CONTINENTE apresenta:
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ROTEIRO .
Yellow
ILUSTRAÇÃO .
Thales Molina
Nos últimos anos, Roger Waters, antigo baixista e principal compositor da banda Pink Floyd, tem demonstrado uma postura cada vez mais política em seus shows.
Muitos fãs reclamaram do teor político de sua última turnê, Us+Them, e, em vários países, houve até uma seção do show dedicada a abordar esse problema.
Tenho um recado para essas pessoas:
Parte do meu público sempre sugere que eu deixe a política de lado e toque apenas as músicas.
FODAM-SE!
Quando a turnê passou pelo Brasil, antes das eleições presidenciais de 2018, Roger Waters fez homenagens a Marielle Franco, Mestre Moa do Katendê, e, principalmente, denunciou o candidato ultraconservador que terminou por vencer.
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Com ingressos que chegavam a valores muito além das posses da maioria dos brasileiros, Waters não percebeu que cantava para plateias formadas pelas elites, que não estão nem aí para a desigualdade social.
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Vocês não me conhecem? Vocês não entenderam as minhas letras?
QUARENTA ANOS ATRÁS, EM 30 DE NOVEMBRO DE 1979, ROGER WATERS E SUA BANDA LANÇAVAM UMA DAS MAIS MULTIFACETADAS E PROFUNDAS OBRAS DA MÚSICA, E UM DOS MELHORES DISCOS DE ROCK DE TODOS OS TEMPOS. ROTEIRO . Yellow ILUSTRAÇÃO . Thales Molina
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Roger Waters tem uma personalidade muito peculiar.
Ele havia assumido o papel de principal compositor e líder criativo da banda Pink Floyd em 1968, após a saída de Syd Barrett, devido ao agravamento de um distúrbio mental não diagnosticado, decorrente do abuso de substâncias alucinógenas.
Aos cinco meses de idade, ele perdera o pai, Eric Fletcher Waters, na Segunda Guerra Mundial.
Essa perda marcaria sua vida.
Para fugir do estigma de “banda psicodélica”, ele começou a escrever sobre temas sociais e pessoais a partir do disco Dark side of the moon, que trouxe fama internacional à banda.
Ele e seu irmão foram criados pela mãe, uma professora filiada ao Partido Comunista Britânico.
Graças à educação progressista e pacifista, e ao trauma da ausência do pai, Roger era capaz de compaixão.
Ao mesmo tempo, a criação de caçula também o tornou um menino mimado e egoísta.
Escreveu canções cheias de beleza e empatia, como Us and them e Wish you were here.
Ele nunca deu crédito ou pagou pelo trabalho do cantor Roy Harper, que contribuiu com Have a cigar.
Apoiou campanhas de caridade.
Expulsou Rick Wright da banda porque o tecladista estava deprimido.
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Enquanto a Inglaterra revitalizava o rock com a primeira onda do punk, a banda formada por estudantes de arquitetura apresentava uma releitura de A revolução dos bichos, de George Orwell.
Em 1977, o Pink Floyd lançou Animals, sedimentando sua posição de banda milionária do rock progressivo.
A obra mais politizada do Pink Floyd, até então, traçava um retrato implacável do capitalismo, com alusões aos yuppies em Dogs, aos oligarcas em Pigs (“big man, pig man”) e aos trabalhadores alienados em Sheep.
A partir daí, passaram a se apresentar para públicos gigantes, usando cada vez mais pirotecnia, projeção de vídeos, animações e até bonecos infláveis para se fazerem visíveis diante de tanta gente.
O aumento do público promovia um distanciamento cada vez maior entre fãs e banda. E a plateia, por conta disso, ficava mais alheia à mensagem.
Ao final da turnê, em Montreal, Roger Waters se manifestou de maneira surpreendente, quando cuspiu no rosto de um fã espalhafatoso.
Sob aplausos de todo o estádio, e até mesmo do fã em quem cuspiu, Roger continuou o show, mas foi atormentado pelo evento nos meses que se seguiram.
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HQ O que me levou a cuspir em um fã? Por que me comportei como se fosse superior a outra pessoa?
