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Por Lorena Filgueiras Fotos: Leo Martins
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A cientista e médica Margareth Dalcolmo é um dos nomes mais citados e respeitados quando se fala da pandemia de Covid-19 e é perfeitamente possível compreender os motivos. Seu discurso é pautado pela defesa e inclusão da população vulnerável, ao mesmo tempo em que olha para o cenário e vê a vitória da Ciência – não a um custo baixo (muito ao contrário), mas, sobretudo, esperançoso, pelas verdades que a pandemia revelou. Dentre as várias declarações, a firmeza de dizer que auxílio emergencial não deveria ser entendido como medida econômica – e, sim, como saúde pública. A entrevista que você lerá ocorreu pelo telefone, na manhã de um sábado. Rouca, pelo esforço de atender ao máximo de solicitações da imprensa, já com o gravador desligado, Dalcolmo comentou que o começo da pandemia lembrou-lhe demais do livro “Ensaio sobre a cegueira”, de Saramago, um de seus escritores favoritos. Perguntou ainda se estávamos bem, agraciando a Revista FADESP com uma entrevista profunda e sensível.
Revista FADESP: A senhora é uma voz extremamente relevante na comunidade científica, ao passo que é uma voz dissonante de um discurso negacionista que, mesmo diante do crescente número de infectados e de óbitos no país, continua firme. Qual seu olhar sobre isso tudo?
Margareth Dalcolmo: Nós estamos sendo penalizados, no Brasil, desde o começo da pandemia, por um discurso dissonante, porque enquanto nós identificávamos que viveríamos algo muito grave, de grande magnitude, passamos a conviver com esse paradoxo entre o que Ciência brasileira e mundial diziam e o um discurso negacionista. A dissonância, diria eu, foi tanto quantitativa, como qualitativa – e isso fez muito mal ao nosso país, [porque] criou muita confusão entre uma opinião pública, que tem níveis de educação e compreensão muito diferentes e muito desiguais. O Brasil paga um preço muito alto, em todos os sentidos, e, principalmente, no número de mortos, que poderia ter sido evitado... ou reduzido, se tivéssemos feito apenas duas coisas, desde o início: um discurso um pouco mais homogêneo e pacífico, sem tantas tensões desnecessárias; e uma coordenação central harmônica conduzindo o processo, como já tivemos, outras vezes no Brasil. Não isso: nós [cientistas, infectologistas] dizendo uma coisa e o próprio Ministério da Saúde dizendo outra! Além das trocas de ministros da pasta! Então, nada disso colaborou para que tivéssemos harmonia e consistências adequadas no controle epidêmico. Então, respondendo agora objetivamen-
te a sua pergunta, eu fico, sim, muito chocada, quando eu vejo pessoas que ainda negam a necessidade de usar essa barreira mecânica tão potente, que é o uso de máscaras – mas, diga-se, máscaras adequadas. Estamos vivendo hoje a circulação de variantes muito mais infectivas, mais transmissíveis e fico triste de ver pessoas circulando sem proteção ou usando máscaras impróprias. Dentre as coisas que estamos [a Fiocruz] propondo é a distribuição de máscaras apropriadas.
Revista FADESP: Em meio a esse cenário desolador que temos vivido, percebo que as pessoas têm falado mais de Ciência, que tem sofrido cortes significativos nos valores previstos em orçamentos e investimentos. Dito isto, a senhora crê que quando tudo passar, teremos aprendido a lição e valorizaremos a produção do conhecimento científico no Brasil? O que a sra espera que fique como saldo positivo no pós-pandemia?
Margareth Dalcolmo: Acho que ainda carecemos de ter um nível de educação mais sofisticado, digamos, para que o que vou lhe dizer seja massivamente compreendido. Minha visão como médica e cientista diz que a Ciência sairá vitoriosa, sem dúvida alguma, dessa pandemia. Mas ela sai vitoriosa a um preço muito desigual e alto. Por que ela sai vitoriosa? Porque o homem foi capaz de um feito extraordinário: criar tantas vacinas e colocá-las no mercado em menos de um ano. Foi ainda capaz de demonstrar quais tratamentos não funcionam; capaz de estudos epidemiológicos e de responder perguntas. É claro que ainda há muitas outras que precisam ser respondidas... até porque ainda temos muito mais perguntas que respostas. No meio brasileiro, um dos produtos positivos desta tragédia humanitária e sanitária toda, que estamos vivendo, foi um reconhecimento, de boa parcela da sociedade civil brasileira, de que existe um saber local, existe uma Ciência brasileira! Sofremos um processo, ao qual chamo de “imunização compulsória”, muito em razão de nós [pesquisadores e cientistas] termos ido à mídia, de dissecarmos o assunto, no sentido de dar compreensão ao público leigo. Tudo isso expõe a Ciência de um jeito muito positivo: a população agora sabe que somos muitos e que muitos de nós não fomos embora, uma vez que há que se registrar que o Brasil vivenciou um êxodo de cérebros preciosos, que saíram do país, por não encontrarem aqui condições adequadas para continuar suas pesquisas. Nós, que ficamos aqui, somos os responsáveis por produzir conhecimento que seja útil para a sociedade. O fato de nós termos saído de nossos microuniversos de trabalho gerou algo muito simpático.
