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contrapelo
Caderno de estudos sobre arte e polĂtica
contrapelo – Caderno de estudos sobre arte e política, ano 1, número 1, 2013
editorialtrajetória A história do avesso, Kiwi Companhia de Teatro
04
bibliotecacrítica O Teatro Revolucionário, Amiri Baraka (1964)
06
Treze questões aos organizadores e participantes do Festival de Avignon, Comitê de ação (1968)
10
poemasquejandos Carta à mãe, Maria Auxiliadora Lara Barcelos (Dorinha)
13
Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto
14
Europas Schande (Vergonha da Europa), Günter Grass
15
El otro (O outro), Roberto Fernández Retamar
16
Um, nenhum e cem mil, Luigi Pirandello
17
dossiêkiwi Nós não estamos em paz, Fernando Kinas
19
Roteiro nº 5 Morro como um país
23
A flor e a exceção, Mei Hua Soares
38
Caderno de fotos
42
Erre!, Fabio Salvatti
52
políticacultural Midas e a política cultural, Fernando Kinas
59
aquiagora Enquanto isso, no Brasil... as ambiguidades da justiça de transição, Edson Teles
67
Triste crônica de um destino anunciado, José Arbex Jr.
76
Uma breve história do teatro-jornal ou jornal vivo, Eduardo Campos Lima
84
No país da verdade de mentira, Angela Mendes de Almeida
88
O esculacho contra o esquecimento, Frente de Esculacho Popular
94
ontem...
96
...hoje
97
editorialtrajetória
A história do avesso Com o fim da ditadura civil-militar acelerou-se o movimento de reorganização da sociedade brasileira. Sujeito tanto às circunstâncias da vida política – queda do muro de Berlim, ressurgimento das lutas populares, crises econômicas –, como às constâncias da história nacional – conciliação pelo alto, dependência internacional, mentalidade escravocrata e brutalidade das elites –, este movimento também atingiu a arte e a cultura. Em um contexto contraditório, em que alguns esperavam avanços significativos e outros anteviam um destino pouco ou nada glorioso, foram surgindo, também de forma contraditória, novas formas de agir e uma consciência política mais aguda por parte do povo do teatro. Uma expressão concreta desta nova etapa foi a organização em grupos na cidade de São Paulo. Entre as prioridades destes coletivos, que frequentemente unem arte e política, estão a redefinição do modo e das relações de produção no trabalho de criação, a investigação estética continuada e o estreitamento das relações com movimentos sociais. 04
O caderno de estudos Contrapelo, nome que faz referência à reflexão de Walter Benjamin sobre a necessidade de “escovar a história a contrapelo”, insere-se neste contexto e expressa parte dessa história e do seu avesso. Nosso grupo, nascido em 1996, produziu montagens teatrais, leituras dramáticas e um documentário; organizou debates, seminários, ciclos de filmes e encontros multiartísticos; viajou pelo país e se apresentou em teatros, praças, galpões, sindicatos, assentamentos, faculdades…, mas ainda não tinha sistematizado parte do pensamento que orienta sua trajetória. Contrapelo começa a cumprir este papel, tentando contribuir com a discussão crítica sobre arte e política, no Brasil e no mundo. Dado este passo, é preciso fazer dois agradecimentos. O primeiro é endereçado aos que participaram do grupo e tomaram outros rumos. Ele(a)s sabem a importância que tiveram na nossa trajetória. O segundo agradecimento é extensivo aos muitos parceiros e parceiras que tornaram possível o projeto Morro como um país – A exceção e a regra, que inclui este primeiro número do caderno de estudos Contrapelo. Nossa enorme gratidão se mistura com o desejo de novos trabalhos em comum. Não é fortuito que Contrapelo seja um “caderno de estudos” e não uma “revista”. Há tanta coisa por fazer – porque há tanta injustiça e desumanidade, mas também tantas possibilidades – que precisamos estudar, e muito, para mudar o que precisa ser mudado. Ao mesmo tempo, como indica o dossiê incluído nesta publicação, já estamos com a mão na massa. Porque o mundo, e nós mesmos, não estamos prontos. Boa leitura! Kiwi Companhia de Teatro
A Kiwi Companhia de Teatro surgiu em 1996. Ela é responsável por montagens teatrais e
Montagens
leituras dramáticas (a partir de autore(a)s como Heiner Müller, Samuel Beckett, Franz Kafka, Hilda Hilst, Elfriede Jelinek, Julio Cortázar e Martin Crimp), além de experiências cênicas e
• Morro como um país, textos de Dimitris
intervenções urbanas; organizou cursos, oficinas, eventos multiartísticos e debates;
Dimitriadis, Edward Bond, Mauricio
recentemente produziu o documentário de longa-metragem Carne – Patriarcado e capitalismo
Rosencof, Alípio Freire e outro-a-s
e o caderno de estudos Contrapelo. O grupo procura elaborar um pensamento sobre o teatro,
autore-a-s, 2013.
contribuir para a compreensão crítica de temas contemporâneos e intervir artística e politicamente na vida social do país, em geral associado a movimentos sociais e populares. A formação atual do grupo reúne colaboradores fixos e convidados: Fernanda Azevedo,
•C arne, textos de Michelle Perrot, Elfriede Jelinek e outro-a-s autore-a-s, 2007/2013.
Fernando Kinas, Luiz Nunes, Mônica Rodrigues, Daniela Embón, Luciana Rodrigues, Eduardo Contrera e Maysa Lepique. Vários artistas estão vinculados à trajetória do grupo: Heloísa Passos, Taty Kanter e Nadja Flügel (iluminadoras), Demian Garcia (músico e
•T eatro/mercadoria #1, textos de Guy Debord e outro-a-s autore-a-s, 2006/2008.
sonoplasta), Camila Lisboa e Paulo Emílio (criadores visuais), Lori Santos, Simone Spoladore, Marísia Brüning, Chiris Gomes e Clóvis Inocêncio (atores e atrizes),
• Linha, de Israel Horovitz, 2006.
Júlio Dojcsar e Fernando Marés (cenógrafos), Fabio Salvatti (diretor), Gavin Adams (pesquisador de imagens), Maitê Chasseraux (figurinista), Marina Willer (direção de arte) e Marie Ange Bordas (artista plástica e fotógrafa).
•O bom selvagem, textos de Jean-Jacques Rousseau e outro-a-s autore-a-s, 2006.
A partir de 2007 a Companhia entra em nova fase, neste ano foi selecionada pelo Programa de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo com o projeto Teatro/
• Casulo, de Fernando Kinas, 2006.
mercadoria – Espetáculo e miséria simbólica, que incluiu apresentações teatrais, oficinas, debates e a realização de dois eventos multiartísticos. Ainda em 2007 a Companhia mostrou parte do seu repertório na Mostra Sesc de Artes. Neste mesmo ano participou
itânio, textos de Elizabeth Bishop, Pier •T Paolo Pasolini e outro-a-s autore-a-s, 2004.
do evento Conhecimento e cultura livres com apoio do Ministério da Cultura. Em 2008 a Companhia representou o Brasil no Seminário Internacional de Performance e Feminismo Actions of Transfer – Women‘s peformance in the Americas, organizado pela
• Mauser/manifesto, textos de Heiner Müller e Karl Marx, 2002.
Universidade da Califórnia (UCLA). O grupo produziu o documentário Actions of Transfer – O olhar brasileiro, em parceria com as Atuadores e com apoio da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres.
•F ragmento b3, textos de Samuel Beckett e Edward Bond, 2001.
Em agosto de 2009 a Kiwi Companhia de Teatro apresentou em Bogotá a performance Carne – Histórias em pedaços no 7º Encuentro Ciudadanias en Cena, organizado pelo
• Osmo, de Hilda Hilst, 2000.
Instituto Hemisférico de Performance y Política. Com o projeto Carne – Patriarcado e capitalismo, o grupo foi novamente contemplado
•T udo o que você sabe está errado, textos
pelo Programa de Fomento ao Teatro. Foram realizadas atividades em todas as regiões
de René Descartes e outro-a-s autore-a-s,
da cidade entre maio de 2010 e agosto de 2011. A parte cênica deste projeto foi
2000/2001.
apresentada mais de 120 vezes e integra o repertório da Companhia. No final de 2011 o projeto Carne recebeu o Prêmio Myriam Muniz (Funarte). Foram realizadas apresentações, debates, uma mostra de filmes e oficinas teatrais no Estado
arta aberta, de Denis Guénoun, •C 1998/2007.
do Pará (Belém, Marabá e Parauapebas) e no interior do Estado de São Paulo. Em 2012 o grupo recebeu pela terceira vez o apoio do Programa de Fomento ao Teatro e
• Um artista da fome, de Franz Kafka, 1998.
realizou o projeto Morro como um país – A exceção e a regra. Foram discutidos temas como a violação aos direitos humanos, a violência institucional, o conceito de estado de exceção e o papel da arte diante das convulsões sociais.
•R , textos de Albert Einstein e outro-a-s autore-a-s, 1997.
05
bibliotecacrítica
foto fernanda azevedo
6
O caderno de estudos Contrapelo apresenta dois textos, inéditos em publicações no país, como contribuição ao debate crítico sobre arte, cultura e política. Ambos são testemunhos das intensas discussões dos anos 1960. A aposta é que eles, de alguma forma, interpelem a nossa realidade e dialoguem com aqueles e aquelas que se interessam pelas relações entre ação estética e intervenção política.
Revolucionário O Teatro
Este ensaio foi originalmente encomendado pelo New York Times em dezembro de 1964, mas o texto foi recusado com uma nota, onde os editores diziam não ter compreendido o artigo. O periódico Village Voice também recusou a publicação. O texto foi afinal publicado no Black Dialogue. 07
O Teatro Revolucionário deve forçar a mudança, tem que ser mudança. (Quando as caras deles estiverem viradas para a luz, aí você joga a magia negra do negão e os limpa da sujeira, fazendo-os ver a feiura, e se os belos virem a si mesmos, eles se amarão). Nós pregamos a virtude novamente, mas para que isso signifique AGORA, que parece ser o uso mais construtivo da palavra. O Teatro Revolucionário deve EXPOR! Exibir o interior desses humanos, olhar dentro de crânios negros. Os brancos vão sempre se acovardar frente a esse teatro, pois este os odeia. Porque eles foram treinados para odiar. O Teatro Revolucionário precisa odiá-los por causa de seu ódio. Por presumir que poderiam com sua tecnologia negar a supremacia do Espírito. Todos morrerão por causa disso. O Teatro Revolucionário precisa ensiná-los a morrer. Ele precisa quebrar suas caras e abri-las ao som dos gritos loucos dos pobres. Precisa ensiná-los sobre o silêncio e as verdades guardadas dentro dele. Ele precisa matar qualquer deus que seja louvado por alguém, exceto o senso comum. O Teatro Revolucionário deve limpar a submissão e os assassinatos do rosto de Lincoln. Ele deve tropeçar pelo universo, corrigindo, insultando, pregando e cuspindo loucura... mas uma loucura que nos é ensinada em nossos momentos racionais. As pessoas precisam ser ensinadas a confiar nos verdadeiros cientistas (sábios, garimpeiros, excêntricos) e a saber que a sacralidade da vida é a constante possibilidade de expansão da consciência. E eles precisam ser incitados a lutar contra qualquer agência que impeça essa expansão.
bibliotecacrítica O Teatro Revolucionário precisa Acusar e Atacar
O mundo dá forma ao Teatro Revolucionário, que
tudo o que possa ser acusado e atacado. Ele precisa
se move para dar nova forma ao mundo, usando sua
Acusar e Atacar porque é um teatro das Vítimas. Ele
força natural e vibrações perpétuas da mente no mun-
olha o céu com os olhos das vítimas, e move as víti-
do. Somos a história e o desejo, somos aquilo que so-
mas a olharem para a força em seus corpos e mentes.
mos e o que qualquer experiência possa fazer de nós.
Clay, em Dutchman, Ray, em The Toilet, Walker em
É um teatro social, mas todo teatro é social. Mas
The Slave, todos são vítimas. No sentido ocidental
nós transformaremos os escritórios em lugares em
eles poderiam ser heróis. Mas o Teatro Revolucioná-
que coisas reais possam ser ditas sobre o mundo
rio, mesmo que ocidental, precisa ser anti-ocidental.
real, ou então em salas esfumaçadas onde a destrui-
Ele deve mostrar as terríveis atrações da Queda do
ção de Washington possa ser planejada. O Teatro
Ocidente. Da mesma maneira que Artaud criou A
Revolucionário precisa funcionar como um lápis in-
Conquista do México , devemos criar A Conquista do
cendiário plantado no chapéu de Curtis Lemay4. E
Olho Branco, onde os missionários e Liberais hesitan-
quando a cortina final desce, os cérebros são espa-
tes morrem sob o impacto de pedaços de concreto
lhados sobre os assentos e o chão, e as freiras en-
que caem. Para os efeitos sonoros, gritos alucinantes
sanguentadas precisam telegrafar SOS para seus bel-
de alegria, de todos os povos do mundo.
gas com dente de ouro5.
1
2
08
O Teatro Revolucionário deve roubar os sonhos de-
Nosso teatro mostra as vítimas de modo que seus
les e dar a realidade. Ele deve isolar o ritual e os ciclos
irmãos na plateia entendam melhor que eles são os
históricos da realidade. Mas ele deve ser comida para
irmãos e irmãs das vítimas, e que eles próprios tam-
aqueles que precisam de comida, e propaganda auda-
bém são vítimas, se eles forem irmãos de sangue. E o
ciosa para a beleza da Mente Humana. É um teatro po-
que mostramos deve fazer com que o seu sangue fer-
lítico, uma arma a ser usada no massacre daqueles bur-
va, de modo que os temperamentos pré-revolucioná-
ros gordos brancos que de alguma forma acreditam que
rios sejam banhados nesse sangue, e que suas almas
o resto do mundo existe para que eles babem em cima.
mais profundas se mexam, até mesmo prontas para
Esse deve ser o Teatro do Espírito do Mundo.
morrer, e que eles se vejam tensionados e trancados,
Onde o espírito possa ser demonstrado como a mais
face a face com aquilo que lhes foi ensinado à alma.
competente força no mundo. Força. Espírito. Senti-
Nós gritaremos e choraremos, assassinaremos, corre-
mento. A linguagem será de qualquer um, mas aper-
remos pela rua em agonia, se isso significar que a alma
tada pela espinha dorsal do poeta. E mesmo a lingua-
seja comovida, seja movida para um entendimento
gem precisa mostrar que são os fatos nesse épico da
real de vida do que seja o mundo, e do que ele deve
consciência, o que está acontecendo. Falaremos sobre
ser. Nós pregaremos a virtude e o sentimento, e um
o mundo, e a precisão com que chamamos esse mun-
senso natural de eu no mundo. Todos vivem no mun-
do será a nossa arte. A arte é método. E a arte, “como
do, e o mundo deve ser um lugar para que eles vivam.
qualquer cinzeiro ou senador”, permanece no mundo.
O que é chamado de imaginação (de imagem, má-
Wittgenstein disse que ética e estética são uma coisa
gica, mago, mágico etc.) é um vetor prático da alma.
só. Eu acredito nisso. Então o teatro da Broadway é um
Ela armazena toda a informação, e pode ser chamada
teatro da reação, cuja ética, assim como a estética, re-
para resolver nossos “problemas”. A imaginação é
fletem os valores espirituais de uma sociedade profa-
uma projeção de nós mesmos para além de nossa
na, que envia seus soldados pelo mundo afora para
sensação de sermos “coisas”. A imaginação (imagem)
estourar as cabeças das pessoas negras. (Em alguns
é toda possibilidade, porque a partir da imagem, a
casos, nessas cidades malucas do sul, eles até atiram
energia inicial circunscrita, qualquer uso (ideia) é
nos Filhos Favoritos dos imigrantes, seja ele Michael
possível. E assim começa o uso daquela imagem no
Schwerner3 ou J. F. Kennedy.)
mundo. Possibilidade é aquilo que nos move.
Personagens vítimas em três peças de Jones. Antonin Artaud, autor de teatro e roteirista (1896-1948), abraçou o “teatro da crueldade”, isto é, visualmente intenso e de fortes estímulos psicológicos para a audiência, como um modo de revolucionar o teatro; ele escreveu o drama “A conquista do México” em 1933. 3 Michael Schwerner. Um dos três militantes dos direitos civis assassinados pela Ku Klux Klan in Mississipi in 1964, Schwerner era a vítima branca. 4 Curtis LeMay. General da força aérea americana que defendia políticas militares agressivas durante a Guerra Fria, em 1965, no Vietnã. 5 Muitos padres e freiras belgas foram massacrados em 1960 durante a tumultuada transição colônia-independência do Congo Belga. 1
2
Precisamos realizar uma arte que funcionará como um chamado, para que desça a ira real do espírito do mundo. O teatro popular do branco, assim como o roman-
malmente porque elas tratarão a vida humana como se
ce popular branco, mostra suas vidas brancas e cansa-
ela de fato estivesse acontecendo. Os diretores ameri-
das, e os problemas de comer açúcar branco, ou então
canos dirão que as personagens brancas nas peças são
esse teatro arrebanha loiras de bundão e as coloca em
muito abstratas e covardes (“não me interprete mal...
enormes palcos e nos fazem acreditar que elas estão
quero dizer, esteticamente”) e eles estarão certos.
dançando e cantando. EMPRESÁRIOS BRANCOS DO
A força que queremos é de vinte milhões de as-
MUNDO, VOCÊS REALMENTE QUEREM AS PES-
sombrações gritando América furiosamente e com ar-
SOAS DANÇANDO E CANTANDO??? ENTÃO VÃO
mas invencíveis. Queremos explosões reais e brutali-
TODOS VOCÊS AO HARLEM E SE DEIXEM MA-
dade real. TODA UMA ÉPOCA SE DESPEDAÇA e
TAR. ENTÃO HAVERÁ MUITA DANÇA E CANÇÃO,
devemos dar a ela o espaço e a imensidão de seu real
DE VERDADE! (Em O Escravo Walker Vessels, o revo-
fim. O Teatro Revolucionário, que agora está povoado
lucionário negro, veste uma braçadeira, que é a insíg-
por vítimas, breve será povoado de novos tipos de he-
nia do inimigo que ataca... um menestrel de grossos
róis... não os fracos Hamlets debatendo se estão ou não
lábios vermelhos, sorrindo como um louco).
preparados para morrer por suas ideias, mas homens e
A objeção do liberal branco ao teatro da revolução
mulheres (e mentes) que estão cavando a partir do fun-
(se esse liberal for suficientemente in) será feita sob
do, bem debaixo de mil anos de “alta arte” e futilidades.
bases estéticas. A maior parte dos artistas ocidentais
Precisamos realizar uma arte que funcionará como
brancos não precisam ser “políticos”, já que normal-
um chamado, para que desça a ira real do espírito do
mente, estando eles conscientes disso ou não, estão
mundo. Somos pajés e assassinos, mas abriremos um
em completa empatia com as forças sociais mais re-
lugar para o verdadeiro cientista expandir nossas
pressivas do mundo atual. Existem hoje mais “jovens
consciências. Esse é um teatro de assalto. A peça que
birdmen”6 fascistas que percorrem o Ocidente disfar-
abrirá os céus para nós será chamada de A DESTRUI-
çados de Artistas, do que disfarçados de fascistas.
ÇÃO DA AMÉRICA. Os heróis serão Crazy Horse,
(Mas também essa palavra, Fascista, e com ela, Fascis-
Denmark Vessey, Patrice Lumumba8, mas não histó-
mo, ficaram obsoletas pelas palavras América e Ame-
ria, não memória, nada de uma busca sentimentalista
ricanismo). O Artista Americano normalmente se re-
tateante que busca aquecer nosso desespero; estes
vela um super-Burguês no final, pois, finalmente, tudo
serão novos homens, novos heróis, e seus inimigos
o que resulta de sua jornada no mundo é um “gosto
serão a maioria de vocês que estão lendo este texto.
melhor” do que o Burguês – e muitas vezes nem isso7. Os americanos detestarão o Teatro Revolucionário porque este os destruirá e àquilo que consideram real.
LeRoi Jones (Amiri Baraka)
Policiais americanos tentarão fechar os teatros onde tal
Liberator, julho 1965
nudez do espírito desfilará. Os produtores americanos dirão que as peças revolucionárias são um lixo, nor-
Tradução de Gavin Adams.
Junior Birdmen of America: um dos muitos clubes de aviação para meninos criados na década de 1930 (esse em particular foi criado pela cadeia de jornais de William Hearst); é usado como termo pejorativo para associações nacionais de jovens que buscam a conformação e a identificação pessoal com os ideais do grupo. 7 Burguesia: “classe média” (francês); usado como termo pejorativo para aqueles cujos valores são conformistas e materialistas. 8 Crazy Horse: líder da resistência do povo Lakota contra o governo Americano, na segunda metade do séc. XIX. Denmark Ves[s]ey: líder negro livre de uma revolta de escravos na Carolina do Sul, 1822. Patrice Lumumba: líder anti-colonial no Congo Belga e mais tarde primeiro ministro da República Democrática do Congo, no início da década de 1960. 6
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bibliotecacrítica
Treze questões aos organizadores e participantes do Festival de Avignon O Festival de Avignon se apresenta este ano como um “Festival diferente dos outros”: nele se convida e se programa a contestação no seio dos Encontros do Teatro e, ao mesmo tempo que uma violenta campanha de imprensa toma como alvo o grupo Living Theater, convidado oficial, inúmeros jovens são, desde já, abordados e controlados pela polícia nas ruas da cidade. A ambiguidade reina. Nestas condições nos pareceu útil propor para a reflexão dos participantes e dos organizadores – porque é óbvio que o debate abarca daqui por diante todos aqueles que se sentem atingidos pelo impacto que os “eventos de maio” tiveram e continuam a ter sobre o funcionamento “normal” das instituições, sejam elas culturais ou políticas – as seguintes questões:
10
1
Apoiando-se sobre investigações sociológicas, al-
radical da própria existência da socie-
guns deploram que o Festival de Avignon seja bur-
dade do espetáculo? Toda contestação
guês: ou seja, que somente uma porcentagem derri-
integrada no circuito oficial ou comer-
sória de trabalhadores o frequente. De fato, seu
cial não é a fortiori institucionalizada,
público é em grande maioria composto por turistas e
castrada e utilizada pelo Poder? En-
membros das camadas médias ou dirigentes, como é
quanto a infraestrutra alienante e re-
o caso, aliás, das Casas de Cultura. Trata-se, portan-
pressiva sobre a qual repousa a cultura
to, de uma cultura de classe sobre a qual os proble-
não for ANTES DE TUDO globalmen-
mas políticos e econômicos dos trabalhadores ur-
te contestada, será que não se trata se-
banos ou rurais têm pouca ou nenhuma incidência.
não de uma contestação ela mesma
Ao estabelecer uma relação mercantil com seu pú-
alienada, limitada, simbólica?
blico, os produtores e os proprietários desta cultura servem automaticamente aos interesses de uma categoria social em detrimento de uma outra; mas isto não é tudo, a cultura industrial, seja ela de “direita” ou de “esquerda”, age no sentido da contrarrevolução permanente pois ela transforma necessariamente
oficiosa) que exercem seu monopólio sobre os meios de criação e de difusão não reforçam o aparelho repressivo do Estado policial, da mesma forma que um gover-
sua clientela em uma massa de robôs amorfos pron-
no que reocupa a Sorbonne ou o Teatro
tos para o consumo cultural garantido e para se dei-
do Odéon usando o CRS [tropa de cho-
xar enganar com os lazeres organizados. A universi-
que] e a Polícia como intermediários?
dade em crise e a cultura em crise são indissociáveis do capitalismo. Elas desaparecerão com ele. O que se pode fazer para apressar este desaparecimento?
2
3
Os controladores da cultura (oficial e
A contestação efetiva da função coercitiva assumida pela cultura no marco legal da sociedade de exploração não começaria pelo questionamento direto e
4
Em toda perspectiva que não seja conservadora e reformista, o papel representado pelos intermediários e controladores
(produtores,
diretores
de
museus, teatros, galerias, editoras, ministros da cultura etc.) não deve ser pura
5
e simplesmente abolido? Toda concep-
ma? Os intelectuais e os artistas (atores, pintores,
ção de cultura enquanto domínio reser-
escritores etc.) que pegaram o trem em movimento
vado a especialistas remunerados não é,
do “movimento de maio” e que se contentaram em
de fato, repressiva e autoritária?
expressar reivindicações corporativas quantitativas não exploraram, assim, a dinâmica deste movimen-
de criação coletiva e permanente – não reservado a uma elite – não colocaria a priori a necessidade de acabar com todo divórcio entre “a arte” e “a vida”, toda distinção entre as atividades artísticas e as atividades políticas e sociais cotidianas? O ato criador estando enfim livre da censura que o anula? O inconsciente enfim libertado do regime policial que o nega?
6
A cultura industrial, assim como a universidade burguesa, não constitui uma cortina de fumaça destinada a tornar impossível e a interditar toda tomada de consciência e toda atividade política libertadora? O teatro, seja convencional ou de vanguarda, não veicula esta interdição pelo fato de substituir a ação direta pela representação? O teatro ideológico, em particular, não importa quais sejam suas intenções e seu “conteúdo”, não é responsável pela situação alienante e subdesenvolvente (sic) em que coloca seus espectadores?
7 8
to com os mesmos fins que o Estado e os partidos?
Todo eventual início de um processo
O teatro e o cinema de grande consumo não apoiam o aparelho repressivo da classe dirigente, uma vez que controlam e determinam a imagem que os consumidores fazem de si próprios? É possível contestar eficazmente o sistema capitalista sem colocar pri-
9 10 11 12 13
As diferentes forças da ordem (da guarda municipal à Polícia Federal) que desempenharam sobre o teatro, com as operações de maio, o papel que se sabe, intervirão na crise da cultura da mesma forma que na crise universitária, ou seja, com gás asfixiante, bombas, cassetetes, perseguições, prisões, processos etc.? Como, agora que em Avignon a indústria do espetáculo se integrou à indústria do turismo a ponto de se submeter completamente, é possível pretender a uma real liberdade de expressão e de ação? O condicionamento é mais tolerável quando ele usa uma máscara artística? Quando, em todo o mundo, uma importante corrente criadora age há vários anos no sentido do teatro de rua, gratuito e livre, preocupado prioritariamente com a ação política, como podemos ao mesmo tempo lhe proibir as ruas de Avignon e pretender organizar um “Festival da Contestação”? Quais seriam os problemas colocados pela constituição, durante o Festival de Avignon, de um duplo poder face àquele do Estado e das “autoridades”, que responderia a um desejo coletivo e que não se limitasse às tagarelices entre especialistas da cultura preocupados em conservar seus privilégios? Neste período de refluxo e de repressão, a questão que se coloca para nós não é, ainda e sempre, aquela do exercício por TODOS do direito humano em dispor psiquicamente e socialmente de si próprio? Comitê de Ação, julho de 1968.
meiro em questão o papel que desempenhamos nós mesmos neste siste-
Tradução de Fernando Kinas.
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Fernanda Azevedo na peça Morro como um paĂs, Kiwi Companhia de Teatro, 2013
foto fernando kinas
poemasquejandos
D. Clélia, minha velha, Vou te fazer um pedido, minha senhora, que parece bastante louco, mas tem suas razões de ser. Eu queria receber de você um presente de natal. Se desse prá chegar no Natal, seria tão bom, velha. Eu quero duas manguinhas, daquelas manguinhas coco, duas manguinhas não pesam muito, você põe num embrulho bem empacotadas, primeiro a senhora se informa por outras pessoas bem informadas se se pode mandar frutas por avião prá Alemanha, porque muitas leis de saúde internacional impedem isso, pela transmissão de doenças, a senhora sabe, nós somos pobres e pobre tem muito bicho. Se for proibido (o que é bem provável) a senhora despista bem as manguinhas, fantasia elas de outra coisa, mas eu queria as manguinhas e a senhora sabe como que eu sou quando tou querendo uma coisa, né? Vou botar a carta expressa hoje, dia 15. Ela deve chegar aí no dia 18. Então a senhora corre e compra (ou busca) as mangas e vê o jeito melhor de enviar. Se não chega no Natal, chega no Ano Novo, já tá bom. A senhora pode cobrir elas com pé-de-moleque, é um bom despiste, e pé-de-moleque também é muito bom. Pensei em te pedir isso porque, como você já mandou as florzinhas, faria por mim uma loucura assim, nénão? Mãe, tu me desculpa porque eu não tenho um presente prá você. Também te mandar chucrute alemão seria de bastante mau gosto. Os kuchen daqui (bolos e tortas) são bons, mas não tanto que se queira mandar por avião prá você, que conhece o segredo do biscoito de polvilho e do doce de leite. Mãe, um Natalzão procês. Dorinha
Maria Auxiliadora Lara Barcelos (Dorinha ou Dodora) foi militante política da VAR-Palmares e lutou contra a ditadura civil-militar brasileira. Detida e vítima de torturas, foi uma das presas políticas trocadas pelo embaixador suíço, sequestrado em 1970. Banida para o Chile, Dorinha viveu no México e em vários países europeus. Suicidou-se em Berlim, em 1976.
13
poemasquejandos
Graciliano Ramos Falo somente com o que falo: com as mesmas vinte palavras girando ao redor do sol que as limpa do que não é faca: de toda uma crosta viscosa, resto de janta abaianada, que fica na lâmina e cega seu gosto da cicatriz clara. Falo somente do que falo: do seco e de suas paisagens, Nordestes, debaixo de um sol ali do mais quente vinagre: que reduz tudo ao espinhaço, 14
cresta o simplesmente folhagem, folha prolixa, folharada, onde possa esconder-se a fraude. Falo somente por quem falo: por quem existe nesses climas condicionados pelo sol, pelo gavião e outras rapinas: e onde estão os solos inertes de tantas condições caatinga em que só cabe cultivar o que é sinônimo da míngua. Falo somente para quem falo: quem padece sono de morto e precisa um despertador acre, como o sol sobre o olho: que é quando o sol é estridente, a contrapelo, imperioso, e bate nas pálpebras como se bate numa porta a socos. João Cabral de Melo Neto, Serial (1959-1961)
Europas Schande Ein Gedicht von Günter Grass (2012) Dem Chaos nah, weil dem Markt nicht gerecht, bist fern Du dem Land, das die Wiege Dir lieh. Was mit der Seele gesucht, gefunden Dir galt, wird abgetan nun, unter Schrottwert taxiert. Als Schuldner nackt an den Pranger gestellt, leidet ein Land, dem Dank zu schulden Dir Redensart war.
Vergonha da Europa
Zur Armut verurteiltes Land, dessen Reichtum gepflegt Museen schmückt: von Dir gehütete Beute.
Um poema de Günter Grass (2012)
Die mit der Waffen Gewalt das inselgesegnete Land heimgesucht, trugen zur Uniform Hölderlin im Tornister. Kaum noch geduldetes Land, dessen Obristen von Dir einst als Bündnispartner geduldet wurden. Rechtloses Land, dem der Rechthaber Macht den Gürtel enger und enger schnallt. Dir trotzend trägt Antigone Schwarz und landesweit kleidet Trauer das Volk, dessen Gast Du gewesen. Außer Landes jedoch hat dem Krösus verwandtes Gefolge alles, was gülden glänzt gehortet in Deinen Tresoren. Sauf endlich, sauf! schreien der Kommissare Claqueure, doch zornig gibt Sokrates Dir den Becher randvoll zurück. Verfluchen im Chor, was eigen Dir ist, werden die Götter, deren Olymp zu enteignen Dein Wille verlangt. Geistlos verkümmern wirst Du ohne das Land, dessen Geist Dich, Europa, erdachte.