Por que me achei no direito de tratar alguém como se não fosse uma pessoa?
A desumanização do outro é a definição do fascismo…
Nas semanas seguintes ao incidente de Montreal, em um recesso da banda, enquanto cuidava do filho e da filha recém-nascida, reavaliou o evento e a sua postura no Canadá.
Será que a fama me transformou em um fascista?
Quais as origens dessa alienação entre mim e o meu público?
O que leva as pessoas a se afastarem umas das outras?
Em 1978, quando os membros do Pink Floyd se reuniram novamente para decidir qual seria o conceito do próximo disco, Roger explicou:
Que tal um show em que tivesse um puta muro, a banda tocasse atrás do muro e a plateia não fosse capaz de ver a banda?
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Eu não queria estar nessa plateia.
Segundo o baterista Nick Mason, era cada vez mais comum encontrar contadores e advogados nas sessões de gravação da banda. Mas aquela vez foi especial.
A banda havia sido enrolada por uma firma de investimentos e devia tanto dinheiro de impostos à Inglaterra, que era aconselhável tirar férias fiscais, assim como acontecera com os Rolling Stones durante a gravação de Exile on Main Street (1972).
Roger diz ao grupo: “Façam as malas. Nós vamos morar na França”.
Assim, foi alugado o estúdio Super Bear, próximo a Nice, para a gravação de The wall. O lugar era notório por ter abrigado o Queen e algumas de suas mais extravagantes gravações.
…como o produtor Bob Ezrin (que trabalhou com Alice Cooper e produziu Berlin, de Lou Reed), e não só criou os arranjos luxuosos, como ajudou a desenvolver a trama.
Roger Waters cercou-se de novos colaboradores para o projeto…
Quem assumiu o trabalho de ilustração foi o cartunista político Gerald Scarfe, que criou os personagens em traços mordazes e implacáveis, e transformou o texto em pichações. Um bem-vindo tempero de rebeldia que faltava à estética floydiana.
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HQ The wall contava a história de um astro do rock chamado Pink, uma mistura de Roger Waters e Syd Barrett, embora Bob Ezrin tenha dito que “aquilo era o disco de Roger, sobre Roger, para Roger”.
O personagem ganhou esse nome porque jornalistas (a “profissão ignóbil”, segundo Waters) costumavam perguntar aos membros da banda: “Qual de vocês é Pink?”
Cada trauma da vida de Pink, como a perda do pai, a superproteção da mãe, a opressão dos professores, o consumismo e a adulação da fama, eram representados como tijolos, que se acumulavam em um muro que terminava por isolá-lo do resto do mundo.
Com esse enredo, fica claro que Waters cuspiu no prato que comeu. Culpa a mãe e a exmulher pelo amor que lhe deram, culpa a escola pela educação que recebeu. Embora as críticas sejam ao sistema opressor, soam duras ao espectador desatento. Os desenhos de Scarfe reforçam a crueldade do autor.
Meu bebê! Me deixe segurar você!
Pink, completamente isolado, havia perdido a empatia por outras pessoas. Mas ele é um artista e, quando é forçado a se expor ao público, acaba se tornando um fascista. Surgem martelos como símbolos de força e opressão.
O juiz de sua consciência, uma bunda falante, escuta depoimentos dos que passaram pela vida de Pink.
Por fim, o tribunal de sua própria consciência dá o veredito: Seu merda! Tem destruído muitos lares ultimamente?
Já que você revelou o seu maior medo, eu o condeno a ser exposto perante os seus pares! Derrubem o muro!
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Eu sempre soube que esse daí não serviria pra nada!
Embora a ideia original de Roger Waters fosse encenar toda a peça atrás de um muro, isso foi mudado. O show que acompanhou o disco, criado por Mark Fisher, foi o mais grandioso que a banda já produziu.
Pela primeira vez, eles não tocaram músicas dos discos anteriores. O show era sobre a história de Pink.
Na abertura do show, uma banda tocava In the flesh? sob luzes e fogos de artifício, levando o público à histeria, apenas para, ao final da música, revelar que eram músicos mascarados fingindo-se de Pink Floyd.
