gonguê, do mineiro e do naipe de metais, compõe o bailado do baque solto. Luiz Brás da Silva, que durante “46 janeiros cortou cana”, já não dança, mas integra a diretoria; e as crianças vizinhas na Rua Quatro, na Cohab, no centro de Tracunhaém, desfilam na ala das baianas. Ninguém obrigou Tamires da Silva, sete, e Stefany Heloise Araújo, 11, a dançar. Nem as cooptou para participar do “brinquedo”, como os mais velhos falam. “Eu gosto de dançar e acho bonita a roupa da baiana”, diz Tamires. “Sempre quis dançar. Perguntei à minha mãe se podia e ela deixou”, revela Stefany. Elas talvez nem saibam, mas integram a força que impulsionou o Águia Formosa a participar do Festival Mundial de Artes Negras, em 2010, no Senegal, e também simbolizam os deslocamentos que afetaram o folguedo. “Antigamente, no maracatu, não existia nem brincava mulher. Era tudo homem. Era tudo muito violento, porque sempre teve rixa e rivalidade. Mas, depois, tudo mudou, e hoje tem mulher que canta, dança e brinca de caboclo também”, lembra dona Maria. Quando o Águia Formosa desfila, metade dos seus 80 componentes é mulher. Outro ponto relevante: homens bordam e costuram. “Tem menino que vem bordar comigo, sim. O maracatu serve para tirar os jovens da violência, para colocar outra ocupação na cabeça deles”, ilustra a mãe de santo do Águia Formosa. Um dos integrantes do Águia Formosa é o cantor e compositor Maciel Salu, um dos 15 filhos do mestre Salustiano. Salu, o pai, nascido em Aliança, perto de Tracunhaém, foi amigo de Boi Preto “toda a vida”, como ele diz. A ligação de Maciel com o Águia Formosa, portanto,


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é umbilical. “Existem alguns maracatus, como o Águia e o Piaba de Ouro, que todo ano eu ajudo com dinheiro, projeto, dedicação e tempo. Maracatu é minha vida. Eu entendo como um mestre como Edmilson dedica seu dinheiro, sua casa, seu comércio para investir em algo a quem muita gente ainda não dá valor. Porque todo mundo quer usar a imagem dos mestres da cultura popular, mas não valoriza como deveria valorizar. Duvido que, se você for em uma escola, as crianças vão saber quem é Capiba, Nelson Ferreira, Dominguinhos… Talvez um Luiz Gonzaga, porque se toca muito. Mas, e Edmilson? Como as pessoas vão conhecê-lo, se não se fomentar, nas escolas, o interesse pelo maracatu?”, indaga Maciel. Ele e sua esposa, a produtora Rute Pajeú, sócios em uma empresa de comunicação e cultura, dedicam-se a elaborar projetos e submetê-los a editais para assegurar que o Águia Formosa siga a voar. “Manter a tradição de qualquer folguedo popular não é fácil financeiramente, todo mundo sabe. Há uma indiferença por parte dos governos. O político só vem atrás dos mestres da cultura popular quando está precisando se eleger. Minha faculdade de vida foram o maracatu e o cavalo-marinho, são minha raiz e minha fonte. Se não mantiver, tudo vai se perdendo”, reflete Maciel. No Projeto Azougue, aprovado em algumas edições recentes do edital do fomento do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura – Funcultura, ele e Rute idealizaram uma série de oficinas para fortalecer o maracatu através do repasse de saberes. “Fizemos oficinas de bordado, percussão, dança, encontro com mestres, trouxemos gente de outros maracatus para um diálogo com o Águia Formosa. Colocamos os mais antigos para ensinar aos jovens a tocar maracatu, a aprender como rimar para se tornar um mestre. Nossa proposta é um intercâmbio para valorizar os veteranos e despertar o interesse dos jovens. Não queremos os projetos que incentivem a festa pela festa. Porque, quando acaba, o que fica?”, pondera Rute. Mestre Edmilson e Maciel Salu assumem, cada qual em sua ribalta específica, funções preponderantes para que o Águia Formosa atinja o

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T amires da Silva e Stefany Araújo brincam no maracatu rural aria Vitorino é mãe de M santo do Águia Formosa erdeiro artístico do H pai, Mestre Salustiano, Maciel Salu milita na cultura popular como artista e produtor

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esplendor de debutante que seus 15 anos de fundação aguardam. Se Boi Preto retrata o saber ancestral, não o difunde de maneira vedada ao novo – divide funções, abre o maracatu às mulheres, incita a juventude local a participar. Maciel, por sua vez, participa de 10 grupos de maracatu no aplicativo WhatsApp, compõe loas por mensagens de áudio e desenvolve estratégias para que os folguedos em que brincou durante suas quatro décadas de vida não desapareçam. É esta necessidade de estar permeável à novidade, sob o risco de se fossilizar e deixar de existir, que chama a atenção da pesquisadora, jornalista e editora Maria Alice Amorim. Durante 10 anos, ela morou em Nazaré, cidade-berço dos maracatus,

na mesma Zona da Mata Norte de Tracunhaém. Frequentou sambadas, fundou agremiações e teve a chance de aprofundar os estudos, quando fez parte da equipe que concebeu o dossiê para embasar o pleito estadual de obter o registro de patrimônio imaterial via Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan. Ao todo, Pernambuco submeteu e aprovou sete processos no Inventário Nacional de Referências Culturais/ INRC: a Feira de Caruaru, o frevo, a roda de capoeira, o ofício do mestre de capoeira, os maracatus-nação e de baque solto, o cavalo-marinho, o mamulengo e o caboclinho. “Quando você vai falar sobre os aspectos de salvaguarda, tem que obrigatoriamente destacar o modo

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como esses grupos se adaptam às novas demandas, a essas novas maneiras de se comunicar, produzir e interagir. Os maracatus, por exemplo, fizeram uma articulação importante para se contrapor à lei do silêncio que existia, que interferia diretamente na dinâmica das sambadas e dos ensaios. Hoje, existe uma associação que se mantém forte porque também aprendeu a se comunicar de maneira mais ágil. É interessante constatar que, desde sempre, havia um gravador com fita- cassete nos ensaios dos maracatus. Ter os suportes tecnológicos para registro de memória sempre existiu. Hoje, existem as disputas no WhatsApp. Há, portanto, uma vitalidade que é indiscutível”, assinala Maria Alice.


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A Associação dos Maracatus de Baque Solto de Pernambuco possui cerca de 120 agremiações associadas e tem como presidente um outro Salustiano. Manoelzinho Salu, o mais velho dos herdeiros, prefere ser creditado apenas como artesão de adereços carnavalescos, muito embora seja um articulador. Para ele, “cultura popular não se ensina nas universidades”: “É um patrimônio de família, de amigos. Nasce nos terreiros, e não dentro de uma faculdade. Se o terreiro estiver funcionando, você faz novos mestres”. Na Cidade Tabajara, onde funciona o Ilumiara Zumbi e a Casa da Rabeca, criados por mestre Salu antes de seu falecimento, em 2008, não há como a doutrinação ser diferente. “Quando os meninos nascem, já vão entrando naturalmente no cavalomarinho, no maracatu, no forró… Antes mesmo de pegar numa mamadeira, já pegam numa rabeca”, brinca. Ele advoga que o poder público precisa atuar com mais ênfase no campo da preservação do legado dos mestres, para depois atingir a juventude. “Ter editais é um avanço, algo democrático,

mas a maioria desses mestres é analfabeta. Ter o registro de patrimônio vivo é pouco”, discorre. O registro de Patrimônio Vivo em Pernambuco foi instituído pela Lei 12.196/2002. Ao todo, 51 artistas, artesãos, mestres de saberes imateriais e grupos culturais já foram agraciados com a comenda, que na prática se reverte em uma pensão vitalícia custeada pelo estado – R$ 3,2 mil para agremiações, R$ 1,6 mil para pessoa física. Nuca de Tracunhaém foi eleito patrimônio vivo em 2005. Se, por um lado, o reconhecimento alegrou o artesão, por outro, mais de uma década depois, seu filho se esforça para carregar o nome e a excelência no trato com o barro e despertar o zelo com a herança em toda a família. “Meu pai ensinou todo mundo a mexer no barro. Como minha mãe era artesã também, todo mundo aqui sabe modelar, sabe colocar um leão desses no forno. Acho que esse saber tem que ficar na família. Acredito que ele gostaria de ver seu estilo, sua arte, feita por nós mesmos. Meu filho, de vez em quando, faz um leão, mas é só de vez em quando…”, comenta Marcos de Nuca,

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anuelzinho M Salustiano preside a Associação dos Maracatus de Baque Solto de Pernambuco

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F ilho do ceramista Nuca, o sarjento da PM Marcos de Nuca dá continuidade à obra do pai

que, sem ter a certeza de que viveria do artesanato, prestou concurso para a polícia militar – hoje, é sargento da PM. A ameaça de não conseguir subsistir da própria arte é um elemento que Manoelzinho Salu considera como fator da pouca inserção de cultura popular entre os jovens: “Se eu sou um mestre, moro no interior, brinco meu reisado tirando do meu bolso, do dinheiro da feira pra brincar, você acha que meu filho vai querer passar fome pra brincar? Como essa criança vai querer participar, se está vendo que o pai ou avô deixa de comprar uma comida melhor para gastar em lantejoulas? Os jovens estão fugindo porque não têm acesso. Veja o que está acontecendo na Mata Sul. Os mestres ficam velhos, não tem quem faça, os brinquedos morrem. É por isso que é preciso investir nos terreiros. É lá que os jovens vão aprender”. O músico Helder Vasconcelos, exintegrante do grupo Mestre Ambrósio, fez parte de uma geração formada no terreiro da família Salustiano. “Brinco maracatu com eles há 25 anos e também circulo e pratico meu cavalo-marinho na Zona da Mata, com os mestres Biu Alexandre, Luiz Paixão, Grimário e Nicinha, de Condado. Nunca me afastei dessa tradição. É uma prática, é minha escola. Minhas criações vão para outro lugar, mas fluem desse contexto, diretamente ligadas à formação em cavalo-marinho e maracatu rural. Onde quer que eu circule, isso tudo vai estar presente. Se eu tivesse me formado em Paris VII, seria diferente”, valoriza o músico, que todo ano sai de “caboclo de pena” no maracatu e participa do cavalomarinho tocando no “banco” – em que se concentram os músicos do folguedo. A herança da cultura popular se faz evidente, também, no trabalho do multiartista Antônio Carlos Nóbrega, radicado há 34 anos em São Paulo, onde fundou o Instituto Brincante. Peculiarmente, Nóbrega afirma que nunca foi um “brincante”, e, sim, um curioso, que hoje reconfigura os elementos dos folguedos estudados desde o início dos anos 1970. “A


Antônio Carlos Nóbrega entende a cultura popular como a segunda linha da cultura no Brasil, com prevalência de elementos negros, índios e de classes subalternas portuguesas, malvista pela elite como tudo que vem do povo C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 7 | 3 7

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cultura popular representa uma segunda linha de cultura no Brasil, de feição popular, com prevalência de elementos negros, índios e de classes subalternas portuguesas. Ela não foi formalizada ainda e não consegue atrair tanta atenção por várias razões, entre elas, e talvez principalmente, porque vemos com maus olhos tudo que vem do povo”, aponta. Uma das chaves para assegurar a sobrevivência seria, justamente, uma maior formalização. Contrariando o que Manoelzinho Salu defende, talvez a cultura popular forjasse um novo panorama para si, se pudesse, sim, ser ensinada em uma universidade. “Posso, hoje, aprender muito sobre a capoeira porque já existem livros, mas o ensinamento de um cavalomarinho, por exemplo, ou de várias representações simbólicas ainda não foi desenvolvido ao ponto de criar uma gramática”, anota Nóbrega, que busca fazer um “laboratório” para organizar as influências populares e criar algo que o possibilite se expressar de “maneira mais ampla, e não apenas local, regional ou restrita”.


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Seu trabalho, na sua visão, seria uma “tentativa de assimilar os folguedos e estudá-los dentro de um outro universo”. “Meu pensamento é fruto de um tripé em que o Brasil está num ponto imaginário cultural entre o Brasil popular e o Brasil ocidental e o europeu. Busco criar uma dinâmica de conversa entre esses três mundos. Alguns criadores que me ajudam são Villa-Lobos, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, Pixinguinha, Chico Buarque, que procuraram juntar essas partes. Vou atrás de cantos, movimentos e formas poéticas, independentemente do contexto folclórico onde estão, para criar novas ligações simbólicas. Meu interesse não é de preservar como um museólogo, é de fazer florescer. Nesse sentido, penso que a cultura popular não se sustenta se não for devidamente entendida de maneira mais ampla. Ela degenera.”

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A compreensão de Antônio Carlos Nóbrega encontra eco na atuação do poeta e cantador Adiel Luna. Não adianta apenas mirar o passado ou

idealizar as manifestações como peças de museu; propor novos temas é imperativo. No seu trabalho com o grupo Coco Camará, busca compor letras que reflitam o que os jovens de hoje vivenciam e enveredar por timbres que conquistem o público. “Parece que o passado era mais moderno, pois os cocos eram mais elaborados, com versos longos. Era mais complicado. As pessoas gostam do disco que gravei com o Coco Camará, em 2010, mas cantam pouco. Cada música que cantei dura cerca de 10 minutos. Se quero que seja assimilado, posso fazê-lo mais simples e nele falar de tudo que os jovens vivem hoje. Não se trata de afastar a complexidade, mas propor versos mais curtos, de modo que as pessoas se familiarizem com a melodia e com o refrão”, vislumbra Adiel. Atualizar o repertório é a maneira que ele encontra para modernizar o coco de roda sem, no entanto, desnudá-lo de suas características, que o fazem distinto na região metropolitana, em Arcoverde ou no Sertão. “Não adianta se apegar a um repertório centenário e reproduzi-lo feito radiola de ficha. Embora seja lindo e

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maravilhoso o retrato da ancestralidade, se quisermos que a identidade da brincadeira esteja viva, temos a obrigação de propor novos caminhos. E não adianta muito essa batalha toda, se a minha música não tiver inserção boa. Posso, sim, rever quais são minhas prioridades dentro dessa manifestação, porque quero que as pessoas consumam meu trabalho. Para o bem da cultura popular e do meu futuro, pois vivo disso, crio meus filhos, boto comida em casa. Quem entrar na minha barraca, tem que levar alguma coisa, por isso é que tenho vários trabalhos: canto toada, maracatu de baque solto, forró, coco de roda, samba rural e faço cordel. Tudo isso não pode ser isolado em um museu nem pode ser pensado como folclore. Não estou no mesmo lugar do Saci Pererê”, afirma Adiel. A versatilidade é uma particularidade da cultura popular contemporânea em diversas frentes. Está, por exemplo, nos cordelistas que adotam a tecnologia para reinventar métrica e rima, na contramão da exigência de estudiosos mais conservadores. “Há quem não considere os cordéis feitos na internet


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P oeta e cantador Adiel Luna sustenta que a cultura popular deve buscar novos temas para sua renovação

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I ntergrantes do Reisado Garanhuns Cultural lastimam a falta de interesse de jovens pelo folguedo

como cordéis mesmo, pois não teriam a materialidade do papel. Mas, assim como na década de 1990 deu-se início à peleja virtual entre cantadores, o perfil do cordelista hoje, bem como do seu leitor, não é o mesmo de meio século atrás. As feiras de rua e o mercado público não têm mais a mesma força de ambiente de socialização e existem outros locais que as pessoas estão frequentando e onde estão interagindo, como a própria internet. A cibercultura é isso”, opina a pesquisadora Maria Alice Amorim.

GARANHUNS, AGRESTE MERIDIONAL

“Estou tentando sobreviver da cultura popular, por isso estou com o maracatu e a ciranda. Quero deixar a vida de posto e me organizar melhor. Por enquanto, não dá”, comenta Lezildo José dos Santos, ex-frentista em Carpina, na Zona da Mata Norte, e mestre do maracatu Estrela Brilhante de Igarassu e da Ciranda Bela Rosa, de Nazaré. Foi como Mestre Bi, alcunha ganha nos campos de futebol, que ele subiu ao Palco da Cultura Popular Ariano Suassuna no início da noite de um sábado de julho, durante a 27ª edição do Festival de Inverno de Garanhuns. A Ciranda Bela Rosa se inspira em José Galdino, repentista e cirandeiro, para criar “os ritmos próprios”, nas palavras do mestre. Há uma preocupação em falar do que se vive hoje, e não apenas de epopeias passadas que outrora inspiraram clássicos do cancioneiro. “Faço versos refletindo a nossa vida, os nossos acontecimentos, e crio uma letra para tocar num ritmo que seja nosso também”, detalha Bi, que deixava transparecer sentimentos conflitantes com relação à participação no festival. “A ciranda é um ritmo tradicional da Zona do Mata, que surgiu na senzala. Estar aqui é manter a cultura popular acesa, é saber que a ciranda vai se renovando. Porém, infelizmente, tem a burocracia da comprovação do cachê, que nos obriga a tocar num preço menor do que merece. Se não tiver festival, a gente toca no meio da rua. A ciranda não vai morrer”, apregoa.

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A comprovação do cachê é uma prerrogativa da Lei 14.104/2010, que regulamenta a contratação artística pelo estado de Pernambuco. A legislação foi apelidada por Manoelzinho Salu de “lei da bestafera”. Dois dos seus artigos incidem diretamente nas agremiações tradicionais: a impossibilidade de, em recebendo um cachê menor de R$ 8 mil, ser representando por uma pessoa jurídica (caso a agremiação não seja constituída formalmente), e a obrigatoriedade de comprovar o recebimento, pelo menos em três ocasiões anteriores, do mesmo cachê solicitado. Caso isso seja impossível, a agremiação recebe o cachê mínimo de R$ 2 mil.

