3
contrapelo
Caderno de estudos sobre arte e polĂtica
Trajetória
contrapelo – Caderno de estudos sobre arte e política, ano 5, número 3, 2017
da kiwi companhia de teatro (1996/2017)
A Kiwi Companhia de Teatro surgiu em 1996 e produziu cerca de
Patriarcado e capitalismo, que se estendeu até setembro de
trinta montagens teatrais, intervenções cênicas e leituras
2011, faziam parte apresentações teatrais, oficinas, debates,
dramáticas. Também organizou eventos multiartísticos, cursos,
ciclo de filmes, intervenções urbanas e a realização de um
oficinas e debates sobre a encenação e a dramaturgia
documentário. Ainda em 2011 o grupo recebeu o Prêmio
contemporâneas. Realizou documentários audiovisuais e publica,
Myriam Muniz (MinC/Funarte) para apresentar Carne no
desde 2013, o caderno de estudos Contrapelo. Através destas
Estado do Pará (Belém e Marabá) e no interior do Estado
atividades, o grupo procura participar criticamente da vida cultural
de São Paulo.
editorialtrajetória A razão neoliberal e seus contrários, Kiwi Companhia de Teatro
bibliotecacrítica Sobre o que caracteriza o teatro independente (1978)
e refletir sobre a sociedade brasileira e sobre temas civilizacionais.
04
06
Em 2012 a Companhia iniciou o projeto Morro como um país A Companhia é formada por componentes fixos e diversos
– A exceção e a regra, também apoiado pelo Programa de
colaboradores: Fernanda Azevedo, Fernando Kinas, Luiz Nunes,
Fomento ao Teatro. No ano seguinte, o trabalho resultou em
Daniela Embón, Eduardo Contrera, Luciana Fernandes, Elaine
uma temporada de dois meses e um ciclo de debates sobre
Giacomelli, Maria Carolina Dressler, Maíra Chasseraux, Renan
a violência de Estado. Em 2013 o grupo ganhou dois editais,
Há tantos anos já faminta, Emily Dickinson
14
Rovida, Julio Dojcsar, Marcia Moon, Madalena Machado, Clébio
Myriam Muniz e Marcas da Memória, viabilizando uma
Ferreira (Dedê), Aline Santini, Luiz Gustavo Cruz, Filipe Vianna,
circulação nacional do projeto Morro como um país (Paraíba,
O pão do povo, Bertolt Brecht
16
Paulo Fávari e Camila Lisboa.
Ceará, Distrito Federal e Rio de Janeiro). No início de 2014, o grupo foi premiado nos editais Proac e Fomento ao Teatro.
poemasquejandos
dossiêkiwi
Seus trabalhos têm sido apresentados em diversas cidades
Em março Fernanda Azevedo recebeu o Prêmio Shell de
brasileiras e foram programados em festivais de teatro e
melhor atriz por seu trabalho em Morro como um país, ocasião
performance (Bogotá, Los Angeles, Recife, São José do Rio
em que denunciou a conivência entre grandes corporações
Preto, Salvador, Rio de Janeiro, Curitiba, Florianópolis). Após
e ditaduras. No segundo semestre a seleção para o Circuito
sete anos em Curitiba, a Companhia mudou-se para São Paulo.
Cultural Paulista levou o trabalho cênico Carne para oito
Roteiro Material Bond
27
Em 2006 estreou Teatro/mercadoria # 1 no Sesc Copacabana.
cidades do interior paulista.
As fomes do mundo
40
Caderno de fotos Fome.doc
42
Roteiro Fome.doc
51
No ano seguinte foi selecionada pelo Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo com o projeto Teatro/
Em 2015 o grupo desenvolveu o projeto Manual de autodefesa
mercadoria – Espetáculo e miséria simbólica, que incluiu
intelectual, que estreou no Sesc Belenzinho e fez sua segunda
apresentações teatrais, oficinas, debates e a realização do evento
temporada no Galpão do Folias, ambos em São Paulo. Em
festa&ideias. Ainda em 2007 a Companhia foi convidada pelo
maio o grupo participou do Circuito Tusp de Teatro com a
Sesc São Paulo para mostrar parte do seu repertório na Mostra
peça Carne e, em junho, esteve em Porto Velho (RO)
Sesc de Artes. As atividades incluíram três peças e três processos
apresentando a intervenção Três metros quadrados.
de trabalho apresentados no Teatro Anchieta.
A arte deve tornar a realidade impossível Caderno de fotos Material Bond
18 20
políticacultural A imaginação cria a humanidade, Kiwi Companhia de Teatro
74
Em 2016 a Companhia ganhou o edital de teatro da Cultura Em 2008 a Companhia representou o Brasil no Seminário
Inglesa para montar Material Bond, obra inspirada no
Internacional de Performance e Feminismo Actions of Transfer
dramaturgo e ensaísta britânico Edward Bond. Neste mesmo
– Women‘s Peformance in the Americas, organizado pela
ano obteve pela quinta vez o apoio do Programa de Fomento
Universidade da Califórnia. Em agosto de 2009 o grupo
ao Teatro; o novo projeto incluiu, ao longo de 2017, uma
apresentou em Bogotá a performance Carne – Histórias em
formação sobre teatro documentário, duas temporadas de
pedaços, no 7º Encuentro Ciudadanias en Cena, organizado pelo Instituto Hemisférico de Performance e Política. Em 2010
aquiagora Brasil ou o eterno retorno do mesmo, Isabel Loureiro
78
Agitprop e a forma revolucionária, Douglas Estevam
84
Fome.doc (Centro Cultural São Paulo e Galpão do Folias),
A terra, a fome e o teatro, Fernando Kinas
86
treinamentos musicais abertos ao público, a circulação de
ontem...
88
o grupo foi novamente selecionado pelo Programa de Fomento
Carne em parceria com movimentos sociais e uma nova
ao Teatro para a Cidade de São Paulo. Do projeto Carne –
temporada de Manual de autodefesa intelectual.
...hoje
89
Homenagem ao TUOV
90
editorialtrajetória
A razão neoliberal e seus contrários
PRINCIPAIS MONTAGENS da kiwi 1. Fome.doc., roteiro de Fernando Kinas a partir de Josué de Castro, Mahmud Darwich, Primo Levi, Bartolomé de las Casas, Frantz Fanon e outros, 2017.
04
2. Material Bond, roteiro de Fernando Kinas a partir de Edward Bond, 2016/2017. 3. Manual de autodefesa intelectual, roteiro de Fernando
O terceiro número do caderno de estudos Contrape-
A cidade de São Paulo, novo laboratório neoliberal,
Se havia, e ainda há, um certo pessimismo da ra-
lo confirma a lógica política que estava na origem da
naufraga submetida ao lobismo desenfreado e à desfaçatez
zão, sobra o otimismo da vontade. A situação atual
publicação: estamos, de fato, na contracorrente, a con-
política. No âmbito internacional a situação é igualmente
cobra muita lucidez, firmeza e disposição. Cabe a nós
de Fernando Kinas, 2014/2015.
trapelo da história violenta que nos empurra para o fu-
grave. De Trump a Macron, passando pelo recrudescimento
não ceder às análises impressionistas, nem aderir aos
5. Morro como um país, roteiro de Fernando Kinas a partir
turo, deixando um rastro de destruição. Uma frase que
do conservadorismo na América Latina, pelas desordens
cantos de sereia do sectarismo ou do conformismo. O
de Dimitris Dimitriadis, Edward Bond e outros, 2013/2014.
circulou pelas redes sociais resume bem a situação: “de-
climáticas e pelo aumento das desigualdades sociais e eco-
que vai publicado neste terceiro número tateia este ca-
pois de sediar a Copa do Mundo e as Olimpíadas, o Bra-
nômicas, o panorama não é nada animador. Esta publica-
minho difícil da invenção poética e política, sem aban-
7. Teatro/mercadoria # 1, roteiro de Fernando Kinas a partir
sil se prepara para sediar a Idade Média”. O fundo do
ção, consciente dos seus limites, reflete e se opõe a este es-
donar princípios.
de Guy Debord e outros, 2006/2008.
poço, aqui, parece infinito.
tado de coisas.
Kinas, 2015/2017. 4. Três metros quadrados, intervenção cênica com roteiro
6. Carne, roteiro de Fernanda Azevedo e Fernando Kinas, 2007/2017.
8. Linha, de Israel Horovitz, 2006.
Admitindo que 2016 não foi a versão farsesca de
9. O bom selvagem, roteiro de Fernando Kinas a partir de Jean-Jacques Rousseau, Montaigne e outros, 2006.
Nas ações de governo, mas também disseminadas
Os números precedentes incluíram poemas, com des-
1964, 2018 não poderá ser a paródia de 1968, que cul-
10. Casulo, roteiro de Fernando Kinas, 2006.
por todo o tecido social, ideias e práticas conservado-
taque para a obra do palestino Mahmud Darwich; textos
minou, como sabemos, no AI-5. Portanto, não podemos
11. Titânio, roteiro de Fernando Kinas a partir de Elizabeth
ras, agressivas e obscurantistas, cada vez mais descom-
críticos sobre as artes cênicas; cadernos de fotos e roteiros
assistir distraidamente a história passar. É preciso esco-
Bishop, Pasolini e outros, 2004.
plexadas, mostram seus dentes. Elas resultam da gene-
integrais de nossas montagens; análises de movimentos
vá-la - resolutamente - a contrapelo. Estes são os pró-
ralização da forma-mercadoria e das formas brutais de
sociais escritas por seus protagonistas, além de artigos
ximos e inéditos capítulos da velha luta de classes.
sociabilidade produzidas pelo capitalismo contemporâ-
inéditos de Michael Löwy, José Arbex Jr., Angela Mendes
neo: competição, individualismo, consumismo, frag-
de Almeida, Edson Teles, José Correa Leite, Eduardo
mentação e simplificação da realidade, escapismo mís-
Campos Lima, Douglas Belchior, Adailtom Alves, entre
tico, fugas identitárias.
outros colaboradores e colaboradoras. O objetivo foi unir pensamento e militância, arte e ação.
12. Mauser/manifesto, de Heiner Müller e Karl Marx, 2002. 13. Fragmento b3, de Samuel Beckett e Edward Bond, 2001. 14. Osmo, de Hilda Hilst, 2000. 15. Tudo o que você sabe está errado, roteiro de Fernando Kinas a partir de René Descartes e outros, 2000/2001.
Boa leitura!
16. Carta aberta, de Denis Guénoun, 1998/2007. 17. Um artista da fome, de Franz Kafka, 1998. 18. R, roteiro de Fernando Kinas a partir de Albert Einstein e
Kiwi Companhia de Teatro
outros, 1997.
05
bibliotecacrítica
O golpe de 1964, o AI-5 decretado quatro anos depois e a continuidade da ditadura civil-militar até os anos 1980 tiveram um impacto decisivo sobre a cultura brasileira. Especialmente o teatro que afirmava sua vocação política e crítica foi duramente perseguido e censurado. Muitos artistas foram presos, torturados, exilados ou assassinados. A rica vida política e cultural dos anos 1950 e 60 gerou o Arena, o CPC, o Oficina, o Opinião e dezenas de outros coletivos e iniciativas teatrais. A brutal intervenção do golpe sobre as formas mais avançadas de teatro épico e dialético, por exemplo, praticamente suspendeu esta trajetória ascendente e inédita no Brasil.
sobre o que caracteriza o
Teatro independente
Em 1978, um ano antes da Anistia, houve um esforço de reorganização do teatro de grupo de São Paulo: o 1º Encontro de Teatro Independente. O texto que reproduzimos aqui é a súmula deste evento. Ele foi publicado pela primeira vez na Arte em Revista nº 6, edição esgotada há décadas. Vinte anos depois, em 1998, surgiu em São Paulo o Arte contra a Barbárie, mais uma tentativa de articulação teatral. Em 2018 outros vinte anos terão se passado, analisar estas e outras iniciativas políticas da categoria teatral pode nos dar algumas indicações sobre os erros a evitar e os rumos a tomar.
(1978)1
Estes artigos se propõem a ser um instrumento de discussão de alguns problemas enfrentados por grupos que caminham no sentido do desenvolvimento do teatro popular, sem mistificações, sem problemas morais e sem pruridos quanto ao reconhecimento de nossa propriedade.
07
À medida que íamos compreendendo melhor nosso papel na formulação teórica de novas propostas de cultura a serem esboçadas a partir da nossa prática teatral, tivemos também a preocupação de refletir da maneira mais objetiva possível essa nova realidade, ainda embrionária e, até certo ponto, disforme. O que se constata, nesse trabalho cultural, é a existência de uma pipocação de coisas sendo feitas, que se espalha em limites tão amplos que dentro de-
Material Bond, 2016
les cabem os mais diferentes, e às vezes conflitantes, objetivos e encaminhamentos. A unidade é conseguida ao nível da consciente intenção ou da necessidade de se dirigir a um público diferente, definido inconsistentemente como popular, pelo fato de ser o foto felipe stucchi
público que historicamente está sempre à margem de nosso teatro e, em geral, privado do usufruto da riqueza social. Essa unidade precária e indefinida quanto a quem se dirigir comporta os mais diferentes objetivos quanto ao que fazer para e com este público, na medida em que não temos dados sufi1
Nesta transcrição, procurou-se corrigir pequenos erros gramaticais, além de adequar o texto original ao novo acordo ortográfico.
bibliotecacrítica
08
O teatro “popular”, conscientemente ou não, tem que se estruturar, enquanto produção, de maneira diversa, na medida em que se dirige a um público para quem teatro nunca será uma mercadoria de consumo cultural
cientes que nos permitam conhecer suas necessida-
Sendo assim, nosso teatro é obrigado a se estru-
des, se nossas propostas culturais de teatro repre-
turar sobre outros elementos que já lhe são caracte-
sentam, ou refletem, necessidades suas ou nossas.
rísticos: investimento da força de trabalho de seus
Enfrentamos, como todos os outros grupos, os
próprios componentes, o que leva à necessidade obje-
mesmos problemas de produção. Tentamos discutir
tiva da racionalização do trabalho em termos coletivos
esses problemas para podermos compreender melhor
e à utilização do lucro comercial através de uma dis-
por que, para que e para quem fazemos. Nesta discus-
tribuição coletiva dentro do próprio grupo, de acordo
são, concluímos que o principal elemento que atual-
com as necessidades e em função de seus objetivos.
O conhecimento do todo do espetáculo, do resultado final do trabalho, em geral é um privilégio concedido apenas a alguns.
mente nos caracteriza e aos grupos de teatro – que,
E aqui compreendemos que continuar definindo
por enquanto, ainda chamaremos de “popular” – é a
o teatro que fazemos como não profissional, não co-
produção. Isto porque para nós ela adquire uma con-
mercial etc., seria um erro de método, na medida em
figuração própria, ou por desejo consciente ou por
que isto não é o que o caracteriza como um pólo
necessidade objetiva do grupo, na medida em que não
diferente do que chamamos teatro tradicional. Por
nos podemos valer dos recursos tradicionais nem dos
outro lado, ainda não podemos considerar o teatro
recursos que poderia nos oferecer nossa cultura sub-
que fazemos como popular, pois a produção, ele-
jacente, ainda sem formas próprias de organização e
mento identificado aqui, é apenas um dos integran-
infraestrutura. Valemo-nos dos recursos desenvolvi-
tes desse todo e uma vez que, como estética e con-
dos nas mais diferentes situações e aproveitamos to-
teúdo populares, no seu sentido mais amplo de
das as brechas. Nesse processo estamos criando o
transformação, é uma pesquisa, surgindo mais de
que se poderia chamar know-how da produção pobre.
uma necessidade nossa. E só uma prática contínua,
A falta de uma infraestrutura que se embase e seja
o surgimento de grupos nos bairros, a partir das ne-
própria do público ao qual nos dirigimos é um dos
cessidades das classes populares, e a absorção por
principais fatores de nossas indefinições e da falta de
parte delas, de nossa prática, poderá caracterizar um
uma unidade em torno de objetivos claros e definidos
teatro popular. O que nossa prática caracteriza hoje,
política cultural oficial que colabore com este teatro
a médio e longo prazo. Mas uma vez sedimentado o
é uma busca do que poderá vir a ser um teatro ver-
sintonizado com os demais movimentos da socieda-
“know-how” do “jeitinho”, a produção se define como
dadeiramente popular.
de na busca do popular.
09
principal elemento que coloca hoje em pólos antagô-
Por não ser o teatro uma entidade abstrata, alheia
nicos, de um lado, o teatro “comercial” e, de outro, o
ao desenvolvimento das contradições da sociedade,
teatro “popular”, uma vez que o conteúdo popular
não podemos, ainda, nos estabelecer num novo con-
Um produtor, um ator, um diretor, um elenco,
pode estar presente no teatro “comercial”. E por que a
ceito de teatro popular que ainda está nascendo. E
um cenógrafo, músicos, figurinista, maquinista, con-
produção? Porque se o teatro “comercial”, no investi-
por ser esta a justa medida de nossa realidade, defi-
tra-regra etc. Sem esses ingredientes é impossível
mento de capital, compra a força de trabalho, divisão
nimos o que até aqui denominávamos erradamente
realizar-se um bom teatro.
racional de trabalho em termos capitalistas, utilizan-
como teatro comercial, tradicional, do centro etc.,
Um produtor, que em geral determina o autor, o
do-se do lucro comercial para novo investimento, vi-
como TEATRO 1, e o que denominávamos como te-
diretor (que, logicamente, deve ter as perspectivas da
sando acumulação de capital da empresa ou usufruto
atro popular, como TEATRO 2; o primeiro tendente
montagem semelhantes às suas) e é determinante na
do empresário, mantendo atores, técnicos etc., uma
a assumir todas as características do teatro burguês,
escolha do elenco, que repete as falas escritas pelo
relação salarial, o teatro “popular”, conscientemente
mercador e o segundo buscando o teatro popular
autor, nas marcações e com as entonações indicadas
ou não, tem que se estruturar, enquanto produção, de
com tudo o que o termo indica.
pelo diretor, anda no cenário do cenógrafo e canta as
Infraestrutura e trabalho coletivo
músicas do compositor.
maneira diversa, na medida em que se dirige a um pú-
A denominação “Teatro Independente”, sugerida
blico para quem teatro nunca será uma mercadoria de
recentemente, pela semelhança com o tipo de teatro
O conhecimento do todo do espetáculo, do re-
consumo cultural mas, necessariamente, um produto
desenvolvido na América Latina, se justifica, no nos-
sultado final do trabalho, em geral é um privilégio
de sua própria cultura e que, no caso brasileiro, estará
so caso, a partir do momento que surja entre esses
concedido apenas a alguns. Atores e técnicos, muitas
ligado a uma idéia de libertação e transformação.
grupos (Teatro 2) uma organização independente da
vezes exercendo sua profissão, deixam de ter contro-
bibliotecacrítica Fome.doc, 2017
trabalho e não lucra ou perde com ele. Várias experiências desse tipo já foram tentadas mas, a partir delas, nenhum passo adiante foi dado no sentido de uma mudança estrutural dessa situação. Estabelecida
Dentro dessa estrutura tradicional só uma atitude consciente e grupal pode talvez mudar as coisas.
uma relação viciada: empresário-empregado, o poder de decisão dificilmente fugirá das mãos do primeiro. O teatro não pode, porém, ser visto como uma entidade abstrata, capaz de, em si, modificar essa situação que é generalizada em termos de produção. Mas se o que se produz é arte e não “bateria de bolo”, com o objetivo de análise do mundo em que vive, não se pode estar alheio a esse produto e tem que se buscar ao máximo compreendê-la, medir sua área de alcance, seus resultados e suas respostas. É nesse ponto que surge o trabalho coletivo. Dentro dessa estrutura tradicional só uma atituAbolir o empresário e buscar um método coletivo de trabalho. Experiências de grupos que passaram por tentativas de criação coletiva dentro de um esquema tradicional, foram importantes para a percepção des-
10
se problema e para o encaminhamento coletivo dos
foto filipe vianna
de consciente e grupal pode talvez mudar as coisas.
próprios grupos. Por outro lado, grupos surgidos no próprio bairro le sobre o produto que estão produzindo e, portanto,
nos revelam outra experiência de trabalho coletivo
onde todos os elementos não só diretamente ligados
sobre o seu significado, dentro do panorama socio-
extremamente importante. O teatro tradicional, li-
à montagem, mas ao grupo, têm que ser mobilizados.
cultural da sociedade onde ele atua. A relação de
gado diretamente às classes que detêm o poder eco-
Reforça uma divisão mais coletiva do trabalho.
produção, que esse esquema tradicional estabelece,
nômico e às classes médias, transporta para a em-
A experiência tem demonstrado que destes dois
mites dessa estrutura de criação e trabalho, ao tentar
tende a alienar esses profissionais do produto final
presa teatral esquemas de produção já conhecidos. O
fatores resulta um nível de consciência que não ad-
fugir dela, tendem a cair no seu extremo oposto: ig-
da obra. Cada um passa a ser um operário da linha de
teatro de bairro, por mais que tente, mesmo queren-
mitiria o lucro do empresário, caso este fosse o obje-
noram que dentro de um grupo podem existir dife-
montagem, que desconhece exatamente para que
do, não consegue transportar para a produção o mes-
tivo desses grupos. Mas o que motiva a formação
renças profundas, ao mesmo tempo que semelhan-
serve o que ele está fazendo.
mo esquema:
desses grupos, grande número de vezes, é a possibi-
ças não menos profundas. Em geral, partindo das
lidade de representação da realidade em que vivem e
semelhanças e procurando reforçá-las, ignoram as
sua discussão. E este nível de preocupação demons-
diferenças. A divisão de trabalho é feita num plano
tra um nível de consciência crítica (não confundir
ideal, quase matematicamente. Ignoram por comple-
consciência crítica com posição ideológica).
