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ABDIAS nascimento,

Raízes n. 2: Tributo a Aguinaldo Camargo, 1988.

Foto: © Museu de Arte Negra/Ipeafro.

ANOS ANTES DA RECENTE E TARDIA VALORIZAÇÃO DA ARTE NEGRA NOS CIRCUITO OFICIAIS, ABDIAS NASCIMENTO LUTAVA POR ELA. POETA, ARTISTA, ESCRITOR E JORNALISTA, ABDIAS DEIXOU UM AMPLO E VALIOSO LEGADO, ARTÍSTICO E POLÍTICO, QUE É REVISTO POR UMA SÉRIE DE EXPOSIÇÕES EM INHOTIM

Por Alecsandra Matias De Oliveira

Historicamente, a ideia de “Brasil civilizado” está relacionada ao desejo da “raça melhorada” – fruto da política do embranquecimento e de imigração –, ou, ainda, relaciona-se ao “mito da democracia racial” – um estado de plena equidade entre as pessoas, independentemente de cor ou etnia. Na verdade, são dois modos de enfrentar a questão negra que ocultam, ou pelo menos, dissimulam as dores da escravidão.

Porém, o apagamento das memórias não elimina os conflitos sociais; eles existem, persistem, ferem. A consciência e a adoção de posturas antirracistas só acontecem quando há o embate – quando a “calmaria das almas mortas” é convulsionada. Assim, a biografia de Abdias do Nascimento (1914-2011) – um homem negro, neto de negros escravizados, filho de um sapateiro e de uma doceira – move o atual ativismo político e diz tanto sobre as pautas que estão nas ruas.

Jornalista, dramaturgo, poeta e artista visual, Abdias do Nascimento organizou grupos de militância política e ações educativas. Comumente, ele é reconhecido como o criador do Teatro Experimental Negro (TEN), entre os anos de 1944 e 1968, no Rio de Janeiro. Sua vida se tornou um capítulo da história dos negros e do combate à discriminação racial – uma narrativa de resistência que empregou a arte como discurso de luta e de valorização da cultura negra. Ele entendia, sobretudo, a arte como instrumento de formação, capaz de conscientizar e transformar o mundo.

Ao entender o TEN, como modo de construção de conhecimento, em 1950, surgiu a ideia do Museu de Arte Negra (MAN) com ampla adesão de artistas e intelectuais – à época, a história da arte brasileira ainda se pautava pelo “mito das três raças”, sendo as culturas negra e indígena mediadas pelo olhar do branco. Abdias queria revolucionar esse conceito: assumir o protagonismo e provocar a reflexão sobre o campo das artes visuais.

Contudo, no Brasil de 1968, o MAN não sobreviveu à sua primeira exposição. Um museu sobre a cultura negra era algo muito perturbador para o regime militar, igualmente a inquietante presença de Abdias E, nesse mesmo ano, ele seguiu para os EUA – um autoexílio que duraria anos.

Alguns pesquisadores confirmam que a ação como pintor se adensou quando ele passou a integrar o meio acadêmico norte-americano. Suas primeiras telas, pintadas em 1968, conviveram com as obras do acervo do MAN – uma coleção com trabalhos de artistas brasileiros e estrangeiros de diversas origens e expressões, mas que, juntas, diziam sobre “uma estética negra”. No regresso ao Brasil, em 1981, Abdias criou o Ipeafro, instituição que guarda seu acervo e atua no combate ao racismo.

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E, hoje, as pautas defendidas por Abdias do Nascimento estão em evidência, especialmente no campo das artes visuais. O resultado se dá na participação cada vez mais forte de propostas artísticas que discutem questões étnicas e de gênero – o apelo à diversidade tem legitimado e incentivado a produção de artistas mulheres, afrodescendentes, indígenas e LGBTQIA+. Os novos discursos, as diversas formas de ver e estar no mundo têm conseguido espaço na programação de grandes museus, tais como a Pinacoteca do Estado de São Paulo, o Masp, ou, ainda, em eventos relevantes como a Bienal de Veneza, a Bienal Mercosul e a Bienal de São Paulo. Acrescente-se ainda que museus e galerias têm revisitado artistas e intelectuais vindos de um passado recente, buscando novas abordagens para a história da arte brasileira.

No resgate da memória da resistência negra, as proposições de Abdias são reconhecidas e inspiram, tanto que, na passagem entre 2016 e 2017, o Itaú Cultural desenvolveu a , com registro ainda presente no site da instituição, no qual as diversas facetas de sua militância são rememoradas, sob a perspectiva de vê-lo como um aquele que conta histórias, narra os acontecimentos de um povo, passando as tradições para as gerações futuras

Nas artes visuais, particularmente, em 2022, o Masp organizou a exposição com curadoria de Amanda Carneiro e Tomás Toledo, reunindo 61 pinturas realizadas ao longo de três décadas (19681998). A mostra revelava seu repertório: os personagens, os temas e os símbolos afro-brasileiros. O título da mostra brincava com conceitos ligados ao panafricanismo e com o termo “ladino-amefricano”, usado pela antropóloga Lélia Gonzalez para tratar das culturas negras da América Latina. Aqui vale um parêntese: Abdias teve forte aproximação com o pan-africanismo, ou seja, ele acreditava na união dos povos africanos de todos os países, envolvidos pela diáspora, na luta contra a discriminação. Retornando à mostra do Masp, a intenção era o reconhecimento da pintura de Abdias em todas as suas dimensões estéticas e políticas – uma grande retrospectiva do intelectual-pintor.