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Atual presidente da Fundarpe, e ex-secretária de Cultura de Olinda, Márcia Souto explica que a proibição da representação por pessoa jurídica existe para evitar a conspícua figura do produtor/atravessador: “Tiramos de cena muitos exploradores que ganhavam em cima das agremiações mais humildes”. Ela reconhece a legitimidade das reclamações, porém prefere enaltecer os investimentos estaduais. “Mesmo com todas as dificuldades, Pernambuco é um estado que investe bastante na cultura popular. Todos os editais têm cota específica para cultura popular e temos buscado lhe dar ainda mais visibilidade, tanto no chão como no palco. Além disso, estamos elaborando um cadastro com


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a base de dados do Funcultura. A ideia é ter um mapa cultural com todas as manifestações e agremiações do estado, acessível a qualquer cidadão ou cidadã”, antecipa. A atual coordenadora de Cultura Popular da Fundarpe, Teca Carlos, não sai do backstage no dia em que o 27º FIG recebe o grupo de xaxado Cabras de Lampião e o Reisado Garanhuns Cultural, que ela destaca como ícones de suas regiões. “Esse palco foi uma reivindicação de muitos anos de quem faz cultura popular em Pernambuco. É um palco que fica no centro da cidade, com uma altura baixa, como se estivéssemos num terreiro, com as atrações bem perto do público”. Ao todo, R$ 350 mil foram investidos para pagar cerca de 50 agremiações alocadas nesse palco durante a edição 2017 do festival. Dado comparativo: o cachê de um único show do Palco Dominguinhos, da cantora carioca Fernanda Abreu, foi de R$ 45 mil, segundo consta no Diário Oficial de Pernambuco de 26 de julho. Luiz Gonzaga de Oliveira, o mestre, Lindinalva Kanashiro, a rainha,

José Duda de Barros Filho, o rei, e os outros componentes do Reisado Garanhuns Cultural materializavam a intangibilidade da cultura popular. Desde 1955, Gonzaga dança esse folguedo de inspiração ibérica (explica Antônio Carlos Nóbrega: “Assim como o pastoril, o bumba meu boi e o cavalomarinho, o reisado tem uma função devocional e se insere no mundo das comemorações natalinas e religiosas, para homenagear o nascimento do menino Deus e a chegada dos três Reis Magos). As fantasias costuradas com esmero, os passos ensaiados, a toada da viola a ecoar os mesmos acordes a cada cantiga: o que eles levavam ao palco não era um passatempo, mas uma expressão daquilo que os define. “Os jovens não se interessam pelo reisado. Só quem dança é velho e quem está perto de morrer”, queixa-se a rainha Lindinalva. “Mas não podemos deixar de dançar. Garanhuns é a capital do reisado em Pernambuco. Enquanto eu estiver vivo e puder cantar e dançar, vou levar o reisado aonde for. Agora mesmo, estamos com um grupo para crianças, em uma escola”, emenda

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Gonzaga. Ele revela à Continente que, se o panorama atual não é o ideal, já é melhor do que antes: “Quando comecei, na zona rural de Garanhuns, não tinha energia, não tinha um palco desse, não tinha nada. Hoje, sai a notícia de que vamos nos apresentar e é uma divulgação boa”.

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Otimismo é outro elo entre os brincantes. Mas não um sentimento cego, é bom ressaltar, e, sim, uma crença de que há uma missão a ser cumprida. “Os movimentos de cultura popular já vêm resistindo há muitos anos. Vários focos desses movimentos são resistentes pela própria forma de ser: quilombolas, ciganos, cangaceiros, ribeirinhos, todos nós temos histórias de luta na nossa ancestralidade. Naturalmente, somos matriz de resistência e vamos continuar sendo”, coloca Cleo Maria, uma das fundadoras do Cabras de Lampião, de Serra Talhada, terra natal do cangaceiro Virgulino Ferreira dos Santos. O Cabras de Lampião existe há 22 anos e tem um arcabouço de infraestrutura que o diferencia de outras


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agremiações: possui CNPJ, é ponto de cultura pelo Ministério da Cultura (muito embora Cleo não saiba até quando, dado o desmonte institucional em vigor no país), mantém o Museu do Cangaço e uma escola de xaxado. “Desde o início, fazemos um trabalho de conscientização para o jovem entender que o xaxado é a identidade dele, é a nossa, é a do Nordeste. Temos que valorizar as nossas raízes e o interesse pela cultura, e não pelo forró de Safadão”, sustenta Cleo. No meio do show de Garanhuns, o vocalista do Cabras de Lampião, Karl Marx, anuncia que o DVD do grupo está à venda. Àquela altura, o público estava encantado pela apresentação – 15 pessoas no palco, entre músicos e dançarinos, com perfeita indumentária, domínio cênico e um discurso que mesclava gritos de guerra de Lampião e Maria Bonita e vaias e palavras de ordem contra o atual presidente do Brasil. Uma hora depois, Marx – filho mais velho de Cleo e irmão de Sandino Lamarca, batizados assim não por acaso – falava sobre resistência: “O grupo surgiu em um contexto nada

favorável, no interior do Estado, onde tudo é mais difícil, ainda mais no Pajeú historicamente comandado por coronéis e grupos familiares. Manter por tanto tempo já é vitória”. Mãe e filho concordam na importância do acesso. “A tecnologia ajuda a divulgar, mas a mídia é omissa e covarde. Nossas músicas não são tocadas nas rádios, não há interesse em divulgar. Não dão opção ao povo de escolher”, lamenta Cleo. “Mestre Assisão já dizia que um povo sem cultura é povo sem identidade, sem pátria. Sabemos que as pessoas não têm acesso a essa história muito presente, que faz parte da nossa região. Não estamos falando de uma coisa antiga, de Roma de 10 mil anos atrás, mas da realidade do Nordeste”, endossa Karl Marx. A sua lógica é coerente: como preferir Julio César a Lampião?

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A Fundarpe anuncia para este setembro o lançamento do edital do 3º Prêmio Ariano Suassuna de Cultura Popular e Dramaturgia. Criado para referendar grupos e mestres nas quatro regiões

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rupo de xaxado G de Serra Talhada Cabras de Lampião tem como vocalista Karl Marx

do estado – Região Metropolitana do Recife, Zona da Mata, Agreste e Sertão, o prêmio entrega R$ 30 mil e R$ 15 mil, respectivamente, aos conjuntos e mestres laureados. Um dos vencedores da segunda edição foi o samba de véio, de Petrolina. É provável que Amélia, Chiquinha, Félix e Eva nem saibam disso. Se vierem receber, certamente virão de ônibus – que ao menos se apresentem. O frescor e o entusiasmo com que dançam hão de amealhar fãs na capital. Em novembro, a terceira edição do festival Arte na Usina, na Usina Santa Terezinha, em Água Preta, na Zona da Mata Sul, terá a participação do samba de matuto, de Tamandaré. Muitas das fontes ouvidas para esta reportagem citaram o grupo como exemplo de algo a ser preservado com urgência, ainda mais por se tratar de uma agremiação da Mata Sul, região em que as manifestações parecem mais adormecidas. Na primeira edição desse festival, o empresário Ricardo Pessoa de Queiroz Filho, idealizador do projeto de transformação da antiga usina açucareira de sua família em um catalisador cultural, teve que trazer um pastoril de Porto Calvo, em Alagoas, por não encontrar grupo algum do lado de cá da fronteira. Se o samba de matuto for ao festival, provará que não se acabou, como alguns, tristes, já lastimavam. E, se for mesmo, atestará que não são apenas registros na tese de doutorado de Maria Alice Amorim ou lembranças entre os que já o viram. Como diz a antropóloga Lady Selma Albernaz, “a cultura popular tem seus próprios elementos de como a vida deve ser vivida, seus próprios preceitos de moralidade para se manter enquanto grupo, sua própria relação de pertencimento. As pessoas vivem aquilo que estão apresentando. Elas não são o passado no presente. Elas estão no presente, são o presente”. LUCIANA VERAS, repórter especial da revista Continente. HÉLIA SCHEPPA, repórter fotográfica.


Artigo

O CINEMA DE SOLIDÃO DE MARCELO GOMES TEXTO SYLVIE DEBS TRADUÇÃO JOÃO VITOR LEAL

Nos últimos anos, expressões como “retomada do cinema pernambucano, novo cinema pernambucano” florescem entre críticos e em retrospectivas e festivais. De fato, após o emblemático Baile perfumado de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, de 1997, um número considerável de diretores igualmente oriundos de Pernambuco, como Cláudio Assis, Gabriel Mascaro, Kleber Mendonça Filho e Marcelo Gomes, para citarmos apenas os mais importantes, realizaram filmes premiados no cenário nacional e internacional. Isso não significa, no entanto, que existe uma forma regional de fazer cinema. Ainda que a maioria desses filmes seja produzida no Recife, as questões por eles abordadas extrapolam o contexto local. Nesse aspecto, o percurso de Marcelo Gomes é exemplar. Profundamente impactada por seu território de origem, sua filmografia é inovadora na medida em que atravessa as tradicionais fronteiras entre o sertão e o mar, o rural e o urbano, o documentário e a ficção. Ele construiu seu próprio estilo narrativo e estético.

Marcelo Gomes começou sua carreira com dois curtasmetragens, seguidos de um médiametragem realizado a quatro mãos: o documentário Maracatu, maracatus (1995), a ficção Clandestina felicidade (1998), inspirada em um conto de Clarice Lispector, e um filme experimental Sertão de acrílico azulpiscina (2004), codirigido por Karim Aïnouz. Colocando esses trabalhos em perspectiva, podemos constatar que eles já trazem marcas da obra por vir. Do ponto de vista da linguagem cinematográfica, Marcelo Gomes trabalha os dois modos de abordagem que estarão frequentemente em constante diálogo em seus futuros longas-metragens. Do ponto de vista do tempo e do espaço, passamos com ele do século XX ao século XXI e do regional ao universal: o primeiro filme trata da modernização de uma tradição; o segundo, apesar de situado no Recife, abre-se para o mundo; e, por fim, o terceiro, entregue ao percurso aleatório da viagem, interroga o “ser no mundo”, o ser-tão. Do ponto de vista dos temas abordados, encontramos

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ainda, para além das clássicas oposições interior/litoral, campo/ cidade e tradição/modernidade, questionamentos sobre a condição humana e a busca pela felicidade.

MARACATU, MARACATUS

O que nos surpreende de imediato no curta-metragem Maracatu, maracatus é o aspecto inovador do tratamento. Estávamos até então habituados a uma série de entrevistas com especialistas (Jean-Claude Bernardet, Cineastas e imagens do povo, Companhia das Letras, São Paulo, 2003, p. 281-296) que falavam dessa tradição pernambucana. Tal não é o caso aqui: antes mesmo que os créditos iniciais apareçam sobre o fundo de chita, o filme coloca em cena uma equipe de filmagem que chega para registrar os preparativos do maracatu. Ela é francamente repreendida por um ator do maracatu: ele não aceita que pessoas da cidade filmem suas riquezas culturais para enriquecer às suas custas. Isso inscreve de vez o filme em uma nova perspectiva. Após os créditos iniciais, o filme mostra um jovem percursionista


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que pratica sua bateria enquanto um homem de idade sobe as ruas estreitas de uma favela do Recife. Quando ele interrompe sua caminhada para tomar um copo de caldo de cana, reconhecemos o ator Jofre Soares, ícone do cinema brasileiro Cinema Novo (Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, 1963) e da retomada do cinema com Baile perfumado. Ele será ao mesmo tempo o narrador e o protagonista do curta-metragem. De fato, já na sequência seguinte, ele se inclina diante de uma estátua de São Jorge (equivalente ao orixá Ogum no sincretismo afro-brasileiro) antes de se dirigir ao espectador para lhe explicar que seu trabalho se confunde com seu destino, pois ele obedece à determinação de Ogum de produzir as vestimentas do maracatu. Em seguida, vemos o rapaz confeccionar uma túnica cantarolando um canto africano dedicado ao orixá. Como que respondendo a uma pergunta, ele comenta em voz off a mudança das tradições ocorrida quando a população deixou os canaviais para vir morar nas favelas. Duas sequências

ilustram seu comentário: a de um jovem negro que dança freneticamente com uma música do manguebeat e a de um outro jovem que rejeita a umbanda e sua linhagem ancestral de caboclo de lança para festejar o Carnaval. Esse último personagem é confrontado pela intransigência do velho: ele deve ser batizado antes de sair desfilando pelas ruas do Recife durante o Carnaval. A cena do batismo lembra a descida aos infernos de Orfeu negro (Marcel Camus, 1959), mas é tratada sem exotismo. Jofre Soares se apresenta como o feroz guardião dessa tradição ancestral para a qual ele reivindica origens nobres: o maracatu, diferentemente do Carnaval, não é uma diversão, mas um símbolo identitário do escravo africano, uma resposta às injustiças do homem branco. O documentário mostra então, sucessivamente, as duas formas sobreviventes dessa manifestação: uma urbana, com brancos e padres, e outra rural, com os caboclos no canavial. O filme termina com o famoso monólogo de Chico Science e Nação Zumbi, Monólogo ao pé do ouvido,

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diretor ficou conhecido Ointernacionalmente a partir do

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seu primeiro longa Cinema, aspirinas e urubus

declaração de fé do cantor Chico Science que é retomada pelo diretor por sua própria conta: trata-se de atualizar o passado. O embate fundamental permanece o mesmo, o que muda é a forma de se exprimir. Basta substituir os cangaceiros pelos habitantes das favelas para compreender a brutalidade policial exercida contra as populações desfavorecidas. Notamos que os heróis invocados por Chico Science pertencem à história da América Latina e lutaram, todos eles, pela liberdade dos povos: Zapata, Sandino, Zumbi e Antônio Conselheiro.

CLANDESTINA FELICIDADE

O segundo curta-metragem, Clandestina felicidade, adaptação do conto Felicidade clandestina de Clarice Lispector, foi filmado em preto e branco. Nessa breve narrativa, a escritora evoca uma lembrança da infância passada no Recife. O filme começa com uma imagem da cidade vista do mar, antes de


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revelar a fachada de uma igreja barroca diante da qual passam, curiosamente, dois veículos: primeiro, da esquerda para a direita, passa um carro branco atual e depois, em sentido contrário, um carro preto de época. Essa piscadela para o espectador serve de passarela para situar a ação do filme na infância de Clarice Lispector, isto é, nos anos 1920. Lembremos que, nesse período, Recife era a capital do cinema: em Baile perfumado, o célebre casal de cangaceiros Lampião e Maria Bonita frequenta as salas de cinema e os restaurantes da cidade. Eles assistem ao filme A filha do advogado, de Jota Soares (1926), um dos 13 longas-metragens produzidos pela Aurora Filme, de Edson Chagas e Gentil Roiz, entre 1923 e 1931. O filme é um verdadeiro laboratório de projeção a partir de um argumento bastante enxuto: a felicidade clandestina de ler um livro. Para recriar o ambiente de época com personagens que conferem alma e credibilidade à pequena garota, Marcelo Gomes recorre à vida e à obra da escritora. A primeira alusão é o livro A galinha e o ovo de ouro, que a garota tem em mãos no balanço, seguida da descoberta da galinha empalhada na escola e da galinha morta sendo depenada pela cozinheira. Ora, Clarice Lispector escreveu muitas histórias com galinhas, incluindo um livro intitulado O ovo e a galinha. A segunda alusão, é que a cozinheira se chama Macabéa, como a protagonista de A hora da estrela. Outras referências se encadeiam: há uma bela sequência de banho de mar, que alude à crônica Banho de mar; um passeio ao porto onde havia chegado da Europa o navio transatlântico no qual seus pais haviam deixado a Ucrânia, em 1921, para se instalar em Maceió; o anúncio da partida para o Rio de Janeiro, onde a família se instala após a morte da mãe; o comentário sobre o sobrenome da família na cena em que a garota se fantasia para o Carnaval – segundo seu pai, Lispector significa “a flor-de-lis sobre o coração”. E há, enfim, a discussão sobre a leitura e a escrita. A pequena Clarice reclama que seus escritos – considerados bizarros por suas próprias amigas – são sempre recusados por A Pilheria (revista humorística, publicada pelo Jornal do Recife a partir de 1921, que tratava da vida social, política, cultural, literária, feminina e esportiva

da cidade), que divulga apenas textos mais tradicionais, como contos de fadas. Para se defender, Clarice explica: “Eu escrevo as coisas que vêm do meu jeito, vocês entendem?”. Além disso, uma sutil referência ao fotógrafo Benjamin Abrahão (o libanês foi vendedor ambulante, que se tornou homem de confiança do Padre Cícero e que, em 1926, conheceu Virgulino Ferreira, o Lampião, que ele fotografa e filma) é feita na sequência da foto escolar: reconhecemos o sotaque do ator Duda Mamberti, que interpreta o fotógrafo em Baile perfumado.

SERTÃO DE ACRÍLICO AZUL-PISCINA

Sertão de acrílico azul-piscina (2004) constitui uma terceira etapa no percurso do cineasta. O filme testemunha o modo de fazer cinema de Marcelo Gomes: a pesquisa de uma linguagem (documentário, ficção, artes visuais ou cinema?), de um modo narrativo (silêncios, canções, diálogos,offs), de suas origens (sertão, cidade, memória afetiva, memória adquirida), a pesquisa existencial (onde viver?, qual projeto de vida?), temática (viagem, solidão, amizade, amor, felicidade, destino, morte). Enfim, do ponto de vista do método de trabalho, Marcelo Gomes sente a necessidade de um diálogo, de trabalhar com outro diretor ou roteirista; ele sente a necessidade do confronto e do questionamento para explorar o campo de possibilidades. Enquanto seus dois primeiros filmes são mais diretos, no sentido de que tanto a composição dos personagens quanto a escolha narrativa estão claramente definidos, Sertão de acrílico azul-piscina nos coloca em um modo flutuante de navegação à vista, um modo do aleatório, do acaso, do imprevisível, da precariedade como fluxo próprio da vida: entramos de corpo inteiro na metáfora da viagem. Marcelo Gomes busca atingir esse “grau zero” da escrita cinematográfica e da consciência reflexiva. Nesse sentido, a viagem pelo sertão é ideal, pois não oferece nenhum ponto de referência (o tempo e o espaço são abolidos), daí a necessidade do geólogo de Viajo porque preciso, volto porque te amo de recordar a todo instante sua posição geográfica e as datas para se ancorar no mundo

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curta Maracatu, Omaracatus marcou

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o início da carreira cinematográfica de Marcelo Gomes no cinema

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real. Quando o personagem possui uma profissão e/ou uma família, como Verônica e Juvenal, a deriva aleatória é expressa por outros meios: a voz registrada por um gravador ou as deambulações de Juvenal em meio à multidão. Para Johann e Ranulpho, são os passageiros que se convidam ao longo da viagem; para José Renato, são os afastamentos em seu itinerário de geólogo (Juazeiro do Norte), quando a solidão se faz insuportável. Gravadas nos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Alagoas, Sergipe e Bahia na virada para o século XXI, essas imagens são vestígios de uma viagem de exploração de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, ambos originários do Nordeste, mas que tinham apenas, até aquele momento, uma representação imaginária ou afetiva do Sertão, construída através da literatura, do cinema e das recordações familiares. A necessidade de conhecer


pessoalmente essa realidade, que cumpriu um papel fundamental na construção da “identidade brasileira” (Sylvie Debs, Cinéma et littérature au Brésil. Les mythes du sertão: émergence d’une identité nationale, L’Harmattan, Paris, 2002, 359 p.), e de confrontar as representações e os clichês a realidade constitui o motivo da viagem. Os três minutos que antecedem os créditos iniciais mostram, primeiro frontalmente, como se fosse a visão subjetiva do condutor, e em seguida de lado, como a visão do passageiro, uma estrada de mão dupla quase deserta sob um céu coberto de nuvens na paisagem desolada da caatinga. Enquanto isso, a composição musical do grupo eletroacústico belo-horizontino O Grivo situa o filme em uma dimensão não realista diretamente oposta à imagem. Uma sucessão de planos fixos ou fotografias de lugares interrompe a viagem antes da apresentação dos

créditos. Os planos fixos estabelecem o contexto: um posto de gasolina com seu restaurante, banheiros e um hotel. Escritos diversos atraem o olhar do espectador e esfumam a fronteira entre o filme e os créditos: seria o título Sertão de acrílico azul-piscina uma simples lembrança de uma inscrição mural ou teria sido inserido dessa forma na continuidade narrativa? A pergunta se justifica, uma vez que acabamos de ver, em vários ângulos, uma outra pintura mural na qual está escrito “Viajo porque preciso, volto porque te amo”, frase que se tornou título de um documentário em 2008. Os escritos se sucedem, como muitos outros pontos de referência desse viajante cuja identidade, objetivo e presença nós ignoramos. Nós nunca ouviremos sua voz e nunca veremos seu rosto; ele nunca se dirigirá a nós. As indicações Banheiros, Hotel Monte Alegre, Restaurante, Lanchonete,

