2
aquiagora
98
contrapelo
Caderno de estudos sobre arte e polĂtica
companhia de teatro
Trajetória
da kiwi companhia de teatro (1996/2015)
A Kiwi Companhia de Teatro surgiu em 1996 e produziu uma
apresentou em Bogotá a performance Carne – Histórias em
quinzena de montagens teatrais. O grupo também realizou
pedaços, no 7º Encuentro Ciudadanias en cena, organizado
leituras dramáticas de autores como Samuel Beckett, Franz
pelo Instituto Hemisférico de Performance e Política. Em 2010
Kafka, Hilda Hilst, Elfriede Jelinek, Heiner Müller, Julio Cortázar
a Companhia foi mais uma vez selecionada pelo Programa
e Martin Crimp; organizou cursos, oficinas e debates sobre a
de Fomento ao Teatro, agora com o projeto Carne – Patriarcado
encenação e a dramaturgia contemporâneas e os eventos
e capitalismo, que incluiu apresentações teatrais, oficinas,
multiartísticos festa&ideias. A Companhia produziu o documentário
debates, ciclo de filmes, intervenções urbanas e eventos
Carne - Patriarcado e capitalismo e publica anualmente o caderno
multiartísticos. Em 2011 o grupo foi contemplado com o
de estudos Contrapelo.
Prêmio Myriam Muniz (MinC/Funarte) para apresentar o
A Companhia é formada por componentes fixos e colaboradores
trabalho cênico Carne no Estado do Pará (Belém, Marabá e
em diversas áreas: Fernanda Azevedo, Fernando Kinas, Luiz
Parauapebas) e no interior de São Paulo. Em 2012 a Companhia
Nunes, Daniela Embón, Maria Carolina Dressler, Eduardo Contrera,
iniciou o projeto Morro como um país – A exceção e a regra,
Elaine Giacomelli, Julio Dojcsar, Heloísa Passos, Maysa Lepique,
também apoiado pelo Programa de Fomento. No ano seguinte,
Paulo Fávari, Clébio Souza (Dedê), Maíra Chasseraux, Carolina
este trabalho resultou em uma temporada de dois meses,
Abreu, Mônica Rodrigues, Camila Lisboa, Paulo Emílio Buarque
intervenções em locais não teatrais e um ciclo de debates.
de Holande, Gavin Adams e Marie Ange Bordas. Os trabalhos
Em 2013 a Companhia recebeu dois prêmios nacionais (Myriam
da Companhia foram apresentados em diversas cidades do país
Muniz/MinC e Marcas da Memória/Ministério da Justiça),
e participaram de festivais e encontros de teatro (Bogotá, Los
permitindo a realização de uma turnê nacional do projeto
Angeles, Recife, São José do Rio Preto, Salvador, Rio de Janeiro,
Morro como um país (Ceará, Paraíba, Distrito Federal e Rio
Curitiba, Porto Velho, Florianópolis, entre outros). Em 2007 a
de Janeiro). Nos primeiros meses de 2014, o grupo ganhou
Companhia foi selecionada pelo Programa de Fomento ao Teatro
dois editais (Proac/Estado de São Paulo e Fomento ao Teatro)
para a Cidade de São Paulo com o projeto Teatro/mercadoria
e Fernanda Azevedo recebeu o Prêmio Shell de melhor atriz
– Espetáculo e miséria simbólica, que incluiu apresentações
por seu trabalho em Morro como um país. No segundo semestre
teatrais, oficinas, debates e a realização de dois eventos
a Companhia foi selecionada para o Circuito Cultural Paulista,
multiartísticos. Ainda em 2007 a Companhia foi convidada pelo
circulando por oito cidades do interior do Estado com o
Sesc São Paulo para mostrar parte do seu repertório na Mostra
trabalho Carne. Em 2015 o grupo desenvolveu o projeto
Sesc de Artes. As atividades incluíram três peças e três processos
Manual de autodefesa intelectual, com temporadas no Sesc
de trabalho, seguidos de debates. Em 2008 a Companhia
Belenzinho e Galpão do Folias, ambos em São Paulo. Em
representou o Brasil no Seminário Internacional Actions of Transfer
maio o grupo participou do Circuito Tusp de Teatro com a
– Women‘s peformance in the Americas, organizado pela
peça Carne e, em junho, esteve em Porto Velho (RO),
Universidade da Califórnia (UCLA). Em agosto de 2009 o grupo
apresentando a intervenção Três metros quadrados.
Montagens 1. Manual de autodefesa intelectual, roteiro de Fernando Kinas,
8. Casulo, de Fernando Kinas, 2006.
2015.
9. Titânio, roteiro de Fernando Kinas a partir de Elizabeth
2. Três metros quadrados, intervenção cênica com roteiro de
Bishop, Pier Paolo Pasolini e outros, 2004.
Fernando Kinas, 2014/2015.
10. Mauser/manifesto, de Heiner Müller e Karl Marx, 2002.
3. Morro como um país, roteiro de Fernando Kinas a partir de
11. Fragmento b3, de Samuel Beckett e Edward Bond, 2001.
Dimitris Dimitriadis, Edward Bond e outros, 2013/2014.
12. Osmo, de Hilda Hilst, 2000.
4. Carne, roteiro de Fernanda Azevedo e Fernando Kinas, 2007/2015.
13. Tudo o que você sabe está errado, roteiro de Fernando
5. Teatro/mercadoria # 1, roteiro de Fernando Kinas a partir de
Kinas a partir de René Descartes e outros, 2000/2001.
Guy Debord e outros, 2006/2008
14. Carta aberta, de Denis Guénoun, 1998/2007.
6. Linha, de Israel Horovitz, 2006.
15. Um artista da fome, de Franz Kafka, 1998.
7. O bom selvagem, roteiro de Fernando Kinas a partir de Jean-
16. R, roteiro de Fernando Kinas a partir de Albert Einstein e
Jacques Rousseau, Michel de Montaigne e outros, 2006.
outros, 1997.
contrapelo – Caderno de estudos sobre arte e política, ano 3, número 2, 2015
editorialtrajetória A aposta necessária, Kiwi Companhia de Teatro
04
Ações Recentes
05
bibliotecacrítica Notas sobre o teatro documentário, Peter Weiss (1967)
08
poemasquejandos Poemas, Mahmud Darwich
14
dossiêkiwi Nós estamos desarmados, Fernando Kinas
18
Roteiro Manual de autodefesa intelectual
22
Caderno de fotos
43
políticacultural Arte e cultura no rol das mudanças econômicas, Adailtom Alves Teixeira
58
O tormento necessário: A Lei de Fomento no olho do furacão, Fernando Kinas
62
aquiagora Marxismo e religião vão ao teatro, Michael Löwy
70
Capitalismo, tecnologias digitais e individualismo solipsista, José Correa Leite
80
Cinema na encruzilhada, Thiago B. Mendonça
88
Redução da maioridade penal. Pra quê mesmo?, Douglas Belchior
91
Mães de Maio e os crimes de Estado
94
ontem...
96
...hoje
97
Homenagem a Lua Barbosa
98
editorialtrajetória
A aposta necessária A publicação do segundo número do caderno de estudos Contrapelo coincide com novas investidas conservadoras. Na Grécia, a mistura de austeridade e humilhação imposta pelos credores internacionais, com a mediação de organismos autoritários como o FMI, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu, tem como consequência o aumento da pobreza para a maioria da população. Privatizações selvagens, precarização dos serviços sociais, diminuição de salários, desemprego em alta, aumento de impostos sem contrapartida, entre outras violências, fazem parte do cardápio neoliberal. A Grécia, assim, é forçada a ceder parte de sua soberania nacional. Colocada sob tutela, ela é o laboratório de políticas capitalistas agressivas e está sendo usada como ameaça para outros países rebeldes. A Espanha, e seu vigoroso movimento político, Podemos, encabeça a lista. No Brasil, as investidas são igualmente brutais. Elas vão da truculência descomplexada do presidente da Câmara, notoriamente corrupto e reacionário, às concessões cada vez mais escancaradas do executivo federal, e do partido que lhe dá sustentação, aos velhos donos do poder. Suas ações são politicamente insustentáveis. Diminuição da maioridade penal, financiamento privado de campanhas políticas, revisão do Estatuto do desarmamento, ataques aos direitos humanos, supressão de direitos trabalhistas, política ambiental desastrosa, estímulo ao consumo irresponsável, abandono da reforma agrária, corte de investimentos na educação, privatizações disfarçadas. A lista 04
confirma aquilo que, considerando nossa história de superexploração, parecia impossível: estamos retrocedendo! Quanto aos movimentos sociais e outras forças vivas da sociedade, muitas acabam aceitando o triste papel de coadjuvantes da realpolitik ou de críticos tolerados, chancelando o suposto vigor da nossa democracia meia-boca. Na contracorrente, evidentemente ainda há resistência ao desmanche. No campo da arte e da cultura, desastres. Não bastassem os desacertos crônicos do nosso arremedo de política cultural (em que Lady Rouanet continua dando as cartas), ficamos sabendo pelo eficiente trabalho da Auditoria Cidadã da Dívida que em 2014 o MinC embolsou a fabulosa fatia de 0,04% do orçamento do país. Mas se engana quem pensa que ele está em último lugar, ganha com folga, por exemplo, do Saneamento, que abocanha inacreditáveis 0,02%, comprovando que setores inúteis da administração pública, de fato, não precisam de recursos. Este contexto desolador, sumariamente evocado aqui (haveria muito a mencionar: o drama dos imigrantes e refugiados, o recrudescimento dos fundamentalismos e nacionalismos, a desordem climática, a violência policial, a corrupção empresarial e estatal), não deve ser álibi para a paralisia, o cinismo ou o desânimo. Ao contrário, ele mostra que precisamos de muita energia criativa, força de convencimento, e também de muita alegria e solidariedade, para inverter lógicas predatórias. Com a aparente ambiguidade de uma imensa modéstia e de uma enorme ambição, estamos fazendo proposições no campo da criação estética e da reflexão, estamos nos juntando com outros e outras que não desistem, estamos buscando modelos de análise e de ação. Sim, a telenovela continua a siderar muitos dos nossos possíveis interlocutores, a mídia segue seu massacre cotidiano, as velhas e novas religiões continuam ofertando uma salvação que aprisiona, os conformistas e oportunistas propõem um remédio que alivia pouco e não cura nada. Mas nossa teimosia faz parte de uma aposta necessária. O caderno de estudos Contrapelo é uma pequena contribuição nesta história. Nossa hipótese, por hora, é simples: do jeito que está, não pode continuar.
Kiwi Companhia de Teatro
foto luiz nunes
Ações recentes
Fome.doc. Exercício cênico aprzesentado na 2ª Feira Antropofágica. São Paulo, 2015
05
CARNE - Patriarcado E Capitalismo foto filipe vianna
Santo Amaro, Mostra Sesc de Artes SP, Mostra Sesc Cariri, Circuito Cultural Paulista, Circuito TUSP, entre outros). Carne também participou de dois eventos internacionais (Instituto Hemisférico de Performance e Política, Colômbia e Estados Unidos).
foto bob sousa
MORRO COMO UM PAÍS
O trabalho cênico Carne mostra o panorama da opressão de gênero e a situação específica da violência contra as mulheres no Brasil. Desde 2010, com apoio do Fomento ao Teatro, ProAc Circulação e Prêmio Myriam Muniz de Teatro, a peça foi apresentada mais de 200 vezes, geralmente em parceria com movimentos sociais.
Entre maio e julho de 2014, com apoio do Prêmio
Inspirando-se do agitprop ela utiliza espaços alterna-
Myriam Muniz (MinC) e Marcas da Memória (Minis-
tivos (escolas, sindicatos, associações) e teatrais (Sesc
tério da Justiça), a Companhia realizou atividades do
editorialtrajetória projeto Morro como um país - 50 anos do golpe nas
MANUAL DE AUTODEFESA INTELECTUAL
cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza, Crato,
A peça discute temas relacionados às mistificações,
João Pessoa e Brasília. Com apoio do Fomento ao
crendices e ideologias contemporâneas, utilizando
Teatro para a cidade de São Paulo a peça Morro como
reflexões filosóficas, principalmente a partir da obra
um país ficou em temporada no sótão do Teatro
de René Descartes (1596-1650), números de mágica e
Grande Otelo em 2013 e no CitEcum em 2014, também
música ao vivo. Com apoio do Programa de Fomento
foi apresentada no Engenho Teatral (zona leste) e em
ao teatro para a cidade de São Paulo, realizou tempo-
São Bernardo do Campo.
radas no Sesc Belenzinho e no Galpão do Folias.
FILTE BAHIA 2014
FOME.DOC
Em setembro de 2014 a Companhia participou do
Exercício cênico a partir de É isso um Homem? (Primo
FilteBahia 2014 (Festival Latino-americano de Teatro
Levi), Brevíssima Relação da Destruição das Índias
de Salvador) com os trabalhos Carne e Morro como
(Bartolomé de las Casas) e Quarto de despejo (Caro-
um país. As apresentações aconteceram no Centro
lina Maria de Jesus). O trabalho foi realizado em even-
Cultural Barroquinha, igreja do século 18 transforma-
to da Companhia Antropofágica em maio de 2015.
da em espaço cênico.
TRÊS METROS QUADRADOS
AS MULHERES E OS SILÊNCIOS DA HISTÓRIA Esta oficina, coordenada pela atriz e arte-educadora
06
Fernanda Azevedo, faz parte do Projeto Carne e procura, através de estímulos teatrais, literários e audio-
foto fernanda azevedo
visuais, discutir ferramentas para que as mulheres
Esta intervenção teatral utiliza trechos de depoimentos de ex-prisioneirxs políticxs e outros materiais
percebam, protagonizem e escrevam suas próprias histórias. Entre 2010 e 2015 ela foi realizada nos estados do Pará e em São Paulo (Unifesp Santos/Coletivo Heleieth Saffioti, Ocupação Palmares do MST/ Eldorado dos Carajás, Memorial da classe operária de Ribeirão Preto, entre outros).
ATUALIDADE DO TEATRO DOCUMENTÁRIO
documentais sobre violência institucional e violações aos direitos humanos. O evento sempre é seguido de ocorreram apresentações em São Paulo (PUC, Defensoria Pública, Projeto Casa Rodante, Centro Cultural da Juventude, Ato contra a Tortura, entre outros); no Sesc Bauru; na Escola Nacional Florestan Fernandes (Guararema); na 4ª Mostra Tapiri (Porto Velho/RO), além de ter integrado o projeto Morro como um país (Rio de Janeiro, Fortaleza, Crato, João Pessoa e Brasília).
foto fernanda azevedo
debate sobre violência de Estado. Em 2014 e 2015
Em maio de 2015 o diretor e pesquisador teatral Fernan-
Nos dias 2 e 3 de junho de 2015 estiveram em São Pau-
do Kinas ministrou um breve curso sobre esta moda-
lo familiares de alguns dos 43 estudantes mexicanos
lidade teatral que orienta parte das pesquisas do grupo.
desaparecidos de Ayotzinapa. Desde 26 de setembro de
O evento ocorreu no Sesc Belenzinho, em São Paulo.
2014, quando o Estado mexicano matou 6 estudantes e sequestrou outros 43 normalistas no estado de Guerrero, seus familiares e colegas estão em luta por justiça
NA RUA, ONDE MORA A DEMOCRACIA!
e verdade. A coletiva de imprensa com os integrantes
foto fernanda azevedo
da Caravana aconteceu na sede da Companhia.
Construção de um trabalho comum entre os participantes de um grupo de estudos, coordenado pelo grafiteiro e cenógrafo Julio Dojcsar, contando com a
foto daniela embón
CORDÃO DA MENTIRA 2015
participação de importantes artistas de rua que man-
Com o tema Condenados da Terra, o Cordão da Men-
têm a força da guerrilha poética pela liberdade na ci-
tira, formado por coletivos artísticos e movimentos
dade. O trabalho aconteceu na sede da Kiwi Companhia
sociais, realizou mais um desfil&scracho no dia pri-
de Teatro e na região da Luz em outubro de 2014.
meiro de abril: dia da mentira, dia de luta contra a violência de Estado.
TREINAMENTO RÍTMICO MUSICAL O treinamento musical, aspecto importante dos re-
PALESTINA PARA TOD@S (MOP@ T)
centes trabalhos de criação da Companhia, tem como
Em novembro de 2014 o Movimento Palestina para
foco técnicas de percussão e bateria. O programa é
Tod@s realizou um ciclo de formação sobre a questão
coordenado pela percussionista Luciana Fernandes.
palestina na sede da Kiwi. A atividade foi aberta a
Ele acontece desde 2013 na sede do grupo.
ativistas, movimentos sociais, trabalhadorxs, estudantes, jornalistas, professorxs e público interessado.
CARAVANA 43 SUDAMÉRICA – FAMILIARES DE AYOTZINAPA
IMPERTINÊNCIAS NECESSÁRIAS Ciclo de conversas que integra o Projeto Manual de
foto fernanda azevedo
autodefesa intelectual. Os temas abordados foram: O capital e seu avesso (a partir de Daniel Bensaïd), com José Correa Leite; Estratégias de subversão, com José Arbex Jr. e MPL (Movimento Passe Livre); Arte e política (a partir de Mário Pedrosa), com Francisco Alambert; Cinema, vídeo e movimentos populares, com Renan Rovida e Diogo Noventa. Os encontros ocorreram na sede da Companhia em julho de 2015.
07
Manual de autodefesa intelectual, 2015. Cena que utiliza recurso audiovisual, uma das técnicas do teatro documentário. Neste caso, um depoimento forjado relacionado à primeira guerra do Golfo
FOTO CAMILA MARTINS
bibliotecacrítica
O caderno de estudos Contrapelo apresenta, integralmente, um dos textos mais significativos dos anos 1960 no campo do teatro crítico. Notas sobre o teatro documentário (1967), escrito pelo dramaturgo alemão, naturalizado sueco, Peter Weiss, inscreve-se na tradição do teatro político que não abre mão da invenção estética. O texto contribuiu para redefinir os contornos desta modalidade teatral fecunda, ainda pouco conhecida e exercitada no Brasil.
Documentário (1967) notas sobre o teatro
O teatro realista do nosso tempo que, desde o movimento do proletkult, o agitprop, os experimentos de Piscator e as peças didáticas de Brecht, conheceu numerosas formas, pode ser designado hoje como teatro político, teatro documentário, teatro de protesto, antiteatro etc. Considerando a dificuldade em estabelecer uma classificação para as diferentes formas desta expressão dramática, tentaremos aqui tratar uma das suas variantes, aquela que se ocupa exclusivamente com a documentação de um tema, e por isso pode ser chamada de teatro documentário.
1
O teatro documentário é um teatro de relatório. Interrogatórios, atas, cartas, quadros estatísticos, comunicados da Bolsa, balanços de bancos e indústrias, declarações governamentais, discursos,
2
O teatro documentário é parte integrante da vida pública, tal como nos é apresentada pelos meios de comunicação de massa. A tarefa do teatro documentário será determinada, neste aspecto, por uma crítica em diferentes níveis.
entrevistas, declarações de personalidades conhecidas, reportagens jornalísticas
a. Crítica da camuflagem. As notícias da imprensa,
e radiofônicas, fotografias, filmes e outros
rádio e televisão são orientadas de acordo com os
testemunhos do presente constituem a
pontos de vista de grupos de interesse no poder? O
base da representação. O teatro docu-
que eles nos escondem? A quem servem as exclu-
mentário renuncia a toda invenção, usa
sões? Que círculos se aproveitam desta camuflagem,
material documentário autêntico difun-
desta modificação, desta idealização de determina-
dido a partir da cena, sem modificar o
dos fenômenos sociais?
conteúdo, mas estruturando a forma. Diferente das informações incoerentes
b. Crítica da falsificação da realidade. Porquê se apa-
que nos chegam diariamente de todas as
gam da consciência uma personagem histórica, um
partes, mostra-se na cena uma seleção
período ou toda uma época? Quem reforça sua pró-
que se concentrará em um tema deter-
pria posição eliminando certos fatos históricos?
minado, geralmente social ou político.
Quem tira proveito de uma alteração consciente de
Esta seleção crítica, assim como o cri-
certos processos cruciais e significativos? A que ca-
tério segundo o qual estes fragmentos
madas da sociedade importa dissimular o passado?
da realidade se ajustam, garantem a qua-
Como se manifestam as falsificações realizadas?
lidade desta dramaturgia do documento.
Como elas são recebidas?
09
bibliotecacrítica
c. Crítica da mentira. Quais são as repercussões de uma mentira histórica? Como se manifesta uma situação atual fundada sobre mentiras? Quais são as dificuldades com as quais teremos que contar para descobrir a verdade? Que organismos influentes e
3 10
folhetos, o desfile em cortejo, o trabalho de massa na multidão, são ações concretas de eficácia direta. Em sua improvisação, possuem uma força dramática,
que grupos de poder farão o possível para impedir o
seu desdobramento é imprevisível, a
conhecimento da verdade?
cada instante podem radicalizar-se pelo choque com as forças da ordem e colo-
Mesmo que os meios de comunicação tenham al-
car assim em evidência a contradição
cançado um alto grau de difusão e nos façam chegar
violenta existente nas relações sociais.
notícias de todas as partes do mundo, continuam
O teatro documentário, que reproduz
ocultos para nós, em suas motivações e corrrela-
uma síntese da temática latente do nos-
ções, os acontecimentos mais importantes que ca-
so tempo, tenta conservar a atualidade
racterizam nosso presente e nosso futuro. São ina-
na forma de se expressar. Sem dúvida,
cessíveis para nós os materiais dos responsáveis,
ao compor o material para uma repre-
que poderiam nos colocar a par sobre atividades
sentação fechada, fixada num tempo
das quais somente vemos os resultados. O teatro
determinado e dentro de um espaço
documentário que, por exemplo, queira ocupar-se
limitado, com atores e espectadores, o
do assassinato de Lumumba, de Kennedy, de Che
teatro documentário estará submetido
Guevara, do massacre da Indonésia, das discussões
a certas condições distintas daquelas
internas durante as negociações de Genebra sobre a
que regem a ação política imediata. A
Indochina, do último conflito no Oriente Médio e
cena do teatro documentário não mos-
dos preparativos do governo dos EUA para a guerra
tra a realidade do momento, mas a ima-
do Vietnã, encontra-se confrontado a uma obscuri-
gem de um fragmento de realidade ar-
dade artificial sob a qual ocultam suas manipula-
rancado do fluxo contínuo da vida.
ções aqueles que detêm o poder.
4
5
A manifestação na rua, a distribuição de
O teatro documentário se opõe aos grupos cuja política consiste em tornar cego o observador e nebuloso seu objeto de estudo, ele se insurge contra esta tendência dos meios de comunicação de massa em
6
Na medida em que ele mesmo não elege a forma de espetáculo em plena rua, o teatro documentário não pode rivalizar com o conteúdo da realidade de uma autêntica manifestação política.
manter a população num deserto de embrutecimen-
Ele jamais alcança a dinâmica que nas-
to e imbecilização; ele está na mesma situação que
ce da exposição de pontos de vista tal
cada um dos cidadãos do Estado que procura fazer
como acontece nas cenas de rua. A
sua própria investigação, mas se encontra com os
partir da sala do teatro não se pode
pés e as mãos atados, limitado no final das contas a
provocar as autoridades políticas e ad-
usar o único meio que lhe resta: o protesto público.
ministrativas do mesmo modo que
Do mesmo modo que a manifestação espontânea nas
pode ser feito nas manifestações con-
ruas, com cartazes, bandeiras e slogans escandidos
tra centros governamentais, admnis-
em coro, o teatro documentário representa uma
trativos e militares. Mesmo quando se
reação contra situações presentes, com a exigência
liberta do marco que faz dele um meio
de colocá-las a claro.
artístico, mesmo quando abandona as
7
8
categorias estéticas, mesmo quando
rior. Confrontando pontos contraditórios, ele chama
não quer ser nada acabado, mas uma
a atenção sobre um conflito latente e graças aos do-
simples tomada de posição e uma ação
cumentos reunidos tenta propor uma solução, lançar
militante, mesmo quando dá a impres-
um apelo ou formular uma questão fundamental. O
são de surgir no instante mesmo e de
que em uma improvisação aberta, um happening com
agir sem preparação, o teatro docu-
tintas políticas, leva a uma tensão difusa, a uma par-
mentário será sempre um produto ar-
ticipação emocional e à ilusão de um engajamento na
tístico e deve continuar a sê-lo, se
atualidade, no teatro documentário é tratado de
quiser justificar sua existência.
modo atento, consciente e refletido.
Porque um teatro documentário que pretenda ser antes de tudo uma tribuna política e que renuncie a ser uma realização artística, coloca-se a ele mesmo em cheque. Neste caso seria mais efeti-
9
O teatro documentário submete os fatos ao exame. Mostra a maneira diferente de considerar os acontecimentos e as manifestações. Mostra as motivações que estão na fonte destas diferenças. Uma das partes tira proveito de um acontecimento que prejudica a
va a atuação política prática no mundo
outra parte. Os dois campos se enfrentam. Ilumina-
exterior. Somente quando, através de
se a relação de dependência entre eles. Descrevem-se
sua atividade analítica, de controle e de
os subornos e extorsões que servem para manter de
crítica, transformou uma matéria real
pé esta dependência. A coluna das perdas aparece ao
vivida e lhe conferiu uma nova função,
lado daquela dos lucros… E os que lucram se defen-
como expressão artística, somente en-
dem, apresentam-se como defensores da ordem,
tão ele adquire plena validade no debate
mostram como administram seus bens. Em oposição
crítico travado com a realidade. Nesta
a eles estão aqueles que perdem. Nas suas filas estão
cena a obra dramática pode se conver-
os traidores que esperam uma possibilidade de as-
ter num instrumento de formação do
censão pessoal. Os demais se esforçam em não per-
pensamento político. É preciso, entre-
der ainda mais do que já perdem. Um choque inces-
tanto, deixar claro quais são as formas
sante de desigualdades. Olhares lançados sobre estas
de expressão específicas do teatro do-
desigualdades que a transcrição concreta torna insu-
cumentário que se diferenciam de cer-
portáveis. Injustiças tão evidentes, tão óbvias que
tos conceitos estéticos tradicionais.
exigem uma intervenção imediata. Situações tão fraudulentas que somente a violência pode transfor-
A força do teatro documentário reside
má-las. Debatem-se opiniões opostas sobre o mesmo
na sua capacidade de construir, a par-
tema. Comparam-se afirmações com situações reais.
tir de fragmentos da realidade, um
Promessas e compromissos são seguidos de ações
exemplo utilizável, um modelo esque-
que estejam em contradição com elas. Investigam-se
mático dos acontecimentos atuais. Ele
os resultados das ações tramadas em centros ocultos
não se situa no centro dos fatos, mas,
de planificação. Quem fortaleceu assim sua posição e
ao contrário, toma a atitude daquele
quem sofreu as consequências? Documentam-se os
que observa e analisa. A técnica da
silêncios e as evasivas das pessoas implicadas. Apre-
montagem e da colagem lhe permite
sentam-se os indícios. A partir de um exemplo co-
ressaltar detalhes claros e eloquentes
nhecido são tiradas as conclusões. Certas persona-
do material caótico da realidade exte-
gens conhecidas são definidas como representantes
11
bibliotecacrítica
10
de determinados interesses sociais. Não são expos-
mecanismo que continua a exercer in-
tos conflitos individuais, mas comportamentos so-
fluência sobre a realidade. Tudo o que
ciais e economicamente condicionados. O teatro do-
não é essencial, todas as divagações po-
cumentário, em contraste com a situação conjuntural
dem ser suprimidas em favor da propo-
externa, que se consome rapidamente, interessa-se
sição adequada do problema. Perde-se
pelo “exemplar”, não trabalha com personagens dra-
os efeitos de surpresa, a cor local, os
máticas, nem com evocação de atmosferas, mas com
elementos sensacionais, mas ganha o
grupos, campos de força, tendências.
que tem valor geral. O teatro documentário pode também incorporar o público
O teatro documentário toma partido. Muitos de
no seio dos debates de uma forma que é
seus temas só podem conduzir a uma condenação.
impossível numa sala de processo real.