Contudo, a iniciativa do Instituto Inhotim, em Minas Gerais, anunciada em 2021, foi ainda maior: “um museu dentro de um museu”. Em parceria com o Ipeafro, até o final de 2023, a instituição, de certa forma, recria o MAN, de Abdias, em quatro atos (referência ao teatro que, no fundo, remete à quatro exposições), que ocupam a cada seis meses,a Galeria Mata – primeira galeria do Instituto. Nesse ponto, como já vimos, o histórico do MAN lhe dá o de iniciativa pioneira que colocou a cultura negra no mesmo patamar da dita “arte brasileira” – aquela sustentada pelos parâmetros europeus. E recriar o MAN é uma remição.

O primeiro ato foi cheio de efemérides: 40 anos do Ipeafro e 10 anos da morte de Abdias. Nessa mostra, as relações entre o intelectual e Tunga (artista do acervo de Inhotim) foram as motivações centrais. O pai de Tunga, Gerardo Mello Mourão, era companheiro de Abdias no ofício da poesia. O artista cresceu tendo o amigo Abdias no convívio familiar. Aqui, um detalhe especial: o amarelo de Oxum norteou as relações museográficas. Sob a proteção de Oxóssi, o segundo ato foi chamado de o título foi emprestado de uma antologia de teatro negro-brasileiro, de sua autoria A exposição jogou luzes sobre o percurso do TEN, por meio de fotografias e documentos que ilustram essa experiência em artes cênicas; expõe, ainda, a concepção do MAN e as primeiras telas de Abdias. Nessa mostra, também foram exibidos os trabalhos de artistas, tais como Anna Bella Geiger, Heitor dos Prazeres e Yêdamaria, que integram a coleção do MAN.

Abdias Nascimento durante apresentação da peça Sortilégio, 1957. Foto: © José Medeiros.

E agora, em março deste ano, chegou a vez do terceiro ato – , título também inspirado na obra de Abdias. É o nome da primeira peça teatral ––, escrita em 1951, ponto importante na sua produção artística ligada às tradições afro-diaspóricas. Guiada por Exu e contando com 180 obras, a mostra evoca o período de exílio do artista, entre 1968 e 1981, enfatizando a difusão da arte negra brasileira no exterior. Sobre esse período, em suas palavras, ele coloca as sinceras intenções no ofício da pintura:

As telas de sua autoria contam sobre o seu desejo de ser testemunho e não ficção; rememorar um tempo no continente africano compartilhado pelos que foram violentamente arrancados e escravizados –expropriados da terra, da humanidade e da memória. Nesse intuito, ele não dialoga com a estética europeia – ele busca a cultura ancestral africana, assim como as obras de outros artistas que lhe acompanham nesse “sortilégio”: Mestre Didi, Rubem Valentim, Regina Vater, Emanoel Araújo, entre outros. As peças são em grande parte do Ipeafro e compõem a coleção do MAN. São artistas que marcaram presença na cena nova-iorquina e contemporâneos de Abdias.

São cinco núcleos temáticos que organizam o percurso expositivo: símbolos rituais contemporâneos; Nova York: início do exílio; professor universitário; artistas afrobrasileiros, e orixás: concepção da vida e filosofia do universo. Esses eixos temáticos buscam a ideia do MAN com um museu coletivo. Além das pinturas, a mostra traz também documentos, fotos, livros e o vídeo (2017), de Bárbara Vento. Nesse registro audiovisual, as qualidades de Exu, como o orixá da comunicação e da transformação, aliam-se às ações do nosso intelectual.

De fato, o grande destaque da mostra é Abdiaspintor. Em sua pintura, é possível dizer que os temas sobrepõem aos aspectos plásticos – em justa medida porque não são esses parâmetros que movem sua ação pictórica: a propagação da cultura africana ancestral aqui adquire mais relevância. Para ele, os orixás “são presenças vivas e viventes. Habitam tanto a África como o Brasil e todas as Américas”. E por que não habitariam suas telas? Eles são referências visuais – de alguém que sempre foi um defensor da criação de uma estética relacionada à experiência afro-brasileira e, acima de tudo, de um intelectual que lutou pelo reconhecimento dessa contribuição para a formação do que é ser brasileiro.

Enfim, o que a exposição traz é o penúltimo ato de uma trajetória orientada por essa ideia de que a arte muda a vida e retira da “calmaria”. Vale a pena conferir!

Alecsandra Matias de Oliveira é pósdoutorado em Artes Visuais (Unesp). Doutora em Artes Visuais (ECA-USP). Mestrado em Comunicação (ECAUSP). Professora do CELACC (ECA-

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