À beira do caos, porque não conforme com o mercado, Já não és o país de berço do teu legado. O que buscado com a alma, como achado te valia, Agora pois é depreciado, com valor do entulho mal reputado. Como devedor exposto nu ao pelourinho, padece um país A quem dever tributos, era o discurso dos brancos colarinhos. País à pobreza condenado, cuja riqueza De modo cultivado os museus decora: o botim por ti vigiado. Os que a terra por ilhas abençoada assaltaram pela violência boçal Com suas suásticas traziam Hölderlin no bornal. Mal aturado país, cujos coronéis outrora por ti Como parceiros da aliança foram consentidos. Terra sem lei, a quem o sabe-tudo, o Poder, Aperta teu cinto, a torcer e torcer. Apesar de ti, Antígone se veste de preto, e país afora o povo, cujo hóspede foste tu, traja luto e chora. Já fora do país, tudo o que reluz como o ouro O séquito de Creso acoitou em baús do teu tesouro. Bebe, afoga-te de uma vez! - berra a claque dos comissários, Mas cheio até a borda, Sócrates devolve-te o cálice, encolerizado. Amaldiçoar o que te é próprio os deuses irão De cujo Olimpo tua vontade pede a desapropriação. Fenecerás de espírito, da terra destituída Por cuja alma tu, Europa, foste concebida
Günter Grass Tradução de Frederico Füllgraf, com alteração do título
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poemasquejandos
El otro Nosotros, los sobrevivientes, ¿A quiénes debemos la sobrevida? ¿Quién se murió por mí en la ergástula, Quién recibió la bala mía, La para mí en su corazón? ¿Sobre qué muerto estoy yo vivo, Sus huesos quedando en los míos, Los ojos que le arrancaron, viendo Por la mirada de mi cara, Y la mano que no es su mano, Que no es ya tampoco la mía, Escribiendo palabras rotas Donde él no está, en la sobrevida?
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O outro Nós, os sobreviventes, A quem devemos a sobrevida? Quem morreu por mim na masmorra, Quem recebeu a minha bala, A que era para mim em seu coração? Sobre qual morto eu estou vivo, Seus ossos jazem nos meus, Os olhos que lhe arrancaram, vendo Pelo olhar do meu rosto, E a mão que não é sua mão, Que também já não é a minha, Escrevendo palavras rotas Onde ele não está, na sobrevida?
Roberto Fernández Retamar Vuelta de la antigua esperanza, 1959 (o poema El otro foi escrito em 1º de janeiro de 1959, em Cuba) Tradução de Alai Garcia Diniz e Luizete Guimarães Barros
Um, nenhum e cem mil Sempre que nos acontece descobrir algo que supostamente os outros nunca viram, não vamos logo correndo chamar alguém para vê-lo conosco? - Oh, meu Deus, o que é? Quando a visão dos outros não nos ajuda a constituir em nós mesmos a realidade daquilo que vemos, nossos olhos não sabem mais aquilo que veem e a nossa consciência se perde, porque isso que consideramos a nossa coisa mais íntima, a consciência, quer apenas dizer os outros em nós, e não podemos nos sentir sozinhos. Luigi Pirandello Um, nenhum e cem mil, 1926 Tradução de Maurício Santana Dias
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dossiĂŞkiwi
Nós não estamos em paz
Anotações sobre Morro como um país
Houve um tempo, no Brasil e em muitos países da América Latina, em que as pessoas eram tratadas como coisas. Tempo em que homens e mulheres eram torturados, humilhados e feitos reféns de governos autoritários. Neste tempo houve a prática sistemática, institucional, de roubos, extorsões, censuras, ataques a bomba, cassações, perseguições, estupros, desaparecimentos forçados e assassinatos. Em alguns países à lista de horrores se acrescentava o rapto de bebês. Em todos eles o governo aplicava, em nome do Estado, a política do terror. Costuma-se dizer que esses países viviam regimes de exceção, parêntesis totalitários que interrompiam e manchavam o fluxo democrático da história. Na verdade, a situação era mais complexa. Não que ali faltassem ferozes ditaduras, a questão é que não havia interrupções tão absolutas do chamado “estado democrático de direito”, porque os métodos dessas ditaduras, planejadas e administradas por civis e militares, escapavam dos períodos históricos estritos em que elas evoluíam. Ou seja, a violência institucional atual – cujas ações das polícias militar e civil constituem a face mais visível – comprova a existência contínua de um modelo desigual, brutal e excludente de sociedade. Não são desconhecidas as humilhações, torturas e mortes, quase sempre impunes, cometidas contra parte da população pobre, jovem e negra, nas penitenciárias e nas periferias das grandes cidades. Ou os repetidos assassinatos no campo, que relembram tragicamente os massacres de Eldorado dos Carajás, Felisburgo e tantos outros. Os esquadrões da morte de ontem são os ninjas de hoje. Os drones atuais, apesar da pretendida assepsia (não existe “guerra limpa”), lembram os “voos da morte” do passado. O Instituto Millenium repete o IPES. Os aparatos de repressão ainda não foram completamente desmontados. Instrumentos ideológicos e jurídicos seguem em vigência. Nossa lei de anistia, aprovada em plena ditadura, ignora crimes de lesa-humanidade, protegendo agentes do Estado. Dessa realidade se deduz a existência de um “estado de exceção permanente”, de um regime “democrático” que só pode funcionar amparado na exceção. Para encurtar, o modelo do capital, da mercadoria, do lucro e da competição exige a exceção como regra. Descoberta que Marx, na política e Brecht, no teatro, demonstraram exemplarmente. Daí também se deduz que há uma
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dossiêkiwi
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repetição de estratégias autoritárias e modelos de ex-
Não há paz possível sem reparação e justiça. Não há
ploração. Moderniza-se para conservar. Difunde-se
paz possível no esquecimento. Os mortos continuam
cada vez mais notícias para informar menos. Prega-
respirando, ou, como diz Mauricio Rosencof, mili-
se a paz para que a barbárie continue. E por aí vai.
tante tupamaro que perdeu os parentes em campos
A figura musical do cânone é uma metáfora des-
de concentração e guetos alemães, “eu sou os que fo-
tas repetições, desses retornos constantes do mes-
ram”. A separação entre passado, presente e futuro
mo, embora com aparência de novo. Outra metáfora
impede a operação indispensável de historicizar a
são esses relógios de barbearia, cujos mostradores e
história das sociedades. Compreender o genocídio
mecanismos invertidos mostram um tempo que
ruandês ajuda a desfazer fortes preconceitos. Foram a
avança recuando. O importante a reter é que a estru-
tecnociência, uma certa racionalidade europeia
tura exige a repetição, o modelo funciona pela varia-
transplantada pelos colonizadores belgas e os inte-
ção em torno do mesmo tema. É preciso, sempre, re-
resses geopolíticos habituais que permitiram a ma-
munerar o capital. Privilégios precisam ser mantidos.
tança a golpes de machete. O holocausto nazista e o
Renova-se para que o principal permaneça. Avança-
massacre ruandês são filhos dos mesmos pais. Um na
se para recuar. Este é um dos nossos temas. E nossa
Europa desenvolvida, outro na África espoliada.
forma. Trata-se de, como em outros trabalhos da
Fomos também à Grécia dos coronéis. Estes mili-
Companhia (O bom selvagem, Tudo o que você sabe
tares, associados à elite econômica do país, mergu-
está errado, Teatro/mercadoria, Carne), usar as ferra-
lharam o “berço da democracia” em uma brutal dita-
mentas da arte para analisar os mecanismos da fabri-
dura que se estendeu entre 1967 e 1974. Foram anos
cação social, para compreender e, de alguma forma,
em que “nenhuma mulher deu à luz, até que uma ge-
interferir criticamente nos processos de formação e
ração inteira acabou” (Dimitris Dimitriadis).
transmissão da experiência coletiva.
O diagnóstico deste enorme conjunto de fatos, in-
Nesta tarefa é preciso mirar o pequeno e o grande.
teresses políticos e econômicos, variantes históricas e
Nosso tema-forma ambiciona lançar alguma luz so-
culturais, implicações filosóficas, é forçosamente in-
bre a dor de cada um daqueles que foram tratados
completo. O que está em cena em Morro como um
como coisas, que foram obrigados a conversar com as
país é incapaz de traduzir a riqueza das pesquisas e do
paredes e beber a própria urina, que perderam seus
que tem sido produzido sobre os temas em questão.
empregos e seu país, que foram privados da dignidade
Há muito para falar sobre greves operárias (como as
e até das cores, que suprimiram suas vidas diante da
de Contagem e Osasco em 1968), movimento estu-
violência extrema; e quer também lançar uma luz so-
dantil, solidariedade internacional, organizações po-
bre pressupostos e princípios que regem a brutalidade
pulares. E também sobre a Operação Condor, a ideo-
escondida sob nomes sedutores (agora estão na moda:
logia da reconciliação e a teoria dos dois demônios, a
sustentabilidade, economia criativa, governabilidade,
Triple A, o CCC, Guantánamo, a política do medo...
responsabilidade social, capitalismo humanizado…). É
Alguns aspectos estão apenas esboçados. O papel
um projeto ambicioso porque reúne o eu e o mundo,
da religião, especialmente da igreja católica, é um de-
porque alia o privado e o público, o íntimo e o coleti-
les. Suas cúpulas, no Brasil de Castelo Branco, na Ar-
vo. Nem sempre é fácil entender a relação entre os
gentina de Videla ou no Chile de Pinochet, foram pró-
Chicago boys e a missa dominical. Ou entre o neoli-
ximas, muito próximas do terrorismo de Estado.
beralismo e a defesa da civilização cristã ocidental.
Embora existam diferenças de comportamento políti-
Este projeto nos levou até Ruanda, país que sufo-
co entre as igrejas católicas do cone sul, suas cúpulas
cou no sangue de quase um milhão de mortos em
foram, no mínimo, ambíguas em relação aos regimes
1994. Uma das frases ouvidas durante a reconstrução
ditatoriais que se instalaram em seus respectivos paí-
dessa nação africana foi: “Nós não estamos em paz!”.
ses. Isto não diminui a importância de religiosos e se-
Material de divulgação da peça Morro como um país, Kiwi Companhia de Teatro, 2013
tores católicos (caso da Teologia da Libertação) que
CNBB de 27 de maio de 1964 é inequívoca: “Agradece-
foram, desde a primeira hora, críticos ao golpe e à di-
mos aos militares, que com grave risco de suas vidas
tadura no Brasil. Muitos deles desenvolveram ações
se levantaram em nome dos supremos interesses da
efetivas contra a violência do Estado. A Ação Católica,
Nação e gratos somos a quantos concorreram para li-
especialmente através das organizações de jovens (JEC,
bertar-nos do abismo iminente”. As reuniões secretas
JOC, JUC…), mais tarde as CEB’s e a CPT, entre outras,
da bipartite (conversas de alto escalão reunindo o go-
desempenharam um papel na luta contra a ditadura
verno militar e a igreja católica) e o comportamento
que não pode ser ignorado. Nada disso, entretanto,
aviltante de Agnelo Rossi, arcebispo de São Paulo até
isenta de responsabilidade a cúpula da igreja católica.
1970, são reveladores das posições da igreja neste pe-
A própria dinâmica da ditadura provocou evoluções no
ríodo. O papel conciliador e amortecedor das contes-
seio da igreja, como o advento do AI-5 em dezembro
tações sociais desempenhado pela cúpula da igreja se
de 1968. O documento dos bispos de maio de 1970 e a
choca com a rebeldia de religiosos (e leigos) que mos-
reação (correta, mas evidentemente corporativa) de-
traram-se críticos às injustiças sociais e à ditadura. No
pois do assassinato do padre Antônio Henrique, em
entanto, é possível dizer que a atuação crítica e corajo-
Pernambuco, atestam as tentativas de correção de rota.
sa contra a ditadura destes militantes não tenha sido,
Neste tema não se pode ignorar a pressão institucional
como regra, resultado do pertencimento à igreja, mas
exercida pela cúria romana, assim como não se pode
uma tomada de posição apesar da cúpula da igreja da
ignorar o caráter globalmente autoritário da igreja, que
qual faziam parte.
historicamente lutou contra o “comunismo ateu” em
A hesitação de artistas, ou mesmo a franca ade-
nome da “civilização cristã ocidental”. A mensagem da
são ao arbítrio, é outro tema relevante. As relações
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dossiêkiwi entre a arte e a política mostram a íntima associação
circulação. Estes mesmos industriais e empresários –
entre indústria cultural, construção de consenso e
seus filhos, netos ou herdeiros –, refestelam-se agora
controle social. O debate sobre o tropicalismo é um
com os megaeventos esportivos que prometem a feli-
verbete importante do dicionário crítico que conti-
cidade e o gozo supremos para aqueles que, pela ótica
nua sendo escrito sobre a cultura e o regime ditato-
da Casa Grande, só precisam de circo e algum pão. São
rial (o texto de Roberto Schwarz, “Verdade tropical:
os sempiternos donos do capital, da terra e da renda
um percurso de nosso tempo”, é um dos exemplos).
que continuam se empapuçando, garantindo demo-
Daí as referências que fizemos no trabalho cênico à
cracias de baixa intensidade que permitem, entre ou-
Carmen Miranda, Rolling Stones e Caetano Veloso, e
tros escândalos, os megalucros das obras superfatura-
também a Taiguara e às conhecidas músicas ufanis-
das. A copa de 1978 na Argentina foi o laboratório a
tas da época do “milagre”.
não ser esquecido, incluindo a bênção enviada pelo
Também não se pode negligenciar o papel desem-
Papa Paulo VI e os elogios cínicos de Kissinger e Ha-
penhado por banqueiros, latifundiários, empreiteiros e
velange. Embora já a Olimpíada de 1936, em Berlim,
grandes empresários, inclusive da mídia, que não pou-
tenha deixado seus ensinamentos. No entanto, a polí-
param elogios e recursos na sustentação das ditaduras.
tica do consenso e do esquecimento opera com efici-
Reuniões de arrecadação de fundos, onde se “passava o
ência, pelo menos no Brasil: arquivos continuam se-
quepe”, eram comuns. Antônio Delfim Netto, que ser-
cretos e documentos são sonegados; escolas públicas,
viu com fidelidade canina aos ditadores, organizou al-
praças e viadutos ostentam nomes de ditadores e tor-
guns destes encontros. Hoje ele desfila seu vasto co-
turadores; assassinos são promovidos a generais nos
nhecimento nas páginas de revistas e jornais de grande
dias 31 de março; a Lei de Anistia não foi revista; cor-
C11 H17 N2 O2 S Na
eu sou Passado os que abandonado jamais se torna mas eu acho que tem que ser
barbaridade
Esse troço de matar é uma
foram Passado
Se não dançam dançam todos
não dança ninguém A justiça é o nós não
reverso de todas as leis
What can a poor boy
do Except to sing for a
rock’n’roll band
Disseram que eu voltei americanizada Capa do programa da peça Morro como um país, Kiwi Companhia de Teatro, 2013
pos não foram restituídos; apoiadores do regime autoritário posam de democratas. É possível que a arte seja um espaço de lucidez temperada pela imaginação. Por isso o teatro que reivindicamos, documental e poético, cruzando estética e política, é também ele tema do trabalho. O “teatro carcelario” das prisões argentinas, citado em uma das últimas cenas, mostra, justamente, que a “imaginação incomoda muita gente” (frase da militante política Maria Auxiliadora Lara Barcelos, presa e torturada pela ditadura, que se suicidou em 1976). Provam isso os filmes de Solanas e Costa-Gavras, os textos de Galeano e Edward Bond, a música de Nono e Violeta Parra, os murais de Rivera, as montagens de Meierhold. Todos foram, ou são, antigos combatentes. Aos novos resta arregaçar as mangas porque o consórcio do poder continua em atividade e, portanto, há muito o que fazer. Para que não se esqueça, para que não se repita, para inventar outros caminhos. Lembrando Antígona: “Passado abandonado, jamais se torna passado”. Fernando Kinas
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Morro como um país
Cânone sobre a Memória, a Verdade e a Justiça. Contra a fabricação do consenso e a política do esquecimento. Roteiro de Fernando Kinas, versão de trabalho nº 5 (fevereiro de 2013).
dossiêkiwi
foto enrique shore
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Sótão da Escola de Mecânica da Armada, em Buenos Aires, onde cerca de 5 mil militantes políticos foram presos e torturados pela última ditadura argentina (1976-1983), a maior parte deles foi assassinada nos voos da morte
No espaço cênico há um manequim articulado com 1,80 m, uma bateria (chimbal, prato de condução, caixa, surdo, tom-tom, bumbo), uma área que funciona como camarim (espelho, luzes, maquiagem, figurino), uma cadeira, um aquário ou tanque com água e um refletor com tripé. No fundo, um relógio de barbearia com mostrador e mecanismo invertidos. Há também no espaço quatro porta-chapéus, uma bancada para objetos e uma área demarcada no chão medindo cerca de 1,50 x 1,00. O manequim será usado como figura de poder, autoridade e violência. A bateria, como espaço da indústria do entretenimento. O tempo avança recuando. Na entrada do público são projetadas imagens com áudio de ataques norte-americanos no Iraque, especialmente as que mostram “danos colaterais”.
Cena 1 • Apresentação
Cena 3 • Fase e defasagem
[A atriz está vestida com vinte camisetas sobrepostas,
[Música Piano Phase de Steve Reich. A atriz se apro-
nelas estão estampadas fotografias de vítimas da di-
xima do manequim. Ela faz o exercício dos 12 tempos,
tadura civil-militar brasileira (1964-1985) e das
baseado na biomecânica de Meierhold, e modifica al-
chacinas de maio de 2006, no Estado de São Paulo]
gumas vezes a posição dos braços do manequim]
[Termômetro na boca] Boa noite. Meu nome é Fernanda Azevedo. Eu nasci em 1973, na cidade do Rio de Janeiro. Há sete anos eu
Cena 4 • Nada a fazer. Distopia crítica [Atriz na bateria]
moro em São Paulo. Eu trabalho, quando possível, como atriz. Eu tenho uma sobrinha e um sobrinho
Nada a fazer.
pequenos. Eles ainda não sabem o que significa a palavra ditadura. [Olha para o relógio na parede] São 21
[Atriz coloca um fone de ouvido e acompanha a mú-
horas e 12 minutos. [Tira o termômetro] A minha
sica Street Fighting Man, versão de Rod Stewart.
temperatura agora é de 36,7 graus.
Retira o fone e inicia o texto, baseado em The site, de Edward Bond]
Cena 2 • Escorrer
Sem justiça nossa fome cresce até que devoremos a
[Música Come Out de Steve Reich (1966). “I had to,
terra.
like, open the bruise up and let some of the bruise
Os rios secaram – os mares viraram esgotos onde
blood come out to show them.”]
ratos nadavam e comiam os peixes Tempestades varreram montanhas – arrancaram as
As imagens que vocês acabaram de assistir são de um
raízes das florestas – as árvores agarraram a terra com
ataque dos Estados Unidos em Nova Bagdá, no Iraque,
suas garras – cidades foram reduzidas a trincheiras
em 2007. O saldo deste ataque foi doze civis assassina-
de destroços onde canibais criavam os filhos para os
dos – pessoas que estavam desarmadas – e duas crian-
comer – e a tempestade varreu a poeira humana em
ças feridas. O exército informou inicialmente que todos
colunas e gemeu com a fome que havia neles
eram insurgentes e que foram mortos em combate.
Naquele dia todas as consciências do mundo foram
Décadas antes, em 1964 – eu, Fernanda, que nasci
esvaziadas – apagadas
em 1973, tinha menos nove anos – o jovem negro
O vazio durou um segundo ou horas ou sempre
norte-americano Daniel Hamm foi preso pela polícia
Quem pode dizer quanto durou quando não há pas-
numa rebelião no Harlem. Ele disse o seguinte:
sado – nenhum lugar – nenhuma origem? Quando o medo prende o pensamento em um mo-
[Música Come Out de Steve Reich (1966). “I had to,
mento e a comida cai da boca aberta e a fome aumenta?
like, open the bruise up and let some of the bruise
Quanto mais eles comiam mais fome tinham e mais
blood come out to show them.”]
medo Não havia passado – nenhum futuro – nenhum lugar – nenhuma origem
Eu tive que abrir um ferimento que eles tinham me
Os mortos não precisavam do seu esqueleto e no mo-
causado e deixar o sangue escorrer para eles verem.
mento do vazio os vivos não precisavam da sua carne
Eles eram a lei, a ordem, o Estado, a polícia.
A humanidade morreu Então construíram-se as prisões
[Música Come Out de Steve Reich. Tira uma a uma
Então as casas foram derrubadas – não por raiva mas
as camisetas]
por serem um impedimento para as prisões
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dossiêkiwi A administração administrava em lugar nenhum e as
[Atriz volta a colocar o fone de ouvido. A música re-
pessoas eram um estorvo para a administração – um
toma e a atriz toca a bateria]
inconveniente para o exército
[Atriz tira o fone e deixa a bateria, antes, porém, diz
Os mortos foram encerrados em um vasto mega su-
o texto final]
búrbio sem centro – eles uivavam como forma de comunicação
O que pode fazer uma pobre moça a não ser tocar
Os famintos foram trancados numa grande cidade
numa banda de rock?
-prisão – como castigo eram obrigados a rir Os ricos se fecharam em um gueto – eles brincavam
[Final da cena e da música]
com brinquedos que os ensinavam a odiar – eles eram mandarins da truculência
Cena 5 • Morro como um país
A imaginação é mais lógica do que a razão Quando a razão destrói a imaginação nós enlouque-
[Música Variações sobre Wilhelmus Van Nassou-
cemos
wen. Jacob Van Eyck, a partir de Philippa de Marnix,
A imaginação cria a loucura ou a humanidade
ca. 1595]
Nós partimos em uma direção e viajamos na outra
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É como se passássemos nossa vida de costas [aponta
Naquele ano, nenhuma mulher deu à luz. Foi assim
para o relógio na parede]
nos anos seguintes, até que uma geração inteira aca-
Nós escalamos um abismo e sabemos que devemos cair
bou, sem que ao mundo viesse uma nova geração.
Nossos filhos são nossa morte
(...) À exceção de algumas pouco numerosas reações
Como podemos viver nesse paradoxo? Como pode-
violentas a esta calamidade devastadora, que muitos,
mos transformar a catástrofe em liberdade? Como
mais tarde, designaram por Idade Média da Mátria
podemos transformar o crime em justiça? Como po-
[...] todos os outros, habituados à contenção, refrea-
demos reverter todas as leis? É fácil: o reverso de
vam o seu desespero e só em privado davam voz às
todas as leis é a justiça
explosões do seu terror, que os fazia, à noite, despe-
Um dia a humanidade morreu
daçar as almofadas a dentadas, escrever cartas furio-
Não havia futuro – nenhum lugar – nenhuma origem
sas e incoerentes a Deus ou ao próprio mal, implo-
Ninguém poderia cruzar consigo mesmo descendo a
rando a ele para se retirar ou ameaçando atacá-lo
rua
frontalmente como São Jorge, ou ficar horas inteiras
A água não tinha reflexo
imóveis e impassíveis, murmurando antigas canções
Todos os que são ou foram ou serão estão no portão
nostálgicas, roendo raivosamente as unhas ou golpe-
[gateway]
ando-se profundamente com uma lâmina em pontos
Eles estão em você e você está neles – os nus e que-
do corpo escondidos e sensíveis, até correr o sangue
brados e inteiros
necessário para satisfazer a necessidade vital de sa-
A fome deles é a sua fome e a sua fome é a deles
crifício humano ou de autopunição.
Se você não busca a justiça aqueles que virão depois de
Porque a guerra que, com breves intervalos, engana-
você carregarão a sua dor e morrerão pelas suas feridas
doras tréguas, durava há mais de mil anos, tinha tido,
E então você precisa carregar a dor deles ou morrer
nos últimos meses, uma virada decisiva. E parecia
de fome
encaminhar-se, aceleradamente, para o seu fatal
A fome de justiça nos faz humanos
desfecho. Como a quase póstuma recuperação, por
A justiça é o reverso de todas as leis
um lapso de tempo imprevisível, de uma doença in-
A justiça é o reverso de todas as leis
curável, que, no entanto, se declara repentinamente em todo o território devastado do abusado corpo,
arrancando a carne dos ossos, numa convulsão se-
transportadas como relíquias de santos muito anti-
melhante a uma total demência orgânica das articu-
gos e anônimos no teto dos carros, em vez de levan-
lações da máquina humana.
tarem a mão para fazerem o sinal da cruz, ouvindo os
Foi dito que de um momento para o outro (embora este
apelos angustiados do Presidente da República, cos-
processo tenha durado séculos) uma mudança radical e
pem na palma das mãos e fazem, todas juntas, aba-
irreversível se tinha produzido, o que foi confirmado
nando a cabeça, com ar de conhecedoras, o gesto que
pelo discurso do Presidente da República – em tom
os homens fazem, pequenos ou grandes, com a mão
grave e supostamente imponente (um ex-imperador
direita, para designar alguém a quem as punhetas
mostrando, piolhento e cheio de arrogância, a sua ca-
acabaram com o cérebro.
bana em ruínas que ele designa como o seu Imperium). Aqueles que ouviram o discurso presidencial (porque
[Pausa]
não foram poucos os que mudaram de canal), lançaram os piores insultos ao presidente, ao seu discurso
(Nesses momentos, nada era mais vago do que a pala-
e ao país, incitando até as próprias crianças a repeti-
vra esperança, nada mais obscuro do que o seu signifi-
rem as injúrias em cadência, batendo palmas todas
cado); a súbita sensação de asfixia, de impasse, de ar-
juntas. Velhas que tinham vivido, vezes sem conta,
madilha, de contração, de cerco, de sufocação, fez com
acontecimentos desse gênero, que tinham vivido
que as populações, as que tinham ficado nas cidades,
massacres, cidades tomadas de assalto, êxodos, inva-
bem como as que tinham invadido todas as passagens
sões de toda a espécie de bárbaros ou de civilizados,
para as montanhas, rodopiassem interiormente sobre
perseguições e sujeições, cidades florescentes, flores-
elas mesmas, até ao momento em que todos sem ex-
tas densas e férteis planícies queimando-se como to-
ceção se imobilizaram e permaneceram à espera.
chas, sem que nada do labor de gerações e gerações
Quem não viu as pessoas morrerem nas ruas marte-
fique de pé, moças violadas em casas em ruínas, dez e
ladas por uma mão invisível não pode compreender
vinte vezes numa hora, por soldados enfurecidos e
o que representa, o que é a morte de um país, tal
depois evisceradas à baioneta, bebês decapitados
como aquele que não sentiu o seu próprio corpo ine-
num instante por espadas ou metralhados à queima
xistente, desperdiçado, injustificado, insignificante,
-roupa nos braços das suas mães, famílias expulsas
indesejável, insaciado, a sua famosa força motora in-
dos seus lares e dizimadas por rajadas, em série, como
terrompida, quebrada, cortada pelo fogo intestino da
pardais [...] e rapazes com meio centímetro de pelo no
emoção. Mas também o fato de contemplar uma
peito, a ira de Zeus em toda a sua força concentrada
morte tão vasta como esta, coletiva, da nação, equi-
nos órgãos que provocam a mais potente exaltação
vale a esgotar toda a vida.
dos sentidos, que eram alinhados, em grupos de cin-
Era nessas horas que se efetuava para sempre a trans-
quenta, frente aos pelotões de fuzilamento, com o
missão de um ciclo histórico para outro, irremedia-
único objetivo de anular a semente da vida dentro de-
velmente. Pelo riso.
les e de as águas se tingirem de sangue como cravos
(...) E naquele ano em que nenhuma mulher deu à luz,
vermelhos, e homens enlouquecidos por insuportá-
em que os homens iam dois a dois pelas ruas e nos ca-
veis desgraças, negros de lágrimas, que corriam, aqui
fés, e escarravam no rosto uns dos outros como se cada
e ali, uivando como chacais e rasgando as suas faces
um escarrasse, contudo, no seu próprio rosto e depois
na vertigem implacável em que se revela este vazio
partiam abraçados e acasalavam entre eles, em porões
escaldante que é a vida, no pesadelo da transgressão
escuros ou em tépidas lavanderias, onde as mulheres
desse limite que a torna tão insuportável como um
frenéticas os não podiam encontrar, a epidemia da este-
punhado de brasas ardentes na boca, velhas que nem
rilidade bem cravada em suas entranhas. Foi nesse ano
elas mesmas sabiam dizer quantos anos tinham,
que ocorreu a maior parte das conspirações nas mais
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altas esferas do Estado, vendiam-se maços de deputa-
As palavras adquiriram uma intensidade sem prece-
dos, passavam, pavoneando-se, para o partido diame-
dente, a ponto de todo mundo refletir longamente
tralmente oposto, com o objetivo de satisfazer ambi-
antes de as escolher, porque algumas delas podiam
ções pessoais ou familiares [...] os patriotas e os
queimar a língua para sempre.
nacionalistas fanáticos punham fortunas inteiras em
A esterilidade das mulheres e a imaginação febril de
lugar seguro, no estrangeiro, com ajuda de regimes que
um povo inteiro, a falência definitiva da dignidade e
se espelhavam mutuamente e que alguns deles manti-
da integridade nacionais e o número incessantemen-
nham no poder pelo seu dinheiro e suas relações (...) Os
te crescente de doentes e de desesperados faziam
governos mudavam a uma velocidade vertiginosa numa
pensar (...) nestas palavras: “Este mal não se podia
sucessão de fracassos, de crimes e de inúmeras formas
descrever com palavras, porque estas dores ultrapas-
de impotência que levavam à beira da ruína espiritual,
savam as forças humanas”.
os partidários exasperados de políticos defuntos, reti-
Desta vez a ocupação duraria muito mais do que a
rando-os dos seus túmulos e erguendo-os nos caixões
resistência empenhada de tempos imemoriais, que
enlameados, passeavam-nos pelas ruas, reivindicando,
tinha alimentado lendas, contos, canções, epopeias,
com slogans extremistas, o seu regresso à vida política,
romances, bailados, trilogias e tetralogias teatrais... e
porque só eles podiam salvar o país do desaparecimento
agora tudo aquilo estava afundado, para sempre,
total, (...) intelectuais fanatizados, do alto de suas varan-
numa lama negra.
das, incitavam as multidões estupefatas a negar a vida,
O mapa das cidades foi redesenhado, tudo foi arrasa-
a não se alimentar a não ser de raízes, a reproduzirem-
do e depois reconstruído. A exploração do subsolo
se dormindo com estátuas mutiladas, num desvio sen-
passou para outras mãos. (...) O nome do país mudou.
timental e ideológico semelhante ao daquelas pessoas
O novo não lembrava em nada, o antigo (…)
que se esforçavam por intervir na escaldante realidade. Os assassinatos atingiram uma frequência, uma cruel-
[Pausa. Música Variações sobre Wilhelmus Van
dade inconcebíveis, as pessoas desapareciam para
Nassouwen. Jacob Van Eyck, a partir de Philippa de
sempre, durante a noite, e nunca mais ninguém ouvia
Marnix, ca. 1595. Atriz olha o relógio na parede que
falar delas, valas comuns foram abertas em cemitérios
segue imperturbavelmente recuando]
dos subúrbios das cidades, onde eram lançadas massas de corpos ceifados. Por todo o lado eram construídos
A ocupação, de fato, durou séculos. O tempo necessá-
pelotões de fuzilamento improvisados que disparavam
rio para que as tradicionais fronteiras do país desapa-
em nome da integridade nacional, da independência
recessem, absorvidas no seio da vasta reorganização
nacional, da grandeza da raça.
que, daqui para frente, recobriria todo o planeta – porque a língua deixou um dia, como se tinha projetado,
[Pausa]
de ser falada e pôs-se a existir como uma relíquia. Algumas delas descrevem a esterilidade das mulheres
As leis, suprimindo-se elas próprias, foram revoga-
desse ano. São as páginas de um capítulo onde se po-
das. As instituições foram invertidas, o seu exato
dem ler, sob o título “Testemunhos do Tempo da
oposto entrou em vigor.
