Ópera: Elitista? Tem gente que não concorda

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FOTO: EUZIVALDO QUEIROZ/A CRÍTICA-AM

Elitista? Tem gente CON TI NEN TE

O problema é que este gênero artístico demanda uma equipe gigante de produção e ainda não há no Brasil política cultural que lhe dê suporte TEXTO Sergio Casoy

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e que não concorda

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La traviata , uma das óperas mais encenadas do mundo, tem apenas três personagens principais, três secundários e alguns figurantes. A maior ópera cômica de todos os tempos, Il barbiere di Siviglia, tal e qual a trágica Madama Butterfly, tem não mais de cinco personagens importantes. Mas para que o diminuto número de artistas que os representam possa subir ao palco e cumprir sua missão, é necessário um verdadeiro exército de profissionais para formatar o espetáculo. Além do esquadrão técnico e de apoio que faz ou deveria fazer parte da folha de pagamento de qualquer teatro – eletricistas, marceneiros, contrarregras, camareiras –, há, no

no Brasil, há bons cantores, diretores de cena e maestros, além de tecnologia e talento suficientes na criação e produção caso dos teatros de ópera, os corpos estáveis, dos quais fazem parte a orquestra da casa, cuja quantidade de integrantes pode variar desde 35, em uma ópera de Mozart, até mais de 100 elementos em certas obras de Richard Strauss; o coro, que se apresenta normalmente com cerca de 40 elementos; e o corpo de baile, que entra em ação sempre que a ópera em pauta contiver um balé. Todos esses organismos devem ser convenientemente ensaiados, preparados e, no devido tempo, encaixados na encenação. Paralelamente, o diretor de cena, que os italianos chamam de regista e do qual emanam diretamente tanto cenários quanto figurinos (um todo integrado a ser realizado pela produção com o concurso de cenógrafos, profissionais de iluminação, paisagistas e figurinistas), trata de se acertar com o diretor musical, o qual, além de reger a orquestra, tem diante de si a difícil tarefa de amoldar os cantores solistas à sua visão musical do papel de cada um, ocasionando um frequente embate de egos entre o pódio e o palco.

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O sempre bem-humorado Rossini afirmava ser “o teatro um hospício, e a ópera, o pavilhão dos incuráveis”. A verdade é que, loucura ou não, nós no Brasil aprendemos a fazer ópera direitinho. Além de cantores, capazes de honrar a camisa brasileira nos quesitos canto e interpretação, sem ninguém botar (muito) defeito, dispomos de qualificados diretores de cena, maestros, tecnologia e bom gosto suficientes para criação e produção de cenários e desenho de luz.

O Brasil tem um público que, ano a ano, cresce, renova-se e que, embora ame o repertório tradicional, tem a mente aberta para assistir às composições que são novidades por aqui. O problema é o mesmo de sempre, e comum a uma série de outras manifestações artísticas: falta de dinheiro. Nem sempre foi assim. Num modelo que durou muito tempo e até meio século atrás foi o predominante em São Paulo e no Rio de Janeiro, as temporadas líricas eram confiadas aos empresários. Após

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elenco se prepara para estreia da peça Ça-ira, no Teatro amazonas

Nestas Páginas 2 cRoqUi

Figurino de encenação de La traviata, que em geral é de responsabilidade do diretor de cena

3-4 gRáficAS Folhetos de montagens de La traviata e Madama Butterfly, ambas bastante populares e remontadas em todo o mundo

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alugar os theatros municipais ou vencer uma concorrência pública recebendo um pequeno subsídio, os empresários importavam produção, cenários e cantores de destaque. Se tudo desse certo, os empresários chegavam a capitalizar um bom lucro. Anos seguidos de inflação e desvalorização de nossa moeda impediram que esse modelo continuasse sendo vantajoso e o poder público acabou tomando conta da iniciativa na década de 1980. Funcionou durante um tempo,

mas, depois, mudanças de governo, falta de compreensão oficial e demagogia, empregando o falso conceito de que se tratava de uma arte elitista, acabaram colocando as produções numa situação difícil, obrigando-as a reduzir sua qualidade para poder sobreviver.