to o que foi até aqui, historicamente falando, o tra-
Não cabe, aqui, nenhum julgamento do ponto de
Procurando fugir a esse “esquemão”, muitas vezes
1. Por falta de material humano; 2. Por falta de recursos econômicos; 3. Pelo agente motivador das montagens e do
surgem produções de textos mais críticos de uma re-
grupo não ser o lucro empresarial, pelo menos a
alidade, propostos dentro de um clima mais liberal de
maioria das vezes.
vista moral, mas a simples constatação de uma situação que vem se apresentando no panorama teatral.
montagem. O que, em geral, aparece então, é a pro-
Trabalho coletivo e democratismo Diversos grupos que partem do teatro tradicional e chegam ao nível de consciência, percebendo os li-
O trabalho coletivo é para estes grupos a opção
balho de criação artística. O diretor é simplesmente
de existência, antes de ser um posicionamento fren-
abolido, sem que se conheça profundamente o que
te a uma realidade. Ou seja, o trabalho coletivo tanto
significou o seu papel. O mesmo acontece com as
funda contradição entre o que se está fazendo e di-
A falta de material humano já propõe uma nova
pode ser fruto de uma visão de mundo assumida na
outras funções e inclusive com a de produtor. A coi-
zendo no palco e a relação de produção mantida nos
divisão de trabalho muito menos compartimentada
prática pelos grupos, como de uma necessidade ob-
sa é idealizada com base na boa intenção dos inte-
moldes tradicionais. Ou seja, ainda assim existe uma
que a tradicional. A falta de recursos econômicos
jetiva dos grupos que buscam o teatro popular. Uma
grantes e as discussões e decisões do grupo caem
mão-de-obra alugada que não detém o poder sobre o
exige que entre em ação o “know-how” do jeitinho,
coisa tende a levar à outra.
num “democratismo” que leva:
bibliotecacrítica
1. à expectativa de que todos os integrantes de-
em si mesma. A auto-idealização advinda daí (grupo
sempenhem todas as funções na mesma medida e
homogêneo) e a distorção do conceito de unidade
qualidade, fazendo com que pessoas mais experien-
emperram o processo de autocrítica e o trabalho se
tes ou informadas numa determinada área deixem
torna, na melhor das hipóteses, inconsequente.
de dar o nível de colaboração para que têm capacida-
É no processo de crítica e autocrítica que o grupo
de e forçando outros a atuarem além de seus limites
pode superar esta fase. Entender que o coletivo não
em atividades que desconhecem ou que não lhes
está na realização de tudo por todos, mas na consci-
despertem maior interesse;
ência coletiva do trabalho e na participação ativa dos
2. que todas as decisões só sejam levadas à execução caso haja consenso absoluto de todos os
elementos do grupo no todo do trabalho. Participação esta definida, dinamicamente, por sua disponibilidade e seu conhecimnto.
integrantes. Isso provoca um profundo desgaste pela dificuldade que assume cada passo a ser dado e o que
A infraestrutura é determinante do método de
processo de desenvolvimento do grupo como um
trabalho de um grupo. Os grupos que buscam teatro
todo, no que se refere à sua atuação na realidade.
popular, em geral, não possuem uma infraestrutura
13
independente. Ou dependem de um lugar para enUm desgaste progressivo, como consequência
saios, ou de um lugar para apresentações, ou ambos.
dessa falsa visão de coletivo, muitas vezes se reflete
Geralmente são grupos ligados a associações de
na saída de elementos importantes para o desenvol-
bairro, igrejas, sindicatos, grêmios etc.
foto acervo da companhia
12
Infraestrutura e consciência
é mais grave: em grande parte das vezes, emperra o
vimento do grupo e do trabalho teatral. Esse “demo-
Muitas vezes formados por estas próprias enti-
cratismo”, como método grupal, em geral aparece
dades. Nesse caso são formados ou apoiados por elas
quando existem cisões latentes. O que acontece, po-
com o objetivo de reforçá-las. A relação de depen-
rém, é que sempre junto com uma idealização do
dência, que oferece a possibilidade de sobrevivência,
grupo “coeso”, “unido”, “forte”, e “pra frente” se es-
limita a criação do grupo e por mais coletivo que
condem as discussões mais fundamentais que são as
seja, no final, ou o trabalho agrada a entidade ou é
de atuação deste grupo teatral dentro de uma reali-
posto para fora. Caso agrade, tudo bem, o trabalho
dade histórica e social. Os “rachas” geralmente se
segue. Caso contrário, o grupo, sem infraestrutura,
à qual se dirige, é mínimo e a tendência é, mais uma
disso, já trabalha coletivamente, partindo da pers-
manifestam através dos chamados “problemas pes-
pode se desfazer. A falta de consciência de onde está
vez, fortalecer uma entidade local, ou representar a
pectiva da coletividade à qual ele se dirige, e não
soais”. A própria existência do grupo fica ameaçada.
atuando torna os grupos extremamente frágeis.
peça com a mínima possibilidade de um trabalho
especificamente da sua que, como já vimos, é extremamente frágil.
“Todo mundo faz tudo” é questionado pela prática.
Em geral, este problema leva o grupo a procurar
teatral mais profundo. Em cima disto, várias pro-
As diferenças de pessoa para pessoa, quanto à dispo-
em esquema independente. A experiência mostra que,
postas surgem. Em termos de proposta, um grupo
Por outro lado, caso não haja consciência da rea-
nibilidade de trabalho, conhecimento anterior etc.
grande parte das vezes, a primeira ideia que aparece é
pretende atuar numa determinada realidade. Esta
lidade em que se atua, da infraestrutura onde se
negam esta teoria. O retardamento do conhecimento
novamente o oposto do que existia: a itinerância.
realidade, por sua vez, atua sobre o trabalho do gru-
apóia, o que ela representa, o trabalho tende a ser
Usa-se uma infraestrutura qualquer para en-
po. Num grupo consciente esta interação pode mu-
absorvido por esta infraestrutura e por esta realida-
saiar e apresenta-se o espetáculo em vários lugares,
dar a proposta do grupo ou mesmo negá-la. Esse
de. Nesse caso, escapará fatalmente das mãos de
O grupo torna-se abstração. O trabalho coletivo
variando, em geral, semanalmente. O nível de con-
processo de interação é fundamental para o desen-
seus realizadores, que perderão o controle sobre sua
nesses moldes, também. A coisa tende a fechar-se
tato do grupo com aquela determinada realidade,
volvimento do trabalho coletivo. O grupo, a partir
produção e seu significado sociocultural.
deste problema leva igualmente ao desgaste do grupo e, o que é pior, de seu trabalho.
Há tantos anos já faminta Emily Dickinson
Há tantos anos já faminta – Enfim, minha hora de jantar! Trêmula me acerquei da mesa E o vinho raro fui provar. Era tal qual mesas que eu via Quando, voltando ao lar, com fome, Pelas vidraças contemplava Banquetes que pobre não come. Não conhecia o farto pão – Migalha outra era a da mesa Que, para mim e para os pássaros, Oferecia a natureza. Tanta fartura me feriu, Senti-me mal, desajeitada Como uma baga da montanha Para a estrada transplantada. Fora-se a fome: ela era um jeito De gente do lado de fora, Espreitando pela janela. Entra-se – e o apetite vai embora.
Tradução de Aíla de Oliveira Gomes
foto FILIPE VIANNA
poemasquejandos
Publicamos aqui dois poemas que tematizam a fome e a justiça. O diálogo proposto, algo incomum, entre Emily Dickinson (1830-1886) e Bertolt Brecht (1898-1956), revela não apenas diferentes estilos poéticos, mas também sugere concepções de mundo que se opõem.
Fome.doc, 2017
15
poemasquejandos
dossiêkiwi
O pão do povo
Esta seção traz dois roteiros cênicos que serviram de base para recentes montagens da Kiwi Companhia de Teatro: Material Bond e Fome.doc. Dois textos introdutórios e dois cadernos de fotos complementam o registro das temporadas destes trabalhos, que ocorreram na cidade de São Paulo em 2016 e 2017.
Bertolt Brecht
A justiça é o pão do povo. Às vezes bastante, às vezes pouca. Às vezes de gosto bom, às vezes de gosto ruim. Quando o pão é pouco, há fome. Quando o pão é ruim, há descontentamento. Fora com a justiça ruim! Cozida sem amor, amassada sem saber! A justiça sem sabor, cuja casca é cinzenta! A justiça de ontem, que chega tarde demais! Quando o pão é bom e bastante O resto da refeição pode ser perdoado. Não pode haver logo tudo em abundância. Alimentado do pão da justiça Pode ser feito o trabalho De que resulta a abundância. Como é necessário o pão diário É necessária a justiça diária. Sim, mesmo várias vezes ao dia. De manhã, à noite, no trabalho, no prazer. No trabalho que é prazer. Nos tempos duros e nos felizes. O povo necessita do pão diário Da justiça, bastante e saudável. Sendo o pão da justiça tão importante Quem, amigos, deve prepará-lo? Quem prepara o outro pão? Assim como o outro pão Deve o pão da justiça Ser preparado pelo povo. Bastante, saudável, diário. Tradução de Paulo César de Souza
foto fernando kinas
16
Fome.doc, 2017
foto filipe vianna
dossiêkiwi
A arte deve tornar a realidade impossível notas sobre material bond
19
18
A criação de Material Bond procura suprir, par-
mais conhecido é Blow-Up, dirigido por Antonioni),
poética. Em outros termos, a necessidade de huma-
cialmente, uma lacuna do teatro produzido no Brasil.
libretos de ópera, fábulas, poemas e letras de canções.
nizar o humano e a fome de justiça, tema do poema The site, incluído no roteiro e na montagem.
Edward Bond, nascido em Londres em 1934, está
Além da qualidade poética de suas obras, sua con-
entre os maiores dramaturgos europeus vivos. Em-
tribuição é inegável no campo da experimentação
A obra de Bond exercita estruturas (poéticas, te-
bora suas peças sejam montadas regularmente mun-
formal, desenvolvendo – tanto na escrita, como teo-
atrais, narrativas) para analisar a sociedade e para que
do afora, é praticamente um desconhecido entre nós.
ricamente – técnicas para uma dramaturgia em sin-
o público possa refazer sua visão de mundo. Um
Exceto por raríssimas encenações, uma delas estre-
tonia com o munto atual. Sua trajetória tem sido
certo caráter multiforme, em que lírico e narrativo se
ada em São Paulo em 2001 (Fragmento b3, dirigida
marcada pela recusa dos esquemas do chamado teatro
cruzam, não invalida, de forma alguma, a função to-
por Fernando Kinas), sua obra está ausente dos pal-
comercial, mas também pela distância de um certo
talizadora assumida por nossa proposta dramatúrgica
cos, dos catálogos das editoras e do debate público.
tipo de teatro político, julgado por ele pouco eficiente.
e cênica, que reivindica sem hesitação a matriz dialé-
No entanto, Bond tem se colocado, com acuidade e
O modo que encontramos para lidar com esta ra-
contundência, como um interlocutor privilegiado
dicalidade de conteúdos e formas foi partir de poemas,
À radicalidade da injustiça e da desumanidade
para as discussões complexas e necessárias entre
letras de canções, pequenas histórias e textos teóricos,
(leitmotivs de Edward Bond) precisa corresponder uma
teatro e sociedade.
para construir uma intervenção teatral com roteiro
radicalidade estética e política. Nosso trabalho gos-
tica que inspirou Bond.
inédito. O uso de material não dramático, a hibridiza-
taria de se apresentar, portanto, sob o signo da con-
ção de linguagens (com a projeção de imagens) e es-
tradição produtiva, isto é, esforça-se em apresentar
lífico comentador de suas próprias peças, publicando
paços (na montagem usamos um pequeno tablado
conflitos que possam revelar, para além da superfície
prefácios, introduções, comentários, escrevendo car-
instalado na plateia), caracteriza, em parte, o trabalho
tas, além de densos ensaios sobre a relação entre arte
que estamos desenvolvendo nos últimos vinte anos.
e política. Além desta importante produção teórica,
Em Material Bond três temas essenciais se dese-
Bond produziu roteiros e diálogos cinematográficos (o
nham: a (in)justiça, o (des)humano e a imaginação
foto bob sousa
Além de sua vasta produção dramatúrgica (cerca de 50 obras até o momento), Edward Bond é um pro-
das coisas, conexões profundas com a realidade em que vivemos. Fernando Kinas
foto bob sousa foto felipe stucchi
foto bob sousa
foto bob sousa
Caderno de fotos temporada material bond 2016/2017
foto bob sousa
foto filipe vianna
foto filipe vianna
foto filipe vianna
foto bob sousa
foto bob sousa
Material Bond
Intervenção cênico-musical.
como agentes de autoridade
Uma atriz, um músico, técnicos.
Roteiro de Fernando Kinas a partir da obra de Edward Bond. Versão final de março de 2017.
Palco convencional e um pequeno tablado instalado
Eu fui bombardeado pela primeira vez com cinco anos
na plateia.
o bombardeio continuou até que eu tivesse onze anos
[O texto a seguir deve ser veiculado em gravação
Mais tarde o exército me ensinou
contínua - looping - durante toda a entrada do público.
dez maneiras de matar meu inimigo
Sotaque britânico.] E a comunidade me ensinou Quando o público entra, a equipe está trabalhando.
cem maneiras de matar meu vizinho
O músico - com figurino cinza, escondendo um uniforme laranja-Guantánamo - verifica os instrumentos.
Com vinte anos eu escrevi minha primeira peça
A atriz se aquece e organiza o material de cena. Os técnicos de som, luz e imagem testam os
Como todo mundo
equipamentos.
vivendo nesse meio de século
O público ouve este texto.
ou nascido depois
As cenas vão apresentar as ideias de Bond. Edward
eu sou um cidadão de Auschwitz [o músico repete
Bond.
esta palavra]
Entre outros temas, discute-se a justiça, o poder, a
e um cidadão de Hiroshima [o músico repete esta
violência, a imaginação.
palavra]
A pergunta feita e refeita talvez seja essa: como é possível ser humano em um mundo desumano?
Eu sou também um cidadão
Aqui não há crise da razão.
do mundo justo que ainda precisa ser construído [o músico repete esta
MÚsico [Sonoplastia sugerindo tempestade.]
frase] [Música Revolution/Animalis.]
Eu nasci às oito e meia da noite
ATRIZ
quarta-feira 18 de julho de 1934 foto filipe vianna
Tinha uma tempestade
Eu perguntei ao homem na encruzilhada: por que você está esperando?
[Fim da tempestade.]
Ele disse: eu não tenho sapatos nos meus pés ATRIZ
meu estômago está vazio minha casa foi tomada
Uma hora antes do meu nascimento
um homem num terno impecável
minha mãe lavava as escadarias do prédio
com abotoaduras heráldicas
para que elas estivessem limpas
roubou minha carteira
na hora em que a parteira chegasse
e meu casaco está em chamas mas eu não quero ser alarmista
No bairro onde vivia minha mãe considerava-se os representantes da medicina
Eu não quero ser alarmista
dossiêkiwi Eu não quero ser alarmista
Isso é impossível e se você tentar você renunciará a
Ele troca suas roupas e come bem
não nos mostrar o proprietário
Eu não quero ser alarmista
ser responsável pelos seus atos
Você interpreta isso, mas o que você nos ensinou?
E quem manda na cidade
Eu não quero ser alarmista
Você renunciará a julgar e sem isso não se pode mais
Vá até as montanhas!
O relógio marca três horas
Eu não quero ser alarmista
criar
Os pobres ainda são pobres
Você não pode dizer que horas são até saber qual é o
Eu não quero ser alarmista
Possua a personagem, não deixe que ela possua você
O passado ainda oculta o passado e o futuro ainda é
século
Eu não quero ser alarmista
Interpretar transforma a palavra escrita e o gesto
incerto
descrito
Que vergonha! Por que desperdiçar nosso tempo?
O que a personagem traz para a sua situação?
Tanto quanto o vento muda as formas das nuvens e
Não nos mostre um homem que se conforma com
Características? Temperamento? Inútil!
das roupas
esse mundo
Ela é orgulhosa? Do quê? Brava? Quando? Generosa?
As palavras mudam enquanto são proferidas e nova-
Sua vida não foi mudada – apenas seu modo de vida
Com quem?
mente quando são ouvidas
Não há nada para você interpretar aí
A não ser que conheçamos a situação de um homem
Sem essas mudanças a peça é um fantasma de papel
As unhas do mineiro estão limpas – isso é tudo o que
não podemos dizer se ele é bom ou mau
você interpreta!
Como a vendedora de peixe consegue definir o preço
A - lar - mis - ta! [Vídeo urbano.]
ATRIZ
28
[Ela contracena com sua voz gravada e com uma
A personagem é por natureza raivosa ou feliz?
marionete. A cena deve acontecer no palco principal.]
Como isso nos diz pouco!
A vendedora de peixe é esperta ou estúpida?
Como ela pode saber o que faz até conhecer o mundo
Não há apenas uma raiva ou uma felicidade ou uma
Você mostra o que ela é mas você ainda não nos re-
em que vive?
Atores
coragem
velou a vendedora de peixe
O pessimismo de um homem e o otimismo de seu
Não tentem tornar possíveis suas personagens
Mas existe apenas uma justiça
A esperteza da vendedora e da freguesa não é a mesma
vizinho
Os homens fazem coisas que não deveriam ser pos-
O guarda nazista da SS é feliz
Não existe apenas uma esperteza
Podem transformar o mundo da mesma maneira
síveis
Não são as emoções que nos tornam humanos
A esperteza que torna astuta a vendedora
Não diga “ele nunca faria isso”
E tampouco é verdade que atos virtuosos nos fazem
Pode fazer da freguesa uma boa mãe
[Música utilizada pelas SS.]
Os homens não se comportam de maneira previsível
ser bons
Não faça da personagem um homem
Julgue pela situação não pela personagem ou suas
[Sonoplastia sugerindo tempestade.]
O que um homem deveria compreender? Sua vida
Infelizmente um homem é feito de muitos homens
ações
Não se preocupe quando uma ação não é lógica
Um prisioneiro faminto dá um pão à uma criança
A vendedora de peixe não pode ser mostrada pela sua
Sua vida não é definida pelo que ele faz consigo mesmo
Aos homens falta lógica
O guarda também dá um pão a ela
personagem
Ela é definida pelo que ele faz com a sua situação
Pergunte porquê a eles falta lógica
Ele sabe que amanhã a criança irá para a câmara de gás
Sua vida depende da barraca de peixe
O guarda da SS não compreende nada da sua vida
Descubra a descaracterística em uma personagem
Esse guarda é bom? Ele é louco
Da tempestade que sopra no cais
Você irá interpretar muitos homens que não entendem
Descubra porquê a personagem deixa de ser ela mesma
Mas é ainda um ato de bondade?
Neste mundo nós ainda não nos tornamos humanos
Não, é um ato de loucura
Alguns tentam ser humanos
O mesmo ato tem muitos significados
Outros são carniceiros ou coisa pior
Não existe uma alma comum para todos os homens
A tal ponto que a lona sobre sua cabeça tremula como
Comece o trabalho novamente quando disser “ele
Tudo que nós temos em comum é a razão e alguns
as asas de um abutre
nunca faria isso”
homens usam a razão para justificar a loucura
Sua vida depende do sol que faz os peixes federem
Talvez você esteja perto de compreender
Então mostre-nos a situação
quando os passantes são pobres demais para comprar
É claro que uma personagem não pode ser interpre-
Porquê esse homem busca a liberdade e aquele outro
Daí nós veremos como vícios e virtudes
Das cestas que ela carrega e da pechincha com os
tada
é um carniceiro
Podem atravessar nossas mentes sob nomes falsos
donos da pesca
Você deve interpretar uma vida
Como um homem sorri ao ter um revólver nas costas
Das falas na reunião dos feirantes
Eu repito: uma personagem não pode ser interpretada
Não procure uma alma
Ou um homem se disfarça no posto de fronteira
Das propinas que ela paga aos responáveis pela li-
Isto é um paradoxo mas é a verdade
Uma alma não vai ajudar a entender o que foi feito
Você pergunta: será ele um bandido ou um amigo do
cença
É um coelho branco tirado de uma cartola quando a
povo?
De todo o negócio de vender e comprar peixes
verdade é difícil demais para se compreender
Não espere que seu disfarce o diga
Não tente tornar-se a personagem
Um mineiro encontra ouro nas montanhas
do peixe sem saber as condições do mercado?
Isso é, sua situação e o que ele faz dela
nada das suas vidas [Fim da tempestade.]
Nem todos usam uniformes para nos alertar disso Então como é importante que você compreenda! [Fim da música das SS.]
A vida de um homem é explicada pela vida de todos os homens
Você não pode mostrar uma moça na cozinha se você
Você não precisa compreender sua personagem
29
dossiêkiwi Você precisa compreender a sua vida
[Fim da música de teatrinho.]
Você precisa de uma maneira para mostrar esta compreensão
Eles percebem que são pessoas em busca do enten-
Um homem é ele mesmo ou ele é todos os homens
dimento
Você deve interpretar todos os homens
Édipo é tolo e sábio ao mesmo tempo
Este é o teatro da razão
Conhecimento é verdade mas não é arte
Interpretar esta compreensão
Na arte há sempre justiça
Não reproduza
[A atriz vai ao tablado.]