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BR lembram as necessidades primeiras às quais os viajantes devem ceder para seguir seu caminho. Como um retorno à realidade, os sons ambientes vêm preencher a ausência de diálogos. Algumas vozes femininas, cantos de pássaros, o grunhido de um porco, ruídos de caminhões: a trivialidade do cotidiano invade a tela. Quando os viajantes param, o fluxo dos caminhões continua. O pôr do sol se confunde com o levantar do dia. Depois, subitamente, um caminhão de peregrinos com seus cantos religiosos invade a tela. Fotos de oferendas deixadas por eles na Casa dos Milagres de Juazeiro do Norte – lugar onde Dora, protagonista de Central do Brasil de Walter Salles, desmaia – sucedem-se, tendo na trilha sonora testemunhos daqueles que agradecem as graças obtidas. A câmera se afasta da casa para passear pela esplanada da basílica, onde ficam camelôs e vendedores de lembrancinhas religiosas, quando uma canção do Magreb começa a tocar. De fato, as roupas, ou, pelo menos, os rostos dos peregrinos, poderiam ser facilmente confundidos com os de uma população da África do Norte. Em seguida destacam-se as preces e cânticos, quando aparece a imponente estátua do Padre Cícero ante a qual os peregrinos se fotografam. Um ambiente noturno, marcado primeiramente pelos anúncios publicitários que iluminam as ruas, nos conduz, então, a um local de dança tradicional – o forró. Dançarinos desfilam diante da banda: duas garotas de shorts, um casal abraçado e um outro com seu bebê nos braços, enquanto os músicos interpretam Chiclete com banana, um dos forrós mais conhecidos de Jackson do Pandeiro. Depois, vem a ruptura, o mergulho no irreal: os casais continuam a dançar em câmera lenta, a música eletroacústica encobre o som da banda, a moça do segundo casal se aproxima para mostrar seu bebê à câmera, fotos dos dançarinos aparecem e dois planos fechados de uma inscrição na parede atrás da banda orientam a leitura da sequência: Solidão NN. A ruptura continua, tal qual o despertar de um pesadelo, quando a voz de uma das dançarinas, sem dúvida uma prostituta da casa noturna, dirige-se à câmera, a imagem estática. Um plano revela três garotas de pé


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tema caro ao diretor, Avoltaviagem, a ser o ponto de partida

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para o enredo de Viajo porque preciso, volto porque te amo

diante de um colchão coberto com chita e faz a transição para imagens da fábrica de colchões e de um colchão misteriosamente abandonado em pleno Sertão. Chegamos a um mercado que está sendo montado noite adentro; os produtos asiáticos invadiram os mercados nordestinos. À medida que o dia se levanta, os sons ambientes voltam. Vemos um posto de gasolina com um enorme slogan, no qual lemos que “O futuro está ao seu alcance”, seguido de um plano com lojas que vendem produtos importados de Taiwan. Eis, pois, o modelo da sociedade de consumo ao alcance dos habitantes do Sertão. Vemos um grupo de jovens skatistas e, logo em seguida, o plano de uma piscina de acrílico azul que explica, talvez, o estranho título do filme! Última etapa da viagem: o mercado e a cidadezinha de Piranhas, lugar reconhecido por sua resistência às extorsões dos cangaceiros, localizado no último trecho navegável do rio São Francisco. No filme, Piranhas assume outro sentido, o da solidão, pois a letra de uma canção afirma: “Essa cidade é uma selva sem você”. Diversos planos de ruas e praças vazias se sucedem,

até que a câmera escala o memorial de onde temos uma visão panorâmica da pequena cidade cravada na beira do rio. Ouvimos apenas o zumbido das moscas no calor e o canto de alguns pássaros. Na base do obelisco, o texto de uma placa comemorativa: “Homenagem do povo do século XIX ao povo do século XX”. Ao entardecer, distinguimos a voz de um pregador que, como um Antônio Conselheiro, anuncia as tendências dos anos por vir. Ele começa em 1888, ano da Abolição da Escravatura, e se interrompe em 1898. Esse período corresponde a uma virada de século marcada por importantes mudanças políticas, dentre as quais a proclamação da República em 1889 e a Guerra de Canudos (1896-1897). O pregador anuncia, então, o fim do mundo e o Apocalipse. É assim que os dois cineastas atravessam, por sua vez, a virada de um século.

CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS

Esse primeiro longa-metragem tornou Marcelo Gomes conhecido no plano internacional (o filme foi selecionado para o Festival de Cannes em 2005, mostra Un certain regard), e seduziu o público por sua dupla natureza: a uma só vez extremamente local e absolutamente universal. A história é simples: o jovem sertanejo Ranulpho, que deseja

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abandonar o Nordeste para escapar da miséria, encontra Johann, um jovem alemão que fugiu de seu país para escapar da guerra e que trabalha para o laboratório farmacêutico Bayer. Ele viaja de camionete pelo interior do Brasil, projetando filmes publicitários que exaltam os méritos de um novo medicamento: a aspirina. Estamos a 18 de agosto de 1942, mas ambos os protagonistas são alcançados pela História. Após os ataques nazistas a submarinos brasileiros, o Brasil declara guerra à Alemanha no dia 31 de agosto. Os dois amigos se tornam, assim, “inimigos”, e seus destinos vão se separar. O Sertão, território consagrado pelo Cinema Novo, é tratado aqui de um ponto de vista duplo e diametralmente oposto, como em Os fuzis de Ruy Guerra (1963): o inferno de um é o paraíso (temporário) de outro. A saturação luminosa do sol sertanejo já não surge mais à maneira de Luiz Carlos Barreto em Vidas secas, mas se torna sensível através do olhar de Johann, que não está habituado à cegante claridade que irrita os olhos. Marcelo Gomes opta pela cor, como ocorre em Baile perfumado, mas o Sertão que ele nos mostra não é verdejante e, sim, empoeirado, seco, desértico, árido. Tudo vem testemunhar esse inferno: as paisagens


Impactada por seu território, a filmografia de Marcelo Gomes é inovadora, atravessa as tradicionais fronteiras entre o Sertão e o mar, o rural e o urbano, o documentário e a ficção atravessadas, o caminho deserto e os casebres à beira da estrada. Ranulpho, personagem desabusado e amargo, não deixa de exprimir espanto ao tomar conhecimento da escolha de Johann de viver ali. Ele, ao contrário, tem um único objetivo: fugir. “Vou tentar a vida em outro lugar. Cansei desse lugar aqui, desse buraco.” Vindo de Bonança, cidade onde moravam apenas cinco famílias, ele sonha em deixar “esse lugar infame”, pois “aqui é seco e pobre. No Recife, a vida é melhor do que aqui.” A opinião de Ranulpho contrasta com a de outros sertanejos: o responsável pelo restaurante acredita, seguindo a consagrada expressão, que “o Brasil é bom demais!”. Ao que Ranulpho retruca: “Nada acontece nesse país, no Brasil nem guerra chega!”. Onde Ranulpho vê apenas seca e pobreza, Johann vê uma vantagem: pelo menos, aqui não tem bombas caindo do céu. Onde um não pode ganhar a vida, outro acumula fortuna. A declaração de guerra vai inverter a situação: aquele que perdia o sono com medo de perder seus papéis vai se livrar deles para poder fugir. A Amazônia, que representa a última chance para os mais pobres, será a salvação de Johann. E sua camionete, agora inútil, fará a alegria de Ranulpho: ele poderá enfim realizar seu sonho, aquele que ele só

ousou sonhar quando velava por seu amigo inconsciente, picado por uma cobra! A sequência da despedida na estação de trem é emblemática: ambos são animados pelo mesmo desejo de ser feliz, de ter uma vida melhor. “Eu vou escolher meu destino e vou enfrentá-lo. Eu vou fazer o que você vai fazer lá na Amazônia. Vou fazer meu destino. Meu destino é outro. Pra você, é melhor ficar lá mesmo, e só sair quando a guerra acabar”, declara Ranulpho. Como em Baile perfumado, que mostrava o fascínio exercido pelo cinema, o filme mostra o poder de persuasão dos filmes publicitários. Mesmo sem dores de cabeça, as pessoas compram aspirina. O laboratório Bayer divulga pequenos documentários com cenas de felicidade. O Brasil maravilhoso, por exemplo, coloca em cena uma São Paulo moderna, as Cataratas do Iguaçu, o Carnaval, a civilização. Já Felicidade é um filme mais romântico. Ranulpho reconhece o poder do cinema – “Como se disse aqui, isso vai vender Bíblia pra Satanás!” –, mas ele preferiria assistir ao filme em uma sala de cinema, e não sobre um pedaço de pano branco estendido entre dois pedaços de madeira. Jovelina, por sua vez, desconfia: os atores lhe parecem sem vida, sem carne. O filme desperta nela pensamentos

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melancólicos: “Esse filme é feliz, mas é triste. A gente começa a pensar na vida e a pensar na vida da gente. Deveríamos buscar a felicidade e mais nada. Cada vez que a gente procura acontece alguma coisa errada”. Quando Ranulpho sugere que ela poderia ser atriz, ela reage: “Eu quero ser feliz. Esse povo que aparece no filme não tem cara de quem é feliz. Nem parece gente de verdade, de carne e osso”. Do ponto de vista da narração, o rádio, único elo com o mundo exterior, desempenha um duplo papel no filme: distrair e informar. As canções tocadas não foram escolhidas ao acaso. O filme começa com Serra de Boa Esperança, de Lamartine Babo, que evoca a partida, a viagem e a saudade. O rádio é, igualmente, a voz da História: os avanços da Segunda Guerra Mundial, o governo brasileiro enviando os mais pobres ao cultivo de seringueiras para os americanos, a declaração de guerra. Furioso, Johann destrói o rádio para cortar tudo aquilo que o remete à Alemanha. Dessa forma, o tema central do filme é a viagem, assim como ocorre no anterior e no filme que virá a seguir. Seja uma viagem afetiva, antropológica, de iniciação, a trabalho ou em fuga, deslocamo-nos incessantemente, como se a imensidão do país impusesse tal destino. “Esse Brasil parece que não acaba nunca!”, exclama Johann, quase em resposta à questão inicial de Ranulpho: “Você pode me levar um pouco mais adiante?”. Perguntado sobre seu trabalho, Johann responde que “a viagem é a melhor parte”, deixando Ranulpho estupefato: “Tem que gostar muito de viajar pra chegar nesse buraco infame.” Ele lamenta, contudo, nunca ter tido essa chance, a chance de partir.

VIAJO PORQUE PRECISO, VOLTO PORQUE TE AMO

Esse filme se posiciona em continuidade aos dois filmes anteriores, dos quais ele guarda vestígios. De um lado, o título nos remete à inscrição mural que já havíamos reparado em Sertão de acrílico azul-piscina. Ela será a razão de ser da viagem que, no médiametragem, havia sido deixada sem objetivo preciso e sem comentários. Dessa vez, a trama é conduzida por um personagem do qual escutamos a


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voz em off. O percurso quase idêntico, à exceção do final: partimos do mesmo posto de gasolina para chegar a Acapulco, passando por Juazeiro do Norte, a fábrica de colchões, o forró e Piranhas. São acrescentados, de forma mais explícita, longos desvios por motéis e prostitutas. De outro lado, José Renato, geólogo interpretado por Irandhir Santos, guarda estranhas semelhanças com Ranulpho. Ele reclama de tudo: do calor sufocante, da monotonia das paisagens, do ambiente desolado, da seca, da comida, dos hotéis. Só que essa exasperação atinge seu ápice quando ele confessa que, no fundo, é a si próprio que ele não suporta mais. Como Ranulpho, ele viaja porque sente necessidade de se manter em movimento, de reviver, ele deseja “mergulhar na vida”, se jogar na água. Como Ranulpho, ele busca felicidade, tal como essa jovem prostituta, ele deseja uma “vida lazer”, simbolizada por um casal romântico, um amor exclusivo com um lar e filhos. Como Ranulpho, ele “mente” e inventa histórias para si mesmo: ele fingirá estar sempre casado, quando na realidade acaba de ser abandonado pela mulher. Como Ranulpho, ao exigir comida de verdade no lugar de conservas, ele exige um verdadeiro quarto de hotel com cama, arcondicionado e geladeira no lugar dos acampamentos de beira de estrada. Sua viagem, no entanto, tem um objetivo preciso: é uma terapia à qual José se submete. No 52º dia da separação, passadas seis semanas de viagem, ele constata que elas tiveram para ele o efeito de seis gotas de um poderoso analgésico que lhe tranquilizou o espírito mesmo sem ter abolido sua dor. José quer esquecer a esposa, o sofrimento e a solidão: ele assume sua fragilidade, seu desequilíbrio, sua incapacidade de viver sozinho. Esses temas são onipresentes nas canções bregas e nos grandes clássicos que conferem ritmo à viagem e ilustram a evolução dos sentimentos conflitantes que perturbam José: ele já não sabe mais se ama ou detesta Joana. Como seu espírito está atormentado pelo amor, seu olhar se demora sobre os casais: o primeiro, um casal com mais de 50 anos de casado, nunca esteve separado uma noite sequer;

um outro caminha abraçado pela rua; dois casais dançam forró; a foto de seu casamento, ele a deixou na Casa dos Milagres, pedindo a intervenção do Padre Cícero; a casa sem luz elétrica abriga um casal com seis filhos; o colchão é posto para secar fora após uma noite de amor; Carlos e Selma se juram amor eterno quando ele está prestes a partir com o circo deixando-a na espera, o que é uma outra forma de conjugar o título do filme. Tudo isso conduz José a uma incontornável conclusão: “Nada dura, nem as falhas geológicas, nem o acampamento, nem o amor”. Ele pode então retomar, por conta própria, a letra da canção de Noel Rosa, Último desejo, porque ele aceita a separação. A vida retoma seu curso, a paralisia passou: ele se dirige a Acapulco e se identifica com os famosos mergulhadores da Quebrada. Um novo futuro é possível, como havia indicado a inscrição mural: “O futuro está ao seu alcance”.

ERA UMA VEZ EU, VERÔNICA

Era uma vez eu, Verônica inaugura uma nova faceta da obra de Marcelo Gomes. Dessa vez, a protagonista é uma mulher urbana, ao contrário de Ranulpho e de José. Verônica vive com o pai e faz residência em um hospital psiquiátrico. Seu futuro parece inteiramente traçado, mas ela hesita, questionando sua vocação e sua vida privada. Como José, que estava entregue à introspecção, Verônica se confia a um gravador e, logo de entrada, se identifica como sua própria paciente: “Relato clínico da paciente estudada hoje – eu, paciente Verônica”. Tal interpelação pontua a evolução da personagem na busca por si mesma e no desejo de se conhecer melhor. Ela funciona como um off que acompanha os momentos de crise, que nos entrega suas dúvidas e que se sobrepõe, por vezes, à sua voz interior. Assim, quando, logo no começo da residência, ela se encontra desarmada diante do sofrimento de uma paciente, essa voz lhe sussurra: “Diga alguma coisa para consolar essa mulher, Verônica!”. Ao longo do filme, as vozes narrativas se conjugam em um jogo sutil, que alterna confissões diretas, gravador à mão, e confissões indiretas

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que são como prolongamentos do monólogo interior da paciente. Por vezes, as palavras dos pacientes reais invadem o campo sonoro do off – por exemplo, quando Verônica percorre a longa fila de doentes que aguardam uma consulta e se queixam. A relação cada vez mais estreita entre Verônica e seus pacientes se traduz não apenas em uma proximidade física, mas também na partilha de um mal-estar, da consciência de que ela e eles sofrem do mesmo mal. Quando uma moça confessa que o pior é que, mesmo tendo tudo (família, trabalho, companheiro), não consegue se sentir feliz, Verônica pega sua mão para reconfortá-la – “Eu juro que sei como é” – e a acompanha até sua casa. Verônica tem a impressão de que toda a sociedade se questiona sobre o sentido da vida. Ao observar os outros passageiros em um ônibus, escutamos sua voz: “Eu, paciente Verônica, com


dúvidas sobre a vida, como qualquer um. Eu, paciente Verônica, com medo do futuro, como qualquer um. Eu, Verônica, em crise”. Mas, ao contrário do geólogo, e buscando a felicidade assim como ele, ela rejeita o amor romântico. Sua terapia é o gravador, o sexo, seu pai e o mar. Situado no Recife, o filme começa e termina com a mesma sequência de banho de mar, durante o qual um grupo de jovens se abandona a jogos eróticos em uma praia de nudismo. Entre esses momentos, a deriva ontológica de Verônica, que a letra da música Bemvindas, de Karina Buhr, vem aliviar. A exemplo da garota de Clandestina felicidade, observamos a personagem diversas vezes boiando no mar com felicidade e abandono. Após a notícia da doença de seu pai, ela comenta essa felicidade clandestina: “Oh mar, minha grande verdadeira distração. Eu, o mar e essa linha do horizonte. Mar morno

uma vez eu, Verônica Eseradiferencia dos trabalhos

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anteriores por ter como protagonista um mulher urbana

esquentando meu umbigo, mar quente dissolvendo meus pensamentos”. A ausência da mãe parece também conjurada, tal qual a consciência da proximidade da perda do pai: ela recupera sua energia na água. Esse flutuar ao sabor das ondas remete metaforicamente a seu flutuar na vida. Uma noite, ela conta a uma amiga: “Se eu me conhecesse melhor, teria menos dúvidas sobre meu futuro, meu trabalho, minha vida, não sei se eu quero ficar aqui, ir embora, se eu quero ser médica… ou ser cantora”. Aparentemente, o que a mantém é a afeição que sente pelo pai. Na manhã após revelar a Gustavo que não se sente comprometida com ele, Verônica se penteia e penteia os cabelos brancos do pai, enquanto sua voz murmura:

