9 minute read
Destino, memória e saudade
from Revista FADESP #9
Melancólico, nostálgico, precioso - são muitos os adjetivos que definem o pequeno relicário público, localizado no centro da capital paraense, dedicado à saudade. Por meio de um projeto da FADESP, o cemitério da Soledade conquistou mais um: revitalizado, possibilitando visitas e que todos o conheçam melhor e possam voltar no tempo.
Pelas alamedas do Soledade, sob a sombra de mangueiras centenárias, a história se escancara a cada passo. Túmulos e mausoléus se destacam na paisagem do lugar que, recentemente, foi alçado à condição de parque, e contrastam com os prédios contruídos ao redor. Um dia, lá em 1850, essa era uma área afastada de tudo, ideal para receber as vítimas de duas graves epidemias, uma de febre amarela e outra de cólera.
Advertisement
Depois de séculos de abandono e destruição, o governo do Estado começou o processo de restauração desse tesouro encravado no coração da capital. A primeira parte do trabalho foi entregue no dia do aniversário de Belém, um presente para a memória viva da cidade, resultado de um trabalho desafiador realizado por muitas mãos.
"Através da parceria com a Universidade Federal do Pará, com o laboratório de conservação e restauro, nós tivemos a grata oportunidade de entregarmos esta obra. Essa primeira fase contou com um restauro de mais de sessenta túmulos de estruturas mortuárias, além de toda a organização para que o parque pudesse receber a visitação. Agora nós temos uma segunda fase que é o restauro das demais estruturas mortuárias", conta o secretário de Cultura do Estado, Bruno Chagas.
"Nós tivemos vários desafios, mas eu acredito que dá pra pontuar dois. O primeiro é o levantamento arqueológico. Por se tratar de um cemitério, evidentemente que nós encontraríamos, além dos restos mortais, outros artefatos que permeiam a cultura, o folclore do ambiente que é o cemitério. Nós tivemos esse desafio, tivemos um trabalho minucioso através da equipe de arqueologia da Secretaria de Cultura, em parceria também com a Universidade Federal do Pará. O segundo foi o desafio do restauro em si, resgatar a originalidade dos elementos arquitetônicos do cemitério foi um grande desafio encontrado principalmente pela equipe da Universidade Federal. Mas acima de tudo preservarmos as características do cemitério para que ele não deixasse de ser esse grande centro de devoção e de atração ao público que vai pra lá, não apenas para contemplar a estrutura e a história, mas acima de tudo para exercer a sua fé", concluiu Bruno.
Nos túmulos mais simples ou nos mais elaborados mausoléus, detalhes que resistiram ao tempo. Nas pequenas sepulturas, rentes aos chão, cercados feitos de ferro, em desenhos trabalhados que sofreram todo tipo de ação, seja da natureza, seja do ser humano. As estruturas se mantém imponentes, firmes, quase uma fortaleza no entorno daquele pedacinho de terra que guarda uma história. E história não falta nesse quarteirão.
De escravos a generais, o Soledade preserva as lembranças de personalidades que despertam a devoção popular ou simplesmente a curiosidade.
Preta Domingas, Anastácia, a escrava, o pequeno Zezinho e Raimundinha Picanço, são alguns dos túmulos mais visitados que passaram pelo cuidadoso trabalho feito pela equipe do Laboratório de Conservação, Restauração e Reabilitação da Ufpa (Lacore), que reúne 81 pessoas entre docentes, alunos de graduação e pós-graduação e servidores técnicos, além de outros 52 profissionais de uma empresa prestadora de serviços.
A coordenação do projeto foi das professoras Thais Sanjad, Roseane Norat e Flávia Palácios e contou com as subcoordenações em campo dos arquitetos restauradores Alexandre Loureiro, Pâmela Bahia, Amanda Loureiro, Carolina Gester e Mayra Martins.
"A UFPA, como a maior universidade pública na Amazônia, tem e reconhece seu compromisso institucional com a produção do conhecimento, mas também seu papel social e capacidade de transformação que pode e deve ajudar a impulsionar de forma positiva e em diversos campos nosso estado e nossa região. O LACORE tem por objetivo atuar de forma interdisciplinar no ensino, pesquisa e extensão e produzir conhecimento científico e tecnológico para a conservação-restauração do patrimônio cultural em suas diversas formas de apresentação na Amazônia, portanto, esse desafio está na gênese do que pensamos para este laboratório dentro de uma universidade pública e a maior da região. A obra, a partir de agora em suas novas etapas, deve seguir na continuidade da conservação-restauração de outros túmulos do acervo do agora Parque Cemitério da Soledade, o que permitirá uma maior capilaridade do projeto em sua prática restaurativa à medida que, durantes os dias úteis em que há visitação, os visitantes possam acompanhar esse processo. Para isso, a SECULT vem envidando esforços para ampliar as visitas mediadas e para que as informações do processo de restauração e outros importantes campos da obra, como das pesquisas arqueológicas, sejam acessadas pelo público em geral como parte das atividades de ações educativas", explicam as coordenadoras do LACORE.