Grande Derrota”, diversos documentos daquela época
Novos crimes de instinto foram criados, enquanto os
com os seus horrores. Se bem que elas permanecem
antigos, seculares, deixando de suscitar escárnio, fo-
totalmente inexploradas, ninguém empreende o seu
ram reconhecidos como suporte do Estado, tanto na
estudo científico – aceita-se o fato de que terminou
sua política interna como externa. (...) O crime tor-
de um modo bastante convincente para satisfazer to-
nou-se legal, constituindo-se, a partir daí, a pedra
talmente, pelo menos segundo os historiadores, as exi-
angular de qualquer manifestação pública.
gências da ciência. E isso basta para aqueles que veem
não quero ser este país. Este país é necrófilo, comedor de merda, gigolô, assassino. Eu quero ser a vida, eu quero viver, eu queria poder viver, eu seria feliz agora se eu quisesse viver... Mas este país não me deixa querer, não me deixa ser a vida, dar a vida. Como um câncer, devorou os meus seios, o meu cérebro, os meus intestinos, rolou todas as pedras nos meus rins e os devastou, conspurcou todas as fontes por onde devia correr o meu leite, reuniu toda a sua terra nas minhas veias e me apodreceu o sangue, se pôs inteiro no meu coração e o devastou a força de enfartes e de embolias. Os seus costumes demoliram-me os pulfoto bob sousa
mões, a sua história me fez tremer, da cabeça aos pés. Sua forma é de um ancinho que se crava nos meus Detalhe do cenário da peça Morro como um país, 2013
olhos, de uma enorme agulha que me perfura o crânio, de um rochedo pendurado na ponta dos meus cabelos que me carrega para um mar de lágrimas... e eu sinto sempre o seu jugo sobre a minha nuca, a minha língua está sempre atada pelo seu balbuciamento, tenho su-
na humanidade este fenômeno universal que produz
ores frios só de ver a sua vulgaridade...
círculos eternamente, ciclos que desde que se fechem
seu apego aos fantasmas, seus cadáveres, seus cai-
chegam para justificar o seu produtor. Nestes ciclos,
xões, os seus crimes... Este país é a nossa peste. Ele
sabemos bem, os gritos individuais não são ouvidos.
nos matará, nos liquidará. Como escapar? Ele bebe o
Detesto este país. Devorou-me as entranhas. Eu digo
nosso sangue. Não me deixa mais dormir, me roubou
a você, porque desejamos juntos que estas entranhas
o sono. Como eu vou viver sem sono?
fossem fecundas, e este desejo nos uniu durante noites e noites... e às outras horas do dia, quando um
[Pausa]
milagre, de súbito, nos fazia esquecer o terror que corria nas ruas como nas nossas veias... Os noticiá-
Todo o esperma de todos os homens da terra não po-
rios de pesadelos que nos impediam até de nos
deria reanimar este oco do meu corpo de onde come-
olharmos.... lidos por apresentadores completamente
ça a vida humana... você esvaziou toda a sua vida em
loucos... os uivos que se sobrepunham até às sirenes
mim, mas você me deixou sem vida. Me insemina,
das ambulâncias... jamais eu teria acreditado que a
mas a tua semente não fecundará nunca. A sua se-
voz humana pudesse atingir tais alturas. Agora eu me
mente já não pode fecundar.... Nunca mais a vida sai-
apresso para dizer algumas coisas e essas palavras se-
rá de nós... País de merda! Eu só queria uma coisa, tê
rão as últimas que você receberá de mim.
-lo aqui à minha frente e estrangulá-lo com as minhas
Detesto este país.
próprias mãos. Se eu o pudesse matar! Ele fez com
Ele me devorou as entranhas, devorou. Eu o detesto.
que os assassinos atingissem as nossas matrizes e as
Detesto-o, detesto-o. Uma mulher não pode viver
tornassem ocas como túmulos, os porcos, são todos
com semelhantes entranhas dentro dela. Quanto mais
uns porcos! Por onde começar? Todos assassinos, to-
eu penso nisto, mais vontade tenho de me vomitar. Eu
dos, por causa deles sinto a necessidade do maior dos
me sinto como vomitado. Provavelmente é o que eu
crimes, de um massacre sem fim, massacre sem fim...
sou. Eu não quero ser um país. Eu não sou um país. Eu
como é que nós resistimos aqui, como é que ainda não
29
dossiêkiwi
douro, esta forca. Com os seus carrascos oficiais que
Cena 7 • Eu sou os que foram “Se não dançam todos, não dança ninguém.”
fazem discursos oficiais nas cerimônias oficiais pe-
Meu nome é Mauricio Rosencof, eu tenho 38 anos e
rante outros carrascos oficiais. Cada um dos seus po-
sou um dos fundadores dos Tupamaros, no Uruguai.
ros é um estilete, cada uma das suas extremidades um
Eu fui preso em Montevideo em 1973 – o ano em que
punhal, cada milímetro da sua pele uma ratoeira, está
eu, Fernanda, nasci – e fui torturado durante nove
coberto de facas cortantes, este covil de assassinos, de
meses. Eu fiquei onze anos em solitárias. Em todos
escroques, de imbecis, esta toca de covardes. Enterra-
esses anos eu enxerguei a luz do sol, no máximo, du-
nos a cabeça na sua merda, nos dá coices furiosos,
rante oito horas. Oito horas em onze anos. Eu soube
você nos arrebenta, nos estrangula, nos condena, você
do golpe militar chileno com três anos de atraso. Eu
nos mata, vendida, estrume, canalha, envenenadora,
nunca vi o rosto de outro prisioneiro. Eu vivi em ce-
ninho de víboras, cadela piolhenta, boêmia incestuosa
las de três metros quadrados [vai até o espaço marca-
que não faz mais que macaquear tudo, que só tagarela,
do no chão] e perdi a noção das cores, muitas vezes
bruxa, ave agourenta, já não te suporto, já não a su-
eu tive que matar a sede com a minha própria urina.
porto mais, a assassina infanticida, a pestilenta, a
Eu resisti sonhando com passeios. Quando eu era le-
coxa, a vesga, o estorvo! Já não posso suportar nada
vado para as sessões de tortura, eu me lembrava da
mais dele, nada mais, nada mais, detesto-o, detesto-o,
minha filha, dos judeus do gueto de Varsóvia, e eu
detesto-o, ah! Detesto, detesto, detesto, vou morrer,
recitava: “Eu sou os que foram”.
monstro, eu te odiarei sempre, sim, o ódio borbulha
“Eu sou os que foram”.
enlouquecemos com este cão, este garrote, este mata-
em mim, eu quero escrever hinos contrários aos que 30
foram escritos até agora sobre ele, fuzilá-lo a cada pa-
Cena 8 • Salir corriendo
lavra, enterrá-lo como um cão com as minhas próprias mãos... já não sou mais mulher... E você, você já
[Música Salir corriendo (Amaral). A atriz, na verda-
não é homem... Ele nos levou tudo... Mas o que sobra-
de, é Carmen Miranda!]
rá dele sem nós? A sua terra tomou a minha forma... O meu corpo tem agora as suas dimensões... Eu tenho em mim o seu destino... Morro como um país.
Cena 9 Uniforme: humilhação e despersonalização [Ver Pedaços de morte no coração, Flávio Koutzii, p. 36]
[Pausa]
Cena 6 • Refase e redefasagem
O uniforme [aqui a referência é, também, ao “uniforme” de Carmen Miranda, da cena anterior, cuja saia
[Música Piano Phase de Steve Reich. Interrompida
está frouxa e precisa ser constantemente segurada]
depois de 15 segundos. Recomeça. A atriz se aproxima
tinha duas funções: fazer com que o aspecto externo
do manequim. Ela faz o exercício dos 12 tempos e mo-
igualasse todos os prisioneiros, quebrando mais um
difica uma vez a posição dos braços do manequim.
elemento de identidade e torná-los todos desformes,
A música termina num longo fade.]
pelo uso de uma vestimenta grosseiramente costurada, como um saco, um tecido ordinário (um mais leve para o verão, e um segundo mais espesso para o inverno). A obrigação de usar os uniformes completava-se pela proibição de retoques. Em algumas prisões se podia obter fio e agulha, mas todo ajustamento destes uniformes ridículos era motivo de punição. A troca de
Selo postal impresso nos EUA em homenagem à Carmen Miranda
uniforme de verão pelo de inverno também era deci-
Me disseram que eu voltei americanizada
dida pelas autoridades. Uma prática corrente da ad-
Com o burro do dinheiro
ministração penitenciária consistia em deixar um
Que estou muito rica
mês a mais o uniforme da estação passada, levando os
Que não suporto mais o breque do pandeiro
prisioneiros a sofrer de frio com uniforme de verão no
E fico arrepiada ouvindo uma cuíca
início do inverno, e sofrer de calor com uniforme de
Disseram que com as mãos
inverno durante o início do verão.
Estou preocupada E corre por aí
Manual de interrogatório da CIA, 1963 [Ver Manual
Que eu sei certo zum zum
Kubark, p. 86]:
Que já não tenho molho, ritmo, nem nada E dos balangandans já “nem” existe mais nenhum
Normalmente as roupas do prisioneiro são imediatamente retiradas, porque o vestuário familiar refor-
[Toca a introdução de um samba]
ça a identidade e, portanto, a capacidade de resistên-
Mas pra cima de mim, pra que tanto veneno
cia. Prisões fazem cortes de cabelo curtos e exigem o
Eu posso lá ficar americanizada
uso de uniformes por este motivo. Se o interrogado
Eu que nasci com o samba e vivo no sereno
for especialmente orgulhoso ou organizado, pode ser
Topando a noite inteira a velha batucada
útil dar a ele um uniforme que seja um ou dois nú-
Nas rodas de malandro minhas preferidas
meros maior e não fornecer cinto, de modo que ele
Eu digo mesmo eu te amo, e nunca “I love you”
precise segurar as calças.
Enquanto houver Brasil Na hora das comidas
[Canta a capela, deixa a saia cair algumas vezes]
Eu sou do camarão ensopadinho com chuchu
31
dossiêkiwi muito durante os períodos em que ela me visitava... Em duas semanas seguidas de 1972 – eu, que nasci em 73 tinha “menos um ano” – aconteceram mortes muito próximas de nós... que nos atingiram muito pessoalmente... Minha mãe tinha formação religiosa e depois daquelas mortes ela me disse o seguinte: “Sabe que vocês têm razão?”... Eu não sabia sobre o que ela estava falando, pois ela costumava nos dar razão em tudo... Eu então perguntei no que é que nós tínhamos razão... Ela respondeu com muita firmeza e convicção: “Deus não existe!”... Ri, com alguma surpresa, e ela concluiu: “Mas só que, com a idade que eu tenho, eu não posso assumir isso, senão minha vida perde todo o sentido até agora... Eu me desestruturo se eu avaliar toda a minha vida anterior a partir dessa constatação”... Eu respondi para ela que com Deus ou sem Deus, isso não tinha a Charge do cartunista francês Plantu
menor importância... Que ela continuasse a fazer o que estava fazendo, da maneira como vinha fazendo,
Cena 10 • O tempo avança recuando 32
que estava tudo ótimo...
[A atriz olha para o relógio na parede. Começa a tirar
Cena 12 • Sabotagem
o “uniforme” de Carmen Miranda]
[Música homônima dos Beastie Boys. Participação O tempo avança recuando.
dos Estados Unidos no golpe de 31 de março de 1964. Imagens de documentos oficiais]
Cena 11 • Mãe Cena 13 • La libertad
[Ver Alípio Freire, Tiradentes – Um presídio da ditadura, p. 19]
LIBERTAD. LIBERDADE. O principal presídio durante a ditadura uruguaia se
A minha mãe sempre foi solidária comigo, e conos-
chamava Libertad.
co, naqueles tempos da nossa passagem pelo presí-
Próxima cena!
dio Tiradentes. Mais do que solidária até, pois ela foi uma espécie de pombo-correio, levando e trazendo documentos clandestinos que eram lidos e discutidos por muitos de nós lá dentro... Uma pes-
Cena 14 • Quantos incêndios são necessários para se contar uma história?
soa de inegável grandeza... E ela não era uma mili-
[Música London, London de Caetano Veloso. UNE
tante política de esquerda... Tinha formação ude-
1964, USP Maria Antônia 1968, favelas de São Pau-
nista conservadora... Mas desde o meu engajamento
lo 2012. Mágica com flash paper]
no movimento estudantil, ela foi aos poucos se interessando por aquele processo que nós vivíamos e
Quantos incêndios são necessários para se contar
que, por fim, me levou à cadeia... A gente conversava
uma história?
Cena 15 • Mães de maio
Cena 18 • 21 anos em preto e branco
[Ver Do luto à luta, p. 27, Ednalva Santos, mãe de
[Música Ponteio 45 de Camargo Guarnieri e proje-
Marcos]
ções sobre a violência de Estado e a ditadura militar brasileira de 64-85]
Eu nem sei por onde começar, mas eu vou tentar explicar o inexplicável. A minha vida sem meu filho é o verdadeiro poço sem fim. Meu filho era um rapaz
Cena 19 • Como respirar com um saco na cabeça – a revanche
saudável, de pouca conversa, mas muitos amigos.
[Música Eu te amo, meu Brasil. A atriz respira du-
Até que apareceram os Ninjas, policiais sem escrú-
rante o tempo da música com um saco plástico na ca-
pulos escondidos atrás de toucas, para tirarem a vida
beça. Depois ela o retira e sorri]
mais sem sentido dos sentimentos. O vazio é um
do meu filho. Estes marginais de farda mataram meu filho no Dia das Mães, em 2006. Hoje essa celebração para mim não existe mais. Por causa da luta das
Cena 20 • Morto-vivo – o jogo
Mães de Maio ao longo desses anos, eu já cheguei a
Instruções:
parar até na cadeia, acusada de tráfico de drogas, en-
IDADE – A partir dos 4 anos.
quadrada por policiais que forjaram a acusação pois
MATERIAL – Nenhum.
querem que eu pare de falar que foram eles que ma-
ATIVIDADE – O condutor irá dispor as crianças enfi-
taram meu filho.
leiradas na horizontal, cada vez que o condutor falar
Foram eles que mataram meu filho.
MORTO, as crianças devem se agachar e quando ele falar VIVO elas devem se levantar. O condutor deve ir
Cena 16 • O tempo avança recuando [A atriz olha para o relógio na parede]
falando cada vez mais rápido para que as crianças se confundam, quem errar sairá da brincadeira até que fique apenas o vencedor. Depois a brincadeira recomeça. OBJETIVO – Integrar a turma; observação; atenção; agilidade; percepção auditiva; reflexos rápidos.
Cena 17 Pentatol sódico – O soro da verdade
Variação das instruções: Vivo-Morto, Sol-Chuva ou Terra-Mar: os três no-
“Do lado de lá está a verdade” [aponta para a frase
mes são referentes a uma mesma brincadeira com
colocada em um lado da plateia]. “Do lado de lá está a
algumas mudanças. Ela é muito utilizada por palha-
mentira” [aponta para a frase colocado do outro lado
ços em aniversários de crianças. Não é nada compli-
da plateia]. Se a frase “do lado de lá está a verdade” é
cada e serve para todas as idades, só precisando de
verdadeira, é verdadeira a frase “do lado de lá está a
um “chefe” que vai comandar a brincadeira.
mentira”. Mas se a frase “do lado de lá está a mentira” é verdadeira, a frase “do lado de lá está a verdade” é
Desenvolvimento:
falsa. Se é falsa a frase “do lado de lá está a verdade”,
O chefe passa a falar aleatoriamente: “Vivo” ou “Mor-
do lado de lá está a mentira... [e assim por diante]
to”. No caso de “vivo” ou “sol” (que é uma variação) os
Pentatol sódico é uma substância química que pro-
participantes devem manter-se de pé. Quando ele
voca efeito de sedação e desorientação. Ela era apli-
gritar “morto” ou “chuva” os participantes devem
cada na veia dos prisioneiros políticos, durante a
abaixar-se, ficando acocorados. À medida que o tem-
ditadura militar, para que eles confessassem seus
po for passando, o chefe vai alternando a velocidade
supostos crimes.
com que dá as ordens, tentando confundir as crian-
33
dossiêkiwi ças, por exemplo: “Morto”, “Morto”, “Morto”, “Vivo”. Para dificultar ainda mais, ele também pode começar a fazer os movimentos de se abaixar e levantar, porém com os comandos invertidos. Por exemplo: vivo, vivo, morto... Variante Terra/Mar: No caso de Terra/Mar, a brincadeira funciona da mesma forma, só que uma linha deve ser traçada no chão (faz-se isso com um giz ou utilizando uma corda), en-
respondeu Pedrozo. Geisel: ‘E não liquidaram, não?’.
tão um lado é considerado a Terra e o outro é o Mar,
Pedrozo: ‘Ah, já, há muito tempo. É o problema, não é?
os participantes começam na terra, então o orador
Tem elemento que não adianta deixar vivo, apron-
começa a gritar “Terra” ou “Mar”, e os participantes
tando. Infelizmente, é o tipo da guerra suja em que, se
ficam pulando de um lado pro outro da corda! Vale
não se lutar com as mesmas armas dele, se perde.
lembrar que o grito pode ser ‘repetido’, por exemplo:
Eles não têm o mínimo escrúpulo’.
“Terra, Mar, Mar , Terra, Terra, Terra... MAR.” [Lembrar da frase de Jarbas Passarinho na votação do Cena 21 • Voos da morte 34
AI-5: “Às favas todos os escrúpulos de consciência”]
[Silêncio. Projeção de fotos e do seguinte texto: “Voos
Geisel: ‘É, o que tem que fazer é que nessa hora tem
da morte.| Durante a ditadura civil-militar argentina
que agir com muita inteligência, para não ficar vestí-
(1976-1983) centenas de prisioneiras e prisioneiros
gio nessa coisa’.”
políticos foram lançados vivos, de aviões, no rio da
Com o General Dale Coutinho é esta a conversa, eis a
Prata e no Atlântico. | Vários corpos foram encontra-
transcrição:
dos nas costas do Uruguai e da Argentina. | A memó-
Geisel: “Eu não abro mão do Ato no 5. O Ato no 5 é
ria destas pessoas e das suas lutas, e a busca por jus-
um cajado. Eu sou besta de abrir mão desse negócio?
tiça, continuam vivas.”]
Eu sei lá o que que vem. Como essa história de abertura e descompressão. Ah, eu sou um sujeito profun-
Cena 22 • Brasil 64. Ruanda 94 Nós não estamos em paz!
damente democrático. Toda a minha vida fui. Eu sempre fui um homem muito simples, despido de coisas, e cansei de ir com minha mulher fazer compra na feira. Agora, não sou nenhum burro de amanhã fazer
[Músicas Domani partiamo/Acquaragia Drom +
uma vasta abertura, fingir aí uma democracia e depois
Cavaleiro andante/Abílio Manoel]
ter que recuar dois, três, quatro passos. Eu não vou
Cena 23 • Geisel assassino
recuar. Eu só vou caminhar para a frente, devagar, para não ter que recuar, não é? Seria uma beleza eu chegar:
Esta é uma cena “lenta, gradual e segura”. Eu vou ler a
não há mais censura, e agora o troço é à vontade, e a
transcrição de uma conversa do General-ditador Er-
Câmara vota como quer, e não sei o quê. E no dia se-
nesto Geisel com o tenente-coronel Germano Arnol-
guinte está o estudante fazendo bagunça na rua, está
di Pedrozo:
o padre fazendo comício, sei lá o quê.”
“’Pegaram alguns?’, perguntou Geisel. ‘Pegamos. Pega-
Eu vou ler o último trecho desta conversa:
mos. Foram pegos quatro argentinos e três chilenos’,
Geisel: “O Brasil hoje em dia é considerado um oásis.”
Dale Coutinho: “Ah, o negócio melhorou muito. Agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando nós começa-
Cena 25 • Os mares verdes do Brasil – outra revanche
mos a matar. Começamos a matar.”
[Hino da Marinha do Brasil (“Cisne Branco”). A
Geisel: “Porque antigamente você prendia o sujeito e o
atriz respira durante todo o tempo da música com a
sujeito ia lá para fora. Ó Coutinho, esse troço de ma-
cabeça dentro de um aquário ou tanque com água.
tar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser.”
Depois sorri, talvez assovie]
[Música “O Brasil é Meu”. Grupo de samba de pare-
A música que estava tocando é o Hino da Marinha
lha da Mussuca, ex-quilombo de Sergipe. Sangue!]
do Brasil. Esta é a nossa cena 25 e ela se chama “A revanche”.
Cena 24 • As amigas Teresa e Palomita [Ver Pedaços de morte no coração, Flávio Koutzii, p. 107]
Cena 26 Passado abandonado jamais se torna passado [Antígona, segundo Sófocles e Brecht]
[Teresa e Palomita são os nomes dados a uma técnica de comunicação inventada pelos presos, comuns e
Antígona: Passado abandonado jamais se torna pas-
políticos, nas prisões do Brasil e da Argentina. Esta
sado.
cena exemplifica o dispositivo de comunicação. Os bi-
Creonte: A guerra terminou.
lhetes, ou “caramelos”, fazem parte de um contrassis-
Tirésias, o cego: Será mesmo? Eu estou perguntando!
tema. Distribui-se ao público o desenho da técnica
Eu só vejo o que uma criança vê: que o bronze das
utilizada em um presídio argentino durante a última
colunas da vitória é bem delgado. E digo: é porque
ditadura (1976-1983)]
ainda se fabricam muitas lanças. Costuram-se agora muitas peles para o exército, e digo: é como se viesse
Desenho publicado no livro Pedaços de morte no coração, Flávio Koutzii, 1984.
o outono. E se pusesse o peixe para secar, esperando uma campanha de guerra de inverno. [A atriz] Pode parecer inabitual a linguagem deste poema de mil anos. Desconhecido é o seu assunto. Permitam que eu o apresente a vocês. Eu sou Antígona, Princesa da estirpe de Édipo. Este aqui é Creonte, tirano da cidade de Tebas, e tio de Édipo (que não aparece na peça). Este é Tirésias, o vidente. Aquele ali [aponta Creonte] trava uma guerra de pilhagem contra a longínqua Argos. Eu enfrento o desumano, quero enterrar meu irmão, e ele, Creonte, me aniquila. Mas a sua guerra, escapa ao seu controle. Eu peço a vocês que procurem na memória ações semelhantes do passado recente, ou então a falta de ações semelhantes. E então vocês verão como e porque nós, atores e atrizes, pisamos nesta pequena arena de jogo, onde antes sob as caveiras dos
35
dossiêkiwi animais sacrificados em cultos bárbaros, nos primór-
escuro. A apologia da violência. A luta pelo poder ab-
dios tempos, a humanidade fazia sua grande aparição.
soluto. A destruição do outro. O sacrifício dos bebês. Eu tinha comido um besouro. Ele zumbia dentro de
Cena 27 • Cânone [Música Piano Phase de Steve Reich. A atriz faz o
mim furioso, pra me lembrar que a imaginação incomoda muita gente. E aqui estamos, senhores.
exercício dos 12 tempos] Ps.: Maria Auxiliadora, Dorinha, se suicidou na AleCena 28 • Pra frente Brasil
manha em 1976. Eu, Fernanda, tinha três anos.
[Música-colagem a partir de Pra frente Brasil (Miguel
[Música Internacional em valse musette. A atriz
Gustavo), Público (Taiguara) e spots radiofônicos da
tira os sapatos e o casaco, que ficam sobre a cadeira]
Copa de 1970. Referência aos megaeventos esportivos como a Copa do Mundo de Futebol e as Olimpíadas]
Cena 29 • Continuo sonhando, 1976 [Ver Memórias do exílio, p. 315] [A atriz olha para o relógio na parede] 36
Cena 30 • O tempo avança recuando [Silêncio]
Cena 31 • Teatro [Ver Martha Gavensky e Gustavo Wagner, Revista El Porteño, nº 18, Buenos Aires, 1983, p. 8]
Eu me chamo Maria Auxiliadora Lara Barcellos. Eu tenho trinta anos, nasci e me criei no Brasil, pra onde
Cena trinta e um: teatro.
irei voltar, apesar de você. Meu pai tava sempre de passagem e minha mãe sempre em sua, sempre em
Quando os presos políticos queriam fazer teatro, eles
sua, sempre em sua companhia. E a gente, por que
o reduziam a uma expressão estática, só falada, sem
não? Afinal, a maioria no Brasil está de passagem,
gestos. A imaginação dos espectadores fazia o resto.
procurando seu posto definitivo, mas as aranhas não
O narrador fala baixo. Sua voz, apenas mais alta que
dão chance, não dão sossego. Mandando a gente calar
um sussurro, desliza e abarca todo o recinto. Baixa,
a boca, e seguir fugindo. Mas a gente faz diferente, só
para evitar que os guardas o escutem. Assim o ho-
pra chatear: saí procurando a saída, sem calar a boca.
mem apoiado na parede vai falando, descrevendo. Os
Foi isso que eu fiz. Os senhores me perdoem, eu era
outros, os homens sentados no chão, têm os olhos
criança e idealista. Hoje sou adulta e materialista, mas
fechados, imaginam um cenário, uma situação. A voz
continuo sonhando. E não tem lei nesse mundo que vai
que fala agora muda. Começa com “eu”, fica mais gra-
impedir o boi de voar. Sou um boi marcado, uma velha
ve, é outro. Alguns dos sentados, os que imaginam,
“terrorista”. Fui aprendiz de feiticeira. Pisei no calcanhar
contraem os rostos com emoção. Quando se abre a
do monstro, e ele virou sua pata sobre mim, cego e in-
porta do fundo do corredor e aparece o guarda da pri-
controlável. Fui uma das vítimas inumeráveis do mons-
são, já no mesmo instante, a situação é outra. Os ho-
tro verde-amarelo de pés imensos de barro. Foram in-
mens falam banalidades. O carcereiro não poderá sa-
termináveis dias de Sodoma. Me pisaram, cuspiram, me
ber nunca que aí, onde quase tudo é proibido, debaixo
despedaçaram em mil cacos. Me violentaram nos meus
do seu nariz, os prisioneiros estavam fazendo uma
cantos mais íntimos. Foi um tempo sem sorrisos. Um
obra de teatro. O guarda sai. O narrador volta a falar
tempo de esgares, de gritos sufocados, um grito no
e, então, termina sua “fala”. Há uma pausa e depois
ele diz, já com outra voz: - cortina! As mãos dos ho-
Cena 33 • Coda
mens sentados se elevam, e começa um aplauso si-
[Música I Can See Clearly Now (Johnny Nash). A
lencioso: aplauso sem juntar as mãos, apenas abrindo
atriz veste todas as camisetas que tirou no início da
e fechando os dedos das mãos, altas, separadas.”
apresentação]
Cena 32 • Calor [Termômetro]
Eu sou os que foram. [Último cânone: Sumer is icumen in, século 13. Últimas imagens: criança no balanço, filha de desaparecidos políticos]
São 22 horas e 45 minutos. A minha temperatura agora é de 37,5 graus.
Cortina!
Duas definições para Cânone:
Forma musical baseada na imitação, uma melodia é executada em duas ou mais partes diferentes, repetindo-se indefinidamente. Composição musical que em sua forma mais simples, consiste na imitação do tema inicial a intervalos determinados. Proveniente da Idade Média, os cânones assumiram uma grande complexidade e encontraram sua maior expressão na música contrapontística de J. S. Bach, sobretudo em sua Arte da fuga.
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dossiêkiwi
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Fernanda Azevedo na peça Morro como um país, Kiwi Companhia de Teatro, 2013
A flor e a exceção sobre Morro como um país, da Kiwi Companhia de Teatro
foto bob sousa
Toda essa memória tem que ser usada para a transformação do presente e do futuro. Senão ela vira nostalgia ou narcisismo. Essa memória tem que nos fazer lembrar que até hoje o mesmo terror de Estado da época da escravidão, da ditadura Vargas e da civil-militar instalada em 1964 permanece. Está nas chacinas das periferias de São Paulo e nas chacinas contra o MST no campo. Isso é o terror de Estado, as torturas continuam a existir. É que o foco agora saiu da repressão maior contra a oposição, e se fixou nos trabalhadores mais pobres. Nos bairros de periferia, não vigora sequer o mais singelo direito garantido pela Constituição, que é o direito de ir e vir. Começa a escurecer e todos se trancam em casa, com medo igualmente da polícia e do crime organizado, e cada vez temos mais dificuldade de saber quais os limites entre um e outro. O terror de Estado está aí, vivo. Alípio Freire, em entrevista ao Brasil de Fato
Uma flor nasceu na rua! (...) / É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. Carlos Drummond de Andrade, “A flor e a náusea”
Já que as primeiras falas da peça (e o próprio título) se iniciam em primeira pessoa, explicando o lugar de onde fala a atriz, cronológica (“nasci em 1973”) e
» por Mei Hua Soares Doutoranda em Educação (USP) e pesquisadora de teatro de grupo
biograficamente (“tenho dois sobrinhos”), tomo a liberdade de situar onde se ampara a minha recepção ou qual a realidade com que ponho em diálogo a obra teatral em questão. O meu principal espaço de interlocução é a escola. Nos últimos dias, transcorre, ainda que à revelia da grande mídia, uma greve de professores da educação pública estadual paulista (e também municipal paulistana) que revela tensões inerentes a momentos de insurgência contra o Estado. No entanto, maior que a indignação proveniente do discurso coativo das autoridades e da truculência moral com que são tratadas as questões envolvidas, o que mais causa espanto e frustração são a alienação e a incapacidade de parte dos envolvidos em educação de tomar para si ações que interferem direta ou indiretamente no espaço público e na formação de jovens. Incapacidade de arcar com as retaliações que, já é de conhecimento, virão. Mas o fato que se nega é que elas virão por conta do mecanismo de Estado. E isso independe da insurgência. A coerção e a violência são condições da máquina estatal, a serviço do capital, e estão entranhados em todas as esferas. Talvez o medo provenha do maior ou menor grau de intensidade com que elas passarão a operar. E a política do medo, mencionada no fundamentado texto do programa da peça, perpetua o seu funcionamento. Há tempos. A peça Morro como um país, da Kiwi Companhia de Teatro – cujo repertório afiado geralmente proporciona ao público um alento-nada-cômodo, uma saída (sem volta) da zona de conforto –, estruturada a partir da narrativa de Dimitris Dimitriadis, surge como potente instrumento de provocação reflexiva e de ação política, para além da estética (sem, no entanto, quaisquer prejuízos nesse campo), ao aliar às perseguições e mortes individuais, decorrentes do contínuo estado de exceção, o impacto no âmbito nacional e internacional. Caberia aqui pensar nessas questões mais próximas em diálogo com a pergunta que a peça, em sua extensão, constantemente refaz: por que esquecemos nossos mortos?
Quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas. Escreverá talvez asperezas, mas é delas que a vida é feita: inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze. Graciliano Ramos, em Memórias do Cárcere
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dossiêkiwi Lucidamente evoca-se Antígone. Fernanda Aze-
lhar nos porões da(s) ditadura(s) e em seus desdobra-
vedo, em atuação impecável dirigida por Fernando
mentos atuais. A queda é vertiginosa. Dolorosa. O
Kinas, traz à cena a figura heroica e trágica da perso-
relógio, o boneco-autômato, a bateria, a armadura, o
nagem que luta para enterrar seu irmão Polinices em
elmo, a sacola de feira, a cadeira-grade, a fantasia de
meio à categórica proibição por parte de Creonte, re-
Carmen Miranda, as corrediças trazendo em papel
presentante do Estado. Antígone, mesmo sabendo
enrolado as engenhosas soluções de comunicação
das posteriores implicações, enterra o irmão e é
dos presos, o líquido vermelho que escorre do livro
cruelmente punida. Ao analisar a estrutura das tragé-
que contém o diálogo sangrento proferido por Geisel
dias de Sófocles, Werner Jaeger ressalta a “peculiar
e seus comparsas. Na tela documentos secretos, al-
ironia trágica” presente em suas peças, cujos perso-
vos, combinações sugestivas ou afirmativas de fi-
nagens, ainda que submetidos ao destino imposto
gurões políticos. A atriz – mostrando-nos o que
pelos deuses, não se mostram passivos ou indiferen-
pode uma só mulher – não apenas contracena com
tes à debilidade e miséria humanas1. A máxima “Pas-
esses elementos como conduz firmemente a ação,
sado abandonado jamais se torna passado” ecoa em
cada olhar, cada movimento-pausa, com maestria
nossas mentes durante e após o término do espetá-
própria de quem está certa do que faz. De quem
culo assistido. Assim como deve ser o reconheci-
aposta suas fichas. De quem toma partido2. De quem
mento e o não-esquecimento dos heróis que a histó-
literal e politicamente veste a(s) camisa(s) dos tortu-
ria oficial escamoteia, teima em desprestigiar e
rados, desaparecidos e mortos durante a ditadura e
esconder. Para que não sejam somente mitificados,
em seu contínuo estado de exceção.
mas honrados com ações que determinem outros ru40
mos históricos. Pode soar prescritivo. E é.
A condução verbal merece destaque. Os textos, ora disparados (metralhadora verborrágica altamente
As emblemáticas falas da peça Morro como um país
regulada), ora cadenciados e envolvidos pela emoção
– criteriosamente selecionadas a partir de textos do-
oriunda de quem faz e de quem assiste, são um capítu-
cumentais e literários – tecem um roteiro dramatúrgi-
lo à parte. Insana contadora da História3., a “narratriz”
co contundente, revelando um cuidadoso (e corajoso)
não perdoa seus ouvintes ao desvelar a maquinação, as
trabalho de pesquisa que engendra o espetáculo de
atrocidades e angústias envolvidas nos fatos mais sór-
cunho performático. Há certa tendência em superesti-
didos. Ficção e realidade. Perplexidade. Comoção pro-
mar o espectador que, por vezes, pode não acompanhar
veniente da seriedade do assunto e da exposição argu-
ipsis literis as metáforas, alegorias e alusões mobiliza-
ta do horror mesclado a impressões líricas. As
das ao longo das cenas. Nada que impeça, no entanto, o
repetições retomam o passado presentificando-o.
acesso e a recepção à forma-conteúdo escolhida como
Mais do que isso. “Eu sou os que foram”, frase do
cerne do projeto (perceptivelmente mais vasto que as
escritor uruguaio Mauricio Rosencof, delineia a ideia
cenas a que pudemos assistir).
da impossibilidade de se separar presente e passado
Dentro do sótão, a atriz mergulha em fatos e sequências históricas incitando-nos a também mergu-
– que poderia ser pensado à luz da perspectiva deleuziana4.– e fornece chave de leitura para a peça.
“Sófocles pressupõe a Ate [destino que os deuses impõem aos homens]. Mas não é de mera passividade a sua posição perante o fato inevitável da dor enviada pelos deuses, que desde a sua origem a velha lírica lamentou. Não partilha as resignadas palavras de Simônides, segundo as quais, o Homem tem de perder necessariamente a Arete, quando o infortúnio inexorável o derruba. A elevação dos seus grandes sofredores a mais alta nobreza é o Sim que Sófocles dá a esta realidade, a esfinge cujo enigma fatal consegue resolver. É o homem trágico de Sófocles o primeiro a elevar-se a uma autêntica grandeza humana, pela completa destruição da sua felicidade terrena ou da sua existência física e social”. (Jaeger, W. Paideia – A formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.331). 2 Benjaminianamente toma partido dos vencidos. A contrapelo. 3 Com todas as contradições que ela apresenta, inclusive simbolizadas pelas placas dialéticas “Do lado de lá está a verdade” e “Do lado de lá está a mentira”. Ou pelo “vivo-morto” ou “terra-mar”. 4 “(...) cada atual presente não é senão o passado inteiro em seu estado mais contraído. O passado não faz passar um dos presentes sem fazer que outro advenha, mas ele não passa nem advém. Eis por que, em vez de ser uma dimensão do tempo, o passado é síntese do tempo inteiro, de que o presente e o futuro são apenas dimensões. Não se pode dizer: ele era. Ele não existe mais, ele não existe, mas insiste, consiste, é”. (Deleuze, Gilles. Diferença e Repetição. São Paulo: Graal, 2006, p.126, grifos do autor). 1
Outro ápice da encenação, talvez o mais forte,
objetivar, de transformar em ações aquilo que é conce-
consiste na descrição do “teatro carcelario” das pri-
bido mental ou imaginariamente, poderíamos tam-
sões argentinas. Explicita-se ali o quão necessária é
bém depreender dessa reflexão o valor intrínseco da
a faculdade imaginativa, especialmente diante do
manutenção tanto da imaginação quanto das ideias.
encarceramento dos corpos. Nesse momento, ficam
Nas situações explícitas e veladas de exceção. E esse
evidentes as últimas armas de resistência humana,
espaço para a imaginação e a reflexão sobre as ideias é
as que sobreviverão ainda que mediante inúmeras
permitido, proporcionado, ao longo da encenação.
tentativas de violação. A flor no asfalto. Furando o tédio, o nojo e o ódio.
Ao fundo branco, junto à manipulação dos objetos e à arquitetura de palavras e signos, as imagens
Somada à imaginação, poderíamos pensar ainda na
vão surgindo, sugeridas, amplificadas, acionando e
necessidade da preservação da ideia, orientadora de
convidando o imaginário (de cada um e o de todos a
ações rotineiras ou de impacto mais amplo. Paulo
um só tempo) a preencher as lacunas. Nesse sentido
Arantes, em debate sobre obra de Alain Badiou, desta-
a citação da militante Maria Auxiliadora Lara Barce-
ca a abordagem do autor sobre o comunismo, em que
los, proferida em cena, é, no mínimo, brilhante: “A
o filósofo e dramaturgo francês aponta para o seu cará-
imaginação incomoda muita gente”. De transbordar
ter platônico, pertencente ao reino das ideias, em con-
os olhos e o coração. E de alimento à alma. Pela cons-
sonância, talvez, com a concepção kantiana de ideia
tatação de que a imaginação – e o que dela decorre
pura da razão5. Embora possa emergir desse pensa-
– é, por excelência, o lugar privilegiado de onde ain-
mento uma angústia justificada pela incapacidade de
da se pode resistir, criar, sonhar e, por que não, agir:
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Uma flor nasceu na rua! (...) Sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros. É feia. Mas é realmente uma flor. Cortina.
5 No debate organizado pela Boitempo Editorial, ocorrido em 04 de julho de 2012, Paulo Eduardo Arantes, ao explanar sobre então recém-publicada obra de Alain Badiou – A hipótese comunista –, apresenta a seguinte reflexão: “Badiou tem a coragem de dizer muitas coisas. Inclusive de dizer que o comunismo não é uma ideia histórica. Ela é uma ideia no sentido platônico do termo. Uma ideia como Platão havia concebido ideia. Portanto ela é verdadeira, ela é eterna (...), ela não tem nada a ver com empiria. (...) Não se pode viver sem ideia. (...) Ele (Badiou) apresenta o comunismo como se fosse uma ideia e uma ideia pura da razão. (...) Kant diz: ‘as ideias de Platão não são utópicas, são realistas’. Elas têm essa particularidade, como toda ideia pura da razão. São ideias racionais puras e a elas não corresponde, nem pode corresponder, nada de verificável e empiricamente tangível na realidade. Portanto Platão não foi utópico. E ele diz uma coisa mais importante: as ideias têm impulso prático. (...) A imagem que aparece no mundo sensível não corresponde exatamente àquilo que são as formas no mundo das ideias. Mas essas formas existem realmente e sem elas o mundo seria invisível, impensável. Portanto, é impossível viver sem ideias”.
dossiĂŞkiwi
Caderno de fotos Fotos da temporada Morro como um paĂs. Kiwi Companhia de Teatro, 2013
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foto HELOÍSA PASSOS
foto HELOÍSA PASSOS
biblioteca dossiê kiwicrítica
foto vereda Estreita
foto fernando kinas
foto Bob Sousa
foto Bob Sousa
biblioteca dossiê kiwicrítica
foto fernando kinas
foto Bob Sousa
foto Bob Sousa
foto bob Sousa
foto Bob Sousa
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foto Bob Sousa
foto fernando kinas
foto Bob Sousa
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Debates durante a temporada da peça Morro como um paĂs, Kiwi Companhia de Teatro, 2013 fotos kiwi companhia de teatro
dossiêKIWI
Erre!
» por Fabio Salvatti Doutor em Artes Cênicas pela USP, Professor de Direção Teatral na Universidade Federal de Santa Catarina. Fez parte da Kiwi Companhia de Teatro entre 2001 e 2008.
Que verdade resiste ao exame? Albert Einstein parece ter seguido esta dúvida ao desenvolver sua Teoria da Relatividade, publicada em 1905, que marcou decisivamente os caminhos da Física Moderna. O trajeto percorrido por Einstein foi o de sanar a aparente incompatibilidade entre o princípio da relatividade no sentido estrito (que afirma que as leis mecânicas de um sistema K serão as mesmas de um sistema K’, desde que um sistema esteja em velocidade constante em relação ao outro), e a lei de propagação da luz no vácuo (que afirma que a luz se move com uma velocidade constante de
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300 mil km/s, a velocidade-limite). Einstein explicou a possível contradição com o clássico exemplo do trem. Se um trem viaja a uma velocidade V e um feixe de luz é emitido da estrada de ferro no mesmo sentido de deslocamento do trem, qual a velocidade (w) desse feixe para um observador que se encontre dentro do trem? A mecânica clássica tenderia a resolver essa questão pelo teorema da adição das velocidades: o observador veria o raio com a velocidade da luz (c) menos a velocidade de deslocamento do trem (v), como na equação: Cartaz da peça R, Kiwi Companhia de Teatro, 1997
w=c-v Mas isso seria dizer que a velocidade de propa-
Se os fatos conflitam com a teoria, ou teoria ou fatos tem de ser modificados. BARUch ESPINoZA 1
gação da luz em relação ao trem é menor do que em relação à estrada de ferro. Seríamos forçados a abandonar um dos dois princípios (ou o da relatividade ou o da propagação da luz no vácuo). O projeto de Einstein eliminou essa aparente incompatibilidade ao propor uma reflexão sobre o conceito de tempo, tido como absoluto para a física newtoniana. Einstein provou, pelas transformações de Lorentz, que “cada corpo de referência (sistema de coordenadas) possui seu tempo próprio” 1. Ou seja, o tempo deixa-
EINSTEIN, Albert. A teoria da relatividade especial e geral. Rio de Janeiro: contraponto, 1999. p. 28.
va de ser absoluto e passava a ser relativo. De acordo
quilo de chumbo ou um quilo de algodão?”. Também
com Einstein, num veículo em movimento o tempo
o caráter de manifesto estava presente: “É preciso en-
passava mais lentamente do que em um corpo em
forcar o último espectador nas tripas do último ator”,
repouso. O tempo dentro do trem não passava no
“Não existe fato, existe versão”, “A velocidade é um
mesmo ritmo do que na estrada de ferro. A verdade
meio onde é preciso aprender a habitar”, “Pra que cé-
do tempo não resistira ao exame.
rebro se a coluna vertebral já quebra o galho?”.
Aproveitando essa vertente potencialmente re-
As obras que serviram de matriz para a composi-
volucionária da teoria de Einstein, foi construído o
ção do roteiro iam desde textos de cunho científico
espetáculo teatral R, da Kiwi Companhia de Teatro,
das mais variadas épocas: Zenon de Eléia (“Aquiles
estreado na cidade de Curitiba em abril de 1997. A
pode correr para sempre sem alcançar a tartaruga”),
encenação e a dramaturgia de R, ambas assinadas por
Demócrito (“Apenas os átomos e o vazio são reais”),
Fernando Kinas, foram fruto de uma investigação
Prigogine e Stengers (“Da mesma forma que a arte e a
sobre os princípios criativos de Vsevolod Meierhold,
filosofia, a ciência é antes de tudo experimentação
Bertolt Brecht e Reza Abdoh, além de uma pesquisa
criadora de questões e de significações”), Ernst Ham-
sobre o binômio teatro-ciência, que lhe rendeu um
burger (“Um objeto em movimento com velocidade
título de mestre na Universidade Sorbonne Nouvel-
próxima à velocidade da luz fica mais curto e nele o
le, em Paris, entre 1994 e 1996.
tempo passa mais devagar”), que dialogavam com o de
A Teoria da Relatividade Especial e Geral consti-
Einstein; passando por referências metateatrais, como
tuía uma “coluna vertebral” do espetáculo. A exposi-
Tchecov (“Para mim o teatro contemporâneo é apenas
ção desta teoria seguia a sequência e a linha de racio-
rotina e preconceitos”), Brecht (“É preciso enforcar o
cínio da edição “para leigos” que Einstein publicou
último espectador nas tripas do último ator”), Heiner
em 1916. R utilizava os mesmos exemplos einsteinia-
Müller (“O texto deve ter a velocidade do tempo, mas
nos (o vagão de trem, uma caixa sendo puxada por
o teatro não tem a velocidade do tempo: é apenas uma
um cabo pelo espaço sideral). Entrecortando, ou
espécie de solenidade ou de refúgio para sentimentos
“atravessando”, a Teoria da Relatividade havia frag-
e ideias nostálgicas”), Peter Brook (“O teatro será o
mentos de autores diversos, com temáticas variadas,
domínio onde as pessoas poderão aprender a compre-
a maioria falando da interação arte-ciência, da misé-
ender os mistérios sagrados do universo”); por aforis-
ria do mundo nos dias de hoje, da condição precária
mos como os do coveiro que abriu as valas para sepul-
do artista e do teatro. As dúvidas pululavam: “O que
tar os mortos da então recente chacina de sem terra
vai ser do teatro nessa história toda? É preciso abolir
em Eldorado dos Carajás (“É melhor sobrar do que
o teatro, então?”, “Por que é que a geometria euclidia-
faltar”, após abrir 25 covas para os 19 sem terra assas-
na vem se meter com a nossa vida?”, “O que eu posso
sinados), do presidente da BMW (“Não são os maio-
fazer da tristeza do mundo?”, “O que pesa mais: um
res que comem os menores, mas os mais rápidos que
53
dossiêkiwi
54
comem os mais lentos”) e de Oswald de Andrade (“A
culadas por essa voz (“Autor”) tinham cunho metate-
massa ainda comerá o biscoito fino que eu fabrico”).
atral e político. Essa voz do “Autor” estava para a
Por fim, parte do roteiro era composto por material
construção do texto de R como um maestro está para
escrito por Fernando Kinas, que lançava olhares des-
uma orquestra, fazendo com que cada “naipe” das
confiados tanto à teoria einsteiniana quanto à prática
fontes selecionadas entrasse com precisão em um
teatral e à situação sócio-política brasileira contem-
momento determinado. O “Autor” tinha a proprieda-
porânea. A redação dos fragmentos retirados da Teo-
de de introduzir discussões, estabelecer paralelos,
ria da Relatividade era levemente adaptada para o es-
apartes e distanciamentos.
petáculo, enquanto uma outra voz (nomeada no texto
Na encenação de R, ainda que as influências de
como “Autor”) comentava, anotava, provocava ou am-
Brecht, de Meierhold e de Reza Abdoh se fizessem
pliava a reflexão einsteiniana.
presentes, a linguagem cênica era bastante singular. A citação de A Gaivota de Tchecov feita no microfo-
Einstein:
ne já no início do espetáculo pelo diretor-ator Fer-
Agora nós precisamos falar da transformação de Lorentz,
nando Kinas era bastante apropriada: “o teatro con-
que diz que x’ é igual a x menos a velocidade vezes o
temporâneo é apenas rotinas e preconceitos. (...) São
tempo, dividido pela raiz quadrada de um menos a velo-
necessárias novas formas, e se elas não existem, o
cidade ao quadrado sobre a velocidade da luz ao quadra-
melhor é não fazer nada”.
do. E também que y’ é igual a y, z’ igual a z e t’ igual ao
Antes, no foyer, os cinco atores conversavam in-
tempo menos a velocidade sobre a velocidade da luz ao
formalmente com o público. Trajavam um macacão
quadrado vezes x, dividido pela raiz quadrada de um me-
cinza, de operário, e usavam pouca ou nenhuma ma-
nos a velocidade ao quadrado sobre a velocidade da luz
quiagem. Os atores gentilmente conduziam o público
ao quadrado.
até a sala de apresentação, disposta como um corredor, com arquibancadas paralelas, frente a frente. O
Autor:
cenário era composto por alguns aparelhos eletrodo-
E vamos falar ainda da cantiga de espantar males, que diz:
mésticos (uma máquina de lavar roupas, um aspira-
Eu vi um homem lá na grimpa do coqueiro, ai-ai,
dor de pó, alguns aparelhos de televisão, um ventila-
Não era um homem, era um coco bem maduro, oi-oi,
dor); uma tela ao fundo (sobre a qual eram projetados
Não era um coco, era a creca do macaco, ai-ai,
ao longo da peça slides, vídeos e retroprojeções); um
Não era a creca, era o macaco todo inteiro, oi-oi.
3
microfone com pedestal; uma mesa sobre a qual o diretor tentava durante toda a peça equilibrar um ovo
3
Claramente, o “Autor” estava preocupado com um
em pé; uma grande grade vertical bem no centro da
espectro de relações que ia muito além da descrição
área de encenação com dimensões aproximadas de
de uma teoria científica. Por isso, as referências arti-
2,5m de largura e 3,5m de altura, presa ao solo por um
KINAS, Fernando. R. Texto dramatúrgico não publicado.
O teatro contemporâneo é apenas rotinas e preconceitos. Tchecov pedaço de trilho de trem. Vários elementos eram usa-
tivo do verbo “errar”, ou seja, uma apologia ao exercí-
dos durante a peça, como um tabuleiro de xadrez, um
cio do erro, ao teste de elasticidade das verdades pre-
bastão de madeira, um punhado de feijão, lanternas,
estabelecidas (como os axiomas da geometria
um pinguim de pelúcia, um pandeiro.
euclidiana e da física newtoniana). “Será que a verdade
A contraposição entre ideias, sons e imagens era
é só o discurso sobre a verdade?”, perguntava Kinas.
constante. Embate entre material poético e crítica so-
Aliás, essa marca de colocar a verdade na berlin-
cial contundente, R podia estar em um momento des-
da, de perguntar sobre a validade dos nossos paradig-
crevendo a teoria da relatividade, no outro, falando
mas, vem sendo característica na obra da Kiwi Com-
sobre a relação de uma mãe com seu filho durante a
panhia de Teatro desde então. As encenações da
segunda guerra mundial, e voltar à fala de Einstein.
Companhia oferecem uma alta carga de exercício crí-
Uma atriz discorria sobre a velocidade do mundo
tico, de construção de um pensamento materialista
contemporâneo, ao mesmo tempo que escolhia fei-
dialético sobre a arte e o mundo. O artista da fome
jões, lentamente. A ovelha Dolly, ícone da sofisticação
(98) e Carta Aberta (98) são exemplos dessa postura
da tecnologia genética, era contraposta com o toque
em que o material era a própria metalinguagem. Tudo
do pandeiro, representante da tradição do morro, do
o que você sabe está errado (2000), por sua vez, tinha
samba. A contraposição funcionava como um jogo,
como tema o exercício da dúvida cartesiana, expressa
quando um ator propunha: “Diga rápido qual é a pala-
no título (o subtítulo do espetáculo era “o exercício
vra diferente: telefone, fax, computador, rádio, televi-
coordenado da dúvida e o abalo sistemático das ver-
são, vídeo, Ilha do Mel, internet, celular, TV a cabo”, ao
dades”). O programa deste último espetáculo reco-
que outro respondia: “Telefone?”. Outro momento de
nhecia esse parentesco: “em todos [R, O artista da
oposição era aquele em que uma atriz sugeria que o
fome, Carta Aberta e Tudo o que você sabe está errado]
público fizesse um chá com suas lágrimas para que se
a atualidade indigente do país e as reflexões sobre a
aquecesse e dormisse tranquilo. Ao fundo, durante
natureza e a urgência da arte, além da ideia recorren-
esta fala, fotos de crianças que vivem nas ruas.
te do jogo e da brincadeira como chance para a desco-
O resultado cênico dessas contraposições era um
berta e a fruição da vida, estavam presentes”4. Esta
espetáculo que discutia as interseções e interconexões
marca se manteve em espetáculos posteriores, como
entre arte, ciência e cidadania, cujo título, R, dava
O bom selvagem (2006), Teatro-mercadoria (2006-
margem a inúmeras leituras, três delas de maneira ex-
2008) e Carne (2007-2012). Nos trabalhos da Kiwi, a
plícita. “R” de “relatividade”, a teoria que questionou a
arte tem a necessidade de se auto-pensar: saber qual
estabilidade da ciência newtoniana e ofereceu um
a sua necessidade, utilidade ou importância. Saber
olhar alternativo para o mesmo objeto; “R” de “revolu-
qual o estatuto filosófico de sua existência.
ção”, uma revolução política, estética, científica, que
Vale à pena sublinhar a pretensão sintética que R
quer minar estruturas de poder; e “R” como o impera-
tinha em relação à ciência e à arte, uma articulação
4
KINAS, Fernando. “O teatro não é a arte das evidências”. Tudo o que você sabe está errado. Programa do espetáculo.
55
dossiêkiwi
A grossa parede entre a arte e a ciência vacila Kandinsky entre dois modos diferentes de organização da expe-
ela, um teatro que provoque transformação”6. Uma
riência humana. A tese de R era a de que as disposi-
das frases do autor alemão (publicada originalmente
ções que presidem a arte e a ciência são comuns.
em 1948 no Pequeno Organon para o Teatro, um dos
Ambas conduzem ao espanto e em ambos os casos
escritos teóricos mais importantes de Brecht, no qual
esse espanto é motor para a transformação.
ele revê boa parte de suas considerações sobre a arte teatral) aproveitada pelo texto do espetáculo era: “Em
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O mesmo estado de espírito preside as invenções cientí-
nosso teatro, diante da natureza e da sociedade, que
ficas e artísticas. (...) O pesquisador no seu laboratório
atitude podemos tomar para o prazer de todos, nós,
assim como o artista escrutam o conhecido para desco-
os filhos de uma época científica? Esta atitude é uma
brir o desconhecido. Um e outro estão buscando aquilo
atitude de crítica. (...) Tratando-se da sociedade
que se mantém escondido atrás das aparências. Pode-se
[consiste em] fazer a revolução”7.
dizer também que eles interrogam sobre os enigmas do
Kinas, em entrevista, cita a opinião de Heiner
mundo. Essa tarefa do espírito refuta a priori o confor-
Müller sobre a “decalagem” que o teatro tem em rela-
mismo, tudo aquilo que uma época tem como convenien-
ção à época em que ele está sendo feito, como se hou-
5
te. Ela é, em essência, subversiva e poética.
vesse um desencaixe temporal entre o teatro e seu tempo 8. Para Kinas isso não é necessariamente ruim,
Não à toa, um dos grandes expoentes para o de-
porque pode oferecer a oportunidade de se posicio-
senvolvimento do espetáculo foi Leonardo Da Vinci,
nar criticamente sobre o avanço da história. O posi-
artista e cientista renascentista e emblema no qual
cionamento crítico em relação à história não está em
essas duas funções melhor se encontram fundidas
contradição com a ideia de “sintonia” brechtiana se
num indivíduo. Como na frase de Kandinsky, apro-
concebermos a atitude de resistência como “sintoni-
veitada por Kinas, “a grossa parede entre a arte e a
zada”, isto é, dialogar com sua época também é ofere-
ciência vacila”.
cer uma postura revolucionária em relação a ela. A
R dialogava com a dimensão científica (vale dizer,
revolução, um dos Rs do espetáculo, era, portanto, a
também, tecnológica) da sociedade em uma atitude
motivação ideológica do espetáculo, e também o elo
ao mesmo tempo analítica e poética. “Uma das pos-
de ligação entre Einstein, Kinas e Brecht.
sibilidades para pensar o teatro contemporâneo é
Esta motivação se manifestava nas opções esté-
exercitar esse cruzamento entre arte e ciência, ou é
ticas da encenação. Além das apropriações, da mul-
discutir esse tema, ou é incorporar a inquietação
tiplicidade de vozes e do aspecto fragmentado, R
científica na fatura do próprio teatro, no resultado
não apresentava conflito, enredo dramático ou per-
que ele apresenta. R sofre influência de Brecht quan-
sonagens. Não havia qualquer espectro de constru-
do este propõe um teatro político e social, um teatro
ção de identidade por parte dos atores, as figuras
comprometido com a realidade, que fale dela e para
em cena eram desprovidas de psicologia. O trabalho
KNAPP, Alain e BARBAUD, Jean-Christophe. Arte e ciência, olhares cruzados. in KINAS, Fernando. R. Programa do espetáculo KINAS, Fernando. Entrevista realizada em 09 de junho de 1998. in MORAES, Márcia. Aspectos da Pós-modernidade em “R”, de Fernando Kinas. Monografia do Curso de Especialização em Fundamentos da Arte-Educação, Faculdade de Artes do Paraná, Curitiba, 2000, p. 79. 5
6
foto roberto reitenbach
Cena da peça R, Kiwi Companhia de Teatro, 1997
de interpretação dos atores se aproximava ao de um
de uma dimensão mais humana da tecnologia, um
narrador ou ao de um conferencista que expunha
pinguim de pelúcia era a massa que ficava dentro do
sua teoria sem que, contudo, implicações dramáti-
quarto usado como exemplo para a explanação da te-
cas viessem à tona.
oria geral da relatividade, uma flor de plástico “dança-
Tudo isso estava sempre associado ao humor,
va” ao som da voz dos atores.
muita música (desde o rock ‘n roll dos Rolling Stones,
Esse tom (relativamente) leve, quase jocoso, que a
passando por Beethoven, Chico Science, Pena Branca
encenação conseguia imprimir mesmo tendo como
e Xavantinho, Adoniran Barbosa, Penguin Café Or-
tema central uma reflexão teórica profunda, estava de
chestra, Moreira da Silva, até o hino da Internacional
acordo com a intenção de Kinas de não reproduzir a
Socialista) e coreografias graciosas, visivelmente
apatia e a conivência que ele detectava em parte da
compostas por e para não-bailarinos. A manipulação
produção teatral brasileira. Para ele, “o teatro tem que
de objetos em cena também contribuíam para o ar
ser pretensioso, tem que pretender coisas”9. Híbrido
alegre do espetáculo. Um bastão de madeira virava o
por natureza, revolucionário por opção, R era um es-
trem do exemplo einsteiniano, um aspirador de pó
petáculo que fugia à tentativa de enquadramento.
era o responsável por “criar o vácuo” necessário para
“Espetáculo de teatro, obra multimídia, monstro dis-
a validade do experimento, uma máquina de lavar
forme, aula de física? Quem saberá a resposta? Quem
roupa “dançava” quando era comentada a necessidade
atira a primeira pedra?”.
KINAS, Fernando. R. Texto dramatúrgico não publicado. Entrevista com Fernando Kinas realizada em 14 de abril de 2003, disponível em SALVATTI, Fabio. A plagiocombinação como estratégia dramatúrgica na cibercultura. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teatro da UDESC, Florianópolis, 2004. 9 KINAS in MORAES, 2000. p. 81. 7
8
57
polĂticacultural
Midas e a política cultural
» por Fernando Kinas Diretor e pesquisador teatral, doutor em teatro pela Sorbonne Nouvelle
Quando a arte e a cultura se submetem à forma-
de espaços democráticos. Portanto, é razoável admi-
mercadoria, produção, gestão e fruição de bens simbó-
tir a existência de um movimento dialético entre
licos incorporam-se progressivamente à sociabilidade
produção material da vida e as chamadas obras do
do capital. Toma forma, então, um debate que envolve
espírito. Em outras palavras, o debate sobre as for-
dois grandes campos. De um lado, discute-se a especi-
mas assumidas pela cultura e pela arte se dá em um
ficidade da arte e da cultura, suas características, a re-
ambiente concreto (histórico) e complexo. A abor-
lação que estabelecem com o poder político e as suas
dagem, neste caso, deve ser não idealista (nela não
eventuais capacidades críticas, ou, ao contrário, o pa-
cabe a arte pela arte, a finalidade sem fim e suas deri-
pel de amortecedoras das insatisfações sociais. De ou-
vações) e não fatalista (refutando, por exemplo, as
tro lado, discute-se os sistemas de subvenção, apoio e
armadilhas do pensamento único). A dimensão cul-
financiamento da arte e da cultura, analisando a parte
tural, sob esta ótica, só pode ser compreendida a
que caberia à iniciativa privada, à sociedade civil orga-
partir das relações de produção e das forças produ-
nizada e ao Estado, avaliando os riscos tanto da coop-
tivas em jogo de mão dupla, dialético.
tação e do dirigismo, quanto da omissão.