Para um teatro assim, a objetividade aparece, sob certo
Ele coloca o público em pé de igualdade
ângulo, como um conceito que serve de desculpa a um
com os acusados ou os acusadores;
grupo de poder para justificar seus atos. O chamado à
pode fazer dos espectadores membros
moderação e à compreensão aparece como um grito
de uma comissão de investigação, pode
daqueles que temem perder seus privilégios. Os atos
levá-los à compreensão de um comple-
de agressão dos colonizadores portugueses contra
xo de fenômenos ou provocar em grau
Angola e Moçambique, o comportamento da Repú-
extremo uma atitude de oposição.
blica da África do Sul contra populações africanas, as agressões dos Estados Unidos da América contra
12
Cuba, contra a República Dominicana e o Vietnã somente podem ser apresentados como crimes unilaterais. Na descrição das invasões e genocídios, é lícita a técnica do “preto e branco”, sem a menor
11
12
Outros exemplos para o trabalho formal do material documental: a. Notícias ou fragmentos de notícias podem ser inseridos em intervalos
condescendência em relação aos agressores, e com
precisos e limitados com a intenção
toda a solidariedade possível pelos explorados.
de criar um ritmo. Passagens breves, consistindo de um único elemento,
O teatro documentário pode tomar a forma de um tri-
uma exclamação, são seguidos por
bunal. Mesmo neste caso ele não pretende igualar a
longas unidades complexas. Uma ci-
autenticidade de um tribunal de Nuremberg, de um
tação é seguida da descrição de uma
processo de Auschwitz em Frankfurt, de um interro-
situação. Uma situação, através de
gatório no Senado norte-americano ou de uma sessão
uma quebra brutal, transforma-se no
do Tribunal Russell. Entretanto, ele pode dar uma in-
seu contrário. Um protagonista isola-
terpretação original de tais questões e dos pontos de
do se enfrenta com uma série de reci-
litígio evocados na sala de audiência real. Graças à dis-
tantes. A estrutura se compõe de
tância que ele desfruta, pode completar os debates a
fragmentos antitéticos, de enumera-
partir de pontos de vista ausentes do caso concreto e
ções de exemplos análogos, de formas
original. As figuras que aparecem na ação se situam
contrastantes, de proporções variá-
num contexto histórico. Paralelamente à exposição de
veis. Variações sobre um mesmo
seus atos, mostra-se o processo do qual eles surgiram
tema. Desenvolvimento gradual de
e se chama a atenção sobre as consequências que sub-
um processo. Introdução de elemen-
sistem. Suas atividades ilustram a demonstração do
tos discordantes, de dissonâncias.
b. Trabalho estilístico sobre o material documental. Nas citações destaca-se o que é típico. As figuras são caricaturadas, situações são simplificadas para torná-las contundentes. Os songs ou
13
necessário é chegar a uma visão de conjunto, a uma síntese. As tentativas do teatro documentário de encontrar uma forma de expressão convincente estão ligadas à busca de um lugar de representação apropriado. Se permitimos que o trabalho aconteça em uma
canções têm a função de apresentar re-
sala comercial, com ingressos caros, o teatro documen-
latos, comentários, resumos. Introdução
tário ficará preso no sistema que ele pretende comba-
do coro e da pantomima. Interpretação
ter. Se ele acontece fora do establishment, ficará relega-
gestual da ação, paródias, uso de másca-
do aos locais frequentados, em geral, por um pequeno
ras e atributos decorativos. Acompanha-
círculo de partidários da mesma opinião. No lugar de
mento instrumental. Efeitos sonoros.
influenciar eficazmente a realidade, ele não faz mais do que demonstrar o pouco que pode diante dos de-
c. Interrupção no desenvolvimento do
fensores da ordem estabelecida. O teatro documentá-
relato. Inclusão de uma reflexão, um
rio deve conseguir penetrar nas fábricas, escolas, gi-
monólogo, um sonho, uma visão re-
násios de esportes, salas de reuniões. Assim como ele
trospectiva, um comportamento con-
se liberta das regras estéticas do teatro tradicional, deve
traditório. Estas rupturas no curso da
colocar constantemente seus próprios métodos em
ação, que criam uma insegurança, po-
questão e criar novas técnicas adaptadas às situações
dem produzir o efeito de um choque,
novas.
elas mostram como um indivíduo ou um grupo são afetados pelos acontecimentos. Exposição de uma realidade interna como resposta a certos processos externos. Mas estes deslocamentos não devem criar confusão, ao contrário,
14
O teatro documentário só é possível quando toma a forma de um grupo de trabalho estável, com uma formulação política e sociológica, e capaz de fazer uma investigação científica com a ajuda de arquivos abundantes. Uma dramaturgia do documento que recua
devem ressaltar a multiplicidade de ní-
diante de uma definição, que se contenta em mostrar
veis do acontecimento. Os meios utili-
um estado de coisas sem esclarecer os motivos de sua
zados não devem ser jamais um fim em
existência, ou a necessidade e a possibilidade de sua
si mesmos, mas devem apresentar uma
superação, uma dramaturgia do documento que pára
experiência demonstrável.
no gesto de um ataque desesperado sem tocar o inimigo, uma tal dramaturgia se desvaloriza a si mesma. Por
d. Explosão da estrutura. Nenhum rit-
isso o teatro documentário enfrenta esta produção
mo calculado, apenas material bruto,
dramática que tem como tema principal seu próprio
compacto ou fluido, na descrição da
desespero e sua própria cólera, e que se aferra à con-
luta social, na exposição de uma situa-
cepção de um mundo absurdo e sem saída. O teatro
ção revolucionária, na informação so-
documentário afirma que a realidade, não importa o
bre os campos de batalha. Intervenção
quanto ela se mascare de absurdo, pode ser explicada
da violência no choque das forças. Mas
em todos os seus detalhes.
aqui também não se deve ficar sem explicar ou resolver a rebelião em cena, a expressão do terror e a indignação. Quanto mais denso é o material, mais
Tradução de Fernando Kinas (a partir do cotejamento de diversas traduções do texto original)
13
foto Ryan Rodrick /shutterstock
poemasquejandos
Carteira de Identidade Registra
Registra!
Eu sou árabe
Sou árabe
Cinquenta mil é o número de minha carteira
Meu cabelo: negro
Oito são meus filhos
Meus olhos: castanhos
O nono, chega depois do verão.
Traços distintivos:
Você se irrita?
Na cabeça, lenço amarrado Minha mão, dura feito pedra
Registra
Arranha quem a tocar
Sou árabe
Meu endereço:
Com os companheiros da luta, trabalho numa pedreira
Sou duma aldeia afastada, esquecida
Tenho oito filhos
De ruelas sem nomes
Da rocha, arranco-lhes o pão, a roupa e o caderno
Seus homens, no campo e na pedreira
Não mendigo à sua porta
[Amam o comunismo]
Não me curvo
Isso o incomoda?
Diante do mármore de sua soleira. Isso o incomoda?
Registra Sou árabe
Registra
E você roubou as videiras dos meus avôs
Sou árabe
E a terra que eu arava,
Sou um nome sem sobrenome
Eu e todos meus filhos.
Paciente numa terra que ferve de cólera.
Deixaram para mim e para meus netos
Minhas raízes
Apenas estes rochedos
Fincaram-se antes do nascimento do tempo
Seu governo vai tomá-los,
Antes do desabrochar das eras,
Como disseram?
Antes de ciprestes e oliveiras
Registra então
E antes do crescer da grama
No cabeçalho da primeira folha:
Meu pai, da família do arado
Eu não odeio as pessoas
Não de fidalgos nascera
Não agrido ninguém
Camponês era meu avô
Mas se ficar com fome
Sem eira nem beira
A carne de meu usurpador, eu como
Ensinou-me altivez do sol antes de ler livros
Cuidado!
Minha casa, uma choupana de guarita
Cuidado com minha fome!
De paus e bambus Minha condição o agrada? Sou um nome sem sobrenome
Tradução de Safa Jubran
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poemasquejandos
A terra nos é estreita A terra nos é estreita. Ela nos encurrala no último desfiladeiro E nós nos despimos dos membros Para passar. A terra nos espreme. Fôssemos nós o seu trigo para morrer e ressuscitar. Fosse ela a nossa mãe para se compadecer de nós. Fôssemos nós as imagens dos rochedos que o nosso sonho levará como espelhos. Vimos o rosto de quem, na derradeira defesa da alma, o último de nós matará. Choramos pela festa dos seus filhos e vimos o rosto Dos que despenham nossos filhos pela janela deste último espaço. Espelhos que a nossa estrela polirá. Para onde irmos após a última fronteira? Para onde voarão os pássaros após o último céu? Onde dormirão as plantas após o último vento? Escreveremos nossos nomes com vapor carmim, cortaremos a mão do canto para que nossa carne o complete. Aqui morreremos. No último desfiladeiro. Aqui ou aqui... plantará oliveiras Nosso sangue. Tradução de Paulo Farah
foto fernando kinas
16
Estrada bloqueada pelo governo de Israel nas imediações de Ramallah, Palestina, 2015
Mahmud Darwich é considerado o poeta nacional da Palestina. Ele nasceu em Al-Birweh, Galileia, em 1941, na época do mandato britânico. Sua vila natal foi inteiramente destruída pelas forças israelenses durante a nakba (catástrofe) de 1948 e sua família refugiou-se no Líbano, onde permaneceu por um ano. Voltou clandestinamente à Palestina e
Sobre a perseverança
descobriu que o vilarejo onde nasceu tinha sido substituído por uma colônia agrícola israelense.
Se a oliveira se lembrasse de quem a plantou
Darwich foi preso cinco vezes entre
O azeite seria lágrimas!
1961 e 1967, período em que se
Sabedoria dos ancestrais,
engajou no Partido Comunista. A
Se lhe ofertássemos de nossa carne um escudo!
partir da década seguinte passou a
Mas a planície do vento
viver como refugiado (Moscou,
Não oferta aos escravos do vento cereais!
Cairo, Beirute e Paris). Neste
Arrancaremos com os cílios
período continuou a escrever e
Os espinhos e as mágoas… arrancaremos!
publicar livros, alternando temas
Para onde levaremos nossa desonra e nossa cruz!
políticos e líricos. Em 1995 retornou
E o universo prossegue…
à Palestina, instalando-se na cidade
Permaneceremos na oliveira em seu verdejar
de Ramallah. Darwich fez parte da
E ao redor da terra como escudo!!
direção da Organização para a Libertação da Palestina, mas
Nós amamos as rosas,
afastou-se em 1993, por discordar
Mas amamos o trigo ainda mais.
da posição moderada assumida
Nós amamos a fragrância das rosas,
pela OLP nos Acordos de Oslo. Ele
Mas mais puras são as espigas de trigo.
morreu em 2008, em Houston,
Protejam, pois, o trigo do tempo
Estados Unidos, após uma cirurgia
De peito cravado,
cardíaca. Sua obra foi traduzida em
Tragam a cerca vinda do centro…
mais de 40 línguas.
Dos corações, e como pode ela ser rompida?? Segurem o gargalo das espigas Como a empunhar uma adaga! A terra, o camponês e a determinação Diga-me: como podem ser derrotados… Essa tríade Como pode ela ser derrotada? Tradução de Paulo Farah
17
foto camila Martins
dossiĂŞkiwi
Manual de autodefesa intelectual, 2015
Nós estamos desarmados
notas sobre Manual de autodefesa intelectual
Ubi dubium, ibi libertas. [Onde há dúvida, há liberdade.] provérbio latino Por bondade de Deus temos em nosso país estas três coisas infinitamente preciosas: liberdade de expressão, liberdade de consciência e prudência para nunca exercer nenhuma das duas. Mark Twain
É inequívoca a importância das superstições, Proteja-me daquilo que eu quero.
lendas, crendices, obscurantismos e pseudociências,
Jenny Holzer
ontem e hoje, tanto do ponto de vista econômico, como das suas implicações sociais, culturais e políticas. Uma lista nada exaustiva incluiria: visões, êxtases, telepatia, profecias, levitação, curas mágicas, milagres, abdução por extraterrestres, quiromancia, viagem astral, astrologia, precognição, homeopatia, uso de cristais e amuletos, comunicação com os mortos, leitura de aura, telecinesia… A lista é longa e ainda se poderia acrescentar crenças como a do monstro do lago Ness, Triângulo das Bermudas, continente perdido de Atlântida, profecias de Nostradamus, loira do banheiro etc. Os velhos contos do vigário são modernizados e suas vítimas se multiplicam. Horóscopos continuam sendo publicados em jornais e revistas, mesmo naqueles que se pretendem sérios. Mapas astrais ainda fazem muito sucesso. Remédios milagrosos e simpatias mantêm o prestígio. Os exemplos, também aqui, contam-se às centenas e, infelizmente, não se limitam a casos anedóticos. Se alguns são folclóricos, com efeitos modestos, outros são evidente charlatanismo, envolvendo ações criminosas e consequências importantes.
19
dossiêkiwi Um sem-número de ações, como apostar em jogos
Mas não parece arbitrário ou gratuito, sobretudo nos
de azar ou se benzer diante de igrejas, são alguns dos
nossos tempos bicudos, reivindicar uma certa radica-
sinais externos a indicar que o livre-arbítrio e a facul-
lidade (“nem deus, nem pátria, nem patrão”), que anda
dade do julgamento nem sempre são plenamente
amortecida por bom-mocismo, análises míopes, co-
exercidos. Afinal de contas, como negar os poderes do
optação ou timidez intelectual e política.
chamanismo céltico, da meditação das rosas ou dos
Associado ao fenômeno das superstições e das
florais de Bach? A cientologia, a título de exemplo, tem
crenças religiosas, há outros casos, talvez mais preocu-
milhares de adeptos mundo afora, especialmente en-
pantes, como a dificuldade de boa parte da população
tre as celebridades. O fundador da seita, L. Ron Hubbard,
em decifrar informações veiculadas pelos meios de
afirmou certa vez ter visitado uma lua de Vênus. E ele
comunicação de massa. Credulidade, ingenuidade e
não estava brincando. Também não é difícil encontrar
voyeurismo mórbido — cuidadosamente alimentados,
pessoas dispostas a acreditar em aparições de santas,
diga-se de passagem — dificultam a compreensão do
fantasmas e parentes recém-falecidos. Ou em estátu-
sistema de mídia das sociedades contemporâneas. Dé-
as que vertem sangue. Há muitas que juram que Elvis
cadas atrás o comediante francês Coluche, antecipando
está vivo, enquanto outras batem três vezes na ma-
o que depois ficaria pior, afirmou: “Não se pode dizer a
deira, não passam embaixo de escadas, não repetem
verdade na televisão, há muita gente olhando”.
determinadas palavras e ficam muito preocupadas quando um gato preto cruza seu caminho.
20
Sobre o entendimento acerca dos mecanismos de ação política, a situação não é menos grave, uma vez
No campo da religião, se é verdade, como diz Marx,
que estes envolvem processos sofisticados de simpli-
que “a miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a
ficação da realidade, persuasão e sedução. Não faltam
expressão da miséria real e o protesto contra a miséria
exemplos de adestramento para a credulidade ou de
real”, também parece ser verdade que a religião,”cons-
“fabricação do consenso” (e do consentimento), nas
ciência invertida do mundo” e “felicidade ilusória do
palavras de Noam Chomsky. Assim como passamos
povo”, deveria ser suprimida, uma vez que “a exigência
das antigas “correntes”, aquelas cartinhas enviadas pelo
de abandonar as ilusões sobre sua condição é a exi-
correio, às formas contemporâneas de disseminação
gência de abandonar uma condição que necessita de
de bobagens turbinadas pela internet e pelas redes
ilusões.” A este Marx, ainda pré-marxista, pode-se
sociais, também a doutrinação contemporânea, em
fazer objeções, como o de ser um jovem hegeliano de
nada incompatível com o funcionamento das demo-
esquerda. Vale lembrar que as frases acima, junto com
cracias liberais, atualiza incessantemente seus métodos
a famosa passagem sobre “o ópio do povo”, foram
e suas técnicas. No caso das agressões internacionais,
escritas em 1843, quando ele tinha apenas 25 anos.
para dar um exemplo que não perde a atualidade, estas técnicas, segundo um conhecido jornalista belga, significam: esconder os interesses econômicos, ocultar a
Alguns mecanismos de ação política visam a impedir que o debate aconteça e a evitar o confronto de ideias
dimensão histórica, diabolizar o adversário, inverter o agressor e a vítima, monopolizar o uso da palavra, tentar se passar por defensor das vítimas, impedir que o debate aconteça e evitar o confronto de ideias. Em suma, o analfabetismo científico, a confusão entre opinião e conhecimento (doxa e episteme), os erros oriundos do pensamento circular e das relações inexistentes de causa e efeito, a presença ostensiva da fé no cotidiano, a aceitação de premissas falsas como sendo verdadeiras, a ausência de verificação das fontes,
as campanhas publicitárias, as ações de marketing e relações públicas, o auto-engano, a recepção passiva de argumentos de autoridade, entre outros procedimentos, como aqueles baseados na intuição, no senso comum e nas experiências imediatas e pessoais, criam um ambiente propício ao engano e ao erro. A adesão a teorias pseudocientíficas, o senso comum e as imposturas (midiáticas, políticas, religiosas etc.) podem levar, ainda, a todo tipo de preconceito, como a xenofobia, o racismo e o sexismo. Neste ambiente, que mal dissimula ideias fascistas, índios são preguiçosos, ciganos trapaceiros, judeus gananciosos.
Está ausente uma visão de mundo abrangente capaz de colocar de pernas para o ar os valores do capital
Loiras são burras, argentinos arrogantes, baianos lentos, muçulmanos terroristas. A relação, extensa como de hábito, é proporcional ao rebaixamento intelectual e político, terreno fértil para os fundamentalismos.
nidade tributária à igreja católica e prevê o ensino
O que está em jogo, logicamente, não é apenas um
religioso nas escolas públicas, num flagrante desres-
tipo cotidiano e prosaico de credulidade, mas o con-
peito à laicidade do Estado. A análise proposta aqui,
trole de populações e a manutenção de privilégios.
convém esclarecer, não significa, no entanto, fazer coro
Estão integrados ao status quo tanto os provérbios
com o novo ateísmo liberal de Richard Dawkins, Sam
aparentemente anódinos, do tipo “pau que nasce torto,
Harris e do trotskista arrependido Christopher Hit-
morre torto”, quanto as complexas engenharias de
chens. Iniciativas como a Lei do Nascituro e o Estatu-
administração social, passando pelas relações públicas
to da Família, além dos constantes ataques aos direitos
ao estilo de Edward Bernays (sobrinho de Freud e as-
humanos e a tolerância com a violência institucional,
sessor, durante décadas, do governo norte-americano),
especialmente da Polícia Militar, sinalizam, se não a
ou da empresa de comunicação Hill and Knowlton
falência, uma indigência política e intelectual preocu-
(famosa pela farsa da estudante Nayirah, às vésperas
pante. Está ausente uma visão de mundo, que deve ser
da primeira guerra do Golfo). Técnicas foram e conti-
necessariamente abrangente, capaz de colocar de per-
nuam sendo desenvolvidas para que não pairem dúvi-
nas para o ar os valores do capital.
das a respeito das armas de destruição de massa do
Na maioria dos casos, muito além de divergências
Iraque ou da boa-fé das elites francesas ao exportarem
políticas, culturais ou filosóficas, estão em jogo misti-
os valores da Revolução de 1789 para suas colônias e
ficações e manipulações grosseiras que ganham força
protetorados. Na mesma linha de raciocínio, Duque de
pela ausência do debate público plural e informado
Caxias é herói e Calabar traidor. E mais, reduzir a
(enquanto, na grande mídia, o oligopólio continua
maioridade penal diminui a criminalidade e armar as
negando o oligopólio). Isto não significa dizer que seja
pessoas até os dentes conduz à paz social.
possível mudar o mundo mudando as ideias, seria uma
Nós estamos desarmados, é verdade, mas de ins-
outra espécie de idealismo, mas que mudar as ideias
trumentos para refletir criticamente. Esta situação
exige a mudança do mundo. Nesta dificílima tarefa
contribui para a expansão de fenômenos como as
— citando apenas alguns marcos do pensamento oci-
bancadas parlamentares reacionárias (da bala, do boi,
dental —, Platão não nos ajuda, Descartes e Espinosa
da bola, da bíblia…), que permitiram, por exemplo, a
deram pistas valiosas e Marx escancarou as portas.
aprovação do acordo com a Santa Sé, que havia sido assinado pelo governo Lula. Acordo que garante imu-
Fernando Kinas
21
dossiĂŞkiwi
Manual de autodefesa intelectual Roteiro de Fernando Kinas, versĂŁo de julho de 2015
foto bob sousa
22
a
Fernanda Azevedo
b
MaĂra Chasseraux
c
Maria Carolina Dressler
d
Vicente Latorre
m1
Eduardo Contrera
m2
Elaine Giacomelli
Preâmbulo musical brechtiano m2
[Canta]
Estranhem o que não for estranho Inexplicável o habitual Sintam-se perplexos ante o cotidiano Tratem de achar um remédio para o abuso Mas não se esqueçam que o abuso é sempre a regra
Cena 1 • Pense [Música Think + coreografia]
Cena 2 • Liberdade, liberdade [Hino da Proclamação da República] d
Boa noite.
Vocês sabiam que a liberdade de um povo se mede pela sua capacidade de rir? Por isso, hoje, vocês devem rir bastante, que é para parecerem bem livres.
Cena 3 • Trindade 1 [Música em três] a
Esta é a nossa cena número três. Ela vai acontecer
três vezes, porque o número três é um número muito importante para nós.
23
dossiêkiwi Três porquinhos. Três reis magos. Três mosqueteiros.
as coisas que antes nos pareceram muito seguras,
Três patetas. Três poderes. Três corações. Regra de três. Ménage à trois. Santíssima trindade. Salto triplo.
b
Mesmo das demonstrações de matemática e dos
Sistema trifásico. Tripé. Trinômio. Tríade. Trinado.
seus princípios, principalmente porque ouvimos di-
Trio. Triângulo. Tríplice, Terno. Tríptico. Terciário.
zer que deus, que nos criou, pode fazer tudo o que lhe
Ópera dos três vinténs. As três irmãs. No basquete,
agrada, e que não sabemos se talvez ele não quis nos
fazer uma cesta fora da área restrita vale três pontos.
fazer de tal jeito que sejamos sempre enganados,
No futebol a vitória vale três pontos. Triatlon. Três
mesmo nas coisas que pensamos conhecer melhor.
cores primárias. Três dimensões. Terceiro olho.
Já que ele permitiu nosso engano algumas vezes, por que ele não permitiria que nos enganássemos sempre?
[Música em três]
E se queremos imaginar que um deus todo-poderoso não é de forma alguma o autor da nossa existência, e
Cena 4 • Descartes 1 [Música] [a
d c b
em linha representando as três re-
ligiões monoteístas e um intruso] c
[ 24
meio, teremos então mais motivos para acreditar que não somos tão perfeitos a ponto de não sermos continuamente enganados.
Princípios da filosofia. Um. b
c
d
a
fazem o número mencionado com os
dedos. Sempre errado] a
que existimos por nós mesmos ou por qualquer outro
[
a
Princípios da filosofia. seis. d
c
b
fazem o número mencionado com os
dedos. Sempre errado]
Que para examinar a verdade é neces-
b
c
d
d
c
Mesmo se fosse todo-poderoso aquele que nos
sário, uma vez na vida, colocar todas as coisas em
criou, e mesmo que sentisse prazer em nos enganar,
dúvida tanto quanto se possa.
não deixamos de sentir em nós uma liberdade tal que, todas as vezes que nos dá vontade, podemos nos
d
Como nós fomos crianças antes de sermos gran-
des, e que nós julgávamos, mal ou bem, as coisas que
abster de acreditar nas coisas que não conhecemos bem, e assim nos impedir sempre de ser enganados.
se apresentavam aos nossos sentidos, quando ainda não usávamos nossa razão por inteiro, muitos julga-
b
Princípios da filosofia. Sete.
mentos assim precipitados nos impedem agora de fazem o número mencionado com os
chegar ao conhecimento da verdade, e nos deixam de
[
tal maneira confiantes, que não existe nem sinal de
dedos. Sempre errado]
a
d
c
b
podermos nos livrar deles, se não colocarmos em dúvida, uma vez na nossa vida, todas as coisas nas quais encontrarmos a menor suspeita de incerteza.
a
Que não saberíamos duvidar sem existir, e que
este é o primeiro conhecimento seguro que se pode adquirir.
a
Princípios da filosofia. Cinco.
Enquanto rejeitamos tudo aquilo sobre o qual se pode duvidar, e que imaginamos mesmo que é falso,
[
a
d
c
b
fazem o número mencionado com os
dedos. Sempre errado]
nós supomos com facilidade que não existe nenhum Deus, nem céu, nem terra, e que não temos corpo; mas não poderíamos supor que não existimos enquanto
a
d
c
b
- Nós duvidaremos também de todas
duvidamos da verdade de todas essas coisas; porque
temos tanta repugnância em conceber que aquele que
meira letra do alfabeto e pode ser lida como 1, então
pensa não existe, verdadeiramente, ao mesmo tempo
AA = 11. O voo nº 11 levava a bordo 92 passageiros:
que pensa, que, apesar das suposições mais extrava-
9+2=11.
gantes, é difícil acreditar que esta conclusão: Eu pen-
O segundo voo que bateu contra as Torres Gêmeas
so, logo existo, não seja verdadeira e, por conseqüên-
tinha 65 passageiros: 6+5 = 11.
cia, a primeira e a mais segura que se apresenta
As vítimas totais que faleceram nos aviões são 254:
àquele que conduz seus pensamentos com ordem.
2+5+4 = 11. 11 de setembro é o dia 254 do ano: 2+5+4 = 11. Nostradamus (nome com 11 letras) profetizou a
Cena 5 • Platão e a mágica [Música + Mágica das cartas de baralho]
destruição de Nova Iorque na Centúria número 11. As Torres Gêmeas tinham a forma de um gigantesco número 11. O atentado de Madrid aconteceu no dia 11 de março
Cena 6 • 1 + 1 = 3 d
Existem três tipos de pessoas: as que sabem con-
tar e as que não sabem contar. b
[Música]
de 2004: 1+1+0+3+2+0+0+4 = 11. O atentado de Madrid aconteceu 911 dias depois do de New York: 9+1+1 = 11. Meu sobrenome é Chassereaux. 11 letras. E estas coincidências… não provam nada. Pura bobagem [Conta nos dedos]: 11 letras.
O atentado às Torres Gêmeas aconteceu em onze de
Uma idiotice [Conta nos dedos]: 11 letras.
setembro, 11 de 9. 1 + 1 + 9 = 11. New York City tem 11 letras.
[d se aproxima indicando que a cena deve acabar]
Afeganistão tem 11 letras. George W. Bush tem 11 letras.
Melhor parar [Conta nos dedos]: 11 letras.
Bill Clinton tem 11 letras. Colin Powell tem 11 letras. Mohamed Atta, piloto de um dos aviões que colidiu
d
Eu pensei em alguém e 5 minutos depois fiquei
sabendo que esta pessoa morreu!
contra as Torres Gêmeas, tem 11 letras. segura um flip chart trazido por d, ficando enco-
Nova Iorque é 11º estado a se incorporar aos EUA.
[
O primeiro dos voos que se chocou contra as Torres
berta por ele. Nele estão escritos os números que
Gêmeas era o nº11 da American Airlines. A é a pri-
constam da cena seguinte]
b
25
dossiêkiwi a
Suponha que você conheça 10 pessoas que morrerão
faca vai dar briga, tem que riscar o chão em cruz.
em um ano e que você pensa nessas pessoas uma vez a
Vassoura atrás da porta faz a visita chata ir embora.
cada ano. Um ano contém 105.120 intervalos de 5 mi-
Desejar merda dá sorte no teatro.
nutos durante os quais você poderia pensar sobre cada
Mas não pode agradecer.
uma dessas 10 pessoas, uma probabilidade de um sobre
Não deixar acabar o sal em casa.
