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Aproprie-se, é seu.

Memória e preservação do patrimônio.

Existem inúmeras razões para a preservação do patrimônio construído, sem demérito da valorização e reconhecimento do patrimônio imaterial que nos últimos anos tem ganho protagonismo, e espaço, nas discussões sobre a elaboração de uma memória coletiva que se reflita em ações efetivas sobre o tecido urbano.

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As possibilidades de Belém em ambos os campos, patrimônio material e imaterial, são claramente perceptíveis a quem as analisa, mas parecem ainda, em pleno século XXI, merecer apenas ações esparsas e sem inter-relações que possam conduzir a uma efetiva conscientização e apropriação pelos habitantes da cidade, a quem afinal se destinam.

O desaparecimento de alguns símbolos dessa esgarçada memória perturba a inércia generalizada que envolve as ações de preservação, mas não tarda em desaparecer em meio às preocupações imediatas, num dia a dia invadido, cada vez mais, pela informação imediata e volátil dos meios digitais.

No meu campo de conhecimento, o do patrimônio ambiental, constituído pela paisagem construída ou natural, predomina o material, ainda que se reconheça a presença e força do imaterial na constituição de significados simbólicos, e também na criação de novas leituras.

Alguns estudos de casos recentemente ocorridos, ou por desastre ou por ações diretas do poder público, merecem uma observação mais atenta. A queda de uma árvore centenária, a Sumaúma da Praça Santuário, ou a recuperação de um palacete do século XIX, Palacete Faciola, são alguns deles, mas sem dúvida, o ineditismo da transformação do Cemitério da Soledade, abandonado há décadas no centro da cidade, se presta de forma cabal a essa análise e crítica.

No cemitério se reúnem as condições e possibilidades de constituir-se essa memória coletiva e partilhada da qual se espera que a população se aproprie e nela se reconheça, podendo então fazer com que a preservação não seja apenas uma responsabilidade estatal, mas constitua uma forma de pertencimento valorizada e desejada pela população.

O cemitério da Soledade teve um curto período de funcionamento como área de sepultamentos, foi o primeiro espaço organizado especificamente para esse fim na cidade, que já contava com mais de duzentos anos quando isso aconteceu. Surge numa fase em que, na Europa, então o espelho de toda a constituição urbana regional, apareciam os chamados cemitérios monumentais. Em amplas áreas das maiores e mais importantes cidades europeias, esses locais formavam grandes espaços abertos, arborizados, muitas vezes como em Gênova, no cemitério de Staglieno, usando elevações naturais do terreno para exibir verdadeiras galerias de arte a céu aberto. Neles se exibiam mármores e bronzes dos maiores escultores do período na criação de cenas completas ou estatuária isolada. Além da função específica, de cultuar memórias e lembranças, eram e ainda são visitados pelas esculturas de alto valor artístico. O cemitério de Belém foi tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, como Patrimônio Paisagístico, um dos primeiros casos dessa forma de reconhecimento de valor patrimonial no país, ocorrido em 1941, quando o órgão tinha apenas quatro anos de atividades.

As leituras desse espaço apresentam várias possibilidades, dentre elas a de sua principal característica para o tombamento, o paisagismo, hoje reduzido à preservação de mangueiras centenárias, mas que apresentam formas exuberantes e naturais por não terem sofrido as podas deformantes das remanescentes em vias públicas.

Os valores simbólicos elaborados por esse espaço transcendem, porém, aos aspectos bucólicos de suas espécies vegetais. O traçado em quadrantes se confirma nos quatro cantos antes delimitados e cercados por serem privativos, e responsabilidade de antigas irmandades. À semelhança da cidade, o espaço do Soledade reproduz as diferenças sociais do período, nas alamedas frontais que se dirigem à capela, estão as grandes famílias, os membros ilustres: clérigos, políticos, militares e senhores de terras. Nos quadrantes posteriores a lembrança dos menos reconhecidos membros da mesma sociedade, igualados, todos, no destino final.

Quando, em 1995, propus a criação desse espaço como um Museu de Arte e História, procurava o reconhecimento do valor artístico de suas esculturas, muito bem exemplificadas em obras realistas e elaboradas, mas também chamar a atenção para as mensagens menos explícitas elaboradas em textos ou imagens com significados nem sempre perceptíveis na nossa era. Os pais amantíssimos, as esposas amadas, a inocência das crianças, os amigos perdidos, recebiam, cada um, sua simbologia em flores, cornucópias, jarros, ampulhetas, tesouras cortando o fio da vida, árvores caídas ou flores fenecidas. Desgosto, tristeza e desalento eram entremeados pela exaltação dos valores, pela esperança de redenção. Nenhum símbolo talvez seja mais potente, nessas simbologias presentes no Soledade, do que a serpente que morde o próprio rabo, o símbolo do infinito, do eterno recomeçar. Não menos importante era mostrar o enlaçamento dessa multiplicidade de símbolos com a história regional, com as presenças, ilustres ou não, daquela cápsula do tempo, os cidadãos da cidade de Belém no final do século XIX. Afinal uma das maiores figuras aqui lembradas é a da escrava Domingas, em seu lugar de destaque como dos primeiros enterramentos e das mais bonitas homenagens feitas nesse local.

Foram precisas três décadas, variações e projetos, para que se concretizasse a proposta como Parque, local onde se reverencia a vida de uma cidade, em um tempo já passado, celebra-se a capacidade artística, lembranças e memórias que pertencem a todos os seus cidadãos.

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