trecho de "O pai da menina morta"

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Tiago Ferro

O pai da menina morta



[ madrugada de quarta para quinta-feira. pronome de tratamento: você. morte. ] Você liga para o seu pai do corredor do Instituto da Criança. A sua filha está sendo atendida por uma equipe com mais de cinco pessoas, entre médicos e assistentes. Um deles fica exclusivamente aplicando massagem cardíaca. Um outro fala para ele como estão as medições de frequência do coração e dos pulmões. É a segunda vez que injetam adrenalina com uma seringa enorme no joelho direito dela. A seringa fica ali espetada. Quando o médico interrompe a massagem, o sinal sonoro de uma das máquinas se faz constante e a linha no monitor com altos e baixos fica reta como a do horizonte. Ele parece precisar de dois ou três segundos para processar 5


essas mensagens e retomar o esforço que restabelece o som entrecortado por silêncios e o traço irregular na cor verde que atravessa o fundo preto. Pai, vem pra cá já. A Minha Filha tá morrendo. Na ponta do corredor, a Lina carrega a sua outra filha no colo enquanto berra desesperada. No! Dios no! Da sala vizinha onde estão salvando a sua filha sai uma mulher de quarenta anos. Ela fala para você que vai dar tudo certo. Ela está rezando pela sua filha. Você quer acreditar, mas uma estranha resignação já começa a entorpecer os seus sentidos. Você agradece. A equipe médica deixa você entrar e sair livremente da sala, o que é estranho. Alguma coisa muito séria deve estar acontecendo. Na verdade é tão grave que os protocolos já estão sendo abandonados um a um. A médica responsável vem até o corredor e fala para você que o procedimento-padrão é tentar a reanimação por até vinte minutos. Mas eles não vão desistir. Ninguém sabe dizer em qual momento a equipe do hospital amputou os seus dois pés. Você não consegue se mover. Está difícil até mesmo de se equilibrar. A dor é fria e você já não sente o seu 6


corpo. Os dois tocos de perna enterrados no chão emborrachado espalham uma gosma amarela por todo o corredor do hospital. Ninguém mais consegue se aproximar. O cheiro de infecção que sai dos seus ferimentos é nauseante. A mulher da sala ao lado interrompe a reza e vomita em um saco plástico do supermercado Dia. A essa altura ninguém mais naquele prédio acredita no procedimento-padrão. Quinze minutos depois, a mesma médica vai te chamar para entrar na sala. Seus pais estão com a sua outra filha lá fora. A médica te instrui a conversar com aquele corpo animado pela massagem cardíaca que nunca para. Para pedir para ela voltar. A Lina entra junto e vocês não se olham. Hija mia! Vamos, filha. Vamos pra casa. Minha voz está saindo? Não, não está. É você deitado nessa maca morrendo. Sua filha está em casa assistindo à televisão. Ela não imagina que o câncer já comeu todos os seus órgãos abdominais. Quarenta minutos depois eles desistem. A menina está morta. Na entrada do hospício dois enfermeiros com porte físico de cavalos da guarda iraniana arrancam a sua roupa de uma vez. Entregam para você um camisolão branco-sujo e um cobertor xadrez 7


puído e malcheiroso. Agora entra. O seu pai fica dentro do carro estacionado na frente do hospital chorando convulsivamente. A sua outra filha o consola. A sua mãe parece querer dar algum sentido para aquilo tudo perguntando para a equipe médica o que havia acontecido. Afinal, ela estava bem. Por que o coração parou? Qual a causa? Lázaro realmente ressuscitou? Por que Jesus perdeu tempo transformando água em vinho em vez de salvar uma criança? A Lina chora sem parar sentada em uma cadeira de escritório com rodinhas na sala para onde levaram vocês. Ela nunca mais será capaz de pronunciar uma palavra em português. É um cubículo abafado onde os plantonistas dormem depois de ingerir drogas lícitas em quantidades ilícitas. Você volta para a sua filha. Três assistentes estão arrumando os equipamentos, já indiferentes ao corpo estendido de calcinha e camiseta na maca muito branca e brilhante por causa da luz ainda acesa sobre ela. Você toca nela. Ainda está quente. Um fio de sangue seco liga o nariz à boca. O sangue some do seu rosto e do seu corpo. Nada mais liga você a nada. Aguenta firme. Volta para a salinha e fala para a Lina que nada 8


acabou. Faça isso. Não racionalize. Não é hora. De onde você tirou a firmeza para falar essas palavras com tamanha convicção? Estava no roteiro. Você se pergunta se disse realmente essa frase ou não. Mortos não falam. Em três meses ninguém mais vai se lembrar de você. Agora é preciso ir ao outro prédio assinar alguns papéis. A burocracia não morre. Apareceram amigos e parentes. Como? Alguém ligou. Isso pouco importa agora para você. É madrugada em São Paulo. Responda: cremar ou enterrar? Você vai para a casa dos seus pais. Não sabe como chegou lá. A sua mãe oferece a você um comprimido verde para ajudar a dormir. A toca do coelho está fechada. Toma. E agora? Vai para a cama. Como se estivesse voltando de uma festa. É a única saída possível. O suicídio nesse momento não é uma boa ideia. Beije as suas filhas e durma. Amanhã você se vira com a ressaca. Você é um péssimo pai. Deixou a sua filha cair, bater a cabeça, se afogar, ser picada por uma cobra venenosa. Você deixou a sua filha sozinha em uma maca fria no Instituto da Criança coberta com um lençol de solteiro branco. 9