10.512 (1/10.512). Certamente um evento improvável.
Não passar o sal de mão em mão, colocar sobre a mesa. Não cortar unha aos sábados.
c
Atualmente existem 200 milhões de brasileiros.
Carregar um patuá.
Para fins do nosso cálculo, vamos supor que eles pen-
Usar trevo de quatro folhas na carteira.
sem como você. Isso faz com que existam 1/10.512 X
Vestir branco na sexta-feira.
200.000.000 = 19.026 pessoas em um ano, ou 52
Por alho no bolso.
pessoas por dia, para quem esta improvável premoni-
Não dormir nu.
ção - pensar em alguém e em 5 minutos ficar sabendo
Não comer sem camisa (o anjo da guarda não fica do
que esta pessoa morreu - se torne provável.
seu lado). Se jogar o pão fora tem que dar um beijinho.
a
26
Com o bem conhecido fenômeno da confirmação
Guardar sempre tesoura fechada.
de tendências agindo com força - isto é, para apoiar
Não usar roupa do avesso.
nossas crenças nós percebemos e valorizamos os
Não dormir com o pé virada para a porta.
acertos e ignoramos os erros -, se somente algumas
Não sentar de costas para porta.
dessas 19.026 pessoas relatarem sua história “mira-
Não passar debaixo da escada.
culosa”, o sobrenatural parece justificado. Na realida-
Não passar na frente de gato preto.
de, isto simplesmente demonstra as leis da probabi-
Sal grosso, arruda e espada de São Jorge espantam
lidade quando lidamos com números muito grandes.
mau olhado. Acender cigarro na vela mata uma fada.
Cena 7 • Bolha 1
[Juntas] Deixar o dente para a fada do dente. Quando duas pessoas falam ao mesmo tempo encon-
[Na bolha são enumeradas superstições, crendices,
trar algo verde e dizer: [juntas] verde sorte minha.
simpatias, fetiches, ideologias, pensamentos mágicos,
Quando cair um cílio, por na ponta do dedo, juntar com
pseudociências, rituais, lendas, misticismos…]
o dedo de alguém e fazer um desejo. Quem ficar com o cílio tem o pedido atendido.
a
+
c
[Alternadamente] [Ligam o letreiro digital,
ele sinaliza o conteúdo da cena] [Juntas] Bater três vezes na madeira. Fazer sinal da cruz na frente da igreja. Beijar o escapulário. Não deixar sapato virado. Dar bebida para o santo. Apagar as velas com um único sopro. Colocar a bolsa no chão faz perder dinheiro. Para encontrar o que perdeu dizer [juntas] “São Longuinho, São longuinho. Se eu achar dou três pulinhos”. Se cair colher, visita de mulher; garfo, visita de homem;
Quebrar o ossinho da galinha. O deseja se realiza para
Vai soprar vela de aniversário, faça um pedido. Atravessou uma ponte pela primeira vez, faça um pedido. Jogou moeda na fonte, faça um pedido. Pisar com pé direito quando sair da cama. Colocar o Santo Antônio na água e de cabeça para baixo. Não pegar coisas de despacho. Nem comer a galinha ou a farofa. Espelho quebrado dá sete anos de azar. Cortar o bolo de noiva de baixo para cima. Criança que nasce com a mão fechada vai ser pão-dura. Não brindar com copo vazio ou com água, olhar olho quem ficar com a parte maior.
no olho e beber antes de pôr o copo na mesa.
Palma da mão esquerda coçando é dinheiro entrando.
Treze é número de azar.
Palma direita é saindo. As duas é alergia.
Sexta-feira treze, nem se fala.
Se a coruja cantar no telhado é morte na família ou
Se varrer os pés de uma pessoa ela não se casa. Sapo
mau agouro. Falar: [juntas] “Passa morte que eu tô forte.”
morto de barriga para cima é sinal de chuva.
Fazer figa.
Abrir guarda-chuva em casa traz problemas. No dia
Cruzar os dedos.
do casamento o noivo não pode ver a noiva antes da
Cortar o cabelo no quarto-crescente.
cerimônia. Se ficar com a orelha quente alguém está
A mulher que pegar o buquê de casamento será a pró-
falando mal de você.
xima a casar.
Joaninha e borboleta trazem boa sorte.
No réveillon: usar uma peça de roupa nova, pular 7
Manga com leite é morte certa.
ondinhas, usar roupa branca, não comer bicho que cisca para trás, comer sete uvas, comer lentilha em cima
[Desligam o letreiro digital] [Música]
da cadeira. A visita nunca deve abrir a porta na hora de sair. Não falar Macbeth no teatro. Melhor falar [Juntas] “aquela peça escocesa”.
Cena 8 • Pensar dói: silogismo, paralogismo e pensamento circular
Susto e paninho na testa para curar soluço. Tomar três goles d’água também serve.
d
Todos os homens são mortais
Colocar o elefante com a bunda virada para a porta.
Sócrates é um homem
Para tirar um cisco: esfregar o olho e dizer [Juntas]
Logo, Sócrates é mortal
“Santa Luzia passou por aqui, com seu cavalinho, comendo capim”.
Este é um silogismo, eles funcionam com base em
Beber no mesmo copo faz descobrir os segredos.
três princípios:
Apontar dedo para a lua dá verruga.
Princípio da identidade: o que é é. A é A.
Se fizer careta e passar um vento o rosto fica torto.
Princípio da contradição: nada pode ser A e não-A ao
Não comer de frente para o espelho.
mesmo tempo.
Quando engasgar dizer: [ Juntas] São Brás, São Brás,
Princípio do terceiro excluído: A ou não-A, sem a
desengasga esse rapaz.
possibilidade de um terceiro.
Cobrir os espelhos quando morre alguém em casa.
Se as premissas são verdadeiras, a conclusão é
Passou estrela cadente, faça um pedido.
verdadeira.
27
dossiêkiwi b
1. O silogismo deve ter apenas três termos.
a
Primeiro exemplo de paralogismo:
2. Nada se conclui de duas premissas negativas.
Se P, então Q
3. Nada se conclui de duas premissas particulares.
Ora Q Logo P
Exemplos: Todas as avestruzes são elefantes
Se chove a calçada está molhada
Essa rã verde é uma avestruz
A calçada está molhada
Logo, essa rã verde é um elefante
Logo, chove
Alguns judeus não comem carne de porco Alguns muçulmanos não comem carne de porco
Se uma sociedade é justa, os cidadãos não se rebelam
Logo, alguns judeus são muçulmanos
Os cidadãos não se rebelam Logo, a sociedade é justa
Existem biscoitos de água e sal
c
Segundo exemplo de paralogismo:
O mar é feito de água e sal
Se P, então Q
Logo, o mar é um biscoitão
Não P
Todos os gatos são mortais
Logo não Q
Sócrates é mortal Logo, Sócrates é um gato
Se eu estou no Rio de Janeiro, estou no Brasil Eu não estou no Rio de Janeiro Logo, eu não estou no Brasil
28
Se eu tenho sucesso, eu sou capaz Eu não tenho sucesso Logo, eu não sou capaz d
Pensamento circular:
Deus existe porque a Bíblia disse. E por que devemos acreditar na Bíblia? Porque é a palavra de deus! Teatro é chato porque as pessoas não gostam. E por que as pessoas não gostam? Porque ele é chato!
Cena 9 • Necessidade [Música religiosa +
c
a
b
d
leem folhetos de
videntes]
Cena 10 • Bolha 2 [Na bolha são enumeradas superstições, crendices, simpatias e afins]
b
+
d
[Alternadamente] [Ligam o letreiro digital]
Ommmmmm
Rogai por nós os pecadores. Agora e na hora de nossa morte. Amém.
Nam-Myoho-Rengue-Kyo [Desligam o letreiro digital] Hare Krishna Hare Krishna Krishna Krishna Hare Hare
Cena 11 • Pai e mãe
Hare Rama Hare Rama Rama Rama Hare Hare
[Música Spiegel im spiegel.
a
b
c
d
fazem
coreografia com as mãos relacionada aos pais] Ó Senhor, abre os meus lábios e minha boca proclamará o Louvor a Ti!
c
[Sentada] - Os meus pais morreram há alguns
anos. Eu era muito ligado a eles. Ainda hoje eu sinto Ashadu Ana La Ilaha Illa Allah, Ashadu Ana Muhammad
uma saudade enorme. Eu sei que eu sempre vou sen-
Rasul Allah. (x2)
tir. Eu quero acreditar que a essência deles, a personalidade deles, o que eu tanto amava neles, ainda
Creio em Deus-Pai, todo poderoso, criador do céu e
existe, real e de verdade, em algum lugar.
da terra e em Jesus Cristo seu único filho, Nosso Senhor
Eu não queria muito, só uns cinco ou dez minutos
que foi concebido pelo poder do Espírito Santo nasceu
por ano, para contar a eles sobre os netos, falar das
da Virgem Maria Padeceu sob Pôncio Pilatos Foi cru-
últimas novidades, lembrar para eles que eu os amo.
cificado, morto e sepultado desceu a mansão dos
Uma parte minha, por mais infantil que pareça se
mortos ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus está
pergunta como é que eles estão. “Tá tudo bem?”, eu
sentado à direita de Deus Pai, todo poderoso, de onde
tenho vontade de perguntar.
há de vir a julgar os vivos e os mortos Creio no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica na comunhão dos
[Pausa. Breve trecho da coreografia]
Santos Na remissão dos pecados na ressurreição da carne na vida eterna Amém.
As últimas palavras que eu disse para o meu pai, na hora em que ele morreu, foram: “Toma cuidado”.
Pai Nosso que estais nos céus,
Às vezes eu sonho que estou falando com os meus
santificado seja o vosso Nome,
pais e, de repente – ainda mergulhado no sonho –, eu
venha a nós o vosso Reino,
sou tomado pela consciência esmagadora de que eles
seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu.
não morreram de verdade, de que tudo não passou de
O pão nosso de cada dia nos dai hoje,
um erro. Eles estão ali, vivos e bem de saúde, meu pai
perdoai-nos as nossas ofensas
fazendo umas piadas, a minha mãe, muito séria, me
assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido,
aconselhando a usar um casaco porque está frio.
e não nos deixeis cair em tentação,
Quando eu acordo, eu passo de novo por um proces-
mas livrai-nos do Mal.
so abreviado de luto. Existe alguma coisa dentro de mim
Amém.
que está pronta a acreditar na vida depois da morte. E que
Ave-Maria, cheia de graça!
não está nem um pouco interessada em saber se existe
O Senhor é convosco.
alguma evidência séria que confirme esta hipótese.
Bendita sois vós entre as mulheres
Por isso, eu não rio da mulher que visita o túmu-
E Bendito é o Fruto do vosso ventre, Jesus.
lo do marido e conversa com ele de vez em quando,
Santa Maria Mãe de Deus,
talvez no aniversário da morte dele. Não é difícil
29
dossiêkiwi compreender isso. E se eu tenho dificuldade em acre-
cetado apenas me confunde, e eu tenho que procurar
ditar que aquele com quem ela está falando existe, de
pela unidade. Traços dessa coisa perfeita aparecem
verdade, não faz mal. Não é isso que importa. O que
em muitas formas, e tudo que é desimportante desa-
importa é que os seres humanos são humanos.
parece. Tintinabulação é assim. As três notas da tríade são como os sinos, e é por isso que eu lhe dei esse nome.”
Cena 12 • Spiegel im Spiegel. Sobre músicas e sentimentos
[Enquanto
m1
analisa a música,
m2
volta a exempli-
ficar no teclado] m1
Esta música se chama Spiegel im Spiegel – Espe-
lho no Espelho, em alemão – e foi escrita em 1978 por
Em Spiegel im Spiegel, podemos ver como funciona
Arvo Pärt, compositor nascido na Estônia em 1935.
esse estilo de composição: a música consiste de um
Ele é considerado um dos mais importantes compo-
padrão rítmico repetitivo de 6/4, de grupos de 3 se-
sitores minimalistas e um dos praticantes do chama-
mínimas no piano, repetindo as notas da tríade de fá
do “minimalismo místico”, embora ele prefira, para
maior, com pequenas alterações, sugerindo a ida da
descrição de seu estilo composicional, a palavra tin-
tônica para a subdominante ou para o quinto grau,
tinabular, de tintinábulo: sino.
sem nunca deixar o campo harmônico de fá maior. O violoncelo toca a escala de fá maior alternadamente
[Enquanto
30
m1
analisa a música,
m2
exemplifica no
subindo e descendo, começando com sol. Com cada
teclado]
subida e descida, uma nota é acrescentada, processo
Podemos resumir assim este estilo: padrões repetiti-
que pode seguir indefinidamente. É essa continuida-
vos e motivos curtos, tempos lentos, valores rítmicos
de e lentidão da linha do violoncelo, combinada com
longos, uso de silêncio, uso de escalas e acordes dia-
o “movimento estático” do padrão repetitivo do pia-
tônicos, ausência ou mínimo de cromatismo, pouco
no que cria a sensação de tranquilidade, nostalgia, até
ou nenhum uso de dissonância, atividade harmônica
de uma certa melancolia. Esta música tornou-se um ícone da obra de Arvo
estática, conceito do tempo estendido. É uma música caracterizada por harmonias simples,
Pärt e é talvez sua composição mais conhecida. Foi
pelo uso de tríades, que são a base da harmonia da
usada em muitos filmes, coreografias, peças de teatro
música ocidental. Esse grupo de três notas, para Arvo
e séries de televisão. Muitos carros da Volkswagen
Pärt, evoca “o soar dos sinos, a rica e complexa massa
dos anos 2000 tocam o começo dessa música como
sonora de harmônicos dos sinos, a gradual aparição de
sinal de alerta quando os cintos de segurança não
padrões implícitos no som em si mesmo, e a ideia de
estão colocados. Em 2011 a peça foi tema de um pro-
um som que é, simultaneamente, estático e em fluxo.”
grama de rádio da BBC sobre músicas com “profundo impacto emocional”.
[ m2 tem dificuldade em exemplificar esta passagem no teclado]
Cena 12+1 • Teoria do complô para iniciantes
Pärt explica seu estilo também da seguinte maneira: “Tintinabulação é uma área que às vezes eu percorro
c
Teoria do complô para iniciantes.
quando procuro por respostas – em minha vida, minha música, meu trabalho. Em minhas horas som-
d
a
c
b
[Alternadamente]
brias, eu tenho a sensação que tudo fora dessa única
Elvis não morreu.
coisa não tem sentido. O que é complexo e multifa-
O homem não foi à Lua.
Bush ordenou o ataque às Torres Gêmeas.
Corro da policia
A CIA matou Kennedy.
Pau pra toda obra
Shakespeare não era Shakespeare.
Vivo no
Paul McCartney está morto.
Mundo irreal
O vírus da AIDS foi criado em laboratório.
Do sobrenatural
A França comprou a copa de 98.
Cumpro a instrução
A Argentina a de 78.
Sigo a tradição
O Brasil vendeu a de 2014.
Não questiono nada
As pirâmides do Egito foram construídas por ET’s.
Eu fico olhando sem ver
A Terra não está aquecendo.
Eu fico vendo pra crer
Cena 14 • Crônica
Sou mulher Espancada Ativista
Negro sou
Assassinada
Judeu
Sou fiel da igreja
Palestino
Sou leitor da Veja
Imigrante
Massa manobrada
Sem pátria nordestino Miserável descartável sem lugar pra morrer
Sou sem terra Sou sem teto
Operário explorado
Mandaram ficar quieto
Milionário sequestrado
Morro atropelado
Sou louco, demente
Corpo abandonado
Qualquer um da gente
Morto em toda guerra
É preso encarcerado Fui roubado Eu sou aquele que é
De saída
Aquilo que ninguém quer
Alienado
Ser
Da minha vida Vivo esperando
Sou sem nome
A morte chegando
Passo fome
Na bala perdida
Sou o povo enganado Sofro na prisão
Favelado
Sem educação
Sem transporte
Menor abandonado
Enganado pela sorte Homossexual
Eu sou aquele que
Sem direito igual
Sem história
Vou enfrentando a morte
Sem memória
Eu sou aquele que é
Sou massa de manobra
Eu sou aquele que quer ser
Saio na notícia
31
dossiêkiwi Cena 15 • Parece mas não é
Meditações. Segunda parte. Nove.
d
[Vídeo sobre ilusões, de ótica e outras] [ Cena 16 • Bolha 3 [Na bolha são enumeradas superstições, crendices, simpatias e afins]
a
b
c
d
fazem o número mencionado com os
dedos. Sempre errado] a
b
c
– Mas o que é que eu sou, portanto?
d
Uma coisa que pensa. O que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que
a
+
c
[Alternadamente]
nega, que quer, que não quer, que também imagina, e que sente. Claro que não é pouco se todas estas coisas
[Ligam o letreiro digital]
pertencem à minha natureza. Mas porque elas não
Coelhinho da páscoa. [Músicas]
pertenceriam?
Papai noel. [Músicas] Monstro do lago Ness.
a
Princípios da filosofia. Setenta e um.
Pé grande. fazem o número mencionado com os
Bicho papão.
[
Duende.
dedos. Sempre errado]
a
b
c
d
Gnomo. Elfo.
c
são os preconceitos da nossa infância.
Saci Pererê. 32
Que a primeira e principal causa de nossos erros
Mula sem cabeça. Cuca. [Músicas]
b
Princípios da filosofia. Setenta e dois.
Bruxa má. fazem o número mencionado com os
Dragão.
[
[Juntas] Fada do dente.
dedos. Sempre errado]
a
b
c
d
Vampiro. Lobisomem. [Músicas]
d
— Que a segunda causa é que nós não conseguimos
Lobo mau. [Músicas]
esquecer esses preconceitos.
ET de Varginha.
Isso é tão verdadeiro que, por termos imaginado des-
Caipora.
de nossa infância, por exemplo, que as estrelas são
Negrinho do pastoreio.
muito pequenas, não saberíamos nos desfazer desta
Fantasma.
suposição, mesmo sabendo, pelas explicações da as-
Zumbi.
tronomia, que elas são muito grandes: tão forte é o
Sereia.
poder que exerce sobre nós uma idéia pré-concebida!
Unicórnio. Homem do saco.
c
Princípios da filosofia. Quarta parte. Duzentos.
Chupa-cabra. [ [Desligam o letreiro digital] Cena 17 • Descartes 2 [Música] [
a
b
c
d
em linha representando as
três religiões monoteístas e um intruso]
a
b
c
d
fazem o número mencionado com os
dedos. Sempre errado] a
Que este tratado não contém nenhum princípio
que já não tenha sido comentado em todos os tempos por todo mundo.
De tal maneira que esta filosofia não é nova, mas
b
a mais antiga e a mais conhecida que possa existir.
pecto da desolação geral, só faltava estar vazia. Não estava vazia. Dentro pulava um canário. A cor, a animação e a graça do passarinho davam àquele amonto-
[Música]
ado de destroços uma nota de vida e de mocidade. Era o último passageiro de algum naufrágio, que ali foi parar íntegro e alegre como dantes. Logo que olhei para
Cena 18 • Pienso em ti ou Proteja-me daquilo que eu quero [Música Pienso em ti.
a
b
c
d
mostram palavras
designando objetos de desejo]
ele, começou a saltar de poleiro em poleiro, como se quisesse dizer que no meio daquele cemitério brincava um raio de sol [
c
exemplifica o sol e o cemitério
com objetos dispostos em uma mesa]. Em verdade, ele não pensou em cemitério nem sol, segundo me disse
Cena 19 • Canarinho [
“bolha” se transforma na “gaiola” do canário
a
depois. Eu, envolto com o prazer que me trouxe aquela vista, me senti indignado do destino do pássaro, e murmurei baixinho palavras de queixa.
machadiano] — Quem seria o dono execrável deste bichinho, que No princípio do mês passado, indo por uma rua,
se desfez dele por uns trocados? Ou que mão indife-
um carro em disparada quase me atirou ao chão. Es-
rente o deu de graça a alguma criança, que o vendeu
capei saltando para dentro de uma loja de antiguidades.
para comprar figurinhas?
a
Nem o barulho do veículo, nem a minha entrada fez levantar o dono do negócio, que cochilava ao fundo,
E o canário, parando em cima do poleiro, trilou isto:
sentado numa cadeira de balanço. Era um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a cabeça enfiada em
b
— Quem quer que você seja, certamente não está
um gorro esfarrapado, que provavelmente não achara
no juízo. Não tive dono execrável, nem fui dado a
comprador. Não se adivinhava nele nenhuma história,
nenhum menino que depois me vendeu. São imagi-
como podiam ter alguns dos objetos que vendia, nem
nações de pessoa doente; vai-te curar, amigo.
se sentia nele a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas.
a
— Como — interrompi eu, sem ter tempo de ficar
A loja era escura, atulhada das coisas velhas, tortas,
espantado. Então o teu dono não te vendeu a esta casa?
rotas, enferrujadas, que habitualmente se acham em
Não foi a miséria ou a ociosidade que te trouxe a este
tais casas, tudo naquela meia desordem própria do
cemitério, como um raio de sol? [
negócio. Essa mistura, posto que banal, era interessan-
e o cemitério com objetos dispostos em uma mesa]
te. [
d
exemplifica os objetos citados com o uso de uma
corda] Panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e de pêlo, caixilhos, binóculos, casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelos, luvas, vasos, uma bolsa de veludo, dois cabides, um termômetro, cadeiras, uma litografia, um gamão, duas máscaras de carnaval, tudo isso e o mais que não vi ou não me ficou na memória, enchia a loja nas imediações da porta. Eu ia sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão velha como o resto, para ter o mesmo as-
b
exemplifica o sol
33
dossiêkiwi b
— Mas, caro homem, trilou o canário, o que quer
dizer espaço azul e infinito? a
— Mas, perdão, o que você pensa deste mundo?
Que coisa é o mundo? b
O mundo, respondeu o canário com certo ar de
professor, o mundo é uma loja de antiguidades, com uma pequena gaiola de taquara, quadrada, pendurada num prego; o canário é senhor da gaiola em que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira. a
Nisto acordou o velho, e veio a mim arrastando os
pés. [
d
representa o velho] Perguntou se eu queria
comprar o canário. Indaguei se o adquirira, como o resto dos objetos que vendia, e soube que sim, que o comprara de um barbeiro, acompanhado de uma coleção de navalhas. b
— Não sei o que é sol nem cemitério. Se os canários
d
As navalhas estão em muito bom uso, concluiu ele.
a
— Eu quero só o canário.
que você tem visto usam esses nomes, tanto melhor, 34
porque é bonito, mas estou vendo que você se confunde.
Paguei, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de — Perdão, mas você não veio aqui à toa, sem nin-
madeira e arame, pintada de branco, e ordenei que a
guém, salvo se o teu dono foi sempre aquele homem
pusessem na varanda da minha casa, onde o passarinho
que ali está sentado.
podia ver o jardim, a fonte e um pouco do céu azul.
a
[ b
— Que dono? Esse homem que aí está é meu
c d
exemplifica com objetos dispostos em uma mesa. faz a fonte com ajuda da corda]
criado, me dá água e comida todos os dias, com tal
Era meu intuito fazer um longo estudo do fenô-
regularidade que eu, se devesse pagar os serviços, não
meno, sem dizer nada a ninguém, até poder assombrar
seria pouco; mas os canários não pagam criados. Em
o século com a minha extraordinária descoberta. Co-
verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria
mecei estudando a língua do canário, sua estrutura, as
extravagante que eles pagassem o que está no mundo.
relações com a música, os sentimentos estéticos do bicho, as suas ideias e reminiscências. Conversávamos
a
Pasmado das respostas, não sabia que mais admi-
rar, se a linguagem, se as ideias. A linguagem, que
longas horas, eu escrevendo as notas, ele esperando, saltando, trilando.
parecia de gente, saía do bicho em trilos engraçados.
Não tendo mais família, apenas dois empregados
Olhei em volta de mim, para verificar se estava acor-
[
dado; a rua era a mesma, a loja era a mesma loja escu-
mesmo se chegasse uma visita importante. Sabendo
ra, triste e úmida. O canário, movendo-se de um lado
ambos das minhas ocupações científicas, acharam
para o outro, esperava que eu falasse. Perguntei então
natural a ordem, e não suspeitaram que o canário e
se ele tinha saudades do espaço azul e infinito. [
eu nos entendíamos. Três semanas depois da entrada
c
c
e
d
], ordenava que eles não me interrompessem,
exemplifica o espaço azul e infinito com objetos dispos-
do canário em minha casa, pedi que ele me repetisse
tos em uma mesa]
a sua definição do mundo.
b
— O mundo, respondeu ele, é um jardim bastante
a
— O mundo, meu querido, eu respondi.
b
— Que mundo? Você não perde os maus hábitos
largo com uma fonte no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima [
c
exemplificam]; o canário, dono do mundo, habi-
de professor. O mundo, concluiu ele solenemente, é
ta uma gaiola vasta, branca e circular, de onde olha o
um espaço infinito e azul, com o sol por cima. [C
resto. Tudo mais é ilusão e mentira.
exemplifica com objetos dispostos em uma mesa]
e
a
d
Nos últimos dias, não saía de casa, não quis saber
a
Indignado, respondi que, se eu lhe desse crédito,
de amigos nem parentes. Todo eu era canário. De
o mundo era tudo; até já tinha sido uma loja de anti-
manhã, um dos empregados limpava a gaiola e colo-
guidades.
cava água e comida [
c
]. O passarinho não lhe dizia
nada, como se soubesse que a esse homem faltava preparo científico. Também o serviço era o mais su-
b
— De antiguidades? trilou ele rindo muito. Mas
existem mesmo lojas de antiguidades?
mário do mundo; o criado não era amador de pássaros. Um sábado amanheci doente, a cabeça e a coluna doíam. O médico [
d
Cena 20 • (retorno da cena 3) Trindade 2
] ordenou absoluto repouso; era
excesso de estudo, não devia ler nem pensar. Assim
[Estrelas] [Música em três]
fiquei cinco dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o canário, enquanto era tratado, tinha fugido da gaiola. O meu primeiro gesto foi querer esganar o empregado [
c
]. O culpado defendeu-se, jurou
que tinha tido cuidado, o passarinho é que era astuto.
O mundo é um espaço infinito e azul, com o sol
c
por cima. Esta é a nossa cena número três. É a segunda vez que ela acontece. O número três é importante para nós.
Padeci muito; felizmente, a fadiga tinha passado, e com algumas horas pude sair à varanda e ao jardim.
Mintaka, Alnilam, Alnitak. São as três Marias. São
Nem sombra de canário. Indaguei, corri, anunciei, e
estrelas.
nada. Tinha já recolhido as notas para compor o artigo, ainda que truncado e incompleto, quando resolvi visitar um amigo [
d
[Estrelas]
], que ocupa uma das mais belas
Cena 21 • Dez (sic) frases mecânicas
e grandes chácaras dos arredores. Passeávamos nela antes de jantar, quando ouvi trilar esta pergunta:
[
b
mimetiza no microfone as frases artificiais e
mecânicas, que estão gravados, exceto a última frase] b
— Viva, Seu Macedo, por onde tem andado que
desapareceu?
Proteja-me daquilo que eu quero. (Jenny Holzer) Subdesenvolvimento não se improvisa. (Nelson Rodrigues)
a
Era o canário; estava no galho de uma árvore. Ima-
Quem tá feliz é porque não tá entendendo nada. (KCT)
ginem como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo
A espécie humana é um acidente da matéria. (Hans Jonas)
achou que eu estivesse doido. Falei ao canário com
Não se pode dizer a verdade na televisão. Tem muita
ternura, pedi para que ele viesse continuar a conversa,
gente olhando. (Coluche)
naquele nosso mundo composto de um jardim e de
Tudo o que você sabe está errado. Inclusive isto. (KCT)
uma fonte, varanda e gaiola branca e circular.