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“Branco, branco, branco… tudo ficando branco ao meu redor. Eu, Verônica, envelhecendo junto com meu pai.” Ela o considera um pai “perfeito”, e confessa que seu próprio coração é de pedra – sua única felicidade é, justamente, partilhar da presença do pai. Todas as decisões que ela toma de fato dizem respeito a ele: ela aceita um novo trabalho em uma clínica particular e compra a casa de sua infância para morar com ele, desprezando o desejo de Gustavo de compartilhar de sua vida. Ora, ela precisa de liberdade, ela não pode resistir ao desejo de ficar com outros homens: sua teoria sobre o beijo (sexo e o desejo), assim como sua capacidade de canalizar a libido para o sexo nos momentos de crise permitem que ela avance pessoal e profissionalmente. Como nos filmes anteriores, a música participa da trama narrativa. Mesmo tendo gostos diferentes, pois seu pai é um entusiasta do frevo, eles dialogam através do entrelaçamento de canções. Quando, no início promissor de sua carreira profissional, ela cantarola o Frevo da saudade, seu pai a escuta da sala, cheio de ternura. Mais tarde, quando Verônica anuncia seu noivado com Gustavo, seu pai lhe dedica a canção Veronica, de Victor Yturbide. Após um dia particularmente difícil, que a deixa exausta, é com a célebre canção de Capiba, Manda embora essa tristeza, que ela é recebida. As canções servem como tradutoras dos sentimentos de Verônica. Ao se deparar com um paciente que se recusa a sentar, ela se lembra de uma canção ouvida certa noite sobre a recusa às normas impostas. Outra noite, quando Gustavo contempla seu sono, uma canção insinua ser tarde demais para amar. Alguns dias depois, Verônica cantarola na sua guitarra: “Aquela noite você me perdeu”. E, no Carnaval, quando ela se refugia à beira-mar, com o vento e a água batendo em seu rosto, escutamos novamente a canção Bemvindas, de Karina Buhr. É nesse momento que ela toma a decisão: “Cansei de tanto sofrer. Eu, Verônica, tentando sonhar mais com a vida”. Ela compra a casa de sua infância, separa-se de Gustavo e declara: “Eu, Verônica, paciente de mim mesma, tentando pensar a vida de outro jeito. Eu, pensando na vida, na vida como um filme. Era uma vez um


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filme que começaria lá dentro da minha cabeça e que revelasse um outro mundo. Um mundo com final feliz, um final feliz ao meu modo…”. Não podemos nos impedir de pensar em Jovelina, interpretada pela mesma atriz, que rejeitava o cinema justamente porque queria ser feliz! Mais de 60 anos separam as sequências dos dois filmes: assim como o ator Jofre Soares interpretava o guardião das tradições em Maracatu, maracatus, aqui é um outro ícone do teatro e do cinema, o ator W. J. Solha, que interpreta o pai, quem encarna o passado. Além da grande coleção de discos de frevo, encontramos em sua casa gravuras de madeira de J. Borges, uma biografia de Lenin e objetos de arte popular nordestina. Quando percorre o centro da cidade com a filha, ele repara nos vestígios de lojas de antigamente e no Trianon, popular cinema de arte que hoje está abandonado. Na sua época, as coisas pareciam mais estáveis, a vida parecia mais encaminhada, as escolhas políticas mais claras; na época em que se passa o filme, contudo, as mudanças, a violência e o neoliberalismo mergulham Verônica e os jovens de sua geração em dúvidas e insatisfações.

O HOMEM DAS MULTIDÕES

Com O homem das multidões, Marcelo Gomes atravessa uma nova etapa em seu questionamento sobre a condição humana. A codireção com Cao Guimarães, que considera o filme como o terceiro de sua trilogia sobre a solidão – iniciada com A alma do osso (2004) e Andarilho (2006) –, contribui em grande parte para essa travessia. Jamais os personagens de Marcelo Gomes, sempre grandes solitários, atingiram tamanha solidão. O silêncio predomina, os diálogos praticamente desapareceram, apenas três canções se substituem ao off de Juvenal. O formato quadrado da imagem, como as fotos do Instagram, as selfies, as fotos de perfil do Facebook e as imagens que as pequenas telas de nossos dispositivos móveis nos habituaram a ver, impõe uma visão restrita, fronteiriça à claustrofobia, pela qual o espectador é constantemente atraído para o fora de campo, como se fosse ali que a ação do filme se passasse. As cores pastel conferem uma

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O homem das multidões

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traz um dos personagens mais solitários da filmografia do autor

tristeza e um ar de tédio à cidade e ao metrô: tudo parece desprovido de vida, e apenas os deslocamentos mecânicos – como as sessões de ginástica na sacada, as idas e voltas dos trens do metrô e das escadas rolantes – animam os momentos que passamos com Juvenal e Margô. Essa mecânica está presente nos menores rituais: no trabalho, no sexo, na amizade e, às vezes, até mesmo em algumas repetições. Ao fazer a barba, Juvenal repete os gestos do pai de Margô; por três vezes eles brindam como autômatos; Margô pede seu habitual copo d’água quando vai à casa de Juvenal. Os personagens, eles próprios, perdem toda a sua densidade, toda a sua presença. Livremente inspirado no pequeno conto homônimo de Edgar Allan Poe, o filme transpõe do século XIX para o século XXI “esse grande mal que é não poder estar sozinho” denunciado pelo moralista Jean de la Bruyère. O personagem do texto, um velho, é substituído por um homem jovem e

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sua colega de trabalho. Como em Poe, os personagens não possuem passado ou futuro, e os acontecimentos de que eles falam são os mostrados no filme: trabalho, restaurantes, lojas, prostituição, casamento. Como em Poe, narrativa em primeira pessoa que descreve um personagem visto através da grande janela do Café D. antes de segui-lo pelas ruas de Londres, o formato 1.1 da imagem dá a impressão de que tudo é visto através de uma janela do metrô ou de uma câmera de segurança. Os planos são longos e os tempos da vida e do filme são idênticos. O sentimento de solidão é expresso de forma mais intensa do que no texto, pois os meios de comunicação se encontram multiplicados a ponto de criar duas entidades paralelas: o mundo real e o mundo virtual. Quando Margô decide se casar com um homem que ela conheceu pela internet e com quem ela se encontrou apenas duas ou três vezes, ela pede a Juvenal para ser seu padrinho. A recusa de Juvenal a deixa desorientada, forçada a reconhecer que, apesar de ter muitos amigos na internet, ele é seu único


Marcelo Gomes cria um verdadeiro “cinema de autor”, que tem em seu centro uma reflexão sobre a condição humana, seja ela nas grandes cidades ou no Sertão – o que dá no mesmo amigo na realidade. Assim, ela se propõe a pagar todas as suas despesas para convencê-lo a aceitar. Outro fato que acentua a intensidade dessa solidão é o jogo ambíguo da relação entre os dois. Aparentemente simples colegas, eles se visitam fora do trabalho e se observam através de câmeras de segurança interpostas. Na véspera de seu casamento, ela o observa longamente e chora, em um raro momento de emoção. Na noite do casamento, ele sonha com ela. Apesar dos momentos passados juntos, nenhuma cumplicidade ou troca parece possível. Como a imagem vertical, nenhuma relação horizontal, de abertura ao outro, parece possível. Timidez de um, conformismo de outro? Seria por estar secretamente apaixonado por Margô que Juvenal recusa ser seu padrinho de casamento? Ou seria ele incapaz de experimentar tal tipo de sentimento, um excluído, fadado a sofrer, como diz a canção Não creio mais em nada, de Paulo Sergio, quando ele frequenta uma prostituta? Estaria ele condenado a conhecer apenas a

tristeza, como diz a canção Felicidade, que ouvimos durante o casamento? Sua condição parece piorar à medida que Margô lhe conta seus projetos. Ele começa a demonstrar cansaço em casa e distração no trabalho: ele se torna, metaforicamente, um “homem morto”, tal qual o segurança morto no metrô cujo incidente ele relata ao pai. Ao contrário de Verônica, Margô não se coloca muitas perguntas, mas se conforma. Ela se queixa de um colega de trabalho e acredita que as relações humanas são mais complexas do que as máquinas que a cercam (basta ver o apartamento em que ela vive com o pai). Ela não conversa nem com o pai, nem com o noivo, e se casa simplesmente porque pensa que é o certo a se fazer. No dia seguinte, ela chega na casa de Juvenal com cara de desespero total, o casamento não mudou o sentido de sua vida: ela oferece dois copos a Juvenal, fuma e suspira. Ambos permanecem imóveis, com o olhar perdido no mundo com a canção Copo vazio, de Chico Buarque, que evoca tristeza e dor ao final do filme.

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CINEMA DE AUTOR

Quando Marcelo Gomes responde a um jornalista “Eu sou um pernambucano que faz cinema”, não é uma provocação, é uma realidade. Pudemos constatar a cada filme que ele é sempre movido por um desejo de fazer cinema, de experimentar novas linguagens, de contar histórias de forma diferente. Nesse sentido, ele cria um verdadeiro “cinema de autor” que tem em seu centro uma reflexão sobre a condição humana, seja ela nas grandes cidades ou no sertão – o que dá no mesmo. Sejam os personagens homens ou mulheres, eles são todos solitários, começam sempre buscando a felicidade, habitados por sonhos e desejos, e acabam sempre enviados ao vazio da existência e de si próprio. Esse aperfeiçoamento na observação de seus contemporâneos se traduz em uma linguagem cinematográfica cada vez mais radical. Recusando, desde o início, uma encenação clássica, Marcelo Gomes expande, a cada etapa, os limites do som e da imagem. Ele se dedica, por um lado, a um trabalho criativo sobre as vozes narrativas, trabalho que passa pela ausência física do ator, do recurso ao gravador até uma forma de autismo do protagonista, combinados com um uso cuidadoso de canções. Por outro lado, ele aprofunda a exploração de uma fotografia que traduza a visão subjetiva do protagonista – até a escolha do formato vertical 1.1. Nesse processo, ele discute suas ideias com outros realizadores de sua geração, compartilhando com alguns deles – como Karim Aïnouz, Sérgio Machado, Paulo Caldas, Lírio Ferreira, Cláudio Assis, Beto Brant, Cao Guimarães e Chico Teixeira – o desejo de falar do Brasil contemporâneo com um novo olhar. SYLVIE DEBS, é professora doutora titular na Universidade de Estrasburgo, especialista em cinema brasileiro, ex-adida cultural da embaixada francesa no Brasil e no México. Autora de diversos artigos e dos seguintes livros: Cinéma et littérature au Brésil. Les mythes du sertão: émergence d’une identité nationale (2002), Brésil, l’atelier des cinéastes (2004) e Cinema e cordel: um jogo de espelhos (2014)


Crítica C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 7 | 5 2


A LADAINHA DE BEBER No seu mais recente trabalho, poeta carioca apresenta ao leitor um livro mais grave que os anteriores, em que se nota a investigação da própria escrita TEXTO GIANNI PAULA DE MELO ILUSTRAÇÕES ADAMS CARVALHO

No novo livro de Bruna Beber,

escritora que segue publicando pela Editora Record, os poemas estão emoldurados por algumas setas. A dedicatória aponta para a bexiga imaginária dos pássaros, os minerais de caverna, a morfologia vegetal, os peixes abissais e o casulo particular – sua casa, a Tabacarícia. A epígrafe aponta Stela do Patrocínio, um falatório integrado à vida da autora, para quem a oralidade é compromisso e atenção. Nos agradecimentos, junto aos que são de seu convívio estão também Oxalufã, Oxaguiã, São Jorge, São Miguel Arcanjo e Oxóssi. No sumário, encontram-se números primos na tarefa de título, guiando a escrita pela abertura ao infinito, que parece cheio de buracos para quem se acostumou à contagem dos números naturais. Todos esses paratextos ou instâncias organizadoras antecipam e interagem, como é de se esperar, com aquilo que encontraremos no coração da obra. Ladainha soa como uma nota beberiana tocada uma oitava abaixo. É um livro mais grave que os anteriores, ele mesmo povoado por setas, por um anseio de rumos e direções que, à poeta em sintonia com seu tempo, nunca estão dados. Por isso, os ventos adentram as

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páginas de forma tão decisiva, sinalizador de chuvas vindouras & aliado dos que se movem e precisam respirar. Nota-se uma investigação da própria escrita, que se conjuga a uma aproximação dos elementos da natureza, além de maior abertura ao imponderável da espiritualidade. Esses assuntos, no entanto, seguem a trilha de imagens que, para o leitor desavisado, podem surgir como um nonsense, mas na poética em questão é um familiar detonador de estranhamentos, como disse a poeta Angélica Freitas. A cigarra, no primeiro poema, é símbolo de um canto ancestral que agora convive com a escritora (“Plantei uma goiabeira/ dentro do banheiro/ e a cigarra veio/ morar comigo”); um canto que deriva de um plantio; um canto que é cultivado, mas não subjugado (“O canto/ é ancestral, adquirido/ às vezes peço uma canção/ ela não tem ouvidos”). Não há espaço para domesticação, “é como criar uma sereia”, com o tanto de tentação e risco que isso deve implicar. Esse texto abre a seção intitulada vidádiva, na qual o sujeito poético parece empenhado em conexões. É notável na poesia contemporânea, frente à tradição lírica moderna marcada pela negatividade, o


Crítica

surgimento de vozes que ressoam uma espécie de maior confiança na experiência da linguagem. Conscientes da responsabilidade e dos limites de seu ofício, Júlia de Carvalho Hansen, Matilde Campilho e Ana Martins Marques são exemplos, apesar dos estilos bastante distintos, de projetos que se inscrevem entre a utopia e o desencanto, lidando com o desequilíbrio do mundo frequentemente a partir de um entusiasmo diante da possibilidade do livro “ser um lugar aberto, de contágio e de convívio”, como já disse Ana, ou do poema “salvar o minuto”, como falou Campilho. É como se, entre o sujeito e o mundo, entre interioridade e exterioridade, entre eu e outro houvesse mais disposição à cumplicidade. Justamente a série inicial de Ladainha produz efeito similar: 29. Laura me leva para a água Não é só assim que somos felizes Mas aqui somos mais É bom passar minúsculos Olhando para uma coisa só Como se nunca tivéssemos inventado Uma imagem sequer do futuro E então ficamos cerca de um minúsculo Olhando para o mar e fingindo Que o movimento das ondas Era parecido com estender lençóis E quem as estendia éramos nós Você sabe, a água não para de ser água E nós não parávamos de tentar Arrumar o mar, que não nos incomoda Ele é um peixe amando outro peixe Laura gosta de arrumar a cama Todos os dias, eu desligo o ventilador Porque a cama é um tipo de mochila De encosta, de bandeja, de sola de pé Para os morcegos; prisma ao que gosta de dormir, balcão ao que gosta de acordar Não sei explicar mas é como chegar na água E saber nadar, muito mais ainda assim e por tudo É sobre conseguir chegar naquilo que eu sou E cada vez mais perto daquilo que sou com alegria É uma camisa de força do avesso Muito boa para mergulho

Esse poema se apresenta em dois momentos, ambos iniciados pela ação de Laura que “me leva para a água” e “gosta de arrumar a cama”. Na primeira parte, o desejo de suspensão do tempo na experiência da felicidade: em um jogo de som e sentido, minutos se tornam minúsculos, mas ocupam todos os espaços “como se nunca tivéssemos inventado/ uma imagem sequer do futuro”. O presente, por sua vez, é onde nos deparamos com as cenas cotidianas – tão caras à poética de Bruna – se fundindo à natureza: estender lençóis no movimento das ondas. Novamente, ilusão de domínio não há: “a água não para de ser água”; tampouco há desistência: “e nós não

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parávamos de tentar/Arrumar o mar”. A mesma persistência e o mesmo fracasso familiar ao exercício poético, a luta vã com as palavras de que fala Drummond, mas que pode ser uma busca solar. Se, inicialmente, o mar leva aos lençóis de casa, na dobra do poema é a cama (e seus panos regularmente arrumados) que sugere imagens a partir de associações nada óbvias, movimentando-a como um prisma, imaginando-a atrás de si como mochila, por baixo como uma bandeja ou por cima como na sola dos pés dos morcegos. E entre a morada e o mar, lembrando um duplo tão presente em outra contemporânea, a já citada poeta Ana Martins Marques, chega-se à água e


“E então ficamos cerca/ de um minúsculo/ Olhando para o mar e fingindo/ Que o movimento das ondas/ Era parecido com estender lençóis/ E quem as estendia éramos nós”

se sabe nadar. Em Ladainha, Bruna fala sobre encontrar o cerne das próprias questões & nos oferece essa camisa de forçar liberdade, a estranhíssima e dificílima liberdade de ser quem se é (se possível, com alegria). Assim como em minúsculos/ minutos, vocábulos ou usos inusitados desentranhados dos jogos sonoros são recorrentes e produzem imagens que não estão inscritas numa ideia associativa confortável. Da palavra lentilha, por exemplo, pode sair um advérbio de modo que parece apontar para um parentesco com a lentidão (“Espera lentilhamente/ a última tempestade”); para não decepcionar as aliterações, um contrabaixo pode vir em vontrabaixo (“Viola violino

violoncelo vontrabaixo/ mas o que faz falta mesmo é o violão”); e sempre pode pintar uma “TV a flores”. A aproximação de imagens que se dá pela analogia dos sons também é incitada no poema 3: “E esse barulho/ é chuveiro quente ou fritura?”, “E esse barulho/ é ventilador de teto ou pião?”, “E esse barulho/ é chuva ou salva de palmas?”. Não é suficiente, no entanto, estacionar nas figuras, é necessário mobilizar a memória auditiva e receber as camadas sonoras do poema pelo ouvido. A maneira como esse questionamento fixo com pequenas variações (“E esse barulho/ é...?”) intercala as outras três estrofes indica uma estratégia composicional presente em outros poemas. A ladainha, que é canto e prece, que é oração dialogada em que os fiéis respondem ao sacerdote, que é reza repetitiva, que é também conversa fiada, aqui é observável tanto na totalidade do livro enquanto projeto quanto na concretude de um poema como o 79, em que se leem versos de

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afirmativas marcadas, remetendo a palavras de ordem, seguidos de uma espécie de refrão (“Poder é perigo/ e hoje acordei/ rindo”, “Dom é tom/ e hoje acordei/ rindo”, “Querer é criatura/ e hoje acordei/ rindo”). A forma como o próprio poema pode parecer entrecortado, como se fosse dois em um, também provoca o leitor na sua ideia de unidade: 97. Escrever é irmão do andar e primo do voltar, substitua No inverno é bom Escrever com calma e inventar um cinzeiro flutuante chegar e sair descalço do poema No verão bombom Escrever é sempre o tempo é uma mula elástica em fuga e se conselho fosse bom Sair na rua de moletom.