PoUcAS RÉcitAS

A criação das leis de renúncia fiscal, que todos esperavam que fossem eficazes, acabou virando um buraco n’água. Salvo raríssimas e honrosas

exceções, uma empresa que vise à divulgação de sua marca aposta seus recursos fiscais num espetáculo que tenha uma concentração massiva de público. Ora, a capacidade dos maiores teatros de ópera do Brasil não chega a 2 mil poltronas, e uma ópera que atinja seis récitas é considerada um sucesso. No ano de 2009, grandes cidades como São Paulo e Belo Horizonte, assim como os tradicionais festivais de Belém e Manaus, encenaram a quantidade ridícula de três produções cada uma. O Rio, com

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5 noVA YoRK o metropolitan opera House multiplicou seu público nos últimos anos, quando passou a transmitir ao vivo de seus palcos para os cinemas 6 efeitoS eSPeciAiS a ópera brasileira Kseni – A Estrangeira, de Jocy de oliveira, explora as novas tecnologias na cenografia

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o Municipal sendo reformado em marcha lentíssima, nem fez ópera. Círculo vicioso sem solução? Nem tanto. Um dos teatros de ópera mais importantes do mundo, o Metropolitan Opera House – que, por sinal, obtém menos de 5% de suas entradas financeiras dos cofres do Estado – passou a transmitir ao vivo para os cinemas dos Estados Unidos óperas diretamente de seu palco, multiplicando tanto o público quanto a penetração da propaganda veiculada. A experiência funcionou tão bem, que esses espetáculos, gravados em altíssima definição, estão sendo exibidos agora em países como México, Argentina e Brasil. A jornalista Heloisa Fischer, em seu artigo na coletânea Ópera

As óperas não têm sido beneficiadas pelas leis de renúncia fiscal, em parte pela insensibilidade dos executivos à brasileira, mostrou que, durante 2007, os investimentos via Lei Rouanet totalizaram R$ 465 milhões, distribuídos por todas as manifestações artísticas e culturais abrangidas pelo texto da lei, doados por cerca de 1,3 mil empresas. O problema reside justamente aí: apenas “1,3 mil decisores de verbas de patrocínio (...)

decidem o que será realizado em todo o país, em todas as manifestações culturais, ao longo de todo o ano. Pouco mais de mil executivos definem o consumo cultural de 186 milhões de brasileiros”. E, pelos resultados, grande parte desses executivos ou não conhece ou não gosta de ópera. Algo nesse quadro tem de mudar. É fundamental que seja estabelecida uma política oficial de longo prazo para a ópera no Brasil, com regras definidas, que permita a expansão artística que esta atividade merece, sob pena de, como já está acontecendo, perdermos nossas belas vozes para o exterior. Afinal, os cantores também precisam trabalhar e comer com regularidade.

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cRiAção MAiS tecnoLogiA, MAiS PúBLico nunca houve tanta gente jovem frequentando os teatros de ópera brasileiros como nos últimos 10 ou 15 anos. Há cada vez menos cidadãos circunspectos, com cara de quem vai à missa, e cada vez mais um público descontraído feito de jovens que vão desde estudantes de canto até amantes de ópera passando por todas as categorias intermediárias. Esses jovens pertencem a uma geração que é exposta ao consumo excessivo de filmes e imagens. Esse novo tipo de público, embora ame as vozes, quer ver no palco cantoras e cantores cujo aspecto se aproxime cada vez mais