Julgue! Deixe que sua representação mostre que você com-
No teatro o sentido de justiça é sempre claro
preende a História
No teatro o homem aprende quem ele é
As mudanças que o homem faz e que fazem o homem. [Música obsessiva.] [A atriz sai do palco. Música de teatrinho.]
foto ACERVO DA COMPANHIA
Interpretar o aprendizado
Nós também mostramos que o homem questiona a
30
Interpretar o que se conhece é como uma janela
verdade
De boas proporções e vidro transparente
Nós sabemos coisas que para nossos antepassados
Que nos mostra o mundo
eram secretas
Conseguiu livros, usou o conhecimento
[O músico improvisa sobre The people united will never
Nós levamos o público até a janela
Mas pelo menos eles buscaram!
E escreveu, em maiúsculas:
be defeated/Rzewski. Imagens. Ao fim da música,
Eles assistem como eles vivem
Suas peças ostentam as cicatrizes da razão e estão
E como outros viveram antes deles e fizeram este
entre os clássicos
mundo
Nós dispomos de novas armas e novos instrumentos
E como eles podem o refazer
para compreender
SENHOR PROMOTOR PÚBLICO,
Isso é de grande utilidade mas não é teatro
A Justiça não é mais o grito dos acusados falsamente
SENHOR, FUI ATIRADO NESTE BURACO
A Justiça recai sobre os que acusam falsamente
SEM RAZÃO
Que a sua interpretação nos guie nesses tempos de
SEM LUZ, AR, ESPAÇO OU COMPANHIA
mudança
NÃO TEM DEUS?
[Fim da música de teatrinho.]
improvisa com tema livre durante o próximo texto.] [Megafone.] ATRIZ Sem justiça nossa fome cresce até que devoremos a terra Os rios secaram – os mares viraram esgotos onde ratos nadavam e comiam os peixes Tempestades varreram montanhas – arrancaram as
O teatro é isto:
Mostre a justiça
“Homem: aquele que busca e descobre o conhecimento”
E nós a reconheceremos quando ela vier ao nosso
Não teve resposta
raízes das florestas – as árvores agarraram a terra com
Os homens buscam e quando eles encontram o que é
encontro nas ruas
Uma noite, empilhou os livros em cima de si
suas garras – cidades foram reduzidas a trincheiras de
Colocou fogo e morreu carbonizado
destroços onde canibais criavam os filhos para os comer
verdadeiro eles o reconhecem É por isso que eles são chamados de homens
[A música obsessiva funde-se com The people united
Este é o antigo truque que os atrai ao teatro
will never be defeated/Variações 1-3, Frederic Rzewski.
Podemos aprender muita coisa com isto
e gemeu com a fome que havia neles
A música continua durante a próxima cena, exceto por
Quando o conhecimento é ensinado por ignorantes
Naquele dia todas as consciências do mundo foram
uma pequena pausa após a pergunta sobre deus.]
Não devemos ter medo somente dos que queimam
esvaziadas – apagadas
livros
O vazio durou um segundo ou horas ou sempre
Mas também dos construtores de bibliotecas
Quem pode dizer quanto durou quando não há passado
[Música de teatrinho.] O gado vai para o poço saciar sua sede
ATRIZ
Ele bebe e sua sede é saciada
– e a tempestade varreu a poeira humana em colunas
– nenhum lugar – nenhuma origem?
Os homens vão ao poço e bebem com suas gargantas
Na penitenciária
Quando o conhecimento é ensinado por ignorantes
Quando o medo prende o pensamento em um momen-
ressequidas
A copiar as letras dos maços de cigarros
Não devemos ter medo somente dos que queimam
to e a comida cai da boca aberta e a fome aumenta?
Mas eles não ficam saciados até verem seu rosto na água
O trabalhador e revolucionário socialista
livros
Quanto mais eles comiam mais fome tinham e mais
É por isso que eles são chamados de Homens
Nikolai Vasiliev aprendeu sozinho a ler
Mas também dos construtores de bibliotecas
medo
31
dossiêkiwi Não havia passado – nenhum futuro – nenhum lugar
Todos os que são ou foram ou serão estão no portão
Respeita a escola que o juiz fez
– nenhuma origem
Eles estão em você e você está neles – os nus e que-
Constrói muros em volta da sua casa e protege o
Os mortos não precisam do seu esqueleto e no mo-
brados e inteiros
saque do juiz
mento do vazio os vivos não precisavam da sua carne
A fome deles é a sua fome e a sua fome é a deles
Num mundo destes não há paz A rua é a galeria de uma prisão As casas da rua são
[Samba.]
celas de uma prisão
feridas
Corre todas as manhãs para o trabalho, faz armas para
Dizem que a violência gera violência
E então você precisa carregar a dor deles ou morrer
o juiz disparar na praça
Padres, porque eles rezam ao deus da guerra pedindo
A administração administrava em lugar nenhum e as
de fome
Aprende a morrer em casa ou a matar na do vizinho
paz?
pessoas eram um estorvo para a administração – um
A fome de justiça nos faz humanos
Ou pior, vive dia após dia calmamente
A violência gerará violência até os homens se conhe-
inconveniente para o exército
A justiça é o reverso de todas as leis
E assim, o juiz concede uma piedade mais severa que
cerem
Os mortos foram encerrados em um vasto megassu-
A justiça é o reverso de todas as leis
a própria prisão
Saberem onde estão e o que fazem
búrbio sem centro – eles uivavam como forma de
A justiça é o reverso de todas as leis
Aquilo que impede o homem de se conhecer é em si
Até lá a prisão mais forte é a liberdade
mesmo violento e é a própria causa da violência
Poucos tentam escapar dos seus muros
A humanidade morreu
Se você não busca a justiça aqueles que virão depois
Então construíram-se as prisões
de você carregarão a sua dor e morrerão pelas suas
Então as casas foram derrubadas – não por raiva mas por serem um impedimento para as prisões
comunicação Os famintos foram trancados numa grande cidade
[Música Threnody for the victims of Hiroshima/
Como pode um homem conhecer-se?
Nela vivemos de pernas para o ar
-prisão – como castigo eram obrigados a rir
Penderecki. Vídeo sobre Hiroshima.]
Pensem,
Tal como quando caminhamos na rua
Os ricos se fecharam em um gueto – eles brincavam com brinquedos que os ensinavam a odiar – eles eram
Na esquina da uma rua, um homem em liberdade [O músico toca pandeiro durante a próxima cena.]
mandarins da truculência
32
As casas da rua são celas de uma prisão
ATRIZ
A imaginação é mais lógica que a razão
Dá a mão a um homem nunca visto
[Vídeo Natureza morta, música Asa Branca/David
Louco há vinte anos, este homem
Byrne.]
Foi jogado velho numa parede úmida com o filho morto no bolso
ATRIZ
Dizem que a violência gera violência
O coração bate apenas para expulsar a vida pelas fe-
Quando a razão destrói a imaginação nós enlouque-
Que o homem violento vive preso a uma roda
ridas
cemos
Que a luta para se libertar faz girar a roda
Demasiado fraco para estancar as feridas ou pedir
A imaginação cria a loucura ou a humanidade
Ele levou uma rasteira e anda de pernas para o ar
ajuda
Nós não podemos falar nada sobre nós e a nossa
Quem é o homem desconhecido que traz pela mão?
época, sem começarmos por definir a loucura.
Ele próprio
Como é que se explica que nós sejamos seres dotados
[Music for Pieces of wood/Steve Reich + Ofélia.]
Nós partimos em uma direção e viajamos na outra
O Estado é quem mais usa a força
É como se passássemos nossa vida de costas
Quando a roda gira o Estado cria mais violência
Nós escalamos um abismo e sabemos que devemos
Só que o Estado não usa a força só de maneira violenta
cair
Ele tem padres, professores e juízes
Nossos filhos são nossa morte
Pensem bem
Se o espírito tivesse forma humana ele seria assim
como se estivessem loucas e acreditar nas ideias
de razão, enquanto a nossa sociedade é tão ligada à [Samba.]
loucura? Como as pessoas que têm toda a sua razão podem agir
O juiz mais escrupuloso pondera a lei com mão
São coisas feitas pelo juiz que disse misericórdia
loucas que a sociedade lhe impõe?
Como podemos viver nesse paradoxo?
imparcial
Feridas de paz
Nós podemos encontrar uma resposta com aqueles
Como podemos transformar a catástrofe em liberdade?
Manda com bons modos um homem dez anos para a
— A violência da liberdade —
que perderam a razão.
Como podemos transformar o crime em justiça?
prisão
Mais amargas que a fome
Como podemos reverter todas as leis?
Ou diz “vai
Mais cruéis que a guerra
“Este é um rosmaninho, serve pra lembrança. Eu te
É fácil: o reverso de todas as leis é a justiça
Você tem a oportunidade de ser um bom trabalhador
Mais mortíferas que a peste
peço, amor, não esquece. E aqui amores-perfeitos, que
e viver de acordo com a lei
Não se veem
são para os pensamentos”.
Um dia a humanidade morreu
Boa sorte”
Escondem-se dentro da cabeça como se a cabeça
Não havia futuro – nenhum lugar – nenhuma origem
A última opção é mais violenta que a primeira
fosse uma pedra que escondesse a verdade
O que é que os deixou loucos?
Ninguém poderia cruzar consigo mesmo descendo a
Condena o homem a dar a sua vida ao juiz
Num mundo destes não há paz
As pessoas ficam assim quando não chegam a criar
rua
Ele ensina ao filho que o juiz teve razão em mandar o
O homem sai do tribunal em liberdade
uma relação funcional e prática com a sociedade e
A água não tinha reflexo
pai para a prisão
A rua é a galeria de uma prisão
com a realidade. O que elas fazem?
33
dossiêkiwi Boa noite.
São divertidos os funerais.
elas. Elas ficam loucas para não perder a razão. A sua
O negócio funerário vai bem
loucura é a explicação que elas dão para a loucura que
O dinheiro circula
Esta peça é uma tentativa, talvez fracassada, de cami-
testemunha de defesa perfeita. Para o caramujo os três
encontram no mundo.
As floriculturas vão bem
nhar em direção à realidade. Admitindo a hipótese de
segundos nos quais eu saí daqui, roubei o banco e
levado a qualquer tribunal e seria sempre a minha
As escavadeiras abrem céleres os buracos
que o mundo pode ser compreendido, que a realidade
voltei para o teatro, cairiam nos buracos de consciên-
“Eis uma margarida. Eu gostaria de lhe dar algumas
Finalmente descobri um objetivo na vida
pode ser compreendida. Mas a realidade tem muitas
cia de uma existência descontínua. Deste caramujo
violetas, mas murcharam todas quando meu pai morreu”.
Enfiar rapazes debaixo da terra
lacunas, por isso eu gostaria de contar uma pequena
são subtraídos fotogramas essenciais para que ele
Sempre com lençóis limpos e brancos prontos para
história. Uma história de caramujos.
entenda a realidade.
ATRIZ Canção do padre. Sobre a morte do soldado.
MÚSICO [Tocando piano.]
usar Na sepultura a guarda de honra dispara
Alguns cientistas acreditam que os caramujos perce-
Isto vale… para os caramujos. Consciência, lacunas,
Caga tijolos — podiam ser eles lá embaixo — mas
bem a luz, portanto, a realidade, somente a cada três
realidade, descontinuidade. Mas nós, seres humanos,
que ar corajoso
segundos. Os caramujos, então, veriam a realidade
nós somos diferentes dos caramujos.
O toque da trombeta soa enorme
com intervalos de três segundos.
Nada como um funeral militar Para erguer espíritos da terra Preços subindo — é
Aqui em São Paulo, um político foi duas vezes o de[Contagem em silêncio de três segundos.]
pegar ou largar Num dia quente de verão
Segue o teu destino com um sorriso amarelo
Terroristas mataram um soldado
putado federal mais votado do Brasil (1982 e 2006). Ele tinha um slogan: “rouba, mas faz”, que ele roubou
Imaginem que exista um caramujo aqui na minha
de outro político, Ademar de Barros. Em 1992 este
frente, e que este caramujo me olha. Imaginem também
mesmo político fez 37% dos votos no primeiro turno
Este estendido, na rua
Você deve morrer sem perguntar porquê
que eu consiga fazer uma proeza em três segundos:
da eleição para prefeito. 37% entre aqueles que foram
Escorria sangue do uniforme cáqui
Nós tomamos conta dos teus
eu saio daqui, vou até o Itaú Unibanco - que lucrou
votar, porque uma parte das pessoas não vota. Outro
Um bebê sujando as cuecas
Damos dinheiro para aliviar a dor
23 bilhões de reais em 2015, lembrando que o Bolsa
político, bastante conservador e muito próximo do
Coberto pelo lençol branco limpo
Jogamos terra em cima dos teus restos mortais
Família teve orçamento de 26 bilhões de reais no
Opus Dei, foi eleito governador no primeiro turno em
Dezenove anos, saudável até à morte
Fingimos que a terra é o céu
mesmo ano - roubo o banco e volto até aqui, neste
2014. Um protegido deste governador, apresentador
Um buraco na cabeça
E à noite, enquanto você repousa e apodrece na se-
palco. Tudo em três segundos.
de TV e lobista, ganhou a prefeitura em 2016, também
Boca escancarada — não falava
pultura,
Portanto, todos disseram o que havia de se dizer
Nas fileiras de mortos silenciosos,
no primeiro turno. [Contagem em silêncio de três segundos.]
A nação que disse o que havia de se dizer Animais suspirou o Primeiro Ministro
Tapa a cabeça com lençóis limpos e brancos
Escória vociferou a oposição
Dorme em paz na cama
A catástrofe tem algo de terrível: nós pensamos que
Covardes rugiu o coronel
Mais mais mais
ela nunca vai acontecer, e quando acontece parece
Só o homem morto mudo
Pega em arma e boina
fazer parte da ordem natural das coisas.
Apresentadores de televisão ofendidos
São divertidos os funerais [Contagem em silêncio de três segundos.]
Casa Real comovida Numa parede do bairro alguém rabiscou
[Vídeo sobre guerras: coloniais, urbanas, civis.
Cortem estes terroristas aos pedaços e deem de comer
Improvisação musical. Aparece o figurino Guantánamo
“Nós não teremos feito grande coisa ao insultar os
aos porcos — o enforcamento é pouco para eles
do músico.]
imbecis presunçosos que estão no poder. O insulto
A imprensa sensacionalista se aproveitou Cada gabinete ministerial jurou Dar até a última gota de sangue do povo
cena do caramujo
O exército gritou “mais mais mais”
[Intervenção do diretor ou de algum técnico da
Rapazes não gastem a vida à toa
montagem. O texto deve ser improvisado a partir das
Venham buscar arma e boina
sugestões abaixo.]
É a carreira no exército dentro de um buraco
foto ACERVO DA COMPANHIA
34
Para o caramujo eu não saí do teatro. Ele poderia ser
Elas criam uma sociedade que é uma realidade para
não os privará do poder. Contentar-se de mostrar para aonde leva o mau uso que eles fazem desse poder não é suficiente. Nós devemos dizer como eles obtiveram o poder e como o conservam.” Edward Bond, The activists papers, 1980.
35
dossiêkiwi mÚSICO [Tocando violão.] Canção das duas mães
ATRIZ
Que martelarão no caixão quando você morrer
feliz. Mas eu também fraudei a prova porque queria
Essa é a era da sci-tech, tecnociência, ciência e tec-
Mas eu disse: seja simpático filho
passar e fazer o meu pai feliz. O meu pai diz que não
nologia
Lave as mãos e o rosto
tem um bom emprego porque nunca passou num
Ela ordena o mundo das ideias e satura a cabeça das
Te mandei para a cova
exame. Mas se é errado fraudar para tornar o pai feliz,
pessoas
Onde os lobos roem ossos humanos
deve ser errado fraudar para o homem da casa da
Pessoas de todo lugar querem viver nesse mundo
Ouço o choro dos humanos
esquina ficar feliz. Não vou dizer nada”.
No tempo de algumas gerações a sci-tech poderia nos livrar da doença pobreza e loucura
Nos grunhidos do mercado
Quando você era pequeno eu te disse
No rugido do tráfego ouço
Mas ficou muito infeliz quando a casa da esquina
Poderia construir casas na medida humana – purifi-
lave as mãos antes de comer
Choro e desespero e medo
pegou fogo. O homem também pegou fogo. Teve de
car as águas da cidade
Devia antes te dizer afie as tuas garras
E sou tão ignorante que tento
ir para o hospital. Ora, o filho desse homem era cole-
Nenhuma outra geração teve tanto poder
E nutre os apetites do ódio
Remendar os buracos da tua sombra
ga do Billy. Brincavam muitas vezes juntos. Mas Billy
É o maior poder na história da humanidade
já não gostava das brincadeiras. Ficava triste. Decidiu
E ainda assim a sci-tech nos atormenta com sua
falar com o professor. Disse: “Eu sabia que o meu pai
própria poluição com sua peste pobreza e loucura
ia pôr fogo na casa. Não disse nada porque era fraudar.
Porque ela é escrava – é criatura – do dinheiro
Agora eu já não gosto de brincar”. O professor bateu
O dinheiro é mais poderoso que a sci-tech
em Billy. O pai e os seus amigos foram parar na prisão.
O dinheiro não tem valores humanos
[Pequena coreografia e vídeo sobre a relação entre
E claro que os colegas já não se sentavam ao seu lado.
O dinheiro é a lógica do dinheiro
nazismo e terrorismo de Estado. Atriz, músico e talvez
Olhavam todos para Billy e diziam: “o que é que tá
Seus criadores tentam fazê-lo servir aos seus pro-
técnicos. Música Foreign accents/Robert Wyatt.]
esperando? Você é de uma família de criminosos”.
pósitos
E cresce e floresce Na cidade dos lobos
[A atriz canta os dois últimos versos.]
Onde a piedade é fardo dos pobres E a felicidade riqueza [Música.] E quando te mandei à escola
Amainar as fúrias do mar E lavar as feridas do céu
Ele parodia o propósito humano
Devia ter contratado um assassino 36
Para te ensinar os truques do negócio
mÚSICO
E um carniceiro para te ensinar as regras do jogo E te dizer como se asfixia a voz da vergonha humana
A fábula da fraude!
Para que você cresça e floresça Na cidade dos lobos Onde a piedade é o fardo dos pobres
ATRIZ
Billy cresceu. Foi trabalhar para um escritório do
Ninguém o controla
Estado. Um dia encontrou muitos projetos numa
Suas leis são mecânicas
gaveta. Um dos projetos era de uma cidade do país
É um meio único na história da humanidade
vizinho. Mostrava onde o seu país ia jogar bombas.
Uma nova época
No plano dizia se que a cidade e tudo o que existia
As pessoas que correm atrás dele seguem em passos
iriam ficar em cinzas. Billy pensou na educação que
de zumbi É um parasita
Um dia, Billy foi fazer uma prova. As perguntas eram
teve. Decidiu avisar as pessoas do outro país que elas
difíceis. Ele não conseguia responder todas as questões.
iriam ser queimadas. Pegou o projeto e colocou o num
E quando você saiu de casa
Espiou por cima do braço do colega. Viu as respostas
envelope. Um superior suspeitou e viu que ele colo-
Devia ter oferecido
escritas no teste. E as copiou para a sua prova. O
cava o projeto no correio. O superior suspeitava dele
ATRIZ
Traidores como teus guias
professor viu que ele espiava e copiava. Billy não
por causa do seu passado criminal. Deram uma ordem
O dinheiro reprime – destrói
E uma faca para enfiar nas costas
passou no exame e foi expulso.
especial ao carteiro para abrir a caixa do correio e
O dinheiro é roubo – ele rouba dias segundos e vidas
E a felicidade riqueza
entregar o envelope a um oficial de alta patente. O
Ele empobrece o mundo
Para você chegar ao topo
Nessa noite, ele estava tão aborrecido que não con-
oficial leu o endereço do envelope e o abriu. O proje-
Ele devora terras – florestas – transforma rios em
Na cidade dos lobos
seguia dormir. Desceu as escadas e foi buscar um copo
to estava lá dentro. Billy foi morto.
esgotos industriais
Onde a piedade é obrigação
d’água. Ao passar pela porta da sala de jantar ouviu o
E a felicidade riqueza
pai planejar com os amigos o incêndio da casa da
[Música Lascia ch’io pianga/Georg Friedrich Händel.
Instala o mercado no lugar da cultura humana
esquina. Não gostavam do homem que lá vivia. A pele
Mitologia cristã.]
Suas vítimas lutam por comida abrigo segurança
Dos camaradas ao lado
Deforma o mundo e o inunda com mídias venenosas
[A atriz canta os próximos quatro versos.]
do homem era diferente da de Billy e do seu pai.
saúde
E quando te embalei no berço
Billy disse para si mesmo: “Estou espiando outra vez!
mÚSICO
Devia antes ter martelado na tua cabeça
Devo dizer ao professor o que ouvi? Se contar ao
[Guitarra e bateria/The Star-Spangled Banner e
Quem quer que lute por uma refeição decente luta
Sido implacável, implacável como os pregos
professor, o homem que vive na casa da esquina fica
variações.]
pela cultura humana
Elas são frágeis mas não estão em minoria – não estão derrotadas
37
dossiêkiwi ATRIZ
Quem quer que lute por um teto para se proteger do
A luta começa com a pouca comida no prato — o
vento e da chuva luta pela civilização
telhado pingando — a velha tremendo de febre
Meu casaco está em chamas
Quem quer que lute por um copo d’água luta pela
Começa no momento que o prato é posto na mesa
Mas eu não quero ser alarmista
liberdade
É a luta absoluta de claridade em que o olho sabe o
Quem quer que lute por um par de sapatos decentes
que a mão faz e a mão sabe o que os olhos veem
luta pela paz
É a luta da realidade consigo mesma
mÚSICO
tremula como as asas de um abutre
mÚSICO [Cantando.]
