Continente #27 - Joel Silveira

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DIÁRIO DE UMA VÍBORA 71 » Joel Silveira

Foto: AFP

Se fosse maio...

Praça de São Pedro, Roma

Se fosse maio, Roma não estaria assim fechada e arredia, quase uma estranha Se fosse maio, este crepúsculo romano não findaria assim tão de repente,como uma lâmpada que alguém tivesse apagado. Se fosse maio, o começo da noite seria apenas uma indicação no relógio, porque lá adiante o velho muro da Porta Picciana, que vejo daqui da varanda do Excelsior, diria à tarde: “Não passarás” – e a tarde não passaria. Se fosse maio, Roma não estaria assim fechada e arredia, quase uma estranha (ou uma mãe amuada), a me soprar no rosto um vento inimigo e a me encharcar os cabelos com uma chuva tão hostil. Mas é maio nos olhos da moça que me conta dos seus impetuosos e até agora frustrados sonhos de aventureira, ansiosa por pisar em todos os chãos do mundo: “Eu queria ser assim como você, de profissão assim, errante, sem pouso”. De-

senha para mim na toalha quadriculada do pequeno restaurante o complicado itinerário que um dia – um dia de maio – a levará até Hong Kong, cidade que ela ainda não conhece, mas que ela já fez sua. É maio na bebida que bebemos; é maio, muito maio, na complicada história de Vicky, a esguia modelo que deixou em Barcelona a mãe, o noivo e a insônia e para lá não quer mais voltar, porque aqui é maio e lá, para ela, nunca é. E subitamente, na insólita madrugada, maio f loresce na banca dos jornais. E como é maio, compramos, a moça e eu, violetas e rosas e vamos beber a água da fonte. E ninguém vai mais dormir, porque é maio, porque maio chegou sem avisar – e não podemos deixá-lo sozinho nesta fria e fechada noite de dezembro.

Continente . março, 03


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