Para que todo esse trabalho fluísse com tranquilidade, a Fundação de Amparo e Desenvolvimento da Pesquisa (FADESP) tomou conta de um aspecto tão delicado quanto trabalhoso, mas indispensável ao bom andamento de qualquer obra. Coube à Fundação a gestão financeira e administrativa desse trabalho monumental.
"Considero o Soledade uma joia incrustrada no coração da cidade e mais importante ainda que ele tenha sido devolvido para a cidade. Belém e seus cidadãos merecem esse presente, até porque o Soledade reúne exemplares únicos da arte funerária e conta histórias de um período muito singular da cidade. Por tudo isso, a FADESP fez toda a gestão administrativa e orçamentária do projeto, enquanto a equipe do LACORE podia ficar tranquila para colocar suas expertises em prática. O resultado não poderia ser melhor: um novo parque para a cidade, com importância histórica e, na prática, um exemplo muito bom do que Fundações de Apoio podem fazer", afirma Roberto Ferraz Barreto, diretor executivo da Fundação.
A pedagoga Elaine Palheta escolheu um sábado de pouco sol e temperatura amena para conhecer o cemitério parque. Foram horas analisando cada detalhe e em cada parada a vontade de conhecer mais a história de cada túmulo identificado crescia. "É muito >>>
Patrim Nio Hist Rico
interessante. O Pará precisa construir esse processo de preservação da sua história, essa parte não é valorizada, precisa ter esse resgate, sim. Eu penso que o Soledade é um bom resgate da nossa história, mas estou sentindo falta, onde já foi restaurado, é um pouco mais dessa história. As plaquinhas citam o nome, as datas de nascimento e falecimento, porém não tem a história daquela pessoa e tem algumas pessoas importantes, tem visconde que já foi presidente da Província do Grão Pará, mas tem muito pouco da história. Então eu penso que, por ser justamente um ambiente de determinado ponto da história do nosso estado, ele precisa trazer mais esse resgate pra gente, pra que seja um espaço realmente cultural de resgate da nossa história".
Como o processo de restauração do Espaço ainda está em andamento, a Secult explica que, em breve, haverá um incremento na disponibilização das informações. "O levantamento historiográfico foi feito em parceria com o Instituto do Patrimônio Histórico e
Histórias que se cruzam Enquanto no Largo da Pólvora, hoje Praça da República, ficava o cemitério dos escravos, onde sequer foi erguida uma capela, no Soledade, além dos escravos, eram enterrados condenados à morte, excomungados e os avessos à religião católica. Aos de classes mais privilegiadas eram destinados túmulos dentro das igrejas, mas uma crise sanitária causada pelas epidemias de cólera e febre amarela fizeram as autoridades repensarem esse tipo de sepultamento com milhares de mortos em tão pouco tempo. Foi assim que um espaço público chamado de "Cemitério das Valas" foi delimitado, ganhou uma capela e passou a ser chamado de Nossa Senhora da Soledade.
Sem distinção de raça ou classe social, o cemitério foi inaugurado em em 1850 e nos poucos anos que ficou em atividade estima-se que tenha recebido cerca de 30 mil sepultamentos. Os jazigos e mausoléus construídos para guardar corpos e memórias dos entes queridos se traduzem em verdadeiras obras de arte, cheias de saudade, afeto e muito simbolismo. Anjos, leões, vasos em fogo e flores transbordam sentimentos e desejos de imortalidade a quem teve a matéria enterrada naqueles palmos de terra.
Artístico Nacional IPHAN, o departamento de patrimônio artístico e cultural do estado DPAC e a própria Universidade Federal do Pará. As informações que estão nas placas, apesar de serem poucas, são as informações que entendemos naquele momento serem necessárias para que a população pudesse se informar. Mas a história, o trabalho expográfico, o trabalho museológico continua sendo realizado. E o objetivo é realizarmos cada vez mais uma melhora do material e a entrega para população", disse o secretário.
"O Parque Cemitério da Soledade é um tesouro. Aqueles que, como nós, permitirem-se apreciar, sem preconceitos, esse acervo, serão surpreendidos, não por um ou dois, mas muitos encantos. Os detalhes, aspectos artísticos, históricos, da memória afetiva e popular estão ali representados. De fato, o Soledade é um museu a céu aberto, cercado de muita história e belíssimo acervo. Que saibamos todos apreciar e bem cuidar", concluem as coordenadoras do LACORE.
O marajoara Antônio Lacerda Chermont, militar que foi presidente da Província do Grão Pará, mais conhecido como Visconde do Arari, foi sepultado em um mausoléu de estilo neoclássico, em posição de destaque, onde também estão outros membros da família.
O Visconde de Arari era pai de outra figura da política paraense: Justo Chermont, que foi governador do Estado e, posteriormente, senador da República.
Mas Justo, imponente como político, viu a dor dilacerar seu coração quando a filha Cecília, a quem chamava de princesa, morreu. A jovem morava em Paris e Justo mandou construir, no Soledade, um mausoléu digno de uma princesa para receber o corpo da filha. Com portões de ferro fundido, peças em mármore, vitrais e até janelas, a última morada de Cecília Chermont também recebeu um busto dela.
"O mausoléu da Cecília Chermont tem vitrais, então a recuperação deu toda a atenção pra ele, foi muito bem recuperado e é muito interessante a gente sentir a história que era contada pelos avós e bisavós. Eu cheguei aqui e senti como um museu, um patrimônio nosso, resgatando nossa história. O impacto da reforma, principalmente desse mausoléu, que é o único que tem janelas, foi muito interessante porque era uma coisa que se dava pouca importância", conta Larissa Chermont, sobrinha bisneta de Justo e prima distante da 'princesa' Cecília.
Larissa, que é economista e professora da UFPa, descendente de uma linhagem política que marcou a história do Pará, vê o público e o privado se misturar de forma positiva.
"No nosso caso, pessoal, como família, é um resgate de lembranças das coisas que minha bisavó contava e aqui eu fiquei mais próxima. Então é uma satisfação pessoal e como cidadã sentindo a nossa história sendo resgatada", conclui.
Quem também não esconde a satisfação de ver toda essa transformação no cemitério parque da Soledade é a arquiteta Jussara Derenji. Foi dela, em 1993, a primeira proposta de transformar o Cemitério da Soledade em Museu de Arte e História, quando estava diretora de Patrimônio Histórico de Belém. Do projeto que ela doou à Fundação Cultural de Belém (Fumbel), apenas a recuperação da alameda central, que conduz à capela, foi realizada.
Jussara lembra que o estado do Cemitério, tombado como Patrimônio Paisagístico pelo IPHAN desde os anos 1940, entre os anos de 1993 e 1995, período em que ela o estudou e fez o projeto, era precário e alvo de muitos roubos e vandalismo. Na época, ainda existiam nos quatro cantos do cemitério as delimitações das irmandades às quais pertenciam. Hoje é possível ver as ruínas de apenas uma dessas áreas, na esquina da avenidas Serzedelo Furtado e Gentil Bittencourt.
Para ela, ver sua ideia original, mesmo com todas as mudanças necessárias à execução, sair do papel 30 anos depois, é gratificante.
"Tudo que é feito para o bem da memória coletiva, da autoestima da população, da melhora no sentido de pertencimento, me deixa extremamente gratificada. É um trabalho de poucos especialistas, gerações que vêm se formando para contribuir para a melhoria da cidade. Não se pense que o novo parque celebra a morte. Estamos recuperando memórias, lembranças, tradições e até mitos. Estamos nos conscientizando de valores e de pensamentos que nos antecederam e fazem parte das nossas próprias atitudes e valores. Por último, mas não menos importante, é preciso tornar mais consistente e eficiente o trabalho de recuperação do pouco que restou de esculturas e metais trabalhados. Isso daria a dimensão artística, que foi um dos meus maiores motivadores para fazer esse projeto, e ainda não foi realizado. Espero que seja", almeja a profissional que concebeu a primeira ideia de toda essa transformação.
Roseane Norat, uma das coordenadoras do projeto de restauração, junto com as professoras Thaís Sanjad e Flávia Palácios, lembra que o tratamento dado para a transformação do cemitério da Soledade em parque urbano é pioneiro no país. "Até a entrega desta primeira etapa são mais de três décadas em que apenas obras pontuais foram realizadas, o que levava a uma progressiva deterioração. Compreendemos que embora se saiba que ainda há o que se fazer, este é, sem dúvida, o melhor momento. E o reconhecimento como um Parque também exige a educação e sensibilização de parte da população para compreender a dimensão e importância desse projeto, não apenas por sua questão cultural, mas também como propulsora da economia, turismo e desenvolvimento social em nosso estado".
Serviço: Cemitério Parque da Soledade
Visitação: de segunda a quinta-feira, das 9h às 17h
Fechado: às terças e quartas-feiras Entrada gratuita