DIÁRIO DE UMA VÍBORA
Por que Lampiao nao entrou em Lagarto Joel Silveira
1.Lampiao E
ra fim de tarde, eu conversava com Rubem Braga na cobertura (que era também granja) do seu apartamento em Ipanema e, enquanto me servia do sempre generoso uísque do anfitrião, ia matraqueando sem parar sobre os mais diversos assuntos. Braga limitava-se a ouvir, quietamente mergulhado na espaçosa rede baiana que o pintor Carybé lhe mandara de presente. Eu falava, falava, ele balouçava. Foi quando a conversa passou a ser Lagarto, a cidade da minha infância, lá em Sergipe. Inflado de incontrolável orgulho, lá para as tantas informei ao sabiá da crônica que Lampião, apesar de toda a sua proclamada valentia, jamais tivera coragem de entrar em Lagarto. Mansamente, num demorado esforço, Braga emergiu da rede e falou: – Quer dizer que Lampião nunca entrou em Lagarto? – Nunca! Braga silenciou por alguns segundos, disse em seguida: – Pois eis aí o que se chama de um homem sensato. Afinal, que diabo Lampião ia fazer em Lagarto? E conclusivo, antes de mergulhar na rede: – Lagarto não é lugar para entrar, mas para sair.
2.Preferencia Já beirando os rijos e alegres noventa anos, me dizia aquele meu primo lá em Sergipe: – A gente sente que está envelhecendo quando começa a gostar mais de carne-de-sol do que de mulher. 82 Continente Multicultural
3.Gerundio Vez por outra, me lembro do conselho que certa vez me deu Graciliano Ramos: – Fuja do gerúndio como o diabo da cruz. Para ele, era fácil. Creio mesmo que o gerúndio é que fugia dele.
4.Quilos
– Como Fulano escreve! Quantos livros você acha que ele publicou ? – Até a semana passada, devia estar beirando os quinhentos quilos.
5.Sublime
Numa das vezes em que visitei o poeta Manuel Bandeira em seu singelo e despojado apartamento da rua Moraes e Vale, na Lapa carioca, encontrei-o lendo no original A Tempestade. Interrompendo a leitura, ele me disse: – Para mim, é o que Shakespeare fez de melhor. E em seguida me traduziu aquele trecho que diz assim: “Somos feitos da mesma matéria dos sonhos” e “nossa curta vida está envolvida num sono”. E mostrando todos os enormes dentes: – Não é sublime?
6.Essenciais11.Calhorda Em Madrid, outubro de 1977, eu me espantei com a exigüidade da biblioteca do poeta Vicente Aleixandre, que naquele dia estava ganhando o Prêmio Nobel de Literatura. Comentei: – Tão poucos livros, Dom Vicente? O velho poeta me respondeu: – Os essenciais. E me alegrei, passando os olhos pelas lombadas, que entre os “essenciais” lá estivesse o Sagarana – de Guimarães Rosa.
7.Ganho
Dizia o outro: – Só de acordar toda manhã e constatar mais uma vez que não me chamo Onotônio, já ganhei o dia.
8.Traidores Costuma-se dizer que todo tradutor é um traidor. É possível, mas pergunto: quantos dos nossos escritores, particularmente os ficcionistas de má prosa, já não foram beneficiados pela paciente e oportuna recauchutagem dos tradutores, quero dizer, dos traidores lá de fora?
9.Adolpho Vira e mexe, quase sempre sem motivo algum, lá vinha Adolpho Bloch com o mesmo conselho: – Nunca escreva cartas! Certa feita, indaguei: – E bilhetinho, pode? – De forma alguma! Bilhete é mais perigoso do que carta!
10.Velho
Podem acreditar: já fui muito mais velho do que sou.
Ao surpreender o heráldico e longevo figurão, autor de tanta porcaria no plano estadual e federal, penso comigo mesmo: “E dizer que este calhorda já teve quinze anos!”
12.Poetisa
A contumaz poetisa me telefona: – Recebeu meu último livro? Penso em dizer que não, mas acabo dizendo: – Recebi. – Já leu? Minha vontade é responder: – A úlcera, em fase de erupção, me recomenda toda cautela. Nada de sucos ácidos. Fico alguns segundos calado, pensando no que dizer, já que pressinto do outro lado da linha uma ofegante expectativa. Foi quando a ligação caiu. Caiu do céu.
13.Gozo Metade da noite, quase na hora de fechar o jornal, o jovem repórter interrompe o seu acelerado teclar, fixa por alguns segundos os olhos num ponto vago da redação, pergunta em seguida ao calejado e já um tanto idoso editor: – Gozo se escreve com “s” ou com “z”? O enfastiado dromedário ergue os olhos do texto que corrigia e responde, num tom resignado: – No meu caso, é com cedilha.
14.Moco
Se vivo fosse, Castro Alves estaria com 153 anos. E mais moço que a baianada toda, a vigente.
Joel Silveira é ex-correspondente na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, é autor de volumes de reportagens, crônicas e memórias, como A Luta dos Pracinhas e Tempo de Contar, poeta bissexto, membro-fundador do Partido Socialista Brasileiro e “repórter a vida inteira”. Ganhou do fundador dos Diários Associados, Assis Chateaubriand, o apelido de “a víbora”.
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