[ WhatsApp ] Lina querida! Dios mio! Estoy llorando x dentro. Lo siento tanto, tanto, ay no. G. [ eu ] Não consigo me orientar fora do meu bairro. Já saio preparado para me perder. Olhar mapas e decorar estações de metrô em cidades estrangeiras onde eu vou ficar apenas três ou quatro dias sempre me pareceu perda de tempo. Também nunca gostei de abrir aqueles guias no meio da rua, que deixam estampada na testa minha condição de TURISTA. Falo inglês e português apenas. E o inglês não é lá grande coisa. Já o português não serve em lugar nenhum. Basta eu abrir a boca que fica escrito no meu peito IMPOSTOR. Nunca tive paciência para pesquisar como é calculada a cada ano a data do Carnaval. Jamais vou manter o passaporte em dia, como se diz. Me cansa quem conversa sem parar sobre trabalho e só fala em dinheiro, quem tem muito ou quem tá sem nada. Acho criminoso quem fala “apenas” para quebrar o silêncio. Numa hora dessas fica gravado na minha cara CALA A BOCA. 10


[ alma do negócio ] Retiro uma senha para ser atendido no serviço funerário da prefeitura de São Paulo. O escritório fica dentro do prédio do velório do cemitério do Araçá. Tem muita gente por ali. Não dá para sentar. Vou tomar uma Coca-Cola no bar vizinho. Finalmente sou atendido. O vendedor de uns cinquenta anos e pele bastante vermelha me entrega o catálogo de produtos. O tom solene foi muito bem ensaiado. SERVIÇO FUNERÁRIO DA CIDADE DE SÃO PAULO (Produtos e serviços) Apresentação PRODUTOS Caixões Urnas Velas Arranjos florais SERVIÇOS Traslado 11


Batedores Padre Formolização ANEXO Preços e condições Pacotes Por que contratar faq Qual o tamanho da falecida? Não sei. Ele olha a ficha que eu fui buscar no hospital e entreguei a ele. Ah, é uma criança. Sinto muito. Nesse caso só há duas opções de caixões: o mais simples e o branco com detalhes dourados. Ele me acompanha até o showroom onde há alguns modelos expostos. Tudo cheira a verniz. Há luzes dirigidas em cada peça. O carpete é verde-escuro e a decoração é de bom gosto. Escolho o mais bonito. Ele me pergunta sobre as flores. O pacote fica em quinhentos reais, mas vale a pena. Falo que pode ser apenas uma coroa de cada lado. A cruz não é necessária. Formolização. Você vai querer? Tem que ser pago à parte, em dinheiro ou cheque. Se não fizer, como 12


o serviço vai ser mais de vinte e quatro horas após o óbito, vai ter que ser caixão fechado. Ligo para a Lina. Sem formolização, for-mo-li-za-ção, ela não vai poder ver a filha pela última vez. Sim, vou querer formolização. E quanto ao padre? Pode ser um de verdade, mas nem sempre funciona. Ou um ator profissional. Nesse caso ele envia uma proposta de texto por e-mail. Personalizado é 20% mais caro. É preciso aprovar até três horas antes da apresentação. Acho que não. Não sou batizado. Aceita cartão? Sim. Em até 3 vezes sem juros para compras acima de oitocentos reais. A segunda via é do senhor. Boa sorte. Eu que agradeço. [ hoje ] Eu morri pela primeira vez em 1980. Ninguém quer dizer oi para um Pai Morto.

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o livro O que acontece quando uma menina de oito anos, inteligente e amorosa, morre subitamente? O romance de Tiago Ferro tenta compreender os ecos dessa devastação na família e círculo de amigos dos pais. Gestado a partir de uma tragédia vivenciada pelo autor em 2016, o livro não se restringe ao inventário doloroso dessa perda indizível, mas discute temas como memória, sexualidade, humor, confissão e fabulação. Um livro comovente e aterrador.

O autor Tiago Ferro nasceu em São Paulo em 1976. Editor e escritor, é um dos fundadores da e-galáxia e da revista Peixe-Elétrico.

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Por que publicamos Ficção que testemunha um momento de grande perda, este Ê um romance comovente e aterrador.

todavia


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