Quem quer que lute para cuidar de uma criança luta
Dizem que não há mais grandes causas
Eu sou tão ignorante que tento Remendar os buracos
A rua é a galeria de uma prisão As casas da rua são
para cuidar de todas as crianças
O prato vazio da criança é a grande causa
da tua sombra
celas de uma prisão
Quem quer que lute para aprender a ler luta para que
O trabalhador em seu sono agitado cujo pesadelo é
os grafittis nas ruas e nas paredes das casas sejam
acordar é a grande causa
intuições de filosofia
A velha ranzinza e amedrontada tremendo de febre é
Quem quer que lute contra a repressão luta por jus-
a grande causa
Não procure uma alma
tiça agora e nos tempos que virão
Aqueles que moram em barracos e vivem em trapos
Uma alma não vai ajudar a entender o que foi feito
ATRIZ
ATRIZ Como pode um homem conhecer-se?
são a grande causa mÚSICO Cultura, civilização, liberdade, justiça, não são criadas
mÚSICO mÚSICO
Quanto você deve entender para ser humano? Quanto você deve lutar?
sem luta
O exército me ensinou dez maneiras de matar meu inimigo
Mas a luta por comida não alimentará os famintos
[Music for Pieces of wood/Steve Reich.]
e a chuva A luta contra a doença não curará os doentes
Os caramujos percebem a luz somente a cada três mÚSICO
ATRIZ
A luta contra a opressão não libertará os oprimidos
Esta é apenas uma peça
Nós podemos encontrar uma resposta
É sempre a questão do significado — da compreensão
Teatro é a luta da realidade consigo mesma
com aqueles que perderam a razão
– do conhecimento
E a luta começa com restos no prato e um telhado
A sci-tech acumula fatos—invenções dispositivos e
pingando e trapos encharcados nas lágrimas e suor da
sistemas
velha tremendo de febre e os oprimidos e os famintos
mÚSICO
Constrói hospitais e escolas e prisões e busca manu-
A luta começa com o som do prato sendo posto na mesa
O que é que os deixou loucos?
Só a luta cria conhecimento
mÚSICO [Sonoplastia sugerindo tempestade.]
Só a luta educa
ATRIZ
Eu nasci às oito e meia da noite
Só o que é criado na luta cria a si mesmo e se chama
quarta-feira 18 de julho de 1934
liberdade
Tinha uma tempestade
ATRIZ
[Fim da sonoplastia sugerindo tempestade.]
[Contagem até três em silêncio.]
A luta faz trilhas através dos campos minados
Quando você era pequeno eu te disse Lave as mãos antes de comer Devia antes te dizer afie as tuas garras
Esta é a pergunta A vida de um homem é explicada pela vida de todos os homens
mÚSICO
Só aqueles que lutam aprendem como funciona o mundo—a mecânica da realidade
39
ATRIZ
[Músico toca pandeiro. Atriz com a marionete.]
mesmo Só a luta tem sentido humano
segundos
mÚSICO
faturar a arma da letalidade perfeita O bem pode servir ao mal e o dinheiro serve a si
ATRIZ
cem maneiras de matar meu vizinho
A luta por uma casa seca não manterá fora a umidade 38
A imaginação é mais lógica que a razão
mÚSICO A fome de justiça nos faz humanos
ATRIZ
Neste mundo nós ainda não nos tornamos humanos
ATRIZ Esta é apenas uma peça
As pessoas não podem ser guiadas para a liberdade
A tempestade sopra no cais
[Pequena coreografia nazista. Música Clowns and
As pessoas têm que lutar
A tal ponto que a lona sobre sua cabeça
Children/Alfred Schnittke + vídeo.]
dossiêkiwi
As fomes do mundo notas sobre fome.doc
40
Após a crise econômica de 2008 a FAO, Organi-
restruturais - investigação das mistificações e obscu-
o início, foi uma dupla fome: literal e metafórica.
de uma burguesia cínica e predatória. E ainda: Câma-
zação das Nações Unidas para Agricultura e Alimen-
rantismos em Manual de autodefesa intelectual (2015)
Esteve sempre em questão a ideia da construção do
ra Cascudo, Shakespeare, Oscar Wilde, Karl (e Grou-
tação, estimou que um bilhão de pessoas passava fome
e das arquiteturas ideológicas em Material Bond (2016)
humano e sua contrafação no reino da mercadoria,
cho) Marx, Graciliano Ramos, Eliane Brum, Raduam
no mundo. Um número recorde. Uma calamidade
-, para o estudo da infraestrutura material. Por isso
da exploração e da violência. A necessidade e a liber-
Nassar, Jean Ziegler, Martín Caparrós. Compilamos
inaceitável. O fato, gravíssimo em si, era ainda mais
Fome.doc nomeia as corporações do agronegócio, fala
dade em conflito aberto. Por isso a tragédia indígena,
provérbios sobre a fome e descobrimos uma fábula
escandaloso porque perfeitamente evitável. Fome,
de dinheiro, commodities, trustes e lucros. Inspirados
elemento de uma identidade difusa do Brasil, repri-
sobre os párias indianos, ela também pária entre
desnutrição, morte por insuficiência alimentar não
no teatro documentário, recuperamos das páginas da
sada em massacres aparentemente sem fim, convive
outras mais ilustres (Esopo, La Fontaine).
são fatalidades. Não há escassez de alimentos, guer-
imprensa, de relatórios e balancetes, de livros de so-
neste experimento teatral com outra chaga nacional:
Passamos também pelas análises lúcidas e com-
ras ou pragas que as expliquem ou justifiquem. O
ciologia e do zunido das bolsas, uma crônica destas
a escravidão e sua herança persistente. Pelo mesmo
prometidas de Susan George, Roberto Schwarz, Mike
problema é a brutal desigualdade social. Se há con-
maquinações que - citando as palavras de Josué de
motivo associamos o holocausto judeu, um dos ápi-
Davis, Edward Said, Ismail Xavier, Paulo Arantes,
senso em não tolerar a fome (embora muitas vezes
Castro - “esmagam com a mesma indiferença, a cana
ces da desumanização, às aventuras neocoloniais.
entre tantos outros especialistas, cientistas e ativis-
ele se limite aos discursos), não há consenso sobre
e o homem: reduzindo tudo a bagaço”.
Correndo em paralelo, uma antiga e não resolvida
tas. Canibalizamos músicas e canções (Beethoven,
suas causas e soluções. Para entender a fome no
Mas trata-se apenas de um deslocamento de ên-
questão: as possibilidades e os limites da palavra e
John Cage, Victor Jara, Ary Toledo, Jordi Savall, sam-
mundo os diagnósticos precisam incluir temas como
fase, já que esta aspereza (do capital, da ignorância, da
da arte; a relação tumultuada entre ação e represen-
ba e rock), filmes (Sr. Klein de Losey, O profeta da fome
latifúndio, agronegócio, financeirização, oligopólios,
arrogância) é comentada e temperada pela poesia. Mas
tação, história e ficção.
de Capovilla, Vidas secas de Nelson Pereira, muitos
privatizações, neoliberalismo. E os remédios não
uma poesia joão cabralina (corte, cerca, faca, seca), que
Nesta trajetória surgiram muitos materiais e re-
documentários), além de imagens e obras de arte
podem ignorar a reforma agrária, a democratização da
nomeia o chicote da lavoura arcaica chamada Pindo-
ferências: os diários da escritora brasileira Carolina
(Portinari, Yuri Kuper, os bisões de Niaux e Chauvet).
mídia, a educação e a cultura de qualidade, a auto-or-
rama, que conta a sina do artista da fome de Kafka,
Maria de Jesus; Primo Levi, sobrevivente de Auschwitz
Este conjunto, heteróclito mas coerente, nos ajudou
ganização e a emancipação populares.
dos violeiros e brincantes do bumba-meu-boi e que
e Mahmud Darwich, poeta da causa Palestina; Frantz
a construir um panorama, precário mas urgente, das
sugere equinócios de inverno e um jaguar engolindo
Fanon e Aimé Césaire denunciando a agressão colonial;
fomes do mundo.
o sol, ecos de histórias ancestrais.
Glauber Rocha e a estética terceiro-mundista da fome;
Ao avaliar os trabalhos recentes da Companhia e a maneira como lidamos com as questões sociais, constatamos que a ênfase passou das análises supe-
Não seria errado afirmar que nosso tema, desde
José de Alencar e as cartas sobre a escravidão, retrato
Fernando Kinas
41
dossiĂŞkiwi
Caderno de fotos temporada fome.doc 2017
foto bob sousa
foto andrĂŠ murrer
43
foto filipe vianna
foto andre murrer
foto andre murrer
foto fILIPE VIANNA
foto FILIPE VIANNA
foto andre murrer
foto filipe vianna
foto filipe vianna
foto filipe vianna
Fome.doc
foto fernando kinas
Ensaio sobre a necessidade e a liberdade. Roteiro de Fernando Kinas. Versão final de outubro de 2017.
No teatro.
esquelético. O corpo alimenta-se de si mesmo.
Uma atriz, um ator, um músico. Uma grande mesa de madeira. Duas cadeiras. Duas
Sem outras fontes de energia, o cérebro também é
tribunas.
prejudicado, perdendo aos poucos a função de comandar o corpo. Dificuldade de raciocínio, tontura, in-
Os textos devem ser distribuídos ao elenco conforme
consciência, náusea são comuns neste estágio.
os objetivos de cada montagem.
foto fernando kinas
Na fase extrema da fome o metabolismo já não traRecepção do público com sambas: O dia em que o morro
balha normalmente, ele fica lento, comprometendo
descer e não for carnaval/Wilson das Neves; Balança
o funcionamento de todos os órgãos e impedindo a
povo/Martinho da Vila; Ronco da cuíca/Aldir Blanc
produção de substâncias importantes como os hor-
e João Bosco; Batuque na cozinha/Martinho da Vila;
mônios e as enzimas.
O Vendedor de Bananas/Jorge Ben Jor. Não havendo mais recursos para satisfazer a fome, o PREFácio agridoce
indivíduo morre.
O organismo humano precisa continuamente de
Durante este trabalho, milhares de pessoas, em todo
energia.
o mundo, vão morrer de fome e das suas complicações.
[Música de kalimba. Quem enuncia o texto deve estar
[Música Quartets I-VIII/John Cage.]
sem fôlego.] Em caso de carência alimentar, quando se passa fome, o organismo busca outras fontes de energia, armaze-
1 • A mesa
1. Documento e metáfora
nadas no corpo, especialmente no tecido adiposo. Assim as células capturam e absorvem a glicose e os
Nossa história começa com esta mesa.
carboidratos, queimando as gorduras para manter as
Uma mesa de madeira.
necessidades básicas do organismo.
No teatro. Em uma mesa banquetes são oferecidos.
Nos indivíduos que já não possuem gordura estocada,
Em uma mesa banquetes são organizados. Decididos.
o organismo retira a energia dos músculos, levando à
Em uma mesa, também, a fome pode ser decidida.
perda de massa muscular e deixando o indivíduo
Organizada.
dossiêkiwi Porque a fome como o banquete são decisões.
Usura. Desgaste. Do ferro. Da luta. Da carne.
Organizam-se banquetes e fome.
Do humano.
Decidem-se banquetes e fome. Esta é a carne! Nossa história começa com esta mesa.
Esta é a carne!
Uma mesa de madeira.
A carne é também documento.
No teatro.
E a carne é também metáfora.
Em uma mesa banquetes são oferecidos.
(Da luta, da dor, do sexo, do amor, do suor, da vida,
Em uma mesa banquetes são organizados. Decididos.
da morte.)
Organizada.
E tudo: colher, carne, mesa e madeira.
Porque a fome como o banquete são decisões.
Metáfora ou documento.
Organizam-se banquetes e fome.
Documento e metáfora.
Decidem-se banquetes e fome.
Tudo existe no tempo.
Não há fatalidade. A fome é uma decisão, como o
(E ele também - tempo/espaço - é documento e
banquete.
metáfora).
A fome tem muitas causas, a falta de alimentos não
Uma história.
é uma delas.
Uma história humana.
A causa da fome é a riqueza, não a pobreza.
No mundo.
Há guerras, sim. Há secas, gafanhotos, inundações,
No teatro.
Existe no espaço.
52
pragas. Sim. Mas a fome é uma decisão.
foto fernando kinas
Em uma mesa, também, a fome pode ser decidida.
2. Coro shakespeariano (Henrique V) Peço perdão! Mas já que um zero pode
No entanto, não se organizam, não se assinam, não se
[Música de viola. Lençol de linho.]
decretam banquetes e fome em uma mesa de teatro.
Fome.doc, 2017
3. A fome e a boca
Atestar um milhão em pouco espaço, Deixem que nós, as cifras desta conta,
Então, quem fala e toca (ator, atriz, músico) ocupa um
Não é verdade?
Que a musa de fogo aqui pudesse
Acionemos a sua força de imaginação.
lugar.
Uma mesa é uma metáfora.
Subir ao céu brilhante da invenção!
Suponham que no abraço destes muros
Fala a partir do seu lugar. Deste lugar.
E uma mesa é, também, um documento.
Reinos por palco, príncipes atores,
Estão confinadas duas monarquias,
Neste lugar.
Monarcas a observar a pompa cênica!
Cujas altas fachadas confrontadas
Terras e tempos, diz Shakespeare.
Então o próprio Henrique, qual guerreiro,
Uma nesga de mar feroz separa.
Invasão, genocídio, escravidão, latifúndio, monocul-
[Toc toc toc. Fim da música.]
De Marte assumiria o porte; e, atrás,
Com o pensamento curem nossas falhas;
tura, agronegócio, commodities, especulação.
Como esta colher é documento.
Presos quais cães, a fome, a espada e o fogo
Em mil partes dividam cada homem,
Esta lavoura arcaica travestida de máquinas, pesticidas,
Esta colher.
Aguardariam ordens. Mas perdoem
E criem poderio imaginário
planilhas e chicote.
E metáfora.
Os mesquinhos espíritos que ousaram
Pensem ver os cavalos de que falamos,
Um ponto de vista.
Esta colher.
Neste humilde tablado apresentar
Imprimindo na terra suas pegadas:
Este ponto de vista.
Documento e metáfora da fome. Da luta contra a fome.
Tema tão grande: conterá tal arena
Pois suas mentes vestem nossos reis,
Este ponto de vista.
Da sobrevivência.
As planícies da França? Ou poderemos
Carregando-os, por terras e por tempos,
Este.
Do tempo e da história.
Segurar neste cercado de madeira os elmos
Juntando o que acontece em muitos anos
Uma colher inspirada em um artista russo. Yuri Kuper.
Que assustaram os ares de Agincourt?
Em uma hora; e, para ajudá-los,
Gasta. De ferro. Torta. Carcomida. Marcada pelo tempo. Uma colher histórica!
[Diferentes posições com as duas mãos.]
Admitam-me, o coro, nesta história [Revela o piso falso do teatro.]
Pra que de sua paciência eu peça
A humanidade, disse Josué de Castro, se divide em
Que julguem com bondade nossa peça.
dois grupos:
dossiêkiwi o grupo dos que não comem
comienzan a hacer matanzas e crueldades extrañas en
verdaderos cristianos y aun los que no lo son si se
ir lá no senhor Manuel vender os ferros. Com o di-
e o grupo dos que não dormem,
ellos. Entraban en los pueblos, ni dejaban niños ni
oyó en el mundo tal obra, que para mantener los dichos
nheiro dos ferros vou comprar arroz e linguiça. A
com medo daqueles que passam fome.
viejos ni mujeres preñadas ni paridas que no desbar-
perros traen muchos indios en cadenas por los cami-
chuva passou um pouco. Vou sair.
rigaban e hacían pedazos, como si dieran en unos
nos, que andan como si fuesen manadas de puercos,
corderos metidos en sus apriscos. Hacían apuestas
y matan dellos, y tienen carnecería pública de carne
Eu tenho tanta dó dos meus filhos. Quando eles veem
sobre quién de una cuchillada abría el hombre por
humana, e dícense unos a otros: “Préstame un cuarto
as coisas de comer eles bradam: Viva a mamãe. A ma-
Não há monstros embaixo da cama.
medio, o le cortaba la cabeza de un piquete o le des-
de un bellaco desos para dar de comer a mis perros
nifestação me agrada. Mas eu já perdi o hábito de sor-
Não existem fantasmas.
cubría las entrañas. Tomaban las criaturas de las tetas
hasta que yo mate otro”, como si prestasen cuartos
rir. Dez minutos depois eles querem mais comida. Eu
de las madres, por las piernas, y daban de cabeza con
de puerco o de carnero.
mandei o João pedir um pouquinho de gordura pra Dona
A ideia é a seguinte:
[Lençol de linho.]
las espaldas, riendo e burlando e cayendo en el agua
¿Qué puede ser más fea ni fiera ni inhumana cosa?
Ida peço-te se pode me arranjar um pouco de gordura, para eu fazer uma sopa para os meninos. Hoje choveu
Exceto nos teatros. O pai de Hamlet. Exigindo vin-
decían: bullís cuerpo de tal; otras criaturas metían a
gança.
espada con las madres juntamente e todos cuantos
Os espanhóis que estão nas Índias possuem cães
Ou Pluft, o fantasminha medroso.
delante de sí hallaban. Hacían unas horcas largas, que
muito selvagens, instruídos e ensinados a matar e
É a história da “porta aberta da dor”.
juntasen casi los pies a la tierra, e de trece en trece, a
despedaçar os índios. Que todos os que são cristãos
Alguém abre a porta, alguém inventa a porta. Há uma
honor y reverencia de Nuestro Redemptor e de los
e mesmo os que não o são, vejam se jamais se ouviu
porta. E há uma dor.
doce apóstoles, poniéndoles leña e fuego los quemaban
coisa semelhante no mundo: para nutrir esses cães,
Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno
vivos. Otros ataban o liaban todo el cuerpo de paja
os espanhóis, por toda parte aonde vão, levam consi-
a gente come mais. A minha filha Vera começou
seca, pegándoles fuego así los quemaban.
go muitos índios acorrentados, como se fossem por-
pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espe-
E há também a luta que expulsa a dor.
[Silêncio.]
táculo. Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia com-
consigo um açougue de carne humana. E um diz ao
prar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui
começam a fazer matanças e crueldades estranhas.
outro: empresta-me um quarto de índio para dar de
pedir um pouco de banha a dona Alice. Ela me deu a banha e arroz. Era 9 horas da noite quando comemos.
Entravam nos povoados indígenas, não deixavam
comer a meus cães, até que eu também mate algum;
crianças e velhos, nem mulheres grávidas ou paridas
fazem isso como se pedissem emprestado um quarto
ditas estas palavras
que não estripavam e faziam em pedaços, como se
de porco ou de ovelha.
— estas! -
fossem cordeiros em seus currais. Faziam apostas
outras palavras,
sobre quem com uma única facada abria um homem
gastas, de ferro (de sonho, de seda) e tortas,
ao meio, ou cortava sua cabeça com um golpe ou
como esta colher
expunha suas entranhas. Tomavam as crianças dos
2. A escravidão atual (Carolina
— esta colher! -
seios de suas mães, pelas pernas, e as jogavam de
Maria de Jesus)
circularão.
cabeça contra as pedras. Outros, as atiravam nos rios,
A palavra circulará.
rindo e gozando, e caindo na água diziam: mexam
[Chuva teatral. Texto gravado, ouvido através de um
Como documento e como metáfora.
agora; em outras crianças enfiavam a espada com as
celular.]
1. O genocídio indígena (Bartolomé
Faziam umas forcas longas, de modo que os pés qua-
E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual, a fome!
Haverá coisa mais horrível, brutal e desumana?
3. A utilidade da escravidão (José de Alencar) A utilidade da escravidão. [O texto deve ser lido em dois grandes, velhos e empoeirados livros.]
mães junto, e todos aqueles que estavam por perto.
de las Casas)
[Frase não gravada.] Carolina Maria de Jesus.
cos e matam-nos para nutrir os cães, arrastando
Passado o silêncio
2 • Documentos exemplares
e eu não pude ir catar papel. Agradeço. Carolina.
Os cristãos, com seus cavalos e espadas e lanças,
Que tenta expulsar a dor. 54
Ida. Ela não tinha. Mandei-lhe um bilhete assim: Dona
ellas en las peñas. Otros daban con ellas en ríos por
13 de maio de 1958. A escravidão é um fato social, como são ainda o des-
se tocavam a terra, e de treze em treze, em honra e reverência a Nosso Redentor e aos doze apóstolos,
Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para
potismo e a aristocracia; como já foram a compra da
colocando lenha e fogo, queimavam-nos vivos. Outros
mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a
mulher, a propriedade do pai sobre os filhos e tantas
eram atados ou amarrados em todo o corpo com
libertação dos escravos.
outras instituições antigas.
[Música Marin Marais/Jordi Savall. Os textos em
palha seca e depois punham fogo, assim os queimavam.
espanhol devem ser ouvidos em gravação.]
Tienen los españoles de las Indias enseñados y ama-
Continua chovendo. Eu tenho só feijão e sal. A chuva
A escravidão caduca, mas ainda não morreu; ainda se
estrados perros bravísimos y ferocísimos para matar
está forte. Mesmo assim mandei os meninos para a
prendem a ela graves interesses de um povo. É quan-
y despedazar los indios. Sepan todos los que son
escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu
to basta para merecer o respeito.
Los cristianos con sus caballos y espadas e lanzas
55
dossiêkiwi pente e no seio da civilização.