Eu compro. Logo existo. (Barbara Krüger) Não se preocupe, nós o protegeremos da realidade. (KCT)
b
— Que jardim? Que fonte?
A verdade é uma ótima camuflagem. Ninguém acredita nela. (Max Frisch)
35
dossiêkiwi Cena 22 • Teatro e história d
Eu tinha dois anos quando cheguei ao Brasil, com
minha mãe romena e meu pai italiano. Muitos me
Cena 23 • O que falar quer dizer [
b
solicita a participação do público, alegando que
a cena é muito atual]
conhecem como Vicente Latorre, é o meu nome artístico. Ele está, por exemplo, no programa desta peça.
b
O que falar quer dizer:
Mas meu nome completo é Vicente Visniec Latorre. Na Romênia, onde eu nasci, em 1963, o teatro era
b
d
c
+ público
controlado pelo “estado totalitário”. Aqui no Brasil,
Luta contra o terrorismo
Estratégia imperialista
isso eu só descobri muitos anos mais tarde, ele é
Conteúdo patrocinado
Publicidade, propaganda
controlado pelas “regras da democracia”. Estas regras
Contabilidade criativa
Roubo, corrupção
incluem: oligopólio da mídia, leis de mercado e a
Resistência seguida de
Assassinato pela polícia
indústria cultural.
morte
militar
Choque de gestão
Supressão de direitos tra-
Muitas vezes eu comparei os grupos de teatro,
balhistas
estes que sobrevivem a duras penas, com os merca-
36
a
dinhos que ainda existem por aí. Cada mercadinho
Redução compulsória
que fecha, é um pouco da história do bairro que se
do consumo de
acaba, um pouco de memória que se perde. Como a
energia elétrica
memória dos avós, que nenhum neto ou neta vai
Administração da
ouvir. Como as resistências de ontem que as novas
disponibilidade de
gerações desconhecem.
recursos hídricos Retracionismo da oferta
[Hino da Proclamação da República]
Corte de luz, apagão
Racionamento de água
Desemprego
de ocupação Descontinuar o negócio
Falir
Cartel
Quadrilha
Medidas de racionalidade
Não correção do salário
da remuneração básica
mínimo
Dispositivo de
Bala de borracha
contenção social
Cena 24 • (retorno da cena 3) Trindade 3 [Música em três] b
Cena 26 • Me engana que eu gosto [
a
faz a mágica da mesa que levita]
Esta é a nossa cena número três. É a terceira e
Cena 27 • Efeito Forer
última vez que ela acontece. O número três é impor[
tante para nós.
a
b
c
d
distribuem ao público folhetos com
uma descrição de personalidade segundo os signos do Manhã, tarde e noite.
zodíaco. Todos os folhetos, porém, contém a mesma
Criança, adulto e idoso.
descrição. Será lido o signo do mês em que acontece a
Pequeno, médio e grande.
apresentação]
Cru, ao ponto e bem passado. Cabeça, tronco e membros.
c
[Microfone]
Huguinho, Zezinho e Luizinho.
Você sente necessidade de que outras pessoas gostem
Lúcia, Francisco e Jacinta.
de você e o admirem, e ainda assim tende a ser críti-
Passado, presente e futuro.
co em relação a si mesmo. Embora tenha algumas
Nascimento, vida e morte.
fraquezas de personalidade, geralmente é capaz de
Ouro, prata e bronze.
compensá-las. Você tem uma considerável capacidade
Queóps, Quéfren e Miquerinos.
não utilizada, que ainda não usou a seu favor. Disci-
Uni, duni, tê.
plinado e com auto-controle por fora, tende a ser
Não vejo, não falo e não escuto.
preocupado e inseguro no íntimo. Às vezes tem sérias dúvidas sobre se tomou a decisão correta ou fez a
[Sem música]
coisa certa. Você prefere uma certa mudança e variedade, e fica insatisfeito quando é cercado por restrições
Pai, filho e espírito santo.
e limitações. Também se orgulha de pensar de forma
[Hino Splendeur de Dieu]
independente, e não aceita afirmações de outros sem provas satisfatórias. Mas descobriu que não é reco-
Cena 25 • Clóvis d
Um dia me perguntaram se eu acreditava em deus.
Eu respondi assim:
mendável ser excessivamente sincero ao se revelar para outras pessoas. Às vezes é extrovertido, afável e sociável, embora às vezes seja introvertido, cauteloso e reservado. Algumas das suas aspirações tendem a não se realizar.
[Sentado] Minha mãe era empregada doméstica. Quando ela
Cena 28 • Deus nunca soltou a minha mão [Sinos]
voltava para casa, no final do dia, ainda precisava lavar roupa para fora e assim completar a renda. Uma vez
a
Ao depor sobre os crimes cometidos pela ditadu-
eu fui visitá-la e ela estava esfregando roupa. E rezan-
ra civil-militar argentina, o General Jorge Rafael Vi-
do. Eu dei um beijo nela e me sentei ao seu lado.
dela, reconheceu sua responsabilidade e afirmou: Deus
Nesse dia eu cheguei a uma conclusão: eu não sei se
nunca soltou a minha mão.
eu acredito em deus, mas, com certeza, eu acredito na minha mãe.
c
“Quem quiser ser cristão deve arrancar os olhos
da razão.” Martinho Lutero. [Música Leteli oblaka]
37
dossiêkiwi criou mais santos que todos os seus antecessores em vários séculos. E ele tinha uma afinidade especial com a Virgem Maria. Seus impulsos politeístas ficaram dramaticamente demonstrados em 1981, quando ele sofreu uma tentativa de assassinato em Roma e atribuiu sua sobrevivência à intervenção de Nossa Senhora de Fátima. [ , o papa.
b
c
leva uma bala em direção à
d
, Fátima, intercepta e desvia ligeiramente
a bala, que, no entanto, atinge o papa] d
Uma mão materna guiou a bala.
a
[Corte seco da música Vater Unser] - Não é o caso
Cena 29 • Bolha 4 [Na bolha são enumeradas superstições, crendices, simpatias e afins]
de se perguntar por que a Virgem não guiou a bala para que se desviasse totalmente dele. É possível questio-
b
+
d
[Alternadamente] [Ligam o letreiro digital]
nar também se os médicos que o operaram, durante quase seis horas, não merecem pelo menos uma par-
Quiromancia. Astrologia. Telecinese. Levitação. Psi-
te do crédito. Talvez as mãos deles também tenham
cografia. Clarividência. Teletransporte. Tarô. Búzios.
sido maternalmente guiadas.
Reiki. Runas. Feng Shui. Numerologia. Premonição. 38
Ocultismo. Telepatia. Regressão. Cartomancia. Pro-
c
O ponto relevante é que não foi Nossa Senhora
fecias. Milagres. Precognição. Viagem astral. Home-
que, na opinião do papa, guiou a bala, mas especifica-
opatia. Ufologia. Leitura de aura. Meditação das rosas.
mente Nossa Senhora de Fátima. Presume-se, então,
Terapia com cristais. Cromoterapia. Iridologia. Florais
que Nossa Senhora de Lourdes, Nossa Senhora de
de Bach. Fotografia Kirlian. Haloterapia. Análise
Guadalupe, Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora
cármica. Baralho cigano. Horóscopo chinês. Oráculo
das Graças, Nossa Senhora de Aparecida, Nossa Se-
africano. Cura prânica. Ocultimo. Feitiçaria. Xama-
nhora do Pilar e Nossa Senhora das Neves estavam
nismo. Satanismo. Quirologia védica. Comando Ash-
ocupadas com outros afazeres naquela hora.
tar. Wicca. Radiestesia. Metamassagem. Parapsicologia. Sinastria. Aromaterapia. Metafísica do orgasmo.
a
Coincidentemente, os tiros disparados contra o
papa foram feitos no dia 13 de maio. [Desligam o letreiro digital]
Cena 30 • Estrelas [Black-out. Céu estrelado. Música]
b
13 de maio?
a
Sim. Nesta data, em 1917, ano da revolução russa,
Nossa Senhora de Fátima teria feito uma aparição para três crianças portuguesas: Lúcia, Francisco e Jacinta
Cena 31 • Fátima
[
c
,
d
e
a
]. Um ano depois do atentado, em 13 de
Maio de 1982 e já totalmente recuperado, João Paulo
[Tiroteio na praça romana. d é atingido. Música Va-
II visitou pela primeira vez o santuário de Nossa
ter Unser]
Senhora de Fátima para agradecer à Virgem. O papa ofereceu uma das balas que o atingiu ao Santuário. Ela
b
Karol Wojtyła, conhecido como papa João Paulo II,
foi colocada mais tarde na coroa da Virgem, onde per-
manece até hoje. [ b
d
coloca a bala na coroa de
b
]
Em 13 de maio nasceram Angela Maria, Waldick
Soriano e Aloisío Mercadante. Também em 13 de maio faleceram Chet Baker, Gary Cooper e Pedro Nava.
entrarem no hospital com suas armas. Eles tiraram os bebês das incubadoras, levaram as incubadoras e deixaram os bebês morrer, jogados no chão frio. [Pausa]
Neste mesmo dia foi assinada a Lei Áurea, fundado o
Eu estava horrorizada. Eu não podia fazer nada, eu
Sport Club do Recife e entrou no ar a TV Bandeiran-
pensava no meu sobrinho que tinha nascido prema-
tes. E estas coincidências…
turo e podia ter morrido nesse dia também. Os iraquianos destruíram tudo no Kuwait. Eles
Karol Wojtyła, além de papa, foi goleiro de futebol,
esvaziaram os supermercados, as farmácias, as fábricas
ator e autor de teatro. Anticomunista convicto, em
de material médico, eles roubaram as casas e tortura-
abril de 2014 ele virou santo.
ram os vizinhos e os amigos.
[Música The seeker]
torturado pelos iraquianos. Ele tem 22 anos, mas pa-
d
Eu vi um dos meus amigos depois que ele foi recia um velho. Os iraquianos mergulharam a cabeça Cena 32 • Guerra, verdade e mídia [Vídeo de Nayirah]
dele num balde, até que ele quase se afogasse. Eles arrancaram as unhas dele. Deram choques elétricos em partes sensíveis do seu corpo. Ele teve muita sorte de ter sobrevivido.
b
[dubla o texto de Nayirah, microfone] - Eu me
chamo Nayirah e eu venho do Kuwait. Minha mãe e
[O vídeo é interrompido]
eu fomos para o Kuwait no dia 2 de agosto para passar umas férias tranquilas. Minha irmã mais velha
Em 1990 houve uma vasta operação de manipulação da
tinha dado à luz no dia 29 de julho e nós queríamos
opinião pública para permitir a entrada dos Estados
ficar alguns dias com ela.
Unidos neste conflito, depois da invasão do Kuwait pelo
Eu desejo que nenhuma das minhas amigas de
Iraque. O núcleo desta operação foi uma audiência no
turma tenham férias como as que eu tive. As vezes
Congresso dos Estados Unidos, presidida por senado-
eu tenho vontade de ser adulta, de crescer rápido. O
res, que deveriam se pronunciar sobre as violações aos
que eu vi acontecer com as crianças do Kuwait, e com
direitos humanos cometidas por Sadam Hussein.
meu país, mudou a minha vida para sempre, mudou
O testemunho de uma adolescente kuwaitiana de
a vida de todos os kuwaitianos, jovens ou velhos,
15 anos, Nayirah, teve um impacto enorme. Nayirah
crianças ou adultos.
conta, entre soluços, como viu os soldados do Iraque
Minha irmã e meu sobrinho de 5 dias atravessaram
entrarem numa sala de bebês prematuros em um hos-
o deserto em busca de segurança. Não tem leite dis-
pital do Kuwait, como arrancaram os bebês de seus
ponível para os bebês no Kuwait. Eles fugiram quando
berços e os jogaram no chão, roubando as incubadoras.
o veículo em que estavam foi bloqueado no deserto, e
A Fundação Kuwait Livre, que contabilizou 312 crianças
a ajuda veio da Arábia Saudita.
assassinadas, tratou de divulgar o discurso na televisão.
Eu fiquei e quis fazer alguma coisa pelo meu país.
O presidente Bush pai se referiu ao depoimento
Na segunda semana depois da invasão iraquiana eu
em várias ocasiões e ele foi levado ao Conselho de
trabalhei como voluntária no hospital Al-Idar com
Segurança da ONU. O discurso de Nayirah teve um
outras 12 mulheres que também queriam ajudar. Eu
papel decisivo para mudar a opinião pública em favor
era a mais nova das voluntárias. As outras mulheres
do ataque norte-americano.
tinham entre 20 e 30 anos. Enquanto eu estava lá, eu vi soldados iraquianos
O mais importante desta história é que Nayirah era filha de Said Nasir al Sabah, embaixador do Kuwait nos
39
dossiêkiwi Estados Unidos, e que a empresa de comunicação Hill
Cena 33 • Escrito nas estrelas
and Knowlton inventou e preparou toda a apresentação,
[Caixa mágica das predições. b faz três perguntas e um
recebendo cerca de 10 milhões de dólares por seu
simulacro de leitura fria com pessoas do público, es-
trabalho de “relações públicas”.
colhidas aleatoriamente]
Diversas investigações sobre os supostos bebês assassinados chegaram à conclusão de que tudo havia
1. Você tem ou teve uma mãe. Ela nasceu em uma
sido montado. Nayirah não era seu nome, mas Nijirah.
cidade… Qual é essa cidade?
Ela não tinha ido ao Kuwait, não tinha trabalhado como
2. Olhe nos meus olhos, eu estou vendo que você
enfermeira e não presenciou nenhum massacre de bebês.
recebe uma forte influência de alguém, uma espécie
A empresa Hill and Knowlton existe até hoje. Ela
de ídolo… Qual o nome dele ou dela?
tem uma filial em São Paulo na rua André Ampère, 34,
3. Você me parece preocupado, sua aura me diz isso.
no Brooklin. Entre seus clientes estão: Brahma, Nestlé,
Você fez alguma compra recentemente, adquiriu uma
Sadia, Schincariol, LG, Nextel, HP, Unilever, Tylenol,
dívida que estourou o seu orçamento… Qual foi o valor?
Ypiranga, Light, Santander, HSBC, Johnson and Johnson e Petrobrás. A Hill and Knowlton faz parte do grupo WPP, maior
[As respostas são anotadas em um flip-chart e coincidem com o que está dentro da caixa das predições]
conglomerado de mídia e comunicação do mundo, que é dono, no Brasil, de várias empresas, incluindo agên-
Cena 34 • Bolha 5
cias de publicidade e o IBOPE. Ela agrega 350 empresas e 180 mil funcionários. Philip Lader foi o presi40
dente do conselho, ele também foi embaixador dos
a
b
c
d
[Alternadamente] [Ligam o letreiro
digital]
Estados Unidos no Reino Unido. Um dos diretores da WPP é o brasileiro Roger Agnelli, ex-administrador do Bradesco, ex-presiden-
Civita. Marinho. Frias. Saad. Mesquita. Abravanel. Sirotsky. Jereissati.
te da Vale, ex-conselheiro da CPFL e da CSN e dono da AGN Participações, que tem parceria com o BTG
Veja. Folha. O Globo. A Globo. CBN. Globonews. Fu-
Pactual, empresa financeira que doou 17 milhões de
tura. Multishow. Abril. Isto É. Exame. Estadão. Época.
reais na campanha de 2014. 80% deste valor foram
Valor. SBT. Record. Gazeta. RBS. Band. Bandnews. Rede
para o PT e para o PMDB. Roger Agnelli era o nome
TV. Aparecida. CNT. Canção Nova. Rede Nazaré. Zero
preferido do PSDB para presidir a Petrobrás.
Hora. Rede Vida. A Notícia. Correio do Povo. Extra. Lance. Metro. Correio Brasiliense. Estado de Minas. UOL. TVA. Terra. Sky. GVT. Claro. Tim. Oi. Vivo.
Cena 35 • Tochas da liberdade [Música Freedom ‘90.
a
b
c
e
m2
acendem
cigarros e fumam] d
[Microfone] - Considerado pela revista Life Maga-
zine como uma das 100 pessoas mais influentes do século 20 e sobrinho de Freud, Edward Bernays (1891/1995, ele viveu 104 anos!) é considerado o pai da ciência chamada Relações Públicas. Ele defendia ideias
polêmicas como a noção de que a manipulação consciente e inteligente das massas era fundamental para a democracia. Também foi o criador da propaganda moderna, que vende valores ao invés de funcionalidade. A grande inovação de Bernays foi a introdução do apelo ao inconsciente em suas campanhas. Conhecedor das teorias de seu tio, que afirmavam que o homem é controlado por impulsos irracionais, Bernays desenvolveu técnicas de persuasão a partir desses impulsos. O consultor de relações públicas era a inter-
E a religião é de fato a autoconsciência e o sentimen-
face entre os desejos de seus clientes e o grande
to de si do homem, que ou não se encontrou ainda
conjunto de instintos irracionais das massas.
ou voltou a se perder. Mas o homem não é um ser
Sempre esteve muito ligado ao governo dos EUA.
abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o
Em 1917 foi contratado pelo então presidente Woodrow
mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este Esta-
Wilson para criar uma campanha com a intenção de
do e esta sociedade produzem a religião, uma cons-
influenciar os norte-americanos a apoiarem a entra-
ciência invertida do mundo, porque eles são um
da de seu país na primeira guerra mundial. Em seis
mundo invertido.
meses um imenso repúdio ao povo alemão estava
A religião é a realização mágica da essência hu-
instalado na América. Bernays foi consultor da presi-
mana, porque a essência humana não possui verda-
dência dos EUA entre 1923 e 1961.
deira realidade. Portanto, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo cujo aro-
[
a
b
c
e
m2
continuam fumando. Jazz dos anos
1920 + coreografia]
ma espiritual é a religião.A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real.
Seu feito mais famoso, e mais polêmico, aconteceu na década de 1920. A indústria do cigarro queria derrubar
[Música Internacional]
o tabu que não permitia que as mulheres fumassem em público. Bernays, baseado em Freud, percebeu que
A expressão da miséria real e o protesto contra a
o cigarro era um símbolo fálico, e que ideias de poder,
miséria real.
independência e liberdade vinham associados a ele. O
A religião é o suspiro da criatura oprimida, o âni-
consultor percebeu que poderia fazer com que o cigar-
mo de um mundo sem coração e a alma de situações
ro fosse adotado pelas mulheres como um desafio ao
sem alma. A religião é o ópio do povo.
poder masculino. Durante uma passeata em comemo-
A verdadeira felicidade do povo implica que a re-
ração à páscoa, em Nova Iorque, modelos foram con-
ligião seja suprimida, enquanto felicidade ilusória do
tratadas para fumar e fotógrafos para registrar o even-
povo. A exigência de abandonar as ilusões sobre sua
to. A expressão “tocha da liberdade” foi usada para
condição é a exigência de abandonar uma condição
designar o objeto mágico de libertação feminina.
que necessita de ilusões.
[Música Freedom ‘90. Coreografia.
a
b
c
e
m2
apagam os cigarros]
Cena 36 • Ópio a
O homem faz a religião, a religião não faz o homem.
[Músicas Internacional + Spiegel im spiegel] Portanto, a crítica da religião é o germe da critica do vale de lágrimas que a religião envolve numa auréola de santidade.
41
dossiêkiwi Cena 37 • À moda de Machado d
Não se esqueçam: a liberdade de um povo se mede
pela sua capacidade de rir. b
E não se esqueçam também, como diria Machado
de Assis: é melhor cair em si, do que do terceiro andar
Cena 99 • Pega na mentira a
b
c
+
m1
e
m2
Uri Geller entortando a colher A sociedade é justa com a mulher Um UFO aterrissando Oh que sensação fez um círculo na plantação A democracia é de verdade todo mundo vive na igualdade
42
2x
Pega na mentira
estuda entende ela
faz a crítica e revela
No Brasil não tem racismo
Não existiu o mamute
que legal
e a evolução
E o capitalismo é
A mídia mundial
natural
é imparcial
Em toda a ditadura
Não tem manipulação
não teve tortura
A polícia não é militar
Acredite se quiser
E não tem licença pra matar
O holocausto não aconteceu A Palestina é toda de Israel
[Agradecimentos + música Bandiera rossa]
2x
Pega na mentira
Bandiera rossa
estuda entende ela
Avanti o popolo, alla riscossa Bandiera rossa, bandiera
faz a crítica e revela
rossa Avanti o popolo, alla riscossa Bandiera rossa trionferà. Bandiera rossa la trionferà Bandiera rossa
Fé não se discute
la trionferà Bandiera rossa la trionferà Evviva il
com razão
socialismo e la libertà!
Caderno de fotos
foto bob sousa
Fotos da temporada MANUAL DE AUTODEFESA INTELECTUAL, 2015
foto camila martins
foto bob sousa
foto bob sousa
foto fernando kinas
fotos bob sousa
fotos fernando kinas
foto camila martins
foto filipe vianna
foto felipe stucchi
foto bob sousa
foto bob sousa
foto bob sousa
fotos camila martins
foto bob sousa
foto felipe stucchi
foto fernando kinas
foto camila martins
foto camila martins
polĂticacultural
Manual de autodefesa intelectual, 2015
» por Adailtom Alves Teixeira
Arte e cultura
Professor de Teatro na Universidade Federal de Rondônia. É graduado em História e mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp. É articulador da Rede Brasileira de Teatro de Rua.
no rol das mudanças econômicas
A virada do milênio foi uma virada de hambúrgueres para software. Software é uma ideia, hambúrguer é uma vaca. Ainda haverá fabricantes de hambúrgueres no século XXI, é claro. O poder, o prestígio e dinheiro, entretanto, fluirão para as empresas que detêm o indispensável capital intelectual. (P. Coy, Business Week, agosto de 2000.)
59
O capitalismo vive em crise e, como ainda não
a batuta de Tony Blair, continuador da política de
conseguimos acabar com ele, vive se reinventando.
Margaret Thatcher. E se os mercados ditam as regras,
Quanto à cultura, ela vem sendo ponta de lança de
claro que o Brasil não poderia ficar de fora. A Secre-
práticas que apenas favorecem esse modo de produção.
taria de Economia Criativa foi implantada em janeiro
Chin-Tao Wu, em Privatizações da cultura, analisou
de 2011, logo no início do primeiro governo Dilma,
como a política neoliberal chegou ao campo das artes.
deixando claro como a cultura deveria ser tratada:
Hoje, ideias são mais rentáveis do que os produtos
como negócio. A Secretaria é voltada para pensar e
materiais. Uma peça de máquina, um automóvel, é
auxiliar na construção de produtos e serviços de di-
preciso produzi-los para que sejam vendidos; já uma
mensões simbólicas. A indústria da moda, que sem-
ideia, ao ser criada, pode ser vendida indefinidamen-
pre vampirizou as criações artísticas, seria um desses
te, gerando muito lucro para os detentores dos seus
campos? Foi o que se perguntaram muitos brasileiros
direitos. E não são sempre as grandes empresas as
à época da ministra Marta Suplicy.
maiores detentoras destes direitos?
Em dezembro de 2011 a ex-Secretária de Economia
É nesse campo que se coloca a economia criativa.
Criativa, Claudia Leitão, em artigo publicado no Jornal
E as últimas ações de ministros e ministras da Cul-
Brasil Econômico, afirmou ser difícil conceituar a eco-
tura para expandir esse “universo cultural” são um
nomia criativa, no entanto, não deixava dúvidas ao
pequeno retrato do que devem esperar todos e todas
dizer: “mas nós sabemos onde ela está”. E frisava a
que lidam com arte e cultura em nosso país.
necessidade de linhas de crédito para fomentar os
A ideia de uma economia criativa, até onde se
empreendimentos criativos, pois a criatividade precisa
apurou, começou na Austrália, com a perspectiva de
virar inovação, para que esta se torne riqueza - embora
nação criativa, depois migrou para o Reino Unido, sob
o artigo não deixasse claro para quem iria a riqueza
políticacultural gerada por tais empreendimentos. Leitão já não está
60
Da participação
mais na Secretaria, mas as ações do Ministério pare-
A novidade por parte do Ministério da Cultura e do
cem deixar claro quais devem ser os rumos do que
requentado ministro Juca Ferreira é a “nova” Política
consideram como economia criativa e quais os me-
Nacional de Artes e a Caravana das Artes, grosso modo
canismos para isso. Para se ter uma ideia, a tônica da
uma busca desesperada de aliança e apoios políticos, já
política cultural brasileira ainda são as leis de renún-
que não há recursos sequer para pagar os míseros edi-
cia fiscal, sendo a Lei Rouanet o modelo único. O
tais da Funarte. Em português claro: pura enrolação.
governo petista, de Lula a Dilma, não fez nenhum
Quando não há recursos, “vamos dialogar”, e assim
enfrentamento a este mecanismo. Ao contrário, mais
mostrar trabalho. E isso mesmo depois das conferências,
que quintuplicou os valores no período de suas gestões,
dos encontros setoriais, da construção das metas e da
e a renúncia fiscal já passa de 1,2 bilhão.
grita pela criação de uma política de Estado, diferente
Os dados desta política absurda são contundentes.
da que vem sendo praticada. Os gestores pedem mais
Eliane Parmezani, já em 2012, na edição de outubro
participação da sociedade civil. Para lembrar, no campo
da Revista Caros Amigos, afirmou que “por meio de
do teatro, do agora é Lula até a pátria educadora de
renúncia fiscal, foram disponibilizados 12 bilhões de
Dilma, nenhuma lei foi criada e a Funarte está falida.
reais nesses 20 anos de lei Rouanet. Contudo, 50%
No entanto, as demandas são as mesmas há, pelo me-
dos recursos estão concentrados em cerca de 100
nos, uns quinze anos, e o ministério repete o já visto.
captadores. A outra metade fica com 20% deles. E os
Nisso o atual ministro é bom. “Vamos dialogar, pois a
outros 80% dos proponentes não captam nada. Mais:
falta de diálogo pode levar ao fascismo”, como disse na
apenas 5% dos projetos aprovados na lei Rouanet são
cidade de Santos no início de junho de 2015.
realizados”. Os dados do próprio Ministério da Cul-
Ermínia Maricato (O impasse da política urbana no
tura não deixam dúvidas da perversidade desse me-
Brasil, 2012), que fez parte do governo ainda na gestão
canismo: a região Norte inteira capta menos de 1%.
de Lula, faz um alerta importante: “Nunca fomos tão
Além disso, de cada dez reais de todos os recursos,
participativos”. A autora deixa claro que a luta por
nove é dinheiro do Estado. Portanto, existe aí um
marcos jurídicos manteve a sociedade desigual e os
feudo cultural financiado com dinheiro público. Mas
movimentos sociais pararam de “tratar do presente
não vemos nenhum enfrentamento por parte do go-
ou do futuro do capitalismo”. O Estado mudou e a
verno federal em relação a esta política.
elite continua cooptando e anulando os conflitos
Se não for revisto urgentemente o modelo de
sociais. E claro, é justamente a participação que cum-
política cultural, não serão apenas desfiles de moda
pre a função fundamental nesse panorama: a ilusão
os beneficiados, mas uma série infinita de “criativos”,
de que se está avançando. Não é o que temos visto?
enquanto pequenos produtores das artes padecem
Quantos de nossos colegas ainda acreditam que a
pelo Brasil. Se a ideia da economia criativa for no
participação vai criar uma política justa? E assim fi-
sentido de distribuir renda, como reza o discurso
camos sem discutir a justiça no contexto do capita-
oficial, eu não tenho dúvida que um pequeno festival
lismo, sem fazer o real enfrentamento das verdadeiras
de teatro realizado no norte do país, ou em qualquer
questões. É preciso entender o momento atual. Afinal,
outra região, distribui renda e agrega muito mais
os recursos continuam indo para as mãos dos mesmos,
valor do que qualquer desfile de moda realizado fora
cada vez mais, através da dívida pública e no campo
do Brasil. Quanto à renúncia fiscal já está claro que
cultural, via renúncia fiscal.