Crítica

Aqueles que tentarem circunscrever esta Ladainha à literatura marginal, que é fundamental na formação da autora, deixará escapar muitos elementos C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 7 | 5 6

A recorrência da escrita figurando como tema e como angústia é responsável por uma reflexividade diferente da que se observava na trajetória de Bruna; assim como o tempo é uma matéria mais indócil que antes (“uma mula elástica em fuga”). Parece haver diante de nós um sujeito às voltas com a própria poética, em um exercício de autocompreensão insistente, alguém que chega e sai descalço – despojado e exposto, sob o risco de pisar num prego ou contrair leptospirose no poema. E esse chegar à integridade, à proposição do seu projeto literário, essa recorrência do entrar ou tentar entrar, do mergulhar no próprio universo imagético e sonoro (“Sempre limpo os pés antes de entrar/ no sono e aí um frango inteiro lindo/ e cru me tira para dançar”) dá o tom da ladainha de quem, consciente do acaso e do imprevisível, compreende que entrar não é sinônimo de permanecer: é preciso estar sempre chegando e encontrando outras saídas (“eu entrei numa casa e disse se ventar agora eu vou morar aqui/ floriu; agora é perto dela que eu gosto de passear”).


Às vezes, essa busca sobe ao contorno do poema, como uma espécie de caligrama, e faz das palavras desenhos. No 31, temos uma chuva de setas, um cardume de setas e uma revoada de setas formando uma espécie de ponta de flecha. Esse poema abre a seção canseios, na qual o entusiasmo com a conexão vai se contraindo e certa negatividade começa a ficar mais explícita, o que tem continuidade na última parte do livro intitulada meu deos. Na matéria que se retroalimenta (“O fogo se desdobra/ em fogo e o fogo/ vira mais fogo/ muito fogo”), se expande e se transforma (“Até que vira/ cinza e a cinza/ um monte de cinza/ muita cinza vira”) está inscrita também a retroalimentação das próprias palavras, pois são elas que se repetem, se expandem e se transformam no jogo poético. Com frequência, basta estabelecer uma relação por conectivos atípicos para que velhos conhecidos como “vista” e “mar” ou “costa” e “rio” se condensem em uma aparição estranha (“Casa com piscina no

deserto/ foi vista no mar descendo/ de costas pelo rio”); ou ainda de uma perturbação semântica – o “sisal congelado”, o “sisal intravenoso” e os “amigos sisal” – pode nascer o “poema sisal”. Em Ladainha, Bruna acolhe as obsessões que não se explicam e deixa claro que esses poemas também a surpreendem (“eu os estranhos como um velho conhecido/que não chegou a ser amigo, silêncio cheio/ de ilusão e mandioca madura” ou “Todo poema carrega um rosto/ e nele um susto que nunca passou”). De que imagens é capaz “um cego de fones”? Em seu exercício de individuação, o mundo não escapa, nem o que é pertinente ao tempo presente (“na escada de incêndio/ e sua inseparável/ atmosfera de desastre”) e ao horror que produz (“o mundo se carameliza em bosta”). Entre ironia e reflexividade, a catástrofe nos é ofertada: “A rave do fim do mundo/ é a mais longa de todas”, uma imagem lisérgica e exaustiva. Quem insistir em pensar esse livro na chave da poesia marginal, cuja importância na formação da autora é inegável, deixará escapar muitos elementos. Não sou eu que estou dizendo, mas a própria ladainha: “Meus poemas agora duvidam entre a pedra/ marrom e a pedra verdesabão, de cara vejo/ a suspensão confio a tudo que vai passar”. E essa fé no fluxo apesar da dúvida aparece forte no poema 47: Do jeito que as coisas andam áridas, sem gelo, pra trás não vou voltar da rua trazendo pão Mas pode ser que o tempo mude e amanhã eu acorde com vontade de fazer um suco Sofro de dores barítonas dois dias sem abrir a boca minha cabeça tá um baile de ácaros Não sei pra onde vai aquele trem mas meu nariz já consegue filtrar os segredos que as rosas trocam no vento

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É que eu estou de férias poderia até organizar um batizado, fingir que adoro camarão Se você pensar não é todo mundo que tem primos, os sisos, conta no banco e um colchonete de solteiro para visitas Por isso vou fazer o que sempre quis comprar um caixote fechado de uvas e passear de caminhão nas vias proibidas. Nesse texto (de sete estrofes), a descontinuidade ativa o Poema de sete faces de Drummond na memória. O que Davi Arigucci Jr. escreve sobre este último também nos serve aqui: “Uma coerência latente do seu sentimento pode então estar dirigindo a organização interna do texto que a variedade e a instabilidade do assunto apenas encobrem sob aparente falta de lógica”. No poema de Bruna Beber, as estrofes estão mais relacionadas, todas passam por uma enunciação em primeira pessoa. De princípio, observa-se uma expectativa de comportamento perante o “jeito que as coisas andam”, mas é possível uma mudança nessa realidade e em seus efeitos. A instabilidade exterior está dada e o sujeito é contagiado por ela, não à toa sofre de “dores barítonas”. Há pouca convicção na progressão do poema, a errância é a tônica com tudo que ela possa oferecer de aprendizagem (“Não sei para onde vai aquele trem,/ mas meu nariz já consegue filtrar/ os segredos que as rosas/ trocam no vento”) e também de possibilidades (“poderia até organizar/ um batizado, fingir/ que adoro camarão”). A penúltima estrofe introduz um interlocutor na encenação de uma partilha das incertezas referentes às possíveis faltas ou possíveis privilégios. O poema não esclarece se é valoroso ter sisos, primos, conta no banco ou um colchonete de solteiro para visitas, tampouco nos diz se o sujeito os tem ou não, o que ele faz é falar mais uma vez das possibilidades, que agora detonará uma escolha: a de fazer o que sempre quis. GIANNI PAULA DE MELO, jornalista e mestranda em Teoria e História Literária. ADAMS CARVALHO, ilustrador.


RICARDO LABASTIER

TODO SANGUE DERRAMADO Em ensaio inédito, Açúcar, Ricardo Labastier apresenta uma série de fotografias construídas artesanalmente em que toma partido do que há de violento e predatório na formação social brasileira TEXTO JUAN ESTEVES

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Ensaio FOTOS: RICARDO LABASTIER

Vermelho é uma cor associada à

violência, ao fogo e à guerra, tanto quanto se aproxima da paixão e do amor. Traz reações físicas e metafísicas, assim como representa a prosperidade, felicidade e boa sorte, dependendo de onde vivemos. Tem esse caráter geográfico onde estão distantes e opostas em certas culturas. Aquelas, cujo andar é mais cartesiano, e outras que trazem a espiritualidade maior do inexplicável e do intangível. Em Açúcar, Ricardo Labastier trafega por todos esses caminhos. Inspirase na formação social brasileira, sua onipresente miscigenação, e em um conteúdo repleto de equívocos e controvérsias, diz o artista, que se deixou levar em direção a essa vermelhitude. A representação do sangue derramado, base da nossa ocupação colonial brasileira, violenta e predatória, que se junta à sua experiência real ao presenciar um “crime banal”, associada ao desejo premente de confeccionar artesanalmente seu conteúdo fotográfico. Em uma abordagem mais construtivista, percebemos que todas essas fontes discrepantes anotadas por Labastier estão distantes de uma habitual coerência à qual a arte fotográfica vive melancolicamente associada. Ela é um elemento que não pertence a este mundo, mas, sim, um fato que nos coloca diante do pensamento ao abordar seu caráter estético, como sugere o pensador americano Nelson Goodman (1906–1998). O fotógrafo nos propõe, a priori, assemblages trazendo uma reflexão estética referenciada pelo uso da cor, pelos códigos e anotações que apresenta. As assemblages, como bem explicou o artista francês Jean Dubuffet (1901–1985), “vão além das colagens”. Partem de uma espécie de estética de acumulação, materiais que são incorporados à obra de arte. Aqui, nas fotografias de Labastier, representadas por fios, moedas, rendas, a vela derretida, armas e terços católicos. Não trazem a ruptura das fronteiras entre arte e vida cotidiana, mas, ao contrário, reforçam e expõem situações de forma dialógica que dizem respeito à nossa herança e ao presente, muitas vezes dicotômicos. No processo de criação, uma obra dá lugar a outra, o material derretido, que

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Ensaio FOTOS: RICARDO LABASTIER

cobre o vidro, é reutilizado para a próxima obra, e esta só passa a existir na fotografia, uma dinâmica que articula um ciclo permanente, cuja exequibilidade está na exploração desses materiais que carregam na cor complexos apelos psicológicos. Difícil não pensar nos registros dos sincretismos cujos interiores avermelhados eram povoados no Barroco e suas ornamentações abundantes. Ricardo Labastier tem uma afeição a essa palette, presente também em suas obras anteriores, como no livro Abismo da carne (Olhavê, 2014). Entretanto, a justaposição de luz e sombra que caracterizava o Barroco, em Açúcar, é amenizada pela compressão mais profunda da cor vermelha onipresente, da qual saltam sutilmente seus componentes, ainda que não percam a teatralidade procurada, muito menos a sua emoção. As imagens também trazem um complexo caminho de ressignificação em suas distintas perspectivas da religiosidade, oriundo da utilização memorialística na construção de uma nova realidade percebida pelo autor, que abastece a sua sintaxe e que se propõe, com certo sucesso, a organizar essa fragmentação trazida de diferentes fontes estéticas e conceituais, cujo resultado é a estese que sentimos ao entrarmos nessa ambientação avermelhada criada com emoção, beleza e força que só são possíveis de serem reunidas pelas mãos de um grande artista. JUAN ESTEVES é fotógrafo, crítico e curador. Escreveu para o caderno Ilustrada, da Folha de S.Paulo, para as revistas Iris Foto, Select e Santa Arte Magazine, entre outras. É articulista da revista Fotografe Melhor e edita o www. blogdojuanesteves.tumblr.com dedicado à análise da fotografia.

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Ministério da Cultura, Governo do Estado de Pernambuco, Secretaria de Cultura de Pernambuco, Fundarpe, Museu do Estado de Pernambuco e Santander apresentam:

PROGRAMAÇÃO

setembro e outubro

Ouvindo Música no Museu do Estado de Pernambuco

2017

A programação do Ouvindo e Fazendo Música no MEPE (Museu do Estado de Pernambuco) nos meses de setembro e outubro será de múltiplos estilos musicais.

ALEXANDRE RODRIGUES 02/09 • SÁBADO • 17h

OFICINA DE RITMOS BRASILEIROS PARA VIOLINO E VIOLONCELO 09/09 • SÁBADO • 15h

AFLUENCIAS - PAULA BUJES E PEDRO HUFF 09/09 • SÁBADO • 17h

SOLON FISHBONE 16/09 • SÁBADO • 17h

FLAIRA FERRO 23/09 • SÁBADO • 17h

RABECADO 30/09 • SÁBADO • 17h

ALINE FRAZAO 07/10 • SÁBADO • 17h

LIVIA NERY 14/10 • SÁBADO • 17h

LULA QUEIROGA 21/10 • SÁBADO • 17h

HARMONICA HINDS 28/10 • SÁBADO • 17h

PATROCÍNIO

PRODUÇÃO

SÁBADOS COM MAIS MÚSICA NO RECIFE

APOIO

Ouvindo Música no Museu do Estado de Pernambuco. INGRESSOS Programação regular: R$6,00 Pessoas acima de 60 anos e estudantes: R$ 3,00

MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO Av. Rui Barbosa, 960 Graças Recife – Pernambuco – Brasil – 52011-040 Telefone: 81 3184.3174 / 3170 E-mail: museu.mepe@gmail.com Agendamento para visita guiada: 81 3184.3174 Horário de funcionamento Ter a sex 9h às 17h Sáb e dom 14h às 17h

REALIZAÇÃO

SECRETARIA DE CULTURA

MINISTÉRIO DA CULTURA


MARIA JÚLIA MOREIRA

Lançamento

A mulher na obra de Chico Buarque

LEIA TRECHO DO LIVRO QUEM É ESSA MULHER? A ALTERIDADE DO FEMININO NA OBRA DE CHICO BUARQUE DE HOLANDA, DE ALBERTO DA COSTA LIMA, A SER LANÇADO, EM BREVE, PELA CEPE EDITORA. C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 7 | 6 5


Lançamento

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REPRODUÇÃO

análise e a contextualização da trajetória das mulheres no mundo ocidental e, em especial, no Brasil, têm importância fundamental para a compreensão da maneira como elas são retratadas no cancioneiro de Francisco Buarque de Hollanda. Nascido em 19 de junho de 1944, no Rio de Janeiro, com um “L” dobrado, ele é o quarto dos sete filhos do casal Maria Amélia e Sérgio Buarque de Holanda (com um “L” só), célebre historiador brasileiro. Desde muito cedo, foi inserido num ambiente intelectualmente rico e cercado de mulheres por todos os lados, entre elas as quatro irmãs, três das quais mais novas do que ele, e a mãe, figura basilar da sua família. A casa dos Buarque de Holanda era local de frequentes encontros de poetas, escritores, músicos, jornalistas, intelectuais, diplomatas, cujas reuniões, não raro, eram embaladas por música, uma das paixões de Sérgio.74 Aos 12 anos, Chico já compunha algumas canções e até operetas, encenadas com a ajuda das irmãs. Os dois anos de educação em escola americana na Itália, durante o período em que o pai lecionou a cátedra de Estudos Brasileiros na Universidade de Roma, renderam-lhe uma fluência em idiomas que o ajudou a abrir as portas da grande biblioteca paterna. Aos 15 anos, lia Honoré de Balzac, Albert Camus, Gustave Flaubert, Jean-Paul Sartre, André Gide, Marcel Proust, Stendhal, Franz Kafka, Tolstói e Dostoiévski. Entre os brasileiros, seu padrão de escritor passou a ser Guimarães Rosa. “Ninguém é filho do autor de Raízes do Brasil75 impunemente”, anotou a jornalista Regina Zappa, uma das biógrafas de Chico.76 No fim dos anos 1950, vivia-se no Brasil uma atmosfera de encantos, em que se vislumbrava a possibilidade de realização do que se poderia chamar de uma utopia brasileira. O país, em suas imensas contradições, parecia, naquele momento, estar perto de reconciliar seus antagonismos históricos e rumar para a modernidade. Nesse cenário, a nova capital, Brasília, brilhava como a síntese do reencontro do Brasil consigo mesmo, símbolo da sociedade nacional integrada.77 Virar Oscar Niemeyer, o arquiteto que a idealizou e construiu, era o sonho de muitos jovens da época. Chico Buarque foi um dos que embarcaram na onda. Ingressou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo em 1962, mas logo se desinteressou pelas pranchetas. Entusiasmo, mesmo, ele encontrou nos bares do entorno da faculdade, ambiente de intensa agitação musical, onde a música popular brasileira fervilhava no embalo de todas as transformações que vinham ocorrendo desde a década anterior.

Com açúcar, com afeto foi feita por encomenda de Nara Leão

Quando o LP 78 rotações Chega de saudade, do baiano João Gilberto, saiu da prensa e ganhou as ruas em 1958, o Brasil ficou atônito. Aquela letra, aquele ritmo, aquela voz, aquela batida no violão revolucionavam a música no país e enterravam uma longa fase da canção nacional, repleta de boleros e acordeões. A Bossa Nova nascia transformando as melodias de então em “relíquias do romantismo noir de homens mais velhos, que tinham amantes e não namoradas e cuja alma era tão enfumaçada quanto as boates em que afogavam seus chifres”.78 O novo movimento viraria uma febre, que despertaria nos jovens, como nunca antes na história brasileira, a vontade de cantar, compor e tocar um instrumento. Mais exatamente, o violão.79 As letras da bossa nova também mudariam a abordagem da mulher, que

O LIVRO

O AUTOR

QUEM É ESSA MULHER? A ALTERIDADE DO FEMININO NA OBRA DE CHICO BUARQUE DE HOLANDA figura entre os ainda raros estudos sobre a música popular brasileira. Neste estudo, o autor mergulha na obra do compositor para analisar a condição da mulher em suas músicas e identificar de que maneira o discurso ali presente a aborda como ser humano e social.

ALBERTO DA COSTA LIMA é radialista, jornalista e advogado. O recifense foi removido pelo Ministério das Relações Exteriores, do qual é servidor, para a Embaixada do Brasil em Paris, em 2007. Lá, fez um mestrado em Línguas, Literatura e Civilizações Estrangeiras pela Universidade Paris III - Sorbonne, cujo trabalho final virou o presente livro. Atualmente, mora em Brasília.