No Brasil, em sintonia com movimentações inter-
A reflexão consequente deveria associar estes
nacionais, a onda neoliberal dos anos 1980 e 90 pro-
dois grandes conjuntos de questões: a dimensão po-
duziu um modelo de apoio à criação artística e cultural
lítica, social, antropológica e filosófica da cultura e a
que, em linhas gerais, continua em vigor. Ajudado pela
economia da cultura. Debater esta última não signi-
ressaca do arbítrio civil-militar dos anos da ditadura,
fica, bem-entendido, confundir arte e cultura com
o modelo neoliberal brasileiro estimulou o recuo do
business. A discussão subjacente supõe, justamente,
Estado na formulação e implementação de políticas
refletir criticamente sobre os significados da inte-
culturais. Há quem diga, abusando da metáfora fute-
gração da arte e da cultura no modelo mercantil, in-
bolística, que o governou “passou a bola” para a socie-
vestigando as funções que lhe caberiam dadas as
dade. Seria, segundo esta lógica, uma tentativa de evi-
determinações habituais do capital, como a busca
tar o dirigismo autoritário que caracterizou os anos de
do lucro. A cultura, nesta perspectiva crítica, teria
chumbo. O argumento é falacioso. Primeiro, porque o
um papel decisivo no processo civilizatório e de
poder decisório no âmbito da arte e da cultura não se
emancipação humana. Civilização compreendida
deslocou para a sociedade, mas para uma pequena par-
como desfetichização, desenvolvimento da capaci-
te dela, isto é, para grandes empresas e seus departa-
dade simbólica, ampliação das liberdades e criação
mentos de marketing, que passaram a definir muito do
59
60
Mesa do seminário A exceção e a regra, projeto Morro como um país, 2012. Participantes: José Arbex Jr., Edson Teles, Paulo Arantes
foto fernando kinas
políticacultural
que é produzido culturalmente no país. Em segundo
sária para a manutenção da hegemonia consolidada
lugar, é preciso lembrar que a “mãe” das leis baseadas
manu militari. 1964 é, certamente, o ano que não termi-
em renúncia fiscal, implementada em 1986, é obra do
nou. No caso da censura houve, é verdade, um desloca-
governo Sarney, personagem em nada hostil ao regi-
mento: da proibição política direta e visível, a censura
me militar. Em resumo, as leis baseadas em renúncia
instalou-se prioritariamene na esfera econômica. Não
fiscal representam a continuidade da política cultural
se trata mais de mutilar ou proibir a veiculação de tal
da ditadura e das opções políticas, de classe, tomadas
peça de teatro, filme ou música, mas de, simplesmente,
pelas elites de ontem e de hoje. Esta situação confirma
impedir a criação pela mais elementar falta de recursos.
o processo de modernização conservadora do país,
Não se pode afirmar, no entanto, que o Estado, a
que renova suas formas mantendo intacto seu caráter.
partir de redemocratização, tenha se omitido comple-
A chamada Lei Rouanet, aprovada em 1991, é a joia
tamente da formulação de políticas culturais. Este
desta coroa. Batizada com o nome do Secretário de
ponto tem se prestado a confusões. A ciência política
Cultura do governo Collor, ela expressa não apenas o
crítica ensina que o Estado não foi criado para resolver
sucateamento da estrutura administrativa, mas a pró-
conflitos (entre capital e trabalho, interesses particu-
pria extinção do Ministério da Cultura, transformado
lares e sociais, burguesia industrial e agrária), antes, ele
então em Secretaria. O mecanismo da Lei, eficiente em
age para garantir a reprodução do sistema. Por isso, en-
transferir competências e recursos do Estado para a
quanto “capitalista coletivo ideal” (definição de Engels
iniciativa privada, aprimora a política autoritária ante-
para Estado), o horizonte da ação política de esquerda
rior, adaptando-a ao novo momento da exploração ca-
deveria ser sua supressão. Isto significa dizer que os
pitalista e à readequação do consenso em curso, neces-
mecanismos de financiamento às artes e à cultura de-
vem ser vistos como meios e não como fins. A trans-
conferências e consultas públicas e o aumento relati-
formação das lutas por políticas públicas de cultura
vo da verba do MinC), a orientação da macropolítica
em causa última, ou única, equivale a limitar grave-
cultural não deixa dúvida: assim como a política ge-
mente o alcance da intervenção. Não se trata de maxi-
ral, a ação cultural está pautada pelo pragmatismo e
mizar reivindicações com a intenção de criar impas-
pela realpolitik. O discurso foi parcialmente renova-
ses, desconhecendo o papel do acúmulo de forças ou
do, mas de forma oblíqua ou direta, o ideário liberal
da necessária luta pela sobrevivência material, nem,
está presente, com seu universalismo de pacotilha,
por outro lado, de circunscrever os objetivos da ação
suas técnicas de management e seu elogio da compe-
política à mera gestão do capital e à utopia possível.
tição. Os acordos por cima continuam sendo feitos,
Desta análise sumária do Estado, deduz-se que
tão caros à tradição brasileira, da independência de
ele tem um papel definido na esfera da cultura: orga-
Portugal à Nova República, ou, se preferirmos, das
nizar e legitimar socialmente a transferência de com-
capitanias hereditárias à Comissão Nacional da Ver-
petências (planejamento estratégico e poder decisó-
dade. Assim, é garantido o padrão médio de explora-
rio, por exemplo) e recursos (verbas públicas) da
ção que fez do Brasil a sexta ou sétima economia do
esfera comum para a esfera privada, preferencialmen-
mundo e uma das mais desiguais do planeta.
te para a do grande capital. Rigorosamente falando, é
Reconhecer este papel desempenhado pelos Esta-
inexato exigir uma política de Estado para a cultura
dos nacionais modernos não deve, entretanto, impe-
argumentando que ela não existe. Tanto a Lei Roua-
dir a disputa dos seus rumos. O erro estaria em ali-
net como outras saídas do mesmo molde constituem
mentar demasiadas ilusões sobre o gerenciamento
uma autêntica política de Estado, e não apenas de go-
democrático do Estado. Sob certo ponto de vista, a
verno. Mas uma política de Estado que prevê, e exige,
máquina estatal sempre foi eficiente, é uma tritura-
a subalternidade deste mesmo Estado frente aos interesses privados. É por isso, aliás, que a passagem de bastão entre tucanos e petistas não provocou alteração estrutural na área. Mudaram os governos, mas a orientação geral continuou a mesma. Os últimos dez anos da administração federal não foram capazes de alterar as regras básicas de funcionamento da política cultural, apesar de reorientações pontuais e mesmo da introdução de algumas propostas formuladas fora da matriz liberal. Uma das razões para este fato talvez seja a aproximação das concepções de arte e cultura
61
Leis baseadas em renúncia fiscal representam a continuidade das opções políticas tomadas pelas elites de ontem e de hoje
assumidas pelos principais atores políticos, repre-
dora de projetos alternativos… O tema tem atraído a
sentados pelo bloco PSDB/DEM, de um lado, e pelos
atenção de alguns dos nossos melhores analistas po-
petistas e sua base aliada, por outro. A anulação das
líticos, especialmente após a consolidação do lulis-
diferenças tem lugar na esfera política mais geral, só
mo. A “grande política”, aquela que se ocupa das
então incidindo no âmbito da política cultural. Se a
questões de fundo, induz os que fazem a “política
contestação desta análise pelo bloco governista atual
pequena” a acreditarem que estão fazendo a “grande
faz algum sentido (considerando a criação dos Pontos
política”. Quem atua no varejo não percebe o fato,
de Cultura, as tentativas de desconcentração regional
imaginando dominar as regras do jogo. Outros perce-
dos recursos, o reconhecimento de setores margina-
bem o engodo, vislumbrando nas suas próprias práti-
lizados – como quilombolas, indígenas e periféricos
cas um oportunismo indesejável, e, nos melhores ca-
–, uma certa democratização da gestão através de
sos, constrangem-se com a defesa hoje daquilo que
políticacultural negavam ontem. No entanto, em nome da política do
falência do projeto de sociedade tal como tinha sido
possível, da governabilidade, do senso de responsa-
construído na transição democrática, são evidentes.
bilidade, da “correlação de forças” (já nos anos 1970
A política do travestimento (que produziu a frase
Augusto Boal ironizava em Murro em ponta de faca
“esqueçam o que eu escrevi”, atribuída a Fernando
esta desculpa para a moderação e a inação), enfim, em
Henrique Cardoso), também tem lugar no âmbito da
nome do que consideram razoável, setores antes crí-
cultura. Por esta ótica, que mistura gestão tecnocráti-
ticos questionam a urgência da transformação, de-
ca, submissão ao capital e discurso falsamente crítico,
pois a viabilidade da transformação, até finalmente
é muito melhor agir na superfície, propondo um edital
se convencerem de que ela não é mais possível. A
aqui e um programa acolá, do que construir uma nova
política do consenso, da conciliação de classes, do ar-
política cultural, capaz de alterar o modelo global (de-
ranjo, da administração gerencial, toma o lugar da
finições, financiamento e gestão). Mesmo o Plano Na-
crítica sistêmica e radical. O conflito e a contradição,
cional de Cultura (aprovado em 2010), aparentemente
de motores da história, passam a ser evitados a qual-
ambicioso, corre o sério risco da insignificância, dada
quer preço. O vocabulário empregado por estes seto-
a penúria de recursos, as metas irreais, a falta de mo-
res falam por si: fomento ao mercado, empreendedo-
bilização popular e a omissão em indicar claramente
rismo criativo, novos modelos de negócios, ativos
outro rumo para a política cultural. Estamos neste pé.
culturais, capitalismo social, nova indústria cultural.
Quem faz a “grande política” sabe o que está em jogo,
A situação política atual não é exatamente inédita
mas convence os incautos de que não há alternativas.
(basta lembrar da social-democracia alemã de Frie-
Enquanto “governos técnicos” tomaram posse no
drich Ebert em 1918-19), e os exemplos do bloco go-
velho mundo – atestando a falência da política de di-
vernista atual tendem a confirmar a máxima sobre a
reita clássica em administrar a barbárie (economistas
repetição da história como farsa: aliança ou conces-
do Goldman Sachs se ocuparam diretamente, como
são ao agronegócio, inclusive no episódio de aprova-
Mario Monti na Itália e Mario Draghi no Banco Cen-
ção do novo Código Florestal; abandono da reforma
tral Europeu) –, por aqui se passa algo parecido. Quem
agrária; manutenção da política econômica liberal
decide o orçamento da cultura é o Ministério da Fa-
A política do consenso e da conciliação de classes toma o lugar da crítica sistêmica e radical
zenda e o Banco Central. A flagrante incompetência interna do MinC (amplificada por querelas paroquiais) só não é mais dramática que a subserviência deste ministério exangue – cerca de 0,06% do orçamento da União, segundo dados da Auditoria Cidadã da Dívida – diante da macropolítica econômica, que inclui superávits necessários ao pagamento do serviço da dívida. Faltam recursos para a cultura, certamente (embora o MinC, ironicamente, tenha alguma dificuldade
com pitadas de distributivismo; descaso com a edu-
em executar seu magro orçamento), mas também, e
cação e a saúde; cooptação ou tentativa de desmobi-
sobretudo, falta um novo projeto. Com a ausência
lização dos movimentos sociais; acomodação diante
surgem os paliativos. O projeto de reforma da Lei
do oligopólio das comunicações; recuo na política de
Rouanet, conhecido como Procultura, é um destes
direitos autorais; persistência do fisiologismo e do
remendos. Apesar de discursos mencionando um
patrimonialismo; incremento da política de grandes
“novo paradigma”, o que se constata é a manutenção
eventos; bloqueio da participação popular na formu-
do mecanismo de renúncia fiscal (inclusive com o
lação, gestão e fiscalização das ações de governo etc.
percentual de 100% de desconto, previsto não ape-
A degeneração programática deste campo político e a
nas no caso de doações, mas em outras modalidades
foto fernanda azevedo
Fachada da Funarte, em São Paulo, durante a ocupação organizada pelo Movimento de Trabalhadores da Cultura, 2011
63
do chamado “mecenato”). E não é tudo. Convive com
ação propõem a criação de uma Loteria Cultural e a
a renúncia um fundo de capitalização (Ficart) cuja fi-
destinação de 20% dos recursos destinados à renún-
nalidade precípua é o lucro e não o fortalecimento da
cia fiscal para o FNC. Com esta vinculação, o governo
cultura. Há ainda um incentivo duvidoso ao consumo
foge da responsabilidade com o fomento direto à cul-
de produtos majoritariamente oriundos da indústria
tura e busca neutralizar a crítica ao mecanismo obs-
cultural (o Vale-cultura, desmembrado do projeto
ceno da renúncia fiscal. É mais uma tentativa de com-
original e aprovado em lei própria) e diversos dispo-
prar anuência, mascarando conflitos.
sitivos que não garantem a transparência e a demo-
Outro risco a evitar é o jogo diversionista de produ-
cratização na utilização dos recursos (no Projeto de
tores comerciais que comparam os valores da renúncia
Lei é recorrente a expressão “a ser regulamentado”),
fiscal na indústria e no comércio com os da cultura. É
como aqueles destinados aos Programas Setoriais e
necessário fazer a crítica do mecanismo da renúncia
ao Fundo Nacional de Cultura, que devem funcionar
(que transfere riqueza criada socialmente para deter-
“preferencialmente” através de editais públicos e, no
minados setores privados) e não lamentar ou aplaudir
caso do Fundo Nacional de Cultura (FNC), admitem
valores e percentuais específicos. O erro não estaria na
empréstimos e investimentos em fundos privados. “A
insuficiente renúncia fiscal relativa à cultura, como ale-
cultura é um bom negócio”, já afirmava uma publica-
gam estes produtores, mas nos valores escandalosos
ção do MinC em 1995, época do ministro Francisco
transferidos através deste mecanismo (como no caso
Weffort, fundador do PT, que na ocasião já havia
da indústria automobilística, para mencionar apenas
pousado no ninho tucano. Em relação à dotação orça-
um exemplo). É pura ficção o argumento de que os re-
mentária, o poder executivo e parlamentares da situ-
cursos envolvidos nas diferentes modalidades de re-
políticacultural
foTo fErnAndo kinAs
Manifestação do Movimento de Trabalhadores da Cultura em frente à funarte, são Paulo, 2011
64
núncia fiscal são privados, quando é evidente que são
vestir ou doar recursos para eventos e ações culturais.
públicos: dinheiro oriundo de imposto devido que é
A ausência da renúncia, ou a regulamentação em ba-
renunciado pelo governo. O caso é grave, já que as defi-
ses aceitáveis (com percentuais de 20% de desconto
nições sobre a renúncia fiscal da cultura – quem rece-
do imposto devido, por exemplo), não cerceariam, em
be, como e quanto – obedecem atualmente a critérios
hipótese alguma, o investimento privado direto. Se há
privados e comerciais, depois de uma aprovação essen-
dirigismo, hoje ele é do mercado. Um banco e suas em-
cialmente técnica do Ministério da Cultura. A sucessão
presas associadas podem investir, através da Lei Roua-
de escândalos mostra as insuficiências e distorções do
net, em um centro cultural criado por este mesmo ban-
mecanismo atual, que serão, na melhor das hipóteses,
co. O dinheiro investido no projeto, que deveria ser
disfarçadas com as alterações previstas no Procultura.
integralmente pago na forma de imposto, vai alimen-
As perspectivas são sombrias, uma vez que a discussão
tar, graças à renúncia fiscal, o empreendimento cultu-
não é mais sequer sobre a economia da cultura, mas,
ral do próprio banco, que lucra em imagem e comuni-
simplesmente, sobre a cultura como economia.
cação sem gastar um tostão. A este absurdo, juntam-se
Teme-se (o sujeito oculto da frase esconde interes-
outros efeitos perversos do mecanismo: do proseli-
ses e personagens que preferem a discrição e o anoni-
tismo à corrupção, passando por ingressos proibiti-
mato) que a implementação de outro modelo de gestão
vos, concentração regional dos recursos, participação
permita ao Estado o controle da produção e da gestão
de empresas estatais – que usam, por intermédio dos
cultural. Mas este mesmo sujeito oculto não mencio-
seus departamentos de marketing e nem sempre atra-
na o fato óbvio de que a iniciativa privada, desde que
vés de seleções públicas, dinheiro de imposto devido
utilize dinheiro próprio, não estaria impedida de in-
ao Estado para o financiamento estatal de atividades
culturais, função que caberia ao MinC –, invenção do
nas parcerias público-privadas e nas privatizações
“captador de recursos” etc. Não é estranho, portanto,
diretas, indiretas ou disfarçadas (organizações so-
que consultores e diretores de marketing de grandes
ciais, oscip’s, fundações e terceirizações).
instituições financeiras defendam uma política cultu-
O capitalismo cultural que determinados setores
ral baseada em mais verbas para o MinC; aumento de
sociais aparentemente queriam criar com a Lei Roua-
recursos para o Fundo Nacional de Cultura e, sobretu-
net é, portanto, um duplo engano. À imensa maioria
do, não diminuição dos valores do mecenato (leia-se:
das empresas só interessa um capitalismo sem risco.
renúncia fiscal). Mantido o mecanismo do mecenato
A elas interessa o capitalismo garantido pelo Estado e
(sic), estes profissionais das finanças e da especulação
turbinado com dinheiro público, legal e/ou ilegal. E se
não se furtam em posar como defensores da função
eventualmente o modelo funcionasse para estimular
social da cultura, da arte pública e da democratização
um mercado cultural embrionário, ele seria funcional
do acesso. A dissimulação, uma das componentes
à expropriação da produção cultural e dos seus resulta-
desta “hegemonia às avessas” discutida pelo sociólogo
dos pelos donos habituais do poder, reforçando o cami-
Chico de Oliveira, nunca foi tão escancarada.
nho de mão única, orientado pelas necessidades e pela
O rei Midas, como se sabe, transformava em ouro
lógica da indústria cultural e da organização corporativa
tudo o que tocava, o que o impedia de se alimentar. A
da cultura. A Lei Rouanet não pretendeu, seriamente,
generalização da mercantilização atualiza este antigo
criar um mercado de arte e cultura no país. Nosso atá-
mito. Mesmo projetos aparentemente afastados da
vico patrimonialismo falou mais alto. Evidentemente,
mão pesada do capital, como o dos Centros de Artes
não seria este mercado que resolveria a situação de
e Esportes Unificados (contorção para manter a sigla
quase indigência a qual o setor cultural está submeti-
CEU, marca registrada da administração Marta Supli-
do. O que fez a “Lady Rouanet” (personagem criada
cy em São Paulo), proposto pelo Ministério da Cultu-
pelo movimento de teatro de grupo paulistano), foi
ra, submete-se às regras da economia criativa e da
transferir riqueza e poder decisório sobre os rumos
geração de renda, transformando-se em subprodutos
de parte significativa da produção simbólica para o se-
dos novos modelos de negócios, tão caros ao business
tor privado, além de precarizar até o insuportável o
cultural em tempos de entretenimento globalizado.
exercício das práticas artísticas e culturais no país,
Uma nova e consequente política cultural não pode se resumir ao debate sobre leis
submetendo-as sem apelo às injunções e inconstâncias típicas deste modelo de financiamento e gestão. Uma nova e consequente política cultural não pode se apoiar em uma ou outra formulação legal, por mais criteriosa e socialmente justa que seja. Ela não pode se resumir ao debate sobre leis, embora não se possa negligenciá-lo. É preciso um conjunto amplo de iniciativas, amparado por definições políticas claras (dinheiro público gerido de forma pública é uma delas) e recursos
As iniciativas do MinC não conseguem escapar a este
à altura dos problemas e das necessidades atuais (a Pro-
Consenso de Washington em versão cultural. O im-
posta de Emenda Constitucional 150, que prevê a apli-
perativo da viabilidade comercial e da sustentabilida-
cação de 2% do orçamento federal, 1,5% dos estados
de no mercado, dentro ou fora do eixo, são a regra de
e 1% dos municípios em cultura, é uma medida neste
ouro. Empacota-se tudo em boas intenções (que lo-
sentido). As ações governamentais atuais, e o Procul-
tam o inferno), alguma maquiagem, distribuição de
tura em particular, não apenas são incapazes de forne-
migalhas e uma boa dose de realismo, evitando atra-
cer as bases desta outra política, como podem compro-
palhar a rentabilidade do capital, como se constata
meter a sua construção durante os próximos anos.
P.S.: Uma versão anterior deste texto foi publicada no sítio passapalavra.info, em maio de 2012.
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aquiagora
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Grafite no Centro Clandestino de Detenção El Olimpo, Buenos Aires, 2012
» por Edson Teles Professor de Filosofia Política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
Enquanto isso, no Brasil...
as ambiguidades da justiça de transição
As democracias nascidas ou reconstruídas a partir da segunda metade do século XX foram herdeiras de regimes autoritários ou totalitários. Tanto na Europa após a Segunda Guerra e a experiência dos campos de concentração, quanto na América Latina em seguida às ditaduras militares, passando pelas tentativas de elaboração de regimes democráticos na África e na Ásia, é marcante a presença de um discurso1 preocupado com o passado e cuja promessa é a de desfazer as injustiças sofridas anteriormente. As experiências de regimes violentos e repressores deu lugar, em princípio, a uma “justiça dos vencedores”, saída que caracterizou os processos judiciais e administrativos do pós Guerra na Europa, frente aos atos de ocupação e aos governos colaboracionistas, bem como, em certa medida, no Leste Europeu durante os anos 90. Nestes últimos, a severidade inicial dos processos e expurgos foram logo substituídos por atos de anistia e clemência, ocultando e silenciando as novas democracias sobre o alcance e a estrutura da escala repressiva instituída. Na África, se destacou a criação da Comissão Verdade e Reconciliação, sob coordenação do bispo Desmond Tutu, a qual apostou nas narrativas abertas e publicizadas das vítimas e dos criminosos para estabelecer um 1
á uma determinada força no uso público dos discursos que se relaciona diretaH mente com a ordem das leis e das instituições, na medida em que os sujeitos que os pronunciam não têm necessariamente domínio sobre suas realidades ou durações, nem mesmo podem dizer que lhes pertencem. Assim, a normatização exerce a função de conduzir os usos que se fazem deste mecanismo presente nas relações de poder. Pressupomos que a produção do discurso sofre o controle e a seleção de procedimentos que visam assegurar as implicações de seus usos e prevalecer sobre sua possível ocorrência contingencial. Mais do que denotar uma tradução das relações sociais de dominação e resistência, os discursos são eles mesmos aquilo “pelo que se luta, o poder pelo qual queremos nos apoderar” (Foucault: 1971, 10).
67
aquiagora
68
novo pacto social fundante do regime democrático.
Por vezes, as leis de anistia impediram os atos de jus-
Em troca, os perpetradores de crimes do apartheid
tiça, por outras, a ideia de que as democracias ainda
que confessaram seus delitos foram anistiados2. Na
não estavam consolidadas e de que haveria a possibi-
América Latina, a lógica na transição para os novos
lidade de um novo golpe de estado em caso de apura-
governos democráticos foi a da aplicação das leis de
ção dos crimes rondaram como fantasmas.
anistia fundamentadas na ideia de que houve nesses
O fim das ditaduras na América do Sul e a desin-
países o conflito entre “dois demônios”: por um lado,
tegração do apartheid na África do Sul, nos anos 80 e
a violência dos militares e seus aliados via aparato de
90, juntamente com o nascimento de suas novas de-
repressão estatal, do outro lado, a ação “terrorista”
mocracias, resultaram num dos mais notáveis investi-
dos grupos revolucionários e de resistência. Diante
mentos em direitos humanos desde a Declaração
desta leitura, os processos de transição neste conti-
Universal dos Direitos dos Homens (1948) e suas
nente adotaram o caminho da impunidade dos crimi-
consequências. Nestes lugares foi experimentada a
nosos dos regimes ditatoriais, sob a legitimação sim-
criação das comissões da verdade ou de reconciliação,
bólica de que se anistiou os dois lados, promovendo,
instituições do Estado, mas com certa autonomia, que
com isto, a reconciliação de todos os envolvidos.
não se configuram nem como ordenamento jurídico,
A escolha mais comum dos novos governos de-
nem meramente um órgão do governo. No Chile e na
mocráticos sucessores de regimes autoritários foi a
África do Sul, entre outros casos, tiveram grande des-
de não incentivar os atos de justiça com relação aos
taque a atuação de suas comissões de verdade3, as
seus predecessores. Na maioria dos países, como vi-
quais promoveram, segundo alguns analistas, uma ca-
mos, adotou-se leis de anistia ou alguma graça presi-
tarse coletiva nas novas formas de relações políticas4.
dencial, em geral reforçadas pelas instituições do
Tais políticas de justiça ou de memória tiveram
novo regime. Outros preferiram mecanismos mais
como característica maior, ao mesmo passo em que
específicos como as reparações pecuniárias ou sim-
centram seu discurso no direito e na dignidade das
bólicas, reconhecendo a condição das vítimas; ou a
vítimas, o fato de não realizarem plenamente o aces-
criação das comissões de verdade e reconciliação, en-
so ao sistema penal dos novos estados de direito e a
carregadas de produzirem relatórios sobre a “verda-
negociação, em condições pouco favoráveis, das re-
de” acerca dos crimes ocorridos.
formas nas instituições herdadas dos regimes ante-
No hemisfério sul do planeta ocorreram as prin-
riores. Neste cenário, emerge um conceito que se
cipais inovações nos processos de transição. Chile,
convencionou designar por “justiça de transição”.
Argentina, Uruguai e África do Sul, de modos distin-
Refere-se, em síntese, aos desafios da recuperação
tos, se debruçaram sobre seus passados de violência.
de direitos e da instauração de regimes democráticos
Algumas experiências de políticas de justiça foram
em momentos de excepcionalidade política nos
praticadas, especialmente nos países sul americanos.
quais as instituições e procedimentos do novo regi-
Destaque para o caso argentino que, após a invalida-
me ainda não foram consolidados.
ção das leis de anistia – a Lei do Punto Final e a da
Com o discurso e as políticas relacionadas à jus-
Obediencia Debida – durante o governo de Nestor
tiça de transição duas características ganham rele-
Kirchner em meados da década passada, vem reali-
vância: os direitos das vítimas tomam um lugar de
zando um volume considerável de procedimentos ju-
destaque e aparecem como imperativo de limitação
rídicos em relação aos criminosos da ditadura. Ainda
dos passos das transições; e, no processo de transi-
assim, podemos dizer que nenhum desses países tes-
ção permanecem presentes e atuantes as forças que
temunhou uma prática sistemática de julgamento
no regime anterior promoviam o conflito. Estas duas
dos crimes do passado; as iniciativas em curso limi-
medidas visam, segundo o discurso abordado, dimi-
taram-se a uma pequena parcela dos responsáveis.
nuir o grau de violência e hostilidades e facilitam as
2 Cf. minha tese de doutorado: Brasil e África do Sul: memória política em democracias com herança autoritária. São Paulo: Filosofia / USP, 2007. Disponível em: www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-10102007-150946/pt-br.php, acessado em abril de 2013. 3 Cf. Priscila Hayner. Unspeakable truths. 4 “Do lado das vítimas, o benefício é inegável em termos indivisamente terapêuticos, morais e políticos. Famílias que lutaram durante anos para saber puderam dizer sua dor, exalar seu ódio perante os ofensores e diante de testemunhas. À custa de longas sessões, puderam narrar as sevícias e nomear os criminosos. Nesse sentido, as audiências permitiram verdadeiramente um exercício público do trabalho de memória e de luto, guiado por um proce-
se encontra sob a superfície desta espécie de discurso pacifista é a estrutura de um estado de exceção constante, seja pelo fato da não aplicação do direito ordinário, demandando, devido às condições específicas das negociações de transição, um acesso restrito ou emergencial para as vítimas, seja pela aceitação da manutenção no jogo democrático das mesmas forças que atuaram na construção da estrutura da repressão no antigo regime. O Brasil é um caso evidente da presença de estados de exceção no processo de transição, o que viria a marcar de modo determinante a democracia. O partido do governo militar se dividiu e criou um partido palatável para entrar na composição do novo governo civil e até hoje mantém-se presente nos vários governos constituídos em Brasília. Por outro lado, as vítimas tiveram acesso aos processos reparatórios, por meio das leis de indenização dos familiares de mortos e desaparecidos e a da anistia, com algumas poucas medidas de reconhecimento de sua condição (lugares de memória, publicações, discursos etc.),
Intervenção da Kiwi Companhia de Teatro no ato organizado pela Frente de Esculacho Popular contra Homero César Machado, 2012
Os processos de transição na América Latina adotaram o caminho da impunidade dos criminosos dos regimes ditatoriais, sob a legitimação simbólica de que se anistiou os dois lados
foto fernando kinas
saídas negociadas para as novas democracias. O que
dimento contraditório apropriado. Ao oferecer um espaço público à queixa e à narrativa dos sofrimentos, a comissão certamente suscitou uma katharsis compartilhada” (Ricoeur 2007: 490). Paul Ricoeur chega a esta conclusão a partir da análise do caso sul africano e de sua Comissão Verdade e Reconciliação. Também as experiências similares da América Latina têm sido analisadas sob este ponto de vista e vem ganhando destaque a ideia de produção de um ganho individual e coletivo, sob a forma da experiência de uma compaixão das dores das vítimas em instituições especiais criadas com este fim. Em cada país, houve um grau diferente desta prática, mas os discursos que acompanharam estes eventos compartilham de certo consenso sobre os efeitos de memória e luto desta política.
69
foto fernando kinas
aquiagora
Instalação com fotos de desaparecidos políticos argentinos, Escola de Mecânica da Armada, Buenos Aires, 2012
mas não possuem o direito constitucional e dos tra-
Justiça de transição
tados internacionais de abrir um processo penal ou
O termo “justiça de transição” é uma referência
de terem garantidos seus direitos à informação sobre
discursiva às práticas políticas que delimitam uma
a repressão constante dos arquivos militares.
experiência histórica na qual a justiça e as ações de
Como, nas novas democracias, é possível construir
transformação social adequam-se ao período de ex-
uma narrativa separando os responsáveis pelas viola-
ceção no qual não se está mais nos regimes autoritá-
ções aos direitos humanos dos sujeitos engajados na
rios, mas, contudo, ainda não estão consolidadas as
luta contra as ditaduras se as comissões da verdade
instituições democráticas. Depois de momentos de
têm sido montadas sob o discurso da reconciliação
violência e terrorismo de Estado, ou de guerra civil,
entre os dois lados que estiveram em conflito? Em que
aceita-se a necessidade de adotar uma série de medi-
momento histórico surgiu o saber, supostamente ver-
das voltadas à retomada do respeito à legalidade e às
dadeiro, sobre o que é uma transição política e como
relações democráticas, aceitando em caráter emer-
fazer justiça durante este período? O que significa in-
gencial a negociação da plena efetivação destas medi-
cluir ao termo “justiça” a qualidade “de transição”?
das. São as chamadas “transições políticas”, períodos
Estas são algumas questões suscitadas pelo modo
históricos e contingentes aos quais se procura adap-
como os novos regimes, na passagem entre os sécu-
tar os ideais de justiça e apuração das violações de
los, lidaram com seu legado de violência e autorita-
direitos, bem como a reforma das instituições.
rismo, controlando, legitimados sob este contexto e
A pesquisadora Ruti Teitel montou o conceito de
os saberes sobre ele produzidos, as estratégias e táti-
justiça de transição com base em três momentos his-
cas da ação política democrática.
tóricos5: o primeiro refere-se ao período posterior à
5
observação sobre o caráter excepcional desses momentos históricos, bem como a possibilidade de reunir em uma mesma formação discursiva as A demandas das vítimas e os bloqueios à justiça nos novos regimes, levou a pesquisadora argentina Ruti Teitel a se utilizar da formulação “justice in times of transition”, em um evento ocorrido em 1992. As primeiras formulações do termo foram publicados em Neil Kritz, Transitional Justice: How Emerging Democracies Reckon with Former Regimes, em 1995.