apenas meia dúzia são os beneficiados, resta saber se
No que diz respeito aos movimentos culturais, a
haverá alguma mudança de rumo por parte do gover-
Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR), coletivo te-
no federal. Como este só tem feito concessões às
atral de abrangência nacional, no último encontro,
elites, as esperanças são miúdas.
realizado em maio de 2015 na cidade de Sorocaba, re-
solveu dar um basta ao tal diálogo. Ela afirma em seu manifesto: “Sentimos que o sim ao diálogo deixou de ser possibilidade de transformação para tornar-se um estado de legitimação de uma falsa democracia, de uma falsa participação, de um falso programa de cultura que nunca houve.” E afirma ainda que as demandas estão documentadas há muito tempo, “resta por em prática”. Entre as exigências está o fim da renúncia fiscal – aliás já faz tempo que a RBTR luta pelo fim da Rouanet – e a criação da lei do Prêmio Teatro Brasileiro. Dentro do seguimento teatral não tenho dúvidas que a RBTR tem um pensamento avançado em relação
Quando arte, cultura e a própria vida se tornam mercadorias é necessário ir à raiz do problema
às políticas públicas e ao modelo de Estado. No entanto, este coletivo tem limites. A começar pela própria linguagem artística que representa, isto é, não pode falar em nome da “instituição” teatro (e nem pretende).
realidade. E se só é possível fazer o enfrentamento
E mesmo entre o teatro de grupo, possivelmente o
quando sabemos onde se pisa e contra quem se luta,
segmento mais politizado, há limites de entendimen-
é necessário a retirada de tal véu. Aí, nesse campo é
to sobre o que deve ser uma política cultural de Esta-
preciso ir ao antípoda de Weber. Ainda que tenham
do para o teatro. Por isso mesmo, a RBTR promete se
origem e língua em comum, as perspectivas teóricas
juntar a outros movimentos sociais para fazer o en-
são outras, é preciso ir a Marx.
frentamento da situação em que vivemos. Quem se
Quando arte, cultura e a própria vida se tornam
sentir incomodado com tanto cafezinho e tanta con-
mercadorias é necessário ir à raiz do problema. Afinal,
versa pode se somar ao coletivo, que se reúne duas
Estado moderno e capitalismo se confundem. Logo,
vezes ao ano. Sempre de forma independente.
não adianta organização apenas para gritar por verbas
Para terminar, e penso que como demonstração
oriundas deste mesmo Estado. É preciso compreen-
de nosso tempo histórico, apresento os pressupostos
dê-lo e enfrentá-lo em sua real dimensão. Como
de dominação de Max Weber, sociólogo querido da
afirma Alysson Leandro Mascaro em Estado e forma
direita mundial. Segundo ele, em Os três tipos puros
política (2013): “A compreensão do Estado só pode se
de dominação legítima (2006), são: a dominação legal
fundar na crítica da economia política capitalista,
(dominação burocrática), “qualquer direito pode ser
lastreada necessariamente na totalidade social. Não
criado e modificado mediante um estatuto sanciona-
na ideologia do bem comum ou da ordem nem do
do corretamente quanto à forma”. Logo o que se
louvor ao dado, mas no seio das explorações, das
obedece é à regra estatuída; dominação tradicional (o
dominações e das crises da reprodução do capital é
patriarcado é o tipo mais puro); dominação carismá-
que se vislumbra a verdade política”.
tica, em que “a associação dominante é de caráter
A tragédia maior é que, em plena crise estrutural
comunitário, na comunidade ou no séquito”. Parece-
do capitalismo, os atores sociais, os sujeitos históricos
nos que no Estado brasileiro, e não apenas no campo
que deveriam realizar a mudança, os trabalhadores,
da cultura, o primeiro elemento e o terceiro se junta-
estão fragmentados, desorganizados. Quanto aos ar-
ram, transformando-se em prática dos gestores pú-
tistas, em sua grande maioria, limitam-se em alimen-
blicos. No entanto, se em 2002 o traçado econômico
tar a espetacularização ou a lutar bravamente para não
do governo federal já desenhava seu caminho, o ca-
morrer de fome. E aí perguntamos: um artista preso à
risma tem se colocado como um véu que encobre a
sua fome faz uma arte independente?
61
políticacultural » por Fernando Kinas Diretor e pesquisador teatral, doutor em teatro pela Sorbonne Nouvelle e Universidade de São Paulo (USP).
O tormento necessário A Lei de Fomento no olho do furacão
62
A Lei de Fomento ao Teatro para a cidade de São
manho e da interferência dos Estados nacionais na
Paulo, que começou a funcionar em 2002, instituiu o
vida social e no consequente reforço da ideologia da
principal programa público municipal de apoio ao
competição, da livre iniciativa, do lucro e do sucesso.
teatro que se tem notícia no Brasil. Ela é um marco
Relacionados a estes aspectos gerais estavam o ataque
para as políticas públicas de cultura e tem servido
ao sindicalismo de esquerda e aos movimentos so-
como referência para movimentos artísticos, gesto-
ciais, o impulso às terceirizações e privatizações, os
res e agentes políticos da área cultural.
cortes de despesas públicas em áreas como saúde,
As vinte e seis edições do Programa de Fomento,
educação, transporte, habitação e cultura, uma política
até agora, enriqueceram o panorama teatral da cidade
ativa de gerenciamento da mídia, a redução de impos-
de São Paulo, tanto pelo amadurecimento estético e
tos para os setores mais ricos da população e, no caso
político do trabalho realizado pelos núcleos artísticos,
dos países capitalistas centrais, uma política de alian-
quanto pelo surgimento de novos coletivos, espaços e
ças e de intervenção, inclusive militar, para impor este
práticas teatrais. O aumento da criação e a qualifica-
novo consenso. O resultado, não é difícil imaginar, foi
ção das pesquisas estão associados à ampliação do
desastroso para as camadas populares. Basta lembrar
público e à formação de uma geração capaz de refletir
que o número de pessoas vivendo abaixo da linha de
sobre sua situação e sobre a sociedade de maneira
pobreza no Reino Unido entre 1979 e 1990 (os anos
mais complexa e crítica. O Programa mostrou, assim,
Thatcher) passou de 8% para 22%, segundo o insus-
a viabilidade e a necessidade de um modelo de políti-
peito jornal conservador The economist.1
ca cultural independente das injunções do mercado.
São múltiplas as causas desta onda conservadora e não se trata aqui de investigá-las; pode-se afirmar,
Contexto
rapidamente, que entre seus determinantes estão os
A década de 1980 é o momento forte de uma nova
erros das esquerdas tradicionais e questões estrutu-
vaga liberal, conhecida como neoliberalismo. Ela con-
rais da economia capitalista, como a crise relacionada
sistia, em linhas gerais, em um esforço agressivo de
ao choque do petróleo de 1973.
desregulamentação – dos mercados financeiros à le-
A dupla Thatcher-Reagan foi a face mais visível
gislação trabalhista –, portanto, na diminuição do ta-
deste fenômeno, que expressava um movimento am-
1 Cf.
Philippe Chassaigne, “Madame Thatcher”, disponível em http://www.asmp.fr/travaux/communications/2003/chassaigne.htm, acesso em 10 março 2010.
plo de crescimento e afirmação das corporações transnacionais e das ideologias que as acompanhavam. A livre circulação de capitais era um dos seus dogmas e o fenômeno ficou conhecido, além de neoliberalismo, como globalização capitalista. Em resposta a este estado de coisas surgiram reações importantes, mostrando de forma contundente que havia resistência e alternativas: a revolução zapatista de 1994 (anunciada no mesmo dia em que entrava em vigor o acordo de livre comércio entre Estados
Ao invés de investirem seu dinheiro na cultura, empresários “investem” o dinheiro público com benefícios privados
Unidos e México); as enormes mobilizações contra a Organização Mundial do Comércio na cidade de Seattle, em 1999; a manifestação de Gênova durante a cúpula do G8, em 2001 e a criação do Fórum Social Mundial, também em 2001.
Em termos muito simples, todas estas leis per-
Para além do par Ronald e Margaret, outros nomes
mitem que a atividade cultural (criação e circulação
se destacaram na foto de família do conservadorismo
de obras, serviços, ações na área de patrimônio, me-
fin-de-siècle. Nesta imagem do neoliberalismo, agora
mória, divulgação etc.) seja mantida com dinheiro
já um pouco amarelada, a América Latina fez o conhe-
público, mas seguindo critérios e interesses priva-
cido papel de “vanguarda do atraso”: Pinochet (Chile),
dos. No caso da lei Rouanet, empresários podem
Fujimori (Peru), Menen (Argentina), Salinas e Zedillo
destinar para atividades culturais uma parcela do
(México), Andrés Pérez (Venezuela), Collor e, quem di-
imposto de renda a ser pago ao Estado (até o limite
ria, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso (Brasil).
de 4%). Isto é, o governo federal renuncia ao recebimento de parte do imposto devido e o setor privado
Lei Rouanet e assemelhadas
transfere este dinheiro, de acordo com seus interes-
É neste contexto que surgem, no Brasil, leis e pro-
ses corporativos, para atividades culturais. O Estado
gramas na área das artes e da cultura com caracterís-
se limita a fazer uma seleção técnica dos projetos,
ticas muito particulares. A rigor elas podem ser con-
considerando-os aptos ou não a receber o chamado
sideradas políticas públicas, embora os governos, nos
incentivo privado. Esta situação somente é compre-
três níveis de administração, tenham feito esforços
ensível no ambiente neoliberal, já que a quase totali-
consideráveis, políticos, jurídicos e de convencimen-
dade dos recursos utilizados não é privada (apenas
to da opinião pública, para transferir competências e
um real em cada dez!), pois corresponde aos valores
recursos da esfera estatal para a privada.
dos impostos que deveriam ser arrecadados pelo go-
Em 1991 é promulgada a Lei Rouanet, batizada com o nome do Ministro da Cultura do curto, e de
verno. Foi assim que o investimento privado direto em cultura praticamente sumiu do mapa.
triste memória, governo Collor. Ela é o passo seguinte
Não se trata, portanto, de mecanismo de incenti-
de uma lei anterior, aprovada em 1986, durante o lon-
vo fiscal baseado em abatimento de imposto referen-
go, e de triste memória, governo Sarney. Na sequência
te a gastos com cultura, mas do não pagamento de
de ambas é criada a Lei do Audiovisual, em 1993, que
impostos no valor equivalente àquele aplicado nas
aprofunda o mecanismo aberrante de renúncia fiscal.
atividades culturais. A diferença é enorme. Ao con-
Novamente estamos na vanguarda do atraso. Nos
trário de serem estimulados a investir dinheiro pró-
anos seguintes, da noite para o dia, feito champignon,
prio na cultura, os empresários ganham o direito de
surgem leis semelhantes em estados e municípios.
investir dinheiro público, com benefícios privados.
63
políticacultural A renúncia fiscal não é mais a galinha dos ovos de
construção e manutenção de centros culturais por
ouro, mas um galinheiro inteiro. As empresas apare-
instituições bancárias e financeiras, coqueteis a por-
cem como doadoras de dinheiro – que, na verdade,
tas fechadas, eventos ou temporadas com ingressos
não lhes pertence –, e acabam definindo uma parte
caros, entre outros abusos, são exemplos recorrentes
considerável da atividade cultural do país. Este me-
no funcionamento das leis baseadas em renúncia fis-
canismo de estímulo à criação, mas também, e so-
cal. Soma-se a esta lista, a utilização do mecanismo
bretudo, de transferência de recursos e competên-
de renúncia por empresas estatais e de economia
cias, transformando mecenato em pura privatização,
mista (uma aberração em cascata) e o fato de que
foi um achado genial das elites locais, uma adaptação
80% de todos os recursos aplicados pela Lei Rouanet
aos nossos trópicos do espírito liberal-conservador
se concentrarem na região sudeste do país. Tal con-
dos anos 1980 e 1990.
centração é injustificável, ainda mais quando se veri-
A Lei do Audiovisual, ainda mais acintosa, permite que os empresários não apenas divulguem suas mar-
64
fica que 3% dos proponentes ficaram com mais de 50% dos recursos totais movimentados.
cas, produtos ou serviços, mas obtenham lucros utili-
Como as chamadas indústrias criativas têm au-
zando o dinheiro público. Vozes conservadoras costu-
mentado sua participação no conjunto das atividades
mam brandir o argumento do dirigismo cultural para
capitalistas, os setores que se beneficiam desta situ-
justificar a manutenção destas distorções. A imple-
ação são hostis à mudança do modelo hegemônico de
mentação concreta de políticas culturais, especial-
produção e gestão da cultura. Na primeira fila da rea-
mente quando ignorados critérios de transparência,
ção estão as próprias empresas “investidoras”; na se-
participação e controle popular, implica, de fato, em
quência estão produtores, artistas de expressão na-
risco de dirigismo. Os críticos do modelo público, no
cional (geralmente conhecidos por seus trabalhos na
entanto, esquecem de dizer que este eventual dirigis-
televisão), empresas cuja ambição artística é medida
mo pode ser combatido politicamente, uma vez que o
unicamente em cifrões, além de toda sorte de inter-
conflito se dá na esfera pública. Por outro lado, deci-
mediários, como os captadores de recursos, que rece-
sões tomadas pelos departamentos de marketing das
bem valores que variam entre 10% e 40% do total
empresas, ou no âmbito restrito das suas diretorias,
dos projetos (em função das dificuldades de capta-
raramente são objeto de questionamento público, já
ção). Em tempos neoliberais, o conjunto das ativida-
que relevam da esfera privada. A abdicação dos pode-
des artísticas e culturais se transformou em campo
res e deveres do Estado em favor do setor privado é o
de batalha para a obtenção de lucro rápido, fácil e en-
passo mais curto para a criação e a manutenção de dis-
volto por certo glamour, o que não impede o flerte
torções e desigualdades. A atual discussão em torno
com o novo-riquismo e o kitsch.
de cotas nas universidades para afrodescendentes, in-
As leis baseadas em renúncia fiscal, convém re-
dígenas, alunos da escola pública etc., é um exemplo
forçar, correspondem a um contexto político e ideo-
da necessidade de ações afirmativas que só podem ser
lógico bem definido. Há uma certa simetria entre a
assumidas pelo setor público, neste caso, estatal.
defesa de determinado modelo de organização social
Não é ocioso lembrar que outros problemas fo-
e política, e mesmo de um certo paradigma civiliza-
ram se acumulando nesse processo de transferência
cional, e a defesa de mecanismos específicos de ges-
de renda do Estado para a iniciativa privada (em 2012
tão e subvenção da arte e da cultura.
calculava-se que mais de 10 bilhões de reais haviam sido utilizados através da Lei Rouanet desde sua im-
A Lei de Fomento ao Teatro
plementação, destes, menos de 1 bilhão correspondia
Em um momento favorável, dado pelo acúmulo
efetivamente a investimento privado). Festas de fim
político e organizativo de grupos e artistas de teatro
de ano, livros luxuosos distribuídos a clientes vip’s,
e pela vitória eleitoral na cidade de São Paulo do pro-
foto fernanda azevedo
65
Manifestação por políticas públicas de cultura em resposta ao Seminário #Procultura, evento privado que contou com a participação do MinC. São Paulo, 2012
jeto político petista, quando o partido ainda não ha-
a apresentação de projetos cujos planos de trabalho
via abdicado completamente da perspectiva de trans-
podem ter a duração mínima de seis meses e a máxi-
formação social, embora fosse cada vez menos crítico
ma de dois anos, sem qualquer imposição de formato
ao modelo liberal, foi aprovada em dezembro de 2001,
ou formulários específicos de inscrição. Este cuidado
e promulgada em janeiro de 2002, a Lei de Fomento
tem fundamento político, ele dificulta a padronização
ao Teatro para a cidade de São Paulo. Sua implemen-
e o cerceamento da atividade criativa, opondo-se as-
tação efetiva, não sem dificuldades, começou no se-
sim à reprodução da lógica industrial (quantificação,
gundo semestre deste mesmo ano.
serialização, padronização, obsolescência programa-
O primeiro artigo define assim os objetivos da
da, simplificação, externalização de danos etc.) e
Lei: “Apoiar a manutenção e criação de projetos de
também ao gerenciamento burocrático e empresarial
trabalho continuado de pesquisa e produção teatral
da arte e da cultura (que favorece o produto em detri-
visando o desenvolvimento do teatro e o melhor
mento do processo). O mesmo se aplica à prestação
A lei que instituiu
de contas, que prevê relatórios detalhados de ativida-
o Programa de Fomento ao Teatro determina a desti-
des (incluindo documentos comprobatórios), mas
nação de no mínimo seis milhões de reais para até
recusa certa rigidez contábil, pouco adequada à ativi-
trinta núcleos artísticos em duas edições anuais (ja-
dade artística, sobretudo àquela de longo prazo. Como
neiro e junho). Os núcleos são selecionados mediante
prever as necessidades e os custos integrais de cenários,
acesso da população ao
mesmo.”2
“Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo”, disponível em http://cm-sao-paulo.jusbrasil.com.br/legislacao/813953/ lei-13279-02, acesso em 15 junho 2015.
2
políticacultural figurinos, iluminação etc., antes mesmo do início dos
de núcleos estáveis. O Programa de Fomento ao Tea-
ensaios? Como trabalhar com comunidades periféricas,
tro, portanto, não pode garantir, sozinho, a indepen-
artistas populares e artesãos seguindo as regras da ma-
dência dos grupos em relação às limitações impostas
ximização dos lucros e do management capitalista?
pelo mercado, embora caminhe neste sentido. Ele
Preocupados com a continuidade do trabalho desenvolvido pelos grupos, os artistas de teatro, prin-
66
também não pode, evidentemente, responder às inúmeras carências do conjunto do setor teatral.
cipais responsáveis pela elaboração da Lei, não esta-
Também a Lei Rouanet, no âmbito federal, é uma
beleceram restrições à reinscrição dos núcleos
política de Estado. É preciso, então, compreender o
artísticos nas edições do Programa, sejam eles con-
que as distingue. Diferente das leis baseadas em re-
templados ou não pelos recursos. O valor total má-
núncia fiscal, a Lei de Fomento define explicitamen-
ximo para cada projeto foi definido em 400 mil reais.
te o valor dos recursos a serem aplicados, que está
Este valor, assim como o total dos recursos anuais do
determinado no corpo da lei e deve constar do orça-
Programa, são corrigidos pelo IPCA, medido pelo
mento geral do município, aprovado anualmente
IBGE. A título de exemplo, a 27ª edição (junho de
pela Câmara Municipal. A segunda diferença se refe-
2015), dispunha de R$ R$ 6.364.064,76. O limite
re ao método de seleção dos projetos, no caso da Lei
máximo por projeto, nesta mesma edição, foi fixado
de Fomento ele envolve, para além do âmbito estatal,
em pouco mais de R$ 890.000,00.
parte da sociedade civil organizada, através da com-
A comissão responsável pela seleção é formada
posição paritária da comissão de avaliação (embora a
por quatro membros indicados pela Secretaria Muni-
presidência das comissões e o voto de minerva,
cipal de Cultura, incluindo o presidente do júri, que
como afirmado mais acima, caibam ao poder públi-
tem apenas o voto de qualidade (votando apenas em
co). Uma terceira diferença consiste no estímulo a
caso de empate), e três membros escolhidos, em vo-
projetos continuados de pesquisa e criação teatrais
tação secreta, pelos núcleos artísticos inscritos em
desenvolvidos por núcleos artísticos com atividade
cada edição. Estes membros são escolhidos a partir
constante. A lógica não é mais a de privilegiar even-
das indicações feitas por entidades representativas
tos ou obras, mas processos de investigação e ações
da categoria teatral (como a Cooperativa Paulista de
continuadas. Esta inversão da lógica comercial, habi-
Teatro e a Associação Paulista de Críticos de Arte).
tualmente baseada nos “produtos”, é uma autêntica
Compreendido, em grandes linhas, o mecanismo da
revolução copernicana em relação ao modelo hege-
Lei de Fomento, é preciso destacar as diferenças deste
mônico, em que a “peça teatral”, e mais especifica-
programa público de cultura em relação às leis baseadas
mente a “temporada” reinam absolutas. A Lei esti-
em renúncia fiscal, cujo paradigma é a lei Rouanet.
mula novas relações de produção, favorecendo outra qualidade de contato social e o amadurecimento das
Uma Lei estruturante A primeira observação diz respeito à própria
práticas artísticas e do conjunto dos envolvidos (artistas, técnicos, público e comunidade).
existência da Lei de Fomento. No lugar dos incons-
Destas diferenças se deduz uma outra: este novo
tantes editais governamentais, sujeitos aos humores
modelo de ação cultural, que a Lei de Fomento repre-
dos políticos e gestores públicos, o Programa de Fo-
senta, sugere compromisso com a democratização
mento, criado pela Lei, configura-se como uma polí-
do processo interno de produção artística (relações
tica de Estado - no âmbito municipal - continuada e
horizontais, tomadas de decisão coletivas, processo
regular. Daí sua vocação estruturante – e não apenas
colaborativo etc.) e com o acesso à cultura e à arte,
conjuntural – para a atividade teatral. No entanto,
tanto pelo aprofundamento da pesquisa estética e de
este Programa não contempla todas as áreas da ação
conteúdos (democratizar significa também não re-
teatral, concentrando-se sobre o trabalho continuado
petir os standards codificados pelo mercado), quanto
pela política de ingressos com preços baixos ou gra-
que vivemos, desempenhando a função social de
tuitos, ou ainda, em determinados casos, pelo envol-
prover o imaginário de bens simbólicos que favore-
vimento direto das comunidades na elaboração e
çam a construção da cidadania.”6 É evidente a con-
execução dos projetos e, assim, pela alteração do
tradição entre esta afirmação e a política adotada por
modo de produção e das relações de trabalho na ati-
diferentes administrações municipais, especialmen-
vidade teatral. O Programa não garante estes proce-
te entre 2005 e 2012, que se orientavam pela ótica
dimentos, mas é indutor deles.
privatizante e excludente. A rejeição sistemática da
Em termos mais gerais, duas visões de mundo e
participação popular, exemplificada pela não imple-
duas lógicas culturais estão em jogo. Por isso, não é
mentação dos conselhos populares, entre eles o de
casual que um artigo da Lei de Fomento mencione,
cultura, é eloquente a este respeito. Entretanto, a
como critério de avaliação para a escolha dos núcleos
avaliação da Secretaria tem acertos, embora ainda
artísticos, “a dificuldade de sustentação econômica
seja marcada pela visão tradicional de “levar a cultu-
do projeto no mercado.”3
ra” aos deserdados. Seria útil também saber o que o governo municipal entende pela expressão “constru-
Desafios e impasses Durante os treze anos de funcionamento da Lei
ção da cidadania”, dada a política de gentrificação praticada ou tolerada pela Prefeitura.
de Fomento foram apoiados cerca de 400 projetos,
Resultados positivos da implementação da Lei de
realizados por 140 núcleos artísticos, números que
Fomento são inquestionáveis: aumento das atividades
contrariam afirmações ligeiras, como aquela que
teatrais (montagens, textos teatrais, produção teórica,
pretende que somente alguns poucos grupos, orga-
publicações, oficinas, registros audiovisuais, debates,
nizados em máfias, seriam frequentemente contem-
seminários); criação de novos espaços teatrais; ocupa-
plados. Além disso, como se trata de um programa
ção artística das ruas e demais locais públicos; funcio-
para “trabalhos continuados”, é compreensível, e
namento de núcleos artísticos em melhores condições
mesmo desejável, que haja alguma repetição dos es-
de trabalho; surgimento de novos grupos com trabalho
colhidos, estimulando, justamente, a perenização
continuado; descentralização das atividades e forma-
das ações. Em torno de 120 milhões de reais foram
ção de um público mais crítico e participativo.
destinados aos grupos e à administração do Programa desde sua implementação.4
Se os resultados podem ser considerados globalmente positivos, é preciso destacar aspectos ainda
O poder público, através da Secretaria de Cultu-
não equacionados que surgiram a partir da imple-
ra, reconhece a “qualidade artística” dos projetos e
mentação do Programa. Como ele é pouco conhecido
destaca alguns dos seus resultados, como:
por parte significativa da população a quem, em princípio, se destina, caberia remediar esta situação am-
(…) a formação de público, a popularização do te-
pliando a divulgação do Programa através de ações
atro de forma continuada, a afirmação de uma dra-
como mostras teatrais, publicações, utilização da in-
maturgia nacional, a difusão dos clássicos, o surgi-
ternet, realização de encontros e seminários, apresen-
mento e afirmação de novos grupos, a descentralização
tações e discussões públicas do Programa e dos seus
da produção teatral da cidade e a reflexão e sistema-
resultados. Seria desejável, ainda, aperfeiçoar o con-
tização de experiências.5
trole social sobre o Programa, envolvendo na sua gestão setores organizados externos ao campo artístico.