Logo, o público também é surpreendido por um avião que se choca contra os primeiros tijolos do muro, representando a morte do pai do personagem enquanto este ainda era bebê.
Bonecos infláveis gigantes da mãe, do professor e da ex-mulher, baseados nas caricaturas ácidas de Gerald Scarfe, interagiam com o público e a banda.
Na primeira parte do show, aos poucos, um muro era erguido entre a banda e o público. Quando o último tijolo é posicionado, as luzes acendem, e acontece um intervalo.
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HQ A segunda parte do show começa quando a banda, isolada do público, toca Hey you.
O muro serve de tela para três projetores de cinema, que exibem animações, e se abre em brechas ocasionais para revelar, por vezes, um solo de violão, por outras, um quarto de hotel.
Em Comfortably numb, um médico/traficante interpretado por Waters ausculta o muro por fora, enquanto Gilmour interpreta as lembranças de infância de Pink, do alto do muro.
A solidão de Pink o empurra ao abuso das drogas, e o transforma em um sádico ressentido que comanda o show de rock como um comício autoritário.
Após a cena do julgamento em desenhos animados, o muro é derrubado e a banda aparece para agradecer aos amigos que permaneceram do lado de fora do muro.
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Por conta dos altos custos, a turnê original teve apresentações em apenas quatro cidades: Los Angeles, Uniondale (ao norte de Nova York), Dortmund (na Alemanha) e Londres.
Por ter sido inspirado pela frieza dos shows em estádios, o espetáculo foi encenado em arenas menores. Isso não contribuiu para o retorno do investimento.
Demitido da banda durante as gravações e recebendo salário de músico contratado, Rick Wright pode ter sido o único membro do Pink Floyd a lucrar com a turnê.
O projeto englobaria, na mente de Waters, disco, show e filme. Os últimos cinco shows de Londres foram filmados, mas as imagens ficaram escuras e foram descartadas.
No entanto, o cineasta Alan Parker assistiu a uma das apresentações e se prontificou a sugerir uma versão cinematográfica de The wall.
O diretor trouxe consigo a produção da MGM, e, com ela, muito dinheiro, produtores e investidores, que tornaram o controle criativo do filme um pesadelo.
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HQ A produção do filme foi um cabo de guerra constante entre Waters, Parker, Geldof e Scarfe. No futuro, Alan Parker se referiria ao projeto como “um erro” ou, simplesmente, “uma obra colaborativa”.
O filme teria, inicialmente, Roger Waters como protagonista, e apresentaria o Pink Floyd tocando. Mas, após testes de câmera, a participação de Waters como ator foi descartada.
Quem assumiu com relutância o papel de Pink foi o cantor e ativista irlandês Bob Geldof.
O filme acrescentou uma grande dose de sangue e gritaria à narrativa original.
O vocalista dos Boomtown Rats viria a ser o organizador do Live Aid, e desprezava o Pink Floyd.
Uma nova música foi incluída: When the tigers broke free, e enfatizava a história do pai de Roger.
Apareceu também a espetacular animação para Goodbye blue sky, um libelo anticolonialista.
What shall we do now?, que tinha ficado de fora do álbum, e um dos melhores momentos de animação.
O teor político do disco foi mais enfatizado no filme, provavelmente pelo envolvimento de Geldof e Parker, associados a um tipo de arte mais engajada do que a do Pink Floyd.
Após o fim do Pink Floyd…
...isto é, após a saída de Roger Waters, em 1983, e a subsequente batalha judicial pelo uso do nome e da propriedade intelectual da banda…
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…Waters disse, em entrevista, que só apresentaria The wall novamente caso fosse derrubado o Muro de Berlim.
Alguns meses depois, o Muro de Berlim foi, de fato, derrubado.
O show, produzido por um fundo de caridade de veteranos da Segunda Guerra, aconteceu em um terreno que ficava entre Berlim Ocidental e Oriental.