Segunda Guerra Mundial e à instalação do Tribunal de Nuremberg, no qual os julgamentos se estruturaram de modo excepcional e com características internacionais; no segundo momento, o das transições após regimes autoritários na América Latina, África, Ásia e Leste Europeu, no qual as negociações e tentativas de atos de justiça são marcados, além de seu aspecto de exceção, pelas soluções locais e nacionais, sempre com negociações entre os antigos e os novos atores
O que significa incluir ao termo “justiça” a qualidade “de transição”?
políticos; e, no terceiro período, na última década do século XX, as práticas que levaram ao conceito de jus-
fere-se ao direito à reparação, seja pecuniária ou sim-
tiça de transição começam a se configurar enquanto
bólica, podendo ser individual ou coletiva. A segunda,
discurso verdadeiro6 acerca do melhor modo de lidar
nomeada como direito à memória, configura-se nas
com as negociações e limites impostos pelo momento
políticas de esclarecimentos dos fatos e de homena-
histórico. Nesta última fase, a maior característica é a
gem aos perseguidos; além de apurar o funcionamen-
consideração de que a exceção contida em seus atos é
to da estrutura repressiva, há o elogio dos atos de re-
normatizada e institucionalizada tornando-se regra
sistência. Nestes dois primeiros aspectos são incluídas
aceita pelo direito internacional e pelos novos gover-
medidas como construção ou definição de lugares de
nos democráticos, justamente por levar em conta os
memória. O terceiro aspecto das medidas da justiça de
limites impostos pelas negociações das transições.
transição seria o direito à verdade, efetuado por meio
Os novos regimes democráticos se estabelece-
do acesso às informações dos arquivos da repressão,
ram, de modo geral, a partir de negociações e acordos
das comissões de auxílio do Estado, tais como as co-
realizados em condições privadas e sem o consenti-
missões da verdade. Um quarto aspecto inclui o direi-
mento dos novos atores políticos que se organiza-
to à justiça e consiste na investigação dos fatos e na
riam nas condições de liberdade política das demo-
responsabilização jurídica dos responsáveis pelas vio-
cracias liberais em construção. As transições
lações aos direitos humanos. Tal discurso teria de ser
sofreram a autorização dos antigos ditadores em
amplo o suficiente para incluir as exigências das víti-
pactos com os novos líderes democráticos para ini-
mas e dos familiares de mortos e desaparecidos, bem
ciarem os processos de transferência de governos e
como os limites e os bloqueios aos avanços possibili-
de reforma das instituições. Na contingência política
tados pelas regras do estado de direito.
destes períodos, as antigas forças dos regimes auto-
Ressalte-se que tais demandas nada mais são do
ritários mantinham certo controle da economia, o
que um clamor pela igualdade perante a lei do estado
monopólio da violência por parte das forças arma-
de direito e a aplicação do direito penal, assim como o
das, a ameaça no imaginário social de uma perma-
reconhecimento da importância de sua luta para a
nente possibilidade de golpe de Estado e a conse-
instalação da democracia. Com o intuito de lidar com
quente desestabilização do novo regime. A escolha
o reclamo das vítimas por justiça e verdade e de evitar,
pela estabilização e consolidação da democracia se
por outro lado, a ação desestabilizadora de represen-
impõe em detrimento das exigências das vítimas
tantes dos antigos governantes, configurou-se a de-
pelos seus direitos à verdade e à justiça.
manda pela elaboração de um discurso que autorizas-
Com poucas variações, o discurso da justiça de
se práticas de governo a gerir este período de exceção
transição inclui quatro ideias centrais. A primeira re-
com o objetivo de garantir a legitimidade do novo re-
6 Há uma predisposição, na sociedade moderna, de validar as ações por meio de um discurso considerado verdadeiro. E, para se encontrar de posse do discurso, é preciso se submeter às regras e controles que o determinam, o que limita ou anula o acesso à sua produção e seu uso. Dessa forma, para utilizar um discurso é preciso estar preparado, condicionado, qualificar-se para pronunciá-lo, de modo que se determina um conjunto reduzido dos especialistas autorizados a esta fala. Se, por um lado, os discursos são construções sujeitas a mecanismos de controle, sua difusão e partilha também condicionam aqueles que o escutam, na medida em que se reconhecer em um destes discursos pode definir sua pertença a um determinado coletivo. Mais do que isto, pode ainda legitimar ações que corroborem os valores mobilizados pelo discurso, concedendo certa soberania ao sujeito que dele participa. Para Michel Foucault, a análise do discurso demanda três passos metodológicos: “questionar nossa vontade de verdade; restituir ao discurso seu caráter de acontecimento; suspender, enfim, a soberania do significante”. (Foucault: 1971, 51).
71
políticacultural
A ditadura brasileira imprimiu nas relações institucionais e políticas nacionais uma indefinição entre o democrático e o autoritário
gica a partir da qual se lançam as políticas do possível, de acordo com os graus de estabilização política ou das relações de forças existentes, não nos permite compreender a amplitude e o alcance de sua ação. Em especial, não nos permite diagnosticar a razão pela qual tanto os movimentos de direitos humanos e de vítimas, quanto os governos formados pelos novos e antigos atores (incluindo os aliados da hora oriundos dos regimes autoritários) empregam tal discurso, ou parte dele, a depender de qual lugar o proferem. O caso brasileiro
Passados cerca de 30 anos do fim do regime autoritário poderíamos dizer que a transição para a democracia continua em andamento? Quando assistimos a ocorrência de violência institucional, desrespeito aos direitos do cidadão ou aos direitos humanos, forte desigualdade social, pouca participação popular nas decisões, teríamos um sinal de que estruturas herdadas do período ditatorial permanecem? Ou um mode-
72
gime, o que incluía o reconhecimento dos compromis-
lo de democracia no qual o povo, elemento funda-
sos assumidos durante as negociações da transição.
mental para as decisões políticas, encontra-se com
A ação de governo da justiça de transição visa
presença reduzida nas instâncias de governo?
transformar o que se apresentava como excepcional e
A ditadura brasileira imprimiu nas relações insti-
arriscado em algo normal e institucionalizado, de
tucionais e políticas nacionais uma indefinição entre
modos distintos nas várias situações e locais onde se
o democrático e o autoritário, nas quais o legal e o
apresentou, mas com a autorização do ordenamento
ilícito, o legítimo e o injusto, o justo e o abuso de
jurídico para o acionamento da exceção como norma.
poder, a segurança e a violência são lançados em uma
As relações entre o estado de direito e a violência in-
zona cinzenta de indistinção. A promessa democráti-
clusa nas ações de exceção ao direito, nas várias expe-
ca de se desfazer das injustiças do passado e de pro-
riências das democracias contemporâneas e em espe-
duzir os remédios necessários para o tratamento do
cial no discurso da justiça de transição, parecem
sofrimento social autorizam tanto as ações sociais de
confirmar a tese de Giorgio Agamben de que o estado
diminuição da precariedade da vida social, quanto le-
de exceção tem se tornado um paradigma de governo.
gitimam o acionamento de medidas emergenciais ou
Quanto mais se consolidam as formas de ação políti-
violentas, sem respeito a um modo partilhado de li-
ca destes regimes, mais ganha relevância determina-
dar com a vida social e política. Há no país um modo
do cálculo de governo no qual a suspensão do orde-
de conjugar lei e anomia que fica mais evidente
namento é realizada com base na necessidade urgente
quando analisamos como foi encaminhada a transi-
de proteção da vida e de promoção da justiça .
ção entre o regime ditatorial e a democracia.
7
Salientamos que considerar o discurso da justiça
Uma lógica política que se evidencia neste pro-
de transição somente como uma plataforma estraté-
cesso, e caracteriza-se como algo comum às demo-
7 Inaugurou-se uma democracia cuja herança das injustiças e carências do passado justifica a adoção de medidas necessárias e terapêuticas. Sob a promessa de desfazer os erros cometidos (sempre em outro governo, outro Estado, outra história) e diminuir o sofrimento social autoriza-se o acionamento de medidas emergenciais que dispensam os procedimentos democráticos. Tais medidas, de modo geral, não são ilegais e se encontram dentro do ordenamento. Contudo, deveriam ser autorizadas somente em situações especiais e de alta necessidade. Como se utiliza na atualidade é uma espécie de ato ilícito autorizado pelo lícito. Seguindo a um cálculo de governo sobre o que o estado pode ou autoriza se estabelece a suspensão do ordenamento em favor da construção da governabilidade. Cito Giorgio Agamben sobre o lugar da exceção no contexto democrático: “(…) a partir do momento em que ‘o estado de exceção tornou-se regra’ (Benjamin 1994), ele não só sempre se apresenta muito mais como uma técnica de governo do que como uma medida excepcional, mas também deixa aparecer sua natureza de paradigma constitutivo da ordem jurídica” (Agamben: 2004, 18). Trabalhei inicialmente a ideia de uma biopolítica fundamentada no discurso dos direitos humanos, a qual autoriza nas novas democracias o acionamento de estados de exceção. Cf. El discurso de los derechos humanos y la gobernanza del sufrimiento social (2012).
cracias contemporâneas, são os cálculos de governo.
verno imporá suas decisões. A política do possível
Segundo esta lógica, há toda uma série de relações de
cria um consenso cujo resultado é o bloqueio dos
forças em conflito que não podem ser reguladas pelo
restos resultantes do cálculo, notadamente os movi-
direito. O ordenamento jurídico inclui em suas letras
mentos de resistência às políticas de estado.
o que pode ser observado em sua regularidade e repe-
A ideia de reconciliação, por vezes rejeitada e em
tição. Mas há algo que escapa às séries regulares: a
outras adotada pelos atores políticos, tem lugar junto
ação política singular e inovadora. Não podemos pre-
ao discurso da justiça de transição. Enquanto parte do
ver o resultado das relações de forças, mobilizações
esforço para o esclarecimento dos crimes ocorridos,
de opinião pública, vulneráveis aos acontecimentos
os movimentos de vítimas aceitam o uso do termo
aleatórios e modificáveis pelas constantes alterações
reconciliação se colocado a uma prática de apuração
na capacidade de luta dos envolvidos. E, justamente, o
dos fatos. Contudo, na mesma iniciativa, é possível
modo com que o estado de direito lida com o não re-
identificar no discurso da justiça de transição um uso
gular é através de um cálculo de governo.
abusivo da ideia de reconciliação, como uma astúcia
Na lógica da governabilidade democrática realiza-
para que as ações de determinada iniciativa ganhem
se a conta do que é provável, compondo com as forças
maior legitimidade. Na lei de criação da atual Comis-
mais poderosas e fixando uma média considerada
são Nacional da Verdade está escrito que a Comissão
possível, além da qual praticamente nada será permi-
irá “examinar e esclarecer as graves violações de di-
tido. No cálculo da política de estado os restos são
reitos humanos (...) a fim de efetivar o direito à me-
computados, mas possuem um valor diferenciado,
mória e à verdade histórica e promover a reconciliação
ora sendo importante para dar vazão às ações reivin-
nacional” (grifo nosso)8. Ao remeter os trabalhos da
dicatórias, mas, por outras vezes, sendo manipulados
Comissão da Verdade a um processo de reconciliação
para autorizar a medida autoritária com a qual o go-
não nos parece haver a indicação de que experimen-
A Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, que cria a Comissão Nacional da Verdade. “Artigo 1o.: É criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm, acessado em: abril de 2013.
8
73
foto fernando kinas
aquiagora
Cena sobre os “voos da morte”, peça Morro como um país, Kiwi Companhia de Teatro, 2013
tamos um momento histórico de instabilidade para
com bombas explodindo em bancas que vendiam jor-
as instituições democráticas ou o perigo de um golpe
nais de oposição. Apesar da leitura de impunidade da
de estado por parte dos militares. A inclusão do ter-
lei advir deste contexto repressivo, o Supremo Tri-
mo “reconciliação” indica uma retórica que alude ao
bunal Federal, em 2010, instado a se pronunciar sobre
conflito violento vivido na ditadura, mas que funcio-
a validade da lei para torturadores, manteve a leitura
na hoje, quase 30 após os fatos, como um bloqueio
da não punição aos responsáveis por torturas e mor-
visando limitar a possibilidade de a Comissão atuar
tes sob o argumento de que a lei de 1979 seria o pro-
em conjunto com os atos de justiça e de esclareci-
duto de um grande acordo nacional.
mento da responsabilidade penal e política das graves violações da dignidade humana.
Vemos, neste caso emblemático, que aquilo que permaneceu da ditadura não é mais, ou somente, uma
Por que a retórica ligada a uma justiça de transi-
herança e agora se configura como o produto de um
ção, como a dos termos reconciliação e perdão, con-
processo ruminado pelo estado de direito e com deci-
tinuam a ser utilizadas com mais de 25 anos de esta-
são final do órgão máximo do ordenamento jurídico.
do de direito? Falamos, por exemplo, da Lei de Anistia
Se visitarmos outros aspectos da herança ditatorial,
de 1979, a qual é lida desde então como ato de não
veremos como parte deste legado vem se renovando
punição dos envolvidos com a violência do estado di-
nas estruturas da atual democracia. A tortura, institu-
tatorial. No ano de sua criação ainda vivíamos sob o
cionalizada na ditadura, é praticada largamente no atu-
regime militar, com um Congresso cassado pouco
al sistema penitenciário, nas febens e nas delegacias. A
tempo antes, senadores biônicos - que eram indica-
violência policial vem crescendo sistematicamente,
dos pelos generais, sem participarem das eleições - e
ampliando seu alvo que, no presente, não é somente o
militante, mas também o jovem de periferia, o favela-
Bibliografia
do, o negro etc. Não se trata aqui de estabelecer uma indistinção entre democracia e ditadura. Ao contrário, sob a superfície do discurso da justiça de transição e
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
de uma democracia consolidada e exemplar, encon-
ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro:
tramos formas de agir cuja astúcia é combinarem
Forense Universitária, 1997.
meios autoritários, mas parecendo democráticos. Por que fazer uso do discurso da justiça de transição se não estamos mais em um período histórico de
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Obras escolhidas I, Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, pp. 222-234.
exceção, de incerteza entre a opção democrática e uma ditadura? Primeiro, porque a demanda por justiça, apesar de passados quatro ou cinco décadas dos crimes,
FOUCAULT, Michel. L’Ordre du discours. Leçon inaugurale ao Collège de France. Paris: Gallimard, 1971.
ainda existe. Enquanto houver alguma vítima ou pa-
HAYNER, Priscilla B. Unspeakable Truths. Facing the Challenge of Truths
rente direto das vítimas vivo, certamente haverá pres-
Commissions. New York: Routledge, 2002.
são para que se inicie procedimentos de responsabilização penal e as ações inclusas na justiça de transição serão mobilizadas pelos movimentos de direitos hu-
KRITZ, Neil. Transitional Justice: How Emerging Democracies Reckon with Former Regimes. v. I, II e III. Washington DC: United States Institute of Peace, 1995.
manos. De fato, quanto mais adentramos em uma cul-
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas/SP: Uni-
tura de estado de direito, mais caminhos se abrem para
camp, 2007.
esta reclamação. Segundo, porque esta formação dis-
TEITEL, Ruti. Transitional Justice. Nova York: Oxford University, 2000.
cursiva, ao alegar a continuidade do período excepcio-
TELES, Edson. El discurso de los derechos humanos y la gobernanza del sufri-
nal da transição, autoriza a negociação, ou em alguns
miento social. In: La urbe global y el gobierno de la vida humana. Justicia,
casos a negação, da aplicação das leis da Constituição
alteridad y memoria em los espacios de poder. Organizadores: Castor Barto-
de 1988 e dos acordos internacionais assinados pelo
lome Ruiz, Rúben Alberto Duarte Cuadros. Bogotá / Colômbia: Universidad
Estado brasileiro, os quais afirmam a imprescriptibili-
Libre de Colombia, 2012.
dade dos crimes de graves violações dos direitos hu-
____________ Brasil e África do Sul: memória política em democracias com
manos, como a tortura e o desaparecimento forçado. O
herança autoritária. São Paulo: Filosofia / USP, 2007. Disponível em: www.te-
caráter excepcional permite práticas de governo de
ses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-10102007-150946/pt-br.php, acessa-
controle dos processos políticos relacionados às de-
do em abril de 2013.
mandas não só das vítimas dos crimes da ditadura, mas também sobre representações contra práticas autoritárias adotadas sob o discurso da necessidade de proteção da vida e do desenvolvimento do país. Este mesmo aspecto de exceção participa da legitimação das ações de criação das comissões da verdade (a nacional e as tantas outras que vêm sendo criadas em todo o território nacional e em variadas instituições). O uso do discurso da justiça de transição participa da característica imprevisível da ação política9, imprimindo um papel importante na invenção de saídas inéditas ou não permitidas em um contexto de suposta normalidade. 9 Há na ação humana a marca da singularidade do sujeito, a expressão de discursos e de escolhas próprias que impedem a absoluta previsão de seu agir, ou ainda, faz com que não seja possível enquadrá-la por completo em uma regularidade. O aspecto de imprevisibilidade da política é justamente o que não poderá ser incluído no ordenamento. Seria como se houvesse algo do estado de natureza incluído no contrato social que se encontra, ao mesmo tempo, excluído das normas. E a forma como os ordenamentos do estado moderno trataram esse problema lógico-jurídico foi através da autorização ao soberano para que ele decidisse sobre a necessidade de acionar, sempre que algo não previsto nas leis ocorresse, medidas de exceção. A ação é também imprevisível, pois resulta da relação social entre sujeitos singulares e discursos dissonantes e, por mais que se criem modos de estabilizar as profundas diferenças – como, por exemplo, as leis –, não podemos predizer o ato. Será justamente o caráter contingencial da ação humana que não poderá ser incluído no ordenamento. Cf. Arendt, A condição humana (1997).
75
aquiagora » por José Arbex Jr. Jornalista e professor da PUC-SP
Triste crônica
de um destino anunciado
Se eu ganhasse a presidência para fazer o mesmo que o Fernando Henrique Cardoso está fazendo, preferiria que Deus me tirasse a vida antes. Para não passar vergonha. Porque sabe o que acontece? Tem muita gente que tem o direito de mentir, o direito de enganar. Eu
não
tenho.
Há
uma
coisa
que
tenho
como
sagrada:
é não perder o direito de olhar nos olhos de meus companheiros e de dormir com a consciência tranquila de que a gente é capaz de cumprir cada palavra que a gente assume. E, quando não as cumprir, ter coragem de discutir por que não cumpriu. 76
(Luiz Inácio Lula da Silva, novembro de 2000, em entrevista à revista Caros Amigos)
Se algum evento isolado for capaz de, por si só,
Norte, de Natal. Durante longas horas, milhares de
revelar o significado social e político do lulismo, o
famílias que dependem do dinheiro distribuído pelo
“pânico da Bolsa Família” é um forte candidato.
governo federal sentiram na pele, impotentes, uma
Aconteceu em 18 de maio, no Rio de Janeiro, nas ca-
situação de extrema angústia, até obterem a compro-
pitais e em grandes cidades de Alagoas, Bahia, Per-
vação de que tudo não passava de um boato.
nambuco, Paraíba, Piauí, Maranhão, Sergipe, Rio
Num primeiro momento, o governo federal acu-
Grande do Norte, Amazonas e Pará: dezenas de mi-
sou a oposição pela disseminação das informações
lhares de pessoas, alarmadas por notícias de que o
falsas. A ministra Maria do Rosário, da Secretaria
programa seria extinto, fizeram filas imensas diante
Nacional dos Direitos Humanos, atribuiu responsa-
de 110 agências da Caixa Econômica Federal, para sa-
bilidade à “central de notícias da oposição”. Em se-
car tudo o que pudessem. Havia muita ansiedade e
guida, a presidente Dilma Rousseff afirmou: Ӄ algo
desespero por parte daqueles que acreditavam que o
absurdamente desumano, o autor desse boato. Por
benefício seria extinto. “Valdeniria Ferreira dos San-
isso, além de desumano, ele é criminoso. Por isso,
tos, que esperava na fila, conta que no domingo (dia
nós colocamos a Polícia Federal para descobrir a ori-
19) a irmã saiu de Parnamirim e percorreu, em vão, as
gem de um boato que tinha por objetivo levar a in-
agências de Emaús, Nova Parnamirim, Via Direta e
tranquilidade aos milhões de brasileiros que nos úl-
Midway. ‘Não tinha dinheiro (no caixa), então ela ia
timos dez anos estão saindo da pobreza extrema”. E
pra outra tentar sacar’“, relata o jornal Tribuna do
o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, deter-
minou à Polícia Federal a investigação da origem do
que isso. A explicação para tamanha anomia não é nada
boato. No final das contas, apurou-se que tudo foi
complicada. Ao contrário: é bastante óbvia. O rebaixa-
provocado por um mal entendido gerado pela admi-
mento da consciência, a passividade face aos desman-
nistração da própria Caixa.
dos do poder público e a desarticulação política não são
A oposição aproveitou o episódio para ganhar o
apenas um resultado do lulismo, mas são acima de
máximo de pontos possíveis. O líder do PSDB na Câ-
tudo o seu pressuposto, condição sine qua non para o
mara, deputado Carlos Sampaio (SP), exigiu à minis-
seu desenvolvimento e sucesso político e eleitoral.
tra explicações sobre a frase. O senador Aécio Neves
A essência do que seria o lulismo, cujo programa
(MG), presidente do PSDB e provável candidato tuca-
está contido na “Carta aos Brasileiros” de junho de
no à presidência do Brasil, declarou que ambas, Dil-
2002, foi claramente explicitada já no discurso de
ma e Maria, deveriam se retratar publicamente. “Pe-
posse do presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva,
dir desculpas ao país não é humilhação, é um gesto de
proferido em 1º de janeiro de 2003 no Congresso Na-
grandeza e responsabilidade. Como seria também
cional: de um total de 3.824 palavras, “trabalhadores”
repreender publicamente os membros do governo
aparece apenas três vezes. Não se trata, aqui, de pre-
que, de forma leviana, atacaram a oposição e os que
ciosismo nem de “firulas” linguísticas. Ao contrário: a
mentiram - e mantiveram a mentira - ao país sobre o
questão é dar o devido peso a um discurso histórico,
episódio”, afirmou o senador, em nota à imprensa.
feito em momento solene, de grande expectativa na-
O “pânico da Bolsa Família”, em resumo, anun-
cional, pela primeira vez pronunciado por alguém não
ciou-se como tragédia e terminou como farsa. A
oriundo das elites. Em momentos como esses, de sig-
principal vítima, mais uma vez, foram as famílias de
nificado político e simbólico concentrado, cada pala-
trabalhadores e pobres brasileiros expostas ao jogo de
vra – e, portanto, cada silêncio e omissão - tem peso
poder entre lídimos representantes do poder público.
específico, funciona como uma espécie de chave para
Como consequência de um equívoco administrativo,
a compreensão e ação sobre determinada conjuntura.
o episódio revelou a natureza do programa Bolsa Fa-
Em vivo contraste com o discurso de Lula, a festa
mília aos olhos de toda a nação como aquilo que ela
da posse vista nas ruas de Brasília foi majoritaria-
realmente é: uma mera concessão do governo, que
mente protagonizada pelos trabalhadores. Famílias
pode ser retirada a qualquer momento, bastando para
inteiras viajaram de muito longe para tentar cumpri-
isso a canetada de um burocrata. E também um pode-
mentar o presidente eleito. Muitos choravam de
rosíssimo artifício eleitoral cobiçado por uma oposi-
emoção, falava-se no “renascimento” do Brasil. Havia
ção espúria, cujo porta-voz fala em “grandeza” e “res-
a percepção de que pela primeira vez, em cinco sécu-
ponsabilidade” com a mesma candura com que
los de história, algo realmente novo surgia no hori-
Lucrécia Bórgia recebia seus amantes na alcova.
zonte. Apesar disso tudo, e contra as expectativas da
A isso se reduz, portanto, a principal medida de
maioria daqueles que o elegeram, Lula fez um discur-
justiça social arquitetada pelo lulismo, de quem a pre-
so endereçado às elites. O recado subjacente era: não
sidente Dilma Rousseff é legítima porta-voz. A situa-
haverá ruptura da ordem nem dos contratos (referên-
ção de perplexidade e impotência que marcou a reação
cia, em particular, aos acordos financeiros impostos
das famílias supostamente afetadas demonstra a que
pelo sistema financeiro internacional). Uma das três
ponto chegou o grau de rebaixamento das consciências.
vezes em que os trabalhadores deram o ar de sua gra-
Não houve protestos generalizados pelo suposto ataque
ça no pronunciamento do senhor presidente foi
a um direito social adquirido; não foram exibidos faixas
quando ele fez uma breve menção ao partido cons-
e cartazes contra o governo federal, nem foram gritadas
truído pelas heróicas greves do ABC, nos final dos
palavras de ordem para denunciar o abuso. Houve quei-
anos 70. Nas outras duas, foi para anunciar a propos-
xas e lamentos, raiva e frustração, mas nada mais do
ta de governo de conciliação nacional:
77
aquiagora
Não há como discordar da avaliação genérica de que a falta de unidade das esquerdas sempre contribuiu para as derrotas sofridas pelos trabalhadores
citados depois de “empresários”, e na segunda ficam em último lugar de uma longa lista (empresariado, partidos políticos, Forças Armadas). Significativamente, não aparece no discurso um único chamado à mobilização popular para que, naquele contexto vitorioso, os movimentos sociais e a base petista se sentissem revitalizados e tomassem as ruas para expor suas reivindicações. A perspectiva de mobilização é substituída pela ideia de “colaboração”, “generosidade do povo”, “fé no amanhã”, “alegria de viver”, “paciência”, “perseverança” etc. Os trabalhadores e o povo são assim encorajados a manter uma postura passiva e resignada, em pleno momento de uma extraordinária vitória política. No máximo, Lula convocou o povo a um “mutirão cívico contra a fome” (o então festejado
78
O pacto social será, igualmente, decisivo para via-
programa Fome Zero). O discurso inteiro constituiu,
bilizar as reformas que a sociedade brasileira reclama
fundamentalmente, um apelo para que as iniciativas
e que eu me comprometi a fazer: a reforma da Previ-
da vida política fossem depositadas integralmente
dência, reforma tributária, reforma política e da legis-
nas mãos dos chefes de Brasília. Se os trabalhadores
lação trabalhista, além da própria reforma agrária.
aparecem apenas três vezes (e “povo” dezesseis), “eu”
Esse conjunto de reformas vai impulsionar um novo
e “meu governo” repetem-se quase que a cada pará-
ciclo do desenvolvimento nacional.
grafo. Paciência bovina foi, precisamente, o que se viu
Instrumento fundamental desse pacto pela mu-
nas filas do Bolsa Família de 18 de maio.
dança será o Conselho Nacional de Desenvolvimento
De fato, o governo presidido por Luiz Inácio Lula
Econômico e Social que pretendo instalar já a partir de
da Silva jamais guardou qualquer relação com as as-
janeiro, reunindo empresários, trabalhadores e lideran-
pirações daqueles que, com sacrifícios imensos,
ças dos diferentes segmentos da sociedade civil.
construíram o Partido dos Trabalhadores e a Central
Estamos em um momento particularmente propí-
Única dos Trabalhadores, ao longo de quase três dé-
cio para isso. Um momento raro da vida de um povo.
cadas de luta. Nenhuma, absolutamente nenhuma
Um momento em que o Presidente da República tem
relação. Ao contrário, constituiu uma administração
consigo, ao seu lado, a vontade nacional. O empresa-
feita para as elites, com a grande vantagem de não
riado, os partidos políticos, as Forças Armadas e os
contar com uma oposição partidária de esquerda. Em
trabalhadores estão unidos. Os homens, as mulheres,
resumo, Lula chefiou um governo que bem poderia
os mais velhos, os mais jovens, estão irmanados em um
ser o de Fernando Henrique Cardoso, mas sem o en-
mesmo propósito de contribuir para que o país cum-
trave representado pelo PT e pela CUT.
pra o seu destino histórico de prosperidade e justiça.
É claro que ninguém, nem o mais alucinado militante de esquerda, esperava que Lula iniciasse o seu
Mesmo deixando de lado a discussão sobre o con-
mandato com uma conclamação à construção do so-
teúdo do pacto proposto – uma aliança de classes de
cialismo. Mas há uma distância imensa entre o ex-
amplíssimo espectro, simbolizado pela presença de
tremo configurado por uma postura esquerdista ir-
um empresário na vice-presidência e de um banquei-
responsável e outro, assumido por Lula, de fazer um
ro na presidência do Banco Central -, nota-se que na
discurso essencialmente tão conservador quanto o
primeira vez em que aparecem, os trabalhadores são
de qualquer outro político tradicional. Não há nada
no seu pronunciamento inaugural que não pudesse
vembro de 2003, em São Paulo. Na ocasião, Lula ata-
ser dito, por exemplo, por FHC, exceto as referências
cou o “sectarismo” da esquerda e defendeu o respei-
ao passado pessoal. Lula só se refere à vontade de
to à diferença. “Nas derrotas do socialismo, sempre a
mudança manifestada nas urnas – por ele qualifica-
desunião ocupou um lugar importante. Nas vitórias,
da como “ansiedades sociais” - ao vestir o uniforme
a unidade foi fundamental”, afirmou diante de 500
de bombeiro da luta de classes. Pede, então, que se-
pessoas, incluindo 50 chefes de governo e de Estado
jam mantidas “sob controle”:
e representantes de 150 partidos socialistas, socialdemocratas e trabalhistas.
Teremos que manter sob controle as nossas mui-
Não há como discordar da avaliação genérica de que
tas e legítimas ansiedades sociais, para que elas pos-
o sectarismo e a falta de unidade das esquerdas sempre
sam ser atendidas no ritmo adequado e no momento
contribuíram para as derrotas sofridas pelos trabalha-
justo; teremos que pisar na estrada com os olhos
dores. Mas isso não significa que qualquer “união” seja
abertos e caminhar com os passos pensados, preci-
desejável. E impõe-se saber a que “vitórias do socialis-
sos e sólidos, pelo simples motivo de que ninguém
mo” Lula se referia, ainda mais no âmbito de uma con-
pode colher os frutos antes de plantar as árvores.
ferência mundial que reuniu alguns dos principais responsáveis pela implantação do neoliberalismo na
Em incontáveis ocasiões subsequentes, o presi-
Europa, como é o caso dos partidos socialistas e traba-
dente e os seus seguidores do segundo, terceiro, quar-
lhistas da Grã-Bretanha (liderado por ninguém menos
to e quinto escalão falaram do longo processo de
que o mentiroso e fanfarrão primeiro-ministro Tony
“aprendizado” e “amadurecimento” graças ao qual
Blair), França (François Mitterrand, Lionel Jospin), Es-
abandonaram o “esquerdismo romântico” da juventu-
panha (Felipe González) e Portugal (Mário Soares).
de. Não perderam nenhuma oportunidade de de-
Em nome de uma suposta guerra às “visões ultra-
monstrar, na prática, que aprenderam bem como fun-
passadas pela história”, especialmente após a queda do
ciona o “mundo de verdade”. Uma dessas ocasiões foi
Muro de Berlim, a IS adotou a perspectiva neoliberal,
oferecida em 6 de agosto de 2003 com a morte de
com alguns resquícios envergonhados de preocupa-
Roberto Marinho – ninguém menos do que o czar do
ções sociais. O “pragmatismo político” – uma espécie
monopólio da comunicação no Brasil, o chefão da rede
de “socialismo de resultados” – tornou-se o norte da
Globo. Lula decretou três de dias de luto, e declarou:
organização, totalmente divorciada da Internacional Socialista criada em 14 de julho de 1889, em Paris, du-
O Brasil perde um homem que passou a vida acre-
rante as celebrações do primeiro centenário da Queda
ditando no Brasil. Como dizia nosso amigo Carlito
da Bastilha. Não por acaso, em absoluta sintonia com
Maia: “Tem gente que vem ao mundo a passeio e tem
o espírito da “terceira via” (embuste ideológico formu-
gente que vem ao mundo a serviço”. Roberto Marinho
lado por Blair, uma espécie de “capitalismo com face
foi um homem que veio ao mundo a serviço. Quase
humana”), Lula apresentou-se aos delegados da IS
um século de vida de serviços prestados à comunica-
como um advogado do livre comércio... “civilizado”:
ção, à educação e ao futuro do Brasil. À família, aos amigos e aos funcionários das Organizações Globo rendo as minhas homenagens póstumas.