No mesmo documento a Secretaria considera
Uma antiga proposta da categoria teatral, apresentada
que, por não estarem “atrelados ao teatro de merca-
por seus sucessivos movimentos (Arte contra a Bar-
do, os projetos fomentados consolidam uma linha de
bárie, 27 de março, Roda do Fomento, Teatro de Rua),
teatro que responde com mais vigor à realidade em
sugere a contratação de um centro de pesquisa capaz
Ibidem, artigo 14. Estes dados atualizam informações sistematizadas no livro Fomento ao Teatro. 12 anos, elaborado pela Secretaria Municipal de Cultura da cidade de São Paulo, 2014. 5 “Seis anos. Programa Municipal de Fomento ao Teatro”, elaborado pela Secretaria Municipal de Cultura da cidade de São Paulo, Núcleo de Fomento ao Teatro, 2008, p. 3. 6 Ibidem, p. 4. 3
4
67
foto fernanda azevedo
políticacultural
Manifestação em favor de políticas públicas de cultura, São Paulo, 2012
68
de monitorar, estabelecer indicadores, avaliar e propor
para os grupos, em finalidade, estamos no começo do
sugestões para o aperfeiçoamento do Programa.
fim. É preciso evitar, então, soluções aparentemente
Outro aspecto não negligenciável é a necessidade
mais democráticas, como a fragmentação dos recur-
de formação contínua da categoria teatral. Sujeita às
sos (“um pouquinho para cada um”) ou o “rodízio” de
instabilidades típicas de uma profissão que não con-
subvenções entre grupos teatrais. Esta falsa alterna-
quistou plenamente seus direitos e o reconhecimen-
tiva os tornariam ainda mais sujeitos ao semi-profis-
to social, uma parcela dos profissionais de teatro
sionalismo, à improvisação, à falta de planejamento e
busca sua sobrevivência material em outras áreas de
à precariedade. A boa atitude pode estar em alargar
atuação. A despolitização provocada pelo inverno de
os limites do Programa atual - reconhecidamente es-
duas décadas de ditadura civil-militar, associada ao
treitos - sem jogar fora o bebê junto com a água suja
ambiente competitivo e individualista, também co-
do banho. Na impossibilidade política desta opção,
bra seu preço, dificultando a organização de artistas e
cabe encontrar alternativas para desafogar as deman-
técnicos. Neste contexto cresce o corporativismo e a
das crescentes, sem abandonar os princípios que
defesa do assistencialismo. O Fomento ao Teatro
nortearam a elaboração da Lei de Fomento.
corre o risco de fazer uma distribuição de recursos
O poder público, através da Secretaria de Cultu-
que condena à dependência, não porque haja possibi-
ra, é um ator importante do processo. Para facilitá-lo
lidade real de emancipação econômica dos grupos
ou dificultá-lo. Em 2005, durante a curta gestão de
teatrais dentro do modelo capitalista, mas, ao contrá-
José Serra (ele renunciou para ser candidato ao go-
rio, pela falta do horizonte de superação deste mode-
verno estadual), o Programa sofreu uma interrupção
lo social. Quando ganhar o fomento se transforma,
de vários meses. As gestões de Gilberto Kassab (era
vice de Serra e foi eleito prefeito para a gestão se-
ações afirmativas não podem ser excluídas na imple-
guinte), através dos editais de convocação e invocan-
mentação de políticas públicas, reequilibrando as
do justificativas legais controversas, extrapolaram
chances de diferentes segmentos sociais acessarem
suas funções ao legislar sobre a Lei. Editais do Fo-
recursos gerados coletivamente.
mento e o decreto municipal n° 51.300, de fevereiro
O tipo de política pública cultural representado
de 2010, feriram a letra e o espírito da Lei aprovada
pelo Programa de Fomento evita transformar o Estado
pelo legislativo municipal, levando a categoria teatral
e os órgãos públicos em meros “intermediários de ne-
a mobilizações em defesa da integridade do Progra-
gócios”,8 desmascarando assim o fato de que o teatro,
ma. No entanto, os problemas de funcionamento do
quando assume a forma-mercadoria, sobrevive em
Programa, especialmente em relação à dotação orça-
nosso país escorado em fundos públicos.9 Nesta situ-
mentária, eram antigos, surgiram em 2003, como
ação contraditória e de enormes carências – em que há
confirma carta enviada pelo Movimento Arte contra
o risco de aceitarmos os limites estreitos da mera dis-
a barbárie ao Secretário Municipal de Finanças da
puta por fundos públicos –, o Programa de Fomento
época, João Sayad, exigindo o cumprimento da Lei.7
ao Teatro vive o impasse de precisar ser cotidianamen-
Em virtude dos resultados obtidos – com o consequente crescimento das demandas, não corres-
te defendido, na perspectiva do seu aperfeiçoamento, e ao mesmo tempo, dialeticamente superado.
pondido pelo aumento dos recursos (exceto pela insuficiente correção baseada na inflação) e do limite máximo de grupos contemplados (que permanece em trinta grupos anuais) – seria razoável, no lugar
Bibliografia
das críticas explícitas ou veladas feitas pelo executi-
CHASSAIGNE, Philippe. Madame Thatcher. Disponível em: http://www.asmp.
vo municipal, defender a ampliação do Programa,
fr/travaux/communications/2003/chassaigne.htm. Acesso em: 10 março 2010.
aumentando o número de grupos fomentados e os valores aplicados. Seria razoável, ainda, investir na qualificação das comissões julgadoras, na análise do
COSTA, Iná Camargo. “Teatro de grupo contra o deserto do mercado”. In ArtCultura, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 17-29, jul.-dez. 2007.
impacto do Programa sobre a vida da cidade, na do-
“Lei de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo”. Disponível em:
cumentação e na ampla divulgação das suas ações.
http://cm-sao-paulo.jusbrasil.com.br/legislacao/813953/lei-13279-02,
O Fomento ao Teatro tem conseguido, não sem di-
acesso
em 15 junho 2015.
ficuldades, mostrar um caminho alternativo ao sistema
“Manifesto Arte contra a Barbárie”, in COSTA, Iná Camargo; CARVALHO, Dor-
hegemônico de política cultural baseado na renúncia
berto. A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a
fiscal. Ele demonstrou a viabilidade da opção política
cultura. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2008, pp. 21-23.
de investimento público direto em arte e cultura e reconheceu, na prática, a produção artística e cultural como direito social. O modelo que a Lei de Fomento
Movimento Arte contra a Barbárie. Carta enviada a João Sayad, Secretário de Finanças e Desenvolvimento Econômico da cidade de São Paulo, 14 de novembro de 2002 (não publicada).
consolidou expressa, além da recusa das renúncias fiscais, a recusa da “política do balcão” que, através de emendas parlamentares ou outros mecanismos, desti-
Secretaria Municipal de Cultura da cidade de São Paulo. “Seis anos. Programa Municipal de Fomento ao Teatro”. Núcleo de Fomento ao Teatro, 2008.
na verbas públicas sem critérios mínimos de transpa-
Secretaria Municipal de Cultura da cidade de São Paulo. Fomento ao Teatro.
rência e igualdade de acesso. A questão da meritocracia
12 anos, 2014.
também não está equacionada. Mesmo no quadro globalmente mais democrático do Programa de Fomento. Num país marcado pela escravidão e pela brutal desigualdade de renda, medidas compensatórias robustas e
Obs.: Este texto, com o título ”A Lei e o Programa de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo. Uma experiência de política pública bem-sucedida”, foi publicado originalmente em 2010 na revista Extraprensa, vol. 3, nº 3 (USP). A versão atual tem dados atualizados e pequenas alterações de conteúdo.
Carta enviada a João Sayad, Secretário de Finanças e Desenvolvimento Econômico da cidade de São Paulo, datada de 14 de novembro de 2002, assinada pelo Movimento Arte contra a Barbárie (não publicada). 8 “Manifesto Arte contra a Barbárie”, in Iná Camargo Costa e Dorberto Carvalho, A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a cultura, São Paulo, Cooperativa Paulista de Teatro, 2008, p. 21. 9 Cf. Iná Camargo Costa, “Teatro de grupo contra o deserto do mercado”, in ArtCultura, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 17-29, jul.-dez. 2007. 7
69
Fotos Felipe Stucchi
aquiagora
Manual de autodefesa intelectual, 2015
» por Michael Löwy Diretor de pesquisas do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) em Paris. É um dos mais respeitados pensadores marxistas da atualidade. Escreveu cerca de trinta livros e é militante ecossocialista.
Marxismo e religião vão ao teatro Bertolt Brecht, A Santa Joana dos Matadouros (1931)
Nos anos 1870, Engels constata com satisfação
glesa, escreve Engels, “aceitou a ajuda perigosa do
que o novo movimento operário socialista é não reli-
Exército da Salvação, que deu nova vida à propaganda
gioso – conceito que lhe parece mais pertinente que
do cristianismo primitivo, declarando que os pobres
aquele de “ateísmo”. Segundo ele, para a grande maio-
são escolhidos, combatendo o capitalismo a seu
ria dos trabalhadores socialistas, especialmente na
modo religioso, e mantendo assim um elemento pri-
Alemanha e na França, o ateísmo “ficou para trás”:
mitivo de antagonismo cristão de classe, suscetível
“este termo puramente negativo não se aplica mais a
de um dia tornar-se perigoso para os proprietários,
eles, pois não estão mais em oposição teórica, mas
que hoje são seus doadores de fundos”.3
apenas prática, à crença em Deus; simplesmente, eles
Bertolt Brecht certamente não leu o texto de En-
acabaram com Deus. Vivem e pensam no mundo real e
gels sobre os trabalhadores alemães (um artigo pouco
são, portanto, materialistas”.1
conhecido), mas leu provavelmente a passagem sobre
Esse diagnóstico se dá, evidentemente, na pers-
o Exército da Salvação, que aparece no prefácio à edi-
pectiva da hipótese fundamental de Engels, conside-
ção inglesa do ensaio Do socialismo utópico ao socia-
rando que, a partir do século XVIII, com o advento da
lismo científico (1982) – um escrito que faz parte dos
filosofia iluminista (Voltaire!), o cristianismo entrou
textos “canônicos” do marxismo, lido, junto com o
em sua última fase e tornou-se “incapaz de servir, no
Manifesto Comunista, por todos os interessados.
futuro, de manto ideológico às aspirações de uma classe
Em todo caso, em sua peça de teatro A Santa Joa-
progressista qualquer que fosse”.2 No entanto, em certas
na dos Matadouros (1931), reencontram-se, sob a for-
análises concretas, Engels mostra-se mais sensível e
ma literária, as duas hipóteses de Engels.
prestes a reconhecer a existência de movimentos reli-
O contexto da peça é o de 1929-31, os terríveis
giosos potencialmente subversivos, ou de movimentos
anos iniciais da Grande Crise econômica, com seu
revolucionários que assumem uma “forma” religiosa.
cortejo de desespero, desemprego, miséria e revoltas
Um dos exemplos que ele menciona é bastante
operárias, não somente na Europa, mas também nos
surpreendente: trata-se do Exército da Salvação na
Estados Unidos e no mundo inteiro.
Inglaterra. No esforço de manter, custe o que custar,
Nessa época, Bertolt Brecht (1898-1956) é um jo-
o espírito religioso na classe operária, a burguesia in-
vem dramaturgo alemão conhecido graças ao sucesso
1 Friedrich
Engels, “Littérature d'émigrés”, 1874, in: Marx & Engels, Sur la Religion, Paris, Editions Sociales, 1950, p. 143. “Ludwig Feuerbach et la fin de la philosophie classique allemande”, 1888, in: Marx & Engels, Op. Cit., p. 260. 3 Id., “Introduction à l’édition anglaise de Socialisme utopique et socialisme scientifique”, 1892, in: Marx & Engels, Op. Cit., p.303. 2 Id.,
71
aquiagora
O tema geral da peça tem relação estreita com a conjuntura econômica, social e política desses anos de crise econômica
mensagem da Salvação aos trabalhadores da fábrica de armamento. Esta não é, como veremos, a trajetória da “Santa Joana” de Brecht, ainda que possamos constatar algumas analogias.5 O argumento central de Brecht, diretamente inspirado por Marx, é que a crise não é o resultado das “leis naturais da economia”, mas da forma capitalista de produção. Ele o anuncia, como de hábito, de forma indireta, tornando ridículo o discurso dos fabricantes de conservas: Inexoráveis pairam Sobre nós as leis da economia, essas desconhecidas. Em tremendos ciclos retornam As catástrofes da natureza!6 (p. 73 e 74)
Contudo, lendo a peça, rapidamente nos damos
72
de sua Ópera dos três vinténs (1928). Simpatizante do
conta de que o conhecimento do marxismo do jovem
Partido Comunista Alemão – ao qual jamais aderiu
Brecht é limitado. A sua explicação da crise parece
–, começa, nesse momento, por influência de seu
mais influenciada pela leitura de romances america-
amigo Walter Benjamin, a estudar mais seriamente o
nos que d’O capital de Karl Marx. Em lugar de anali-
trabalho de Marx.
sar as contradições do sistema, Brecht atribui a crise
A peça de teatro A Santa Joana dos Matadouros foi
às operações de especuladores sem escrúpulos.
escrita entre 1929 e 1931, e representada pela primei-
O que nos interessa não é este aspecto, mas o per-
ra vez na Alemanha em 1932. É uma peça única na
sonagem de Joana Dark, cristã, “soldada” dos Boinas
obra de Brecht por sua audácia política e artística, por
Pretas (algo como o Exército da Salvação), que vai se
sua ironia marcante e pela inovação de sua montagem
“converter” à causa dos trabalhadores. Brecht é um dos
e fusão de elementos contraditórios, indo do Mani-
primeiros a se interessar pelo fenômeno político-reli-
festo Comunista ao Hyperion, do poeta romântico
gioso que terá múltiplas manifestações durante do sé-
Hölderlin.4 Brecht resolveu situar sua história nos
culo XX, dos padres operários à Teologia da Liberação
Estados Unidos, na zona dos matadouros de Chicago.
na América Latina. É preciso dizer que nesta época
O tema geral da peça tem relação estreita com a con-
(início dos anos 1930) há muito poucos casos de mem-
juntura econômica, social e política desses anos: cri-
bros do clero cristão que aderem ao comunismo; cer-
se econômica, fechamento dos matadouros, desem-
tamente, o pastor protestante suíço Jules Humbert
prego dos trabalhadores, miséria, fome, tentativas de
Droz tinha se tornado, durante os anos 1920, um dos
greve. Uma das fontes prováveis de Brecht é a peça de
principais líderes da Internacional Comunista, mas se
Georges Bernard Shaw, Major Barbara (1907), na qual
trata de um caso bastante excepcional, e é pouco pro-
se vê uma mulher, oficial do Exército da Salvação, que
vável que ele tenha sido capaz de inspirar o escritor.
recusa a ajuda generosa de um fabricante de armas
Evidentemente, é o Exército da Salvação que serve
por considerar esta atividade imoral e contrária aos
de modelo a Brecht para inventar a seita – no sentido
seus princípios cristãos. No último ato, entretanto,
sociológico do termo – dos “Boinas Pretas”, com os
ela decide aceitar este apoio, mas resolve levar a
seus “soldados” devotados à causa do Evangelho cristão.
4 Roberto
Schwarz, “Altos e baixos da atualidade de Brecht”, Sequências brasileiras, São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 143. fonte possível, esta alemã, poderia ser a peça A donzela de Orleans (1801), de Schiller, mas as duas obras têm pouco em comum. 6 Bertolt Brecht, A Santa Joana dos Matadouros, São Paulo, Cosac & Naify, 2009. Em todas as citações de texto da peça, reproduzimos a tradução brasileira da obra de Brecht, realizada por Roberto Schwarz diretamente do original em alemão. As páginas são indicadas ao final de cada citação. (N. da T.). 5 Outra
Algumas palavras sobre esta instituição fundada em
trumentos formais é a interrupção dos discursos –
1878, por um pastor protestante, William Booth. Preo-
principalmente religiosos – pomposos, kitsch,
cupado com a miséria das populações pobres de Lon-
enganadores, “idealistas”, através de parênteses irôni-
dres, este se propõe a lhes trazer “sopa, sabão e salvação”.
cos, que lembram o espectador da dura realidade ma-
Essas práticas caritativas (e higienizadoras!) são acom-
terial. Ele gosta também de “misturas dissonantes de
panhadas de certa sensibilidade social, testemunhadas
brutalismo e acuidade intelectual, ou de materialis-
por esta declaração de Booth, em 9 de maio de 1912:
mo peso pesado e, do outro lado, delicadeza na condução de andamentos e raciocínios, à beira do ara-
Enquanto mulheres chorarem, lutarei. Enquanto crian-
besco e da variação abstrata”.7 A escritura de Brecht
ças tiverem fome e frio, lutarei. Enquanto houver um al-
não visa o “realismo”, mas antes escolhe, no nível da
coólico, lutarei. Enquanto houver na rua uma menina que
forma, a ampliação caricatural dos traços essenciais
se venda, lutarei. Enquanto houver homens na prisão, e
das personagens: o cinismo (Slift), a hipocrisia (Bo-
que saiam dela apenas para voltar, lutarei. Enquanto
carra), o oportunismo covarde (Snyder), a ingenuida-
houver um ser humano privado da luz de Deus, lutarei,
de sincera (Joana). Não se está longe das ferozes cari-
lutarei,
caturas de Georges Grosz, no início dos anos 1920,
lutarei,
“com seus capitalistas de nuca espessa, focinho de
lutarei.
porco, fraque impecável e cinismo blindado”.8
Mas, em última análise, para Booth, o progresso
ciológica” interessante deixada por Brecht é – como
social, político e econômico deveria partir de uma
Engels já havia formulado a seu modo – a seculariza-
profunda transformação interior do homem, reconci-
ção da classe operária, sua falta de interesse pela reli-
liado consigo mesmo pelo poder do Evangelho. De
gião. Trata-se, como sabemos, de uma realidade
fato, encontram-se poucas manifestações de antica-
constatada, bem antes dos sociólogos, pelas próprias
pitalismo de que falava Engels, sendo a essência da
Igrejas, como a Igreja Católica francesa, que decide
atividade do Exército da Salvação a pregação do
organizar, após 1945, um “Missão” para levar o Evan-
Evangelho, da música, dos cantos, e a distribuição
gelho às classes populares incrédulas.
No que concerne à religião, a primeira pista “so-
gratuita de sopa, especialmente nas festas natalinas.
Brecht encena o fenômeno com distanciamento.
Como o amigo de Marx, Brecht parece fascinado
Não é o “proletariado” que fala, mas Joana Dark, a
pelo Exército da Salvação. Ele não acredita, contraria-
Salvadora, que se desespera pelo declínio da fé “lá
mente a Engels, que a instituição pudesse se radicali-
onde vivem os homens”. Bem no início da peça, diri-
zar, mas pensa que indivíduos, simples “soldados”
gindo-se a seus amigos Boinas Pretas, ela se lamenta
dessa ordem religiosa sui generis, poderão desenvolver
da ausência de Deus num mundo entregue ao Mal.
um “antagonismo cristão de classe” (Engels). É a hipótese político-religiosa da peça, que constitui assim um
Em tempos turvos de caos cruento
complemento e um aprofundamento literário da so-
E desordem por decreto
ciologia marxista da religião, formulada com paixão e
E abuso previsto
a ironia própria do distanciamento. Com certos limi-
E humanidade desfigurada
tes e incompreensões, como também veremos.
[…] nós trazemos
Está claro que Brecht não propõe análises socio-
Deus.
lógicas ou teóricas, mas dá vida a personagens, com
A popularidade Dele não é o que era.
suas singularidades e contradições. Seu método de
Malvisto por muitos
“teatro épico” se traduz em elementos de distancia-
Ele já não tem entrada
mento, interrupções, canções etc. Um dos seus ins-
Nos domínios da vida real [...]
7 Roberto 8 Esta
Schwarz, “Altos e baixos da atualidade de Brecht”, Sequências brasileiras, Companhia das Letras, 1999, p. 133. comparação é sugerida por Roberto Schwarz, Op. Cit. p. 141
73
aquiagora E esta nossa iniciativa é com certeza
plesmente a falta de interesse pela religião e suas
A última do gênero. A tentativa derradeira
promessas de “sopa no céu”.
De reerguê-Lo em meio à desagregação geral. (p. 26 e 27)
O único a falar de ateísmo na peça é Paulus Snyder, o Comandante dos Boinas Pretas, num discurso muito ideológico, em que ele explica que é preciso
74
É evidente que Brecht conhece a célebre passagem
urgentemente implorar por dinheiro às pessoas ricas
em que Marx trata a religião como “ópio do povo”. Marx
de Chicago: “para que nos ajudem sábado próximo,
fala da religião como “coração de um mundo sem cora-
quando tentaremos uma ofensiva frontal contra a
ção”, e Brecht do “coração de um mundo que se desagre-
descrença e o materialismo nesta nossa cidade, sobre-
ga”. Note-se, contudo, que nessa primeira intervenção
tudo nas camadas ínfimas” (p. 94). Algumas páginas
de Joana já se percebe um discurso crítico em relação à
mais tarde, numa prece dirigida aos fabricantes –
realidade social do mundo, ainda que sua preocupação
para rogar-lhes a modesta soma de oitocentos dólares
principal seja a “glória de Deus”.
por mês para poder pagar o aluguel da sede dos Boi-
Na cena seguinte, Joana dirige aos trabalhadores fa-
nas Pretas –, ele sacode mesmo o espantalho do co-
mintos um discurso religioso ascético tipicamente “ide-
munismo: “Eles vão acabar lhes tirando as fábricas e
alista”, bastante caricaturado pelo materialista Brecht: é
dizendo: vamos fazer como os bolcheviques e tomar
preciso “disputar um bom lugar lá em cima, e não aqui
as fábricas em nossas mãos para que todos tenham
embaixo”; ter “ambições altas, sim; vulgares, não”, nem
trabalho e comida”. Ele volta mais tarde ao ponto, ex-
aspirar “bens terrestres”. Quando a sopa termina, expli-
plicando: “Uma banda de música e sopas consisten-
ca que “a sopeira do céu está sempre cheia e dá para
tes, sopas nutritivas, para a tranquilidade de Deus e a
todos”. Ora, uma vez a sopa terrestre terminada, os tra-
liquidação final do bolchevismo” (p. 97 e 156).
balhadores não escutam mais e se vão. “Sombria”, Joana
É preciso dizer que a presença dos comunistas é
constata, à sua maneira, a falta de fé dessa classe vil-
de uma só vez importante e discreta: aparecem como
mente materialista:
um grupo anônimo de líderes operários, que não é diretamente designado como comunista. É verdade
Vocês viram como eles caem fora quando acaba a sopa?
que um trabalhador declara à Joana que os comunis-
A visão deles não vai além de um prato de comida.
tas são os únicos que “tentam fazer alguma coisa”, e
Eles não acreditam em nada
outro fato enaltece os revolucionários profissionais
Só se estiver em sua mão (p. 33 e 34)
que sacrificam a vida em prol da causa dos trabalhadores. Mas não aparece nenhuma personagem (com
Esta “sombria” constatação é feita, algumas cenas
um nome) que represente a causa comunista: não es-
depois, por outra Salvadora, Marta, que intercala seu
tamos no “realismo socialista” tão caro aos soviéti-
piedoso discurso aos trabalhadores com apartes deses-
cos, não há “ herói positivo”.
perados (entre parênteses no texto) a seus companheiros
Os discursos de Snyder, mas também de Pedro
Boinas Pretas: “esta que lhes fala também esteve perdida,
Paulo Bocarra (Pierpont Mauler, em alemão),9 o mais
como vocês [...], a carne em mim querendo só comer e
poderoso industrial de enlatados de Chicago – e o
beber. Mas com a graça de Deus encontrei Jesus, e a luz
principal responsável, devido a suas especulações
e a alegria se fizeram dentro de mim, [...] (Eles não pres-
desenfreadas, pela crise e pelo desemprego –, evi-
tam a menor atenção!)” (p. 122). O parêntese irônico é o
denciam a submissão das Igrejas (neste caso, dos
meio formal que Brecht utiliza para pôr em evidência a
Boinas Pretas) aos interesses do Capital. Bocarra,
vaidade deste tipo de discurso religioso.
convencido de que “capitalismo e religião são indis-
Como Engels, Brecht sugere que este não é o “ateís-
pensáveis”, explica à Joana que, num mundo mudado
mo” que predomina nas classes subalternas, mas sim-
de cima a baixo, “tudo se passaria sem nós nem Deus,
9O
nome “Pierpont Mauler” é inspirado, sem dúvida, no do riquíssimo banqueiro americano Pierpont Morgan. A palavra alemã Maul significa “goela”, uma alusão à voracidade financeira da personagem.
o qual seria abolido porque completamente sem fun-
Algumas páginas adiante, interroga-se quanto ao
ção”. Eis por que os Boinas Pretas devem ajudá-lo em
discurso de Salvação: “por que me comovem estas fa-
sua obra. Acrescenta que é preciso:
las irreais e bisonhas”, dado que é “a mesma e eterna demagogia muito cacete e mal ensaiada”? Eis a sua
[...] recolocar Deus em pé
explicação: “É talvez porque são trabalho gratuito, de-
A única salvação
zoito horas diárias / Na chuva e com fome”. (p. 83)
Batendo os tambores em seu nome
A admiração, mesmo fascinação, de Bocarra por
Para que ele tome alento nos subúrbios da miséria
Joana é um dos aspectos mais curiosos e surpreen-
E nos matadouros a voz dele seja ouvida. (p. 114)
dentes da peça; Brecht não explica se trata-se de simples tentativa de instrumentalização, ou de uma
A este discurso devoto, segue-se a generosa doação de alguns milhares de dólares, que representem o
emoção sincera – a menos que seja uma mistura entre as duas coisas.
aluguel de quatro anos da sede dos Boinas Pretas. A
Em todo caso, esse reconhecimento da devoção
cena se reproduz pouco antes do final, quando Bocarra
ascética dos Boinas Pretas corrige a representação da
conta com os Boinas Pretas para impedir a greve dos
seita como operação subvencionada pela burguesia,
trabalhadores de Chicago e reestabelecer “a ordem e a
que parece então se aplicar sobretudo a Paulus Sny-
tranquilidade”: “Por isto daremos / Dotação abundan-
der, o Comandante, e não a seus “soldados”.
te a nossos amigos Boinas Pretas, a verba indispensá-
No início da peça, como vimos, Joana está preocu-
vel / Ao vosso trabalho em prol do progresso” (p. 171).
pada principalmente com a “glória de Deus”, mas esbo-
Trata-se, naturalmente, de uma questão clássica
ça uma imagem bastante crítica da sociedade existente.
da relação marxista com a religião: as Igrejas são sub-
E, principalmente, antes de condenar os pobres por sua
vencionadas pelo Capital, porque elas servem à or-
“imoralidade”, ela explica os defeitos pela miséria: é por
dem estabelecida. Brecht retoma este argumento
conta dela que “os sentimentos nobres desapareçam do
com sua habitual ironia, destacando tal característica.
peito humano”, é ela que os afasta da necessidade
Ainda assim, como lembra Engels a respeito do Exér-
mesma de ideal, reduzindo-os à voracidade (p. 74).
cito da Salvação, os doadores de fundos das seitas ou
Ora, como remediar esta miséria, como aliviar a
Igrejas podem ter más surpresas: estas podem um dia
pobreza? A primeira resposta de Joana é aquela, bas-
vir a oferecer perigo aos seus interesses. Mais interessante e mais inovador é o interesse que Brecht tem pelo caminho espiritual e político de Joana, que é, de fato, o tema central da peça. A primeira característica marcante da personagem, compartilhada com os outros “soldados” Salvadores, é o ascetismo. Como frequentemente na peça, é paradoxalmente o capitalista Bocarra que diz a verdade. Neste contexto, ele mostra-se admirado, com uma certa perplexidade: Eles trabalham sem ganhar Não é estranho? Coisa semelhante Eu nunca havia ouvido. Trabalham A troco de nada e não se zangam. Seus olhos não refletem O medo da miséria e do relento. (p. 45)
As Igrejas são subvencionadas pelo Capital, porque elas servem à ordem estabelecida
75
aquiagora
Um dos momentos decisivos no percurso de Joana é sua decisão de ir viver entre os pobres
trumentalização burguesa da religião. Eis a sua apóstrofe furiosa, dirigida aos industriais de conservas, responsáveis pelo desemprego, que vinham visitar a sede da seita: aí se lembram da religião, para botar panos quentes, mas Deus ainda tem amor-próprio e não vai servir de criado para limpar a imundície que vocês deixaram. […] vocês bateram à porta errada, vocês têm que ser expulsos daqui, expulsos a pau. […] Fora daqui! Vocês não têm nada que pôr os pés aqui. Não queremos ver essas caras aqui. Vocês são indignos e eu ponho vocês para fora. Apesar do seu dinheiro! (p. 101 e 102)
Aqui estamos plenamente no que Engels chamava, a propósito do Exército da Salvação, de combate contra o capitalismo à maneira religiosa. Contudo, Brecht, contrariamente a Engels, não acredita que a
76
tante tradicional, dos Salvadores: a caridade. Ela vai se
organização religiosa, como tal, seja capaz de tal op-
dirigir, repetidas vezes, à consciência caridosa dos ri-
ção. Na peça, Snyder, o Comandante dos Boinas Pretas,
cos, e, sobretudo, a Pedro Paulo Bocarra. Num discur-
implora que os industriais voltem, desautorizando for-
so aos industriais, Joana prega o “amor ao próximo” e
malmente Joana, e terminando por excluí-la de seu
interpela-os em nome do Novo Testamento: convida
“Exército”: “Vai, angélica / Sai na chuva e continua a ser
aos “todo poderosos Senhores” a olhar para os pobres,
justa perdida na neve!” (p. 103). A utilização desse termo
“que vocês maltrataram e deixaram no estado que está
é curiosa, ainda que seja pouco provável que Brecht se
se vendo, eles em quem vocês não querem reconhecer
refira às querelas do intransigentismo católico.10
os seus irmãos”. Mas deposita as suas esperanças principalmente em Bocarra, que parece lhe escutar:
Apesar de sua radicalização, Joana contínua depositando as esperanças na conversão caridosa dos ricos, e, em especial, de Pedro Paulo Bocarra:
ele despertou, e vocês Quando a necessidade apertar
Saio em busca do rico Bocarra, a quem
Venham comigo, buscar a ajuda dele.
Os pavores e os bons sentimentos assaltam
Ele agora não vai mais descansar
Para que ele nos ajude. Não voltarei
Até que estejam todos melhor.