E Roger Waters, que, nessa época, já havia tentado lançar dois discos solo sem o sucesso que desfrutava na época do Pink Floyd, organizou um evento que pretendia ser o maior show da história, televisionado ao vivo para todo o mundo.
Contou com a participação de convidados ilustres, como The Band, Van Morrison, Cyndi Lauper e até Joni Mitchell (após dezenas de outros artistas terem recusado).
O espetáculo do Muro de Berlim é dedicado ao isolamento causado pelas guerras.
Enquanto isso, os três membros remanescentes do Pink Floyd faziam turnês lotadas e milionárias.
Ao final, o muro derrubado representa o próprio Muro de Berlim, pichado e depredado durante quase meio século.
Em 1990, a tecnologia não havia evoluído o suficiente para abarcar a grandeza do espetáculo, perante um público estimado de 400 mil pessoas. Até os fogos de artifício e as projeções de cinema pareciam pequenas diante do público gigantesco.
Suspeito de que a motivação de encenar The wall em Berlim não tenha nada a ver com caridade.
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HQ Ao longo dos anos, o trabalho solo de Roger Waters e sua persona pública se tornaram cada vez mais associados ao ativismo político.
Em 2005, os quatro membros originais do Pink Floyd se reuniram para tocar no Live 8, evento beneficente organizado por Bob Geldof em nome do perdão das dívidas externas dos países subdesenvolvidos.
Em 2006, David Gilmour fez um concerto gratuito para 50 mil espectadores em Gdańsk, em celebração ao aniversário de fundação do partido trabalhista Solidariedade, de Lech Walesa.
Gilmour dedicou sua canção A great day for freedom à data comemorativa.
Foi uma das últimas apresentações ao vivo de Rick Wright, que morreria de câncer em 2008.
Somos todos políticos, Roger só gosta mais de exibir seu lado político do que os outros.
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Em 2010, Roger Waters fez uma montagem definitiva de The wall e excursionou o mundo.
Foram 219 apresentações ao longo de quatro anos. A tecnologia de mapeamento de projeções possibilitou fazer coisas incríveis com o muro.
Ele explodia, projetava-se sobre músicos e plateia, e mostrava desde animações em 3D até imagens vazadas pelo Wikileaks.
Em vez da superproteção da mãe, a canção Mother agora denunciava o estado de vigilância, representado por câmeras de segurança.
Uma música inédita foi incluída, em homenagem ao brasileiro Jean Charles de Menezes, assassinado pela polícia de Londres.
Goodbye blue sky mostrava o bombardeio constante de propaganda de produtos e ideologias.
Vera trazia uma sequência de reencontros de militares com seus filhos, após servirem em guerras.
O arco da história permanece o mesmo, o leque de temas, mais amplo e profundo, aborda não apenas o isolamento e alienação de um astro de rock, mas o de todas as pessoas que vivem no mundo de hoje.
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HQ The wall pode ter começado como um lamento solitário, uma exploração individual.
Mas a identificação de muitas gerações de ouvintes com seus versos, melodias e imagens deu a Roger Waters a possibilidade de expandir a obra em uma exploração conjunta e catártica.
O conteúdo político já estava presente desde a concepção, mas o que ele revelou e salientou ao longo dos anos hoje é impossível ignorar.
Hoje ele é um dos poucos astros do rock do mundo que têm coragem de se posicionar sobre assuntos políticos globais.
Julian Assange, junto com Chelsea Manning, Edward Snowden e outros denunciantes, são os heróis que nos ajudam a ganhar um pouco do conhecimento sobre o que os poderosos manteriam em segredo, se pudessem.
Israel está cometendo apartheid contra os palestinos.
The wall é muito relevante agora, com o Sr. Trump e toda a sua conversa sobre construir muros e criar tanta hostilidade quanto possível entre etnias e religiões.
A Venezuela é uma verdadeira democracia. Parem de tentar destruíla só para que o 1% possa pilhar seu petróleo!
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Existe alguma chance de The wall ser encenado novamente?
Waters tem repetido que, caso Donald Trump realmente comece a construir seu muro na fronteira com o MĂŠxico, ele estarĂĄ a postos.
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