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No início de sua carreira, Chico já contava com sete músicas que falavam sobre a mulher, embora nenhuma em que as mulheres falassem deixaria de ser a “outra” ou a “Amélia”, a “dona de casa”, para virar musa inspiradora. É em meio a esse clima que Chico Buarque resolve deixar de lado a arquitetura para investir em música. “Queria cantar como João Gilberto, fazer música como Tom Jobim e letra como Vinicius de Moraes.”80 Aos 20 anos, começou a compor profissionalmente e já não era desconhecido quando, em 1966, a música A banda explodiu no 2º Festival Popular de Música Brasileira da TV Record, transformando-o em sumidade nacional.81 A canção carregava os contornos de modinha feliz e cheia de lirismo, nos moldes do que fora iniciado pela Bossa Nova. Em artigo publicado no jornal Correio da Manhã naquele ano, o poeta Carlos Drummond de Andrade saudava “a felicidade geral com que foi recebida a passagem dessa banda tão simples, tão brasileira e tão antiga na sua tradição lírica”, que dava “bem a ideia de como andávamos precisando de amor”.82 Antes dela, Chico Buarque já havia produzido algumas composições sobre o tema (amor). E, nessa época, também já contava com sete músicas que falavam sobre a mulher, embora nenhuma em que as mulheres falassem. Algumas até se tornaram sucesso. Mas todas elas ainda abordavam o elemento feminino, de certa forma, à moda da velha escola, de maneira muito assemelhada aos sambas da década de 1920, em que a mulher era uma espécie de objeto pitoresco na vida do homem, este o eu lírico, elemento central da canção, como ocorre em A Rita, de 1965. Nessa letra famosa, a personagem feminina é reproduzida a partir de visões machistas construídas acerca das mulheres, como dissertado nos capítulos anteriores. Rita, faceira

e aproveitadora, abandona o seu homem apaixonado. Na ruptura, leva tudo o que era dela (seu retrato, seu trapo, seu prato) e tudo o que podia levar dele: bens materiais e sentimentais (uma imagem de São Francisco e um bom disco de Noel) e a própria alma do sujeito (o sorriso, representação da alegria; o assunto, representação da capacidade de comunicação e interação; os planos, como perspectiva de futuro; os pobres enganos, como a crença numa vida feliz a dois; os vinte anos, na condição da própria juventude perdida). Vingativa, ela trata de matar o próprio sentimento do amor na saída, arranca o homem do seu peito e deixa muda a forma mais viva de ele se expressar: o violão. Tal qual Eva, a mulher seguia enganando o homem. No ano anterior à A Rita, os militares haviam ascendido ao poder por meio de um golpe, e a turma da bossa nova, divergente quanto aos rumos do movimento musical, tinha rachado. Nara Leão, a musa bossa-novista, adotou a linha da canção de protesto, ao lado de compositores dos morros cariocas, cuja apoteose foi o espetáculo Opinião. Mas, após dois anos dessa aliança entre favela e burguesia, ela decidiu partir para outra etapa e descobriu em Chico Buarque o compositor ideal para renovar seu repertório, com canções que retomassem o lirismo do início da década. Nara, cantora então consagrada, projetou-o no cenário nacional ao gravar algumas de suas músicas, como Olê, Olá e Madalena foi pro mar.83 Esta última gira sobre a mesma temática da mulher que deixa o seu amado a ver navios. E ele, resignado e apaixonado, procura lembrar a si mesmo que “Jesus manda perdoar/a mulher que é Madalena”. Da Europa e dos Estados Unidos, a classe média brasileira recebia as notícias das agitações sociais e, em especial, da

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Chico Buarque posa com sua esposa, à época, Marieta Severo, e suas três filhas: Silvia (à esquerda), Helena (à direita) e Luisa (no colo de Chico)

marcha das mulheres na luta por mais direitos e mudança de sua condição. Atenta aos ventos de um novo tempo, Nara – ela mesma uma mulher de papel vanguardista para a época – sugeriu a Chico que investisse em música desse gênero, sobre a temática feminina, para o qual ele parecia ter talento.84 Surgiu, assim, em 1966, Com açúcar, com afeto, a primeira de Chico Buarque de Hollanda (nessa época, ainda com dois Ls) em que a letra é protagonizada por um eu lírico feminino que disseca os sentimentos da mulher de maneira sem precedentes na música popular brasileira. “Foi a primeira música que eu fiz (com a mulher) em primeira pessoa. Foi por encomenda da Nara (Leão). Ela pediu e eu escrevi”,85 relembrou Chico durante a gravação de um documentário sobre a temática feminina em sua obra. Atualmente, cerca de 190 canções – mais que metade do que Chico produziu em quase cinco décadas – trazem a mulher como personagem poética. Cumpre, inicialmente, destacar que letra de música pode, sim, ser considerada como poesia. Assim entendem, por exemplo, renomados poetas brasileiros da atualidade, como Affonso Romano de Sant’anna e Nelson Ascher, para os quais a discussão toda está malposta, em que pesem intelectuais norte-americanos, franceses e mesmo brasileiros considerarem a comparação escandalosa. No entendimento do crítico e ensaísta Afrânio Coutinho, por exemplo, a sociedade bra-

sileira jamais elaborou o seu signo poético, peculiar, mesmo que polissêmico. Em decorrência disso, vive o vazio e a crise, cuja representação mais bem-acabada é a paraliteratura. Letra de Chico Buarque, aos olhos de Coutinho, é antiliteratura ou literatura da crise da literatura.86 Mas, para pensadores como Ascher, o cerne da questão está em um problema de definições. Dependendo de onde se coloquem os limites da poesia, as letras estarão dentro ou fora deles.87 Na mesma linha, Romano de Sant’anna defende a viabilidade de se estudar esteticamente um texto de música como poema.88 Corroboram esse entendimento os estudos lexicais de literatura dirigidos pelo professor Michel Jarrety. Neles, identifica-se claramente que a obra musical buarquiana pode ser classificada como “poesia sonora”. Na definição do próprio Jarrety, esse gênero reúne um conjunto de experiências “tão diversas, que, a partir de meados do século XX, construíram um lugar privilegiado para a voz, esteja ela trabalhando somente sobre a dicção, esteja ela amplificada por um microfone. Dessa forma, a voz pode ser pura ou bem-associada a sons ou a músicas. A parte do sentido se encontra, então, minorada em proveito do corpo e dos recursos da oralidade”. Jarrety, contudo, admite que “o livro não pode acolher na sua plenitude essa poesia que, por vezes, trabalha baseada nas unidades mínimas da linguagem”.89

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A poesia sonora de Chico é uma das que mais sensivelmente captam o feminino e melhor o exprimem na música popular brasileira Pode-se dizer que a poesia sonora de Chico Buarque é uma das que mais sensivelmente captam o feminino e melhor o exprimem na música popular brasileira. Por um lado, ela carrega uma visão masculina da mulher, numa lírica com contornos, muitas vezes, corporal e sensorial, como na canção Tororó (Dentro da fêmea Deus pôs/Lagos e grutas, canais). Por outro, apresenta um eu lírico feminino, por meio do qual a fala da mulher emerge de uma perspectiva espantosamente feminina, como em Pedaço de mim (Que a saudade é o revés de um parto/A saudade é arrumar o quarto/Do filho que já morreu).90 É a partir das vozes desse eu feminino e desse eu masculino que surgirão todas as figuras construídas de mulher nas letras de Chico Buarque. Essas figuras do feminino repisarão, de muitos modos, os estereótipos e os papéis forjados para as mulheres na sociedade ocidental e, principalmente, na brasileira. Adélia Bezerra de Meneses enxerga na obra de Chico características da tradição grega do dionisismo, que se dirigia, sobretudo, aos que estavam fora da vida política, à margem da ordem social da polis, como os escravos e as mulheres. Linha de atuação intelectual, aliás, que seduziu muitos pensadores ao longo dos séculos, como Olympe de Gouges, conforme visto no primeiro capítulo. O discurso de Chico – que também trata de malandros, pivetes, operários – dá voz aos que não a têm. Assim, encontra-se nele o tema das mulheres vinculado ao tema da marginalidade social.91 Por essa razão, a poesia buarquiana, carregada de romantismo, não renova mitos ou reforça clichês sobre as mulheres. Antes de tudo, expõe existencialmente o cotidiano em sua

profundidade e em seus limites,92 e questiona a realidade feminina ao evidenciá-la. Foi Paris quem deu ao compositor, quando ainda tinha 10 anos de idade, o seu primeiro encontro com a imagem de uma mulher desnuda. Na década de 1950, teatros, cartazes de rua, capas de revista parisienses expunham, sem pudores, mulheres com pouca ou nenhuma roupa. Para um garoto brasileiro daquela época, a experiência antecipava em muitos anos uma visão que, praticamente, só seria desfrutada na maioridade. “Aquilo foi um alumbramento pra mim”,93 confessou o autor, que viveu infância e adolescência cercado pela mãe e quatro irmãs. Casado aos 23 anos com a atriz Marieta Severo, com quem a relação durou mais de três décadas, ele teve três crianças. Todas mulheres. “Tenho lá em casa várias almas pra me inspirar”,94 chegou a ponderar. Não sem razão, as tantas e tão próximas fontes de inspiração talvez tenham levado Chico Buarque, desde cedo, a fazer da observação e da curiosidade os principais meios de construção da sua poesia com temática feminina. “Há sempre, pra mim, um grande mistério na alma feminina. Eu tenho uma grande curiosidade com relação à mulher, como ela pensa, como ela age. Eu sou um espectador, um voyeur, um vedor das mulheres. Gosto de ver como elas se movem, ver como elas raciocinam, ver como elas reagem diante das coisas. É sempre uma surpresa pra mim. Não acaba. Eu me considero um grande desconhecedor da alma feminina, ao contrário do que se fala... Virou um lugar-comum por causa das canções. Eu sou um sujeito muito curioso exatamente por desconhecer, por querer saber, querer entender e não entender nunca.”95 Desse processo, redundaram poemas-canções que, selados pela marca da poesia em geral, versam sobre histórias de amor e desamor, sempre. E é no contexto de uma relação afetiva que se flagra o fundamental do feminino.96 Percorrendo conflitos sentimentais dessa natureza, Chico Buarque aborda – ora por meio de um eu lírico masculino, ora por meio de um eu lírico feminino – características marcantes da mulher, a partir das quais constrói um discurso social significativo sobre a sua condição. No início da sua carreira, as mulheres das canções tinham perfil passivo e alienado, circunscritas aos domínios do lar, de onde viam o mundo por uma janela. O exato estereótipo criado na sociedade brasileira para as brancas, conforme analisado no capítulo anterior. Entre as músicas mais ilustrativas dessa situação, estão Ela e sua janela e Januária, cujo nome tem origem no radical latino janus, de onde vem o termo janela. Mas, ao longo do tempo, essas mulheres foram mudando de perfil, tornando-se mais autônomas e, em alguns casos, passando inclusive a impor-se aos homens, como em Olhos nos Olhos, a primeira música “mais feminina, que é uma mulher cantando a sua liberdade”,97 segundo definiu Chico Buarque de Holanda (nessa época, já com um “L” só, após ter retirado o outro do sobrenome para manter a grafia original do pai). Nas poesias sonoras buarquianas, as mulheres, envoltas em histórias de amor, transformam sua condição do mesmo jeito que na vida, razão pela qual a trajetória do eu lírico em Chico Buarque insere-se no âmbito da problemática humano-existencial.98

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Maria Bethânia é uma grande intérprete das composições de Chico Buarque

Chico Buarque ingressa, seja por meio de um eu lírico feminino, seja por meio de um eu lírico masculino, em um terreno que não é seu, mas do outro

Para Roland Barthes, “dois mitos potentes nos fizeram crer que o amor podia se sublimar em criação estética: o mito socrático”, segundo o qual “amar serve a engendrar uma multitude de belos e magníficos discursos, e o mito romântico”, cujo fundamento parte da crença de que se produz “uma obra imortal ao escrever sua paixão”.99 De fato, Chico Buarque é notadamente reconhecido pela forma precisa como estrutura e mescla, nas letras de suas canções, imagens construídas e sensibilidade no uso das palavras. E, ainda, pelo que consegue evocar em quem escuta ou lê sua poesia. Em sua obra, há uma perfeita costura de signos, significantes e significados. Para falar sobre o amor, ele afronta “o esbanjamento da linguagem: essa região de enlouquecimento onde a linguagem é ao mesmo tempo muito e muito pouco, excessiva e pobre”.100 Com mais da metade do seu cancioneiro dedicado à mulher, o poeta ingressa, seja por meio de um eu lírico feminino, seja por meio de um eu lírico masculino, em um terreno que não é seu, mas do outro. É um campo desconhecido, como mesmo atesta Buarque, e minado de contradições. Por um lado, o poeta crê “conhecer o outro melhor que qualquer um e o afirma triunfalmente; e, de outro lado, ele é frequentemente tomado por esta evidência: o outro é impenetrável, raro, intratável”. Não se pode “abri-lo, voltar à sua origem, desfazer o enigma”. É dessa forma que o outro (a mulher em Chico Buarque, no caso em tela) aparece no discurso amoroso como um enigma insolúvel do qual depende a vida do autor. “É consagrá-lo como deus. No lugar de querer definir o outro (o que é que ele é?), eu me volto para mim mesmo:

o que é que eu quero, eu que quero te conhecer? (…) Isso redundará no seguinte: meu outro se definirá somente pelo sofrimento ou pelo prazer que ele me dá.”101 À luz desse entendimento, resta claro que a invenção do outro, como analisa Jacques Derrida, surge a partir da invenção de si mesmo. É, então, que o poeta deve se preparar “porque para deixar vir o outro todo, a passividade, um certo tipo de passividade resignada pela qual tudo volta ao mesmo, não está colocada. Deixar vir o outro não é a inércia pronta a qualquer coisa. Sem dúvida, a vinda do outro, se ela deve restar incalculável e de uma certa maneira aleatória, ela se subtrai de toda programação. Inventar, isso seria, então, ‘saber’ dizer ‘vem’ e responder ao ‘vem’ do outro”.102 “As minhas (mulheres) são todas inventadas”,103 disse Chico Buarque durante a gravação do DVD À flor da pele. Dessa maneira, ele acolhe e canta a mulher que lhe “passa em exposição”, para usar uma expressão de sua música As vitrines. As mulheres do seu cancioneiro são aquelas mesmas da sociedade, com suas características e seus estigmas, às quais ele sabe dizer “vem”, convidando-as à sua obra. São figuras do cotidiano, humanas, distanciadas da perfeição de um mundo utópico. Sua profunda compreensão do processo de transformação histórico-social feminino e do papel da mulher na formação da sociedade brasileira, temas dos dois capítulos precedentes, fica evidente em suas construções poéticas. É o modo como ele se prepara, para citar novamente Derrida, “a deixar vir, ao mesmo tempo inventar e deixar vir o outro”.104 A mulher inventada em Chico Buarque reflete de um jeito muito bem-elaborado a sua condição social, sem, no en-

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Personagens femininas são destaque na Òpera do Malandro

tanto, ratificar estereótipos ou propor idealizações. Assim, sua Iracema, ao contrário da “virgem dos lábios de mel e de cabelos tão escuros como a asa da graúna”, do escritor José de Alencar,105 é uma imigrante ilegal que “voou para a América” e “tem saudade do Ceará, mas não muita”. Sua morena, diferentemente da de Álvares de Azevedo, que corava de vergonha diante das elegantes declarações de amor do poeta,106 vem de Angola, requebra com sensualidade e sem pudores e é sua “camarada do MPLA”.107 A música, que chega hoje por tantos meios a uma massa amorfa chamada público, insere-se numa “forma de comunicabilidade” que Jean Baudrillard e Marc Guillaume classificaram como “espectral”. “A comunicação espectral realiza, sem dúvida, o ideal da comunicação: multiplicar as novidades a distância.” Isso, contudo, redunda no fenômeno do anonimato, uma vez que “o destinatário deixa de ser identificado. O anonimato inicia um corte que vai separar o sujeito não somente de seu sentimento de si mesmo e de seu contexto social, mas até mesmo de toda a realidade. Ele seria um meio de liberar o imaginário e, dessa forma, de tomar uma distância em relação a si mesmo”. Mas o anonimato é, também, “o operador que permite articular o mundo social, utilitário – portanto, em parte desumana, ao mesmo tempo necessária e funesta – e o mundo íntimo, passional, humano e, ao mesmo tempo, irrisório, mas essencial”.108 O fato de a música provocar “a elisão da identidade, como aquela de uma letra ao fim de uma palavra”,109 propicia a sua recepção e aceitação por grupos de diversos matizes sociais. Como uma carta com infinitos destinatários, as

canções fazem “surgir o outro no tema de que trata, sob a forma do discurso do inconsciente, uma alteridade que viria do próprio tema e seria, contudo, fonte de alteração”. Elemento imerso num “mundo social”, o sujeito emerge ao encontrar o seu “mundo íntimo”, a partir do momento em que dá contornos próprios e particulares às letras das músicas que recebe como anônimo. Essas ressonâncias da “espectralidade” fazem parecer que a canção lhe foi feita sob medida. Alcançar essa façanha em larga escala – a de fazer com que, em um mundo de cultura de massa, o sujeito sinta-se único ao identificar-se e reconhecer-se na obra – é o grande objetivo de qualquer emissor de meio “espectral”. Nesse aspecto, Chico Buarque, como já o classificou o escritor Millôr Fernandes, parece ser a “única unanimidade” no Brasil.110 Na crítica musical brasileira, praticamente inexistem retoques à sua obra. Os havidos fizeram parte de um momento muito peculiar da música popular, na década de 1960, em que integrantes de movimentos como o Tropicalismo e a Jovem Guarda rivalizavam com os remanescentes da bossa nova e independentes, como Chico.111 No que tange aos poemas-canções cuja temática é a mulher, apenas um afigurou-se polêmico, por pura incompreensão de algumas críticas feministas da época. Na década de 1970, foi lançada Mulheres de Atenas, produzida em conjunto com o dramaturgo e diretor de teatro Augusto Boal, que tem a Grécia como pano de fundo para retratar a condição de submissão feminina numa sociedade patriarcal (como a brasileira). A frase inicial de todas as seis estrofes

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– “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas” – foi interpretada por alguns integrantes do recém-surgido movimento feminista do Brasil como uma agressão e um escárnio. Obviamente, a análise apressada cedeu, em pouco tempo, espaço à razão e a música passou a ser enxergada no contexto em que foi produzida: o de denúncia de uma situação social. Atualmente, é considerada uma das mais belas composições buarquianas. “Havia um pouco de bobagem naquilo tudo (nas críticas). O feminismo levado às últimas consequências levava a besteiras”,112 comentou Chico Buarque, décadas mais tarde. Há, na obra buarquiana, no que concerne ao tema mulheres, um discurso marcado por uma alteridade “constitutiva da ipseidade (ou seja, o que constitui a individualidade de um ser como ele enquanto ele mesmo e diferente dos outros) ela mesma. A ipseidade do si mesmo” na poesia de Chico “implica a alteridade em um grau tão íntimo, que uma não se deixa pensar sem a outra, que uma passa um pouco na outra”. E, nessa linha de raciocínio, está “não somente uma comparação – si mesmo similar a um outro –, mas também uma implicação: si mesmo enquanto… o outro”.113 As mulheres inventadas de Chico Buarque de Holanda, ora percebidas por um eu lírico masculino, ora por um eu lírico feminino, protagonizam histórias, cujas narrativas forjam identidades próprias, como analisa Ricœur.114 É essa identidade narrativa, essa identidade das personagens, das quais o perfil psicológico construído cria uma ligação entre elas e o público,115 que será objeto da análise dos próximos capítulos. 74 Werneck, Humberto, Chico Buarque – Tantas Palavras, São Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 24. 75 Raízes do Brasil, publicado em 1936, é considerado um dos melhores estudos já realizados sobre o processo de formação do Brasil e de sua sociedade. 76 Zappa, Regina, Chico, Perfis do Rio – Chico Buarque, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 3a edição, 1999, p. 93. 77 Silva, Fernando de Barros e, Folha Explica – Chico Buarque, São Paulo, Publifolha, 2004, p. 15. 78 Castro, Ruy, Chega de saudade – A história e as histórias da Bossa Nova, São Paulo, Companhia das Letras, 3a edição, 2006, p. 197. 79 Id., ibid., p.198. 80 Werneck, Humberto, op., cit., p. 32. 81 Silva, Fernando de Barros e, op. cit., p. 30. 82 Werneck, Humberto, op. cit., p. 50. 83 Zappa, Regina, op. cit., p. 58. 84 Werneck, Humberto, op. cit., p. 100. 85 DVD Chico Buarque: À flor da pele, dirigido por Roberto de Oliveira. 86 Coutinho, Afrânio (direção), A literatura no Brasil, volume VI, Rio de Janeiro, Editorial Sul Americana, 2a edição, 1971, p. 226. 87 Ascher, Nelson, Letra de música é ou não é, enfim, poesia? Folha de São Paulo, São Paulo, 5 de outubro de 2002, Ilustrada, p. E2.

