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PRODUÇÃO ARTÍSTICA
POR JOÃO HENRIQUE ANDRADE
O olhar do homem sobre as cores da Guanabara era repleto de encanto e beleza. As sinuosas curvas do Pão de Açúcar, visto do Aterro do Flamengo em um dia de sol, revelavam o estado de graça do espírito do brasileiro. Estamos no ano de 1965, e a música ressoa nos ouvidos. A música cadente, em uma elegante aproximação com o samba, pronunciava novos tempos, onde a cidade fundada por Estácio de Sá (1520-1567) vivia as celebrações de seu 4.º centenário e recebia de volta seu mais caloroso filho. Estamos falando de Glauco Rodrigues (1929-2004), que retornava das terras de Rômulo e Remo, da cidade de Roma dos antigos impérios,onde,desde1962,haviaseestabelecido,aconvite do embaixador brasileiro Hugo Gouthier para trabalhar no setor gráfico da representação diplomática. Por lá, aprimorou sua arte, que, por diversos caminhos, daria a ele um destaque como representante genuíno de nossa cultura, aliado com os novos tempos.
Galeria de tipos Brasileiros: Sebastião, 1987. Foto: Raul Holtz.
Todas as imagens: Todas as imagens: Cortesia MARGS, aquisição por doação de Norma de Estellita Pessôa, 2018.
Sem título, Álbum Arte e Transporte, s.d. Foto: Raul Holtz. Todas as imagens: Cortesia MARGS, aquisição por doação de Norma de Estellita Pessôa, 2018.
Sem título, Álbum Arte e Transporte, s.d. Foto: Raul Holtz. Todas as imagens: Cortesia MARGS, aquisição por doação de Norma de Estellita Pessôa, 2018.
A exposição revela facetas de um período em que o artista, nascido em Bagé (RS) se detinha no olhar para as belezas brasileiras, pelas paletas verde e amarela, após o seu retorno ao Brasilnaqueles idos anos de 1965.O que havia de mais belo na paisagem dava lugar em igual medida e importância às contradições do mesmo país que convivia desde o ano de 1964 com uma severa Ditadura Militar. São um total de 49 obras que vieram a ocupar o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), de um acervo da instituição que abriga mais de 300 trabalhos. Após um cuidadoso processo de restauração, foi possível reunir o recorte curatorial que cobre os períodos dos anos 1960 e 1990, exibidos agora pela primeira vez ao público. A aquisição dos trabalhos de Glauco pelo MARGS se deu em 2018, após a doação desses trabalhos pela viúva de Glauco, Norma de Estellita Pessôa. “Na sua obra gráfica, como na sua pintura, o Glauco nunca deixou de dizer: ‘Que país curioso este nosso, e que país bonito’”, certa vez disse o escritor, também gaúcho, Luis Fernando Verissimo. O que as suas obras surgidas no bojo dos anos 1960 revelam são disparidades entre elementos sociais de um país que ocultava seus flagelos, suas dicotomias entre passado e presente e onde a violência e a pobreza andavam de mãos dadas com o dia de sol na Guanabara e as comemorações do 4.º centenário da cidade, realizadas pelo então governador Carlos Lacerda (1914-1977) . O teor político logo agregaria um espaço importante na criação de Glauco a partir do que viria a conhecer na sua participação na Bienal de Veneza um ano antes, em 1964.
Accuratíssima Brasília Tabula, 1981. Foto: Raul Holtz. Todas as imagens: Cortesia MARGS, aquisição por doação de Norma de Estellita Pessôa, 2018.
Carnaval, 1990 e Tropicália, 1989. Fotos: Raul Holtz. Todas as imagens: Cortesia MARGS, aquisição por doação de Norma de Estellita Pessôa, 2018.