A vestir uniforme nem esta boina preta
Isto porque é nas mãos dele que está o
Nem voltarei a esta casa querida
remédio e por isso
Dos cânticos de graça e das iluminações enquanto
Olho nele. (p. 80)
Não tiver ganho e convertido à nossa causa Integralmente o rico Bocarra. (p. 104)
Contudo, à medida que ela toma consciência da condição dos desempregados e dos miseráveis, a in-
Estas ilusões de Joana sobre a conversão do capita-
dignação cresce-lhe, e, numa cena memorável, Joana
lista não são de forma alguma compartilhadas pelos
expulsa os mercadores do templo e denuncia a ins-
operários, segundo Brecht; ele o mostra, como faz fre-
10 Löwy se refere ao termo intransigeante, “intransigente”, da tradução que utiliza de A Santa Joana dos Matadouros em francês. A frase citada, na tradução francesa, seria: “Parte na chuva, em meio à tormenta / Vai debaixo de neve e segue intransigente”. Na tradução brasileira que utilizamos como referência, lê-se “justa” em vez de “intransigente” (N. da T.).
quentemente, com parênteses sarcásticos que descre-
Não falhou. Interpelado humanamente
vem as suas reações face à ingenuidade desarmante da
Ele respondeu humanamente. Existe
Salvadora. Falando aos trabalhadores, Joana observa:
Portanto a bondade. Ao longe ouvem-se metralhadoras.
[...] Parece até que a pobreza dos pobres interessa
Que ruído é este?
aos ricos! Fico pensando se a própria pobreza não será obra deles! (Grandes gargalhadas dos traba-
UM REPÓRTER:
lhadores.) Que coisa desumana! Estou pensando
É o exército que está evacuando os matadouros…
em gente até mesmo como o Bocarra. (Novas gar-
(p. 142)
galhadas.) Por que estas risadas? Acho muita malícia, e não acho certo. Vocês estão pensando, sem
A perspectiva de Brecht é naturalmente partidá-
nenhuma prova, que um homem como o Bocarra
ria, mas coloca em evidência um fato sociopolítico
não pode ser humano. (p. 129 e 130)
significativo: a tensão entre caridade e luta de classes, que cumpriu um papel importante, ao longo do sécu-
Em outra passagem, em que Joana regozija-se –
lo XX, nas relações entre as instituições (ou os indiví-
equivocadamente – pelo fim do desemprego graças à
duos que praticavam a caridade) e o movimento ope-
caridosa iniciativa de Bocarra, é a brutal realidade que
rário, em suas diferentes formas (sindicalismo,
vem desmenti-la, sob a forma de tiros de metralhadora.
socialismo, comunismo, anarquismo). O distancia-
Fotos Felipe Stucchi
mento em relação à tradição caritativa das Igrejas foi JOANA:
um dos momentos importantes na passagem de indi-
Vocês ouviram, vai haver trabalho!
víduos ou grupos crédulos para as fileiras da contes-
A dureza no peito deles cedeu. Pelo menos
tação social. E, por outro lado, a adesão a esta tradição
O justo dentre eles
foi motivo de constante conflito e desacordo entre os
Manual de autodefesa intelectual, 2015
77
aquiagora
Praticamente se poderia considerar A Santa Joana dos Matadouros uma resposta comunista a Metrópolis
convertê-los, mas como propósito moral em si, a escolha social e religiosa de compartilhar a vida dos desprovidos, suas angústias, alegrias e infortúnios. Vivendo entre os trabalhadores, Joana é tentada a compartilhar a sua luta. Mas quando ela escuta um trabalhador declarar que “se não for à força, não vai”, leva um choque, e diz: “Combatam, sim, a desordem e a confusão / Mas não pela violência. / Embora a tentação seja forte!”. Num primeiro momento, ela aceita colaborar com o movimento de greve, levando uma carta aos militantes de uma das principais fábricas da região dos matadouros, mas hesita: Eu não quereria fazer Nada que tivesse de ser feito com violência E conduzisse à violência. Tipos assim Buscam o próximo sempre com malícia (p. 146)
Seus escrúpulos e a sua recusa a entregar a carta
78
cristãos e a esquerda (na maior parte de seus matizes).
contribuirão para a derrota da greve, uma vez que os
Um dos momentos decisivos no percurso de Joa-
trabalhadores de uma fábrica importante não tenham
na é sua decisão de ir viver entre os pobres. A moti-
sido prevenidos a tempo.
vação não é mais, ou não é somente, a vontade de lhes
Enfraquecida pela fome e pelo frio, doente, Joana
levar a Boa Nova do Evangelho, mas o desejo ascético
assiste à derrota da greve e se arrepende amargamente
de viver como eles:
de não ter entregado a carta: “Causei desgraça aos desgraçados / E trouxe alívio aos exploradores” (p. 184).
Quanto a mim fico entre os que esperam
Levada à presença dos Boinas Pretas e dos industriais,
nos matadouros
Joana é objeto de uma tentativa de canonização. É Slift,
Até que as fábricas abram os portões, eu vou
o mais cínico dos industriais e assessor de Bocarra
Comer o que eles comem, se for neve,
para os trabalhos sujos, que toma a iniciativa, num
será neve, e quero
discurso que Brecht carrega de todo seu sarcasmo:
Que o trabalho deles seja o meu trabalho porque também eu
Esta é a nossa Joana. Ela veio na hora certa.
Não tenho dinheiro e não tenho outra
Vamos fazer dela a nossa vedete, pois foi graças a
maneira de ganhá-lo
ela que nós conseguimos sobrenadar nestas se-
Pelo menos honesta, e se não houver trabalho
manas difíceis […]. Graças à sua intervenção em
Que não haja também para mim (p. 115)
favor dos pobres e graças também aos discursos que ela fez contra nós. Ela será a nossa Santa Jo-
Brecht consegue assim captar um momento essencial no percurso que levou padres operários para
ana dos Matadouros. Vamos fazer dela uma santa credora de todas as atenções. (p. 182)
as fábricas ou missionários católicos para as favelas latino-americanas: o imperativo ético de viver com
Contudo, Joana não se presta facilmente à mano-
os pobres, como os pobres – não como meio para
bra. Tem, em suas últimas palavras, morrendo, um
discurso cada vez mais subversivo. Instruída por sua
a boa ou a má vontade deste ou daquele industrial,
amarga experiência, ela agora aceita a necessidade da
mas o sistema:
violência libertadora: “Só a força resolve onde impera a força” (p. 189). É muito provável que o personagem de Joana te-
E ainda que eles melhorassem não melhorava Nada, porque é sem paralelo
nha sido inspirado, até certo ponto, no de Maria, he-
O sistema que organizaram:
roína do filme Metrópolis, de Fritz Lang (1927). Perso-
Exploração e desordem, bestial e portanto
nagem de inspiração cristã, Maria se solidariza com
Incompreensível. (p. 187)
os trabalhadores e prega a justiça social; o chefe dos patrões faz que a retirem de cena e a substituam por
Brecht apresenta aqui um momento capital na ra-
um robô que tem o seu rosto, mas que defende a vio-
dicalização sociopolítica dos cristãos que se engajam
lência; esta figura diabólica leva os trabalhadores à
nas lutas sociais: a passagem de uma abordagem mo-
beira da autodestruição. Brecht inverte os signos, o
ralizante, que se preocupa essencialmente com o
seu personagem religioso termina por compreender a
comportamento dos indivíduos, a uma atitude mais
necessidade da violência. Praticamente se poderia
“totalizante”, que põe em questão as estruturas so-
considerar A Santa Joana dos Matadouros uma res-
ciais, o “sistema”, o capitalismo. A história da Teolo-
posta comunista a Metrópolis.
gia da Libertação na América Latina ilustra perfeita-
Como a caridade, a recusa por princípio da violência foi também um pomo da discórdia entre cristãos e revolucionários. Mas a apresentação de Brecht
mente este processo de mudança de ótica. Entre as últimas palavras de Joana, prestes a desvanecer, encontra-se uma profissão de fé ateísta:
é um pouco curta, provavelmente inspirada pelo contexto de 1931, e pela orientação (“insurrecional”) do
Por isto se alguém aqui embaixo diz que
movimento comunista à época. A resposta dos cris-
Deus existe
tãos engajados à questão da violência emancipatória
Embora não esteja à vista
é mais nuançada e diversificada. Ela se coloca para os
E que invisível é que ele ajuda
cristãos europeus sobretudo durante a ocupação da
Deviam bater na calçada a cabeça desse alguém
Europa pelo Terceiro Reich de Hitler; como se sabe,
Até matar. (p. 188)
muitos se engajaram na resistência antifascista. Depois da guerra, especialmente no sul da Europa, al-
Uma leitura “caridosa” desta passagem destacaria
guns se aproximam dos comunistas: a questão da
a crítica da crença em que é necessário esperar o so-
violência deixa de estar na ordem do dia. Na América
corro do Céu, em vez de agir. Mas o texto dá a im-
Latina, em contrapartida, à época das ditaduras mili-
pressão de uma rejeição por completo da crença em
tares (1964-1984), ela estava abertamente posta. En-
Deus e da religião em geral. Neste caso, trata-se de
tre os cristãos socialmente engajados, pode-se ob-
uma séria limitação do texto de Brecht: o poeta ale-
servar grande diversidade de atitudes: a tomada de
mão, cujas intuições agudas são muitas vezes inte-
armas (Camilo Torres), o apoio político à resistência
ressantes, não tinha compreendido algo de essencial:
armada (os dominicanos brasileiros), ou simples-
pode-se muito bem aderir à causa dos pobres, às suas
mente a denúncia da violência do poder: Monsenhor
lutas por libertação, ao movimento operário, e mes-
Romero (assassinado em 1980 por paramilitares em
mo à revolução, sem renegar sua fé religiosa.
El Salvador). O texto que Brecht coloca na boca de Joana não dá conta desta pluralidade. As últimas palavras de Joana testemunham sua
Tradução de Juliana Caetano
“politização”. Ela se dá conta de que o problema não é
Revisada pelo autor e por Fernando Kinas
79
aquiagora » por José Correa Leite Sociólogo, pesquisador da Universidade de São Paulo e professor universitário. É um dos articuladores do Fórum Social Mundial
80
Capitalismo, tecnologias digitais
e individualismo solipsista
Tem-se apresentado as tecnologias digitais como
duas primeiras vagas de transformação (do tear e da
essencialmente democratizadoras e facilitadoras de
ferrovia) sob o rótulo de “primeira revolução industrial”
relações horizontais, articuladas em redes virtuais
(ignorando que de início o tear era hidráulico e não
que estariam livres das relações hierárquicas que
movido a vapor) e as duas últimas (da eletricidade e do
normalmente acodem as organizações políticas. Mas
motor a combustão interna) sob o nome de “segunda
creio que esta forma de apresentar as tecnologias
revolução industrial” – donde a multiplicação nas úl-
digitais é unilateral. Elas são incorporadas pela socie-
timas décadas de “terceiras revoluções” para denominar
dade contemporânea nos marcos de relações capita-
a informatização da sociedade contemporânea.
listas de poder, produção, propriedade e dominação,
Mas ocorreram inequivocamente quatro grandes
integrando-se no cotidiano da vida social através
ondas longas de expansão do capitalismo, cada uma
destas relações. E mais, elas produzem e reproduzem,
delas caracterizada por sua própria constelação de tec-
em sua própria lógica “digital”, “virtual”, uma subje-
nologias em sinergia, que recupero e dato da forma como
vidade monádica, solipsista, em tudo afeita à ideolo-
fazem Freeman e Louçã (sendo as tecnologias do perío-
gia individualista e consumista do neoliberalismo.
do expansivo aprimoradas no período depressivo ante-
Um balanço mais equilibrado deve, pois, ser apresen-
rior): 1. A mecanização da indústria com o recurso à
tado para que possamos lidar realisticamente com
energia hidráulica, centrada na indústria têxtil inglesa
estas novas tecnologias e realidades, sem subestimá
(expandindo entre 1780 e 1815 e em deslocamento des-
-las, mas também sem idealizá-las.
cendente entre 1815 e 1848); 2. A mecanização da indústria e transporte a vapor, centrado nas ferrovias, navios
Um preâmbulo sobre o capitalismo,
a vapor e no telegrafo (expandindo entre 1848 e 1873 e
a tecnologia e as tecnologias digitais
em deslocamento descendente entre 1873 e 1895); 3. A
Chris Freeman e Francisco Louçã publicaram, em
eletrificação da indústria, dos transportes e dos lares,
2001, um livro cujo título em português é Ciclos e crises
centrado na eletricidade e no aço (expandindo entre 1895
no capitalismo global: das revoluções industriais à revolu-
e 1918 e em deslocamento descendente entre 1918 e
ção da informação. Eles retomam a discussão dos cha-
1940); 4. A motorização do transporte, economia civil e
mados ciclos Kondratiev, destacados pela primeira vez
guerra, centrada no petróleo, petroquímica e motor a
pelo economista russo do início do século XX do mes-
combustão (expandindo entre 1941 e 1973 e em deslo-
mo nome, rebatizadas depois por Ernest Mandel como
camento descendente depois de 1973).
ondas longas do desenvolvimento capitalista no seu
Os autores sustentam, por fim, sem datar, a exis-
livro O capitalismo tardio. Para Mandel e também para
tência de uma quinta onda longa, baseada na “compu-
Freeman e Louçã, alguns fatores devem convergir para
tadorização de toda a economia”, centrada principal-
propiciar um período duradouro de expansão do capi-
mente na internet, gestada a partir da década de 1970.
talismo, garantindo uma taxa de lucro elevada por su-
Parece inequívoco, de qualquer maneira, que uma
cessivos anos, antes que seu impacto cumulativo se
nova base técnica para a economia capitalista foi es-
dissipe. Um desses elementos é a existência de uma
tabelecida pelas tecnologias digitais da informação e
constelação de inovações tecnológicas que possam ser
comunicação a partir da década de 1990, com a difu-
difundidas pela sociedade, alavancando investimentos
são do microcomputador, do celular, a abertura da
lucrativos para empresas capitalistas.
internet e as conexões de banda larga. Estas tecnolo-
As revoluções tecnológicas e industriais são, nessa
gias, que vinham sendo gestadas nas décadas de 1970
visão, um elemento típico da acumulação de capital.
e 1980, agora propiciaram também um salto em outras
Antes que os estudos mais detalhados permitissem a
áreas, em particular as biotecnologias. Cláudio Katz,
associação entre ondas de inovações técnicas e ciclos
que se apoia nas pesquisas de Freeman e Louçã, afir-
de acumulação, os historiadores tendiam a unificar as
ma que “a revolução da microeletrônica atual e sua
81
aquiagora
82
extensão às telecomunicações, à computação e às
putador, da internet e dos equipamentos a ele associa-
redes apresenta muitos parentescos [econômicos]
dos, tanto nas empresas como entre indivíduos.
com as quatro mudanças anteriores. Se atribuímos à
Ela exige, assim como também o fizeram no pas-
internet um papel análogo ao cumprido pela navega-
sado a ferrovia, a eletricidade e a economia do auto-
ção, a ferrovia, o telefone ou o avião, existe uma
móvel e do petróleo, uma nova infraestrutura, agora de
quinta área de comparação no plano das comunicações.
comunicações: telefonia e transmissão de dados global,
Em geral durante as revoluções tecnológicas se regis-
provedores, cabos, fibras óticas etc. Esta infraestrutu-
tram grandes avanços nos meios de circulação de
ra de transmissão de dados interage com e alavanca as
mercadorias, de capitais e da força de trabalho e nos
estruturas anteriores (telefone, rádio, televisão), par-
instrumentos de comunicação humana”.
ticularmente na área de serviços, potencializando a
A revolução nas tecnologias da informação e das
indústria cultural já estabelecida e viabilizando uma
comunicações, como usualmente os economistas se
revolução organizativa e produtiva no capitalismo, com
referem a estas transformações, parece, todavia, ser
difusão da automação por muitos setores.
qualitativamente diferente das revoluções anteriores.
A internet cria a possibilidade de deslocalização
Isso porque ela tem duas dimensões bem distintas. A
dos processos produtivos mantendo o controle centra-
primeira é aquela ligada ao estabelecimento de uma
lizado, alterando bastante os métodos de administração
infraestrutura de informação e comunicação e a possi-
e gestão do capital: não é mais necessário concentrar
bilidade de generalização do acesso a ela – e nisso ela
os trabalhadores em grandes unidades de produção. As
constitui um ramo “normal” da economia capitalista,
empresas se deslocam para onde os trabalhadores estão
submetido aos mesmos critérios do automóvel, dos
menos organizados. A deslocalização afeta também o
eletrodomésticos ou da geração de energia elétrica.
setor de serviços e forma o novo infoproletariado, com
Deste ponto de vista, o seu insumo central é o chip.
a proliferação de outsourcings destinados a prestação
Assim, ela é, como todas as outras antes, uma revolução
de serviços de telemarketing, contabilidade etc.
industrial. Cria novos setores produtivos, fábricas de
Mas temos uma segunda dimensão, muito distinta,
computadores, monitores, periféricos, celulares, tele-
deste processo, vinculada ao uso desta infraestrutura
visores sofisticados, scanners, DVDs, câmaras, filma-
na produção e distribuição do conhecimento pela so-
doras e todos os aparelhos digitais. Ela é movida pela
ciedade (informação, ciência, arte, cultura). E aqui temos
produção de chips cada vez mais rápidos e com maior
uma ruptura de qualidade com as revoluções anteriores,
capacidade de processamento e redes com capacidade
já que o conhecimento passa a ser o insumo central de
de transmissão de dados cada vez maior. Este novo ramo
boa parte da dinâmica social. Diferente das anteriores,
industrial promove a difusão, no tecido social, do com-
a onda de inovações técnicas em curso nos conduz para muito além da indústria (neste sentido, o termo revolução “tecnológica” é um pouco menos impreciso do
As empresas se deslocam para onde os trabalhadores estão menos organizados
que “industrial”). De fato, a dimensão industrial é a menos decisiva. Porque os computadores são máquinas universais de processamento de informações, ampliando enormemente a capacidade humana de operar com estas informações, desmaterializadas pela digitalização e potencialmente acessíveis, quase sem custos, para todos os indivíduos. Isso introduz uma dinâmica potencialmente desmercantilizadora no capitalismo. O digital produz o barateamento dos custos dos bens culturais, informação e entretenimento, bem como
dos custos e possibilidades da pesquisa científica. As
Manual de autodefesa intelectual, 2015
corporações da indústria cultural, farmacêutica ou de software resistem a estas tendências desmercantilizadoras e aferram-se à defesa da propriedade intelectual. Mas ela perde o sentido que tinha como remuneração do criador e se transforma em um pedágio que a população tem que pagar aos monopólios dessas corporações – ao custo de não terem acesso livre a medicamentos essenciais pelos seus altos preços ou à produção cultural. Estão hoje dadas as condições para a desmercantilização radical de todas as áreas relacionadas ao conhecimento, a cultura e a pesquisa e para o estabelecimento de novos espaços de gratuidade. As normas de propriedade capitalista – que faziam sentido para medir as formas de riqueza industrial – perdem sua funcionalidade para alocar os recursos da sociedade e estimular a produtividade do trabalho quando o conhecimento científico da sociedade (aquilo que Marx chamou nos Grundrisse de “General intellect”) se transforma em uma força produtiva fundamental, tornando urgente libertar a ciência e a técnica da tutela do capital. A organização da economia a partir da lei do valor se torna cada vez mais irracional e destrutiva. É essa segunda dimensão que é destacada pelos que enfatizam a dimensão emancipadora das tecnologias digitais, de Manuel Castells aos seguidores de Toni Negri, teóricos do capitalismo cognitivo. O digital oferece ferramentas para a extensão das consultas democráticas, a mobilização colaborativa, a descentralização dos processos produtivos. A combinação das duas dimensões impulsiona aquilo que David Harvey chama de uma nova onda de cer menor e intensifica as relações sociais, modificando profundamente a percepção subjetiva dos processos nos quais as pessoas estão inseridas. Da economia de mercado para a sociedade de mercado: questões de poder e subjetividade Como em toda onda de inovações tecnológicas do passado, a nova constelação de tecnologias digitais é difundida no tecido social nos marcos das relações de
Fotos Felipe Stucchi e Camila Martins
compressão do tempo-espaço, que faz o mundo pare-
aquiagora
O capitalismo tornava-se uma sociedade do espetáculo e o carro e a televisão eram mercadorias espetaculares por excelência
global e local em benefício do capital. Esse é um fundamento central de uma posição crítica à adesão ao neoextrativismo e ao neodesenvolvimentismo por parte da esquerda latino-americana, de Lula a Chávez, bem como de uma crítica à lógica produtivista de certas variedades do marxismo. Ainda no terreno das relações de poder, as tecnologias digitais viabilizaram a financeirização global do capital e a possibilidade de alocar cada parcela de mais-valia realizada em qualquer lugar, de qualquer forma, no circuito financeiro de acumulação. François Chesnais tem razão ao chamar a atenção para a financeirização do capital, para o estabelecimento de um capitalismo de dominância financeira. A discordância entre as muitas temporalidades concatenadas pelo capital se torna mais evidente e mais caótica, pelo
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poder pré-existentes. E são utilizadas para deslocamen-
menos para a população que não está desterritoriali-
tos ulteriores das relações de poder. Isso tem um im-
zada e não pode acompanhar os fluxos do capital. Essa
pacto decisivo na relação entre o capital e o trabalho.
discordância entre processos de desterritorialização
Até os anos 1990, a metáfora do Manifesto Comu-
do capitalismo de fluxos globais e suas elites cosmo-
nista, do capitalismo criando seu próprio coveiro pa-
politas e a manutenção da territorialidade das popu-
recia ser correta: a expansão do capital em grandes
lações por elas geridas foi bem sublinhada por Bauman,
unidades de produção gerava enormes contingentes
inclusive nos seus aspectos morais, de forma que não
de proletários, ampliando sua força social ao concen-
necessito me deter sobre esta segunda mudança cen-
trá-los em “grandes exércitos”. Mas agora isso não é
tral na natureza do capitalismo atual.
necessariamente verdade. O capital pode descentrali-
Porém a terceira e mais avassaladora dessas mu-
zar a produção mantendo centralizado o comando, o
danças na forma do capitalismo é a dimensão subjeti-
que permite combinar processos de trabalho dos mais
va. O capitalismo em suas diferentes fases (como todos
diferentes estágios da história do capitalismo em uma
os modos de produção e civilizações antes dele) pro-
mesma cadeia produtiva, como bem destacou Naomi
move um processo social de subjetivação. A criança é
Klein no seu No logo: as grifes mais sofisticadas ven-
socializada a partir de seu nascimento, estruturando
dem produtos do trabalho escravo, um celular da Apple
sua personalidade e formando seus valores. Já no sé-
pode conter peças feita com jornadas de trabalho de
culo XIX Marx havia denunciado o mecanismo do
15 horas diárias de trabalhadoras asiáticas pouco qua-
fetichismo da mercadoria, mas ele não tinha aderência
lificadas. Essa é, na minha opinião, a primeira grande
geral enquanto sua única dimensão forte para a maio-
mudança na natureza do capitalismo contemporâneo,
ria da população era a venda da força de trabalho. Um
pelo menos tão decisiva como a combinação do for-
sindicalismo bem organizado poderia atenuar subs-
dismo com o keynesianismo para criar o consumo de
tancialmente seus efeitos sobre a consciência social.
massa de bens duráveis. Para a esquerda produtivista,
A combinação de fordismo (mercadorias industriais
mais capital significava mais progresso, maiores forças
mais baratas), keynesianismo (alguma redistribuição
produtivas e fortalecimento social do sujeito (social)
de renda), mídia de massa (principalmente a televisão)
da revolução. Isso simplesmente não é mais verdade
e publicidade generalizada já representou uma enor-
e altera substancialmente a correlação de forças social
me extensão da sociabilidade capitalista para além do
mundo do trabalho – dando corpo ao que foi chamado de sociedade de consumo de massas. O capitalismo tornava-se uma sociedade do espetáculo e o carro e a televisão eram, na análise de Guy Debord, as mercadorias espetaculares por excelência, promovendo a separação entre as pessoas e novas formas de alienação nesse estágio do capitalismo. Mas ainda havia resistência social organizada pela esquerda, que lutava contra os novos mecanismos de alienação e exclusão, tão destacados nas lutas emancipatórias dos anos 1960 e 1970. Mas a passagem para os anos 1980 quebrou esta resistência. Desde então, sociólogos, historiadores e psicólogos sociais (Lasch, Ehrenberg, Dufour, Roudinesco) vem denunciando como isso promove estruturas de personalidade narcisistas e fragilizava o ego dos indivíduos. O que ocorreu com a combinação e difusão genera-
sociedade de mercado que envolve e mercantiliza todas
lizada – nos marcos do capitalismo neoliberal, financei-
as dimensões da existência humana. Essa dimensão
rizado e globalizado, depois da década de 1990 – da
essencial das tecnologias digitais contemporâneas que
internet com o celular foi uma enorme mutação na so-
pode ter uma projeção duradoura, comprometendo os
ciabilidade de base no capitalismo, uma transformação
projetos emancipadores que constituíram o horizonte
radical no processo social de subjetivação das pessoas
normativo da modernidade desde o século XVIII.
desde a infância, com uma forte dimensão regressiva. A televisão saiu da casa das pessoas e o seu princípio es-
A esquerda, entre o “peer-to-peer” e a
petacular passou a acompanhar as pessoas 24 horas por
horda de zumbis hiperativos
dia no smartphone, associado à uma dimensão dialógi-
As discussões da virada do século sobre a internet,
ca, aparentemente horizontal, que dá aos participantes
o software livre e o mundo digital destacavam os pon-
das redes digitais uma sensação de liberdade inebriante,
tos de convergência entre a esquerda e a direita liber-
normalmente decorrente do voyeurismo. Mas esta li-
tarista: a “mobilização colaborativa” propiciada pela
berdade é, de fato, a liberdade do consumidor sob o
internet, o “modo de produção peer-to-peer”, a apro-
controle do Facebook ou do Google.
priação do processo produtivo pelo software livre etc.
Todas as dimensões da vida foram mercantilizadas.
Mas já então também era evidente a apropriação das
Bourdieu chamou esta dimensão totalitária do capita-
potencialidades desta tecnologia por corporações, eli-
lismo neoliberal de programa de destruição da civili-
minando a privacidade e utilizando a rede para o con-
zação. Do conhecimento ao genoma, da afetividade aos
trole e o estímulo ao consumo, fortalecendo os meca-
bens comuns globais (como o ar, a água e os mares),
nismos de propriedade intelectual (com os DRMs),
tudo se torna mercadoria, que você pode adquirir como
incorporando o software livre nas cadeias produtivas
consumidor. A potencialização da sociedade de con-
das grandes empresas de tecnologia etc.
sumo vai acompanhada de um enfraquecimento dos
Hoje, depois da passagem da web 2.0 ao Facebook,
laços associativos, da superficialização dos vínculos
do Twitter ao WhatsApp, com o email se tornando
afetivos, do primado das relações instrumentais com
obsoleto, com o Facebook provocando crises familiares
as pessoas e com o mundo. Já não vivemos simples-
e prisões, com Julian Assange vazando os e-mails do
mente em uma economia de mercado, mas em uma
Departamento de Estado e Edward Snowden o esque-
85
aquiagora ma de vigilância global gerido pelo NSA com a cum-
Manual de autodefesa intelectual, 2015
plicidade das grandes corporações de informática, esse equilíbrio algébrico parece ter se dissipado. A Primavera Árabe e o Occupy Wall Street são contrapontos que confirmam a tendência dominante e não ao revés. O que mais parece pesar é a profundidade das mudanças no processo social cotidiano de subjetivação – ou, para usar uma fórmula mais precisa, que tomo de Roudinesco, da dessubjetivação decorrente do aprofundamento da individualização em detrimento da subjetivação (ou seja, as pessoas deixam de atuar como sujeitos e se tornam apenas indivíduos, mônadas encapsuladas jogadas na vida). As tecnologias digitais se tornam cada vez mais centrais para produzirem individualidades solipsistas – termo filosófico que poderíamos, de forma muito simplificada, associar ao egoísmo – em sintonia com a concorrência de todos contra todos na sociedade de mercado globalizada. Uma dimensão central disso, completamente decisiva, é a do tempo. Para Daniel Bensaïd, a temporalidade esquizofrênica é uma característica central do capitalismo na medida em que a desmedida do valor cresce e a discordância dos tempos se acentua. Nunca há tempo para nada, para o outro, para o coletivo, para os prazeres da vida improdutiva. Mas há todo o tempo para mergulhar na rede, para mergulhar nas ondas de Narciso, para reagir mecanicamente ao estímulo sempre frenético que vem do celular. É uma temporalidade que suprime a história na medida em que suprime os vínculos entre gerações, em que faz do passado um pastiche a cada momento recriado pela indústria cultural. É um eterno presente, bem analisado por Debord. Fotos Felipe Stucchi e Camila Martins
As redes ou mecanismos digitais podem ser utilizados como complemento ou facilitação dos vínculos pessoais tradicionais de amizade, afeto, família ou mobilização política (quando não são utilizados para simplesmente fazerem as pessoas trabalharem mais). Mas, nos mecanismos amplos das redes, as pessoas deixam de fazer parte de cadeias de vínculos fortes e significativos para se inserirem em estruturas altamente manipuladas e superficiais de espetacularização e promoção do narcisismo. A alteridade é banida em detrimento da relação com os mesmos, com os iguais. Quando o con-
flito emerge no mundo dos amores líquidos, ele pode ser solucionado apertando a tecla Del. As redes podem ser utilizadas para a política progressista, de um lado, como tecnologias de informação e comunicação; elas podem, com equipamentos e condições adequadas substituir com vantagens as viagens e reuniões presenciais – mas isso também é verdade para as empresas. De outro lado, como ferramenta de mídia, é possível atingir um número de pessoas que antes não podia ser alcançado com as mídias tradicionais. Isso pode ser estendido para muitas áreas de interesse – da ecologia à defesa de direitos. Mas a direita faz o mesmo. Além disso, estudos de sociologia das redes têm
A temporalidade esquizofrênica suprime a história e faz do passado um pastiche recriado a todo momento pela indústria cultural
alertado para as novas hierarquias que se estabelecem sob a suposta horizontalidade das redes. As redes funcionam na medida em que são alimentadas e dinamizadas por núcleos facilitadores ou, na linguagem dos especialistas, pelos nós. Prevalece nas redes uma dinâ-
Não se trata de contrapor à dinâmica do mundo
mica aparentemente igualitária e meritocrática, enquan-
digital um padrão normativo de sociabilidade presen-
to elas funcionam como mecanismos de informação
cial. Este novo faz parte do mundo em que vivemos
entre iguais. Mas quando se trata de tomar decisões, os
e teremos que conviver com ele, ou pelo menos com
fóruns são apropriados pelos que dominam os códigos
algumas formas dele. Mas uma coisa é utilizar criti-
dos debates ou os que tomam mais iniciativas, por
camente as tecnologias disponíveis, a outra é ignorar
vezes contra a posição da maioria. Redes não fazem
toda a regressividade presente em seu uso concreto.
sínteses, mas sim pessoas sentadas juntas com fre-
A hiperconectividade em um mundo em que a busca
quência, argumentando e contra-argumentando.
desenfreada do lucro tenha sido superada e o sentido
Tomando o digital mais amplamente em sua re-
da vida esteja na busca da gratificação de seres huma-
lação com o consumismo, há uma analogia interes-
nos integralmente sociais inseridos em uma nature-
sante. Os mitos são sempre reveladores dos anseios
za relativamente preservada em seus elementos cons-
e angústias de uma época. Do Frankenstein ao Drá-
titutivos (biodiversidade, paisagens, ciclos vitais, a
cula, os mitos modernos falam da situação das pes-
dimensão corpórea do erótico e a dimensão gratuita
soas em diferentes estágios do capitalismo. E nenhum
do lúdico...) é uma coisa. A hiperconectividade da
mito se revelou mais pertinente para a época da de-
horda de zumbis hiperativos estimulados pelo con-
cadência em que vivemos do que aquele dos zumbis.
sumo e pelo narcisismo, modulados pelo capital, é
As hordas de mortos-vivos sem identidade reagem à
outra completamente diferente.
vida procurando aniquilá-la, procurando aniquilar a
A construção de cada um de nós como sujeitos
alteridade e a diferença. Alguns chamam a sociabili-
conscientes, críticos e autônomos no mundo – par-
dade do Facebook de produção de hordas de zumbis
te de sujeitos coletivos e dotados de sentido e signi-
hiperativos, reagindo freneticamente aos estímulos.
ficado profundo em nossas vidas – é uma dura bata-
É o mundo do hiperconsumo neoliberal, com as pes-
lha individual e coletiva. E a maneira como lidamos
soas reagindo ao último estímulo da moda – sempre
com as tecnologias digitais e resistimos a nos tornar-
um novo nicho de mercado –, à última mensagem no
mos parte da horda hiperativa é hoje uma dimensão
celular, ao último post.
importante dela.
87
aquiagora » por Thiago B. Mendonça cineasta e membro do coletivo Zagaia
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Cinema na encruzilhada Em cena do filme Vento do Leste1 encontramos o cineasta Glauber Rocha de braços abertos em meio a uma encruzilhada. Ele canta o refrão de uma canção repetido muitas vezes, tal qual um mantra: “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”. Uma europeia grávida, câmera de 16mm. a tiracolo, pergunta: “Perdoe-me camarada, que lhe interrompa em sua luta de classes tão importante, mas qual a direção do cinema político?” Glauber, em uma fala cotidiana, como se mostrasse a rua para um transeunte perdido, responde apontando para um lado: “Para lá é o cinema desconhecido, o cinema da aventura”. Depois aponta para o outro: “Praqui é o cinema do terceiro-mundo, é um cinema perigoso, divino e maravilhoso.” Apresenta este cinema que se forma no combate à opressão: “o cinema da repressão, da opressão fascista, do terrorismo (...) É um cinema que vai construir tudo: a técnica, as casas de projeção, de distribuição, os técnicos.” 1
Vento do Leste (1969 França) Direção Grupo Dziga Vertov (Jean-Luc Godard, Jean-Pierre Gorin)
A mulher caminha pela estrada do terceiro-mundo,
mesma.”3 Sem tirar a importância do cinema novo
depois recua, e pega a estrada oposta. Os caminhos em
questiona a homogeneidade social do movimento, e
aberto para um cinema emancipatório... A cena é bela
conclui que esta produção poderia ter ido muito mais
por mostrar dialeticamente o impasse na escolha entre
longe não fosse o golpe de 1964 que acelerou seu fim.
caminhos diversos: o de Godard - da aventura e des-
No vazio de ideias presente no cinema contempo-
construção - o de Glauber - de construir em meio ao
râneo localizemos para trás e adiante estes mestres
fascismo. A personagem sente o peso da complexidade
reverenciados e ignorados. Passado quase meio século
das lutas. Há escolhas a serem feitas, mas a primordial,
os novos “mentores” do cinema nacional querem nos
escolher o cinema político, já fora tomada.
fazer crer que as discussões acima apresentadas carre-
Pouco antes desta cena o filme questiona a postu-
gariam um arcaísmo latente, e teriam sua importância
ra de um certo cinema progressista que diz combater
delimitada pelo período histórico em que se colocaram.
o imperialismo Hollywoodiano na imagem, mas que o
O cinema dominante no Brasil apresenta-se divi-
faz apenas superficialmente, ao não enfrentar a opres-
dido em dois polos que dividem de forma desigual as
são e exploração como um problema estético central.
verbas públicas, fonte primordial e praticamente úni-
Só é possível fazer um cinema revolucionário encaran-
ca de financiamento. De um lado o cinema “de mer-
do este problema de frente. Questiona “um cinema que
cado”, que embora medíocre e ocupando uma fatia
se julga liberado” e complementa: “Um cinema droga-
pequena das salas de cinema detêm a maior parcela
do. Um cinema sexual. Um cinema que diz ter se li-
do dinheiro disponível. Estão neste campo os filmes
bertado pela poesia. Um cinema para qual nada é tabu,
fascistas de ocupação das favelas, as globochanchadas,
a não ser a luta de classes.”
as produções das grandes corporações publicitárias e
Nesta mesma época Paulo Emílio escrevia o seminal
os cineastas “internacionalizados” com suas co-pro-
ensaio “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”,
duções hollywoodianas. Aqui o que está em jogo é o
onde fazia um balanço do cinema brasileiro até o final
dinheiro como valor absoluto. A mercadoria como
dos anos 60 à luz do conceito de subdesenvolvimento,
regra. A ideia como exceção.
que para Paulo Emílio não é uma etapa de nossa for-
Do outro lado um conjunto de diretores que reali-
mação, mas um “estado”. O cineasta brasileiro, não
zam filmes para festivais e circuitos voltados para a
sendo parte das classes exploradas (o ocupado), também
classe média, onde são discutidos os valores, a sensi-
não se identifica com o ocupante: “Não somos europeus
bilidade e a visão de mundo deste extrato da socieda-
nem americanos do norte, mas destituídos de cultura
de. Na maioria das vezes, mesmo quando buscam
original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A peno-
discutir questões populares, o corpo e o imaginário
sa construção de nós mesmos se desenvolve na dialé-
que apresentam são os de seu grupo social.4 Estes
tica entre o não ser e o ser outro. O filme brasileiro
diretores pautam-se na maior parte das vezes pela
participa do mecanismo e o altera através de nossa
estética dominante no circuito “biscoito-fino” dos
incompetência criativa de copiar.”2 Paulo Emílio vê com
festivais internacionais e buscam participar de ofici-
bons olhos a juventude do cinema novo que “sentia-se
nas de aperfeiçoamento organizadas por corporações
representante dos interesses do ocupado e encarregada
e festivais estrangeiros que adequam as narrativas aos
de função mediadora no alcance do equilíbrio social. Na
interesses de seu público “especializado”. Os diretores
realidade esposou pouco o corpo brasileiro, permaneceu
que seguem esta linha acreditam que pensam o mun-
substancialmente ela própria falando e agindo para si
do para além dos localismos e dos limites do pensa-
A reflexão de Paulo Emílio segue atualíssima neste momento em que grande parte do novo cinema independente brasileiro pauta-se pelas “tendências” apresentadas nos grandes festivais internacionais. 3 Nota-se aqui como a ideia de conciliação de classes foi central no projeto do cinema novo brasileiro (e no pensamento e arte de nossa esquerda de um modo geral). Acredito que a crítica (ainda por fazer) sobre esta lógica de conciliação de classes e suas consequências é fundamental para um futuro projeto estético-político a ser construído. 4 Tal qual apontado por Paulo Emílio em Cinema: Trajetória no subdesenvolvimento sobre a geração do cinema novo. Definitivamente não aprendemos muito com a história... 2
89
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mento da periferia do capital: na verdade acabam por
diálogo cada vez mais extenso se faz presente entre os
reafirmar a condição de colonialidade e subserviência
realizadores contra-hegemônicos. É cada vez mais di-
que foi sempre tão característica de uma parcela con-
fícil ignorar suas existências e seu cinema passa a ser
siderável de nossa “inteligência”. Abraça este circuito
um problema a ser enfrentado ou abraçado pelos que
grande parte da crítica especializada, mergulhada na
controlam os circuitos estabelecidos.6 Este impasse
triste sina de buscar o último modismo estrangeiro
provocado pelo cinema contra-hegemônico coloca o
para justificar sua atividade.5 Legitimado pelos festi-
cinema nacional num lugar novo, com novos desafios
vais, muitas vezes comandados por eles mesmos,
e enfrentamentos. Há um lugar do imaginário a ser
formam um circuito fechado, onde são emissores,
disputado, descolonizado, desalienado. É necessário se
receptores, críticos, amigos, juízes e advogados. É um
colocar frente aos problemas da vida real, das pessoas
cinema narcísico, com pretensões de universalidade,
reais, de carne e osso. Não o povo idealizado, o povo
apartado do resto do país, tal qual um grande condo-
abstrato, romântico. Mas o povo vivo, usurpado, carre-
mínio simbólico, sempre ameaçado pelo outro que o
gando 500 anos de escravidão sobre os ombros, sub-
espreita pelo lado de fora do muro.
metido à um regime massacrante de trabalho e a ten-
A disputa entre estes dois grupos de realizadores
tativa cada vez mais eficaz de controle de sua cultura e
hegemoniza a discussão e constrói um todo onde, tal
tempo livre. É preciso afirmar um cinema popular que
qual dito em Vento do Leste, “nada é tabu, a não ser a
enfrente a cultura hegemônica e que não possa ser
luta de classes.” Mas nem tudo é dominado por esta
incorporado pelos interesses dominantes.
estéril dualidade. Uma nova cinematografia desponta
Há cinco décadas o cinema brasileiro é marcado
no horizonte, somada a velhos realizadores que sempre
pelo estigma da conciliação. Conciliação de classes
foram exceção à regra. Os contrapontos ainda não se
(imposta pelas classes abastadas e abraçada pela es-
colocam claramente como projeto coletivo, embora um
querda de classe média), conciliação de interesses (cujo sintoma mais cruel é a criação da Embrafilme por ex
Há cinco décadas o cinema brasileiro é marcado pelo estigma da conciliação. Conciliação de classes, conciliação de interesses, conciliação cultural.
-integrantes do cinema novo junto à ditadura civilmilitar), conciliação cultural (nas diversas tentativas de traçar uma experiência integrada entre populares e detentores do poder simbólico, cuja expressão máxima é o tropicalismo). O momento presente é de impasse, de horizontes nebulosos, mas também de ruptura. De busca por algo novo, que nos impõe romper com a lógica conciliatória, esta sim um arcaísmo, que nos faz abraçar mais a afetividade da linguagem do que sua efetividade.7 É chegado um novo tempo para o cinema brasileiro. Aprendendo com o passado, criando um novo presente. Nossa aurora virá.
5 A importação de modismos não é característica exclusiva da crítica de cinema. Roberto Schwarz já apontava tendências semelhantes na crítica literária em diversos ensaios desde os anos 70: “Tem sido observado que a vida intelectual no Brasil parece recomeçar do zero. O apetite pela produção recente dos países avançados muitas vezes tem como avesso o desinteresse pelo trabalho da geração anterior, e a consequente descontinuidade da reflexão. Conforme notava Machado de Assis em 1879, “o influxo externo é que determina a direção do movimento.” Roberto Schwarz, “Nacional por subtração” in Que horas são, São Paulo, Cia. das Letras, 1987. 6 É necessário, por uma questão estratégica (mas também material), que os cineastas contra-hegemônicos disputem estes circuitos. Mas seria um erro ter esta disputa como projeto central. É necessário que outros circuitos e projetos de circulação, crítica e reflexão sejam criados. Há muito ainda para avançar neste ponto. 7 Para a turma do afeto: os cineastas contra-hegemônicos também possuem ”afetos”. Estes porém buscam a liberdade, a transformação, a emancipação. Trata-se, portanto, de contrapor ao afeto burguês o afeto revolucionário.
» por Douglas Belchior Professor, blogueiro, militante do movimento negro Uneafro-Brasil e membro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
Reduzir a maioridade penal para quê mesmo?
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Desde outubro de 2014, com a eleição de uma maioria conservadora e raivosa para o Congresso Nacional, já se vislumbrava dias difíceis no que diz respeito à defesa dos direitos sociais e humanos no Brasil. Com a eleição de Eduardo Cunha, velha e articulada raposa política, à presidência da Câmara, o que se esperava ruim tornou-se muito pior. Não restava dúvida de que entre todos os ataques aos direitos dos trabalhadores, com certeza a suculenta pauta da redução da maioridade penal seria alçada à prioridade. E foi.
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A agenda de retrocessos em direitos históricos
vadamente, a juventude seja muito mais o alvo da
fora cegamente encampada por ampla maioria dos
violência, sendo ela a mais atingida por homicídios,
congressistas que, feito serpentes nascidas de um
e não o contrário. Não importa que os mais sérios
ovo cuidado e chocado pelo próprio governo petista
especialistas das áreas da neurociência, da psicolo-
nos últimos 13 anos, se voltou ruidosamente contra
gia ou das ciências humanas atestem que o ser hu-
ele. Mas nenhuma de suas investidas conservadoras
mano entre 16 e 18 anos está em plena formação/
foi tão popular quanto a proposta de redução da
desenvolvimento e logo, ainda não está apto o sufi-
maioridade penal, a partir do trâmite da Proposta de
ciente para responder como adulto, mas sim, deveria
Emenda Constitucional 171/93.
responder a partir de leis especiais, por seus atos.
Sim. O debate sobre a redução se instalou como
Pouco importa se todas as pesquisas sérias, reco-
nunca. Esse fato, em si, não seria necessariamente
nhecidos especialistas e organizações de peso tais
ruim. Fosse a provocação do debate nacional sobre a
como Unicef, CNBB, OAB, OEA, entre outras, afir-
redução calçado sob bases de racionalidade, respon-
mem que leis penais são ineficazes ao combate à
sabilidade e verdade, seria ótimo! Enfrentar e reco-
violência e se coloquem contrários a medida. Pouco
nhecer o problema da violência, da impunidade, da
importa que os países mais seguros do mundo te-
ineficácia das leis e das obrigações do Estado brasi-
nham a marca da maioridade penal em 18 ou mais
leiro, bem como a demanda por justiça, a partir de
anos ou que, pelo mundo afora, a experiência da re-
dados da realidade e à luz de estudos qualificados e
dução da maioridade penal não tenha dado certo.
comparativos sensatos, seria lindo! Estudar, refletir
Pouco importa o fato de o Brasil responsabilizar pe-
e perceber os elementos causadores da situação de
nalmente os adolescentes já a partir dos 12 anos,
vulnerabilidade que condenam jovens à criminalida-
uma das menores marcas do mundo ou de, ao mes-
de no Brasil poderia significar um passo importan-
mo tempo ter no ECA (Estatuto da Criança e do
tíssimo na busca por soluções reais de muitos pro-
Adolescente) e no SINASE (Sistema Nacional de
blemas crônicos em nosso país. Só que não! O que
Atendimento Socioeducativo), leis reconhecidas in-
vivemos até aqui foi exatamente o contrário.
ternacionalmente como as melhores elaborações
Esqueçam os argumentos qualificados. Não im-
para o trato de crianças e adolescentes, mas que ja-
porta que apenas 1% dos homicídios no Brasil seja
mais foram implementadas a contento por aqui. Es-
cometido por menores de 18 anos ou que, compro-
queçam a racionalidade, esqueçam as boas inten-
Qual criminoso é mais perigoso: o político corrupto que some o dinheiro do hospital e da creche, ou o “menor” do farol?
ções, esqueçam a ideia de compromisso com o bem
dos pela grande mídia o tempo todo e há muitos anos
da coletividade, com o futuro e com o país. Nada
no imaginário coletivo, que reafirma: há pessoas que
disso está presente no debate proposto pelos grupos
colocam a sociedade em risco. Precisamos nos ver
que defendem a redução da maioridade em especial
livres delas. Se possível, matá-las. Ou ao menos
nos grandes meios de comunicação e no Congresso.
prendê-las, quanto mais e quanto antes, melhor.
Na verdade, o que está por trás da defesa da redução,
As forças progressistas e os movimentos de defe-
para além do surf no populismo irresponsável e dos
sa dos direitos humanos estão encurralados. A força
interesses espúrios caracterizados pelas iniciativas
do setor mais conservador no Congresso Nacional se
de privatização do sistema carcerário brasileiro, é
mostra tão grande a ponto de ignorar as próprias re-
algo tão perverso quanto comum e permanente na
gras e reverter, ilegalmente, suas poucas derrotas.
história do Brasil: o controle e a opressão, pelas elites
Isto ficou claro no golpe imposto por Eduardo Cunha
racistas, através do Estado, ao povo negro e pobre.
no dia seguinte à votação da PEC 171, em 30 de junho.
O Brasil tem a 4ª maior população carcerária do
Vinte e quatro horas depois de derrotado, o presiden-
mundo. Quase 100% dos presos são pobres. Mais de
te sugeriu proposta aglutinativa e finalmente aprovou
60% são negros. A maioria é jovem de até 30 anos e
a PEC em primeira votação. Na Câmara a disputa pa-
vem de famílias da classe trabalhadora. Prender mais
rece perdida. Do Senado espera-se, na melhor das
pessoas, e cada vez mais jovens, definitivamente não é
hipóteses, a vitória da tese do aumento do tempo de
a solução para os problemas da violência e dos crimes.
internação, coisa que na prática, tem efeitos similares
“Lugar de bandido é na cadeia!”. Quem discorda?
à redução. E no Supremo Tribunal Federal, a incógni-
Mas são os jovens, negros e pobres os grandes crimi-
ta: agirão com a dignidade esperada e darão à possível
nosos no Brasil? Qual a diferença entre o empresário
aprovação da PEC 171 tratamento adequado, conside-
ou o banqueiro que explora o trabalhador e o jovem
rando que há desrespeito à cláusula pétrea constitu-
que “faz o corre” na biqueira do seu bairro? Qual cri-
cional? Saberemos em poucos meses.
minoso é mais perigoso: o político corrupto que some
Até lá, cabe a nós resistir e organizar as ruas.
o dinheiro do hospital e da creche, ou o “menor” do
Afinal, a redução da maioridade penal é, na prática, o
farol? Mas para quem é feita a lei que pune e aprisiona?
aprofundamento da política de sempre, que pressu-
A aprovação da redução da maioridade penal colocará em prática valores presentes e retroalimenta-
põe prender, torturar e matar negros e jovens filhos da classe trabalhadora. E mais nada.
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Mães de Maio e os crimes de Estado Durante o mês de maio de 2006 policiais e grupos de extermínio ligados à Polícia Militar do Estado de São Paulo promoveram um dos maiores escândalos da história brasileira. Em uma “onda de resposta” ao que foi chamado na grande imprensa de “ataques do PCC” (que deixaram como saldo 59 agentes públicos mortos), foram assassinados 505 civis, segundo dados oficiais. A imensa maioria – formada por jovens negros e pobres vivendo em periferias – foi executada sumariamente.
O movimento independente Mães de maio é uma rede de mães, familiares e amigos de vítimas da violência do Estado brasileiro principalmente da Polícia -, formado no estado de São Paulo em decorrência dos Crimes de Maio de 2006. Foi a partir da dor e do luto gerado pela perda de nossos filhos, familiares e amigos que nos encontramos, nos reunimos e passamos a caminhar juntas. Nossa missão é lutar pelo direito à verdade, à memória, à justiça e à reparação plena para todas as vítimas da violência contra a população pobre, negra, indígena e periférica, e contra os movimentos sociais brasileiros, de ontem e de hoje. Verdade, justiça e reparação não apenas para os mortos e desaparecidos dos crimes de maio de 2006 ou dos crimes de abril de 2010, mas para todas as vítimas do massacre contínuo que o estado pratica historicamente no país. Nosso objetivo maior é construir, na prática e na luta, uma sociedade realmente justa e livre. Assim como aconteceu durante a ditadura civil-militar brasileira, e foto fernando kinas
tantos outros episódios violentos cometidos pelo Estado, os cri-
Mães de maio no encontro Arte, cultura e ditadura na sede da Kiwi Companhia de Teatro, 2014
mes de maio de 2006 cometidos por agentes policiais também permanecem impunes. Desde o nosso surgimento, conseguimos dar alguns pequenos passos. E, talvez, o principal deles tenha sido justamente dar o verdadeiro nome aquilo que a grande imprensa e setores da elite brasileira insistiam em simplesmente ocultar. Uma sociedade realmente democrática não se constrói sem encarar todo o seu passado, sem assimilar toda sua verdade histórica. Sabemos que no Brasil há uma blindagem pesada feita pelas elites civis e militares para isto não acontecer. Entretanto, diante de todo este poder opressivo imposto pelo dinheiro, pelas mídias e pelas armas, nós não nos intimidamos! Uma das principais bandeiras do nosso movimento é o desarquivamento e a federalização dos processos, o devido julgamento e a punição dos responsáveis pelos crimes de maio de 2006 e de abril de 2010 – cujas investigações, todas, foram simplesmente arquivadas. Assim, nossa luta se insere numa longa tradição de resistência dos oprimidos e oprimidas deste país, com os quais nos solidarizamos. Mães de Maio
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aquiagora
ontem...
MAIS DE 800 MIL PESSOAS NA “MARCHA DA VITÓRIA” Impressionante massa humana transformou a Marcha da Família, Com Deus Pela Liberdade na maior manifestação democrática jamais vista no Brasil e que serviu como demonstração esplêndida do repúdio do povo ao comunismo.
jornal o globo, 16 de março de 1964
... hoje
democracia tem novo 15 de março Em todo o país, 2 milhões vão às ruas contra o governo. Surpreendido, Planalto reage com promessas. Panelaço nas cidades vira resposta à fala de ministros.
jornal o globo, 16 de março de 2015
aquiagora
Lua Barbosa
26.06.1989 – 27.06.2014
Luana Carlana de Almeida Barbosa foi assassinada pela Polícia Militar do Estado de São Paulo em uma blitz de trânsito na cidade de Presidente Prudente. O cabo Marcelo Coelho, que atirou na atriz, foi absolvido em julgamento militar. Em 2014, pelo menos 816 pessoas foram assassinadas pela PM paulista, a maior parte formada por jovens, negros e pobres. A violência de Estado não é ocasional, não é acidental, não é excepcional. É uma política deliberada de brutalidade, intimidação e controle da população.
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aquiagora Expediente da revista contrapelo – Caderno de estudos sobre arte e política, ano 3, número 2, julho de 2015
Coordenação editorial: Fernando Kinas Jornalista responsável: Tatiana Merlino Mtb 64853 SP Conselho editorial: DANIELA EMBÓN, Fernanda Azevedo, Fernando Kinas e Luiz Nunes Colaboradores desta edição: Adailtom alves teixeira, michael löwy, josé correa leite, thiago b. mendonça, douglas belchior, mães de maio
Revisão: kiwi companhia de teatro Projeto gráfico: Camila LisbÔa Capa: montagem sobre foto shutterstock Produção: Luiz Nunes Assistência de produção: Daniela Embón Responsável pela publicação: Kiwi Companhia de Teatro www.kiwiciadeteatro.com.br | kiwiciadeteatro@gmail.com Comentários, sugestões e críticas são bem-vindos. As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade exclusiva do(a)s autore(a)s. Os textos podem ser citados livremente, solicitamos apenas a menção da fonte. TIRAGEM: 1.000 exemplares | IMPRESSÃO: Pancrom | distribuiçÃO gratuita
Ficha técnica manual de autodefesa intelectual Roteiro e direção geral: Fernando Kinas 98 Elenco: Fernanda Azevedo, maíra Chassereaux, maria carolina dressler, vicente latorre Músicos: eduardo contrera e elaine giacomelli Cenário: Julio Dojcsar Iluminação: Heloísa Passos Figurino: Madalena machado Vídeos: Carolina Abreu, Filipe Vianna (colaboração de Maysa Lepique) Direção musical e composições originais: Eduardo Contrera Assessoria de iluminação, operação de luz e som: clébio de souza (Dedê) Direção de produção: Luiz Nunes Assistência de produção: Daniela Embón Programação visual: Camila LisbÔa Assessoria de imprensa: Eliane Verbena Assessoria de comunicação: paulo fávari
manual de autodefesa intelectual estreou no dia 9 de abril de 2015, no sesc belenzinho, São Paulo.
issn 2446-7170
aquiagora
Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie. E, assim como ele não está livre da barbárie, assim também não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um vencedor a outro. Por isso, o materialista histórico, na medida do possível, se afasta dessa transmissão. Ele considera como sua tarefa escovar a história a contrapelo. Walter Benjamin, As teses sobre o conceito de história (1940).
issn 2446-7170 98
realização:
Projeto apoiado pelo Programa de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo 2014/2015