Para atingir as metas do milênio, que sintetizam os ideais de um mundo socialmente mais equilibrado, necessitamos novas relações internacionais, econô-
Um dos pronunciamentos mais importantes de
micas, comerciais e culturais.
Lula, do ponto de vista da explicitação ideológica,
Há economias que pregam o livre comércio, mas
aconteceu durante a abertura do 22º Congresso da
praticam intensamente o protecionismo. Querem tari-
Internacional Socialista (IS), realizado em 27 de no-
fa zero nas relações comerciais, mas não abrem mão
79
aquiagora de subsídios que hoje alcançam um bilhão de dólares
substância de esquerda. Não por acaso, os socialistas
por dia. Querem liberalizar serviços, investimentos,
maduros resolveram fazer o seu congresso no Brasil.
propriedade intelectual e compras governamentais,
O seu objetivo era cooptar organicamente o PT, que,
mas utilizam cotas e medidas antidumping para pro-
segundo o seu então presidente, José Genoíno, havia
teger setores ineficientes de suas economias.
sido formalmente convidado e estudava a proposta
Nas negociações em curso na Organização Mundial do Comércio e naquelas para a formação de uma
(no Brasil, o PDT, então liderado por Leonel Brizola, era o único integrante da IS).
Área de Livre Comércio das Américas, temos procu-
Os dirigentes da IS sabiam que a adesão do PT,
rado desenvolver uma agenda positiva. O G-22 for-
pelo menos até aquele momento de auge, anterior à
mou-se em Cancún para tentar uma saída para os
crise de 2005, teria um grande impacto sobre o con-
impasses na Organização Mundial do Comércio.
junto dos movimentos de esquerda da América Lati-
Em todos esses encontros, defendemos apenas o
na. Sinalizaria que o partido havia, finalmente, atado
interesse nacional, as políticas acordadas no âmbito
ao seu próprio pescoço as rédeas de uma organização
do Mercosul e em outros fóruns criados pelos países
domesticada, disciplinada e devidamente enquadrada
em desenvolvimento. Que fique claro, no entanto, que
nos limites do jogo neoliberal. Não poderia haver pior
o Brasil tem governo e quer, junto com outros países,
notícia para os movimentos sociais e organizações
uma ordem econômica mundial mais justa e equili-
guerrilheiras de toda a América Latina.
brada, com igualdade de oportunidades para todos.
O discurso e a prática governista de Lula, adaptados ao mundo globalizado neoliberal, foram transfor-
80
A completa rendição de Lula ao capitalismo foi,
mados em teoria por professores e intelectuais vin-
em certo sentido, muito pior do que a praticada pela
culados à ala lulista do PT. Alguns explicaram, mais
social-democracia europeia. Os dirigentes da IS, pelo
ou menos da seguinte forma, o seu agradável conví-
menos, negociaram os termos da rendição, no senti-
vio com a mesma elite que até o dia anterior comba-
do de assegurar algumas conquistas para a sua base
tiam: os tempos mudaram, o muro caiu, o socialismo
social, especialmente os trabalhadores sindicaliza-
real fracassou, o neoliberalismo triunfou. Nesse qua-
dos, que mantiveram determinados direitos. Lula, ao
dro, “que não fomos nós que escolhemos”, é preciso
contrário, entregou-se sem nada pedir em troca. Não
assegurar a governabilidade. Não podemos sair por
proferiu uma palavra, uma vírgula sequer contra a fa-
aí, enfrentando o imperialismo sozinhos, ainda por
lácia do “livre comércio” em si, mas atacou com vee-
cima correndo o risco de fazer o país mergulhar na
mência o protecionismo, isto é, aqueles que não são
guerra civil. Temos que governar com o cérebro, não
sinceramente liberais. Lula, os economistas do PT e a
com as vísceras. Não podemos ser rancorosos. É pre-
ilustre assembleia de socialistas reunida em São Pau-
ciso lembrar que Lula conquistou o governo, não o
lo sabiam perfeitamente bem que é uma piada e um
poder. Alegavam, sobretudo, que era preciso “dar um
contra-senso sequer imaginar a possibilidade de li-
tempo” até que a “governabilidade” finalmente alcan-
vre comércio quando os desejos de 7 bilhões de seres
çada permitisse ao governo implementar programas
humanos são subordinados aos interesses de qui-
sociais e realizar a reforma agrária.
nhentas ou seiscentas corporações.
Deixando de lado a semelhança com a argumenta-
Os maduros dirigentes socialistas curvaram-se
ção de FHC quanto ao fato de que “o mundo mudou”,
aos parâmetros do Consenso de Washington, eis
se é verdade que houve tal mudança, foi para pior.
tudo. Da Internacional de 1889 – aquela que insti-
Não é preciso ser nenhum especialista em política
tuiu o 1º de maio como Dia do Trabalhador e dirigiu
externa para saber o que significou a presença da gan-
grandes jornadas internacionais de luta - mal restava,
gue de malfeitores liderada por George Bush na Casa
um século depois, um palavreado oco, sem qualquer
Branca, na primeira década do século, com o ataque ao
Afeganistão (2001), a invasão do Iraque (2003) e a articulação da “guerra ao terror”. Além disso, a queda do Muro de Berlim não impediu as contínuas rebeliões na Bolívia, o fortalecimento da república bolivariana da Venezuela, a continuidade da resistência na Colômbia e em Cuba, a revolta na Argentina, a deposição de um presidente neoliberal no Equador. E por aí vai, só para citar os eventos registrados entre 2002 e 2005, no início do primeiro governo Lula. Claro, ninguém queria a eclosão de uma guerra civil no Brasil. Mas há quanto tempo o extermínio de
Pergunta básica: “governabilidade” para quem? Em nome de que interesses e princípios?
jovens e trabalhadores existe de fato? Dados admitidos pela ONU indicam que morrem, por ano, cerca de 50 mil brasileiros como resultado direto da violência. Apenas nos onze primeiros meses do governo Lula,
maioria no Congresso Nacional. Governar o país tor-
foram assassinados 71 trabalhadores rurais, segundo
nou-se um fim em si mesmo, não importa que tipo
a Comissão Pastoral da Terra (aliás, quase o dobro do
de barreiras teriam que ser transpostas (e todas fo-
que o registrado no mesmo período do ano anterior e
ram, aparentemente) para se chegar a esse fim. Com
o mais elevado desde 1991, quando ocorreram 54
isso, a direção petista aceitou as regras do jogo de
mortes). Os fazendeiros armam milícias, as elites ur-
favores e clientelismo de sempre. A diferença é que
banas andam em carros blindados e montam serviços
não constituíam uma oligarquia, eram simples arri-
paramilitares, os pobres se organizam em gangues. A
vistas que, como reza o ditado popular, se lambuza-
violência está aí, por todos os lados, e jamais pediu
ram por não saber como comer. O “mensalão” é só
licença a Lula para existir. O discurso mantido por
um triste retrato disso.
“Lulinha paz e amor” em nada contribuiu para dimi-
Mas o argumento mais pernicioso articulado pe-
nuir a violência. O contrário é mais provável: ao frus-
los intelectuais lulistas tem como um de seus porta-
trar as esperanças daqueles que acreditavam que tudo
vozes mais importantes a professora e filósofa Mari-
ia mudar com a chegada de Lula ao Planalto, o gover-
lena Chauí. No Brasil, diz Marilena, a adoção do
no Lula contribuiu para agravar as tensões sociais.
neoliberalismo implicou o fortalecimento, a radicali-
Para explicar o inexplicável – a capitulação sem
zação das características mais brutais das práticas
combate frente ao neoliberalismo -, os lulistas passa-
sociais, políticas e culturais construídas por séculos
ram a esgrimir o inefável argumento da “governabili-
de escravismo e desigualdade econômica. Esse pro-
dade”, em cujo altar todos os princípios deveriam ser
cesso – continua - permitiu a ascensão de uma clas-
sacrificados. Pergunta básica: “governabilidade” para
se média reacionária, “protofascista”, brutal, rude,
quem? Em nome de que interesses e princípios? É
consumista. Até aí, tudo bem. Não há como discordar
incrível: bastaram alguns meses de poder presiden-
da professora, que expõe os argumentos com o tradi-
cial para tornar-se necessário e urgente lembrar que
cional brilho. O problema vem agora: essa classe mé-
o PT foi formado para combater a elite que há cinco
dia sente-se ameaçada pelas conquistas alcançadas
séculos escraviza o país, não para governar em seu
pelos trabalhadores na era Lula (que se estende, ob-
nome. Ao aceitar o princípio da governabilidade
viamente, ao governo Dilma, porta-voz do ex-meta-
como um fim em si mesmo, Lula e o seu estado
lúrgico). Marilena argumenta que, ao contrário do
-maior abriram todas as comportas para a composi-
que normalmente se diz, a era Lula não permitiu o
ção de alianças espúrias, destinadas a conformar a
surgimento de uma nova classe média (a suposta
81
aquiagora
É verdade que “as massas não estão na rua”, que impera o conformismo, mas também é verdade que há movimentações, greves e paralisações
panha pela prefeitura de São Paulo, quando Lula sustentou a candidatura (vitoriosa) de Fernando Haddad. A era Lula, nesse sentido, no máximo ampliou a capacidade de consumo dos trabalhadores e acentuou o conservadorismo entre eles, o que, aliás, deixou muito contentes o patronato e o setor financeiro, que lucra “como nunca antes na história deste país”. Mas se o lulismo significou o rebaixamento da consciência dos trabalhadores, isso não significa um ponto final em coisa alguma. Claro que, momentaneamente, a esquerda brasileira – ou, mais precisamente, os setores da esquerda que não foram engolidos pelo lulismo - está enfraquecida. Só um lunático incurável não notaria isso. Isso não significa, porém, que a direita tenha assumido uma nova legitimidade.
82
“classe C”), mas sim o desenvolvimento econômico,
Quem, entre os representantes da direita, tem hoje
social e cultural do proletariado. É isso que, segundo
carisma, capacidade de liderança, poder de mobiliza-
Marilena, provoca desespero e pânico nos “protofas-
ção de massas? O já mencionado Aécio Neves? O go-
cistas”. Mas esse argumento, embora parcialmente
vernador paulista Geraldo Alckmin? FHC? José Ser-
verdadeiro, do ponto de vista empírico, é politica-
ra? A direita é medíocre, e é só por isso que ela jamais
mente insustentável.
tomou a iniciativa de tentar impedir Lula, apesar do
Primeiro, porque não há uma identidade entre a classe entendida como uma categoria sociológica (cuja
“mensalão”, e é por isso que ela não consegue fazer oposição real ao governo Dilma.
existência pode ser detectada por dados estatísticos) e
Os militantes de esquerda não devem cometer o
a classe entendida como um setor da sociedade em
erro muito comum e muitíssimo perigoso de confun-
luta. É surpreendente que a professora tenha confun-
dir o seu próprio estado de ânimo e de perplexidade
dido as duas coisas. Se é possível afirmar que houve
com aquilo que se passa no movimento de massas. É
um certo ganho de renda por parte dos trabalhadores
verdade que “as massas não estão na rua”, é verdade
– até por obra e graça do Bolsa Família - que “agora até
que impera o conformismo e, no melhor dos casos, a
viajam de avião”, como destaca Marilena, não há como
perplexidade. Mas também é verdade que há movi-
sustentar a ideia de que, nos últimos anos, os traba-
mentações, greves e paralisações que chegam a atingir
lhadores se reconheceram como classe social sujeita
dimensões nacionais importantes, como foi o caso do
de seu próprio destino. Ao contrário, a era Lula pro-
movimento das universidades federais, em 2012. São
moveu a conciliação de classes, o apagamento da
frequentes episódios de pequenas explosões popula-
consciência de que há uma luta inconciliável entre tra-
res em várias partes do país, embora sem um norte
balhadores e patrões, e a já mencionada anomia do
político claro - também como resultado do lulismo
“pânico do Bolsa Família” é uma demonstração disso.
que predomina no PT e na CUT. As periferias das
Um grande símbolo desse apagamento, indiscutivelmente, foi o abraço fraterno, sorridente e festivo
grandes metrópoles são panelas de pressão, agravadas pela selvageria policial, que tem contornos racistas.
que Luís Inácio Lula da Silva deu em Paulo Salim Ma-
Quando todos esses “sintomas” criarão uma situ-
luf, em 18 de junho de 2012, nos jardins da mansão de
ação qualitativamente nova na conjuntura? Até quan-
Paulinho Malvadeza, em troca de um minuto a mais
do o lulismo conseguirá cumprir com o seu papel de
de propaganda eleitoral na televisão, durante a cam-
bombeiro da luta de classes? Ninguém sabe. A única
FOTO FErnAnDO KInAs
Participação da Kiwi Companhia de Teatro no Cordão da Mentira, são Paulo, 2011
83
certeza é: as mudanças vão acontecer, inevitavelmen-
tentar prever as suas formas, mas sim de compreender
te, pois a crise da economia brasileira é cada vez mais
a inevitabilidade desse processo. Como sintetiza, com
grave, num quadro internacional que não apresenta
grande brilho, a revolucionária Rosa Luxemburgo, em
perspectivas realistas de recuperação no curto ou
carta a Mathilde Wurm, em 16 de dezembro de 1917:
médio prazo (como admitem até mesmo os mais en-
“A psique das massas contém sempre em si, como
tusiastas entre os comentaristas neoliberais). O arse-
Thalatta, o mar eterno, todas as possibilidades laten-
nal de medidas destinadas a atrair capitais para o
tes: mortal calmaria e enfurecida tempestade, baixa
Brasil – incluindo a privatização das ferrovias, aero-
covardia e selvagem heroísmo. A massa é sempre
portos e portos, anunciada por Dilma -, o incentivo
aquilo que precisa ser, de acordo com as circunstân-
ao consumo doméstico por meio do endividamento
cias, e está sempre pronta a tornar-se outra do que
das famílias e a remuneração do capital com uma das
aquilo que parece. Belo capitão aquele que orientasse o
mais altas taxas de juros do mundo, assim como o
seu curso pelo aspecto momentâneo da superfície das
frenesi especulativo possibilitados pela Copa do
águas e não quisesse concluir, a partir dos sinais do
Mundo de 2014 e pelos Jogos Olímpicos de 2016,
céu e das profundezas, que a tempestade se aproxima!
tudo isso já mostra sinais de esgotamento com o
Minha pequena, a “decepção com as massas” é sempre
crescimento pífio do PIB, cuja contrapartida é a ele-
o mais vergonhoso testemunho para um dirigente po-
vada inadimplência das famílias brasileiras.
lítico. Um grande dirigente não orienta sua tática pelo
O afundamento do lulismo vai acelerar o processo
humor momentâneo das massas, mas pelas leis de
de crise, pois o próprio lulismo é, hoje, um pilar de
bronze do desenvolvimento, apega-se à sua tática ape-
manutenção da ordem. Não se trata, novamente, de
sar de todas as decepções e, no resto, deixa tranquila-
estipular prazos e datas para que isso ocorra, nem de
mente a história levar sua obra à maturidade.”
aquiagora » por Eduardo Luís Campos Lima jornalista e pesquisador
Uma breve história do
Teatro-jornal
ou jornal vivo*
* Esse texto baseia-se na pesquisa que resultou na dissertação de mestrado Procedimentos formais do jornal vivo Injunction Granted (1936), do Federal Theatre Project, e de Teatro Jornal: Primeira Edição (1970), do Teatro de Arena de São Paulo. Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo, 2013.
84
Desde os primórdios do Cristianismo - ou ainda
Se o socialismo recuperou a potência de formas
antes -, o teatro cômico popular teve, entre outros, o
pré-modernas de sociabilidade, acabou permitindo
papel de apresentar, criticar e promover o debate de
também o ressurgimento daqueles gêneros teatrais
dados circunstanciais da realidade social. É por isso
populares, agora em chave explícita e radicalmente
que Dario Fo - como lembra Iná Camargo Costa -
política. Com a Revolução Russa, o movimento atin-
abre seu Mistero Buffo afirmando que “para o povo, o
giu significação máxima.
teatro, especialmente o grotesco, sempre foi o meio
Nos anos que se seguiram à Revolução de Outubro,
primordial de comunicação, de expressão, de provo-
o teatro cumpria com destaque a função de figurar ar-
cação e agitação das ideias”, desempenhando o papel
tisticamente o debate político na nova ordem, aprovei-
de “jornal falado e dramatizado do povo” .
tando o espetáculo de feira e as marionetes, o cabaré e
1
A atualidade surgiu como elemento estruturante
o circo. O despacho noticioso, o informe sindical e o
do teatro no vaudeville, gênero que irrompeu nos
comunicado do Exército Vermelho eram assuntos re-
prelúdios do capitalismo e baseou-se inteiramente
correntes desse teatro da urgência. Com a criação de
em canções que satirizavam os homens no poder2.
um gênero completamente novo, o jornal vivo, a notí-
A modernidade relegou a tradição cômica popular
cia passou do plano temático à estrutura formal.
à esfera extra-artística. O teatro sedimentava-se como um redivivo “templo das musas”, no qual as-
O momento do jornal vivo
suntos como “salários, horas de trabalho, dividendos
O jornal vivo surgiu por volta de 1920, como tea-
e lucros” não entravam. “Essas são coisas de jornal” -
tro de encenação de notícias. As principais causas de
diagnosticava o encenador alemão Erwin Piscator,
sua criação foram a escassez de papel-jornal e a insu-
abordando a cultura do século 193.
ficiência de meios de comunicação de massa - uma
FO, Dario. Le commedie di Dario Fo. Torino: Einaudi, 1977. O trecho é citado por COSTA, Iná Camargo. Panorama do Rio Vermelho - Ensaios sobre o teatro americano moderno. São Paulo: Nankin, 2001. PRIOLEAU, E. Histoire Du Vaudeville: Résumé Des Conférences Faites à L’Athénée de Bordeaux, 1890, p. 5. 3 PISCATOR, Erwin. Teatro Político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 142. 1
2
vez que o rádio ainda trilhava seus primeiros passos.
os religiosos, a burguesia internacional. Chocavam-
Esse teatro informativo, crítico e radicalmente peda-
se com eles os revolucionários, como os soldados
gógico cumpria, portanto, função política de caráter
vermelhos, os operários russos e alemães, os jovens
eminentemente prático. Era preciso atualizar o povo
comunistas. Por vezes, eram figuradas abstrações,
quanto aos avanços da Revolução - povo esse que era
como ideias, moedas e países5.
em larga medida analfabeto e distribuía-se por extensas porções do território russo.
Os blusas azuis tinham como método o estímulo à multiplicação. Por onde passaram, deixaram coleti-
Daí decorre que o jornal vivo tenha nascido como
vos que praticavam o jornal vivo. Até 1930, sete mil
simples leitura, em voz alta, de informes políticos, e
trupes que seguiam seu modelo apareceram na União
que tenha se desenvolvido e disseminado principal-
Soviética, além de outras oitenta na Alemanha, Tche-
mente no âmbito de coletivos auto-ativos, trupes
coslováquia, Inglaterra, França, Letônia e China.
ambulantes e semiprofissionais que viajavam aos mais distantes rincões para se apresentar.
Na segunda metade da década de 1920, as pressões sobre a Blusa Azul avolumaram-se. Alguns apontavam
A história de desenvolvimento do jornal vivo ins-
na necessidade de desenvolver formas mais elaboradas
creve-se na história do modernismo. Ao lado de ou-
que permitissem a discussão crítica dos problemas do
tras formas recriadas e praticadas pela primeira gera-
desenvolvimento soviético. Outros clamavam pela
ção de artistas soviéticos, o jornal vivo surge da
volta às grandes formas do passado. Com o fortaleci-
percepção de que o teatro do passado não é capaz de
mento de Stálin e seu grupo, os sindicatos passaram a
responder às necessidades do novo tempo. Nasce da
perseguir duramente os grupos como os blusas azuis.
livre experimentação formal e é favorecido pela cria-
No começo da década de 1930, todos se dispersaram.
ção de artistas como Ossip Brik, Sergei Tretiakov e Vladimir Maiakovski - cujo programa estético, por outro lado, não deixa de trazer formulações muito próximas às propostas do jornal vivo.
O jornal vivo tardio
Quando o jornal vivo soviético dava seus últimos suspiros, ainda surgiam na Alemanha coletivos que
A Blusa Azul, coletivo criado em 1923 no Institu-
tinham como finalidade principal a sua prática -
to de Jornalismo de Moscou, era sinônimo de jornal
como os Trommler Gruppen, que faziam propaganda
vivo, já que se devotou unicamente a essa forma.
comunista nas escolas, praças e mercados - e na
Suas apresentações tinham uma sequência única: co-
Romênia. O fascismo e o stalinismo puseram um
meçavam com uma parada musical em que os temas
ponto final em todas essas manifestações até 1934.
eram anunciados; a seguir, um editorial tratava do
Mas houve florações tardias. Se a História avança
assunto principal; outros temas eram abordados de
de modo desigual e não uniforme, também as exi-
maneira rápida e chocante, sucedendo-se crônicas,
gências - e oportunidades - históricas apresentam-
telegramas, panorama político, quadros humorísti-
se de maneiras distintas nos diversos países. Na Es-
cos, seção científica; por fim, outro cortejo apontava
panha, os avanços sociais conquistados no começo da
o término da apresentação4.
década de 1930 permitiram que o teatro desenvolvido
Em cena, uma linguagem clara e precisa, por vezes
na União Soviética na década anterior passasse a ser
com aspecto recitativo, e uma gestualidade anti-na-
objeto de interesse de artistas e divulgadores. Duran-
turalista, permeada por elementos circenses, mate-
te a Guerra Civil espanhola, entre 1936 e 1939, foram
rializavam as contradições nacionais e internacionais
criadas as Guerrillas del Teatro del Ejército Centro,
que tensionavam o processo revolucionário. De um
com o fito de fazer agitação e propaganda. Essas
lado eram expostos criticamente os inimigos da Re-
Guerrillas produziram e apresentaram o periodico vi-
volução, como os políticos burgueses, os capitalistas,
viente Despedida de Reclutas6.
4 AMIARD-CHEVREL, Claudine. La Blouse Bleu. In: BABLET, Denis (Org.). Le Théâtre D’Agitprop de 1917 à 1932. Lausanne: L’Age D’Homme, 1977, p. 103. 5 Id., ibid. 6 DÍAZ, Luis Miguel Gómez. Teatro para una guerra (1936-1939) – Textos y Documentos. Madrid: Centro de Documentación Teatral, 2006, p. 113.
85
aquiagora
A principal manifestação do jornal vivo fora da
imprensa, pela oposição ao New Deal e pelo empre-
esfera soviética foi estadunidense. Lá, os living news-
sariado, o Projeto Federal de Teatro seria encerrado
papers surgiram como parte das atividades do Federal
em 1939 - e junto com ele a experiência do jornal
Theatre Project (Projeto Federal de Teatro), iniciativa
vivo nos Estados Unidos.
do governo Roosevelt que empregou mais de 12.000 profissionais do teatro que haviam ficado sem traba-
O momento brasileiro do jornal vivo ocorre em
A cultura radical que se desenvolveu nos anos
1970, com cinco décadas de distância de seu nasci-
que se seguiram à quebra da bolsa de Nova York era
mento na Revolução Russa - mas igualmente desen-
em grande parte marcada pelo documentarismo. Tal
cadeado em um imbricamento de experimentações
impulso provinha do desejo de uma jovem geração
artísticas, necessidades políticas e motivações práti-
de artistas de produzir uma arte que integrasse ex-
cas. Essas últimas referem-se ao contexto de forte
perimentação estética e luta política. No teatro, o
repressão instalado no país com o AI-5, em 1968.
jornal vivo praticado na União Soviética, que havia
Com a dificuldade de liberar textos junto ao departa-
chegado ao conhecimento de intelectuais estaduni-
mento de censura, o teatrólogo Augusto Boal, que
denses radicais anos antes, apareceu como interes-
conhecera os living newspapers quando estudou nos
sante possibilidade formal.
EUA, na década de 1950, concebeu um tipo de ence-
Mas nos EUA o jornal vivo ganhou características próprias. Embora a unidade de Jornais Vivos do Pro86
Augusto Boal e o jornal vivo brasileiro
lho por causa da crise econômica da década de 1930.
nação inteiramente fundamentado em notícias já aprovadas para publicação.
jeto Federal de Teatro fosse administrada por artistas
Anos antes, no começo da década de 1960, ele já
pioneiros do teatro de agitação e propaganda estadu-
havia planejado, com Oduvaldo Vianna Filho, uma es-
nidense, sua perspectiva de atuação era limitada pelo
pécie de revista noticiosa semanal7. A ideia pôde ser
fato de se tratar de uma iniciativa governamental.
retomada quando um coletivo de jovens atores, egres-
Esses limites trouxeram consequências políticas aos
sos de um curso oferecido por Heleny Guariba e Cecí-
living newspapers que não podiam fazer propaganda
lia Thumim Boal no Teatro de Arena, procuraram o
diretamente revolucionária, como sempre fora o caso
diretor com o intuito de continuarem ligados ao grupo.
no contexto europeu. Produzidos em conjunto com
Os atores - Denise Del Vecchio, Celso Frateschi,
uma equipe de jornalistas (ligados ao combativo sin-
Dulce Muniz, Hélio Muniz, Elísio Brandão e Edson
dicato de profissionais da imprensa), os living news-
Santana - criaram diversos episódios a partir de arti-
papers eram baseados em profundo trabalho de pes-
gos de jornal, que depois foram sistematizados por
quisa e reportagem - como proteção adicional, todos
Boal na peça Teatro Jornal - Primeira Edição.
os discursos e informações contundentes mereciam citação em notas de rodapé.
A organização promovida por Boal dividia a encenação em nove técnicas seguidas por exemplificações
Apesar de todas as restrições, os jornais vivos
práticas. Todas elas - leitura simples, dramatização,
estadunidenses apresentaram para centenas de mi-
leitura com ritmo, ação paralela, reforço, noticiário
lhares de pessoas as causas históricas do problema
cruzado, histórico, entrevista de campo e concreção
da moradia nas grandes cidades, os motivos e as
da abstração - facilitavam o choque entre os elemen-
consequências da crise econômica para a agricultu-
tos de encenação, de forma a possibilitar a crítica.
ra, o papel repressivo do Poder Judiciário na luta
Não tinha importância apenas o que as notícias de-
trabalhista - tudo isso em montagens grandemente
nunciavam, mas sobretudo o método crítico suscita-
ancoradas em procedimentos formais soviéticos,
do pela autonomização e pelo conflito entre os com-
com verbas do Governo Federal. Perseguido pela
ponentes da montagem.
7 LIMA, Eduardo Luís Campos. Procedimentos formais do jornal vivo Injunction Granted (1936), do Federal Theatre Project, e de Teatro Jornal: Primeira Edição (1970), do Teatro de Arena de São Paulo. Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo, 2013.
A sistematização em técnicas e sua apresentação
teatro-jornal (com algumas mudanças de nomencla-
radicalmente didática tinha ainda o fito de estimular
tura e acrescidas de uma adicional, chamada “texto
a multiplicação de coletivos de teatro-jornal. De fato,
fora do contexto”) são praticadas no mundo inteiro.
mais de setenta grupos surgiram no Brasil e em ou-
Outra via foi a disseminação do teatro-jornal pe-
tros países - sendo 20 deles apenas na Universidade
los remanescentes do movimento original. Diversos
de São Paulo. Na USP, conforme relata Adriano Diogo
coletivos de teatro, no começo dos anos 1970, tive-
(hoje deputado estadual e presidente da Comissão da
ram intercâmbio com os artistas egressos do Arena,
Verdade do Estado de São Paulo), foram encenadas
muitos deles adotando o teatro-jornal como método
peças de teatro-jornal sobre a Transamazônica, sobre
de trabalho. É o caso do núcleo teatral Arlequins,
a tortura e morte do militante Olavo Hanssen e sobre
cujos membros participaram de uma oficina com o
a rebelião do presídio de Attica, nos Estados Unidos.
Teatro Núcleo Independente (constituído por Celso
O recrudescimento da repressão levou à prisão e
Frateschi e Denise Del Vecchio, entre outros), em
ao exílio de Augusto Boal e a dificuldades crescentes
Guarulhos, e criaram em 1976 (quando ainda se cha-
de manutenção do grupo.
mavam Grupo Perspectiva de Teatro Amador) o tea-
A experiência do teatro-jornal, que durou apenas alguns meses no Arena, teria sobrevida até os dias de
tro-jornal Marotinho, sobre o despejo violento de uma comunidade em Salvador.
hoje por duas vias. De um lado, Boal aprofundou a
Assim, com diferentes trajetórias e conforma-
sistematização das técnicas, criando e experimen-
ções, o jornal vivo surgido na União Soviética e de-
tando diversas outras que reuniria nas formulações
senvolvido em diferentes países, ao longo do século
do Teatro do Oprimido. De fato, as nove técnicas do
20, permanece realmente vivo, no Brasil e no mundo.
Detalhe do cenário da peça Morro como um país, 2013
foto fernando kinas
87
aquiagora » por Angela Mendes de Almeida Historiadora integrante do Coletivo Merlino e coordenadora do Observatório das Violências Policiais-CEHAL/PUC-SP.
verdade de mentira No país da
“Detesto este país. Devorou-me as entranhas. Eu digo a você, porque desejamos juntos que estas entranhas fossem fecundas, e este desejo nos uniu durante noites e noites... e as outras horas do dia, quando um milagre, de súbito, nos fazia esquecer o terror que corria nas ruas como nas nossas veias... Os noticiários de pesadelos que nos impediam até de nos olharmos.... lidos por apresentadores completamente loucos... os uivos que se sobrepunham até às sirenes das ambulâncias... (...) Detesto este país. Ele me devorou as entranhas, devorou. Eu o detesto. Detesto-o, detesto-o. (...) Mas este país não me deixa querer, não me deixa ser a vida, dar a vida. Como um câncer, devorou os meus seios, o meu cérebro, os meus intestinos, rolou todas as pedras nos meus rins e os devastou, conspurcou todas as fontes por onde devia correr o meu leite, reuniu toda a sua terra nas minhas veias e me apodreceu o sangue, se pôs inteiro no meu coração e o
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devastou à força de enfartes e de embolias. Os seus costumes demoliram-me os pulmões, a sua história me fez tremer, da cabeça aos pés (...) e eu sinto sempre o seu jugo sobre a minha nuca, a minha língua está sempre atada pelo seu balbuciamento, tenho suores frios só de ver a sua vulgaridade... (...) Este país é a nossa peste. Ele nos matará, nos liquidará. Como escapar? Ele bebe o nosso sangue. Não me deixa mais dormir, me roubou o sono. Como eu vou viver sem sono?” Dimitris Dimitriadis
Estas são algumas das frases do texto de Dimitris
uma tradição morta que não se pensa em renovar”.
Dimitriadis, “Morro como um país,” escrito em 1978
Comentando a crise atual da Grécia, a “ovelha negra”
no momento em que a Grécia saía da ditadura dos
da União Europeia, ele continua: “o que eu sentia há
coronéis, e utilizado no início da peça de mesmo
35 anos ficou mais agudo hoje: a ‘crise’ só se resolverá
nome encenada pela Kiwi Companhia de Teatro.
com uma verdadeira tomada de consciência histórica,
Com todo o seu pessimismo e negativismo, o texto
que passa pelo reconhecimento de que alguma coisa
foi no entanto escrito em “um período cheio de espe-
morreu para que um novo nascimento possa ocorrer”.
rança, de promessas e de prosperidade”, segundo de-
Uma avaliação radicalmente trágica e uma esperança
clarou seu autor em uma entrevista de 2012 . A “pa-
sem limites na metamorfose completa do país.