Revista FADESP: A sra. Conquistou muita deferência e prêmio [de mulher do ano de 2020], ao passo de, imagino, que as solicitações de entrevistas tenham aumentado enormemente, já que a sra também tenta conciliar seu papel como pessoa pública e de médica. Como tem sido essa relação com as pessoas?
Margareth Dalcolmo: Quando alguém me reconhece no hall do elevador ou mesmo no supermercado, sempre recebo demonstrações de grande afeto e de grande respeito, o que me deixa muito comovida, muito segura de que fizemos a coisa certa, que foi trazer a público a interpretação de tamanho problema, fazendo permanentes alertas. Um outro produto que considero muito positivo também, Lorena, e que merece registro, porque é muito novo pra mim, já que tenho conversado muito com a imprensa, é a criação de um voluntariado de alta qualidade no Brasil. Desde a minha primeira entrevista, que foi concedida à Rede Globo, em 13 de março do ano passado, disse: a sociedade precisará que a iniciativa privada compareça. Não podemos deixar todo o peso da pandemia que está chegando nas costas do governo. Nosso país tem uma concentração de renda e precisamos que essas pessoas se sensibilizem para que doações grandes e verdadeiras sejam feitas no sentido de assistir a quem precisa. E tivemos, assim, iniciativas sensacionais, mas estamos num momento de pedir que esse movimento seja reativado, porque a epidemia é muito longa. Estamos vendo pessoas carentes e comunidades com seus depósitos e reservas completamente exauridos já, então aguardamos que se faça, de novo, esse volume de doações.
Revista FADESP: Reforçando que somente Ciência e solidariedade nos salvarão...
Margareth Dalcolmo: Exatamente. Tenho dito sempre que não é possível que nós ainda mantenhamos essa dicotomia completamente falsa entre economia e Ciência, ou seja, dar assistência financeira, segurança alimentar às populações desvalidas não é uma ação da economia, é uma ação de saúde pública! Acho que esse foi um entendimento que, de certa maneira, conseguimos sensibilizar uma parte do empresariado. Hoje temos parceiros que discutem ações nesse sentido.
Revista FADESP: Nesse sentido, lembrei de uma declaração sua, relativamente recente, e que me marcou muito: de que o auxílio emergencial não podia ser considerado uma medida econômica...
Margareth Dalcolmo: Trata-se de uma questão de saúde pública! >>>
Revista FADESP: E aí vivemos uma semana em que o país registrou 4 mil mortos num único dia, tornando a projeção de meio milhão de mortes ainda mais próxima; que foram divulgados novos dados sobre o mapa da fome, que é maior e mais excludente de uma significativa parcela vulnerável da população e que, se é que é possível, fica ainda mais vulnerável...
Margareth Dalcolmo: Nós estamos propondo e, falo particularmente por mim, que fechássemos o país por duas semanas inteiras. Tudo, absolutamente tudo, para tentar interceptar a transmissão e, sobretudo, dessas novas variantes que estão circulando e vitimando pessoas cada vez mais jovens.
Revista FADESP: A sra. contraiu Covid logo que a pandemia começou, não é?
Margareth Dalcolmo: Tive sim, no pico epidêmico em maio do ano passado.
Revista FADESP: O que a sra sentiu?
Margareth Dalcolmo: Eu tive em outro momento, porque continuei trabalhando, exposta. Senti muito medo, porque a Covid 19 é uma doença, ainda mais naquele momento, que gera muita insegurança. Tomei algumas providências de maneira objetiva, porque se eu fosse para ventilação mecânica... a gente nunca sabe se sai ou não sai. Confesso que, enfim... [ela para um momento] Tentei tornar aquele momento produtivo: escrevi um capítulo de um livro, escrevi as colunas de O Globo, que eram semanais. Tive neuropatia periférica, sentia muita dormência, fiquei muito cansada. Fiquei no hospital por curtíssimo tempo e me recuperei em casa, por conta da forma moderada da doença.
Revista FADESP: Outro olhar mais atento, que isso tudo nos proporcionou foi perceber quão sofisticado e democrático é o Sistema Único de Saúde. A sra arriscaria uma previsão de como ele sairá desta experiência?
Margareth Dalcolmo: É difícil dizer, mas temo que saia mais combalido do que entrou. Outra coisa que também disse, ainda no início, é que teríamos duas grandes armas para fazer frente à pandemia: o SUS, basicamente, sua capilaridade e capacidade e o distan-
ciamento social. Além de as vacinas, é claro! Mas há que se entender que as vacinas, sozinhas, não fazem milagre! É preciso se somar às vacinas outras medidas e o distanciamento social é uma das mais importantes. Não se consegue interromper a cadeia de transmissão se não deixar de favorecer a transmissão por meio da aglomeração de pessoas. O SUS sai mais valorizado, pelo entendimento das classes menos favorecidas, mas, também, pela classe empresarial – o que me deixa bem feliz. Isso significa que compreenderam que o SUS não serve uma minoria, até porque a resolubilidade do SUS é para quase 80% da população brasileira! O investimento em saúde não é gasto: é desenvolvimento, sobretudo quando se pensa nas gerações futuras.
Revista FADESP: Espero que o futuro nos traga alento, diante de tantas irreparáveis perdas.
Margareth Dalcolmo: A valorização da Ciência brasileira é um resultado positivo. Tenho um olhar de esperança nas novas gerações, nos novos médicos que estão se formando agora, nos jovens que estão no ensino médio... que possamos estimulá-los ao mergulho na Ciência, por meio de leitura. Isso tudo pode ser de grande ajuda.
(*) As fotos da médica e pesquisadora Margareth Dalcolmo foram realizadas seguindo rígidos protocolos de segurança sanitários, respeitando distância e mantendo uso de equipamentos pessoais. A médica só retirou a máscara para fazer os registros.
Cidade inteligente
Por Lorena Filgueiras Fotos: Divulgação
O futuro já chegou há algum tempo no Pará, que abriga uma das primeiras do Brasil. Canaã dos Carajás, no Sudeste do estado, terá um complexo sistema integrado de inteligência artificial e incentivo à criação de startups.
No princípio, o desafio era a conectividade. Até que houve um boom da expansão de telefonia celular, no ano de 2012, parte do Plano Geral de Metas da Competição da ANATEL. Já o grande desafio de acesso à internet, localmente, foi parcialmente solucionado pelo programa governamental Navega Pará, que transformou inúmeros municípios do interior do estado nas primeiras cidades digitais, ao garantir conexão gratuita em lugares públicos. À época, o professor Renato Francês, coordenador do Laboratório de Planejamento de Redes de Alto Desempenho da UFPA (LPRAD/ UFPA), estava à frente da implantação desse ousado programa do Governo do Estado.
Após um período para realização de pós-doutorado em Portugal, a ideia de ampliar o uso (e o retorno revertido em benefícios à sociedade) da “internet das coisas” tornou-se o embrião de um projeto que conquistou espaços maiores. “A ideia é que a cidade pode ser monitorada de tal forma que o cidadão, sem muito esforço, não necessite denunciar algum funcionamento não adequado de determinados serviços ao Poder Público, pois os próprios dispositivos implantados na cidade seriam capazes de fazer essa tarefa pelo cidadão. Poderia falar ainda de outras ideias inteligentes, como bengalas inteligentes com uso de sensores, que conseguem “dizer” ao deficiente visual onde é a faixa de pedestre e quando tem que atravessar”, explica Renato Francês. “Esse conjunto de possibilidade de dispositivos que envolvem internet das coisas (sensores, drones e muita inteligência artificial) dá a possibilidade ao cidadão de saber o que está acontecendo na cidade, assim como possibilita que os gestores possam planejar os espaços comuns, a partir da coleta de informações, como sensores que informam acerca de lixo espalhado na cidade fora dos containers, basicamente esse conceito é bem atual, conhecido como wellness”, complementa.
A cidade inteligente é, portanto, um estágio muito mais acima do que é a cidade digital. “Diante disso, algumas cidades no mundo, que já funcionam [de maneira inteligente], se programam para atender seus cidadãos, favorecendo-o em tudo que diz respeito às suas necessidades”, detalha Francês.
A partir de 2018, iniciou-se uma conversa com a gestão municipal de Canaã dos Carajás. A própria definição do município que seria piloto não se deu por acaso: em função da intensa atividade minerária local, há um fundo com recursos advindos da atividade que movimenta a cidade. A lei municipal relacionada ao Fundo Municipal do Desenvolvimento Sustentável destina um percentual dos recursos de Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CEFEM) à execução relacionada à Ciência, tecnologia, inovação e educação. Em parceria com a USP, a UFPA encaminha todos os estudos de implantação da cidade inteligente. Em agosto de 2020, foi celebrado um convênio entre FADESP, UFPA e a prefeitura de Canaã de Carajás.
A pandemia, a exemplo de todo o impacto causado no mundo, também impactou no ritmo de execução de todo o programa – especialmente no que diz respeito à formação de recursos humanos especializados – mas 4 projetos/ aplicativos já estão rodando e um deles, o “Fala Canaã”, é um meio de relatar problemas na cidade, como por exemplo uma calçada quebrada ou problemas na iluminação pública, permitindo que o poder público saiba mais rapidamente e resolva a questão.
Entre docentes e alunos de pós-graduação da UFPA e USP, 15 pesquisadores de todos níveis compõem a equipe de Renato Francês.
Produtivo e competitivo
Por Lorena Filgueiras Fotos: Estúdio Tereza & Aryanne / Divulgação
Sendo o Pará um dos maiores produtores e beneficiadores da bauxita, o estado detém o protagonismo de estudos relacionados à aplicação do resíduo do minério na construção civil.
Aprodução e beneficiamento local da bauxita coloca o estado do Pará dentre os quatro maiores produtores do mundo. Segundo dados da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Mineração e Energia (Sedeme), só em 2020, as quase 29 toneladas de bauxita produzidas no Estado geraram um lucro de 134 milhões de dólares em exportação. O Pará ainda é, em todo o território brasileiro, detentor da maior produção – aproximadamente 91%.
Se a vocação natural local já impressiona, há que se dizer também que o Pará lidera uma equipe multidisciplinar de estudos sobre o resíduo da bauxita. A Revista FADESP explica: para cada tonelada beneficiada do mineral, são gerados, em média, de 1 a 2 toneladas de resíduo de bauxita – um insumo cujo reaproveitamento é bem pouco.
O grupo de estudos, que reúne a UFPA (por meio do Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Recursos Naturais da Amazônia – PRODERNA e o Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil – PPGEC) e Hydro, analisa várias aplicações ao insumo – desde a produção de artefatos cerâmicos, até a produção de agregados graúdos para concreto. “O projeto veio para impulsionar isso. Estamos adquirindo incentivos, tanto ao nível de custeio, quanto de compras de equipamentos. A ideia é analisar o agregado, desde o micro até o macro; da microscopia até a macroscopia, sua viabilidade técnica de utilização”, explica Alcebíades Negrão Macedo, professor titular da UFPA e vice-coordenador do grupo de estudos.
Um dos resultados esperados é viabilizar a aplicação do resíduo, deixando de ser rejeito para ser matéria-prima. A viabilidade econômica é outra análise que está sendo feita. “Realizamos reuniões periódicas com a Hydro, que tem acompanhado todo esse processo de perto”, diz Macedo.
Para a Hydro, empresa mineradora de bauxita, o projeto só tem a somar ao objetivo institucional, do ponto de vista de produção e produtos finais, que é de transformar a sociedade, por meio da inovação. “A sustentabilidade dessa cadeia produtiva está fortemente conectada ao propósito da empresa, de criar uma sociedade mais sustentável”, afirma Marcelo Montini, consultor químico sênior da empresa. “O resíduo de bauxita é considerado um bem econômico com valor social agregado”, complementa.
Os benefícios são inúmeros, conforme explica Montini. “Quando ele deixa de ser resíduo e passa a ser produto, podendo substituir a brita, por exemplo, diminuindo a questão de resíduos, podendo impactar na redução de custos, aumentando a competitividade da indústria local”.
Além de encontrar novos usos, estudos econômicos também estão sendo conduzidos, para que o produto final seja tão ou mais acessível que as opções mais conhecidas (e em uso). “O convênio com a UFPA é parceria muito rica e frutífera, além de ser muito importante para nós”, elogia Marcelo Montini. “Inovação é parte da valorização da ciência e de recursos locais. Temos certeza de que os frutos serão muito positivos”, finaliza.
Alcebíades Negrão Macedo aponta uma perspectiva tão importante quanto conseguir a viabilidade de aplicação do resíduo em outros segmentos: a formação dos discentes, por meio de investimentos, e a formação de recursos humanos especializados. A FADESP atua como gerenciadora dos recursos, auxiliando na organização do financeiro e pagamento das bolsas aos alunos e pesquisadores envolvidos.
Alcebíades Negrão Macedo