O filantropo europeu, entre a fumaça do bom tabaco
cando seus defensores de espíritos mesquinhos e
Por que razão?
de Havana e da taça do excelente café do Brasil, se
coração do senhor limam a escravidão sem a desmo-
retrógrados, é um terrível precedente em matéria de
Os filantropos abolicionistas, elevados pela utopia,
enleva em suas utopias humanitárias e arroja contra
ralizar. O cativo, se for libertado, permanecerá em
reforma. A liberdade e a propriedade, essas duas fibras
não sabem explicar este acontecimento. Vendo a
estes países uma aluvião de injúrias pelo ato de man-
companhia do senhor; e se tornará em criado.
sociais, cairiam desde já em desprezo ante os sonhos
escravidão por um prisma odioso, recusam-lhe uma
terem o trabalho servil. Mas por que não repele o
do comunismo.
ação benéfica no desenvolvimento humano.
moralista com asco estes frutos do braço africano?
Mais bárbaras instituições, porém, do que a escravidão,
Ressurge a escravidão no século XV suscitada pela
Em sua teoria, a bebida aromática, a especiaria, o
já existiram e foram respeitadas por nações não me-
mesma indeclinável necessidade que a tinha criado
açúcar e o delicioso tabaco são o sangue e a medula
Para a casta dominante, especialmente a agrícola, a
nores em virtude do que as modernas.
em princípio e mantido por tantos milênios.
do escravo. Não obstante, ele os saboreia. Sua filan-
libertação significa a ruína pela deserção dos braços e
tropia não suporta esse pequeno sacrifício de um gozo
a impossibilidade de sua pronta substituição; signifi-
Lançar o ódio sobre as instituições vigentes, qualifi-
Todas as concessões que a civilização vai obtendo do
O liberto por lei é inimigo nato do antigo dono; foge da casa onde nasceu.
Toda a lei é justa, útil, moral, quando realiza um me-
Sem a escravidão africana e o tráfico que a realizou, a
requintado; e, contudo, exige dos países produtores
ca igualmente o perigo e o sobressalto da insurreição
lhoramento na sociedade e apresenta uma nova situ-
América seria ainda hoje um vasto deserto. O escravo
que, em homenagem à utopia, arruínem sua indústria
iminente.
ação, embora imperfeita da humanidade.
era um instrumento indispensável. Tentaram supri-lo
e ameacem a sociedade com uma sublevação.
com o índio; este preferiu o extermínio.
José de Alencar, escritor e político, 1867. [Pausa curta.]
Neste caso está a escravidão. Vem muito a propósito parodiar a palavra célebre de
56
4. Hoje amanheceu chovendo
É uma forma, rude embora, do direito; uma fase do
Aristóteles:
Conservar escravo o homem que nasceu tal é uma
progresso; um instrumento da civilização, como foi
“Se a enxada se movesse por si mesma era possível
instituição; reduzir à escravidão pessoa livre é um
a conquista. Na qualidade de instituição me parece
dispensar o escravo.”
crime.
13 de maio de 1958.
[Pausa. Fim da Passacaglia/Heinrich Biber.]
A única transição possível entre a escravidão e a li-
[Chuva, que continua durante a próxima cena.]
(Carolina Maria de Jesus)
tão respeitável como a colonização; porém muito superior quanto ao serviço que prestou ao desenvolvimento social.
berdade é aquela que se opera nos costumes e na ínChego à questão da atualidade da escravidão.
dole da sociedade. O domínio do senhor se reduz,
Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para
Se a escravidão não fosse inventada, a marcha da
É a escravidão um princípio exausto, que produziu
então, a uma tutela benéfica.
mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a
humanidade seria impossível.
todos os seus bons efeitos e tornou-se, portanto, um
libertação dos escravos.
abuso, um luxo de iniquidade e opressão?
[Sinhazinha e escravo.]
Nego, e o nego com a consciência do homem justo,
Viesse ao Brasil algum estrangeiro, desses que deva-
que venera a liberdade; com a caridade do cristão, que
neiam em sonhos filantrópicos nas poltronas estufa-
ama seu semelhante e sofre na pessoa dele.
das dos salões parisienses, e entrasse no seio de uma
O primeiro capital do homem foi o próprio homem. [Música Passacaglia/Heinrich Biber.]
70 anos. 100 anos. 130 anos…
Na Europa, a salutar influência do Cristianismo adoçou
5. A fome e o campo (Primo Levi)
família brasileira. Vendo a dona da casa, senhora de
Tudo ao redor é cinza, e nós também somos cinzentos;
a escravidão; e a organização da sociedade foi operan-
A raça branca, embora reduzisse o africano à condição
primeira classe, desvelar-se na cabeceira do escravo
de manhã, quando ainda está escuro, todos esquadri-
do nela uma transformação lenta. Entrou aquela anti-
de uma mercadoria, nobilitou-o não só pelo contacto,
enfermo; ele pensaria que a filantropia já não tinha o
nhamos o céu à espera dos primeiros sinais da prima-
quíssima instituição em outra fase, a servidão, que só
como pela transfusão do homem civilizado.
que fazer onde morava desde muito a caridade.
vera, e cada dia comenta-se o levantar do sol - hoje um pouco antes do que ontem, hoje um pouco mais
foi completamente extinta com a Revolução Francesa. O escravo deixou de ser coisa, ou animal; tornou-se
[Percussão e dança miscigenadas. Na sequência, 9ª
Estudando depois a existência do escravo, a satisfação
quente; em dois meses, num mês, o frio abrandará,
Sinfonia, Ode à alegria/Beethoven.]
de sua alma, a liberdade que lhe concede a benevolên-
teremos um inimigo a menos.
cia do senhor; se convenceria que esta revolução dos
homem, como exigia Sêneca; mas o homem proprieSem esse enorme estômago, chamado Europa, que
costumes trabalha mais poderosamente para a extin-
Acabado o frio, que durante todo o inverno nos pare-
anualmente digere aos milhões os gêneros coloniais, a
ção da escravatura do que uma lei porventura votada
cia o único inimigo, nos demos conta de ter fome, e,
Havia quinhentos anos que se extinguira na Europa a
escravidão não regurgitaria na América. Mas era preciso
no parlamento.
voltando ao mesmo erro, hoje repetimos: - Se não
escravidão, quando no século XV ressurge ela de re-
alimentar o colosso; e satisfazer o apetite voraz.
dade, preso ao solo ou à pessoa do senhor feudal.
fosse por essa fome... Como poderíamos pensar em
57
dossiêkiwi não ter fome? O Campo de Concentração é a fome;
lestina. Minha Dama, eu mereço, mereço viver, porque
Pouco a pouco, por sua obsessiva presença, este vago
Mesmo quando ia me distrair, assistindo aos canta-
nós mesmos somos a fome, uma fome viva.
você é a minha Dama.
desenho da fome foi ganhando relevo, foi tomando
dores de feira ou ao espetáculo do bumba-meu-boi, o
forma e sentido em meu espírito. Fui compreendendo
que encontrava diante de mim, representando, falan-
que toda a vida dessa gente girava sempre em torno
do, gesticulando, era sempre a fome em seus nume-
de uma só obsessão – a angústia da fome. Sua própria
rosos disfarces. Eram os violeiros cantando:
Assim como nossa fome não é apenas a sensação de
7.
quem deixou de almoçar, nossa maneira de termos frio
Castro)
Homens e caranguejos (Josué de
mereceria uma denominação específica. Dizemos
linguagem era uma linguagem que quase não fazia
“fome”, dizemos “cansaço”, “medo” e “dor”, dizemos
Com as sombrias imagens dos mangues e da lama eu
alusão a outra coisa. A sua gíria era sempre carregada
“inverno”, mas trata -se de outras coisas. Aquelas são
comecei a criar o mundo da minha infância.
de palavras evocando comidas. As comidas que dese-
palavras livres, criadas, usadas por homens livres que viviam, entre alegrias e tristezas, em suas casas.
[Música de viola.]
[Canta-se a mesma música do início da cena.]
javam com desenfreado apetite. A propósito de tudo
E no bumba-meu-boi, o que eu via era um estranho
se dizia: é uma sopa, é uma canja, é um tomate, é uma
boi de duas pernas apenas, o mais humano dos bois
ova, é um abacaxi, é batata, é pão-pão queijo-queijo,
que eu tinha encontrado na vida, sofrendo como um
Se os Campos de Extermínio tivessem durado mais
Triste vida de posseiro
é uma marmelada, é mamão com açúcar… Era como
homem, chorando e revoltando-se como gente. E eu
tempo, teria nascido uma nova, áspera linguagem, e
junto à Alagoa Amarela.
se esta gíria fosse uma espécie de compensação men-
me tomava de amores por aquele boi magro e seco, tão
tal de um povo sempre faminto. De um povo inteiro
magro e tão seco que, na verdade, era só cabeça e na
de barriga vazia, mas com a cabeça cheia de comidas
cabeça era só chifres. Enormes chifres balançando no
imaginárias. É que a comida lhes havia subido à cabe-
ar como um fantasma de boi.
ela nos faz falta agora para explicar o que significa trabalhar o dia inteiro no vento, abaixo de zero, ves-
[Cantando.]
tindo apenas camisa, roupa de baixo, casaco e calças de brim e tendo dentro de si fraqueza, fome e a cons-
Vinte anos sobre a terra
ça, como o sexo sobe à cabeça dos impotentes, estes
ciência da morte que chega.
cavando o faltoso pão,
famintos de amor.
[Lençol de linho.]
com a mesma enxada na mão,
Vê-los agir, falar, lutar, sofrer, viver e morrer era ver a
Realmente o boi era só chifres e pelo, porque carne
catorze filhos no mundo
própria fome modelando, com suas despóticas mãos
não tinha, como afirmava em sua cantoria o vaqueiro
fora os que estão no caixão.
de ferro, os heróis do maior drama da humanidade
que, apalpando o boi por toda parte, nunca encontra-
Peguei na espingarda velha
– o drama da fome.
va em parte alguma sinal de carne.
vinte anos de promessa Primo Levi. 58
6. A Dama (Mahmud Darwich) [Música Sur cette terre/Trio Joubran, incluindo a
como quem pega o enxadão,
declamação de Mahmud Darwich + música de viola.]
com a força que a fome dá
Pensei, a princípio, que a fome era um triste privilégio
E foi assim que, pelas histórias dos homens e pelo
pra quem defende seu pão.
desta área onde eu vivia – a área dos mangues. Depois
roteiro do rio, fiquei sabendo que a fome não era um
verifiquei que, no cenário da fome do Nordeste,
produto exclusivo dos mangues. E quando cresci e saí
de abril, o cheiro do pão ao amanhecer, as opiniões de
Foi assim que eu vi e senti formigar dentro de mim a
os mangues eram uma verdadeira terra de promissão
pelo mundo afora, vendo outras paisagens, percebi
uma mulher sobre os homens, os escritos de Ésquilo,
terrível descoberta da fome. Da fome de uma popula-
que atraía os homens vindos de outras áreas de mais
com nova surpresa que o que eu pensava ser um dra-
o início do amor, a erva sobre uma pedra, as mães de
ção inteira escravizada à angústia de encontrar o que
fome ainda. Da área das secas e da área da monocul-
ma do meu bairro, era um drama universal.
pé sobre um fio de flauta e o medo que a recordação
comer. Vi os caranguejos espumando de fome à beira
tura da cana-de-açúcar, onde a indústria açucareira
inspira aos conquistadores.
da água, à espera que a correnteza lhes trouxesse um
esmagava, com a mesma indiferença, a cana e o homem:
Que a paisagem humana dos mangues se reproduzia
pouco de comida, um peixe morto, uma casca de fru-
reduzindo tudo a bagaço.
no mundo inteiro. Que aqueles personagens da lama
Nesta terra, há coisas que merecem viver: a hesitação
Nesta terra, há coisas que merecem viver: o fim de
ta, um pedaço de bosta que eles arrastariam para o
setembro, uma mulher que entra nos quarenta com
seco matando a sua fome. E vi também os homens
Era um curso inteiro que eu fazia sobre a fome, quan-
ras outras áreas do mundo, assoladas pela fome. Que
todo seu vigor, a hora de sol na prisão, as nuvens que
sentados na balaustrada do velho cais a murmurarem
do ouvia, com um interesse sempre crescente, as in-
aquela lama humana do Recife, que eu conhecera na
imitam um bando de criaturas, as aclamações de um
monossílabos, com um talo de capim enfiado na boca,
termináveis histórias contadas por meu pai sobre as
infância, continua sujando até hoje toda a paisagem
povo pelos que caminham, sorridentes, para a morte
chupando o suco verde do capim e deixando escorrer
agruras sofridas pela nossa família, na seca de 1877.
do nosso planeta como negros borrões de miséria: as
e o medo que as canções inspiram aos tiranos.
pelo canto da boca uma saliva esverdeada que me
Da presença da fome na zona do açúcar, tomei conhe-
negras manchas demográficas da geografia da fome.
parecia ter a mesma origem da espuma dos carangue-
cimento mais detalhado através do relato monótono
jos: era a baba da fome.
de dois velhos negros que tinham sido escravos na
Nesta terra, há coisas que merecem viver: nesta terra está a dona da terra, mãe dos prelúdios e dos epílogos. Chamavam-lhe Palestina. Continua a chamar-se Pa-
do Recife eram idênticos aos personagens de inúme-
juventude e que desfilavam suas lembranças da época [Negros borrões. Lama.]
enquanto cortavam grama para os cavalos de meu pai.
Josué de Castro.
59
dossiêkiwi
8. Relatório sobre a fome no
O tubarão-tigre é um animal enorme, da família dos
O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, disse
— Se você pudesse pedir o que quisesse, qualquer
mundo: o caso dos tubarões-tigre
carcarrinídeos, carnívoro e extremamente voraz. Do-
nesta quarta-feira que a mudança da legislação para
coisa, para um gênio da lâmpada, o que você pediria?
(Jean Ziegler)
tado de grandes dentes e olhos negros, é um dos seres
permitir a compra de terras por estrangeiros seria
mais temíveis do planeta. Está presente em todos os
positiva no esforço do governo para aumentar os
Aisha demorou um tempo, como quem estivesse
[Música Não Fome!/Cólera + som do solstício de
mares temperados e tropicais, preferindo as águas
investimentos no país.
diante de uma coisa impensável:
inverno.]
turvas. Com suas mandíbulas, exerce uma pressão de
“Esse é um assunto fundamental e nós achamos que
várias toneladas por centímetro quadrado. Para man-
de fato seria positivo se fosse aprovado, na medida
— O que eu quero é uma vaca, que me dê muito lei-
Apenas dez sociedades, entre as quais Aventis, Mon-
ter a oxigenação de seu organismo, tem que nadar
em que aumenta o investimento no Brasil e a produ-
te; então, se eu vender um pouco do leite, posso
santo e Syngenta, controlam um terço do mercado
permanentemente. É capaz de detectar uma gota de
tividade geral da economia”, disse o ministro após
comprar as coisas para fazer doce e vender no mer-
mundial de sementes, 23 bilhões de dólares por ano,
sangue diluída em 4,6 milhões de litros de água.
encontro com empresários em Nova York.
cado. Com isso eu me ajeitaria mais ou menos. — O que estou dizendo é que o gênio da lâmpada
e 80% do mercado mundial de pesticidas, 28 bilhões de dólares. Dez outras sociedades, entre elas a Cargill,
O especulador de bens alimentares que atua na bolsa
A ideia de liberar a venda de terras agrícolas a es-
pode lhe dar qualquer coisa, o que você pedir.
controlam 57% das vendas dos trinta maiores vare-
de matérias-primas agrícolas de Chicago (Chicago Com-
trangeiros tem sido discutida pelo governo Michel
— De verdade, qualquer coisa?
jistas do mundo e representam 37% das receitas das
modity Stock Exchange) corresponde muito bem à
Temer, depois de ter sido vetada em 2010. O objeti-
— Sim, qualquer coisa.
cem maiores sociedades fabricantes de produtos ali-
descrição do tubarão-tigre. Ele também é capaz de de-
vo é aumentar investimentos na produção, mas falta
mentícios e de bebidas. E cinco empresas controlam
tectar suas vítimas a dezenas de quilômetros e de ani-
detalhar o projeto.
[Silêncio.]
77% do mercado de adubos: Bayer/Monsanto, Syn-
quilá-las em um instante, satisfazendo sua voracidade
genta, Basf, Cargill, DuPont.
ou, dito de outra maneira, realizando lucros fabulosos.
10. O livro e o mapa da fome
— Duas vacas?
(Graciliano Ramos e Martín Caparrós)
Duas vacas. Ela me disse isso sussurrando e explicou:
Como funciona a Cargill: 60
— Com duas vacas eu não passaria mais fome.
Em suma: com os Estados ocidentais mostrando-se incapazes para impor quaisquer limites jurídicos aos
[Lendo o livro Vidas secas.] Era muito pouco. E era tanto.
Em Tampa, na Flórida, a Cargill produz adubos à base
especuladores, o banditismo bancário floresce atual-
de fosfato. Com esse adubo, ela fertiliza as suas plan-
mente mais do que nunca. Contudo, como consequ-
Na planície avermelhada, os juazeiros alargavam duas
tações de soja nos Estados Unidos. Na Flórida, os grãos
ência da implosão dos mercados financeiros, que eles
manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia
11. Veneno ou as irmãs siamesas
do cereal são transformados em farinha, nas fábricas
mesmos provocaram em 2008, os tubarões-tigre mais
inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamen-
(Cargill e Monsanto)
da Cargill. Em navios, da Cargill, essa farinha é envia-
perigosos migraram para os mercados de matérias
te andavam pouco, mas como haviam repousado
da à Tailândia, onde alimenta os frangos criados em
-primas, especialmente os mercados agroalimentares.
bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem
granjas da Cargill. Engordados, os frangos são abatidos
[Um paletó para dois. Música March/Anthony Braxton.]
três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra.
e eviscerados em instalações quase inteiramente au-
As leis do mercado impõem a ignorância intencional
A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos
Produzimos e comercializamos internacionalmente pro-
tomatizadas, da Cargill. A Cargill embala os frangos,
do fato que a alimentação é um direito humano, um
galhos pelados da caatinga rala.
dutos e serviços alimentícios, agrícolas, financeiros e
que a sua frota transporta para o Japão, as Américas e
direito de todos. O especulador de matérias-primas
a Europa. Finalmente, caminhões da Cargill os distri-
alimentares atua em todas as frentes e sobre tudo
Assim começa Vidas secas, romance de Graciliano
vernos e comunidades, e por meio de 150 anos de expe-
buem aos supermercados, muitos dos quais pertencem
capaz de trazer algum ganho - joga especialmente com
Ramos, publicado em 1938. Eles continuam caminhan-
riência, nós ajudamos a sociedade a prosperar. Temos
às famílias… MacMillan. E Cargill. Acionistas que
a terra, os insumos, as sementes, os adubos, os cré-
do, famintos. A história [folheia o livro] não acabou.
150 mil funcionários em 70 países que estão compro-
detêm 85% do controle do truste transcontinental.
ditos e os alimentos.
industriais. Em parceria com produtores, clientes, go-
metidos em alimentar o mundo de forma responsável, [Um mapa da região é mostrado.]
No mercado mundial, os oligopólios jogam todo o seu
[Canção do desabastecimento/Victor Jara. O próximo
peso para impor os preços dos alimentos. Oligopólio
texto deve se sobrepor à música.]
é o nome científico para tubarão-tigre.
9. Lembrete 1
[Cena do tubarão-tigre. A música faz referência a Jaws/John Williams.]
Folha de S. Paulo, 22 de setembro de 2016.
reduzindo impactos ambientais e melhorando as comunidades onde vivem e trabalham. Nós somos a Cargill.
Aqui está o Níger, África. Numa aldeia isolada mora Aisha, ela tem entre 30 e 35 anos, olhos de tristeza,
Bilhões de pessoas dependem do que os agricultores
um pano lilás cobrindo todo o resto [o mapa é usado
produzem. E outros bilhões também dependerão no
como pano]. Aisha come todos os dias uma bola de
futuro. Nas próximas décadas, os agricultores terão
milho, só uma bola de milho. Em alguns dias, nem
que produzir uma quantidade de alimentos compa-
isso. Eu pergunto:
rável à soma de tudo o que já produziram nos últimos
61
dossiêkiwi emoções são despertadas mais rapidamente do que a
inconsciente, às vezes não, geram no primeiro caso, a
inteligência.
esterilidade e no segundo a histeria.
É muito mais fácil sentir simpatia pelos que sofrem
A esterilidade: aquelas obras encontradas fartamente
do que sentir simpatia por uma ideia. Assim, com
em nossas artes, onde o autor se castra em exercícios
intenções louváveis, embora equivocadas, os homens
formais que não atingem a plena possessão de suas
se atiram, séria e sentimentalmente, na tarefa de
formas. O sonho frustrado da universalização: artistas
remediar os males que veem. Mas seus remédios não
que não despertaram do ideal estético adolescente.
curam a doença: eles só a prolongam. Na verdade, seus remédios são parte da doença.
A histeria: um capítulo mais complexo. A indignação
62
foto ACERVO DA COMPANHIA
social provoca discursos flamejantes. O primeiro
Fome.doc, 2017
Eles buscam solucionar o problema da pobreza, por
sintoma é o anarquismo que marca a poesia jovem
exemplo, mantendo vivo o pobre; ou, segundo uma
até hoje. O segundo é uma redução política da arte
teoria mais avançada, divertindo o pobre. Mas isto não
que faz má política por excesso de sectarismo. O
é uma solução: é um agravamento da dificuldade. A
terceiro, e mais eficaz, é a procura de uma sistema-
meta adequada é reconstruir a sociedade sobre bases
tização para a arte popular.
que tornem a pobreza impossível. E as virtudes altruístas têm na realidade impedido de alcançar essa meta.