Ao lado de nomes incontornáveis da arte brasileira e de outros novos artistas do período, Glauco Rodrigues se uniu a Tarsila do Amaral, Frans Krajcberg, Almir Mavignier, Abraham Palatnik, Alfredo Volpi, Maria Bonomi e Franz Weissmann na XXXII Bienal de Veneza. Foi a “virada de chave” em sua trajetória. Em um período onde a ganhava espaço e atenção no circuito das artes, sobretudo pela influência da cultura de consumo e crescimento de novas mídias, como a TV em cores, somado ao que viria a ser conhecido como o culto a celebridades e a panfletagem contra as guerras e ditaduras presentes constantemente em jornais e noticiários naqueles anos, figuras como Robert Rauschenberg, Andy Warhol e Roy Lichtenstein foram alçados a nomes de uma arte contundente, radical e ousada. Glauco ficou impressionado com essa arte que surgiu, sobretudo, com o trabalho de Rauschenberg, que viera a ganhar o Grande Prêmio da Bienal de Veneza daquele ano. As obras que viria a realizar no Brasil em seu retorno ao Rio de Janeiro são o resultado dessa epifania que surgiu com seus contatos com a em Veneza. O curador da mostra no MARGS, Francisco Dalcol, ressaltou os contatos entre a nossa conturbada história com a linguagem inseridanaproduçãodeGlauconessesanos: “Os povos originários, o colonizador, o carnaval, o futebol, a natureza tropical, a religiosidade, a televisão e a história do Brasil.Etambémaculturademassaeoculto às celebridades. Quase sempre se valendo de imagens prévias em circulação, até mesmo da iconografia da história da arte, como é o caso de (1996), obra que funciona como espécie de ponto de partida desta exposição.” de 1979; , 1981; , 1989; , 1987; a beleza da mulher em , 1990 são excertos do recorte temático aqui expostos que buscam abraçar aquele êxtase do ser brasileiro.
As colagens e as criações de figuras populares em litografias e serigrafias formam um apanhado do inconsciente coletivo de um país. Na obra , de 1989, o público pode notar os fundos brancos que exprimem o vazio do espaço, preenchidos em primeiro plano por duas imagens: a do negro, trabalhador por excelência em um país que não soube promover uma abolição que inserisse seus antepassados a uma condição digna; e a da arara vermelha com sua pelagem de baixo na cor azul; ao redor, ainda há espaço para a rica flora desse país tropical. Assim como Tarsila do Amaral, que em seu retorno ao país, em 1923, buscou aprimorar uma criação verdadeiramente brasileira, sob os moldes da moderna arte de Paris – que viria a culminar com a sua série , Glauco Rodrigues promoveu em seu retorno às terras tupiniquins, em 1965, “uma arte brasilianista e antropofágica”, nas palavras do crítico de arte Frederico Morais, no documentário , de 2016. A é digerida e regurgitada pelo artista em um dos mais importantes trabalhos da história da arte brasileira. O artista se definia como uma escola de samba. As ruas dos morros. Os sambas-enredos. Os pandeiros, as passistas, o mestre-sala e a portabandeira. As cores e as paletas saturadas, em alvoroço, pululam nas arquibancadas e nas ruas em dia de blocos. O enredo é sempre o mesmo: o Brasil. Os muitos brasis, mas, sobretudo, os que evocavam a sensualidade, o torpor da repressão, as paisagens embebecidas pelo calor do sol da Guanabara, do Rio de Janeiro dos grandes cânticos e da poesia dos sambistas. Suas mensagens de ironias e sarcasmos se somavam às dores de amar tanto uma cidade quanto a um país.
Cortesia MARGS, aquisição por doação de Norma de Estellita Pessôa, 2018.
Gabriela, 1990 e Galeria de tipos Brasileiros: Malandro, 1987. Fotos: Raul Holtz. Todas as imagens:
Bananas II, 1987. Fotos: Raul Holtz. Todas as imagens: Cortesia MARGS, aquisição por doação de Norma de Estellita Pessôa, 2018.
A natureza tropical, o futebol, a televisão, os indígenas, os rituais e a força dos negros, a Fórmula 1, a música, as mulheres. Há, na produção de Glauco Rodrigues, um amplo espectro de possíveis impressões do Brasil sobre si mesmo. A sua arte servia como um espelho de nossos conflitos enquanto sociedade e abrangia toda essa convulsão, ora de forma explicita ora subentendida nas criações, sejam diante dos fundos monocromáticos, sejam por meio de balões que inserem as vozes que vociferam ou expõem seus incontidos pensamentos. A escola de samba que veio a ser em sua vida fez da sua arte um espaço de uma liberdade de expressão própria sem subterfúgios. As cores e os simbolismos em litografias, serigrafias, desenhos e pinturas em acrílica presentes nessa exposição, em um dos mais marcantes períodos de sua trajetória como artista, denotam o significado de suas criações atemporais e inseridas em um lugar, na Rio de Janeiro dos anos 1960, que parece permanecer viva, tanto por suas belezas quanto por suas dicotomias.
João Henrique Andrade é técnico em museologia, curadoria e montagem de exposições pela EAV Parque Lage.