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daquele que eles veem na TV ou no cinema. O padrão atual assumido para a beleza humana ocidental é aquele imposto implacavelmente pelo consumo diário tanto das séries importadas como das novelas tupiniquins. Se começasse hoje, o grande Pavarotti talvez não fizesse o sucesso que fez ao iniciar sua carreira nos anos 1960, principalmente representando, com todo seu corpanzil, o pobre e esfomeado Rodolfo em La Bohème de Puccini, um de seus maiores papéis. Em óperas de caráter romântico, nas quais se destaca o proverbial casal de jovens apaixonados, o physique du rôle é agora fundamental. Essa não é a única diferença importante entre as encenações de hoje e aquelas que aconteciam até uns 40 anos atrás. A grande maioria dos teatros foi abandonando ao longo dos

anos as montagens suntuosas, mas trabalhar com orçamento apertado não significa, necessariamente, abdicar do bom gosto. Numa Lucia di Lammermoor, no Teatro Carlo Felice de Genova em 2003, os cenários repletos de tapeçarias e mobília de época que compunham, no palco, os aposentos do tradicional castelo escocês foram substituídos, com grande eficácia, por um sistema de painéis que corriam para cima e para os lados, ora fechando ora expondo um jardim no qual algumas cenas foram ambientadas. Grande efeito com pequeno gasto. Nos últimos anos, apesar de algumas trombadas feias, os fazedores de ópera no mundo têm contabilizado mais acertos do que erros. Toda a tecnologia desenvolvida para quaisquer tipos de espetáculos é hoje alegremente utilizada para a ópera. No primeiro Macbeth, de Verdi, a que assisti na década de 1970, aparições e fantasmas eram atores que surgiam de buracos no chão do palco ou em meio a nuvens de fumaça. Uns 15 anos depois, eles já eram virtuais, projeções de slides sobre uma tela de filó. Há poucos anos, os fantasmas tinham se tornado holográficos. Nos dias de hoje, elevadores de cena e palcos giratórios permitem a troca de cenário em cena aberta, acabando com aquela chatice que consistia em fechar as cortinas e parar a música por 15 minutos no meio de um ato para efetuar a substituição. Uma característica constante na história da ópera é transformar tradições através de mudanças sem ruptura. Isso vale tanto para os estilos de composição quanto para as encenações. Foi assim quando a luz de velas foi substituída pela iluminação a gás, e esta, pela luz elétrica. Foi assim quando, a partir de Bellini e Donizetti, surgiu Verdi. Os próximos anos deverão consolidar o equilíbrio de encenações em que a tecnologia confira um caráter moderno ao espetáculo mantendo, como pedra de toque, um respeito profundo ao compositor e às suas intenções. seRGio casoY

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À BRASILEIRA Em busca de uma autodefinição

Como apontar as características da ópera no país, observadas a partir do encontro entre a tradição mundial, a “cor local” e as inquietações do criador TEXTO João Luiz Sampaio

A mais conhecida e interpretada ópera brasileira completou em março 140 anos e foi escrita em Milão, a partir de um libreto em italiano, de acordo com as convenções da ópera europeia da segunda metade do século 19. Descrevendo assim O guarani, de Carlos Gomes, a impressão que se tem é uma só: ópera, no Brasil, apenas pela alfândega. Mas, ainda que compreensível, o julgamento é injusto. De uma maneira ou de outra, a ópera sempre esteve presente no debate cultural brasileiro – e produções recentes mostram que, mesmo sem apoio constante e sistemático, o gênero sobreviveu. O que seria uma ópera brasileira? Costuma-se dizer que Carlos Gomes, de longe o mais prolífico dos compositores nacionais que se dedicaram ao gênero, deve mais à Itália do que ao Brasil no que diz respeito à estética por ele empregada. A música

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Leopoldo Miguez escreveu Pelo amor!; Alberto Nepomuceno compôs Artemis e Abul; três títulos de Henrique Oswald (La croce d’oro, Le fate e Il neo) nem chegaram ao palco; O contratador de diamantes, de Francisco Mignone, teve poucas récitas. Em direção aos anos 1950, falta citar Pedro Malazarte e Um homem só, de Camargo Guarnieri, e importantes criações de Heitor VillaLobos, como A menina das nuvens e Yerma.

A cARA Do BRASiL

Ópera de autor estrangeiro sobre temática brasileira? De autor brasileiro sobre temática nacional? De autor brasileiro sobre temática não nacional? O que define, então, uma ópera brasileira? A melhor resposta talvez seja uma ópera que nasce do diálogo, da inspiração de compositores ligados ao cenário cultural brasileiro com a enorme tradição do gênero e as buscas estéticas que vêm sendo feitas lá fora. Os títulos

carlos gomes, talentoso compositor nacional, deve à formação na itália seu aprimoramento estético de uma ópera como O guarani, apesar de baseada em um romance de José de Alencar sobre o embate entre índios e portugueses, ou seja, uma temática inspirada na história brasileira, dialoga com autores como Giuseppe Verdi, que ditavam as tendências do gênero naquele momento. Mais do que isso: hoje se aceita que, com Fosca, Carlos Gomes não apenas sintetizou a estética da ópera italiana como apontou novos caminhos e influenciou autores como Ponchielli a reinventar o gênero, com obras como La Gioconda. Na segunda metade do século 19, quando a ópera era gênero extremamente popular em cidades como o Rio de Janeiro, um grupo de intelectuais cariocas discutiu a criação de uma escola brasileira de ópera. Entusiasta do gênero, Francisco Manuel da Silva, autor do Hino nacional, liderou a criação da Imperial Academia de Música e Ópera Nacional, cujo objetivo

era o estabelecimento de uma nova escola de composição e interpretação. Levar óperas em português ao palco exigiria uma nova carpintaria por parte dos compositores; e, dos cantores, o aprendizado de uma nova técnica, ligada às especificidades do idioma. Foram ainda encomendadas traduções para os libretos das principais óperas italianas – Quintino Bocaiúva, por exemplo, assinou A transviada, versão para La traviata de Giuseppe Verdi. Ironias do Brasil, a companhia era dirigida por um espanhol, José Amat e, com o tempo, o espaço das temporadas passou a ser ocupado basicamente por zarzuelas, operetas espanholas, ainda que em traduções para o português feitas por nomes como Machado de Assis. Ainda assim, o final do século 19 e as primeiras décadas do século 20 foram marcados pela composição de diversos títulos: o paraense Gama Malcher é autor de Bug Jargal e Iara;

listados acima ajudam a mostrar que, mesmo sem uma escola propriamente dita, a ópera jamais deixou de ocupar as mentes dos nossos compositores. E que, portanto, a estreia recente de novas obras não é fenômeno isolado, mostrando que o gênero segue caminhando. Ao longo das temporadas 2006 e 2007, subiram ao palco cinco novas óperas de autores brasileiros: Olga, de Jorge Antunes, Kseni – A estrangeira, de Jocy de Oliveira, A tempestade, de Ronaldo Miranda, O garatuja, de Ernst Mahle, e O caixeiro da taverna, de Guilherme Bernstein Seixas. Nos anos anteriores, o compositor carioca João Guilherme Ripper já havia estreado Domitila e O anjo negro. Em 2008, Edmundo VillaniCôrtes estreou em Manaus Poranduba e Silvio Barbato comandou a primeira audição da sua O cientista, baseada na vida de Oswaldo Cruz (no ano passado, após a morte do maestro e compositor, foi apresentada em Belo Horizonte

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7 inteRnAcionAL O guarani, de Carlos gomes, a mais famosa ópera brasileira, estreou em 1870, no Teatro scala de milão

não como uma consequência do gênero operístico – que reúne teatro, dança, poesia, música, artes plásticas etc. –, mas, sim, como elemento essencial, indissociável do processo de composição. Kseni – A estrangeira fala da situação da mulher e da ausência de diálogo entre culturas. Na obra, a projeção de imagens, a declamação de textos teatrais e as inserções musicais são pensadas em conjunto, como um todo no qual a linguagem eletrônica tem papel ainda fundamental. Jocy explica que essa união se propõe à busca de uma “nova linguagem cênico-musical, novos modelos de estrutura que possam transformar o conceito tradicional de ópera”.

o gênero operístico brasileiro tem se articulado entre os grandes títulos do passado e as vanguardas

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a inacabada Chagas, sobre a vida de Carlos Chagas Filho). Por fim, mais recentemente, no Recife, ganhou vida Dulcineia e Trancoso, de Eli-Eri Moura. Com base nessa amostragem, que cara tem a ópera feita hoje no Brasil? Ronaldo Miranda, em conversa à época da estreia de sua obra, chamava a atenção para o fato de que, em meio aos “dogmas e compromissos estéticos excludentes” praticados pela vanguarda dos anos 1950, 1960 e 1970, compositores se afastaram da “linguagem mais imediata” da ópera. Jorge Antunes relembra quadro parecido. “Quando escrevi, nos anos 1980, Qorpo Santo, chamei-a de neópera, tentando me livrar da pecha de operista tradicional. Pura bobagem! Qorpo Santo, tal como Olga, é ópera: abertura, atos, cenas, interlúdios, drama, canto, árias, arietas, teatro, cinema, imagens, canto falado, e assim por diante.”

tenDÊnciAS e teMáticAS

O fato é que a composição do final do século 20 e início do século 21 não se filia mais necessariamente a uma tendência ou escola; em vez disso,

sugere a mistura de elementos que antes eram excludentes. Nesse sentido, Olga, baseada nos últimos dias da vida da comunista Olga Benário, mistura árias e duetos nos quais citações de Tristão e Isolda, de Wagner, se misturam a acompanhamentos atonais, nos quais cabe ainda resgate do repente nordestino e da música urbana brasileira das primeiras décadas do século passado. Já Ronaldo Miranda, em A tempestade, ópera baseada na última peça de William Shakespeare, utiliza um arioso constante, forma que fica entre a declamação e o canto. A tônica da peça é a integração entre texto e canto, com pequenas árias que, interrompendo a narrativa, ajudam a caracterizar os personagens principais e seus dilemas. No mesmo caminho, seguem Guilherme Bernstein Seixas, Mahle, Barbato e Villani-Cortes. Ou João Guilherme Ripper, que atualmente prepara outro título, Anna de Assis, sobre o triângulo amoroso que resultou na morte de Euclides da Cunha. Jocy de Oliveira, por sua vez, acredita na multidisciplinaridade

Seguindo a tendência notada na Europa e, principalmente, nos Estados Unidos, os compositores brasileiros têm buscado novos caminhos para o gênero operístico na articulação entre os grandes títulos do passado e os novos processos composicionais herdados da vanguarda. Não é uma tarefa fácil, mas o grande vilão da ópera brasileira não é estético e, sim, político. Óperas podem ser espetáculos caros e compositores dizem abandonar o gênero por não acreditar na possibilidade de ver suas obras levadas ao palco. A falta de um espaço sistemático nas programações para óperas nacionais é um problema a ser combatido, não apenas por novos compositores – basta lembrar que óperas de Guarnieri, Villa-Lobos ou mesmo de autores do século 19 jamais voltaram ao palco depois de suas estreias. Apoiar a nova produção passa também pelo resgate da trajetória do gênero no Brasil. E aí, sim, veremos que O guarani e Carlos Gomes são apenas uma parte dessa história, uma história que continua a ser escrita, apesar de todas as adversidades.

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Caroline biTTenCourT/divulgação

ÓPERA RECIFENSE Um tímido, mas promissor, renascer Produções apresentadas na última década reavivam o interesse do público da capital que um dia cultivou o bel canto TEXTO Carlos Eduardo Amaral

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A estreia de Dulcineia e Trancoso em

dezembro, no último Virtuosi, não constituiu um marco despercebido nas artes pernambucanas tão somente pelo fato de ter sido a primeira ópera escrita a partir das diretrizes do Movimento Armorial (ainda que tenha saudavelmente evitado a linha estética arraigada pelos grupos musicais armoriais dos anos 1970), mas sobretudo por ter sido a primeira ópera composta para ser encenada no Teatro de Santa Isabel desde o final do século 19, quando Euclides Fonseca (18541929) deu importantes contribuições para o gênero em Pernambuco. Dulcineia e Trancoso, de Eli-Eri Moura (música) e Waldemar José Solha (libreto), também fez história por

se tornar a segunda ópera brasileira contemporânea apresentada no Recife, depois de O cientista, de Sílvio Barbato (1959-2009), em 2007. Sempre com casa cheia, as quatro récitas somadas de ambas as óperas mostraram que o público recifense acolhe bem tanto as obras recentes quanto as tradicionais, caso das montagens de Carmen, em 2005, e de Dido e Eneias, que teve três récitas em novembro de 2009 e mais duas no último festival Janeiro de Grandes Espetáculos. Já existe a perspectiva de serem montadas mais duas óperas inéditas na cidade, embora sem previsão de data: A paixão judaica, nova parceria em andamento de Moura e Solha, e Lampião, de Marlos Nobre, a qual foi concluída em 2008 e só depende de

patrocínio para a première mundial. Isso não quer dizer que o Recife ensaia competir a longo prazo com os principais centros operísticos do país – Rio e São Paulo –, tal qual o fizeram nos últimos anos, impulsionados por competentes diretores e produtores musicais, Belo Horizonte, Manaus e Belém. Por outro lado, a soma de iniciativas esparsas reacende, mesmo que em tímida e incerta medida, o gosto do recifense pela ópera, nascido no século 19 e exercido até a chegada e popularização do cinema. A Veneza Brasileira nunca chegou a possuir a efervescência que a Veneza original teve no século 17, porém era parada obrigatória de companhias francesas

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e italianas a caminho do Sudeste e cultuava regularmente o bel canto, conforme relata José Amaro Santos da Silva, autor de Música e ópera no Santa

Isabel: Subsídio para a história e o ensino da música no Recife. “O Recife da segunda metade do século 19 conhecia melhor o repertório de ópera do que o do século 20, e não conhecia só de ver, mas de cantar, de ouvir e de tocar no piano, costume este devido aos compositores arranjarem as chamadas ‘fantasias’ sobre a Traviata, o Rigoletto, Norma etc., que eram vendidas nas casas de músicas em todo o Brasil”, diz José Amaro, que é pesquisador e professor aposentado do Departamento de Música da UFPE. No entanto, o recifense, como todo brasileiro apreciador de ópera de então, mostrava-se refratário a obras de seus conterrâneos – e mal se cogitava a existência de um libreto em português.

As poucas iniciativas como a montagem de Carmen têm reacendido o gosto novecentista do recifense pela ópera Dentre os poucos pernambucanos que se aventuraram pela composição operística, José Amaro aponta como pioneiro Luiz Álvares Pinto (17191789), cujo drama musical Amor malcorrespondido agrega opiniões que o legitimam como a primeira tentativa de ópera nacional, e ressalta, entre outros, Thomaz Cantuária (1800-1878) e Euclides Fonseca. Não à toa, os três compositores representam Pernambuco historicamente na Academia Brasileira de Música (ABM), na condição de patronos das respectivas cadeiras de número 2, 9 e 26.

gRAçAS A eL Rei

Fora todas as medidas que tomou (e benesses que legou) após se estabelecer no Brasil, a D. João VI também cabem os créditos pela introdução da cultura operística no Rio de Janeiro, para onde trouxe

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todo um séquito de instrumentistas e cantores que integravam a Capela Real Portuguesa. Desde a marcante passagem de Domenico Scarlatti (1685-1757) por Lisboa, quase um século antes, a Capela Real proporcionava o melhor da ópera e da música sacra em estilo napolitano setecentista – o Teatro Nacional de São Carlos (construído em 1793), por exemplo, até hoje preserva o repertório regular daquela época. Havia indícios de atividade operística anterior a 1808 por aqui, mas nada como as montagens profissionais europeias que passaram a ter lugar a partir da Abertura dos Portos e serviam de entretenimento à elite lisboeta exilada, razão que impediu a popularização do gênero nas classes mais baixas. Com a independência do Brasil, a Capela Real transformou-se em Capela Imperial e veio a fechar no interstício entre o