A fome latina, por isto, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí
Assim, os piores escravagistas eram os que se mos-
reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante
travam mais bondosos com seus escravos, pois impe-
do cinema mundial: nossa originalidade é a nossa
diam que o horror do sistema fosse percebido pelos
fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo
que o sofriam, e compreendido pelos que o contem-
sentida, não é compreendida.
plavam. Então, nas atuais circunstâncias, os que mais danos causam são os que mais procuram fazer o bem.
[Febrilidade crescente.]
Oscar Wilde (1891).
De Aruanda a Vidas secas, o Cinema Novo narrou,
10 mil anos. Nosso objetivo é trabalhar em conjunto
agrícolas que produz maconha e pesticidas. Sua meta
com os agricultores, pesquisadores e diversas insti-
é dominar os mercados de produtos químicos e me-
tuições para aumentar a produtividade e tornar a
dicamentos para pessoas, plantas e animais.
agricultura mais sustentável. Nós ajudamos a produ-
Lembrete 3: Também segundo a revista Exame, a
zir mais alimentos desenvolvendo sementes, biotec-
Monsanto é famosa por produzir alguns produtos
nologia e produtos para a proteção de cultivos. Nós
químicos controversos e altamente tóxicos, como os
somos a Monsanto.
bifenilos policlorados, conhecidos como PCBs e atu-
Eztetyka da Fome
comer, personagens matando para comer, personagens
13. Gênio da raça (Glauber Rocha)
descreveu, poetizou, discursou, analisou, exercitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens comendo raízes, personagens roubando para
almente banidos, e o herbicida agente laranja, que foi
A América Latina permanece colônia e o que diferen-
fugindo para comer, personagens sujas, feias, descar-
[Cena improvisada revelando ao público que os textos
usado pelo exército dos EUA no Vietnã. A Monsanto
cia o colonialismo de ontem do atual é apenas a
nadas, morando em casas sujas, feias, escuras: foi esta
acima foram retirados dos sites das empresas Cargill
comercializou o herbicida Roundup nos anos 1970 e
forma mais aprimorada do colonizador: e além dos
galeria de famintos que identificou o Cinema Novo
e Monsanto.]
começou a desenvolver milho e sementes de soja
colonizadores de fato, as formas sutis daqueles que
com o miserabilismo tão condenado pelo Governo,
geneticamente modificados nos anos 1980.
também sobre nós armam futuros botes. O problema
pela crítica a serviço dos interesses antinacionais
internacional da América Latina é ainda um caso de
pelos produtores e pelo público – este último não
mudança de colonizadores, sendo que uma libertação
suportando as imagens da própria miséria.
Lembrete 2: Segundo a revista Exame, em 2016 a Bayer comprou a Monsanto por 66 bilhões de dólares.
12. Fome, colonialismo e filantropia
A Bayer é famosa pelas aspirinas que vende. Ela foi
(Oscar Wilde)
contratada pelos nazistas durante a Segunda Guerra
possível estará ainda por muito tempo em função de uma nova dependência.
Este miserabilismo do Cinema Novo opõe-se à ten-
Mundial e usou trabalho forçado. Atualmente, a em-
Os homens estão cercados pelos horrores da pobreza,
dência do digestivo: filmes de gente rica, em casas
presa com sede em Leverkusen, na Alemanha, fabri-
pelos horrores da feiura, pelos horrores da fome. É
Este condicionamento econômico e político nos levou
bonitas, andando em carros de luxo: filmes alegres,
ca medicamentos e tem uma unidade de ciências
inevitável que se emocionem diante de tudo isso. As
ao raquitismo filosófico e à impotência, que, às vezes
cômicos, rápidos, sem mensagens, de objetivos pu-
63
dossiêkiwi [Um cavalinho é mostrado ao público.]
ramente industriais. Estes são os filmes que se opõem à fome, como se, na estufa e nos apartamentos de
que vinha passando: Nessas ilhas desenvolveram-se os menores cavalos do
ral de uma burguesia indefinida e frágil ou se mesmo
mundo. Pensava-se que os pôneis das ilhas Shetland
— Ô, decente, vosmecê não deixa eu comer uma gi-
os próprios materiais técnicos e cenográficos pudes-
fossem uma raça de cavalos. Mas quando alguns nego-
letezinha pra vosmecê ver?
sem esconder a fome que está enraizada na própria
ciantes resolveram criar pôneis nos Estados Unidos, que
— Sai pra lá. Tu não te manca não, ô, Pau de arara?
incivilização. O miserabilismo, que era escrito como
decepção! - em algumas gerações eles ficaram do tama-
— Só uma, que eu ainda não comi nadinha hoje.
denúncia social, hoje passou a ser discutido como
nho de cavalos normais.
— Tu enche, hein?
O brasileiro não come, mas tem vergonha de dizer isto; e, sobretudo, não sabe de onde vem esta fome. Sabemos nós – que fizemos estes filmes feios e tris-
Fome.doc, 2017
foto filipe vianna
luxo, os cineastas pudessem esconder a miséria mo-
problema político.
tes, estes filmes gritados e desesperados onde nem sempre a razão falou mais alto – que a fome não será curada pelos planejamentos de gabinete e que os re-
É que não há raça de pôneis.
Aquilo me deixou tão aperreado que se não fosse o amor que eu tinha na minha violinha, eu tinha reben-
Foi a extrema pobreza do solo das ilhas Shetland que
tado ela na cabeça daquele… filho de uma égua!
determinou, em muitas gerações, a progressiva degradação da espécie.
[Cantando.]
15. Comedor de Gilete (Ary Toledo)
Puxa vida, não tinha uma vida pior do que a minha
mendos do tecnicolor não escondem mas agravam
censura, aí haverá um germe vivo do Cinema Novo.
seus tumores.
Onde houver um cineasta disposto a enfrentar o
[Viola. Cantando a música de Carlos Lyra/Vinícius de
Zanzando na praia pra lá e pra cá
comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecni-
Moraes/Ary Toledo, que dá nome à cena.]
Quando eu via toda aquela gente num come-que-
[Música Technicolor/Mutantes. Delírio Tropicalista.] 64
tava com tanta fome que eu disse assim prum moço
Que vida danada que fome que eu tinha
come
cismo, aí haverá um germe do Cinema Novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer
Eu um dia cansado que tava da fome que eu tinha
Eu juro que tinha saudade da fome
Assim, somente uma cultura da fome, minando suas
procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão
Eu não tinha nada que fome que eu tinha
Da fome que eu tinha no meu Ceará
próprias estruturas, pode superar-se qualitativamen-
a serviço das causas importantes de seu tempo, aí
Que seca danada no meu Ceará
E aí eu pegava e cantava e dançava o xaxado
te: a mais nobre manifestação cultural da fome é a
haverá um germe do Cinema Novo. A definição é esta
Eu peguei e juntei um restinho
E só conseguia porque no xaxado
violência. A mendicância, tradição que se implantou
e por esta definição o Cinema Novo se marginaliza da
De coisa que eu tinha
A gente só pode mesmo se arrastar
com a redentora piedade colonialista, tem sido uma
indústria porque o compromisso do Cinema Industrial
Duas calça velha e uma violinha
Virgem Santa! A fome era tanta que inté parecia
das causadoras de mistificação política e de ufanista
é com a mentira e com a exploração.
E num pau de arara toquei para cá
Que mesmo xaxando meu corpo subia
E de noite eu ficava na praia de Copacabana
Igual se tivesse querendo voar
mentira cultural: os relatórios oficiais da fome pedem dinheiro aos países colonialistas com o objetivo de
Este projeto se realiza na política da fome, e sofre,
Zanzando na praia de Copacabana
construir escolas sem criar professores, de construir
por isto mesmo, todas as fraquezas consequentes da
Dançando o xaxado pras moça olhar
casas sem dar trabalho, de ensinar ofício sem ensinar
sua existência.
Virgem Santa! Que a fome era tanta
o analfabeto. O comportamento exato de um faminto é a violência,
Que nem voz eu tinha
Às vezes a fome era tanta que volta e meia a gente
[A música chega ao paroxismo. É interrompida com
Meu Deus quanta moça, que fome que eu tinha...
arrumava uma briguinha pra comer uma bóia lá no
um corte seco.]
Zanzando na praia pra lá e pra cá
xadrez. Êta quentinho bom no estômago! Com perdão
Glauber Rocha.
[Narrando.]
14. Pônei (Josué de Castro)
Foi aí então que eu arresolvi comer gilete… Tinha um
mas agora as coisas tão melhorando. Tem uma dona
cumpadre meu lá de Quixeramobim que ganhou um
muito bondosa lá em Higienópolis que gosta muito
dinheirão comendo gilete na praia de Copacabana. Eu não
de ver é eu comer caco de “vrídrio”. Isso que é bon-
sei não, mas eu acho que ele comeu tanta, mas tanta, que
dade da boa. Com isso eu já juntei uns quinhentos
e a violência de um faminto não é primitivismo. Uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária. Enquanto não ergue as armas o colo-
da palavra, a gente devolvia tudo depois, que a bóia já
nizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para o francês perceber um argelino.
[Narrando.]
[Um mapa da região é mostrado.]
vinha estragada. Mas enquanto ela ficava quietinha ali dentro da barriga, quentinha, que felicidade! Não,
Onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade
Ilhas Shetland. Extremo setentrional do arquipélago
quando eu cheguei lá aquela gente toda já estava até com
merréis. Quando juntar mais um pouquinho, vou-me
e a enfrentar os padrões hipócritas e policialescos da
britânico. 60º de latitude norte.
indigestão de tanto ver o cabra comer gilete. Uma vez eu
embora, volto pro meu Ceará!
65
dossiêkiwi A cidade do colonizado é uma cidade faminta, famin-
noras então que por muito tempo fiz parte dos cor-
ta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A
redores do Marajá de Maissur?
Vou voltar para o meu Ceará
cidade do colonizado é uma cidade acocorada, uma
— Parece que ouço a tartaruga desafiar a lebre, pois
Porque lá tenho nome
cidade ajoelhada, uma cidade acuada. É uma cidade
tuas pernas degeneraram bem, depois dessa época.
Aqui não sou nada, sou só Zé-com-fome
de negros, uma cidade de árabes.
Sou só Pau de arara, nem sei mais cantar
Então ambos, desafiando-se mutuamente, tomaram
Vou picar minha mula
O que o colonizado viu é que podiam impunemente
por testemunha um pária que cortava capim na flo-
Vou antes que tudo rebente
prendê-lo, espancá-lo, matá-lo de fome; e nenhum
resta. Os dois viajantes, tendo combinado que o
Porque tô achando que o tempo tá quente
professor de moral, nenhum padre, jamais veio rece-
ponto final da corrida seria um tamarindeiro que se
Pior do que anda não pode ficar!
ber as pancadas em seu lugar nem partilhar com ele
encontrava a quinhentas calpas de distância (calpa é
o seu pão.
uma medida de distância indiana, que ninguém sabe
16. Césaire e Fanon
quanto vale), depuseram seus alforjes abundanteDurante a colonização, o colonizado não cessa de se
mente recheados de alimentos de toda espécie, e
Uma civilização que é incapaz de resolver os proble-
libertar entre nove horas da noite e seis horas da
partiram correndo. Vendo aquilo o pária apoderou-se
mas que o seu funcionamento suscita é uma civiliza-
manhã.
dos preciosos fardos e fugiu para o mais recôndito
ção decadente. A civilização chamada “europeia”, a civilização “ocidental”, tal como foi moldada por dois séculos de regime burguês, é incapaz de resolver os dois principais problemas que sua existência originou:
ponto do bosque. Mas o confronto não pode ser adiado indefinidamente.
17. Etimologia (Câmara Cascudo)
o problema do proletariado e o problema colonial. 66
Companheiro!
foto ACERVO DA COMPANHIA
[Cantando.]
Moral da história: É preciso aproveitar sempre as brigas dos poderosos, retirando delas algum benefício.
19. Provérbios da fome (Tradição popular brasileira)
Segurança? Cultura? Justiça? Em todos os lugares onde
Companheira!
existe colonizadores e colonizados, frente à frente,
Esta palavra, companheiro, vem do latim cum panis.
Quem tem fome tem pressa.
só há lugar para a força, a brutalidade, a crueldade, o
Significa aquele com quem dividimos o pão.
Para boa fome, não tem mau pão.
sadismo, o golpe, e, como paródia, a formação cultu-
Aquele ou aquela em quem confiamos o suficiente para
Para boa fome, não tem pão velho.
É melhor ter um ovo hoje do que uma galinha amanhã.
ral, a fabricação apressada de alguns milhares de su-
que venha se sentar na nossa mesa e dividir nossas
Quem tem fome, sonha com pão.
Mais vale um farto do que dois famintos.
balternos, de empregados domésticos, de artesãos, de
ideias, nossas vitórias e derrotas, erros e acertos.
A pão de quinze dias, fome de três semanas.
Quando a fome bate à porta, o amor sai pela janela.
empregados de comércio, e dos intérpretes necessários
Ou para, simplesmente, dividir um pedaço de pão.
Pão de pobre cai sempre com a margarina pra baixo.
Formosura não mata fome.
Casa onde não tem pão, todos brigam e ninguém tem
Quem tem sede não morre de fome.
razão.
Casa é onde não tem fome.
para o bom funcionamento dos negócios. Entre colonizador e colonizado só há lugar para o
18. Lenda de párias (Tradição indiana)
trabalho forçado, a intimidação, a pressão, a polícia, o tributo, o roubo, a violação, a cultura imposta, o des-
[Música indiana com tambura.]
prezo, a desconfiança, o silêncio dos cemitérios, a presunção, a grosseria, as elites descerebradas, as
Deus dá a farinha, mas não amassa o pão. Deus dá nozes a quem não tem dentes.
20. Casa é onde não tem fome!
Em tempo de guerra, urubu é frango.
(Eliane Brum)
A fome é má conselheira. Lenda de párias.
massas aviltadas.
A fome é boa cozinheira.
[Cena com marionetes: pai, mãe, filho.]
A fome não espera pela fartura. Dois viajantes indianos, que iam juntos pela estrada,
A fome é o melhor tempero.
Eu acompanho Otávio das Chagas desde 2014. Naque-
Colonização = coisificação.
começaram a discutir na encruzilhada de um bosque.
A fome não tem lei.
le momento, ele, sua mulher Maria e os nove filhos
O que não mata, engorda.
estavam na primeira casa que não podia ser casa. Uma
[Música Zumbi/Jorge Ben Jor. A música é ouvida
— Há muito teria eu chegado às margens sagradas do
Quem tem fome, tudo come.
casa de madeira alugada numa periferia violenta de
através de um aparelho portátil de som, semelhante
Ganges se não tivesse, para embaraçar-me, um com-
Saco vazio não para em pé.
Altamira. Em 2015, mudaram-se para uma “unidade”
ao que ocorre na cena 2 com o telefone celular.]
panheiro como tu.
Barriga vazia não conhece alegria.
de Reassentamento Urbano Coletivo (RUC), nome dos
— Que gracejo tão singular! - respondia o outro. Ig-
Comida pouca, meu pirão primeiro.
conjuntos habitacionais padronizados que a Norte
67
dossiêkiwi Energia construiu para abrigar as vítimas de “remoção
“Dá uma dor no estômago, uma tontice”. É uma pista,
Otávio das Chagas e sua família viviam há mais de
enfiado na boca, chupando o suco verde do capim e
compulsória”. Em 2016, dividiram-se: os dois filhos
mas ainda não é a fome por escrito. “Eu não sei o que
trinta anos na Ilha de Maria, uma das centenas de ilhas
deixando escorrer pelo canto da boca uma saliva es-
mais velhos permaneceram na casa padronizada, um
fazer quando as crianças ficam pedindo por comida”,
do Xingu. Quando são expulsos da ilha a qual perten-
verdeada que me parecia ter a mesma origem da es-
deles já com sua própria família; Otávio, Maria e os
ela continua.
cem, Otávio, Maria e seus filhos já não reconhecem
puma dos caranguejos: era a baba da fome.
filhos mais jovens transferiram-se para uma casa
Encaro os olhos fundos de Adriano, o menino de sete
nem se reconhecem, porque a ilha era também espelho.
doada por um grupo de austríacos que se comoveu
anos, e entendo sem letras. Entendo, mas sigo sem
Se alguém é obrigado a deixar sua terra por conta de
com as tribulações do pescador sem rio e sem letras.
alcançar. Meu olhar não afunda nos olhos de poço, me
uma guerra, de um terremoto ou da fome, haverá
Todas as vezes em que bati em cada uma das três
falta a experiência. Adriano é mais uma doce criança
sempre a terra que ficou, haverá ruínas, haverá os
22. Um artista da fome
portas, eles passavam fome. Tinham teto, mas passavam
com olhos de velho deste mundo. Quando o encontrei
mortos ali enterrados para dar conta do que foram,
(Franz Kafka)
fome. Era oficialmente uma casa, mas passavam fome.
na segunda casa, a do RUC (Reassentamento Urbano
mesmo que nunca possam voltar. Otávio, Maria e seus
Em todas as vezes, só havia água na geladeira. Na se-
Coletivo), em 2015, era o dia do seu aniversário. E não
filhos perderam a materialidade do que viveram, a
— Você continua jejuando? — perguntou o inspetor.
mana passada, havia também uma cebola pequena.
havia sequer um pedaço de pão para Adriano comer.
memória física do que eram, do que são. Tudo o que
— Afinal quando vai parar?
dizia deles virou água pela força de Belo Monte. Da
— Peço desculpas a todos — sussurrou o artista da
Fome é algo que fracasso em descrever. A fome não se
A fome é amarela. A fome é amarela. A fome é amarela.
escreve. Carolina Maria de Jesus, a escritora brasileira
Casa é onde não tem fome, eles me ensinam. Se tem
ilha afogada não há sequer um retrato. Restou a eles
fome; só o inspetor, que estava com o ouvido colado
que conhecia a fome, escreveu: “A fome é amarela”.
fome, é só teto.
apontar as cicatrizes que documentam uma vida no
às grades, o entendia.
único território que lhes restou: o do próprio corpo.
— Sem dúvida — disse o inspetor, colocando o dedo
Maria, a mãe, tenta fazer caber nas palavras o que [Um mapa da região é mostrado.]
na testa, para indicar aos funcionários, com isso, o
foto filipe vianna
sente quando chega a passar até dois dias sem comer:
68
Quando foi expulso, em 2012, Otávio assinou com o
estado mental do jejuador.
dedo papéis que não era capaz de ler. Seus filhos as-
— Nós o perdoamos.
sinaram por ele papéis que não eram capazes de ler.
— Eu sempre quis que vocês admirassem meu jejum
Receberam 12.994 reais e 2 centavos como indeniza-
— disse o artista da fome.
ção. Sua casa não foi considerada uma casa. Não cabia
— Nós admiramos — retrucou o inspetor.
no conceito de casa do empreendedor. Quando a
— Mas não deviam admirar — disse o jejuador.
“remoção” dos habitantes das ilhas, das beiras e dos
— Bem, então não admiramos. Por que é que não
baixões, assim como das terras rurais, foi determina-
devemos admirar?
da, não havia defensoria pública na região.
— Porque eu preciso jejuar, não posso evitar. — E por que não pode evitar?
O Governo de Dilma Rousseff abandonou a população
— Porque eu — disse o artista da fome, levantando
do Xingu sem qualquer proteção jurídica na maior
um pouco a cabeça e falando dentro da orelha do
obra do setor elétrico do país, à mercê dos advogados
inspetor com os lábios em ponta, como se fosse um
da Norte Energia, uma violação de direitos que man-
beijo, para que nada se perdesse. — Porque eu não
chará para sempre a biografia da presidente afastada.
pude encontrar o alimento que me agrada. Se eu ti-
Otávio e sua família foram jogados num dos bairros
vesse encontrado, pode acreditar, eu não teria feito
mais violentos da periferia de Altamira, onde pagavam
nenhum alarde e teria me empanturrado como você
um aluguel que, junto com a doença de uma das filhas,
e todo mundo.
comeu o dinheiro da indenização em alguns meses.
Estas foram suas últimas palavras, mas nos seus olhos
A casa alugada foi a primeira não-casa.
apagados persistia a convicção firme, embora não mais
21. Cena verde-amarela (Josué de Fome.doc, 2017
orgulhosa, de que continuaria jejuando.
Castro e Carolina Maria de Jesus)
— Limpem isso aqui! — disse o inspetor.
Vi homens sentados na balaustrada do velho cais a
E enterraram o artista da fome junto com a palha. Na
murmurarem monossílabos, com um talo de capim
jaula puseram uma jovem pantera. Até mesmo as
69
dossiêkiwi pessoas mais insensíveis acharam agradável ver o
atentos: era verdade, do canto de Hurbinek vinha de
Água na geladeira.
animal selvagem pulando na jaula que durante muito
vez em quando um som, uma palavra, ou melhor,
Garapa no fogão.
tempo parecera tão lúgubre. Nada lhe faltava. A co-
palavras articuladas, variações experimentais sobre
Uma semente estéril.
mida que lhe agradava era trazida pontualmente pelos
um tema, uma raiz, talvez sobre um nome.
ros dividindo o pão? Camaradas?
sentir a ausência de liberdade. Aquele corpo nobre,
Hurbinek continuou, enquanto viveu, nas suas experi-
provido até estourar de tudo o que era necessário,
ências obstinadas. Nos dias seguintes, todos nós o
Banquete e fome.
Na sala ou na rua?
dava a impressão de carregar consigo a própria liber-
ouvíamos em silêncio, ansiosos por entendê-lo, e havia
Carne, colher, mesa, madeira.
Pão e terra. Pão e liberdade. Igualdade. Fraternidade.
dade; ela parecia estar escondida em algum lugar das
entre nós falantes de todas as línguas da Europa: mas a
Pônei, marionetes, lama, lençol, livros, mapas.
