DIÁRIO DE UMA VÍBORA Joel Silveira
Outras lembranças do encontro com o doutor Getúlio Vargas
O
sotaque dava um certo encanto às palavras, que pareciam deslizar mansamente, uma a uma, escorregando, sem pressa. A mão que segurei por alguns segundos era leve. Só a senti no primeiro instante, quando, num gesto breve, o Presidente tentou, nela, guardar a minha. Que estava eu fazendo ali? Que poderia querer do Presidente cujo poder, minado por frustrações, intrigas e lutas nos bastidores, começava a vacilar? Eu disse: – Bem, Presidente, não quero tomar mais o tempo de Vossa Excelência (por que Presidente da República tem de ser Excelência – serão todos obrigatoriamente excelentes?), que sei precioso (Oh! A imbatível inclemência dos lugares-comuns). Estou aqui como jornalista, trouxe um questionário (tirei o papel do bolso, fiz intenção de entregá-lo), gostaria que Vossa Excelência respondesse a estas perguntas... A voz mansa se encrespou, tornou-se rascante, fria como gelo, dura e fria como gelo, e, dura e fria e cortante, me bateu no rosto e nos ouvidos com toda a fúria de uma chicotada: – O senhor me deixe o papel com o Dr. Lourival. Ele lhe telefonará depois. O homenzinho levantou-se, esmagou no cinzeiro de cristas o que restava do charuto e desapareceu por uma porta ao lado, que bateu com força. Nem ao menos me estirou a mão. •
Continente novembro 2005
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