1
rábola” fala não apenas dos anos da ditadura, mas de
A tragédia é definitiva, feita de gestos secos, sem
toda a história do país, marcado “por uma espécie de
prosopopeia, palavras que dizem tudo claramente.
estagnação, de imobilidade mental: fica-se colado em
Seria possível dizer do Brasil e de sua ditadura: eu
hábitos tanto psicológicos quanto sociais, vive-se de
detesto este país?
1
imitris Dimitriadis, “Nous vivons dans la lumière d’une étoile morte”, entrevista dada a Fabienne Darge, Le Monde, 17/06/2012 D http://www.presseurop.eu/fr/content/article/2178791-nous-vivons-dans-la-lumiere-d-une-etoile-morte
Quando penso no Brasil, vejo-o a todo momento
gudos, decorre o hábito de utilizar certas palavras
como uma enorme Casa Grande e Senzala. Não se en-
com um sentido codificado, subentendido, comple-
ganem aqueles que pensam que estou falando de con-
tamente diferente do que consta nos dicionários,
tradições entre negros e brancos. Estou falando de
como uma espécie de senha, um engano e autoenga-
contradições entre classes sociais, aquelas que servem
no compartilhado cinicamente por quase todos. Isso
e as que são servidas, das raízes históricas do Brasil,
aparece na imprensa escrita, mas é reproduzido na
jamais renegadas ou desmentidas, presentes no nosso
imprensa oral, rádios, TVs etc. E serve para confundir
dia a dia, nos gestos, nas palavras soltas ao léu, na for-
os ingênuos que ainda não penetraram nos códigos
ma estética das nossas cidades etc. Coisas que chocam
do mundo da mistificação, da verdade de mentira.
qualquer estrangeiro mas que nos parecem naturais,
Talvez a primeira verdade de mentira da nossa
idiossincrasias nacionais normais, porque são da natu-
história esteja na Constituição de 1824 que em seu
reza da nossa mentalidade forjada na história da em-
artigo 179 dizia que todos os homens eram iguais pe-
presa agroexportadora, trabalhada por escravos e co-
rante a lei e garantia a todos o direito de proprieda-
mandada pelo chefe da família patriarcal rural. Estão aí
de3. Como se sabe, a escravidão só veio a ser abolida
os comentários, ainda fresquinhos, sobre a lei que es-
em 1888. Porém no entretempo se andou até discu-
tende às empregadas domésticas os direitos de todos
tindo se os escravos eram humanos.
os trabalhadores: na argumentação o recurso à particu-
Um exemplo mais atual do uso codificado de uma
laridade, à exceção. Ainda não aconteceu pujança eco-
palavra é “conexo”. Inscrita da Lei 6683/79 que anis-
nômica nenhuma que alterasse esta mentalidade.
tiava “os crimes políticos e conexos”, ela se tornou
Mas quando penso no Brasil vem-me ainda à
uma espécie de senha: conexos queria dizer tortura-
mente a palavra malemolência. Dos diversos sentidos
dores. Ficavam todos anistiados - menos os resisten-
recorrentes constantes do Dicionário Houaiss, mui-
tes que cometeram crimes de sangue - e não se falava
tas definem para mim o Brasil: ausência de disposi-
mais nisso. Quando a Comissão de Direitos Humanos
ção, moleza, pachorra, molejo, ardil para evitar algo,
da OAB questionou o STF e pediu uma interpretação
jogo de atitudes, gestos, jeito de falar que denota
técnico-jurídica do termo “conexo”, os nobres minis-
qualidades consideradas positivas como manha, des-
tros, em sua maioria, olharam para outro lado e res-
treza (qualquer semelhança com política de alianças e
ponderam outra coisa. Nada de interpretar a palavra
governança é mera coincidência).
conexo, que quer dizer ação feita em referência ao cri-
No Brasil a palavra radical, que tem tudo a ver com
me político em questão. Responderam em 2010 o que
a tragédia, é considerada uma ofensa. Os radicais “não
não tinha sido perguntado. Incentivados pelo minis-
têm jogo de cintura”, qualidade por excelência neste
tro relator, que teve direito no início da votação a um
país. O grande gesto radical de Getúlio Vargas ao se
jantar com o então presidente Lula, encararam, não a
suicidar para paralisar o processo de denúncias contra
pergunta, mas a lei em bloco, como um acordo que lá
o seu governo mas, sem o saber, paralisar o golpe de
nos idos de 1979 teria havido entre pares: de um lado
1964 que vinha vindo desde então2 , não é devidamen-
um congresso cheio de biônicos, votando sob a bota
te valorizado. Foi até objeto de pilhéria por ocasião da
do último governo militar, e de outro o governo mili-
crise do Mensalão durante o primeiro governo Lula:
tar brasileiro. E assim mesmo, com todas estas vanta-
ninguém ia se suicidar, imagine! Aqui tudo se resolve
gens para um dos lados “equivalentes”, a votação foi
na chamada “tradição brasileira da reconciliação” por-
apertada: 206 a favor contra 201. Aliás, quem validou
que afinal as classes são amigas, da mesma família,
os votos dos parlamentares que aprovaram a lei? Da
como no espaço privado da Casa Grande e Senzala.
parte de ex-presos e de familiares de mortos e desa-
Deste “caráter conciliador e ordeiro da sociedade brasileira”, avesso a radicalismos e a ângulos pontia2 3
parecidos, bem como dos que participaram das lutas pela Anistia, ninguém. Com quem acordaram então?
Flávio Tavares, O dia em que Getúlio matou Allende. Rio de Janeiro, Editora Record, 2004. Angela Mendes de Almeida, Família e modernidade – O pensamento jurídico brasileiro no século XIX. São Paulo, Porto Calendário, 1999, p. 103.
89
aquiagora
Convencionou-se que aqueles que pedem justiça, investigação, julgamento para os torturadores estão sendo “revanchistas”.
do a criação da Embrapa e da Itaipu. Um governo como o de Médici, disse ele, apesar de ser “o momento mais crítico da história do país”, permitiu “que o Brasil encontrasse o seu rumo”4. Pois é, o rumo é esse: desenvolvimento a qualquer custo e os atropelados que saiam do caminho. Que o digam as comunidades indígenas que estão atrapalhando o crescimento do agronegócio com essa ideia de “terras demarcadas”. Ora, o uso da palavra revanchismo, muito usado às vezes até por vítimas de tortura e familiares de mortos e desaparecidos, pretendendo demonstrar moderação, encerra um enorme equívoco. Revanche se faz entre dois times iguais, onze jogadores de futebol de cada lado, dois jogadores de xadrez etc. Usada
90
Ao pressionar diretamente pelo resultado obtido,
para substituir o anseio de ver torturadores serem
os titulares do governo do PT atuaram em contradi-
investigados e julgados, ela coloca como pares de
ção com o que tinham defendido vagamente lá no
equivalência idêntica resistentes à ditadura de um
passado. E os conselheiros da Comissão de Direitos
lado, e de outro, o Estado brasileiro pela mão dos as-
Humanos da OAB ainda tiveram direito a receberem,
seclas que torturavam para manter o regime civil mi-
às vezes de seus próprios pares, o julgamento de que
litar. É a tese de que houve uma “guerra”, muita usada
“a iniciativa fora precipitada”, muito radical por usar
na ditadura argentina defendida, entre outros, pelo
as palavras com o seu verdadeiro sentido e fazer ape-
coronel Ustra para justificar as atrocidades, mas tam-
lo à racionalidade. É preciso estratégias e meandros
bém por alguns resistentes ao rememorar seu passa-
para se obter avanços de década em década.
do. Em entrevista há pouco tempo, um famoso guer-
A interpretação cifrada das palavras acontece a
rilheiro narrava um episódio desconhecido de um
toda hora. Convencionou-se, entre os adeptos de es-
entrevero entre ele e um general, elogiando o seu es-
querda e de direita, da interpretação codificada da pa-
pírito de lealdade militar: “guerra é guerra”. Existe
lavra conexo da Lei da Anistia, que aqueles que pedem
isso, gente que acha ainda hoje que se tratava de uma
justiça, investigação, julgamento para os torturadores
guerra entre partes equivalentes, guerra perdida.
estão sendo “revanchistas”. Até a presidente Dilma
O que o uso da palavra revanchismo esconde é
afirmou mais de uma vez, e inclusive na posse da Co-
que de um lado estão o Estado e duas de suas insti-
missão Nacional da Verdade, que não queria revan-
tuições mais malfazejas, o Exército e a Polícia, em
chismo. O que queria ela dizer? Na minha interpreta-
qualquer regime que seja, socialista ou capitalista,
ção, radical, diga-se de passagem, sem afirmar, ela
democrático ou ditatorial. De outro lado podem es-
enviava uma mensagem cifrada: não era hora de con-
tar resistentes, militantes ou simplesmente os gru-
vulsionar a sociedade com o julgamento de membros
pos populacionais perseguidos, judeus e ciganos du-
de uma instituição importante como o Exército, não
rante a Segunda Guerra Mundial, hoje “mulçumanos”,
era hora de atrapalhar os PACs e o crescimento da
“terroristas”, ciganos, imigrantes ilegais, e no Brasil,
“nova classe média” com a ideia de justiça para os tor-
os pobres, negros em sua maioria, porém também
turados, mortos e desaparecidos. É impressionante ver
indígenas e brancos. Ou seja, civis.
uma pessoa, digna da maior admiração por sua resis-
Ao omitir que uma das partes é o Estado, a própria
tência aos torturadores, atuar na mesma linha de in-
noção de violação de direitos humanos é vulgarizada.
terpretação de algumas intervenções de Lula, exaltan-
Não se distingue a diferença entre a ação do Estado que
4
Citado por Gilberto Maringoni, “Lula, ser e não ser”, Carta Maior, 15/05/2013 - http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=6092
viola, produzindo crimes de lesa-humanidade, tortu-
denunciar continuam sob sua custódia. Além disso,
ras, execuções sumárias, ocultamento de cadáveres, e a
para o Poder Judiciário de que vale a palavra de um
ação de particulares que podem, em diversas circuns-
pobre, ainda mais um fora da lei que está preso? A permanência da mentalidade da Casa Grande e
caso uma ação criminosa de um civil contra outro civil.
Senzala, que não distingue o que pertence ao espaço
Veja-se o caso da Lei contra a Tortura brasileira. A
público, ao domínio da política e do Estado, de um
marca da sociedade brasileira, a invasão do espaço pú-
lado, e de outro, o espaço privado, onde prevalecem os
blico pelo privado, derivada da sua história e da figura
valores da nossa família patriarcal rural, pode ser vis-
emblemática da Casa Grande e Senzala, imiscuiu-se
ta ainda em uma ideia sui generis manifestada por
na formulação da Lei 9455, de 07/04/1997, que está
mais de um membro da Comissão Nacional da Verda-
em contradição flagrante com a legislação internacio-
de. Segundo eles, a convocação para depoimentos de
nal. A tortura é a violação praticada pelo Estado, por
torturadores e agentes do aparelho repressivo da dita-
seus agentes em nome dele, dentro de suas depen-
dura deve ser feita para oitivas sigilosas. O segredo,
dências, sob a sua guarda. Mas a formulação brasileira
aparentado ao do confessionário, os incentivaria a
da Lei contra a Tortura não faz a ressalva e mistura
colaborar, contando o que sabem e o que fizeram. Para
todas as ações cruéis e violentas. O resultado é que a
além da ingenuidade, esse respeito para com a priva-
maior parte das pessoas condenadas por tortura no
cidade dos torturadores espelha a noção que uma co-
Brasil são babás e cuidadores que maltratam crianças
missão da verdade pode ser um parlatório entre pou-
e idosos, ou seja, gente humilde e pobre, em todo
cos escolhidos, e não uma atividade pública que tem
caso, civis. E parece que a tortura não existe no Brasil.
que ser acompanhada por todos os que queiram. Os
Os policiais e agentes carcerários, autores da tortura,
torturadores, em privado, no silêncio de um arremedo
valem-se do fato de que os torturados que querem
de confessionário, não vão contar nada a mais do que
Ato da Frente de Esculacho Popular contra Harry Shibata, 2012
foto fernando kinas
tâncias, cometer ações violentas e cruéis, sendo no
91
aquiagora já disseram: que tudo é mentira e que eles simples-
va, voltavam para casa à noite quando dois homens
mente serviram à pátria. É no jogo do contraditório,
atiraram contra eles. Em seguida apareceram – eles
que se dá no espaço público, que tais audiências têm
sempre aparecem logo em seguida – policiais milita-
que acontecer. Alguns auxiliares ou pessoas que se
res fardados que levaram os dois rapazes para socor-
arrependeram procurarão falar o que sabem tanto em
rê-los. Embora estivessem a um quilômetro do Hos-
público como em privado, pois elas querem falar.
pital da USP, foram levados para outro, distante doze
Outro caso recente e escandaloso das palavras ci-
quilômetros. Entre o primeiro tiro e a chegada ao
fradas, das verdades de mentira, é o da portaria di-
hospital passaram-se 48 minutos. Mas o “pai cora-
vulgada pela Secretaria de Segurança Pública do Esta-
gem” de um dos rapazes, Daniel Eustáquio de Olivei-
do de São Paulo no início do ano de 2013. Segundo os
ra, conseguiu provar que os “homens” que atiraram
jornais os policiais ficavam, a partir daquela data,
eram policiais militares, que a viatura oficial da PM
proibidos de socorrer as vítimas de casos de homicí-
parou em um beco por 10 minutos, depois rodou a
dio, tentativa de homicídio, lesão corporal grave etc.,
esmo por 28 minutos. Durante esse tempo César
sendo obrigados a preservar a cena do crime e cha-
sangrou até a morte, pois além disso, os PMs deram
mar a equipe de emergência médica mais próxima.
ainda mais três tiros, um no peito do rapaz. A morte
Nas justificativas, indicava-se que o objetivo era que
foi registrada como “resistência seguida de morte”6.
o atendimento às vítimas fosse feito por profissionais habilitados, como médicos e socorristas.
92
Foi o que aconteceu também com o vendedor ambulante Marcelo Marinho de Paula em 9 de feve-
Proibir de socorrer? Que estranho... Para os desa-
reiro de 2006. Ferido por guardas-civis e por um in-
visados que ainda não penetraram nos códigos do
vestigador da polícia civil, na Rua Vinte e Cinco de
mundo da verdade de mentira essa medida parecia
Março, chutado e agredido, foi colocado em uma via-
incongruente com a meta de salvar vidas humanas.
tura da Guarda Civil Metropolitana que o levou, len-
Uma jornalista5 que em princípio está dentro do
tamente, para a Santa-Casa. Sangrando, chegou lá
mundo das palavras codificadas, indignada, chamou a
morto. Estes casos são comuns e objeto de denún-
portaria de “apavorante”. Dizia ela: “Apenas os poli-
cias na Ouvidoria. Os que ficam publicamente co-
ciais estão proibidos de socorrer. Eu posso. Você, lei-
nhecidos são apenas a ponta do iceberg.
tor, pode. (...) A mensagem que o governo dá é clara: a
Pois justamente esta portaria coincidiu com ou-
tropa está sob suspeita”. Eureca! É isso mesmo, estava
tro caso semelhante. Durante o segundo semestre de
sob suspeita. Mas a verdade não pode ser dita, o ob-
2012, policiais militares e outros agentes do Estado
jetivo tem que ser coberto pela fantasia da inocuida-
mataram cerca de três centenas de pessoas na Grande
de. É preciso dizer uma coisa – o objetivo era dar
São Paulo. Além das execuções sumárias e extrajudi-
melhor atendimento médico às vítimas – querendo
ciais comuns, que aparecem na imprensa como “tiro-
dizer outra, que os “bons entendedores” compreen-
teios” nos quais só morrem os do lado dos “bandi-
derão. Sobretudo a corporação policial, que sabia tudo
dos”, e nos Boletins de Ocorrência como “resistência
que era feito nas viaturas, a caminho dos hospitais.
seguida de morte”, verdadeiros “comboios” da morte
De fato, a ideia da paradoxal portaria parece ter
foram formados por grupos de extermínio formados
sido defendida inicialmente pelo Ouvidor de Polícia
por policiais militares que saíam por uma rua, um
do Estado de São Paulo. No momento em que ela foi
bairro, nas periferias das cidades, atirando a esmo.
publicada no Diário Oficial ele se manifestava oti-
Os jornais e TVs falavam de “onda de violência”
mista, considerando que o índice de letalidade da po-
que pairava sobre a cidade sem dizer de onde ela vi-
lícia iria cair. E contou ao repórter para justificar suas
nha. Tratava-se de outra palavra codificada, pois a
esperanças: em junho de 2012 dois rapazes de 20
imprensa sabia quem estava matando. Falavam de
anos, César Dias de Oliveira e Ricardo Tavares da Sil-
“dois homens em uma moto” ou de “quatro homens
5 6
L. Capriglione, “Chama o ladrão!”, Folha de S. Paulo, 17/01/2013. “Mudança nos registros de B.O.”, Rede Brasil Atual, 10/01/2013. O ouvidor é Luiz Gonzaga Dantas.
em um carro escuro”, sem dizer que esses homens
guiu refugiar-se na casa de uma vizinha. Depois, “so-
eram policiais militares. Mas jornalistas e todos os
corrido” por PMs do 37º Batalhão, chegou ao Hospital
ameaçados vivendo fora do perímetro da sociedade
Municipal de Campo Limpo com oito tiros e morreu.8
de consumo estabelecida sabiam que esses “homens” – outra palavra codificada – eram policiais.
Assim, quando em maio o Secretário de Segurança Pública, defendendo a sua portaria, afirma que cinco
Porém uma das execuções sumárias de uma pes-
meses depois “o número de mortos decorrentes de in-
soa presa e já rendida, o servente Paulo Batista do
tervenções policiais caiu quase 40%”, caso se possa
Nascimento, em Campo Limpo, na Zona Sul de São
confiar nesta estatística, este fato apenas comprova que
Paulo, em novembro, foi filmada e exibida no Fantás-
os PMs matavam quase 40% dentro das viaturas, a ca-
tico da TV Globo. Afinal uma prova material visual de
minho dos hospitais. E agora já não podem mais fazê-lo.
que os que estavam matando eram policiais militares!
Todas estas verdades de mentira, todas estas pala-
Essa vitória da verdade filmada não podia ficar
vras cifradas continuam a ser empregadas cinicamente
sem troco. Por isso, logo no início do ano de 2013,
pela imprensa e por aqueles que estão interessados
depois dos feriados de natal, os “homens” voltaram
que nenhuma verdade clara e cristalina, áspera, pon-
em força. Em local distante apenas 10 minutos do
tiaguda, venha turvar a felicidade geral da nação, o
crime filmado, eles chegaram em três carros. 14 “ho-
progresso, o desenvolvimento, o Brasil emergente que
mens” dispararam mais de 50 tiros matando 7 pesso-
já emergiu. Elas complementam o silêncio sobre a ver-
as e ferindo mais duas. Entre os mortos o DJ Lah,
dade, o olhar para o lado feliz e cor-de-rosa das coisas,
muito querido em várias periferias 7.
o excluir o tema da violência do Estado, ontem e hoje. Afinal, a ditadura civil-militar, este “momento mais crítico da história do país ” no dizer de Lula,
de Souza, de 17 anos, recebeu um tiro no pé, mas conse-
existiu mesmo de verdade?
Cena da peça Morro como um país, Kiwi Companhia de Teatro, 2013
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“SP tem a 1ª chacina do ano com 7 mortos”, O Estado de S. Paulo, 06/01/2013. “Secretário promete tolerância zero após ato contra chacinas em SP”, Folha de S. Paulo, 15.05.2013.
foto heloísa passos
Mas houve ainda outro morto desta chacina de PMs que teve relação direta com a portaria. Bruno Cassiano
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esculacho esquecimento 0
» por Frente de Esculacho Popular
contra o
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1964: extra, extra, extra! “Terrorista é morto ao rea-
sobre o esquecimento e pressionando a sociedade e o
gir à voz de prisão”. 2013: jovens negros, pobres e da
Estado por justiça e pelo fim da impunidade.
periferia são mortos com a mesma desculpa, resis-
Nos reapropriamos do termo esculacho, utilizado
tência seguida de morte. Poderia ser o Brasil da dita-
na maior parte das vezes para se referir às ações de
dura civil-militar, mas é o Brasil de hoje, “livre e de-
brutalidade cotidiana policial sobretudo contra a po-
mocrático”. O Esquadrão da Morte do Delegado
pulação pobre do país. Se não aprendemos na escola
Sérgio Paranhos Fleury, um dos mais terríveis tortu-
as atrocidades que esses agentes do Estado comete-
radores daquele período, podia matar qualquer um
ram, se não temos o direito de conhecer os seus ros-
desde que fosse terrorista ou subversivo. Sem julga-
tos e se a história de seus crimes não é colocada
mento, sem prisão, sem direito à defesa. Hoje basta a
como crime nos livros didáticos e na imprensa, va-
classe social ou a cor da pele. Procurando sempre fa-
mos às ruas publicizar, educar e informar, vamos fa-
zer essa ponte com o Brasil de hoje e mostrando
zer o esculacho popular. Vamos expor aos seus vizi-
como a impunidade do passado é uma carta branca à
nhos quem é esse sujeito de cabelos brancos que
impunidade do presente, nasce a Frente de Esculacho
parece um bom velhinho. Vamos espalhar cartazes
Popular. Mais conhecida como FEP, realizou sua pri-
dizendo onde mora um assassino, vamos contar a to-
meira ação no dia 7 de abril de 2012, um escracho ou
dos que pudermos os crimes que cometeu e vamos
esculacho contra Harry Shibata. Os “Escraches Popu-
lembrar e homenagear os militantes que de uma for-
lares”, da Argentina e as “Funas” chilenas foram nossa
ma ou de outra passaram por suas mãos. Vamos gri-
inspiração. Nesses dois países foi necessária uma
tar, sobretudo, contra a impunidade: enquanto não
forte pressão popular para que houvesse o julgamen-
houver justiça haverá esculacho popular.
to e a punição dos militares genocidas. Cansados de
A FEP é composta por “jovens”, muitos dos quais
tanto sermos esculachados impunemente, sentimos
tiveram familiares mortos e desaparecidos. Somos
a necessidade de construir o Esculacho Popular,
um grupo que de alguma forma se indigna com o
como uma forma de expor, lembrar e acusar os res-
tema da ditadura e suas heranças, e que resolveu se
ponsáveis pelos crimes da ditadura, homenageando
juntar para fazer ações que nossos vizinhos sul-ame-
nossos mortos e desaparecidos políticos, refletindo
ricanos já faziam há algum tempo. Desde a criação da
FEP, foram feitos três esculachos: um contra o Harry
tar pelo não esquecimento. Somos militantes da vida.
Shibata (médico legista da Ditadura), outro contra
Acreditamos que assim podemos nos interrogar e
Homero César Machado (torturador) e outro contra
disputar o significado de juventude que queremos.
Carlos Alberto Augusto (torturador da equipe de
Uma identidade combativa de juventude que repre-
Fleury no DOPS que virou delegado em Itatiba, inte-
sentou aquela geração. Esta identidade oculta de uma
rior de São Paulo, no início de 2013). Shibata assinava
geração que tinha, muito além de uma democracia
atestados de óbito falsos, escondia sinais de tortura
burguesa, uma perspectiva revolucionária e anticapi-
nos laudos dos militantes assassinados e atestava
talista. Lembramos como viveram e morreram para
como causa mortis a versão oficial dada pelo delega-
continuar lutando para que acabe a roda viva da desi-
do de plantão: morte em tiroteio, suicídio ou atrope-
gualdade e da opressão contra os mais pobres.
lamento. Era um médico que escolhia sempre o lado
Lutamos porque há polícia por toda parte e justi-
da morte. Homero era chefe das equipes de interro-
ça em lugar nenhum. Os mesmos métodos da dita-
gatório do DOI-Codi, um dos maiores centros de re-
dura foram utilizados nos crimes de maio de 2006,
pressão e tortura contra os opositores ao regime.
nas tantas desocupações de reitorias da USP e de ou-
Aplicava choques elétricos e espancava os militantes
tras universidades país afora – com tropa de choque
para conseguir informações, entre algumas outras
e bombas de gás –, na chamada Cracolândia, no Pi-
técnicas macabras. Carlos Alberto Augusto era o bra-
nheirinho, no Quilombo dos Macacos, contra os
ço direito de Fleury, um dos mais cruéis torturadores
Guarani Kaiowá, em Sonho Real, em Eldorado dos
daquele período. Augusto organizou, entre outras
Carajás, no Carandiru, nos assassinatos dos Sem
“ações”, o Massacre da Chácara São Bento, em Per-
Terra e em tantas outras situações.
nambuco, onde foram mortos seis militantes da Van-
2013: tempo de Comissões da Verdade pelo país. A
guarda Popular Revolucionária (VPR). Seus crimes
Nacional, construída no pacto do possível, no acordo de
não parecem ter sido crimes a partir do momento em
“nós vamos até onde eles nos deixarem ir”, vem tentar
que é mantido em um cargo público na mesma polí-
botar uma pedra em cima da história, contra a memória
cia. Ele tem a garantia da impunidade.
e pelo esquecimento. E depois quem ousar questionar
A não reforma das instituições que foram consti-
ainda pode correr o risco de ouvir “mas a Comissão da
tuídas em uma época em que tortura e morte de opo-
Verdade já foi feita, o que mais vocês querem?”.
sitores não eram exceção, mas política de estado, é
2013: jovens de 18 a 30 anos, que não viveram aque-
inadmissível. Além disso, todos os agentes que co-
la época, que não têm necessariamente parentes
meteram crimes de lesa-humanidade têm a proteção
mortos ou desaparecidos se indignam, se revoltam,
de uma lei que colocou em um mesmo patamar agen-
se perguntam como e porquê? Como esses assassi-
tes de um estado tirano e terrorista; e militantes que
nos malditos estão soltos, livres e impunes. Como
lutavam por um país melhor e pela volta da democra-
quem os rodeia não conhece seus crimes? Como se-
cia que, teoricamente, tinham o direito à revolta con-
guimos vivendo, quase 50 anos depois do Golpe, em
tra a tirania e a opressão, prevista na Declaração Uni-
um país sem memória? Em um país do pacto do pos-
versal de Direitos Humanos.
sível, em um país onde a polícia mata, tortura, some
A Lei da Anistia, de 1979, na realidade uma auto
com corpos? Em um país teoricamente livre e demo-
-anistia, garante a impunidade dessas pessoas e o
crático, mas onde a polícia de nossa cidade, e de nos-
esquecimento das graves violações de direitos huma-
so estado mata mais do que naquela época e ainda
nos cometidas durante mais de vinte anos. Por isso,
usa a mesma desculpa: foi morto ao reagir, atirando, à
em um país onde a Comissão Nacional da Verdade
voz de prisão. 2013, mas poderia ser 1964. Do mesmo
surge tímida, engessada, fraca e atrasada – quase
jeito que aqueles que morreram lutando por um país
trinta anos depois do fim da ditadura – ousamos lu-
mais justo, continuamos ousando lutar.
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ontem... Íntegra do voto de Antônio Delfim Netto na reunião em que foi discutido e aprovado o Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968. Delfim Netto foi ministro da Fazenda, Planejamento e Agricultura, além de embaixador na França, durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Foi conselheiro informal do Presidente Lula e apoia o governo de Dilma Rousseff. É colaborador da revista Carta Capital e do jornal Folha de São Paulo.
“Senhor presidente, senhores membros do Conselho. Eu creio que a revolução veio não apenas para restabelecer a moralidade administrativa neste país, mas, principalmente, para criar as condições que permitissem uma modificação de estruturas que facilitassem o desenvolvimento econômico. Este é realmente o objetivo básico. Creio que a revolução, muito cedo, meteu-se numa camisa-de-força que a impede, realmente, de realizar esses objetivos. Mais do que isso, creio que, institucionalizando-se tão cedo, possibilitou toda a sorte de contestação que terminou agora com este episódio que acabamos de assistir. Realmente, esse episódio é simplesmente o sinal mais marcante da contestação global do processo revolucionário. É por isso, senhor presidente, que eu estou plenamente de acordo com a proposição que está sendo analisada no Conselho. E, se Vossa Excelência me permitisse, direi mesmo que creio que ela não é suficiente. Eu acredito que deveríamos atentar e deveríamos dar a Vossa Excelência, ao presidente da República, a possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais, que são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez. Eram essas as considerações que eu gostaria de fazer.”
... hoje As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.
Sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso da Guerrilha do Araguaia, 2010.
Expediente da revista contrapelo – Caderno de estudos sobre arte e política, ano 1, número 1, junho de 2013 Coordenação editorial: Fernando Kinas Jornalista responsável: Tatiana Merlino Mtb 64853 SP Conselho editorial: Fernanda Azevedo, Fernando Kinas e Luiz Nunes Colaboradores desta edição: Angela Mendes de Almeida, Edson Teles, Eduardo Campos Lima, Fabio Salvatti, Fernando Kinas, Frente de Esculacho Popular, José Arbex Jr., Mei Hua Soares Revisão: Maysa Lepique Projeto gráfico: Camila Lisboa Capa: foto de fernando kinas (funarte, são paulo, 2011) 2ª e 3ª capas: foto de fernanda azevedo (escola de mecânica da armada, buenos aires, 2012) Produção: Luiz Nunes Assistência de produção: Daniela Embón Responsável pela publicação: Kiwi Companhia de Teatro www.kiwiciadeteatro.com.br | kiwiciadeteatro@gmail.com Comentários, sugestões e críticas são bem-vindos As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade exclusiva do(a)s autore(a)s. Os textos podem ser citados livremente, solicitamos apenas a menção da fonte TIRAGEM: 1.000 exemplares | IMPRESSÃO: Atrativa Gráfica e Editora | distribuiçÃO gratuita
Ficha técnica morro como um pAÍS Roteiro e direção geral: Fernando Kinas Elenco: Fernanda Azevedo Cenário: Julio Dojcsar Iluminação: Heloísa Passos Figurino: Maitê Chasseraux Pesquisa e música original: Eduardo Contrera e Fernando Kinas Pesquisa e tratamento de imagens: Maysa Lepique Assessoria e treinamento musical: Luciana Fernandes e Armando Tibério Direção de produção: Luiz Nunes Assistência de produção: Dani Embón Programação visual: Paulo Emílio Buarque Ferreira e Camila Lisboa Assessoria de imprensa: Eliane Verbena Operação de luz: Taty Kanter Operação de som e vídeo: Luis Henrique Soares
Parceiros do projeto: Coletivo Merlino; Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos; Articulação e Coletivo pela Memória, Verdade e Justiça; Comissão Estadual da Verdade de São Paulo; Frente de Esculacho Popular; Cordão da Mentira; Movimento Mães de Maio; Coletivo Quem; Companhia Estável; Companhia Antropofágica; Coletivo Dolores.
Morro como um país estreou no dia 1º de março de 2013, no sótão do Teatro Grande Otelo, São Paulo.
Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie. E, assim como ele não está livre da barbárie, assim também não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um vencedor a outro. Por isso, o materialista histórico, na medida do possível, se afasta dessa transmissão. Ele considera como sua tarefa escovar a história a contrapelo. WALTER BENJAMIN, AS TESES SOBRE O CONCEITO DE HISTÓRIA (1940).
REALIZAÇÃO:
PROJETO APOIADO PELO PROGRAMA DE FOMENTO AO TEATRO PARA A CIDADE DE SÃO PAULO 2012/2013