Justiça. Socialismo.
suas mandíbulas. E a alegria de viver brotava da sua
palavra de Hurbinek permaneceu secreta. Não, não era
garganta com tamanha intensidade que para os es-
certamente uma mensagem, nem uma revelação: talvez
A fome e a boca: humanos.
Uma mesa muda.
pectadores não era fácil suportá-la. Mas eles se do-
fosse o seu nome, se tivesse tido a sorte de ter um nome;
O banquete e a fome: humanos.
minavam, apinhavam-se em torno da jaula e não
talvez quisesse dizer “fome” ou “pão”; ou talvez “carne”.
O desumano humano.
Uma história comum? Em comum?
23. Hurbinek, Yak, Abdulah, Josué (Primo Levi)
[Ouvidos na mesa, tentando escutar algo. Música Heiliger Dankgesang/Beethoven.]
queriam de modo algum sair dali.
70
Tudo terá sido humano. Mas que humano? Meu pai, minha mãe? Companhei-
[Toc toc toc. Fim da música.]
empregados e ela nem mesmo dava impressão de
[Revela o piso falso do teatro.]
Hurbinek, que tinha três anos e talvez tivesse nasci-
Uma aposta.
do em Auschwitz, que nunca tinha visto uma árvore;
Um fio de cabelo. Partido em três.
Hurbinek, que combateu como um adulto, até o últi-
(Mas também saber distinguir, ainda antes do sol
mo respiro, para conquistar a entrada no mundo dos
nascer, um fio branco de um fio preto)
[Imagens projetadas de bisões. Caverna de Chauvet.]
Imagens.
mass mass… mass-ti… mass-tik… mass mass-tiklo…
homens, do qual uma força brutal o havia banido;
mastiklo… mass mass…
Hurbinek, o sem-nome, cujo minúsculo antebraço
Porque é certo que um dia o sol se apagará.
Estes são desenhos de bisões. Eles foram feitos há 15
também foi marcado, mesmo assim, com a tatuagem
E ele não será engolido pelo jaguar. Será apenas mais
mil anos em cavernas no sul da França. Os bisões têm
de Auschwitz.
uma estrela que morre.
flechas cravadas na carne.
Hurbinek era um nada, um filho da morte, um filho de Auschwitz. Parecia ter três anos, ninguém sabia
Isto é: o jaguar vai engolir o sol.
nada dele, não falava e não tinha nome: aquele curio-
Hurbinek morreu nos primeiros dias de março de
É o que diz uma antiga história indígena.
O homem da idade da pedra talvez acreditasse que a
so nome, Hurbinek, foi dado por nós. Estava paralisa-
1945, livre, mas não redimido. Dele não resta nada:
A metáfora. O discurso. A história.
representação desses animais, no instante em que
do dos rins para baixo, tinha as pernas atrofiadas, finas
Hurbinek testemunha através destas palavras.
E o real.
eram mortos, poderia dar a ele um poder especial. Em
A realidade. A pedra. A mesa. A fome. O dinheiro.
um mundo de necessidade e fome é fácil explicar esta
Vidas secas. Fome zero. País da fome.
superstição. Hoje, oitocentos milhões de pessoas passam fome.
como gravetos; mas os seus olhos, perdidos no rosto pálido e triangular, eram terrivelmente vivos, cheios
Junto com ele, por estas palavras pobres, magras,
de perguntas, de vontade de se libertar, de quebrar o
também testemunham as crianças do Sudão do Sul,
túmulo do mutismo. As palavras que lhe faltavam, que
do nordeste brasileiro, da Faixa de Gaza, de Bangladesh,
Assim como é certo que um dia será nosso último dia
ninguém teve o cuidado de lhe ensinar, a necessidade
da Somália, do Níger…
sobre a terra.
da palavra comprimia seu olhar com uma urgência
E nossa vida terá valido a pena. Ou não.
Metáfora e documento. Desenhar e caçar. A represen-
explosiva: era um olhar selvagem e humano ao mesmo
Terá sido uma aventura digna. Ou vã.
tação e o alimento. A ficção, a vida.
Sim?
Mas este homem precisava descobrir algo muito
Sim é uma afirmação. Sim. Mas há uma interrogação
importante: ele tinha que encontrar o coração do
no fim: sim?
bisão. Era assim que ele adquiria poderes mágicos. O
tempo, aliás maduro e de juiz, que ninguém podia suportar, tão carregado ele era de força e de tormento.
3 • O coração do bisão [Música Heiliger Dankgesang/Beethoven.]
Ninguém suportava, salvo Henek: era o meu vizinho de cama, dava de comer, ajeitava as cobertas, limpava
Até aqui, com pena incompetente ou alheia,
o menino com mãos hábeis, desprovidas de repug-
contamos a nossa história.
nância. Após uma semana, Henek anunciou com
No final, a aposta.
seriedade, mas sem sombra de presunção, que Hurbinek “dizia uma palavra”. Qual palavra? Não sabia,
mas imaginava ser mágico. O lugar do coração.
Esta mesa muda.
Sim?, metáfora ou documento?
Onde fica o coração do bisão?
Fome e banquete.
Como a carne. Documento. Como a carne. Decisão.
uma palavra difícil: alguma coisa como “mass-klo”, “mastiklo”. De noite ficávamos com os ouvidos bem
caçador-poeta tinha algo de anatomista, de cientista, [Mostra o roteiro impresso ao público.]
Teatro Uma Santa Ceia na parede.
[Silêncio.]
71
dossiêkiwi Todo organismo humano precisa continuamente de
Com uma foice. Um martelo. Com uma estrela.
Vendo a colheita do algodão branco
A flecha e o bisão.
energia. Senão, ele morre.
Um sol.
Sendo colhido por mãos negras
A luta e o casaco guardado no armário enquanto
É a letra da música. A memória de um horror entre
milhões passam frio do lado de fora.
Uma flecha no coração do bisão. Um tiro. Uma flecha.
(E lembrar de dizer isto de forma simples, sem exagero,
Uma caçada (de verdade, de mentira).
poupando o teatro).
Matar a fome com uma música (Beethoven). Com um poema (João Cabral):
tantos horrores. [Som do solstício de inverno.] — E deus?
[Silêncio.]
— Deus? É uma das mais poderosas invenções da
No solstício de inverno.
humanidade.
Nosso ano-novo pagão
[Música com viola. A cena deve lembrar o coro
Bisões.
shakespeariano da cena I.2.]
Brutalidade. Fome. Mentira. Lucro. Incêndio. Roubo.
Metáfora e documento.
(Desmoronam as paredes do teatro. Muita luz.
Cinismo. Arrogância. Misoginia.
O território e o mapa.
Aparentemente estamos no mundo.)
Como todo o real
O sofrimento não melhora o homem. Mentem os que
A fome e a falta de fome.
é espesso.
dizem o contrário!
Aquele rio
Como pode abraçar aquele a quem cortaram os braços?
é espesso e real. Como uma maçã
O infinito é o rosto do outro.
é espessa. Como um cachorro
[Silêncio.]
é mais espesso do que uma maçã. Aqui acaba esta história.
o sangue do cachorro
História.doc. Teatro.doc. Fome.doc.
do que o próprio cachorro.
Este fio de cabelo partido em três. Como uma tora
Como é mais espesso
seca. Minúscula.
um homem
Uma esperança.
do que o sangue de um cachorro.
Uma mesa muda.
Como é muito mais espesso
Uma enxurrada pesada sobre a terra seca.
o sangue de um homem
Fome e banquete.
do que o sonho de um homem.
Palavras, discurso. Verbo e ação.
73
Sangue, músculos, nervos, carne. Espesso
Ar. Ideia. Luz. Voz.
como uma maçã é espessa. Como uma maçã
Para aonde vão os nossos silêncios?
é muito mais espessa
E os infinitos silêncios mudos
se um homem a come
dos condenados da terra?
do que se um homem a vê. Como é ainda mais espessa
[Última referência ao lençol de linho, estendido sobre
se a fome a come.
a mesa.]
Como é ainda muito mais espessa se não a pode comer
Aqui onde estão os homens
a fome que a vê.
— nós conhecemos a história — De um lado cana-de-açúcar
Matar a fome
De outro lado, o cafezal
com um bisão desenhado.
Ao centro, os senhores sentados
foto filipe vianna
72
Como é mais espesso
Fome.doc, 2017
» por Kiwi Companhia de Teatro
políticacultural
A imaginação
cria a humanidade
Em meio ao grande projeto de terceirizações e privatizações, a cidade de São Paulo está ameaçada de perder algumas das suas conquistas obtidas graças à organização de trabalhadores e trabalhadoras da cultura. Estão sob ataque, especialmente, as leis de fomento, os programas e as ações que permitem a criação e a circulação de obras e atividades artísticas, foto acervo da companhia
entre elas as iniciativas de formação que democratizam e desenvolvem a capacidade simbólica. O que diferencia os seres humanos de outras espécies é sua capacidade de criar cultura, de encontrar significado para a vida, de pensar sobre o passado e imaginar possibilidades para o futuro. A arte, em todas as suas manifestações, é, em última análise, um projeto de construção do sentido de humanidade.
75
políticacultural
Evidentemente não estamos diante de uma questão orçamentária ou de ajustes jurídicos necessários ao bom andamento das políticas públicas, o desmonte em curso é um projeto político.
O congelamento de 43% do orçamento da Secre-
de formação internos e abertos à comunidade, esta-
taria Municipal de Cultura no início de 2017 (valor já
beleceram suas sedes em locais onde não havia equi-
insuficiente diante dos desafios culturais da maior e
pamento público de cultura, experimentaram novas
mais rica cidade do país), mutila gravemente a ativi-
formas de produção, de relações sociais, recusando
dade fim desta Secretaria: o fomento e a gestão da
os interesses mercadológicos e o paternalismo popu-
arte e da cultura. Este tipo de atitude contribui para
lista, muitas vezes vinculado ao calendário eleitoral.
condenar cidadãos e cidadãs paulistanos à condição
Pois agora não é somente a sobrevivência destes
de marionetes da história, incapazes de refletir sobre
grupos que está em jogo com o corte orçamentário,
suas próprias vidas e sobre o mundo em que vivem.
as privatizações e o desmonte generalizado das ações
Alguns anos após o período de trevas da ditadura
culturais, mas o direito dos cidadãos e cidadãs de
civil-militar brasileira, artistas de São Paulo se reu-
ressignificarem suas vidas e abrirem espaços de ima-
niram no Arte contra a barbárie, articulação disposta
ginação política.
a discutir o lugar ocupado pela arte na construção do
A Secretaria de Cultura suspendeu o edital do
país. Um dos resultados foi a elaboração da Lei de
Fomento à Dança em março de 2017. Em seu lugar,
Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, que
lançou um novo chamamento público que descarac-
expandiu-se em seguida para a dança, e, hoje, para o
terizou importantes princípios que originaram sua
recém conquistado Fomento à Periferia. A lei apro-
criação. O novo edital apresentado pela Secretaria
vada na Câmara Municipal em 2001 apoiou centenas
pretende colocar os artistas como produtores de
de coletivos teatrais espalhados pela cidade. Estes, em
mercadorias a serem distribuídas pela cidade de acor-
parcerias com setores da sociedade civil e movimen-
do com interesses pragmáticos, ignorando os dispo-
tos sociais, fizeram o que nenhum poder público
sitivos legais que valorizam o processo, o trabalho
conseguiu ou teve interesse em fazer: organizaram
coletivo, a formação estética e cidadã e as diferentes
não só apresentações artísticas, mas também cursos
relações entre os artistas e a sociedade.
públicas, o desmonte em curso é um projeto político.
Teatro ser interrompido, repetindo a atitude autori-
O controle sobre corações e mentes da população
tária e obscurantista adotada pela prefeitura de São
segue, neste caso, por dois caminhos: o estrangulamen-
Paulo em 2005. As argumentações técnicas (a sus-
to do orçamento da pasta da Cultura, impossibilitando
pensão do edital partiu do Tribunal de Contas do
diversas ações públicas; e a alteração de leis, projetos,
Município) não conseguem esconder um certo des-
programas e ações que foram resultado de pesquisas,
prezo institucional pela Lei de Fomento. Desprezo
debates e mobilização. Nossa luta, portanto, deve acon-
motivado pelas suas virtudes críticas, não por seus
tecer nas ruas e em todos os lugares de resistência,
eventuais problemas. Evidentemente não estamos
junto com aqueles que não aceitam a precarização de
diante de uma questão orçamentária ou de ajustes
suas vidas e a destruição da capacidade de imaginar
jurídicos necessários ao bom andamento das políticas
outra arte, outra cultura. E outra sociedade.
77
foto acervo da companhia
76
Mais recentemente, foi a vez do Fomento ao
Brasil ou o eterno retorno do mesmo
aquiagora
O golpe de 2016 que desalojou Dilma Rousseff
foto fernanda azevedo
do governo, mascarado de “legalidade” parlamentar
» por Isabel Loureiro Ex-professora de Filosofia da Unesp e Unicamp. Especialista no pensamento de Rosa Luxemburgo.
do governo pelos donos do dinheiro, que agora governam diretamente.
e jurídica, permitiu que pela primeira vez na história
Comecemos por lembrar como a contrarrevolu-
do país se expusessem diante da opinião pública es-
ção de 1964 – uma contrarrevolução sem revolução
tarrecida as vísceras de um sistema político-econô-
– mudou o rumo da nossa história ao engessar o
mico corrupto, como sempre, assentado na conjun-
país numa política de modernização conservadora,
ção estreita entre o arcaico e o moderno. O discurso
que não deixou espaço para reformas estruturais
do golpe foi assumido pelo PT: quem é vítima de
nem para avanços democráticos. A Carta aos brasilei-
golpe sempre tem razão e não precisa fazer nenhum
ros, assinada por Lula em junho de 2002, se compro-
balanço crítico de seu percurso nem dar qualquer
metendo a continuar a política econômica de FHC
explicação para as práticas que adotou. Mas se é as-
com o objetivo de acalmar o mercado financeiro, as-
sim por que agora, na ânsia de viabilizar sua candi-
sim como o “governo” resultante do golpe parlamen-
datura às eleições de 2018, Lula diz que está “perdo-
tar de 2016 são capítulos dessa tragédia que come-
ando os golpistas que fizeram essa desgraça no
çou em 1964 e se prolonga até hoje. Um dos exemplos
país”? Ou como entender Luiz Marinho propondo
dessa ditadura que não passa é a lei antiterrorismo
alianças do PT com partidos favoráveis ao impeach-
aprovada no governo Dilma, usada para bloquear
ment porque “a maioria do povo também apoiou o
protestos, lutas de resistência e qualquer tentativa
impeachment e nós queremos recuperar a maioria
de mudança. Vendo as coisas por esse prisma, con-
do povo”? Quer dizer que depois da “desgraça” que o
clui-se que a situação de agora resulta “dos grandes
governo de turno fez no Brasil o PT continua jogan-
equívocos cometidos pelo Partido dos Trabalhado-
do todas as fichas na candidatura Lula e dizendo que
res ao longo de seus treze anos no poder” (Lena La-
a única alternativa é reeditar o arqui-manjado rotei-
vinas, Correio da Cidadania, 16/06/2016) que nada
ro da conciliação pelo alto que atormenta o país
fez para alterar a inserção subordinada do Brasil na
desde a colônia?
ordem capitalista mundial.
Como chegamos aqui?
ciais dos governos petistas, agora pálida lembrança,
Mesmo reconhecendo os pequenos avanços soÉ preciso inserir num panorama amplo esse gol-
não dá para ignorar que esses governos se limitaram
pe que instalou no poder a quadrilha mais predatória
a gerir a funcionalização da pobreza, como preconiza
dos últimos 25 anos, acabando com a terceirização
o Banco Mundial. Como escreveu recentemente Vla-
79
aquiagora
Precisamos avançar pautas e ideias que superem o horizonte imediatista da próxima eleição
dimir Safatle: “o lulismo não representou uma polí-
80
maior subordinação à globalização.
Para aonde vamos?
mas que, com sorte, depois de um período de incu-
tica de combate à desigualdade, mas uma política de
Também como todos sabemos (ou deveríamos
É uma pergunta difícil de responder, mas pode-
bação, ajudam a sair do impasse. Essa nova teoria
capitalização dos pobres, o que é algo totalmente
saber), essa política de conciliação com o arcaísmo
mos pelo menos delinear as tendências que se apre-
crítica é mais do que nunca necessária numa época
diferente.” (Só mais um esforço, Três Estrelas, 2017, p.
brasileiro se esgotou em junho de 2013, quando ficou
sentam no momento. Assim como no resto do mun-
de crise estrutural do capitalismo.
89). O resultado dessa conciliação de classes ficou
visível que a modernização à brasileira, com os me-
do, também aqui a política tende em direção aos
Lembremos alguns diagnósticos do tempo pre-
claro: nem sequer diminuiu a desigualdade obscena
gaeventos e as mega-obras, precisa remover com
extremos: de um lado, autoritarismo, de outro, re-
sente como contribuição ao debate. Wolfgang Streek
que sempre nos caracterizou.
violência todos os obstáculos de seu caminho, dos
construção da esquerda. Se quisermos contribuir
(Como vai acabar o capitalismo?, Revista Piauí, outu-
Como todos sabemos (ou deveríamos saber), o
indígenas aos coletivos urbanos de resistência. Po-
neste tópico, precisamos avançar pautas e ideias que
bro, 2014), por exemplo, defende a tese de que as
lulismo acreditou na mágica de dar aos pobres sem
demos adaptar para o cenário implantado a partir de
superem o horizonte imediatista da próxima eleição,
tendências que corroem o capitalismo contemporâ-
tirar dos ricos, apostando no desenvolvimentismo
2016 a conhecida boutade de Antonio Candido – en-
limitado sempre aos mesmos combates, na tentativa
neo (declínio do crescimento, aumento da dívida,
assentado na exportação de produtos primários, o
quanto o PT, braço esquerdo do partido da ordem
de recuperar os metros de terreno perdido com as
aumento da desigualdade) mostram um “processo
que significou submeter-se docilmente à divisão in-
dizia (como o gringo) “mata”, quando estava no po-
contrarreformas golpistas.
contínuo de decadência gradual, lento mas aparente-
ternacional do trabalho que impõe a expropriação de
der, agora o braço direito do partido da ordem grita
bens comuns (terra, biodiversidade, florestas, água)
(como o brasileiro) “esfola”.
Nesse sentido, concordo com Paulo Arantes que
mente inexorável”. Com a derrota do socialismo e do
insiste há tempos que precisamos de uma nova teo-
sindicalismo, movimentos que se opunham à trans-
num processo de acumulação por expropriação, tan-
Todos os que lutam para construir entre nós uma
ria crítica, tão incisiva como foi, por exemplo, a de
formação de tudo em mercadoria, o capitalismo, sem
to na América Latina quanto na África; adequação do
nação socialmente integrada não devem lamentar o
Herbert Marcuse, que não se deixou engambelar
oposição, voltado para a busca interminável do lucro,
aparato legal com desregulamentação ou flexibiliza-
fim dos “dez anos gloriosos” do lulismo. Afinal,
pelo keynesianismo do pós-guerra e mostrou clara-
“morre de uma overdose de si mesmo”. Uma verda-
ção das leis; não democratização dos meios de co-
quem tivesse olhos para ver sabia que essa cegueira
mente que welfare state e warfare state eram indisso-
deira vitória de Pirro. A tese polêmica do autor é que
municação (os coronéis, não só os da política, mas
não podia durar. Mas o fato é que o fim das ilusões
ciáveis. É preciso que as ideias voltem a ser perigo-
o capitalismo terá fim, independentemente de exis-
também os da mídia continuaram dando as cartas);
provocou em nós uma sensação de desalento. Esses
sas, como queriam os situacionistas. Será que algum
tir qualquer alternativa. Não é a primeira vez que a
não fez reforma agrária nem reforma urbana, isto é,
governos, com as políticas de transferência de renda,
dia recuperaremos o tom desabusado da crítica radi-
ideia de colapso do capitalismo aparece – também
não enfrentou a concentração fundiária. Em resumo,
exerceram a função de evitar a barbárie completa ao
cal à sociedade de consumo e ao fetichismo da mer-
não é a primeira vez que desconfiamos dela. Mas
foram governos que não desafiaram minimamente o
impedir que as camadas mais pobres da população
cadoria que os situacionistas resumiam na frase “a
agora parece mais realista que antes. É apavorante o
capitalismo brasileiro visceralmente ligado ao atraso,
ficassem completamente ao deus dará. Agora esta-
humanidade só será livre quando o último burocrata
prognóstico de que o capitalismo poderá acabar sem
aliás, como todos os governos “progressistas” na
mos de volta aos anos 1990 com políticas de ajuste
for enforcado nas tripas do último capitalista”? A
que haja alternativa para se opor a ele. Por enquanto
América Latina. Pelo contrário, em termos econômi-
unicamente voltadas à acumulação do capital. Mas é
esquerda precisa voltar a elaborar ideias que num
parece uma tese plausível, assim como é plausível
cos e produtivos, acabaram deixando as economias
uma volta diferente porque sabemos que o PT no go-
primeiro momento não encontram eco em ninguém
imaginar que esse capitalismo em lenta agonia sig-
mais extrativistas, com exportações mais primariza-
verno não faz coisas tão diferentes da direita. Daí o
nem em lugar nenhum (como os iluministas no seu
nifica o apodrecimento da sociedade, ou seja, a bar-
das e indústrias nacionais mais debilitadas, além de
bloqueio de qualquer alternativa à esquerda.