88 Sant’anna, Affonso Romano de, Música popular e moderna poesia brasileira, Petrópolis, Vozes, 1977, p. 97. 89 Jarrety, Michel (dir.), Lexique des termes littéraires, Paris, Librairie Générale Française, 2001, p. 330. 90 Meneses, Adélia Bezerra de, Figuras do feminino na canção de Chico Buarque, Ateliê editorial, São Paulo, 2001, p. 20. 91 Id., ibid., p. 41. 92 Boff, Leonardo, Chico Buarque e a cultura humanista cristã, in Chico Buarque do Brasil, Rinaldo Fernandes (org.), Rio de Janeiro, Garamond: Fundação Biblioteca Nacional, 2004, p. 85. 93 DVD Chico Buarque: À flor da pele, dirigido por Roberto de Oliveira. 94 DVD Chico ou o país da delicadeza perdida, dirigido por Walter Salles e Nelson Motta. 95 DVD Chico Buarque: À flor da pele, dirigido por Roberto de Oliveira. 96 Meneses, Adélia Bezerra de, op. cit., p. 21. 97 DVD Chico Buarque: À flor da pele, dirigido por Roberto de Oliveira. 98 Silva, Anazarildo Vasconcelos da, O protesto na canção de Chico Buarque, in Chico Buarque do Brasil, op. cit., p. 178. 99 Barthes, Roland, Fragments d’un discours amoureux, in Œuvres complètes, Tomo 3 : 1974 – 1980, Paris, Éditions du Seuil, 1977, p. 547. 100 Id., ibid., p. 549. 101 Id., ibid., p. 586. 102 Derrida, Jacques, Invention de l’autre, in Psyché – Inventions de l’autre, Paris, Éditions Galilée, 1987, p. 53. 103 DVD Chico Buarque: À flor da pele, dirigido por Roberto de Oliveira. 104 Id., ibid., p. 54. Para expressar melhor essa ideia, Derrida criou o verbo “invenir”, formado pela fusão dos verbos em francês “inventer” (inventar) e “venir” (vir). 105 O romance Iracema, representante da fase indianista do Romantismo brasileiro, foi escrito por José de Alencar em 1865. 106 O poema Morena, de Álvares de Azevedo, escritor da segunda geração romântica brasileira, também conhecida como ultrarromântica, foi inserido na publicação póstuma Lira dos vinte anos, que reúne parte expressiva da sua obra. A primeira edição data de 1853. A última versão, cujo formato circula atualmente, é de 1942. 107 MPLA é a sigla do Movimento Popular de Libertação de Angola, surgido em 1956, para lutar contra a dominação colonial portuguesa e em favor da independência angolana, somente conquistada em 1975. Camarada é a forma de tratamento difundida entre os comunistas, que o MPLA, vinculado ideologicamente ao sistema, adotou entre os seus integrantes. 108 Baudrillard, Jean et Guillaume, Marc, Figures de l’altérité, Paris, Descartes & Cie, 1994, pp. 30-31. 109 Id., ibid., p. 32. 110 Werneck, Humberto, op. cit., p. 62. 111 Id., ibid., pp. 58-59. 112 DVD Chico Buarque: À flor da pele, dirigido por Roberto de Oliveira. 113 Ricœur, Paul, Soi-même comme un autre, Paris, Éditions du Seuil, 1990, p. 215. 114 Id., idem., p. 175. 115 Jouve, Vicent, Poétique du roman, Paris, Armand Colin, 2a edição, 2007, p. 91.

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Ficção C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 7 | 74


SE UM VIAJANTE NUM REMOTO DIA DE VERÃO… TEXTO FERNANDO MONTEIRO*

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Ficção

GRAF ZEPPELIN

W Z! K D K A! U Z Q P! Alô, Zeppelin! Alô, Zeppelin! Alô, Zeppelin! Usted me puede dar nuevas del Zeppelin? Dove il Zeppelin? Where is the Zeppelin? Passou agorinha em Fernando de Noronha. Ia fumaçando! Chegou em Natal! (Augusto Severo, acorda de teu sono, bichão!) Alô, Zeppelin! Alô, Zeppelin! Rádio, rádio, rádio! W Z – Q P Q P – G Q A A… = Jiquiá! Apontou! Parece uma baleia se movendo no mar. Parece um navio avoando nos ares. Credo, isso é invento do cão! Ó coisa bonita danada! Viva seu Zé Pelim! Vivôôôô! Deutschland über alles! (Ascenso Ferreira)

Alguém aqui já leu ou, mesmo, ouviu falar de um livro intitulado

Brasilien Tag und Nacht, publicado em Berlim, no já remoto ano de 1935, pela casa editora (há muito extinta) Rowohlt Velag GmbH? Esta pergunta inicial não deveria ser graficamente mutilada, no seu final, por algum revisor que insista em usar o “h” minúsculo no “GmbH”, que só tem consoantes tidas como “ásperas” no idioma que… Mas, do que estou falando? Nem disse, ainda, o nome do autor da obra, um homem para mim totalmente desconhecido, cujo nome não soa mal: Wilhelm K. von Doren. Entretanto, em toda internet, não há nada sobre Doren – nem a respeito do seu livro de “impressões” a respeito do nosso país, com algo, talvez, do repuxo de um queixo aristocrático (?) que talvez se crispasse de orgulho da sua raça, ao olhar para baixo, do alto do dirigível Graf Zeppelin em que Doren informa ter permanecido, num mês luminoso de 1935, “estacionado no ar, nas imediações da cidade do Recife, por cinco dias inteiros, enquanto todos nós aguardávamos que a situação política local se normalizasse”…

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Penso num teuto “queixão” – possível – levantado em desdém para os “nativos” lá em baixo. Penso no seu olhar altaneiro mais do que no “von” que poderia ser tão fajuto quanto o do lendário cineasta Joseph von Sternberg (o diretor de O Anjo Azul que não tinha sangue algum dessa cor, nas veias vienenses, e que só incluiu o “von” no seu nome artístico para soar bem aos ouvidos matutos da América). Voltemos ao Doren encarapitado, em 1935, no Zeppelin provavelmente “estacionado” entre os 300 e os 500 pés (ele não informa sobre a altura do “charuto” de alumínio expectante sobre o Recife, naqueles “cinco dias”), de maneira que podia se ver a gente no meio do verde que, certamente, se tornaria quase cinzento, na altitude – de cruzeiro – dos normais 3 mil pés da aeronave-orgulho de uma Alemanha sobre a qual esse Doren não deixou uma linha escrita, de adesão ou de desconfiança ou censura. Claro que ele e os demais 34 passageiros depois desceram para a terra firme da torre de amarração no Jiquiá – no meio da política tupiniquim


Mas, do que estou falando? Nem disse, ainda, o nome do autor da obra, um homem para mim totalmente desconhecido, cujo nome não soa mal: Wilhelm K. von Doren C O N T I N E N T E S ET E M B R O 2 0 1 7 | 7 7

movediça, pisando em torno da torre (que ainda lá está) num “planeta” descrito, por Wilhelm, exatamente desta maneira: “A luz incomoda – para dizer o mínimo. Bananas e peles negras suadas, entre recortes contrastados em linhas retas e curvas. Apertamos os olhos mesmo por trás de lentes escuras. Odores sobem como se as suas narinas houvessem descido até o fundo de cloacas de alguma forma iluminadas pela espécie de clarão que há nos cheiros adocicados e, ao mesmo tempo, pungentes (sem suavidade), assim como um fruto podre pode se anunciar, num cesto enganador, apenas pelo aroma passado, pelo fedor da putrefação começada debaixo das cascas ainda amarelas. É um lugar para o pintor e o sanitarista, o escritor e o naturalista capaz de não apertar o nariz nem desviar a vista das coisas como elas são”. Sacam esse Doren? Percebem como, logo depois de desembarcado, ele examina as suas sensações? Ou não tão logo – porque seu livro só viria a ser publicado no ano de véspera da


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E existe um livro dentro do outro, quando começam as anotações que Wilhelm chama de O Anjo Pardo, espécie de relato pessoal de uma aventura amorosa fogosidade nazista começando a tocar fogo na política europeia –, de maneira que está aqui um homem que não enxerga a trava na sua vista, porém vê o argueiro nos olhos dos “índios do Brasil”. O que ele veio fazer aqui? Foi, certamente, no verão – e talvez não pensasse em se demorar pelo Trópico de luz diante da qual Doren insiste em apertar os olhos travados. E Wilhelm continua a descrever esse Brasil chegando-lhe também pelo nariz pálido, debaixo do qual talvez houvesse um bigode curto, “masculino” como hoje é difícil de acreditar, neste final de 2016 no qual folheio quem sabe o único exemplar de Brasilien Tag und Nacht existente aqui na “taba”, pelo menos.

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Lendo e relendo o pequeno volume ensebado – apenas com as letras góticas do título, na capa sem atrativos – que eu fui encontrar num sebo da Trindade, em Lisboa (populosa de refugiados e espiões entre 1940 e 1945), cada vez me parece mais

claro que não é um guia de viagem, uma dessas coisas tradicionalmente engessadas entre conselhos e recomendações aos visitantes, temerosos, de algum mundo “exotisch”. Ora, dentro do Brasilien existe pouco do que esperaria um turista embarcando em Zeppelins ou em navios de passageiros que aportavam como se descessem em Timbuktu (me garantia Camilo José Cela, em conversa sobre Raimundo, o seu tio “cearense” perdido no Brasil remoto da infância do Nobel). E existe um livro dentro de outro, quando começam as anotações que o enigmático Wilhelm chama de O Anjo Pardo, espécie de relato pessoal de uma aventura amorosa “abaixo da linha da correção”. O que isso significa? É curioso. Há, realmente, dois momentos no livrinho de aspecto “inocente”, e isso se dá exatamente entre o antes e o depois de “von” Doren confessar “um contato bem mais estreito – digamos assim – com o (sic) país de gaiolas que parecem frescas para as aves…”

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As reticências são dele – e creio poder vê-lo, nas suas próprias palavras, “desembarcando como qualquer europeu no verde opulento do subúrbio, óculos escuros, reprimindo um pouco a respiração que capta os cheiros tão mais fortes do que os de casa”, porém muito menos acres, também, do que a mistura de odores de cabelo e carne queimada dos campos a caminho de serem inaugurados naquela Germânia do “Prof. Dr. Otmar Freiherr von Verschuer”, médico destacado nas páginas internas do jornal alemão que Doren, numa fotografia mais próxima, traz debaixo do baixo, e, depois, aberta na página cujo contato pode ter ajudado a encardir a sua roupa – antes, imaculada – onde o tecido de cor clara se mancha daquela tinta preta dos caracteres góticos anunciando que o Dr.Verschuer declarava estar o seu país “na vanguarda da pesquisa dos genes e das raças”. Essa anotação é minha. Eu a assumo, porque sei um pouco de história das atrocidades nazistas e, sim, o “doktor” festejado naquela manchete de 1935 é o mesmo que, no ano seguinte, se tornará o diretor do Instituto do Terceiro Reich para a Herança, a Biologia e a Pureza Racial, com sede em Frankfurt. E que terá muitos alunos de vaga expressão alucinada – porém não alarmante, ainda –, dentre os quais um em especial será, mais tarde, tristemente famoso como o “anjo da morte”. O decano Verschuer foi quem conseguiu financiamento para esse seu (indiscutivelmente) protegido, nos termos assinados pelo próprio diretor do Instituto de Frankfurt: “Meu colaborador e ajudante no presente estudo é meu assistente Dr. Joseph Mengele, médico e antropólogo…” Tudo isso ainda iria acontecer, e, nesse momento ainda “normal” da narrativa (?), o nosso Doren desembarca do enorme “Zepelintra” (apelido que o diverte, porém não entende) no Recife, “num mundo de azáfama aparentemente inocente debaixo de muita luz”. Vindo de alguma treva – no meio dos campos meticulosamente cultivados sob a névoa –, ele sempre insiste em mencionar a luz, a “excessiva luz”.


Ficção

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Será Wilhelm K. von Doren o tal “K. Doren” referido entre os fotógrafos assistentes do célebre Fritz Lang nas filmagens de Der Müde Tod? A minha memória cinéfila – já incerta quanto a nomes e datas – foi refrescada pelo crítico pernambucano Ernesto Barros, que recentemente me confirmou haver, de fato, um assistente de câmera chamado “Doren”, no filme preferido de Lang, na sua “fase muda”. O sujeito teria vindo fotografar o nosso país? Por iniciativa própria ou, se não, a serviço de quem?… Sim, porque era bastante cara a passagem no dirigível com destino ao longínquo Brasil (algo equivalente a 14 mil euros atuais), desfrutando-se do imenso conforto que oferecia a aeronave com apenas 35 lugares disponíveis. Desses, normalmente a lotação não ultrapassava os 20 passageiros interessados em conhecer as nossas “selvas” interrompidas, aqui e ali, por “modorrentas cidades” observadas como jaulas e “gaiolas” de nativos. Sim, muito caro mesmo era o passeio extravagante para alguns “eleitos” que

dispunham de cabines duplas, com sala de estar e de jantar e “até de um salão para fumar, cuidadosamente isolado para não correr o risco de incendiar o perigoso e inflamável gás de sustentação da aeronave, o hidrogênio”. Doren parece deslumbrado ao descrever os confortos do Zeppelin, ele que abandonou a viagem (qualquer propósito eventual da viagem) para sumir aqui, “onde Lil Dagover – a atriz de Der Müde Tod – NdE – poderia reinar como uma estranha rainha dessa gente basbaque a nos espionar, a nos tocar, a nos atingir no cerne de nervos crispados”, escreve o alemão que talvez não fosse alemão, fosse austríaco (como Sternberg e o seu falso “von”). Por causa de Doren, fui pesquisar a vida de Lil, e fiquei sabendo que ela fez uma montanha de filmes. Aqueles melodramas de alpinismo de Leni Riefenstahl superaram, na época, a altura da fama das obras artisticamente mais empenhadas às quais a Dagover emprestou o seu talento – muito maior do que o de Leni, pelo menos como atriz. E Lil não entrou em confraternização com os nazistas,

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nem serviu à propaganda do Partido, conforme aconteceu com a sua rival de A lâmpada azul, filme adorado por Hitler. Apesar disso, a estrela Lil Dagover ficou na Alemanha, sofreu o grande desastre como qualquer cidadã dependente do mercado negro para comprar comida e meias e tudo o mais, ao invés de partir com Fritz Lang, que lhe teria dito (não estou inventando): “Você terá notícia, não sei quando, não sei onde, de Fritz Lang fazendo um filme chamado A moça branca do Brasil, baseado naquele seu rapto bem nos nossos narizes. Mas não deixarei que revelem a fonte do argumento”… Isso está referido em Brasilien Tag und Nach. É um livro confuso, sim, e nesse diapasão é que, de repente, passa a falar do “Anjo Pardo” que lhe lembrava “a Lil de belíssimas pernas cruzadas, uma longa piteira na boca, o falso ar de colegial de férias num terraço dos Alpes”. Hermione é nome do “anjo” – o do Brasil – que emerge da segunda parte meio em desordem como se tomado por plantas dos mangues, por joias holandesas (holandesas?) entre detritos da maré de afogados vencidos pela “morte cansada”.


O sujeito teria vindo fotografar o nosso país? Por iniciativa própria ou, se não, a serviço de quem?... Sim, porque era bastante cara a passagem no dirigível com destino ao longínquo Brasil ***

“Nunca vi natureza tão bela! – escreveu Edouard Manet, desembarcado do navio Havre-et-Guadaloupe, no porto do Rio de Janeiro, às vésperas do Carnaval de 1849.” Essa anotação prova que Doren era um homem culto, ou, pelo menos, não totalmente desinformado sobre o país “distante quase como a Lua”, e, já no século XX, “ainda estranhíssimo para a tripulação do Zeppelin parado no ar do Recife”, tubérculo de metal pesando sobre uma falsa “jovem cidade”. Wilhelm K. terá se “adaptado”, afinal, como praticamente se adaptou o rapaz francês, no Rio, em 1849? Este filho da burguesia parisiense irá se tornar, na década seguinte, o pintor célebre do préimpressionismo, para sempre com a luz brasileira nos olhos que se aprimoraram em face da luz atenuada da Rue PetitsAugustins (hoje, “Bonaparte”)… Isso não tem nada a ver, essa pequena digressão que recorda o jovem Manet na “gaiola” carioca, tão antes dos tempos do gordo dirigível que deixou de voar para o nosso Pindorama em 1937, quando já não se sabe se o misterioso Doren

permanecia no Recife, ainda no meio da nossa luz “tão forte” quanto sempre foi diante das caravelas, dos paquetes e dos modernos navios cheios dos labirintos ideais para abrigar clandestinos durante uma longa viagem transatlântica. Doren viajou num Zeppelin caro e não era um penetra (nem tampouco um convidado), pelo que deixou expresso no livro que aqui se desdobra – como se fosse o reflexo de um reflexo no exterior bojudo das aeronaves sonolentas sobre as cúpulas de igrejas acordadas pelos próprios sinos, nos finais de tarde. “Havia surpreendentes senhoritas bonitas esportivamente trajadas durante a manhã – algumas fumando com elegância não policiada – e outras moças de meias a todas as horas, o vestido composto sempre sobre as pernas acaloradas na intimidade das coxas unidas que mãos imaginárias tentam atravessar no mar da fantasia pior do que ilimitada: indecente. Suadas senhoras, ligeiramente esquivas, exibiam pernas longas e fortes nos decks, e riam e acompanhavam as notícias transmitidas por um rádio intermitente, no meio das ondas

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cortadas pelo redondo nariz do Zeppelin apontando para as pernas separadas da América Latina. Aqui, houve uma óbvia montagem literária entre a visão das passageiras estrangeiras e a das “senhoritas” do Recife – montagem essa que Doren tem que ter deixado ficar, deliberadamente, na revisão da obra só publicada três anos depois. É assim que ele começa a operar as suas estranhezas, nas dobras, na incerteza ou na impossibilidade de ser claro, no meio da hora negra em que pisou no Recife vindo das florestas de sagas e das selvas rudes que talvez preparassem o futuro da Alemanha e do Brasil: pequenos e grandes estupros políticos igualmente selando alianças para abrir caminho para fascistas e ................................................................. ................................................................ dessa dança sinistra de Lohengrin, o nosso Wilhelm misterioso põe os pés de sapatos brancos na lama constante das chuvas. No seu livro, as primeiras monções, isto é, as primeiras anotações – em forma de carta não


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especificamente endereçada – falam, sem entusiasmo, do entorno que ele vê e cheira (e toca) com a indiferença de gelo se desfazendo sob o sol tropical. Depois, se descontrola para essa mesma pessoa: “Você ainda permanece na Lua? Eu estou descendo à terra, madre – como não sei se também dizem aqui, ainda não ouvi (nem sei se quero ouvir). A lua influencia a água, as marés, a lua é distante como o caco de um espelho de bronze que já foi extremamente polido e hoje mal reflete a mecha do cabelo da moça debruçada sobre a vitrine que expõe objetos de adorno meio incompreensíveis, os artefatos antigos de alguma civilização antiga da qual você risse, com os seus maravilhosos dentes brancos, mãe. O que alguém pode pensar quando chega, não propriamente exausto, nem especialmente interessado (ou magnificamente indiferente) numa cidade quase carnívora? Mas eu não pretendo ficar aqui pelo tempo determinado por seus novos – ou velhos – amigos do Partido. Há luz demais, cheiros demais (nenhum vindo da Lua refletida no espelho do quarto de uma senhora que se banha) por

todos os lados de claridades invasivas…” (isso é uma litania, no livro, ele parece mortalmente fascinado pela claridade e os pontos acima correspondem a algo que quis realmente omitir.) Doren descreve o Recife como se penetrasse num circo de mármore sujo, cagado de moscas e de besouros que qualquer um teria vontade de estourar para ver esguichar talvez a tinta verdíssima do pintor Gauguin “cujo pequeno quadro você vendeu mais do que rapidamente, quando Greta lhe disse para vender – porque a Alemanha iria morrer, por uns tempos, do gás inebriante e tóxico dos Walpurgis”. Não se entende isso dos “Walpurgis”. E ele passa a falar do tal quadro em associação com esse nome, alemão, de sangue e tempestade: “Como eu gostava daquele quadro! O rosto estranho de uma mulher que não teme pensar em alguma coisa que outros chamariam de ‘perversa’, mütte: Edgar – preguiçoso e agudo – teve aquele palpite curioso (‘ela está pensando em abortar’), que você detestou ainda mais do que o quadro (agora), porque, maman, eu sei que a Lua quis me assassinar, ou quase

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sei, ou pelo menos desconfio com a incerteza dos Walpurgis maternos, neste lugar sem sorte” A anotação conclui assim, vaga e sem pontuação, sem se saber se alude a um Recife já não visto do passadiço debruçado sobre a nossa “basbaquice”. A linha está simplesmente interrompida, mais uma vez (e permaneceu assim no livro intitulado, tão disfarçadamente, em alemão).

***

Com o amarelado volume nas mãos, no largo da Trindade das velhas portuguesas de preto subindo, dificultosamente, as calçadas altas de Lisboa, eu pensava no Recife de 1935 com os seus fantasmas apagados. E um deles teria sido “a Dagover local” que inesperadamente surge no relato do alemão, a recifense, “parda”, a aparição (de onde, de quando?), quando Doren de novo está falando de “luz e frutos podres”, suores e gente para quem um estrangeiro, nos dias remotos de um verão… Meus pensamentos se interrompem quase tanto como o texto do estrangeiro solene que se dilui com seus óculos


Com o amarelado volume nas mãos, no largo da Trindade das velhas portuguesas de preto subindo as calçadas altas de Lisboa, eu pensava no Recife de 1935 escuros, o “herr” do rio da noite do corpo da mãe na noite da alma germânica de espáduas muito alvas, na confusão entre o branco e o negro que apaga todas as certezas do falso livro de viagem por acaso encontrado nesta temporada no inferno – sem Rimbaud – em busca de alguma lembrança que, sim, estranhamente coincide com o reverberar de “uns dentes sem defeito aflorando naquele sorriso. De algum modo, combinavam com a selvageria inocente dos olhos, pois ela devorou, já, todas as minhas resistências ponderadas e refinadas num cenário onde a cultura se derrete como açúcar debaixo do sol. O que há para fazer com ‘refinamento’ – quando se está a morrer de civilização e ódio presentes até na música?” Claro que isso é Doren falando, dessa maneira tão íntima, no livro que salta, pula datas, não explica nada a partir de certa altura – e nos introduz a coisas consumadas, sem explicação. Para começar, não começa e, certamente, não é “o relato de uma viagem”, conforme se anuncia. O “anjo pardo – um anjo quase azul na

noite vanghoguiana de Casa Amarela” – domina a parte final da narrativa mais do que nunca vaga, imprecisa, remetendo para o Reich visto da mata e para “a virtude estranhíssima do vício a convocar para a perda e o aniquilamento (como só o fazem os povos cansados)”.

EPÍLOGO

Quantos, ainda, morrerão pensando que “O Anjo Azul” é o apelido da jovem (mas já “decadente”?) dançarina Lola Lola, a personagem vivida pela magnética Marlene Dietrich, sob as ordens do exigente esteta Sternberg, diretor do famoso filme do mesmo nome?... E quantos escritores – e candidatos a escritores – seguirão desperdiçando adjetivos (“decadente”, “magnética”, “exigente”, “famoso”) lançados como arroz de noivos sobre a cabeça convencional da literatura em núpcias com o corpo monótono do óbvio? O Anjo Azul referia o nome do cabaré, na verdade designava a casa noturna – como se usa dizer – que também existiu aqui (eu acabei de saber), nos anos em que durou a carreira comercial

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dos Zeppelins passando pelos nossos céus igualmente preguiçosos, antes de pousarem, desgraciosos, arrastados para a torre de amarração do Jiquiá que é “a única que resta no mundo”. Estamos sempre repetindo isso, e, bem, eu também estou me repetindo, aqui. A vida é feita de reflexos e de repetições. Wilhelm K. von Doren deve ter morrido já há muito tempo, e eu posso finalmente publicar alguns fragmentos do seu Brasilien Tag und…, sem maiores problemas, espero (“vão surgir problemas, sim”, avisou-me alguém que mantém um bemconhecido escritório de advocacia neste Recife bem diferente daquele que o alemão conheceu, em 1935). Quem foi ele? – volto a perguntar, agora num quintal da Rua das Graças de folhas caídas sob a chuva (que “tem carícias de morte”, segundo o poeta Ascenso). Uma única coisa eu poderia responder: foi o autor de Brasilien Tag und Nacht, publicado por Rowohlt Velag GmbH, de Berlim, em 1938, ainda no tempo dos dirigíveis. .................................................................. ............................................................... “O Graf Zeppelin completou, no total, 147 voos ao Brasil (sendo 64 transatlânticos) entre os 590 voos da sua longa carreira de 17.177,48 horas de voo, em nove anos de operação (1928-1937), o que o tornou o mais bem-sucedido dirigível da história da aviação. Foi uma fantástica e impecável carreira para uma aeronave que foi projetada e construída como protótipo, mas que, de tão perfeita, acabou sendo colocada em serviço. Transportou um total de 34 mil passageiros, 30 toneladas de carga, incluindo duas aeronaves de pequeno porte e um carro, e 39.219 malas postais, com total segurança e sem acidentes.” .................................................................. ............................................................... FERNANDO MONTEIRO, escritor, cineasta e crítico de arte. Autor de obras como Mattinata (2012) e O Livro de Corintha (2013). * Todas as imagens usadas para ilustrar esta Ficção foram cedidas à Continente pelo Museu da Cidade do Recife. Estas e outras imagens foram publicadas no livro Zeppelin no Recife, de Jobson Figueiredo e Dirceu Marroquim.


Indicações Fotografia

Poesia

Meu coração está no bolso

Flâneur e voyeur, duas palavras francesas que podem definir graciosamente a atuação como fotógrafo do recifense Ivan Granville (1910–1975). E não seriam elas mesmas sinônimo – ou necessidade – da atuação dos fotógrafos, sobretudo daqueles dedicados à fotografia de rua? O livro O terceiro homem – A fotografia e o Recife de Ivan Granville, organizado pelo historiador Felipe Toscano (Cepe Editora), remete o leitor à saborosa circunstância de caminhar pelas ruas da cidade, arredores, arrabaldes e fotografar com a sensibilidade do olhar e do sentimento. Para os que veem a obra hoje, a saudade do vivido e imaginado é quase inevitável.

FOTOS: DIVULGAÇÃO

Em julho de 1966, um atropelamento interrompe a vida do poeta Frank O’Hara, aos 40 anos. Apesar da brevidade, sua obra é repleta de ação, com poemas que direcionam o leitor a um universo bastante cosmopolita e diálogos com as artes plásticas – era muito próximo aos pintores Pollock e Willem de Kooning – e o cinema. Por essa potência literária, a Luna Parque edições reúne, pela primeira vez no Brasil, 25 poemas traduzidos por Beatriz Bastos e Paulo Henriques Britto do autor norte-americano em Meu coração está no bolso.

O Recife de Granville

Música

Ottomatopeia, de Otto Cinco anos após The moon 1111, Otto volta a lançar um disco de inéditas. Mesmo distante de seus dois melhores álbuns, o festivo Samba pra burro (1998) e o pungente Certa manhã acordei de sonhos intranquilos (2009), Ottomatopeia é um bom apanhado de canções inspiradas, como Bala, Soprei, Atrás de você e É certo amor imaginar?. Produzido por Pupillo, este sexto trabalho de estúdio traz participações de Roberta Miranda, no cover de Meu dengo, Zé Renato, em Carinhosa, Andréas Kisser, em Orunmilá, e Pedro Baby, em Caminho do sol, além de uma banda coesa, formada por Pupillo (bateria, percussão), Alberto Continentino (baixo), Guilherme Monteiro (guitarras), Marcos Axé e André Malê (percussão), Bactéria (teclados) e Bruno Giorgi (sintetizadores).

Exposição

Patrimônio pernambucano O Museu do Estado de Pernambuco está com nova exposição de longa duração baseada em seu acervo. Pernambuco território e patrimônio de um povo faz um retrospecto para contar a história do estado, num amplo roteiro que une coleções arqueológicas, históricas, etnográficas e artísticas. A equipe do Mepe trabalhou durante dois anos no conceito da exposição, num processo que envolveu o restauro de obras, e que teve como objetivo destacar os mais variados aspectos (ambientais, sociais, econômicos, históricos e culturais.) relacionados a Pernambuco, formatando uma exposição acessível aos mais variados públicos.

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Série

Cinematografia

Baseada no livro Mozart na selva: sexo, drogas e música clássica (2005), da oboísta Blair Tindall, a premiada série Mozart in the jungle mostra os bastidores da Orquestra Sinfônica de Nova York e todos percalços para manter a instituição. A instrumentista é interpretada pela britânica Lola Kirke e o elenco conta com um nome de peso do cinema, Malcolm McDowell (Laranja mecânica), que encarna o maestro aposentado que é substituído por Rodrigo, personagem claramente inspirado no regente venezuelano Gustavo Dudamel e que rendeu a Gael Garcia Bernal o Globo de Ouro de Melhor Ator em 2016. Os episódios cômicos são recheados de participações especiais de renomados músicos eruditos. A quarta temporada da série estreia neste segundo semestre.

Em América Latina em 130 documentários, são apresentadas e comentadas em ordem cronológica 130 obras produzidas nos vários países da região, desde o primeiro, El corazón de una nación (Chile, 1928), até o mais recente no desfecho da pesquisa, Sibila (Chile/Espanha, 2012). O autor da compilação, Jorge Ruffinelli, é professor da Universidade de Stanford, onde dirigiu o Centro de Estudos Latino-Americanos, e escreve ensaios e críticas sobre literatura e cinema. Trata-se de uma obra de referência, que apresenta também a própria transformação do gênero, que se inicia com um interesse antropológico (anos 1930–40); depois, político (1950–70); novos enfoques, como os direitos humanos e o ambientalismo, chegando à contemporaneidade, em que claramente há uma diluição de barreiras entre ficção e documentário.

Mozart in the Jungle

Documentários latino-americanos

Documentário

Livro

Durante quatro anos, o fotografo italiano radicado no Brasil Diego Di Niglio mergulhou nos arquivos do DOPS–PE, da Comissão de Memória e Verdade de Pernambuco, e conversou com pessoas que viveram intensamente o período da ditadura militar brasileira. O resultado dessa imersão no período é o documentário Aurora 1964, um exercício de memória que resgata as histórias de personagens cujas vidas foram afetadas pelo golpe de 1964, construindo pontes com o presente, com um Brasil em crise política e democrática. O filme tem pré-estreia no dia 11 de setembro, no Cinema São Luiz, às 19h. O documentário também será distribuído, em 2018, em formato de série para TV em quatro capítulos.

Em Ninguém é perfeito e a vida é assim, o jornalista e professor Thiago Soares reúne ensaios que escreveu entre 2005 e 2016 sobre a música brega. Ele pensa o brega produzido em Pernambuco, nos últimos 20 anos, analisando o fenômeno que envolve disputas de gosto, de classe, de gênero, de raça, de corpos subalternos. Para ele, o gênero tem aberto espaço para que atores das camadas mais populares se afirmem, tornem-se protagonistas, e ressignifiquem seu cotidiano. A noção de “qualidade musical” perpassa toda obra, que evidencia o preconceito sofrido pelo brega. “Mas qual o periférico que está nas margens hoje? A música da periferia do Recife não é apenas o maracatu iluminado e museificado, tampouco o caboclinho com um riso fácil ou o afoxé de carnaval de tambores silenciosos. A música da periferia do Recife é, sobretudo, o brega romântico, rasgado, sensual e pernicioso”, escreve.

Aurora 1964

O brega levado a sério

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Continente Online

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JU BRAINER/DIVULGAÇÃO

CULTURA POPULAR No nosso site, oferecemos outras fotografias da matéria de capa desta edição. Você também pode assistir a um pequeno vídeo que mostra um pouco do ritmo do samba de véio, tradição da ilha de Massangano, em Petrolina.

MARCELO GOMES Em diálogo com o artigo deste mês, sobre o cinema de Marcelo Gomes, assinado por Sylvie Debs, você encontrará comentário ao livro Viajo porque preciso, volto porque te amo, de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, que traz o roteiro do filme homônimo.

NO SITE, UM MERGULHO “Aqui apresento um relato, abro em palavras a festa para quem quiser entrar, sabendo que um relato nunca é o reflexo fiel de uma viagem, mas um pedaço do que ficou em mim depois de tudo que foi colhido, perdido, destruído e expandido em meu corpo-história.” Assim nos introduz sua experiência a dançarina, performer, poeta e jornalista Sílvia Góes, que enveredou pelas estradas do Agreste de Pernambuco para viver no corpo outro tempo e espaço. Esse processo de pesquisa do projeto Diário corporal, viabilizado pelo Funcultura, você vê no conteúdo exclusivo do site este mês, em depoimento escrito por ela para nós.

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BRUNA BEBER Confira uma seleção com outros poemas de Ladainha e de trabalhos anteriores da poeta. Além disso, reunimos alguns áudios que registram a leitura de poemas pela própria Beber, num exercício que ela costuma fazer frequentemente.


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NOVA REVISTA

GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO GOVERNADOR Paulo Henrique Saraiva Câmara SECRETÁRIO DA CASA CIVIL Antônio Carlos Figueira

Desde que vi o anúncio da Continente sobre as futuras mudanças editoriais, remando contra a maré desse imediatismo no jornalismo e reafirmando seu lugar de fala, me empolguei! Mas não é uma empolgação qualquer. Desde que saí de SP, venho me dedicando a esse tipo de jornalismo: “Com pés na terra, mas o olhar para o horizonte”. Nós, mais do que qualquer um, sabemos como fugir do imediatismo é complicado, difícil e até desanimador, às vezes. Então, aparece uma notícia dessa, de uma revista como a Continente, e as esperanças se renovam. Viva as mudanças! Muito sucesso para todos da equipe!

COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE PRESIDENTE Ricardo Leitão DIRETOR DE PRODUÇÃO E EDIÇÃO Ricardo Melo DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO Bráulio Mendonça Meneses

A revista Continente é uma publicação da Companhia Editora de Pernambuco - Cepe SUPERINTENDÊNCIA DE PRODUÇÃO EDITORIAL Luiz Arrais REDAÇÃO

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BUÍQUE–PE

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PORTFÓLIO

Mas que texto fantástico! Parabéns, você (Adriana Dória Matos) entendeu, pesquisou e mergulhou nas minhas figuras /cenas! Estou superfeliz em ser traduzida de maneira tão precisa, competente e delicada! VÂNIA MIGNONE CAMPINAS–SP

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Muito bacana ver Osman Lins na capa da Continente, que este mês lança sua edição de número 200 com roupagem nova. Para os amigos de outros estados, vale a pena acompanhar esta revista pernambucana, irmã do jornal literário Pernambuco. Muito curioso para acompanhar a nova coluna de Débora Nascimento, que é para mim um dos melhores textos do jornalismo cultural, hoje. CRISTHIANO AGUIAR

Vida longa à Continente e a toda forma de resistência cultural e reflexiva num mundo que regride a passos assustadores de volta ao fundamentalismo religioso, à ignorância intolerante e à mediocridade intelectual… RENATA GAMELO

Guardo os primeiros exemplares. Leitura com sabor de bolo de rolo, da brisa da Praia dos Carneiros.

Maria Helena Pôrto (revisão) Olívia Mindêlo (Continente Online) Janio Santos (diagramação) Agelson Soares Santana (tratamento de imagem) Hugo Campos (webmaster) Joselma Firmino de Souza (produção gráfica) Eduardo Montenegro, Erika Muniz, Maria Júlia Moreira e Sofia Lucchesi (estagiários) CONTATOS Fone: (81) 3183.2780 redacao@revistacontinente.com.br

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Que bacana Débora Nascimento agora manter uma coluna mensal sobre música no site da Continente. Eu até já tinha visto sua coluna. Acho importante o recorte cronológico que você faz, mas penso que não há nem “despolitização”, como (Charles) Gavin fala, nem “perda da força”, mas que a noção de “música de protesto” é que tem se transformado. Uma longa discussão.

BETHÂNIA ARAGÃO

CARLOS GOMES

MARKETING E VENDAS Daniela Brayner, Rafael Lins e Rosana Galvão marketing@cepe.com.br SUPERINTENDÊNCIA DE PRODUÇÃO EDITORIAL Júlio Gonçalves, Eliseu Souza e Sóstenes Fernandes ATENDIMENTO AO ASSINANTE 0800 081 1201 Fone: (81) 3183.2750 assinaturas@revistacontinente.com.br EDIÇÃO ELETRÔNICA www.revistacontinente.com.br

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Saída

KAMBIZ DERAMBAKSH nasceu no Irã (1942). Desinger gráfico e cartunista, no último meio século, colaborou com a imprensa de vários países. Tem obras em acervos de museus e publicou os livros Without Word (Irã) e Kambiz (Itália).

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Educação de qualidade é uma bagagem que a gente carrega para a vida toda. O Programa Ganhe o Mundo segue transformando a vida de milhares de estudantes da rede pública estadual. Já são mais de 5,4 mil embarques para um intercâmbio no exterior. Só este ano, serão mais 1.030 beneficiados. Desde 2015, o Programa passou a contemplar, também, jovens talentos do esporte e da música, com o Ganhe o Mundo Espor tivo e o Ganhe o Mundo Musical. A experiência de estudar em outro país, de conhecer outra cultura, ensina para a vida. É com essa bagagem, que os nossos estudantes embarcam para um futuro melhor.


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