Primeiro e o Segundo Império por negligência administrativa (entendase: atrasos crônicos nos salários). Àquela altura já não era novidade a eventual presença de companhias estrangeiras de ópera nas principais capitais do país. Todavia, em função dos custos necessários para uma montagem na íntegra, os amantes do bel canto quase que só assistiam a recitais de árias e duetos. O professor José Amaro explica que, por esse motivo, a primeira ópera completa apresentada no Santa Isabel foi I puritani, de Bellini (1801-1835), em 18 de agosto de 1858, ou seja, oito anos após a inauguração do teatro. Procurando obter o mesmo êxito de Carlos Gomes em Milão com O guarani, outros compositores lançaram-se à composição operística, mesmo que dentro dos ditames italianos, a partir dos anos 1870. Jupyra, do carioca Francisco Braga

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Dulcineia e Trancoso foi inspirada no movimento armorial

Nesta página 00 9 CARMEN

a tradicional ópera foi encenada no recife, em 2005, sendo bem-recebida pelo público

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Ao AR LiVRe

em Auto do pesadelo de Dom Bosco, Jorge antunes critica os escândalos políticos do distrito Federal

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ÓPeRA De RUA SátiRA AoS SALAMALeqUeS De BRASíLiA (1868-1945), e Iara, do paraense José Cândido da Gama Malcher (1853-1921), que conheceu Carlos Gomes na Itália e o convidou a morar em Belém quando voltasse ao Brasil, seguem inclusive a mesma temática indianista. Já Leonor, de Euclides Fonseca, baseou-se num poema de José Afonso de Araújo e se passava na Ilha de Itamaracá, em 1643. Ainda de acordo com José Amaro, a ópera em um ato atendeu à encomenda de uma associação de apreciadores, o Clube Carlos Gomes, e estreou no Santa Isabel em 7 de setembro de 1883 – talvez a última ópera nacional encenada ali até O cientista, em 2007. Depois daquele ano, apenas algumas operetas entraram em cartaz na cidade até os anos 1920 e 1930, em particular as sete de Valdemar de Oliveira (19001977), da cadeira 26 da ABM.

o compositor carioca, radicado em Brasília, Jorge Antunes construiu uma trajetória sem paralelo no país, por exercer seu ativismo político através das partituras – sinfônicas, eletroacústicas, corais ou operísticas. No final de 2009, o músico começou a trabalhar em um novo conceito de drama musical, radicalmente oposto a qualquer elitismo e apoiado na produção cooperativa, a ópera de rua. Daí nasceu o Auto do pesadelo de Dom Bosco, sátira em um ato sobre os escândalos políticos que abalaram o Distrito Federal nos últimos tempos. A narrativa é bastante simples: em um tribunal medieval, um meirinho apresenta os acusados de mau uso do dinheiro público, os quais entram sob protestos do povo e fazem sua defesa, um a um,

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perante o Juiz Voxprópolis; no fim, todos são presos, para gáudio da população. A comicidade está na atuação dos acusados, que parodiam figuras conhecidas do noticiário local, como Ioarrín Kouriz, “Rei do Gado, Senhor da Bezerra d’Ouro”, e o Monarca Xaró Parruda, que cantarola sem pudor: “Nem aqui e nem na China/vai ter lei que me destrone./Com a grana da propina/ distribuo panetone”. Recorrendo ao boca a boca, Jorge Antunes recrutou músicos, cantores e dançarinos, todos voluntários, e angariou doações para confeccionar figurinos e materiais diversos; assim, a produção teve o mínimo possível de custos. O Auto estreou dia 20 de fevereiro, em Brasília, causando risos desde a entrada dos músicos da pequena orquestra, que usavam calça jeans, camisa branca com cédulas de dinheiro saindo pelos bolsos e chapéu em forma de panetone. No final, um pequeno detalhe explicado pelo compositor: “Não cai o pano, porque na rua não tem panos, nem nada: só nos gabinetes tem coisas por debaixo dos panos”. caRlos eduaRdo amaRal

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