tempo e os neoliberais da sociedade Mont Pèlerin)
bárie: o processo mesmo do capitalismo em busca de
81
foto fernando kinas
aquiagora
82
sobrevivência, usando todos os artifícios e violên-
M15 na Espanha, que teria mostrado a possibilidade
geral, o extrativismo está baseado no colonialismo
Quando se critica o desenvolvimentismo, o ar-
cias para se impor, porque deixou de fazer sentido.
de reconstrução de novos sujeitos coletivos; não
interno e ignora as consequências nefastas geradas
gumento é sempre o mesmo: sem crescimento, sem
Outro diagnóstico que vale a pena discutir é o de
houve só resistência, mas também a invenção de ou-
do ponto de vista social e ambiental: destruição dos
investimento não há redistribuição de renda nem
Pierre Dardot e Christian Laval sobre o neoliberalis-
tro imaginário, que, contra a privatização de todas as
biomas, com a erosão de terras, poluição das águas e
emprego, o que, nessa lógica que nos aprisiona, é
mo como uma nova racionalidade que domina o
dimensões da vida, se apoiou na ideia e na prática do
redução da biodiversidade, deslocamento de comu-
verdade. Como sair dela? Uma pequena parcela da
mundo há 30 anos e que, justamente por ser uma
comum. Esse imaginário pode vingar no momento
nidades, violência contra os territórios, entre outras.
esquerda brasileira que se preocupa com o colapso
racionalidade, abarca desde o plano da produção ao
oportuno, mesmo porque a mercantilização comple-
Vale a pena lembrar mais uma vez Herbert Mar-
ambiental questiona a esquerda tradicional que até
da subjetividade. Essa perspectiva vai muito além da
ta do mundo ainda não se realizou e é provável que
cuse que a essa concepção puramente economicista
agora só discutiu a redistribuição do excedente. Mas
compreensão ingênua do neoliberalismo como polí-
não se realize. Basta pensarmos nas populações tra-
e quantitativa de progresso opunha uma visão “hu-
é necessário pensar de outra maneira, ou seja, des-
tica econômica propondo o fim da intervenção do
dicionais da América Latina que resistem como po-
manitária”, questionadora do valor central da civili-
montar a estrutura do capitalismo global, configurar
Estado na economia. Este não só não desaparece
dem à extinção de suas formas de vida comunitárias,
zação ocidental – a produtividade como fim em si
uma nova forma de vida, longe do fetichismo das
(como apregoa a ideologia neoliberal), como está a
favorecendo, contra a lógica da concorrência, todas
mesma. Ao fetichismo das forças produtivas ele
forças produtivas, ou melhor, destrutivas. É preciso
serviço das grandes empresas, e ele mesmo se trans-
as formas de bens comuns.
contrapunha o ideal de uma existência pacificada,
pensar numa sociedade de bem-estar com cresci-
forma em Estado empresarial. Essa racionalidade se
Entre nós, uma tendência ainda muito minoritá-
não regida pela lógica do lucro, um “socialismo liber-
mento zero. Isso significa entrar numa lógica de en-
caracteriza por ampliar e impor a lógica do capital a
ria pensa que uma nova teoria crítica tem que come-
tário”, que David Harvey chamou, recentemente, de
frentamento, não de conciliação, como sempre acon-
todas as relações sociais, a ponto de fazer dessa lógi-
çar se opondo ao modelo de desenvolvimento vigen-
perspectiva “humanista revolucionária”.
tece quando a esquerda chega ao poder de Estado,
ca uma forma de vida. A tese explicaria porque a
te desde a ditadura militar. O PT, assim como toda a
Descendo dessa crítica geral à civilização ociden-
cuja lógica securitária e desenvolvimentista, impres-
América Latina e o Brasil dificilmente teriam esca-
esquerda brasileira oficial, nunca fez a crítica da ideia
tal e passando à esfera sublunar, o modelo de desen-
cindível à acumulação do capital, passa a adminis-
pado à lógica do capital, mesmo com governos de
de progresso nem das noções de modernização e de-
volvimento adotado pelos governos do PT não rom-
trar. Já dizia Kant que “deter o poder corrompe ine-
esquerda. Se o neoliberalismo é uma forma de vida,
senvolvimento que dela decorrem. Um elemento
peu com a lógica da globalização que mantém os
vitavelmente o livre julgamento da razão”. Trata-se
ele não pode ser combatido com medidas políticas,
constitutivo desse ideário é que ele precisa ser im-
países da América Latina numa posição subalterna
de exercitar a imaginação política e levar a sério a
nem com partidos “progressistas” no poder, mas é
posto a todos, devendo os recalcitrantes ser neutra-
de exportadores de commodities agrícolas e minerais,
percepção aflitiva de que nos encontramos no limiar
preciso opor-lhe uma outra forma de vida. Para os
lizados ou eliminados. Trocando em miúdos: o lulis-
coisa que o “governo” de turno aprofunda com ímpe-
de uma nova época, ao mesmo tempo a do colapso da
autores seria “a lógica minoritária do comum”, que
mo, como todos os governos anteriores, não só
to e prazer. Em suma, tudo indica que num futuro
democracia liberal, que clama urgentemente por al-
ainda não encontrou expressão de massa.
reduziu desenvolvimento a crescimento econômico,
próximo o Brasil continuará ocupando um lugar su-
ternativas de democracia direta, e a do colapso do
Manifestações minoritárias, mas importantes,
não operando nenhuma transformação estrutural
balterno na divisão internacional do trabalho, fazen-
capitalismo, mostrando que não dá para universali-
de formas de vida alternativas seriam para Dardot e
que integrasse de fato os desvalidos, mas, pior que
do o duplo e triste papel de plataforma de valoriza-
zar o american way of life num planeta de recursos
Laval (Este pesadelo que não termina – Como o neoli-
isso, identificou desenvolvimento com extrativismo.
ção financeira e exportador de commodities, como na
finitos. Precisamos de outra política e de outra eco-
beralismo derrota a democracia, 2016) o movimento
Tanto no caso brasileiro como na América Latina em
época da colônia.
nomia para outra civilização.
83
aquiagora » por Douglas Estevam Setor de cultura do MST.
Agitprop e a forma revolucionária
84
Manifestações de agitprop soviético por volta de 1925.
A agitação e propaganda se configurou historica-
nesse contexto. Meierhold desenvolveu seu Outubro
limte de sua crítica com as condições geradas pela
mente como um complexo e polêmico campo de
Teatral como parte da revolução. Seus experimentos
revolução. A arte de vanguarda soviética se punha
atuação política e artística. Em muitos momentos
com a biomecânica se inscreviam nesse enfrenta-
como objetivo uma revolução nas formas de percep-
históricos essas esferas apareceram estritamente
mento e foram retomados por grupos que fizeram
ção estética, um combate na trincheira do gosto, da
vinculdadas, ampliando ainda mais a problematiza-
parte do Proletkult, essas organizações culturais que
fluição estética. Sem forma revolucionária não have-
ção da abordagem desse tema. O MST, em conjunto
chegaram a reunir mais de 400.000 pessoas. Um de
ria revolução, diria Maiakovski, parafraseando a for-
com outras organizações populares, está há alguns
seus alunos, Eisenstein, também esteve envolvido
mulação do Lenin de Que fazer? Um dos principais
produtivistas, construtivistas, formalistas, fazendo
anos investigando esses campos de luta política e ar-
com o Exército Vermelho e iniciou suas primeiras
nomes do futurismo russo, Maiakovski foi um dos
experimentos em diversos campos artísticos. Ossip
tística e promovendo ações práticas e teóricas, im-
produções teatrais e cinematográficas no Proletkult.
primeiros a aderir à revolução, quando a maior parte
Brik, um dos teóricos do formalismo, Tretiakov, vin-
plementando experiências de diversos níveis e reali-
Maiakovski, poeta, dramaturgo, ator e pintor, também
da intelligentsia e dos artistas abandonaram a Rússia.
do do campo futurista e produtivista, Maiakóvski e
zando intervenções de agitprop em diferentes
explorou o campo da agitação e propaganda, escre-
Os futuristas assumiram importantes espaços na
Meierhold foram somente alguns dos que desenvol-
âmbitos. A experiência desenvolvida na revolução
vendo peças de teatro que foram interpretadas por
produção artística soviética, tornando-se uma das
veram concepções ligadas a uma função ativa da arte
russa tem nos servido de referência.
grupos tanto do Proletkult quanto do Exército Ver-
principais forças artísticas nas artes plásticas, na
nos processos sociais, encontrando na agitação e propaganda sua forma de efetivação.
85
No campo artístico, a Revolução Russa produziu
melho. O poeta, dramaturgo, teórico e fotógrafo Tre-
poesia e no teatro. A abordagem materialista da obra
as condições sociais para que a arte de agitação e pro-
tiakov, outro dos grandes nomes desse período, traba-
de arte, com o foco nos elementos formais consti-
As experiências no campo formal desenvolvidas
paganda chegasse ao seus níveis mais avançados. A
lhou em conjunto com Eisenstein e Meierhold, sendo
tuintes do objeto estético, era uma forma de negar
pelos futuristas e construtivistas na poesia e nas ar-
tentativa de criação de uma sociedade não regida pela
chamado por Brecht de “meu mestre”. Além de atua-
uma abordagem metafísica da arte e acentuar seu
tes plásticas, as análises sobres os procedimentos da
lógica do capital proporcionou ao movimento artístico
rem em vários campos, promovendo uma síntese de
caráter processual e material. Essas concepções ga-
produção poética e os efeitos de estranhamento
que vinha desde a década de 1910 críticando a arte
artes, esses artistas também implementavam proces-
nharam amplitude teórica, analítica e programática
apontados pelos formalistas, a elaboração de objetos
burguesa a dinâmica social que recolocaria a experien-
sos organizativos, como foi o caso da Frente de Es-
com a correntes chamadas produtivistas, enfatizan-
socialmente necessários formulados pelos produti-
cia estética em um novo patamar. No momento incial
querda das Artes, à qual todos eles estiveram ligados.
do a práxis construtiva.
vistas, todas essas proposições dos artistas de van-
da revolução, no período determinado pela guerra ci-
Um dos primeiros grupos de arte de vanguarda
Ainda em diálogo com essas experiências, alguns
guarda encontraram na agitação e propaganda seu
vil, se desenvolveram as principais experiências no
que veio a assumir a agitação de propaganda derivou
dos teóricos do grupo que ficou conhecido como
campo mais fecundo de experimentação e a possibi-
campo estético vinculadas a agitação e propaganda.
do futurismo russo, cuja aparição, em 1912, com o
Formalismo Russo, se ligaram ao movimento da
lidade de realização de sua principal fução: a trans-
manifesto Bofetada no gosto público, chegou ao seu
Frente de Esquerda das Artes, que reunia futuristas,
formação da sociedade.
A maior parte dos artistas de vanguarda atuaram
aquiagora » por Fernando Kinas Diretor e pesquisador teatral. Fundou e dirige desde 1996 a Kiwi Companhia de Teatro.
86
Monumento em memória aos mortos no massacre de Eldorado dos Carajás em 1996
narrar episódios tem o inconveniente de ofuscar os mecanismos que os tornam possíveis. É como se o clarão dessas explosões de violência impedisse a compreensão dos processos sociais que autorizam as habituando. A história que normaliza e naturaliza a violência vem de uma longa tradição colonial. O genocídio indígena e a escravidão negra são o paradigma desse modelo de sociedade baseado na opressão, na exclusão, na exploração e na imposição ideológica.
foto acervo da companhia
brutalidades. Estas mesmas com as quais vamos nos
A história dos “condenados da terra”, expressão
Por este motivo, o arquivo da memória precisa ser
que deu nome ao principal livro de Frantz Fanon
também um inventário político e uma investigação
(1925-1961), ocupa pouco espaço na memória cole-
crítica. Não isento de contradições, Oscar Wilde
tiva nacional. História e memória são seletivas. O
identificou um dos nervos do problema: “É muito
massacre de Eldorado dos Carajás não foge a esta
mais fácil sentir simpatia pelos que sofrem do que
regra. Embora existam documentários e peças tea-
sentir simpatia por uma ideia”. E uma das ideias pelas
trais sobre o evento, além de reportagens, livros,
quais poderíamos ter simpatia é a de justiça social.
se pensa em terra e camponeses, esta é a única fartu-
músicas e uma instalação com castanheiras quei-
Na formação histórica do Brasil, a posse da terra tem
ra de que temos notícia. Sobram covas, falta terra.
madas na curva do S, às margens da BR 155, não é
sido uma forma de impedir que essa justiça se esta-
Do episódio do Paraná resultou o registro docu-
fácil a tarefa de resistir ao apagamento, à invisibili-
beleça. Das capitanias hereditárias ao recente projeto
mental Êta, Brasil! O curta-metragem testemunha a
dade e à distorção do episódio que tirou a vida de 21
que permite a venda de terras para estrangeiros, pas-
repressão implacável e a resistência popular. Uma
trabalhadores rurais sem terra e deixou dezenas de
sando pela Lei de Terras de 1850, a concentração fun-
década mais tarde nosso grupo se apresentou no
feridos em 1996. O exercício da memória é ingrato,
diária foi sempre uma regra tácita. Pobre não pode ter
Pará. O MST e o Movimento dos Atingidos por Bar-
considerando que, como dizem alguns, a cada vinte
terra. Por isso a reforma agrária foi e continua sendo
ragens (MAB) foram alguns dos nossos interlocuto-
anos o Brasil esquece os vinte anos precedentes.
diabolizada, e qualquer organização autônoma de
res. As castanheiras queimadas continuavam de pé,
camponeses e camponesas vira assunto de polícia.
testemunhando tanto o massacre, como a luta.
foto fernando kinas
A terra, a fome e o teatro
No entanto, a história que se contenta em apenas
Oficina de teatro e feminismo no assentamento Palmares (PA) em 2011
Em maio de 2000 o arquivo político da memória
Hoje a situação pouco mudou. Os assassinatos
registra outra dessas manifestações da violência de
no campo continuam. A concentração de terra tam-
Estado. Antonio Tavares Pereira foi assassinado pela
bém. A esperança suscitada por governos progressis-
Polícia Militar do Paraná, então governado por Jai-
tas esbarrou mais uma vez nos acordos e compro-
me Lerner. Antônio e outros mil trabalhadores do
missos. Venceu a conhecida conciliação por cima e,
campo participavam de uma caravana em defesa da
mesmo assim, sobreveio o golpe. Nosso coletivo tea-
reforma agrária. Os cinquenta ônibus em que esta-
tral persiste, não sabemos até quando. Sobrevivemos
vam foram interceptados na BR 277, perto de Curi-
à extinção e à recriação do MinC, aos orçamentos
tiba, e uma perseguição violenta, com tiros e muni-
ínfimos, à arrogância dos gestores, ao torcicolo cul-
ção real, teve lugar.
tural imposto pelas formas renovadas de colonização.
Três anos antes, nossa companhia teatral tinha
Em 2017 apresentamos Fome.doc, mais uma ten-
montado R, trabalho cênico que, entre outros assun-
tativa de diagnosticar este país de tantas misérias e
tos, denunciava o massacre de Eldorado dos Carajás.
de algumas farturas indecentes. Do Paraná à São
Um dos sepultadores abriu covas além do número de
Paulo, passando pelo Pará, a fome, a luta pela terra e
corpos a serem enterrados. “É melhor sobrar do que
a exigência de justiça vão indicando um caminho.
faltar”, disse ele. A frase fazia parte da peça. Quando
Áspero, mas um caminho.
87
aquiagora
ontem...
88
... hoje
Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES)
Instituto Millenium (IMIL)
Organização de empresários do Rio de Janeiro e de São Paulo estruturada a partir de 1961 com o objetivo de “defender a liberdade pessoal e da empresa, ameaçada pelo plano de socialização dormente no seio do governo João Goulart”, através de um “aperfeiçoamento de consciência cívica e democrática do povo”. Após o golpe de 1964, de cuja preparação participou ativamente, o IPES reduziu suas atividades, desaparecendo em 1972.
Organização de empresários criada em 2005 que se apresenta como “entidade sem fins lucrativos e sem vinculação político-partidária com sede no Rio de Janeiro” com o objetivo de promover “valores e princípios que garantem uma sociedade livre, como liberdade individual, direito de propriedade, economia de mercado, democracia representativa, Estado de Direito e limites institucionais à ação do governo.” Após o golpe de 2016, de cuja preparação participou ativamente, o IMIL continua em atividade.
89
aquiagora
TUOV
Meio século de teatro, lutas e utopia
Expediente da revista contrapelo – Caderno de estudos sobre arte e política, ano 5, número 3, dezembro de 2017
Coordenação editorial: Fernando Kinas Conselho editorial: DANIELA EMBÓN, Fernanda Azevedo, Fernando Kinas e Luiz Nunes Colaboradores desta edição: Douglas Estevam, Isabel Loureiro e paulo fávari Revisão: paulo fávari Projeto gráfico: casa 36 Capa: shutterstock Responsável pela publicação: Kiwi Companhia de Teatro www.kiwiciadeteatro.com.br | kiwiciadeteatro@gmail.com Comentários, sugestões e críticas são bem-vindos. As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade exclusiva do(a)s autore(a)s. Os textos podem ser citados livremente, solicitamos apenas a menção da fonte.
90
Fundado em 27 de fevereiro de 1966 como Teatro do Onze, em alusão ao Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, a história dos pouco mais de 50 anos do Teatro Popular União e Olho Vivo é também a história da resistência: política, econômica, artística e social. Sem se deixar enganar por miragens como a fama, a falsa elevação dos grandes temas humanos e pela perseguição da estética sem função, o grupo ficou livre para manter os pés bem fundados no chão e cumprir com os objetivos a que se propôs desde sua fundação, a saber, fazer teatro junto a populações cujo acesso à cultura é escasso ou ausente e construir o debate político. Como o projeto do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal; o Grupo Forja, teatro operário do ABC; as iniciativas de teatro do MST; e tantos outros, o TUOV tem ainda outra qualidade – muitas vezes incompreendida –, dar o passo a mais e oferecer os meios de produção do teatro àqueles que têm o direito à cultura negado e mesmo assim desejam fazê-lo, desmistificando a estrutura para transformála em ferramenta acessível. Talvez este seja o segredo para se manter ativo e firme durante tanto tempo: acreditar que o teatro é meio, não fim. Grande parte da longevidade do grupo e da razão em se manterem fieis aos princípios se deve a Idibal
Piveta (ou César Vieira, como ficou conhecido), dramaturgo, diretor e um dos fundadores do grupo. Exceção também em sua profissão de formação, o advogado participa ativamente desde os anos 1960 das lutas sociais. E traz para o grupo sua experiência não somente através dos temas e textos, unindo o popular e o político, mas também desenvolve as redes de apoio e as estratégias que mantêm o TUOV. César Vieira é exemplo e referência pela sua participação incansável em quase todas as frentes de batalhas. Lutou contra a ditadura civil-militar; participou da articulação pela fundação da Cooperativa Paulista de Teatro, fundada em 1979; insurgiu-se no Arte Contra a Barbárie; foi um dos impulsionadores da Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo; além das participações em inúmeros debates e fóruns. Nestes dias que correm, quando o mundo parece estar rendido ao conservadorismo em novo patamar e o inimigo parece ter muito poder, César Vieira parece ser feito de uma matéria diferente das outras pessoas. Parece. É que ele, como o grupo ao qual ajudou a fundar e pertence, tem o estranho costume de se interessar por gente. O TUOV e César Vieira têm a incômoda compreensão de seu lugar e função sociais e a energia inesgotável dos projetos guiados por utopias.
TIRAGEM: 1.000 exemplares | IMPRESSÃO: Stillgraf | distribuiçÃO gratuita
ficha técnica FOME.DOC
ficha técnica MATERIAL BOND
Roteiro e direção geral: Fernando Kinas
A partir da obra de: Edward Bond
Elenco: Fernanda Azevedo e Renan Rovida Direção e execução musical: Eduardo Contrera
Tradução: Marcos Steuernagel, Filipe Vianna, Eduardo Contrera e Fernando Kinas
Iluminação: Aline Santini
Direção e roteiro: Fernando Kinas
Cenário: Márcia Moon Figurino: Madalena Machado
Elenco: Fernanda Azevedo (atriz) e Eduardo Contrera (músico)
Assistência e operação de luz e som: Clébio Ferreira (Dedê)
Vídeo: Luiz Gustavo Cruz
Confecção de marionetes: Celso Ohi
Cenografia: Júlio Dojcsar
Preparação vocal: Roberto Moura
Iluminação: Clébio Ferreira (Dedê)
Vídeo: Luiz Gustavo Cruz
Figurino: Madalena Machado
Vozes gravadas: Marilza Batista e Félix Sánchez
Confecção da marionete: Celso Ohi
Programação visual: Casa 36
Áudio inicial: Michael Moran
Fotografia: Filipe Vianna
Programação visual: Casa 36
Cenotécnico: Lázaro Batista Ferreira
Produção e operações: Luiz Nunes e Daniela Embón
Produção: Luiz Nunes e Daniela Embón
Realização: Kiwi Companhia de Teatro
Realização: Kiwi Companhia de Teatro
Duração aproximada: 80 minutos
Duração aproximada: 120 minutos
Classificação: 14 anos
Classificação: 14 anos FOME.DOC estreou no Centro Cultural São Paulo em 14 de julho de 2017.
issn 2446-7170
MATERIAL BOND estreou no Teatro da Cultura Inglesa, São Paulo, em 9 de junho de 2016.
Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie. E, assim como ele não está livre da barbárie, assim também não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um vencedor a outro. Por isso, o materialista histórico, na medida do possível, se afasta dessa transmissão. Ele considera como sua tarefa escovar a história a contrapelo. Walter Benjamin, As teses sobre o conceito de história (1940).
issn 2446-7170
realização
Este projeto foi contemplado pela 29ª Edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo