5ª Edição da FIDES

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V. 3, n. 1, jan./jun. 2012. ISSN 2177-1383.



EDITORIAL

Após seis meses de intensa dedicação, floresce mais uma edição da Revista de Filosofia, do Direito e da Sociedade, a FIDES. Dois anos após nosso nascimento, a 5ª Edição vem renovar ânimos na busca pela concretização dos objetivos firmados no início do trabalho: a superação da reprodução chicleteana do saber e a valorização e o incentivo à produção acadêmica interdisciplinar. Por isso, desejamos ratificar a essência de nossa revista. De início, cabe relembrar as três nuanças do verbete FIDES: do latim, fides significa fé, confiança, valores que são aplicados na administração de uma produção científica de qualidade, inovadora e crítica; em seguida, FIDES como aglutinação de uma filosofia para desocupados, para os que não se atém ao conhecimento hermético, voltado para si mesmo, aos manuais formalistas, aos dogmas... Valorizamos as formas alternativas de saber... Por que não recriar o Direito e questioná-lo por vias não normativas? Isso é filosofia! Como última nuança, temos a FIDES como revista eletrônica, representando a democratização do acesso ao conhecimento por sua gratuidade e incentivo à produção científica prazerosa e sem formalismos, afinal, nosso processo editorial pauta-se pela simplicidade e informalidade. A publicação deste semestre intenta valorizar o que é nosso: nossa casa, a UFRN; nossos profissionais, os professores; nossa cultura local, nossos regionalismos, a arte de nosso povo. É por isso que, além das seções de artigos iniciais, artigos convidados e artigos científicos, trazemos uma homenagem especial a Deífilo Gurgel, artista potiguar que deixará saudades por sua partida, mas cujo brilho nunca se apagará. Dedicamos uma seção especial a uma sucinta biografia desse ilustre folclorista, a qual se complementa com a reprodução do poema de sua autoria intitulado “A tarrafa”, o qual serviu de inspiração para a confecção de nossa capa, obra de seu filho Fernando Gurgel, artista plástico, a quem deixamos o mais sincero agradecimento pela contribuição. Por fim, é publicada, na seção Literatura e Direito, a croniqueta “Argumento sedutor”, de autoria do professor Edilson Pereira Nobre Júnior. Aproveitem nossa quinta edição! Ótima leitura a todos!

Natal/RN, 30 de abril de 2012.

Conselho Editorial


SUMÁRIO

HOMENAGEM ESPECIAL A DEÍFILO GURGEL DEÍFILO GURGEL: GRANDE MESTRE DA CULTURA POPULAR A TARRAFA Deífilo Gurgel

6-8 9

ARTIGOS INICIAIS OS PRINCÍPIOS E A LÓGICA DEÔNTICA DERROTÁVEL Anderson Souza da Silva Lanzillo SITUAÇÃO JURÍDICA DOS ANIMAIS Edilson Pereira Nobre Júnior

10-15

16-23

ARTIGOS CIENTÍFICOS CONVIDADOS O DIREITO INTERNACIONAL E AS NORMAS DE JUS COGENS: UMA QUESTÃO FILOSÓFICA Thiago Oliveira Moreira

24-42

ARTIGOS CIENTÍFICOS ADOÇÃO POR CASAIS HOMOAFETIVOS: A QUEBRA DOS PARADIGMAS SOCIAIS, UM AVANÇO NECESSÁRIO Vanessa Pinto Maia

43-60

DA FALÊNCIA DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO: CONSTITUCIONALIDADE DA AUTORIZAÇÃO PARA A SAÍDA DE PRESOS CONDENADOS A REGIME SEMIABERTO NO RIO GRANDE DO NORTE Rafael Diógenes Marques

61-81

ENTRE A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL E A RESERVA DO POSSÍVEL: UMA ANÁLISE DA PROBLEMÁTICA EM TORNO DA EFETIVAÇÃO PREFERENCIAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES Mariana Camila Silva Catão

82-98

O BULLYING E O PRINCÍPIO DA CO-CULPABILIDADE Edyllânison Pereira do Nascimento

99-115

O DESCUMPRIMENTO INDISCRIMINADO DA LEI 11.788/08: O DESRESPEITO À FINALIDADE DOS ESTÁGIOS JURÍDICOS Alex Humboldt de Souza Ramos

116-127

O LEVIATÃ DE HOBBES COMO REVISÃO DA HISTÓRIA DAS PESSOAS JURÍDICAS

128-148


Eduardo Antônio de Oliveira Jean Barbosa Gibson PUBLICIDADE INFANTO-JUVENIL: PROIBIÇÃO E AMORTIZAÇÃO SEGUNDO A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Amanda Rocha dos Santos Renata Tavares Afonso Fonseca

149-167

TRANSEXUALIDADE: CIRURGIA DE ADEQUAÇÃO AO SEXO E OS PROBLEMAS JURÍDICOS DECORRENTES Marcel Fernandes de Oliveira Rocha

168-184

LITERATURA E DIREITO ARGUMENTO SEDUTOR Edilson Pereira Nobre Júnior

185-187


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DEÍFILO GURGEL: GRANDE MESTRE DA CULTURA POPULAR

“O Folclore tem que ser respeitado da maneira que ele sempre existiu no Estado, ou onde ele existir, e continuar da mesma maneira. Isso tem que ser levado para dentro das escolas, não só na forma didática, mas com apresentações dos grupos, para que os alunos vejam como eles são e se apresentam.” (Deífilo Gurgel)

Deífilo Gurgel nasceu em Areia Branca e, aos 18 anos, em 1944, veio para Natal com o objetivo de cursar o colegial. Aos 25 anos, casou-se com Dona Zoraide, considerada sua musa inspiradora. Com o nascimento de seus 9 filhos, não teve mais vontade de sair, “provinciano incurável”. A paixão pelo Folclore se tornou mais forte em 1970, aos 44 anos de idade. Nesse período, foi nomeado Diretor de Cultura do município de Natal. A partir das apresentações de grupos folclóricos, relembrando o que vivenciou na infância em Areia Branca ao assistir o Bumba meu Boi e o Pastoril, Deífilo ficou admirado com a beleza de tais apresentações. Essa grande dedicação o levou para o caminho da poesia e do Folclore, que se consolidou ao longo de sua vida nas atividades desempenhadas: poeta, escritor, pesquisador. Também foi professor de Folclore Brasileiro na Universidade Federal do Rio Grande do Norte durante 12 anos, apesar de ter se formado, em 1967, Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito de Natal.

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também por achar que a matéria-prima de suas obras estava aqui, ao se intitular um

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FIDΣS São várias as contribuições do grande mestre da cultura popular para o Folclore Nacional, como as obras “Danças Folclóricas do Rio Grande do Norte”, “João Redondo – Teatro de Bonecos do Nordeste”, “Espaço e Tempo do Folclore Potiguar” e “Manual do Boi Calemba”. Décadas de pesquisas foram documentadas por este folclorista, que, durante seus 85 anos, teve encontros marcantes no âmbito das pesquisas realizadas, por exemplo, com a maior romanceira do Brasil, Dona Militana, em São Gonçalo do Amarante, Chico Antônio (embolador de coco) e Câmara Cascudo. Deífilo escreveu 300 romances entre 1985 e 1995, com algumas atualizações, e concedeu mais de 100 entrevistas. Não poderia a Revista FIDES, portanto, deixar de render a Deífilo Gurgel, pelas inestimáveis contribuições à cultura popular potiguar, a devida homenagem.

REFERÊNCIAS

ARRUDA, Laurita. Morre Deífilo Gurgel. Disponível em: <http://lauritaarruda.com.br/ morre-deifilo-gurgel/90226>. Acesso em: 29 abr. 2012.

SOUSA, Carla. Deífilo Gurgel: o nome do folclore potiguar. Disponível em:

FIDES, Natal, v. 3, n. 1, jan./jun. 2012. ISSN 0000-0000

<http://www.ubern.org.br/?p=1022>. Acesso em: 29 abr. 2012.

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A TARRAFA

À sombra dos cajueiros que florescem junto ao mar, paciente, o pescador, tece a rede de pescar.

Enquanto a mão se entretece nesse mister singular, outra mão, por trás do tempo, vai tecendo, sem cessar,

a tarrafa que, algum dia, vai pescar o pescador, juntamente com seu tédio, seu sorriso e sua dor.

essa tarrafa de vento, que o pescador nunca pensa, quando pesca o seu sustento,

que a morte o está pescando, lentamente, dia a dia, nessa, embora inevitável, invisível pescaria. Deífilo Gurgel 

GURGEL, Deífilo. A tarrafa. 7 sonetos do Rio e outros poemas (1983). In: ______. Os bens aventurados: poemas reunidos (1961-2001). Natal: RN Econômico, 2005. p. 97.

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E, tece com tal mestria

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FIDΣS Recebido 15 mar. 2012 Aceito 29 abr. 2012

OS PRINCÍPIOS E A LÓGICA DEÔNTICA DERROTÁVEL Anderson Souza da Silva Lanzillo Antes considerado um tema novo ou mesmo um “atrevimento” do pensamento jurídico moderno contra o conservadorismo da doutrina e jurisprudência brasileira, os princípios figuram no pensamento e na prática atual como elemento chave de interpretação e aplicação, formando, para parafrasear Thomas Kuhn, o “discurso argumentativo normal” da ciência do Direito do Brasil. Contudo, a aplicação de princípios, antes aclamada como modernidade e vanguardismo do pensamento jurídico, passa aos poucos enfrentar críticas em razão da popularidade que essa aplicação passou a possuir. Antes instrumento de combate a um positivismo disfuncional, de apego exacerbado à letra da lei, impedindo a revelação de novas realidades, especialmente aquelas relacionadas à Constituição Federal de 1988, hoje esta mesma aplicação possui enfrentamentos pela acusação de ser a porta de subjetivismos ou mesmo um ativismo judicial inconsequente ou ilegítimo.

decisões judiciais, sejam as tomadas pelo Supremo Tribunal Federal, sejam as tomadas em Juizados Especiais Estaduais. Se antes a pergunta era saber se princípios eram fontes de integração do Direito, subsidiárias à lei, ou verdadeiras normas jurídicas, parece que hoje a pergunta resta no ponto de saber quais são os limites de aplicação dos princípios na argumentação jurídica e, por consequência, na fundamentação das decisões judiciais. Mas, realiza-se uma pergunta “curiosa”: por que os princípios são tão atrativos na sua utilização no moderno direito brasileiro? Talvez não seja compreensível esta indagação quando há um senso comum consolidado de que princípios sejam normas, mas a

Professor do Departamento de Direito Privado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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Apesar das críticas, os princípios seguem firmes em fundamentação de variadas

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FIDΣS argumentação jurídica pode ser realizada com bases em padrões que não apelem a princípios (Ex.: costumes, analogia). Onde, então, está o “charme” dos princípios? Para responder a esta pergunta, este trabalho analisa a questão a partir da premissa de que a utilização dos princípios é corrente e atrativa em razão da sua forma de funcionamento e a compreensão intuitiva desta forma de funcionamento. Há teorias que procuram explicar este funcionamento1, mas não vai ser nelas a busca desta fonte de explicação. Também deve ser alertado que há outras formas de explicar esta fonte em razão de circunstâncias históricas, econômicas e sociais que circundam o pensamento jurídico, mas que este não será o caminho aqui adotado. O caminho aqui adotado será travado a partir de um conceito chamado de “derrotabilidade”, que gerou no âmbito da lógica a “lógica deôntica derrotável” (defeasible deontic logic). A noção de derrotabilidade, como será vista, trouxe ao pensamento lógico uma maneira diferenciada de ver a relação de consequência lógica, especialmente aplicada ao universo das normas e, por isso, de relevância para a discussão dos princípios no pensamento jurídico. A lógica deôntica na sua forma moderna têm a sua estruturação em razão dos trabalhos de von Wright2. Para construir a lógica deôntica, von Wright partiu de uma analogia. Já era conhecida desde Aristóteles a chamada lógica modal, mas a lógica modal mais conhecida e trabalhada até aquele momento era a lógica modal alética, que lida com operadores (necessário, possível e contingente) e o modo como estes operadores impactam os valores de verdade. Com base na lógica modal alética, von Wright enxergou a possibilidade de transpor similar raciocínio para o mundo normativo, criando assim a lógica deôntica a

modal alética, a lógica deôntica possui nas ações o seu campo de investigação. Os trabalhos de von Wright passaram a constituir um sistema que na literatura sobre o tema passou a ser conhecido como “lógica deôntica padrão” (standard deontic logic – SDL). Entretanto, a discussão e a transposição deste sistema apara analisar o discurso normativo real passou a mostrar uma série de dilemas em retratar em nível lógico os problemas apresentados pelas normas, chegando-se ao ponto de, até hoje, indagar-se se o discurso normativo pode ser objeto de formalização pela lógica.

1

Vide o pensamento de Alexy e Dworkin. Vide VON WRIGHT, G. H. Deontic Logic. Mind, New Series, v. 60, n. 237, jan., 1951, p. 1-15. Disponível em: <http://www.wnswz.strony.univ.gda.pl/von%20wright,%20deontic%20logic.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2012. 2

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partir de modalidades deônticas (obrigatório, proibido e permitido). À diferença da lógica

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FIDΣS Um destes problemas tem a ver com a relação de consequência lógica. Na lógica tradicional, dado um conjunto de premissas, se elas são verificadas, suas consequências também vão ocorrer. Simplificando e colocando de maneira mais gráfica, dado A e dado B, se nas minhas premissas há que “Se A, então B” e eu tenho A, vai haver uma consequência B. Na lógica tradicional (lógica clássica), havendo a premissa, suas consequências vão ser verificadas. Isto significa que na lógica tradicional sempre que há a premissa, a consequência será gerada. Ou seja, dado A, nunca na lógica tradicional vai dar C ou E. Esta característica é chamada de monotonicidade, que num conceito simplificado significa: mesmas premissas, mesmas consequências. Partindo deste aspecto da lógica tradicional, é fácil verificar que ela não se aplica ao raciocínio normativo usado no Direito. Seja pela previsão explícita de exceções, seja pela consideração de outros argumentos (como o dos princípios, que aqui é o caso), há muitas situações que, mesmo com a realização da premissa legal, não vai se dar o resultado esperado ( Ex.: se mato alguém, cometo homicídio, mas se mato alguém em legítima defesa, não é o caso do homicídio). Esta peculiaridade despertou em vários teóricos a consciência no sentido de encarar o discurso normativo não do ponto de vista do sistema da lógica clássica. A solução, então, foi buscar a construção de lógicas não-clássicas que comportassem um comportamento não monotônico. E para explicar este aspecto das normas foi cunhado o termo derrotabilidade. A derrotabilidade pode ser caracterizada como uma maneira nova de enxergar a relação de consequência lógica no pensamento normativo. Navegando por diversos autores, procura-se ilustrar a norma jurídica com uma relação entre um antecedente + um consequente.

apresentar as normas é que elas apelam para a lógica tradicional e assim colocam a relação de condição lógica em termos absolutos. A derrotabilidade vai colocar que as normas não são condicionais absolutos, mas superáveis, gerando consequências opostas ou mesmo diversas das presentes como consequências para os antecedentes normativos. Isto altera profundamente a visão da norma jurídica e, na perspectiva deste trabalho, sublinha de forma inconsciente toda a literatura jurídica no século XX e ainda no século XXI sobre a diferença de regras e princípios. Não entrando na discussão se todas as normas jurídicas são derrotáveis, há vários aspectos que são apontados para explicar a derrotabilidade das normas jurídicas3: a) o caráter 3

Vide BAYÓ, Juan Carlos. ¿Por qué es derrotable el razonamiento jurídico? In: Doxa, Cuadernos de Filosofia del Derecho, 24, 2001, p. 5-65. Disponível em:

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É o famoso “Se A, então B”, inclusive aqui já utilizado. O problema desta abordagem ao

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FIDΣS da discussão processual do Direito, exigindo que as partes sustente a existência ou não existência de condições que levam a justificar a manutenção/não-manutenção do consequente da norma jurídica (Ex.: Se se ultrapassa o sinal vermelho, aplica-se multa. Mas o réu alega que estava levando à mãe ao hospital. A norma não prevê esta exceção. Considerando-se a discussão processual, o caso concreto, deve (não) se dar o consequente (multa)?; b) presença de informação incompleta, não se tendo conta, quando comparada a norma com a realidade, todas informações relevantes e com isso circunstâncias que podem compor ou não exceções (Ex.: circunstancias que não estavam muito claras ao tempo da edição de uma norma, mas que se tornam transparente com sua aplicação ao longo do tempo; c) as normas não são semanticamente já determinadas de modo imediato pela legislação, podendo (e muitas vezes contendo) indeterminações e aberturas para outros significados (Ex.: o avanço da biologia e da ciência em geral trouxe outros significados para o termo “vida” que, quando disposto na legislação, assume matizes impensados e mesmo variados para uma legislação teoricamente “uma”); d) as normas também estão relacionadas com a intenção dos agentes, sendo derrotáveis em razão do aspecto pragmático envolvido no discurso jurídico; e) interações entre princípios e regras, o que tornaria as normas em si derrotáveis. Nesta última razão reside o interesse deste trabalho. Quando se quer chamar a atenção para relação entre princípios e regras, não se quer entrar em debates como colisão, ponderação, casos difíceis entre outros de mesmo quilate, já que isto seria contraditório com o objetivo deste trabalho. Pelo contrário: quer-se pelo conceito perfilado de derrotabilidade mostrar como isto de fato funciona e porque a sua recorrência no pensamento jurídico brasileiro moderno.

atuam como argumentos jurídicos para superar os antecedentes com o intuito de construir consequentes opostos ou diferentes consequentes. Veja que a articulação do princípio dentro deste matiz teórico foge de considerações finalísticas, estados de coisa ou razões de justiça, invocando seu papel procedimental na argumentação jurídica. Assim, os princípios atuam como elementos “desestabilizadores” de condições explícitas ou implícitas como antecedentes, mostrando que outros consequentes devem ser buscados. Se a realização de um antecedente implica num consequente e este consequente é

<http://bib.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/01372719768028837422802/index.htm>. Acesso em: 20 abr. 2012; CARACCIOLO, Ricardo. Normas derrotables: la concepción de Carlos Alchourrón. In: ANÁLISIS FILOSÓFICO XXVI, n. 1, maio 2006, p. 156-177. Disponível em: <http://www.scielo.org.ar/scielo.php?pid=S1851-96362006000100009&script=sci_abstract&tlng=en>. Acesso em: 20 abr. 2012.

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Com as ponderações realizadas, do ponto de vista da derrotabilidade os princípios

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FIDΣS indesejável por alguma razão, o princípio atua para mostrar que o antecedente está montado sobre condições que não justificam o antecedente perante este mesmo princípio. O princípio opera como um verdadeiro revisor de condições colocadas na legislação, mostrando que elas não sustentam a aplicação absoluta que em primeiro se busca por meio de uma norma (a pretensão de aplicação a princípio absoluta de uma norma é chamada muitas vezes na literatura recente da lógica deôntica de obrigações prima facie. São prima facie por que seus consequentes devem ser aplicados até que haja razão que sustente a sua não aplicação). Mas mesmo assim, persiste uma questão: mas por que os princípios? Ora, se os princípios desestabilizam as condições pressupostas na norma, sozinhos eles não podem atuar. Entretanto, neste ponto revela-se o álibi teórico perfeito que os princípios proporcionam ao pensamento jurídico brasileiro moderno. Como assim? Dado que os princípios são considerados normas e, sendo eles considerados normas válidas de um sistema jurídico (pelo menos no Direito Brasileiro), a estratégia passa pela enganadoramente simples conclusão de que ao aplicar o princípio o jurista aplica o Direito. Trocando em outras palavras, o jurista (doutrinador, juiz, promotor, entre outros) não está saindo do sistema, mas apenas aplicando, “concretizando”, norma que pertence a este sistema. Não se discute nada “extra-“, pois se está olhando o “núcleo conteudístico” e aplicando o que este núcleo exige. E se o princípio (com tudo que tem direito) está no Direito, não há ativismo judicial (ou como se diz correntemente, aplica-se apenas a Constituição). O princípio é a válvula de escape pela qual qualquer decisão, desde que envolva um princípio, não desempenha nenhuma função legislativa ou executiva. Meramente judicial. Por esta razão a fábrica de princípios está a pleno vapor. Afirmam-se os princípios contra o apego à Lei, mas Como os princípios estão “dentro” do sistema, por esta razão é que ouvir falar em doutrina ou jurisprudência de outras fontes “integradoras” do Direito virou matéria apenas de manual, livros e prova, mas que carece de real utilização no Direito Brasileiro atual. Pense: há quanto tempo você vê uma decisão baseada nos “costumes”? Na “equidade”? Na “analogia”? No Brasil, faz tempo que não. E por quê? Porque, como aponta o próprio nome, se são integradoras, elas não estão já dentro do sistema. O sistema apenas autoriza que se busque, mas sem dar maior estofo de justificação do que e como buscar esta integração. Princípio, não. Dá as ferramentas para ocultar o desejo de superar consequentes indesejáveis. Mas será que o princípio dá tudo o que promete? Pense no caso recente do julgamento da anencefalia. A norma penal já falava em permissão do aborto em caso de

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operam-se no apego ao Direito sem realidade social, ainda que se diga o contrário.

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FIDΣS estupro e perigo de vida para a gestante. Mas anencefalia? Sim, o princípio da dignidade humana não aceita que uma mulher gere um ser que não é viável, que não vai desenvolver-se. O princípio da dignidade humana operou no julgamento para discutir uma condição que antes era mais estável até pouco tempo: o sentido da vida. Mas, o que este trabalho quer iluminar sobre um caso deste é a questão da racionalidade jurídica: Que vida exige este princípio? A vida viável é algo que já é conteúdo da dignidade da pessoa humana? É conteúdo desta norma? Está no sistema? Recorre à situação social e está no sistema? Apontadas as implicações que o conceito de derrotabilidade revela na explicação do funcionamento dos princípios, mostra-se que há para os juristas no Brasil contemporâneo o desafio de discutir os parâmetros reais e efetivos que são utilizados nas argumentações jurídicas por debaixo da capa do princípio. A não ser que, como seres extasiados, a plateia prefira admirar apenas as maravilhas que operam, como perante um mágico, que retira qualquer coisa de sua cartola, embora ciente que há um truque e que este truque possa ser

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muito bem explicado.

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FIDΣS Recebido 15 mar. 2012 Aceito 22 abr. 2012

SITUAÇÃO JURÍDICA DOS ANIMAIS Edilson Pereira Nobre Júnior Aspecto de bastante interesse – e, sem dúvida, de atualidade inconteste – no estudo da ciência jurídica diz respeito à análise em torno da situação jurídica dos animais. Devem ser considerados como meros objetos de relações jurídicas? Ou, em sentido diametralmente oposto, é chegado o instante do reconhecimento da sua personalidade? Tais questões são instigantes e tornam a desafiar a argúcia dos juristas. A concepção prevalecente no direito romano era a de que os animais não passavam de coisas, sendo objeto de direito1. A propósito, Max Kaser (1999) aponta que, dentre as várias classificações então admitidas, os animais, quando demonstrada sua utilidade para o trabalho humano, como era o caso do gado graúdo (bois, cavalos, jumentos etc.) eram considerados res mancipi. Afigurava-se, pois, imprescindível, para sua transferência, solenidade especial (mancipatio). Noticia ainda o surgimento, à época pós-clássica, de classificação tripartite em coisas móveis, imóveis e semoventes, abrangendo esta categoria os

Disso parece não haver destoado nosso direito pré-codificado. Nesse sentido, a Consolidação das Leis Civis, aprovada pelo Decreto 2.318, de 22 de dezembro de 1858, no seu art. 46, considerava imóveis por destino, dentre outros, o gado dos engenhos enquanto a estes se achassem unidos. No art. 48, considerava partes integrantes das fábricas de mineração e de açúcar os bois e cavalos efetivamente empregados nos seus trabalhos.

Professor da Faculdade de Direito do Recife (UFPE), instituição na qual concluiu mestrado e doutoramento em Direito Público. Desembargador do Tribunal Regional Federal a 5ª Região. 1 Recuando-se mais um pouco no tempo, essa orientação também foi a orientação do direito babilônico que, ao tratar da propriedade, distinguia os bens entre imóveis e móveis. As diferenças, consoante Federico Lara Peinado (2003), concernentes ao tratamento da reivindicação das coisas, bem assim quanto à sua transmissão hereditária, apartam, dentre tais classes de bens, os campos, hortos e casas, por um lado e, doutro, os animais, escravos, cereais, barcos, ouro e prata.

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escravos e animais.

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FIDΣS No Esboço elaborado por Teixeira de Freitas, no intervalo de 1859 a 1865, com o objetivo de servir de anteprojeto ao futuro Código Civil, restou de forma cristalina abraçada a concepção que equiparava os animais às coisas. O art. 388 definia coisas móveis por natureza todas aquelas suscetíveis de movimento próprio ou estranho. Em seguida, denominava semoventes as coisas móveis por natureza que por si podem mover-se dum lugar para outro. Num tom conclusivo, definia semoventes no seu art. 390, nos seguintes termos “Os semoventes ou são animais bravios, ou domésticos, ou domesticados. São animais bravios os de qualquer espécie, que vivem naturalmente livres, sem dependência do homem”. Esse pensamento foi, igualmente, revelado por alguns códigos civis. O diploma de 1916 dispunha, com minudência, sobre a matéria. Após explicitar no seu art. 47 serem móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, podia-se vislumbrar a ideia com mais evidência no art. 593, em cujos incisos I a III se enumeravam como coisas sem dono e suscetíveis de apropriação as seguintes: a) animais bravios, enquanto entregues à sua natural liberdade; b) os mansos e domesticados que não forem assinalados, desde que tivessem perdido o hábito de voltar ao lugar onde costumam recolher-se, salvo se fugitivos de seus donos e enquanto seus donos ainda lhe andarem em sua procura; c) os enxames de abelhas, anteriormente apropriados, se o dono da colméia não os reclamar imediatamente. Também regulava a caça e a pesca (arts. 594 a 602), estabelecendo o critério, em ambos os casos, da presunção relativa de propriedade em favor do caçador e do pescador. Ao assim disciplinar o estudo do tema, seguia a pretérita codificação orientação fincada pelo Código Civil francês que, ao depois de afirmar que os bens são móveis por natureza ou por determinação legal (art. 527), dispõe, mais explícito, no seu art. 528: “São

outro, seja os que se movem por si mesmos, seja os que apenas podem mudar de lugar por efeito de uma força estranha”2. Nessa linha, o Código Civil argentino que, ao depois de definir coisas como todos os objetos materiais suscetíveis de possuir um valor (art. 2.311), reputa como móveis as que são capazes de transportar-se de um lugar para outro, com movimento movendo-se por si, ou por força externa (art. 2.318). Culmina por mencionar como suscetíveis de apropriação os peixes 2

Tradução livre do autor para o art. 528 do Código Civil francês: “Sont muebles par leur nature les animaux et les corps qui peuvent se transporter d’un lieu à un autre, soit qu’ils se meuvent par eux-mêmes, soit qu’ils ne puissent changer de place que par l’effet d’une force étrangère”. Disponível em: <www.ligiera.com.br/codigos/cc_frances_(em _frances).pdf>. Acesso em: 17 abr. 2012. O preceito está redigido de acordo com as modificações impostas pelo art. 25 da Lei nº 99 – 5, de 06 de janeiro de 1999, que dispõe sobre a situação jurídica dos animais perigosos e errantes, bem assim à proteção dos animais. Por isso, a consideração dos animais como objeto de direitos persiste na doutrina, conforme se colhe de observação lançada por Bernard Teyssié (2010, p. 1).

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móveis por sua natureza os animais e os corpos que podem ser transportados de um lugar para

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FIDΣS dos mares interiores, territoriais, e dos rios e lagos navegáveis, ressalvadas as disposições dos regulamentos da pesca marítima ou fluvial, bem como os enxames de abelhas, contanto que o proprietário não os reclame imediatamente (art. 2.343, nº 1 e 2). O Código Civil espanhol, a pretexto de enumerar bens imóveis, aponta os viveiros de animais, colméias e tanques de peixes e criatórios análogos (art. 334, nº 6). Por seu turno, o Código Civil de 2002 não deixou de expor no texto essa concepção. Basta notar que, embora não forneça uma definição de animais, propende, de maneira implícita, para uma qualificação deles como algo sobre o qual incidem faculdades ou poderes jurídicos. Isso é suscetível de demonstração quando o diploma vigente também permite que aqueles possam ser qualificados como bens móveis, em face de serem suscetíveis de locomoção por movimento próprio (art. 82). A doutrina, em seu perfil mais tradicional, mostra-se nessa direção. Caio Mário da Silva Pereira (2001), logo após haver afirmado que a ordem jurídica limita a concessão da personalidade jurídica ao ser humano, e aos entes morais por aquele criados, excluindo de seu âmbito outros seres vivos, deixa explicitado que o tratamento dispensado aos animais decorre de sua utilidade para o homem e do propósito de tutelar os bons costumes, impedindo brutalidades inúteis. O mesmo vislumbra Jorge Llambías (1999), para quem em vão se pretendera a uma concessão da personalidade jurídica aos animais, pois quando estes são protegidos contra a crueldade eventual dos homens se tem em vista a necessidade de retificar os maus sentimentos. Adianta que a vedação à caça ou à pesca em certos lugares ou épocas, por

quais poderiam resultar sensivelmente prejudicados por um extermínio em massa e que, da mesma forma, a proibição das corridas de touros não é posta no interesse desses animais, mas sim para impedir nos expectadores o desenvolvimento de sentimentos de crueldade, por reputá-los imorais ou socialmente perigosos. Essa concepção vem sendo alvo de resistências, ao argumento de não mais corresponder à evolução pela qual tem passado o campo das preocupações jurídicas. Assim Francisco Amaral (2006), sem embargo de persistir em se mostrar vinculado ao pensar de que os animais são coisas, devendo o direito protegê-los para garantir-lhes sua função ecológica juntamente com o propósito de afastá-los da crueldade humana, não desmente ser delineável pretensão tendente a conduzir à afirmação de sua personalidade jurídica.

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exemplo, é feito unicamente para o resguardo de interesses econômicos, sempre humanos, os

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FIDΣS Explícito, manifesta-se Guido Alpa (2001), ao acentuar que os paradigmas firmados durante o século XIX se encontram alterados, de sorte que os animais se transmudam em titulares de direitos pela sua própria condição, revelando-se uma tentativa de outorga duma dimensão tal qual a humana, com o reconhecimento, para tanto, de sentimentos de dor e de sofrimento3. Sem sombra de dúvida, isso decorre da tendência voltada para se conferir direitos aos animais, os quais deveriam lograr atenção pelo sistema jurídico por si mesmo e não pela sua utilidade para o homem, movimento que se acelerou com a disseminação de direitos em favor daqueles, mediante declarações de direitos internacionais, ou pela sua previsão em legislações especiais de vários países. Daí se poder citar a Declaração Universal dos Direitos do Animal, promulgada pela Unesco em 15 de outubro de 1978, na qual se consagra que todos os animais têm direitos iguais à existência no quadro dos equilíbrios biológicos (art. 1º), bem assim que toda vida animal tem o direito ao respeito (art. 2º). No mesmo diapasão, também são invocáveis: a) a Convenção Europeia sobre a Proteção dos Animais nos Locais de Criação, de 06 de fevereiro de 1976, ampliada pelo Protocolo de Alteração de 06 de fevereiro de 1992; b) Convenção Europeia para a Proteção dos Animais de Companhia, de 13 de novembro de 19874; c) Convenção Internacional de Espécies Ameaçadas de Fauna e Flora Silvestre. Recorrendo-se a ordenamentos estrangeiros, é possível a menção à Lei portuguesa 92, de 12 de setembro de 1995, relativa à proteção dos animais, que, à guisa de princípio geral, dispõe, no seu art. 1º, nº 1, que “são proibidas todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os actos consistentes em, sem necessidade, se infligir a

Ainda no seu art. 1º, tem-se em complemento o nº 3, alíneas a a f, enumerando como proibidos vários comportamentos que resulte em perversidades aos animais5. 3

Interessante transcrição das palavras do autor (obra citada, p. 327): “Ocorre, porém, assinalar que os pressupostos que moveram os legisladores oitocentistas estão mudados: o animal, de objeto de direito torna-se dotado de direitos, e é, portanto, tutelado <<em si e por si>>, e se tende a projetar sobre os animais uma concessão humana, que tem em conta a sua dor, sofrimento e sentimentos”. Tradução livre para: “Occorre però segnalare che i presupposti da cui muovevano i legislatori dell’Ottocento sono mutati: l’animale, da oggetto di diritti diviene un essere.dotato di diritti, ed è dunque tutelato <<in sé e per sé>>, e si tende a proiettare sugli animali una concezione umana, che tiene conto del loro dolore, della sofferenza, dei sentimenti”. 4 Referindo-se aos princípios fundamentais para o bem-estar dos animais, o seu art. 3º proclama: “1 – Ninguém deve inutilmente causar dor, sofrimento ou angústia a um animal de companhia; 2 – Ninguém deve abandonar um animal de companhia”. Disponível em: <www.diramb.gov.pt>. Acesso em 11 fev. 2008. 5 Para uma melhor compreensão, eis o texto do aludido preceito: “3 - São também proibidos os actos consistentes em: a) Exigir a um animal, em casos que não sejam de emergência, esforços ou actuações que, em virtude da sua condição, ele seja obviamente incapaz de realizar ou que estejam obviamente para além das suas possibilidades; b) Utilizar chicotes com nós, aguilhões com mais de 5 mm, ou outros instrumentos perfurantes, na condução de

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morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões a um animal”.

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FIDΣS No Brasil, essa preocupação ficou além dos confins da função legislativa, chegando a permear os trabalhos constituintes. De fato, o art. 225, §1º, VII, da Constituição vigente, elencou, dentre as incumbências do Poder Público, no particular da tutela do meio ambiente, a de proscrever as práticas tendentes a submeter os animais à crueldade. A eficácia de tais dispositivos logrou reconhecimento pela jurisdição constitucional em mais de uma oportunidade. Numa delas, tem-se o RE 153.531-8/SC, no qual se acolheu pleito para proibição do evento “farra do boi”, justamente por representativo de crueldade contra animais, o que não poderia subsistir ao fundamento de que se tratava de manifestação cultural sob o pálio do art. 215, §1º, da Constituição Federal. Preponderou, portanto, o reconhecimento de ofensa ao art. 225, §1º, VII, do mesmo diploma6. Outra

assentada

consistiu

na

ADI

3.776-5/RS7,

onde

restou

declarada

inconstitucional a integralidade da Lei 7.380/98 do Estado do Rio Grande do Norte, que autorizava, com a devida regulamentação, a criação, realização de exposições e competições de aves das raças combatentes, justamente por submeter animais a tratamento cruel. A proteção dispensada pelo art. 225, §1º, VII, da Lei Fundamental, ganhou reforço a nível legislativo. Prova disso a Lei 9.605/97 traz várias tipificações de crimes incidentes sobre condutas humanas prejudiciais às espécies animais. Igualmente, a Lei 11.794/2008 disciplina os procedimentos a serem adotados nas atividades de ensino e de pesquisa a envolver a utilização de animais. Esse complexo normativo tutelar, que tivemos a pretensão de enumerar parcela

animais, com excepção dos usados na arte equestre e nas touradas autorizadas por lei; c) Adquirir ou dispor de um animal enfraquecido, doente, gasto ou idoso, que tenha vivido num ambiente doméstico, numa instalação comercial ou industrial ou outra, sob protecção e cuidados humanos, para qualquer fim que não seja o do seu tratamento e recuperação ou, no caso disso, a administração de uma morte imediata e condigna; d) Abandonar intencionalmente na via pública animais que tenham sido mantidos sob cuidado e protecção humanas, num ambiente doméstico ou numa instalação comercial ou industrial; e) Utilizar animais para fins didácticos, de treino, filmagens, exibições, publicidade ou actividades semelhantes, na medida em que daí resultem para eles dor ou sofrimentos consideráveis, salvo experiência científica de comprovada necessidade; f) Utilizar animais em treinos particularmente difíceis ou em experiências ou divertimentos consistentes em confrontar mortalmente animais uns contra os outros, salvo na prática da caça”. 6 Eis transcrição da ementa: “COSTUME – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ESTÍMULO – RAZOABILIDADE - PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – ANIMAIS – CRUELDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado “farra do boi””. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 2ª Turma. Rel. Min. Marco Aurélio, DJU 13.03.98). 7 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 3.776. Pleno. Rel. Min. Cezar Peluso. j. 14.06.2007. DJU de 26.06.2007. No voto-condutor foram referenciados precedentes na ADI 2.514 e ADI 1.856.

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relevante, jamais implica reconhecer a titularidade de personalidade jurídica.

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FIDΣS Esse atributo tem como consequência imprescindível a participação em relações jurídicas, inclusive – e com frequência – de natureza patrimonial, feito impossível de ser atribuído aos animais. Estes, afirme-se, não podem emitir validamente manifestações de vontade em matéria de negócio jurídico. Assim, o que o direito denomina como personalidade jurídica é – e deverá continuar sendo - apanágio privativo das pessoas. Quanto às pessoas físicas, decorre do postulado, cardeal no constitucionalismo hodierno, da dignidade da pessoa humana. Já no que concerne às pessoas jurídicas, aquela se impõe como imperativo da vida gregária, tendo em vista que determinados objetivos visados pela sociedade somente podem ser realizados a contento com o produto da união de pessoas físicas disciplinada pelo ordenamento jurídico8. Disso não destoa Gregorio Peces-Barba Martínez (2003) quando, ao referir-se à dignidade humana, frisa que esta se vincula com a ideia de autonomia, a significar, num primeiro plano, capacidade de eleição, liberdade psicológica, poder de decidir livremente, não obstante os condicionamentos e limitações naturais e, por outro lado, representa liberdade ou independência moral, representando postura do homem que escolhe bem. Mais adiante, deixa claro, por força da autonomia, a distinção de status jurídico entre os seres humanos e animais:

Os conteúdos da autonomia que procedem da análise da diferença com os restantes animais se referem a traços essenciais de nossa condição, que somente possuem os humanos. A autonomia é também um traço, tanto no que chamei a autonomia inicial como a autonomia final, que se pode situar nesta mesma perspectiva da diferença da condição humana, posto os animais não possuírem uma capacidade de eleição,

Portanto, é essa autonomia, que vem acompanhada pela capacidade de escolher e decidir, característica essencial e decisiva cuja ausência afasta o cogitar-se de personalidade aos animais.

8

Trata-se, como demonstra Guillermo Borda (1999, p. 304), da teoria da instituição, a justificar a atribuição de personalidade a entes coletivos pelo fato do homem abandonar todo isolamento, em virtude da compreensão de que para a realização de seus fins, bem como para a satisfação de suas necessidades de toda ordem, aquele precisa unir-se a outros homens, associando-se. 9 Tradução livre para: “Los contenidos de la autonomia que proceden del análisis de la diferencia con los restantes animales se refieren a rasgos esenciales de nuestra condición, que sólo poseemos los humanos. La autonomía es también un rasgo, tanto en lo que he llamado la autonomía inicial como la automía final, que se puede situar en esta misma perspectiva de la diferencia de la condición humana, puesto que los animales no poseen una capacidad de elección, precedida de una deliberación racional sobre aquello que procede hacer o decidir” (MARTÍNEZ, obra citada, p. 69).

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precedida de uma deliberação racional que procede fazer ou decidir 9.

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FIDΣS Contudo, o fato dos animais não serem reputados como titulares de personalidade jurídica não justifica, de modo algum, sua equiparação com as coisas, porque é inegável que àqueles devem ser conferidos direitos pela sua própria condição. Desse modo, afigura-se bastante correta a alteração patrocinada em 1990 no Código Civil alemão (BGB), representada pela introdução do §90a, ao ditar “os animais não são coisas. Estão protegidos por leis especiais. As disposições acerca das coisas se lhes aplicarão de forma análoga sempre e quando não esteja estabelecido de outro modo”10. Menezes Cordeiro (2002, p. 225), com propriedade, perfilha entendimento intermediário. Propenso a excluir a equiparação com as pessoas em sentido jurídico, posto somente o ser racional poder ser destinatário de deveres e, de conseguinte, titular de direitos semelhantemente ao ser humano, sustenta que a posição jurídica dos animais vai além de mero objeto de direito, para recair no âmbito do hibridismo jurídico. Tal ponto de vista se apresenta como o mais correto. Aos animais é assim que lhe é assegurada disciplina específica, voltada ao estabelecimento de direitos especiais de tutela que lhe excepcionam da condição de coisa, sem que, por essa própria circunstância, venha a lhe ser assegurada situação jurídica idêntica ao dos seres humanos, com a atribuição de personalidade.

REFERÊNCIAS

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CORDEIRO, Menezes. Tratado de direito civil português: parte geral. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2002, vol. I. p. 225. [Tomo 2].

10

Tradução livre para: Section 90a. Animals. Animals are not things. They are protected by special statutes. They are governed by provisions that apply to things, with the necessary modifications, except insofar as otherwise provided”. Disponível em: <www.ligiera.com.br/codigos/cc_alemao_(em _ingles).pdf>. Acesso em: 17 abr. 2012.

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2001. v. 1. p. 327.

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TEYSSIÉ, Bernard. Droit civil: les persones. 12. ed. Paris: Litec, 2010.

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FIDΣS Recebido 15 mar. 2012 Aceito 22 abr. 2012

O DIREITO INTERNACIONAL E AS NORMAS DE JUS COGENS: UMA QUESTÃO FILOSÓFICA Thiago Oliveira Moreira

RESUMO A

obrigação

estatal

de

adimplir

as

obrigações

assumidas

internacionalmente, notadamente no que toca a proteção dos Direitos Humanos, suscita grandes debates no âmbito da ciência jurídica. O confronto entre teses subjetivistas e objetivistas adquiriu novos rumos com o desenvolvimento das normas de jus cogens, o que fomentou uma nova visão da problemática. Partindo das premissas postas, esse estudo pretende demonstrar que as referidas normas limitam à atuação dos Estados em virtude de sua inderrogabilidade, bem como constituem novos fundamentos da obrigatoriedade do Direito Internacional.

Internacional.

1 INTRODUÇÃO

O debate acerca dos fundamentos da obrigatoriedade do Direito Internacional, notadamente das normas que versam sobre Direitos Humanos, passou a ter novos contornos com o desenvolvimento da noção de normas de jus cogens. Com efeito, a discussão em torno 

Bacharel em Direito, pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Mestre em Direito pelo PPGDIR/UFRN. Advogado. Ex-Professor da UERN. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN/CCSA/DPU). Membro do Grupo de Pesquisa da UFRN/CNPq – Direito Internacional e Soberania do Estado Brasileiro: Perspectivas Regional e Universal.

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Palavras-chaves: Jus Cogens. Direitos Humanos. Filosofia do Direito

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FIDΣS da imperatividade do Direito Internacional é uma questão filosófica, pois parte da própria natureza e razão de existência do sistema jurídico internacional. Durante séculos, doutrinadores da mais alta estirpe debruçaram-se a desvendar os reais motivos que obrigam os Estados a cumprirem as normas emanadas do Direito Internacional. Influenciados por ideias positivistas e jusnaturalistas, estudiosos da Filosofia do Direito Internacional passaram a elaborar teses voluntaristas e antivoluntaristas, respectivamente, para justificar o dever e o grau de vinculação dos Estados ao direito da sociedade internacional. Insatisfeitos com as repostas encontradas, pesquisas surgiram para buscar novos fundamentos para a obrigatoriedade do Direito Internacional que se coadunassem com as tendências da sociedade pós-moderna. Com efeito, esse novo espaço aberto serviu para que as normas de jus cogens ganhassem um largo destaque enquanto novo fundamento, principalmente em razão de sua inderrogabilidade. É na intenção de justificar que tais normas servem de fundamento para o dever estatal de respeito à normatividade internacional que, nas linhas que se seguem, partindo do próprio conceito de Direito Internacional, serão traçados seus fundamentos de obrigatoriedade.

2 O CONCEITO DE DIREITO INTERNACIONAL

A expressão Direito Internacional foi cunhada pelo jusfilósofo inglês Jeremy jurídicos, dentre eles o chamado “Direito Internacional”, nomenclatura que veio a tornar-se mais usual do que “Direito das Gentes”1, difundido no séc. XVI, principalmente pela Escola Espanhola2.

1

“Desde su cátedra Vitoria definió el Derecho de Gentes –que para los juristas romanos era el conjunto de normas vigentes entre todos los hombres- como ‘lo que la razón natural estableció entre todas las naciones’, vinculándolo desde entonces al orden jurídico imperante entre los Estados. De tal suerte el Derecho de Gentes dejó de ser el común a todos los hombres para devenir el moderno Derecho Internacional.” (TOCCO, 2006, p. 11). 2 Destacam-se como expoentes dessa escola Francisco de Vitória, Francisco Suarez e Domingo Sorto. Tais autores desenvolveram seus estudos, principalmente, acerca das conseqüências jurídicas da Era dos Descobrimentos, com destaque para a guerra, os índios e a ocupação dos espaços.

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Bentham (2000, p. 10), em 1780. Cultor do utilitarismo, Bentham criou alguns neologismos

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FIDΣS A análise do conceito de Direito Internacional3 passa, antes de tudo e necessariamente, pelo estudo do próprio conceito de Estado4 e pelo desenvolvimento histórico da sociedade e do Direito. Estudar o alvorecer, o desenvolvimento, a evolução, a involução e o conceito de Direito Internacional, por mais que seja de forma breve, faz surgir à necessidade de se vislumbrar alguns momentos da história da humanidade. O Direito Internacional, de certo modo e em caráter embrionário, teve seus primeiros indícios observados nas relações entre as Cidades-Estados gregas, notadamente Atenas e Esparta. Com a ascensão do Império Romano, deu-se uma nova etapa no processo de surgimento do referido Direito, principalmente com a eclosão do ius gentium (normas de direito romano aplicáveis aos estrangeiros) em contraposição ao ius civile. Findo o período da Antiguidade e com o advento da Idade Média, tem-se um novo salto no afloramento do Direito Internacional com o estabelecimento do ideal universalista através do ius commune5, base de um utópico ou próspero Direito Internacional unitário. Com o “Renascimento”, ocorreu um fortalecimento das monarquias absolutistas e o surgimento embrionário da concepção moderna de Estados nacionais. Esse período que perdurou até a revolução francesa foi marcado, notadamente, por várias guerras, muitas delas com motivação religiosa. Diante desse quadro, pode-se afirmar como fatos marcantes na historiografia do Direito Internacional, a Paz de Vestfália e a Reforma Protestante. Na Contemporaneidade, após o retrocesso do Direito Internacional ocorrido com as “guerras napoleônicas”, ocorreu um aprimoramento no citado Direito, sobretudo com o fortalecimento da Diplomacia, com a pactuação de várias Declarações e Convenções acerca

No século XX, alguns fatos dignos de vergonha mundial, mas que certamente influenciaram na mudança de paradigma do Direito Internacional, foram as duas grandes guerras. Inequivocadamente, somente a partir do Pós-Guerra é que a proteção dos indivíduos 3

Para Celso de Albuquerque Mello (2004, p. 77), Direito Internacional Público é “o conjunto de normas que regula as relações externas dos atores que compõem a sociedade internacional”. 4 “[...] muitos têm sido os autores que se preocuparam com o futuro do Estado. Neste campo, duas são as indagações comumente formuladas. Em primeiro, procura-se saber em que sentido o conceito de ‘Estado’ tende a se desenvolver, ou seja, busca-se traçar o perfil do Estado para as próximas décadas, numa tentativa de desvendar as mutações que mais provavelmente experimentará. Mas, numa segunda linha de preocupações, encara-se a possibilidade de o Estado simplesmente não ter futuro algum, ou seja, do surgimento de um mundo sem Estados.” (TAVARES, 2005, p. 34). 5 “O ius commune consiste num fenômeno de proporções globalizadas que abrange o continente europeu, constantemente interagindo com as ordens jurídicas locais e instalando um ambiente de unidade e uniformidade (universalidade) entre elas, ou seja, ele ultrapassa fronteiras físicas e étnicas e se instala na mundividência medieval, com a instituição do feudo, quando terá seu período de ascensão e de decadência”. (MASSAÚ, 20062007, p. 95).

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de conflitos armados e com o surgimento das primeiras Organizações Internacionais.

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FIDΣS encontrou maior destaque na política internacional, o que, de certo modo, alavancou o desenvolvimento do Direito Internacional. Diante do exposto, observa-se que o desenvolvimento das relações internacionais e do próprio Estado através dos séculos sempre levou em consideração a temática dos Direitos Humanos, seja no âmbito de sua proteção ou violação. Com efeito, conhecer o significado do que vem a ser o Direito Internacional torna-se imperioso para compreender a questão filosófica da imperatividade das normas de jus cogens. A necessidade de definirmos o Direito Internacional, antigo Direito das Gentes6, mesmo que talvez não se consiga trazer uma definição original, justifica-se pela temática escolhida na presente pesquisa, pois para se abordar os fundamentos de sua obrigatoriedade é imperioso conhecermos um pouco do que vem a ser esse importante ramo do Direito. O Direito Internacional passou por diversas fases e períodos evolutivos ao longo da história, tendo inclusive recebido diversas nomenclaturas7, como o já citado “Direito das Gentes” (talvez a mais famosa), mas foi a partir do final do século XIX e começo do XX que ele amadureceu como fruto da multiplicação de tratados e com o surgimento de diversas Organizações Internacionais. Com esse novo paradigma, a noção conceitual do que vem a ser Direito Internacional sofreu algumas alterações. O que antes regrava apenas as relações entre Estados, principalmente questões de guerra e paz, agora tem outros sujeitos envolvidos, como as já citadas Organizações Internacionais e os próprios indivíduos, bem como outras importantes temáticas envolvidas, como a proteção ao ser humano (de forma individual ou coletiva – proteção das minorias), a defesa do meio-ambiente, a ajuda humanitária, dentre outras.

internacional levando em consideração os três critérios trazidos doutrina, ou seja, o dos sujeitos, das matérias e das fontes, pois somente desse modo ter-se-á um bom conceito de Direito Internacional Público. Em sua visão:

6

“Concepto que significa desde el siglo XVI el derecho de los pueblos organizados políticamente, y que antecede ai concepto de derecho internacional. I. La expresión significa: 1. Derecho que en la antigua Roma se aplicaba tanto a los ciudadanos como a los extranjeros. 2. Conjunto de normas jurídicas que son observadas por todos los pueblos y que constituyen, por tanto, um derecho supranacional, fundado en la razón o la necesidad. 3. Derecho público. II. EI término ius gentium es creado en Roma para designar una especie de derecho distinto ai ius civile.” (VILLALOBOS; GURROLA, 2003, p. 47). 7 “El nombre derecho internacional, cuya iniciación se atribuye a Jeremías Bentham, há sido adoptado por la generalidad de los juristas: droit international, en francés; international law, en inglés; diritto internazionale, en italiano; miesdunarodnoe pravo, en ruso; direito internacional, en portugués, etc. Sin embargo, ocasionalmente, algunos autores usan una nomenclatura distinta: derecho de gentes, law of nations, diritto delle genti, etcétera.” (VILLALOBOS; GURROLA, 2003, p. 54).

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Mazzuoli (2010, p. 55) defende que seria de boa técnica definir o direito

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FIDΣS O Direito Internacional Público pode ser conceituado como o conjunto de princípios e regras jurídicas (costumeiras e convencionais) que disciplinam e regem a atuação e a conduta da sociedade internacional (formada pelos Estados, pelas organizações internacionais intergovernamentais e também pelos indivíduos), visando alcançar as metas comuns da humanidade e, em última análise, a paz, a segurança e a estabilidade das relações internacionais.

Ponto importante que deve ser lembrado no conceito acima exposto é a presença do elemento finalidade do conceito de Direito Internacional. Nota-se que o autor não restringe o conceito apenas com relação aos critérios outrora citados, mas sim acrescenta um novo elemento, a finalidade do Direito Internacional, qual seja a de alcançar as metas comuns da humanidade, os interesses ímpares de todos os povos, o que demonstra um caráter democrático do conceito, como a paz, a segurança e a estabilidade das relações internacionais, que são bens almejados por toda a sociedade internacional, independente de aspectos políticos, ideológicos, jurídicos ou religiosos. Outros autores pátrios ainda trazem, além do elemento finalidade presente no conceito, o caráter não estanque do Direito Internacional, demonstrando que esse conceito já evoluiu ao longo do tempo, principalmente com o aumento do número de sujeitos, de fontes e de áreas de abrangência, e continuará a evoluir com o desenvolver da sociedade internacional8. Verificado o desenvolvimento do Direito Internacional moderno (clássico e contemporâneo) e o seu conceito, constata-se que o referido ramo do Direito adaptou-se aos diversos fenômenos culturais, jurídicos e políticos que ocorreram ao longo de mais de seis

Não há como os Estados desvencilharem-se das novas feições contemporâneas do Direito Internacional. Com efeito, as normas emanadas do sistema internacional não vinculam a atuação dos primeiros sujeitos do Direito Internacional apenas por lhes ser conveniente e oportuno. Muito mais do que isso, os fundamentos da obrigatoriedade dessa disciplina jurídica sedimentaram-se e adquiriram novos contornos evolutivos que levam em consideração, além das relações interestatais, a proteção dos Direitos Humanos.

8

“O Direito Internacional Público é o conjunto de normas e princípios jurídicos, acordados entre os Estados para regular as relações entre si e com terceiros antes, as organizações internacionais por eles criadas, visando coordenar os comportamentos e facilitar a busca de objetivos comuns. Seu amplo campo de ação é cada vez mais importante na regulação da sociedade internacional, com o que se pode entender que suas noções, definição ou conceituação tendem a acompanhar a evolução da disciplina e do meio social em está engajada e à qual lhe cabe ditar as normas de ordenação jurídica”. (DEL’OLMO, 2010, p. 23).

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séculos, demonstrando ser um ramo importantíssimo da ciência jurídica.

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FIDΣS 3 OS FUNDAMENTOS DA OBRIGATORIEDADE DO DIREITO INTERNACIONAL

Definido o que vem a ser Direito Internacional, necessário se faz que sejam abordados os fundamentos de sua obrigatoriedade perante os atores protagonistas das relações internacionais9. Desde logo, mesmo antes de adentrar no estudo das doutrinas voluntaristas e objetivistas, manifesta-se a concordância com os que defendem o a tese da imperatividade das normas protetivas dos indivíduos emanadas do Direito Internacional dos Direitos Humanos, sejam elas positivadas ou costumeiras, por força do caráter jus cogens de tais normas. Mas antes de chegar a essa conclusão, insta salientar que encontrar qual o fundamento do Direito Internacional10 significa desvendar de onde vem a sua legitimidade e sua obrigatoriedade, ou os motivos que justificam e dão causa a essa legitimidade e obrigatoriedade (MAZZUOLI, 2010, p. 89). Com efeito, a problemática do fundamento do Direito Internacional é bastante relevante, chegando até mesmo a ser um problema da Filosofia do Direito, na medida em que nos esclarece a razão da existência do dito ramo ou mesmo o seu próprio caráter vinculante (PEREIRA; QUADROS, 2009, p. 57). Várias são as teses que buscam responder a indagação de qual o fundamento da obrigatoriedade do Direito Internacional11. De certo modo, pode-se afirmar que o problema em tela não tem apresentado uma visão estática. Muito pelo contrário, são diversas as posições doutrinárias que se têm proposto encontrar resposta ao questionamento apresentado. Numa primeira classificação, diremos que elas podem ser reconduzidas a dois grandes grupos, conforme buscam ou não na vontade do Estado, ou dos Estados, o fundamento do Direito

antivoluntaristas (objetivistas) (PEREIRA; QUADROS, 2009, p. 57). Não se trata aqui de uma abordagem que identifique e descreva todas as teorias, mas sim uma visão ampla dos argumentos trazidos por voluntaristas e por objetivistas para

9

“O Direito Internacional faz parte do universo jurídico e possui o mesmo fundamento e a mesma razão de ser do restante Direito. Apresentando, por certo, características específicas, nem por isso deixa de conter aquilo que de essencial assinala o Direito: a estrutura normativa necessária duma sociedade ou de certo tipo de convivência entre as pessoas humanas, individual ou colectivamente consideradas”. (MIRANDA, 2009, p. 31). 10 “O estudo do fundamento do DIP busca explicar a sua obrigatoriedade. Trata-se do problema mais complexo da matéria, pois a formulação das regras de DIP poderão variar conforme a posição apriorística adotada”. (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA, 2000, p. 16). 11 “A questão do fundamento do Direito Internacional Público tem sido, desde longo tempo, objeto de inúmeros estudos, existindo várias doutrinas que buscam demonstrar o fundamento jurídico de sua obrigatoriedade e eficácia (v.g., a doutrina da autolimitação, do direito estatal externo, dos direitos fundamentais dos Estados, da vontade coletiva dos Estados, do consentimento das nações, a da norma fundamental, da solidariedade social, a da opinião dominante, as jusnaturalistas etc).” (MAZZUOLI, 2010, p. 89).

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Internacional. E assim temos, por um lado, as doutrinas voluntaristas e, por outro, as doutrinas

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FIDΣS justificar a obrigatoriedade do Direito Internacional e a vinculação dos Estados ao cumprimento das normas dele emanadas, principalmente as protetivas dos Direitos Humanos.

3.1 A contribuição do voluntarismo

Mazzuoli (2010, p. 90) leciona que de acordo com a concepção voluntarista (subjetivista), o Direito Internacional é obrigatório porque os Estados, seja de forma expressa ou tácita, assim o desejam e querem. O seu fundamento encontra suporte na vontade coletiva dos Estados ou no consentimento mútuo destes, sem qualquer domínio de vontade individual de qualquer Estado sobre os outros. Seguindo esse mesmo pensamento, Pereira e Quadros (2009, p. 57) lecionam que:

O voluntarismo consiste, sem dúvida, numa das mais importantes explicações filosóficas para o fundamento de qualquer norma jurídica e, portanto, também do Direito Internacional. No seu âmago mora a ideia de que a existência e a obrigatoriedade do Direito resultam sempre da qualidade da vontade que o cria. É essa vontade que confere valor jurídico à norma. O Direito obriga porque foi querido.

Para que os doutrinadores acima citados chegassem às conclusões demonstradas, necessariamente tiveram que investigar as principais teorias voluntaristas, assim como seus expoentes. Diante dessa necessidade, vale destacar o pensamento de juristas como Jellinek, Trieppel e Kelsen, a fim de que haja uma melhor compreensão da temática abordada.

soberano não poderia encontrar-se submetido a uma vontade que não fosse a sua própria. Todavia, uma vez que o Estado manifestou-se no sentido de limitar a sua vontade espontaneamente, deveria respeitar o direito decorrente dessa limitação. Com efeito, seguindo este pensamento, o Direito Internacional se fundamentaria na autolimitação do Estado que não poderia ser por ele violada (MELLO, 2000, p. 137). Esta teoria, que contou no Brasil com a adesão de jurista como Clóvis Beviláqua, tem sido bastante criticada, em virtude da possibilidade de o Estado de um momento para o outro modificar sua posição (ACCIOLY; NASCIMENTO E SILVA, 2000, p. 17), bem como por levar à negação do Direito Internacional (PEREIRA; QUADROS, 2009, p. 61).

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Um dos cultores da teoria da autolimitação, Jellinek defendia que um Estado

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FIDΣS Divergindo do proposto por Jellinek, mas ainda partindo de concepções voluntaristas, Trieppel afirmou que o Direito Internacional se fundamentaria na vontade coletiva dos Estados (Vereinbarung) (MELLO, 2000, p. 137). Por fim, para encerrar exemplos de defensores do voluntarismo, Kelsen, ao menos num primeiro momento, sustentou que o fundamento do Direito Internacional consistia em uma norma fundamental de caráter superior (Grundnorm). Todavia, logo o referido jurista desapegou-se desse pensamento e passou a afirmar que o verdadeiro fundamento do Direito Internacional é o princípio do Pacta Sunt Servanda. Ao fazer sua própria autocrítica, Kelsen altera novamente o seu entendimento sob a querela, e defende que o fundamento do Direito Internacional é o costume constituído pela conduta recíproca dos Estados. Em suma, para os voluntaristas, o caráter obrigatório do Direito Internacional decorre única e exclusivamente da manifestação de vontade dos próprios Estados. Com efeito, esse pensamento não resta imune a críticas abalizadas12. A primeira delas consiste no fato de que os voluntaristas não explicam como um novo Estado pode estar obrigado por quaisquer das fontes do direito internacional de cuja formação ele não participou com o produto da sua vontade. Se o Direito Internacional encontra o seu fundamento de obrigatoriedade na vontade coletiva dos Estados, basta que um deles, de um momento para o outro, se retire da coletividade ou modifique a sua vontade original para que a validade do Direito Internacional fique comprometida, o que ocasionaria grave insegurança às relações internacionais (MAZZUOLI, 2010, p. 90-91). Talvez essa ideia de fundamentar a obrigatoriedade do Direito Internacional na vontade absoluta dos Estados tenha tido bastante relevância ao tempo da fase clássica do

não consegue explicar o fundamento do Direito Internacional (PEREIRA; QUADROS, 2009, p. 65), na medida em que é inegável que os tratados internacionais de direitos humanos, principalmente os que veiculam normas de jus cogens, impõem limites à atuação do Estado, tanto no âmbito interno quanto no externo, com o objetivo de garantir a proteção as suas normas (MAZZUOLI, 2010, p. 91).

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“as doutrinas voluntaristas [...] são insuficientes para fundamentar o DI ou qualquer outro ramo da ciência jurídica, uma vez que a vontade só produz efeitos quanto preexiste uma norma jurídica lhe atribuindo tais efeitos (...)”. (MELLO, 2000, p. 144) 13 No Direito Internacional clássico, segundo leciona Jorge Miranda (2009, p. 3), três fases sucederam-se: inicialmente, tem-se o período anterior à importantíssima Paz de Vestfália (1648); depois, num segundo momento, observa-se a fase que perdurou até a Revolução Francesa, já nas proximidades do final do séc. XVIII; e, por fim, da marcante revolução até a infeliz Primeira Guerra Mundial, tem-se o último subperíodo da etapa clássica do Direito Internacional.

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Direito Internacional Moderno13. Hodiernamente, a tese do voluntarismo jurídico, por si só,

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FIDΣS 3.2 A Contribuição do objetivismo

Em sentido absolutamente contrário, nos séculos XX e XXI prevalecem na doutrina, contudo e apesar da insistência de alguns, as posições não voluntaristas, ou seja, as teses que explicam a obrigatoriedade jurídica ou a necessidade de cumprimento das normas de Direito Internacional à margem ou para além da simples e pura vontade estatal (MIRANDA, 2009, p. 30). Com efeito, para os objetivistas a obrigatoriedade do Direito Internacional advém da existência de princípios (metaprincípios) e normas superiores (metanormas) aos do ordenamento jurídico estatal, uma vez que a sobrevivência da sociedade internacional depende de valores superiores que devem ter prevalência sobre as vontades e os interesses domésticos dos Estados (MAZZUOLI, 2010, p. 91)14. Com certa margem de segurança, pode-se afirmar que os objetivistas partem das ideias e preceitos jusnaturalistas para explicar o fundamento da obrigatoriedade do Direito Internacional (PEREIRA; QUADROS, 2009, p. 77). Ademais, a proteção internacional dos direitos humanos constitui o principal argumento utilizado pelos defensores da presente doutrina para angariar cada vez mais adeptos (PEREIRA; QUADROS, 2009, p. 79). Apesar das doutrinas objetivistas justificarem fenômenos importantes para o Direito Internacional dos Direitos Humanos, como a relativização da soberania, a imperatividade das normas jus cogens, a hierarquia constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, dentre outros, ela também recebe algumas críticas, na medida em que mitiga a vontade soberana dos Estados, que também tem o seu papel contributivo na criação das regras do Direito Internacional (PEREIRA; QUADROS, 2009, p. 92).

desfavor da objetivista, a doutrina pátria posiciona-se no sentido de que o fundamento mais concreto da aceitação generalizada do Direito Internacional Público, dentre as inúmeras doutrinas que procurar explicar a razão de ser desse Direito, emana do entendimento de que o Direito Internacional se baseia em princípios jurídicos alçados a um patamar superior ao da vontade dos Estados, mas sem que se deixe totalmente de lado a vontade desses mesmos em consideração a manifestação de vontade dos Estados. Em verdade, trata-se de uma teoria objetivista temperada ou mesmo considerada mista, por também levar em consideração a manifestação de vontade dos Estados (MAZZUOLI, 2010, p. 92).

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Nesse sentido, seguindo a presente orientação, Valle (2001, p. 97) enuncia que “el hombre en estado de proyecto social da origem a la norma jurídica. Si el jurista no sabe leer en la óntica integral del hombre, no va a ver el Derecho, sino su sombra en la letra de los códigos o de los tratados”.

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Diante das críticas elaboradas tanto contra a doutrina voluntarista quanto em

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FIDΣS Diante do exposto, observa-se a defesa por parte de alguns do princípio pacta sunt servanda15, somado aos preceitos jusnaturalistas como verdadeiro fundamento do Direito Internacional Geral. Vale destacar, desde logo, que o referido princípio, não consegue fornecer fundamento para a o costume (PEREIRA; QUADROS, 2009, p. 69) e para as obrigações e direitos que se impõem independentemente do consentimento dos Estados (VALLE, 2001, p. 100), como é o caso das normas jus cogens.

4 A IMPERATIVIDADE DAS NORMAS DE JUS COGENS

As normas jus cogens não são tão novas quanto se imagina. Na verdade, atribui-se sua origem não ao Direito Internacional, mas sim ao ius publicum romano (ROBLEDO, 2003, p. 3). Com o passar do tempo, o próprio Grócio fez referência a tais normas ao discorrer sobre o ius strictum, sendo este decorrente do ius divinum (PEREIRA; QUADROS, 2009, p. 278). Observa-se que um dos fundadores do Direito Internacional já buscava fundamentar a obrigatoriedade do citado ramo do Direito em preceitos de origem divina, alicerçando os primeiros pilares da doutrina objetivista. Dessa forma, constata-se entre as normas jus cogens e as de ius naturale, a semelhança de serem superiores e alcançarem o mais alto grau na escala hierárquica, sendo, consequentemente, inderrogáveis por todas as convenções particulares em contrário (ROBLEDO, 2003, p. 08). Partindo do pensamento de Grócio e com base no aperfeiçoamento das ideias postas, alguns autores, mesmo durante o período entre guerras, manifestam-se como defensores do

Direito das Gentes (ROBLEDO, 2003, p. 55). Dessa forma, vê-se que na contemporaneidade do Direito Internacional, ocorre a consagração definitiva do jus cogens no ápice da hierarquia das normas (PEREIRA; QUADROS, 2009, p. 277). Partindo das premissas fixadas pelos autores acima referidos, Jorge Miranda (2009, p. 105) conceitua o jus cogens como:

Princípios que estão para além da vontade ou do acordo de vontades dos sujeitos de Direito Internacional; que desempenham uma função eminente no confronte de

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O princípio em tela encontra-se positivado na Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969, nos termos do artigo 26: Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé.

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jus cogens, na medida em que reconhecem e defendem a existência de normas imperativas no

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FIDΣS todos os outros princípios e regras; e que têm uma força jurídica própria, com os inerentes efeitos na subsistência de normas e actos contrários.

Com efeito, trata-se de normas imperativas que extraem dos metaprincípios ou das normas preexistentes a própria formação do Estado, seu fundamento de validade, vinculando todos os personagens da cena internacional, limitando/relativizando, inclusive, a própria soberania16. Alguns eventos e atos internacionais contribuíram de forma significativa para a relevância do jus cogens fosse reconhecida. A própria Carta das Nações Unidas17, o Tribunal de Nuremberg, as Convenções de Genebra, a proliferação de tratados internacionais de direitos humanos declarando alguns direitos como inderrogáveis, notadamente a Convenção Europeia de Direitos Humanos18, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos19 e a Convenção Americana de Direitos Humanos20, pareceres da Corte Internacional de Justiça21, as Convenções de Viena sobre Direitos dos Tratados e o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, comprovam a relevância que as normas imperativas emanadas do Direito Internacional fazem parte de uma realidade que não pode ser jamais desconsiderada por parte do Estado e dos órgãos que o compõe (MIRANDA, 2009, p. 107). A noção de jus cogens encontra-se positivada em diversas fontes do Direito Internacional, sobretudo, nos tratados internacionais de direitos humanos, tanto de âmbito universal quanto regional22. Com efeito, coube a Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados de 1969 positivar de forma explícita o reconhecimento e importância das normas em tela. O que antes apenas era abordado em sede doutrinária e jurisprudencial, agora se encontra

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“Los pactos internacionales de derechos humanos, los convênios regionales como son las convenciones europea y americana de derechos humanos, y más recientemente, la Carta de Derechos Fundamentales de la EU, concretizan más bien el mandato soberano del Estado. Desde el punto de los derechos humanos, la soberanía no há estado definida, ni lo está ahora, por el poder ilimitado del Estado. Los derechos humanos mismos dan dirección a los márgenes de acción y a los poderes de actuación de las unidades políticas constituidas a nivel estatal y supraestatal”. (KOTZUR, 2011, p. 114) 17 “En la Carta, pues, encontramos, si no en todos sus preceptos, ciertamente en varios de ellos, normas iuris cogentis, como, por ejemplo, la igualdad soberana de los Estados, la libre determinación de los pueblos y la prohibición de la amenaza o del empleo de la fuerza”. (ROBLEDO, 2003, p. 83) 18 Cf. art. 15. 19 Cf. art. 4º. 20 Cf. art. 27. 21 Cf. Caso Barcelona Traction, Light and Power Company, Limited, Second Phase, ICJ Reports 1970. 22 “[...] certos direitos consagrados nas convenções internacionais universais fazem parte do jus cogens, ou seja, das normas imperativas de Direito Internacional geral, que não podem ser derrogadas, a não ser por normas de igual valor. É o caso, por exemplo, do direito à vida, do direito a não ser tornado escravo, do direito a não ser torturado, do direito a não ser racialmente discriminado”. (MARTINS, 2006, p. 146).

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presente em um tratado internacional celebrado e incorporado por vários Estados.

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FIDΣS Precisamente em seu art. 53, a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969 declara como nulo todo tratado que, no momento de sua conclusão, seja antinômico a uma norma imperativa de Direito Internacional Geral23. Dessa forma, há inegavelmente uma limitação/relativização da soberania estatal24, já que não se pode dispor da sua própria vontade em contrário a norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo25, assim como nenhuma derrogação das normas jus cogens é permitida, a não ser por outra norma de mesma natureza26. Por força da citada norma, um tratado que venha a violar norma jus cogens não tem qualquer eficácia jurídica no âmbito internacional, devendo, portanto, ser declarado nulo com efeitos ex tunc, ou seja, retroativos à data de sua conclusão. Na hipótese de superveniência de uma nova norma imperativa de Direito Internacional Geral, qualquer tratado existente que estiver em conflito com essa norma torna-se nulo e extingue-se27. Assim como os costumes28, as normas imperativas de direito internacional geral, sejam elas positivadas ou não, caracterizam-se pela inderrogabilidade e pelo mais alto nível hierárquico no sistema jurídico internacional. Com efeito, o impulso principal para uma mudança tão drástica na estrutura e funcionamento do sistema jurídico internacional foi

Alguns autores admitem um jus cogens regional, conforme leciona ROBLEDO (2003, p. 07): “[...] no hay mayor dificultad en admitir la existencia de un ius cogens regional o particular si nos restringimos a aquellos organismos internacionales o uniones de Estados que han alcanzado un grado de cohesión muy semejante al del Estado singular, con órganos supranacionales en los tres órdenes, Legislativo, Ejecutivo y Judicial. Es el caso, obviamente, de las comunidades europeas (comunidad económica, comunidad del carbón y del acero, Euratom) las cuales han podio estructurarse de este modo por ser miembros igualmente partícipes del más alto grado de civilización y haber entre ellos un cierto equilibrio de poder, lo que permite la constitución de órganos supranacionales que de otra suerte podrían estimarse opresivos. Con respecto a estas comunidades, una vez más, todos admiten que dentro de ellas pueda darse un ius cogens, a ejemplo del que se da dentro de cada Estado en particular”. No mesmo sentido: (PEREIRA; QUADROS, 2009, p. 281-282). 24 “El canon normativo típico, que manifiesta la decisión del Estado constitucional a favor de la cooperación internacional, estructura a la soberania mucho más de lo que la desplaza. La relativización de la soberania no conduce a decirle adiós, sino a su reinterpretación como garantia estructural”. (KOTZUR, 2011, p. 121). 25 “No que respeita ao ius cogens geral ou para-universal, não é necessário que ele seja aceite por todos os Estados da Comunidade Internacional como, pelo menos literalmente, parece pretender o art. 53 da CV [...]” (PEREIRA; QUADROS, 2009, p. 282) 26 “[... ]el ius cogens, en la versión positivista del artículo 53 de la Convención de Viena, puede ser derogado por uma norma subsecuente del mismo carácter, y por esto hemos dicho que el derecho natural reemplaza con ventaja al ius cogens en la tradición clásica”. (ROBLEDO, 2003, p. 8). 27 Cf. art. 54 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969: Se sobrevier uma nova norma imperativa de Direito Internacional geral, qualquer tratado existente que estiver em conflito com essa norma torna-se nulo e extingue-se. 28 “Por más que la costumbre, en la vida internacional también, esté perdiendo cada día terreno frente al derecho escrito, más fácil de verificar, más inequívoco, la costumbre internacional conserva todavía su antiguo rango, y en lo que hace al punto que examinamos, es hasta hoy la única fuente absolutamente indiscutible de derecho internacional general. Según lo reconoce uniformemente la doctrina, el derecho internacional consuetudinario obliga no sólo a los Estados que concurren en la formación de sus normas, sino aún a aquellos otros que en lo sucesivo van naciendo a la vida internacional, y la comprobación de este hecho, es por cierto, uno de los argumentos que suelen hacerse valer contra la teoría de la costumbre como pacto tácito”. (ROBLEDO, 2003, p. 79).

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FIDΣS fornecido pelo reconhecimento no Direito Internacional das normas jus cogens. Afastando a tese da hierarquia das fontes e postulando a da hierarquia das normas com base no conteúdo e nos valores contidos, o jus cogens encontra-se no centro do sistema jurídico internacional, na medida em que não pode ser derrogado por normas de outra natureza (BIANCHI, 2008, p. 494). Desse modo, no que tange a hierarquia das normas jus cogens no âmbito do direito estatal, elas encontram-se em nível constitucional (GALINDO, 2002, p. 306) ou até mesmo supraconstitucional. Desse modo, assim como as cláusulas pétreas não podem ser abolidas, tais normas não admitem reservas. Outra importante característica do jus cogens é a limitação da soberania estatal. Nesse sentido, Michel Virally (1966, p. 9-10) leciona que:

[...] la situation qui résulte de l'existence du jus cogens présente um caractère exceptionnel dans l'état actuel de développement de la société internationale et des rapports interétatiques. En effet, le jus cogens introduit une limitation à l'autonomie de la volonté des Etats, c'est-à-dire à leur liberté contractuelle, considérée traditionnellement comme absolue, parce qu'elle représente un des attributs les plus essentiels de la souveraineté. Sous cet aspect, le jus cogens pourrait être considéré comme une atteinte à la souveraineté des Etats.

Diante da lição trazida, parece-nos que resta inegável que as normas jus cogens limitam a vontade política dos Estados quando da elaboração e aplicação de normas jurídicas, tanto no plano internacional quanto no interno (SALA, 2007, p. 35), ou seja, a vontade estatal sucumbe tanto no momento de celebrar tratados, quanto na elaboração da legislação interna. Com efeito, se um tratado antinômico as normas jus cogens é nulo, uma norma doméstica também deve sofrer as mesmas consequências. Portanto, o jus cogens gera uma obrigação

sejam contrárias. Pode-se conceber claramente que há um total dever de aplicação e efetiva valoração das normas jus cogens por parte da jurisdição estatal, desde a primeira a última instância, de um juízo monocrático ao pleno do Supremo Tribunal Federal. Em caso de descumprimento desse dever, não ocorrerá somente à anulação do ato, uma vez que o Estado também poderá ser responsabilizado internacionalmente pela violação de tais normas (ANDRADE, 2007, p. 5). Discorrendo acerca do dever do Estado de observar as normas jus cogens, da responsabilidade internacional pelo descumprimento e da proporcionalidade das sanções por violação a tais normas, Michel Virally (1966, p. 18) afirma que:

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negativa para os Estados de não editarem normas ou mesmo proferirem decisões que lhe

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FIDΣS [...] la gravité de la sanction découle très directement de l'importance fondamentale que revêtent les normes de jus cogens pour la société internationale. Il en résulte, tout à fait logiquement, que les Etats se voient placés dans l'impossibilité juridique d'échapper à leur application, puisque, s'ils tentent de le faire, leurs actes seront dépourvus d'effets juridiques.

Dessa forma, resta evidente que violar uma norma jus cogens é bem mais grave do que se tal fato ocorrer em relação a normas de natureza diversa, o que, nestes termos, acarreta a necessidade de um maior rigor nas sanções aplicadas aos violadores. Que normas poderiam ser qualificadas como jus cogens? Essa é uma indagação que encontra resposta nas normas emanadas do Direito Internacional dos Direitos Humanos, pois como dito anteriormente, algumas delas são caracterizadas como jus cogens. Como visto, a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969 positivou o jus cogens, porém, a Comissão de Direito Internacional esteve longe de descrever que normas receberiam essa qualificação. Coube a doutrina e a jurisprudência, como fontes auxiliares do direito, a missão de desvendar que normas seriam consideradas gerais, imperativas e inderrogáveis no sistema jurídico internacional (ROBLEDO, 2003, p. 153). Do ponto de vista da doutrina específica sobre o tema, há que reconhecer, inicialmente, que nem todas as normas protetivas de direitos humanos podem receber a qualificação de jus cogens. Com efeito, somente aquelas mais fundamentais que gravitam em torno da dignidade da pessoa humana29, seja do ponto de vista coletivo ou individual, podem ser reconhecidas como normas imperativas inderrogáveis, intangíveis. Uma primeira norma reconhecida doutrinariamente como jus cogens é o princípio da autodeterminação dos povos. Previsto nos pactos internacionais de direitos humanos e nas

non para o exercício de outros direitos (ROBLEDO, 2003, p. 168), portanto, essa e outras normas fundamentais para o Direito Internacional merecem receber a citada adjetivação30. 29

“Conceitos de dignidade não são mais hoje desenvolvidos apenas no interior de uma sociedade, de uma cultura; eles também se orientam e se desenvolvem por meio de intercâmbio com outras culturas, sobretudo sob o signo dos pactos de Direitos Humanos”. (HÄBERLE, 2005, p. 127) 30 “[...] ao menos, pacta sunt servanda, é norma fundamental, logicamente necessária ao direito internacional, pois permite a existência de uma de suas fontes que é o tratado internacional. Outras são normas que, se não são logicamente necessárias, são fundamentais porque dão ao direito internacional os seus contornos e suas características essenciais: a partir da norma que diz serem os Estados soberanos e iguais, passando pela determinação de que a soberania inclui aquela sobre os recursos naturais e pela previsão de que os povos têm o direito de autodeterminação e de se transformarem em Estados soberanos, chegando à norma que proscreve o uso da força nas relações entre os Estados. Outras ainda são aquelas proibições de atos tidos como crimes que interessa à comunidade internacional inteira coibir: a pirataria, o comércio de seres humanos, o genocídio e os outros crimes contra a humanidade. Finalmente é possível identificar uma outra categoria de normas que se pretende alçar ao status de jus cogens: são aquelas (todas ou algumas, não se sabe ao certo) inseridas em regimes internacionais, como o do direito humanitário, dos direitos humanos e do direito do meio ambiente”. (NASSER, 2005, p. 165-166)

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Constituições de uma gama enorme de países, ele configura-se como uma conditio sine qua

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FIDΣS Ainda no âmbito dos pactos internacionais de direitos humanos, para ficarmos com um exemplo, cabe ressaltar que o art. 4º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos prescreve que não se admite nenhuma suspensão ao direito a vida; a proibição de tortura, penas cruéis, desumanas ou degradantes, escravatura, prisão pelo descumprimento de obrigação contratual; a irretroatividade da lei penal em prejuízo do acusado; o reconhecimento da personalidade jurídica e a liberdade de pensamento e religião (ROBLEDO, 2003, p. 169). Dessa forma, todos esses preceitos são absolutamente inderrogáveis e qualificados como normas gerais e imperativas do Direito Internacional31. Apesar da notoriedade da fundamentalidade das normas acima referidas, alguns autores como Charles Rosseau, Dionisio Anzilotti, von Liszt e Georg Schwarzenberger são negadores do jus cogens. As ideias por eles defendidas, ao ignorar a imperatividade, a inderrogabilidade e o metavalor das citadas normas, são incoerentes com os novos valores da sociedade internacional na era pós-ONU (MARRÓN, 2010, p. 46). Dessa vez em investigação as referências jurisprudenciais ao jus cogens, encontramos o seu reconhecimento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, precisamente no Caso Aloeboetoe, bem como na Opinião Consultiva nº 18/03, em que há o reconhecimento do caráter jus cogens aos princípios da não discriminação e igualdade (REMÓN, 2010, p. 59-63). Diante do que fora trazido até o presente momento, nos parece que o Estado

States are nowadays faced with a dilemma which should have been overcome a long time ago: either they return to the old voluntarist conception of International Law, abandoning the hope in the primacy of Law over power politics, or they retake and realize the ideal of construction of a more cohesive and institutionalized international community in the light of the imperatives of the rule of law and the realization of justice, moving resolutely from jus dispositivum to jus cogens.

Esperamos que não haja um retrocesso com o retorno ao puro voluntarismo como fundamento da obrigatoriedade do Direito Internacional32. Muito pelo contrário, nossos votos

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“[...] deve entender-se que já pertencem ao ius cogens pelo menos os mais importantes dos direitos e das liberdades consagrados naquela Declaração e nos Pactos de 1966 e que não façam parte do Direito consuetudinário geral, como é o caso dos direitos à vida, à propriedade privada, à liberdade, à constituição de família, e das liberdades de expressão do pensamento, de reunião, de associação, a liberdade de circulação, e alguns outros” (PEREIRA; QUADROS, 2009, p. 284). No mesmo sentido: MARTINS, 2006, p. 131. 32 “As crescentes tendências institucionalizadoras – e, antes de mais, o jus cogens – só por si demonstram a incapacidade de uma fundamentação voluntarista do Direito Internacional” (MIRANDA, 2009, p. 32).

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encontra-se em uma encruzilhada. Como bem adverte Cançado Trindade (2009, p. 39):

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FIDΣS são para o fortalecimento das normas jus cogens e da cada vez maior vinculação dos Estados ao seu cumprimento33.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de alguns poucos tentarem de forma infrutífera desacreditar o Direito Internacional, constata-se que é dever inescusável dos Estados concretizarem os preceitos oriundos da normatividade internacional. Na medida em que os sujeitos do Direito Internacional assumem compromissos, vinculam-se ao que fora pactuado. Dessa forma, independentemente da filiação as teses voluntaristas ou antivoluntaristas que justificam a obrigatoriedade do Direito Internacional, os Estados não podem alegar o seu direito interno para fundamentar a lesão aos tratados internacionais, já que os celebraram e incorporaram ao ordenamento interno por vontade própria, em clara manifestação da soberania e autodeterminação dos povos. No ponto específico dos compromissos internacionais de proteção aos Direitos Humanos, a imperatividade e a inderrogabilidade das normas de jus cogens reforçam a ideia de que a concretização dos direitos mais básicos ao ser humano e que gravitam em torno do postulado da dignidade da pessoa humana, não está sujeita a absoluta disponibilidade dos Estados. Com efeito, as referidas normas limitam à atuação do Estado, no que tange a obrigação negativa de violar os Direitos Humanos e na positiva de implementá-los. Diante de tais argumentos, resta considerar que o jus cogens, apesar de ainda merecer

obrigatoriedade do Direito Internacional. Redefinindo os alicerces das ideias referidas, o desenvolvimento da noção de normas de jus cogens passa a robustecer a força normativa do Direito Internacional, principalmente do Direito Internacional dos Direitos Humanos, o que é essencial para a proteção dos indivíduos no ambiente complexo de nossa sociedade.

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“En esta medida, el reconocimiento de los valores fundamentales del derecho internacional se que dó siempre en las inmediaciones de determinados principios básicos, que la ideología de la iluminación (especialmente en lo concerniente a la protección del individuo) le exigía a todo orden legal positivo. Sin embargo, los recientes desarrollos legales se remontan a un canon de valores que sirve de presupuesto al derecho internacional. Esto es válido para los estándares imperativos en materia de derechos humanos (no para los dispositivos contenidos en los tratados), así como para los nacientes requisitos que debe llenar la estructura interna de um Estado (como un mínimo de elementos democráticos)”. (HERDEGEN, 2005, p. 27)

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avanços em seus estudos, serve na contemporaneidade como novo fundamento da

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INTERNATIONAL LAW AND JUS COGENS RULES: A PHILOSOFICAL QUESTION

ABSTRACT The state’s obligation of executing international obligations, notably those ones that protect Human Rights, raises serious debates within the legal science. The confrontation between subjectivists and objectivists take new directions with the development of jus cogens rules, what formed a new vision of the problem. Based on the premises brought, this study aims to demonstrate that these rules limit

new foundations of the obligation of International Law. Key-words: Jus Cogens. Human Rights, Internation Law Philosofy

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the states’ activity due to its underrogable character, as well as provide

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FIDΣS Recebido 29 ago. 2011 Aceito 29 abr. 2012

ADOÇÃO POR CASAIS HOMOAFETIVOS E A QUEBRA DOS PARADIGMAS SOCIAIS: UM AVANÇO NECESSÁRIO Vanessa Pinto Maia

RESUMO A análise das uniões homoafetivas revela a problemática referente à necessidade de uma

visão plural

das

estruturas

familiares,

especialmente no que concerne à possibilidade jurídica da adoção de crianças por esses casais. É possível encontrar algumas decisões judiciais sobre o tema, inovando no tratamento dado pela norma unicamente às relações compostas pela diversidade de gêneros. Ao operador do Direito é lançado o desafio de embate e discussão dessa temática, que envolve resistências e discriminações, mas, acima de tudo, também direitos e obrigações que não podem ser olvidados. Palavras-chave: Uniões Homoafetivas. Adoção. Afeto. Novas

“O afeto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.” (Maria Berenice Dias)

1 INTRODUÇÃO

O tema proposto apresenta-se bastante polêmico, não apenas no seio social, mas também nos ambientes forenses, visto que encontra respaldado nos parâmetros de uma cultura 

Graduanda em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), monitora da disciplina de Direito Processual Civil I e estagiária do Ministério Público Federal.

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famílias. Eficácia do Direito.

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FIDΣS fortemente enraizada na comunidade em que vivemos. A discussão sobre a questão abrange debates jurídicos acerca do instituto da adoção, bem como pretende examinar perplexidades e questionamentos sobre temas controversos e atuais, como é o caso das uniões homoafetivas, buscando assim uma conclusão pragmática e reflexiva sobre o assunto. O trabalho que se segue não tem o intuito de fazer uma análise propriamente dita sobre a natureza, origem e circunstâncias que envolvem tais uniões, e sim pontuar conceitos e interpretações que podem fundamentar a adoção por casais assim definidos. Pretende-se ainda relacionar as críticas jurídicas com a (in)eficácia que o Direito experimenta ao ambicionar romper com os paradigmas socais eleitos por uma comunidade arraigada em preconceitos conservadores e discriminatórios. Para tanto, faz-se necessário, preliminarmente, investigar o conceito de Direito, compreender a evolução do instituto da adoção na legislação brasileira, seja em seu aspecto sociológico ou jurídico, bem como analisar as controvérsias acerca das uniões homoafetivas, buscando subsidiar uma postura do intérprete que seja mais consentânea com a ordem inaugurada pela Constituição Federal. Desta feita, pode-se convergir para uma posição que revela a primazia que a criança ou adolescente deve assumir na relação jurídica analisada, já que os interesses desses é que devem prevalecer. Nesse sentido, observando as conquistas que os casais homoafetivos têm logrado nas esferas judiciais, mormente a ausência de legislação específica que discipline a matéria, infere-se a importância da discussão jurídica da temática em exame, especialmente após o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal da união estável entre pessoas do mesmo sexo no julgamento da ADI n.º 4.277 e ADPF n.º 132. Portanto, propõe-se uma abordagem

apreciação dos desdobramentos jurídicos propostos.

2 DO CONCEITO DE “DIREITO”

A análise da problemática em exame requer, para sua melhor compreensão, uma investigação, ainda que inicial, diante de um tema reconhecidamente complexo, sobre o que se entende por direito. De início, faz-se imperioso repetir o alerta proferido por Tércio Sampaio Ferraz Júnior (2010, p. 12) de que tal tentativa redunda numa série inacabada de ensaios a que já se dedicaram juristas, filósofos e cientistas sociais.

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sociológica à luz dos valores constitucionais, devendo ser esse o principal expoente na

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FIDΣS É mister advertir, portanto, que não é objetivo desse trabalho resolver tão discutida questão, nem fornecer um conceito indeclinável, senão uma aproximação conceitual que forneça diretrizes para uma investigação mais apropriada da discussão em torno da adoção por casais homoafetivos.

2.1 Definições reais

Ao longo da história, inúmeros conceitos foram formulados buscando descrever a essência do direito. Alguns tornaram-se clássicos, a exemplo dos seguintes, expostos na obra de Paulo Nader (2011, p. 78): “Direito é a proporção real e pessoal de homem para homem que, conservada, conserva a sociedade e que, destruída, a destrói” (Dante Alighieri, século XIII); “O Direito é o conjunto de normas ditadas pela razão e sugeridas pelo instinto de vida gregária” (Hugo Grógio, século XVII); “Direito é o conjunto das condições segundo as quais o arbítrio de cada um pode coexistir com o arbítrio dos outros, de acordo com uma lei geral de liberdade” (Emmanuel Kant, XVII) e “Direito é a soma das condições de existência social, no seu amplo sentido, assegurado pelo Estado através da coação” (Rudolf von Ihering, século XIX). Da análise das definições acima, é possível identificar que todas possuem um aspecto em comum: o direito, enquanto norma, é visto sob o aspecto de sua socialidade, ora como o sustentáculo que dá suporte ao edifício social, ora como elemento motivador, finalístico ou condicionador das normas jurídicas.

Sendo a socialidade uma característica da realidade jurídica (REALE, 2009, p. 2), destaca-se a corrente que percebe no direito, enquanto conjunto de normas, um elemento ordenador da vida em sociedade, o qual permite a realização de valores pessoais e coletivos. Nesse sentido, é salutar o conceito de direito formulado por Miguel Reale (2009, p. 67), segundo o qual “Direito é a ordenação heterônoma, coercível e bilateral atributiva das relações de convivência, segundo uma integração normativa de fatos segundo valores”, pois, não obstante reconhecer que advém de uma estrutura normativa de poder, as normas jurídicas devem ser compreendidas e implementadas consoante determinados valores, que ora são extraídos dos fatos sociais, ora estes as influenciam.

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2.2 O conceito adotado

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FIDΣS Conforme a concepção de Miguel Reale, fatos, valores e normas implicam-se mutuamente, de modo que o jurista, na resolução de um problema jurídico, deve estar atento aos valores consubstanciados no ordenamento jurídico, notadamente na Constituição Federal, para dar aos fatos a consequência jurídica mais adequada. Nesse escólio, para o Direito, a sociedade é a sua primeira e principal destinatária e constitui o substrato no qual incidem suas normas. Axiologicamente, o Direito é concebido como um conjunto de princípios aos quais os homens devem respeitar em suas condutas, imprimindo significação às relações sociais e orientando-as para a satisfação de interesses comuns (REALE, 2007, p. 4). As normas que compõem o sistema jurídico quase sempre vêm relacionadas à ideia de limitação, balizando as atividades dos indivíduos, bem como dos entes coletivos ou, até mesmo, do próprio Estado, como forma de assegurar um controle social. Conclui-se, portanto, que o Direito é exatamente a organização de um sistema coercitivo sobre a comunidade, com o escopo de assegurar o cumprimento de suas regras, que devem ser plenamente objetivas e válidas, porém, não encerrando um fim em si mesmo, mas representando a eterna busca pela promoção do bem-estar social. Outrossim, convém repisar lição de Bobbio, para quem a localização mais apropriada do direito se encontra na teoria do ordenamento jurídico (2011, p. 43). Suas considerações são relevantes na medida em que constata ser a completude – ao lado da unidade, coerência e relação com outros ordenamentos – um dos principais problemas do ordenamento jurídico. Isso porque não há, na legislação brasileira em vigor, dispositivo expresso que autorize a adoção de crianças por casais homoafetivos, constituindo fator de divergência jurisprudencial

O pensamento de Norberto Bobbio é relevante, ainda, porque identifica na norma fundamental o ápice do ordenamento jurídico que, sendo hierarquicamente superior, dá fundamento de validade às demais normas e confere-lhes o sentido de unidade (2011, p. 61). Isso posto, a compressão do direito como fato social marcado pela dinamicidade frente a fatos e valores cambiantes, deve, à luz da Constituição Federal e demais elementos normativos, dar uma solução jurídica adequada à discussão a respeito da adoção por casais homoafetivos. É o que se verifica em seguida.

3 BREVE HISTÓRICO DO INSTITUTO DA ADOÇÃO

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a partir do momento em que os julgadores brasileiros são chamados a solucionar essa lacuna.

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FIDΣS 3.1 Evolução infraconstitucional

À época do antigo Código Civil de 1916 e do Estatuto da Adoção de 1957, a adoção prezava principalmente por alguns requisitos que os adotantes deveriam preencher, a fim de que sua tutela fosse garantida. Exigia-se que os casais não possuíssem filhos e tivessem idade mínima de 30 anos, bem como comprovassem cinco anos de casamento, o que traduzia a infertilidade constatada pelo tempo (MACIEL, 2010, p. 199-201). Nesse período, o filho adotivo era tratado de maneira desigual perante a lei, quando se tinha por referência os filhos biológicos de um casal. Nesse caso, na legislação anterior, a filiação adotiva era vista de maneira restritiva, como exemplo da sucessão hereditária preceituada pelo art. 1.605 § 2º do Código Civil de 1916, que dava direito ao filho adotivo apenas a metade do quinhão a que tinham direito os filhos biológicos. Essa norma foi posteriormente revogada com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que proíbe qualquer distinção entre filhos biológicos e adotivos (art. 227 §6º)1. Denota-se que, ao contrário do que é preconizado atualmente, quando o norte das relações familiares é o princípio da igualdade, o adotado era considerado filho ilegítimo, deixando transparecer a discriminação social que cercava o ato jurídico, pois a adoção muitas vezes era considerada apenas um gesto de caridade para com a criança ou mesmo um mecanismo assistencialista. Já com a vigência do Código de Menores, legislado pela Lei nº 6.697, a adoção foi subdividida em duas modalidades: a simples e a plena. A primeira se assemelha ao atual instituto da Guarda, podendo ser motivadamente revogada e não sendo o adotante investido

A adoção plena, por sua vez, era um ato jurídico bem mais complexo por ser irrevogável, na qual o adotando se desligava definitivamente da família biológica, tendo inclusive o seu registro civil original cancelado. Essa última espécie de adoção curiosamente era aplicável apenas às crianças menores de sete anos de idade (MACIEL, 2010, p. 200). Ainda assim, o instituto estava dotado de muitos preconceitos. Um exemplo claro era o de que as certidões de registro dos adotados traziam observações sobre o tipo e a origem do parentesco, inserindo notas que alertavam sobre a adoção daquela criança.

1

Nesse sentido, interessante decisão proclamada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região, resguardando o direito da mãe adotiva à licença prevista no art. 7º, XVII, da Constituição Federal na sua integralidade, isto é, 120 dias. Vide: TRT-14. MS 8300 RO 0008300. Pleno. Rel. Juiz Federal Shikou Sadahiro j. 23.03.2010. Dje 24.03.2010.

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do pátrio poder (atual poder familiar), podendo ser realizada através de escritura pública.

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FIDΣS Hoje, não é permitido nenhum tipo de observação nesse sentido, consoante se depreende da inteligência do art. 47 §§2º e 4º da Lei 8.069/90, de forma a evitar a revelação da ficção jurídica que compõe o ato (TAVARES, 2010, p. 48-49).

3.2 O impacto da Constituição Federal de 1988 na transformação do instituto da adoção

Em 1988, a promulgação da Constituição Federal inaugurou uma nova ordem jurídica, premida por diversos princípios e regras inovadoras que representaram o marco histórico pelo qual passara o país e a transição de um regime ditatorial para a democracia representativa. A redemocratização brasileira conferiu espaço para que a Constituição Federal, ao longo de todos esses anos, viesse a ocupar o centro do sistema jurídico, contemplando ideias e modelos que mobilizaram a doutrina e jurisprudência do período, instituindo uma nova percepção na hermenêutica jurídica. Esse fenômeno é cada vez mais acentuado e intenso, consistindo no fator primordial para uma postura ativa e dinâmica frente ao direito positivo. Com a promulgação da Constituição Federal, o conceito de família foi ampliado, não mais se restringindo ao casamento civil, passando a reconhecer a União Estável como entidade familiar, nos termos do seu art. 226, §3º2. O Estado se afirmou como o principal responsável pela proteção da família, pois ela é o núcleo da comunidade, devendo seus membros ter seus direitos respeitados e assegurados. Em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente foi editado e veio confirmar as diretrizes constitucionais, difundindo a doutrina da proteção integral à criança e ao

responsável por firmar o consectário no qual todas as crianças e jovens devem ser tratadas como sujeitos de direitos fundamentais, possuindo primazia e preferência no momento em que estes são assegurados. (GAMA, 2008, p. 198) A adoção como medida de inserção da criança ou adolescente em família substituta está disciplinada nos art. 39 a 52-A do Estatuto da Criança e do Adolescente. Da sua simples leitura conclui-se que a medida é excepcional, apenas aplicável quando esgotadas as tentativas de manutenção do adotando na família natural. Ademais, vários dispositivos conclamam ao valor da afetividade, do real benefício para a criança ou adolescente, o que nos leva a crer que

2

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

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adolescente e consagrando o princípio da absoluta prioridade, principal pilar estatutário

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FIDΣS o diploma legal não descuidou do espectro contemporâneo encerrado pelo Direito de Família nos dias de hoje. Atualmente, a adoção é marcada pela irrevogabilidade do ato, conforme o art. 39, § 1º, da Lei 8.069/90, um passo importante capaz de velar pela segurança jurídica das relações sociais; pela igualdade jurídica com relação à filiação biológica, inclusive para fins sucessórios conforme preconiza o art. 41 da Lei 8.069/90, pela gratuidade, segundo o art. 141, §2º, da Lei 8.069/90, entre outras. Destaque-se que, pela primeira vez, a pessoa solteira é considerada capaz de adotar (art. 42 da Lei 8.069/90), abrindo espaço para o crescimento e consolidação das famílias monoparentais, um novo tipo de arranjo familiar. Decerto, essas poucas e breves anotações já demonstram satisfatoriamente a modificação das regras que compreendem hoje o instituto da adoção. Passa-se a abordar o tema proposto sob a ótica da possibilidade de filiação por novo núcleo familiar, formado por um par homossexual, e o seu direito de exercer a maternidade ou paternidade responsável.

4 O CONCEITO PRÉ-CONCEBIDO DIANTE DAS RELAÇÕES HOMOAFETIVAS

É cediço que a moral sexual hoje vigente em nossa sociedade ocidental repugna, censura e repreende aquelas pessoas que se relacionam com indivíduos do mesmo sexo. Um exemplo notório com relação a essas considerações são as práticas de violência homofóbicas ocorridas nas grandes cidades e frequentemente noticiadas nos meios midiáticos.

assim como influenciam na pré-concepção de certos estereótipos que figurariam como expoentes dessas relações. Considera-se a relação homossexual geralmente é permeada por promiscuidade, descuido, libertinagem sexual, entre outras análises depreciativas. No entanto, essa visão resta totalmente equivocada, vazia na sua razão de ser, pois o que se nota contemporaneamente é que muitas uniões homoafetivas são baseadas no amor, no respeito mútuo, na solidez, na reciprocidade, tanto quanto as heterossexuais. Para Sérgio Carrara, coordenador-geral do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos, o desenvolvimento de trabalhos na esfera pública com o fito de extinguir a impunidade no sistema criminal quando as vítimas são homossexuais é passo essencial para exigência de respeito e afirmação da sexualidade com liberdade. Para ele, através de medidas públicas é que será possível desmistificar a relação homoafetiva de forma preventiva.

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Nesse ponto são inseridas perspectivas que motivam o extermínio e a segregação,

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FIDΣS No mesmo patamar, a resistência face à adoção de crianças por casais homoafetivos se fundamenta basicamente na crença de que essa situação pode gerar danos futuros e sequelas psicológicas aos adotandos pela falta de referências comportamentais, já que uma criança adotada por duas mulheres ou dois homens, possuiria duas mães ou dois pais. Todas essas falácias do conservadorismo são sustentadas por paradigmas éticomorais encarados como verdades absolutas, incapazes de suportar novas construções que se mostram já incorporadas em nosso cotidiano e que, por esse motivo, necessitam da legitimidade jurídica que lhe é reclamada. A princípio, o legislador nega-se a emprestar juridicidade às relações homoafetivas e, por esse motivo, não há nenhum dispositivo legal autorizando ou vedando a concessão da medida. Nada obstante, há um consenso de que filhos biológicos ou adotivos convivem de fato com companheiros do mesmo sexo em seus lares – essa é a realidade – porém, não há nenhum tipo de proposta ousada capaz de intervir e regular essas relações, que, assim como tantos outros arranjos familiares, são merecedoras de assistência moral e social, devendo gozar da total proteção do Estado. A Desembargadora aposentada Maria Berenice Dias (2010, p. 2), em seu artigo “Amor não tem sexo”, faz uma constatação válida acerca da regulação familiar no plano jurídico:

Embora vanguardista, o conceito de família cunhado pela Lei Maior ainda é acanhado, pois não logrou envolver vínculos afetivos outros, que não correspondem ao paradigma convencional: casamento, sexo e reprodução. Ora, se os métodos contraceptivos e os movimentos feministas concederam à mulher o livre exercício

identificados pelo casamento; se, em face do atual estágio da evolução da engenharia genética, a reprodução não mais depende da ocorrência de contato sexual, imperioso que se busque um novo conceito de família.

Deve-se ter em vista que a compreensão e aceitação da realidade familiar ora exposta é produto de muitos anos de evolução da sociedade, que, paulatinamente, vem se consolidando. O Direito, como ciência social que busca o equilíbrio, é o instrumento que permite o reconhecimento das mudanças sociais e culturais vivenciadas pela coletividade, homologando a proteção a bens vitais que esta mesma sociedade elege e vincula às leis. A constatação supratranscrita da mencionada desembargadora reflete a apreensão das relações sociais pelo seu viés afetivo, abarcando o desenvolvimento biopsicossocial dos

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da sexualidade; se passaram a ser considerados família os relacionamentos não

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FIDΣS membros da entidade familiar e, por fim, respaldando a consciência atual da sociedade de eleição do do afeto como o elemento mais importante para a formação dessas novas famílias. Nesse diapasão, o Direito Civil abandonou sua forte carga patrimonialista, tradicional e conservadora, de modo que após a inclusão de normas que tratam do Direito de Família na Constituição Federal houve um redimensionamento da matéria sob o prisma da função social desempenhada pela família na comunidade. Busca-se o desenvolvimento das qualidades e interesses existenciais dos seus membros, de tal sorte que a afetividade representa o principal expoente de definição das novas famílias (GAMA, 2008, p. 119-123).

5 AS NORMAS JURÍDICAS E A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DA CONSTITUIÇÃO

Cumpre destacar também a importância da hermenêutica jurídica à luz da finalidade da norma que se coaduna basicamente à realidade social. O operador do Direito deve priorizar absolutamente os princípios constitucionais visando garantir a sua efetivação no plano empírico, se comprometendo com a preservação dos direitos humanos fundamentais e com o pleno bem-estar das pessoas. Nesse sentido, as normas jurídicas que guardam maior consonância com essa afirmação compreendem o inciso IV do art. 3º e o caput do art. 5º, ambos da Constituição:

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

Essa previsão constitucional condiciona a aplicação e efetividade das demais normas constitucionais, de todas as leis infraconstitucionais ou qualquer outra regra, seja qual for sua espécie ou natureza. Destarte, esta intelecção se adapta perfeitamente com a concessão da adoção por casais homoafetivos, pois consagra o princípio da igualdade, que possui significado extensivo, constituindo um postulado básico da democracia, pois todas as pessoas são iguais em dignidade, direitos e oportunidades. (JÚNIOR, 2010, p. 660).

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Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...]

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FIDΣS Urge inferir que as normas constitucionais gozam de densa efetividade, por esta razão, é possível deduzir que o constituinte primário, ao eleger como um dos objetivos fundamentais da República a promoção do bem de todos, sem preconceitos de sexo, o fez sob o consectário correspondente à dimensão de liberdade sexual de todos os indivíduos. A esse respeito, o Supremo Tribunal Federal sustentou que o tratamento igualitário deve ser resguardado na medida em que emergem duas situações, conforme exposto pelo Ministro Ayres Britto, em voto proferido no julgamento da ADI 4.277 3: o direito de não sofrer discriminação pelo fato em si da contraposta conformação anátomo-fisiológica (ser homem ou mulher), e de não sofrer discriminação ao fazer uso da respectiva sexualidade, escolhendo parceiros, sejam eles do mesmo sexo ou não, buscando satisfazer sentimentos pessoais intimamente ligados à elevação pessoal. Posto que somente mediante uma interpretação sistemática de toda ordem jurídica pode-se chegar à conclusão de que os casais homoafetivos devem gozar dos mesmos direitos, encargos e prerrogativas postuladas em favor dos casais heterossexuais. Não se vislumbra, dessa forma, nenhum óbice que possa dificultar a legitimação de tais direitos na seara do instituto da adoção. Caso preencham os requisitos legais necessários para adotar, o juiz deve assumir seu papel criador, colmatando as lacunas que existem no ordenamento e que configuram possivelmente casos de lacunas objetivas voluntárias, isto é, intencionalmente provocadas pela atividade legiferante devido à complexidade da matéria ou à sua extensão, confiando a interpretação do caso concreto ao Poder Judiciário. Desse modo, após a análise das condições objetivas, o juiz deve ponderar, no caso criança a ser adotada. É certo que o conceito de “ambiente familiar adequado” não guarda uma interpretação unívoca pela doutrina, mas apenas sinaliza ao juiz a reunião de qualidades que identifiquem um lugar saudável, seguro e propício para a educação e crescimento da criança (FIGUEIRÊDO, 2005, p. 50). Assim, o Poder Judiciário poderá acompanhar o processo com o apoio interdisciplinar da psiquiatria, psicologia, serviço social e até da antropologia de forma a evitar os riscos de adaptação e com o fim de otimizar a formação das crianças e jovens colocados, sob a forma de adoção, nos lares homoafetivos (SCHWEITZER, 2007, p. 47).

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STF. ADI 4.277-DF. Pleno. Rel. Min. Ayres Britto. j. 05.05.2011. DJe 14.10.2011.

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concreto, se o ambiente familiar é, de fato, adequado para o desenvolvimento e maturação da

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FIDΣS 6 ANÁLISE DOS ARGUMENTOS CONTRÁRIOS À ADOÇÃO HOMOAFETIVA

O argumento de que a permanência da criança nos lares formados por casais homoafetivos pode determinar a sua opção sexual e causar efeitos deletérios ao seu desenvolvimento, visto que invariavelmente esta criança sofrerá preconceitos por parte da comunidade, que já carrega consigo os estereótipos aludidos no início desse artigo, não deve, de forma alguma, prosperar. Inicialmente, vale ressaltar que a heterossexualidade dos genitores não garante que seus filhos possuam a mesma opção sexual. Se assim fosse, não existiriam homoafetivos, pois da procriação heterossexual adviria obrigatoriamente apenas filhos heterossexuais. Essa tese pode ser facilmente transportada para a convivência familiar que resulta da adoção, restando, portanto, totalmente infundado este argumento. Da mesma forma, o intuito de evitar que a criança sofra com possíveis preconceitos não encontra solução com a proibição do direito à adoção por famílias homoafetivas. Ao contrário, dá margem à extinção do instituto, pois, se for pensado que a criança adotada poderá ser alvo de chacotas pela visível diferença de características biológicas entre ela e seus pais adotivos – diferenças raciais, étnicas, por exemplo –, nunca haveria sua inserção em uma família substituta, uma vez que os determinismos genéticos são naturais, não podendo ser comparados geneticamente filhos biológicos aos seus genitores e filhos adotivos aos seus pais adotivos. O pedido de adoção formulado por um casal homoafetivo que vive em união estável atende ao princípio do melhor interesse da criança, preconizado pela Convenção de Nova

como ao princípio prescrito no art. 43 do Estatuto da Criança e do Adolescente, determinando que a adoção apenas encontrará respaldo quando apresentar reais vantagens para a criança e fundar-se em motivos legítimos. O melhor interesse da criança perfaz-se, notadamente, na compreensão de que não são os pais que necessitam de filhos, mas sim as crianças que necessitam de uma família. Nesse ponto, é preciso destacar que nada mais do que considerar atendido este princípio quando uma criança é transferida de um abrigo para o seio de um grupo familiar, apto a lhe oferecer toda assistência material, moral e espiritual, a fim de desenvolver sua maturidade, contribuindo para florescer na criança sentimentos de segurança e estabilidade familiar. Evidentemente, a inserção de uma criança em um lar homoafetivo não deve provir de uma análise temerária, pois não se olvidam as reais diferenças deste para um ambiente

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Iorque de 1989; ao princípio da proteção integral previsto no art. 227 da Constituição, bem

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FIDΣS familiar mais comum na sociedade, a família tradicional. Porém, no estudo do caso concreto devem prevalecer considerações acerca do equilíbrio e ajuste familiar; se o relacionamento é transparente para o restante da família e para os amigos, se é pautado pela estabilidade, confiança, respeito mútuo, afeto. Isso tudo é possível construir apenas após considerável lapso temporal de convivência do casal. Essa apreciação geral, acompanhada dos estudos psicológicos e sócio-familiares devidos em qualquer outro processo de adoção, sinaliza efetivamente a garantia do afeto de pessoas habilitadas e capazes do exercício do poder familiar, pois, assim como pressupõe a Constituição Federal, essas pessoas são definidas como sujeitos de direitos. Assim, convém concordar que a saúde mental e a felicidade individual estão muito mais atreladas à dinâmica de determinada família do que ao modo como ela é definida, isto é, é muito mais importante e significativa a maneira como a família vive do que como ela é taxada pela sociedade a seu redor. Uma família bem ajustada preza pela auto-estima e desenvolvimento social e pessoal dos seus membros, independente dos componentes que formam o arranjo familiar. Uma hermenêutica verdadeiramente construtiva prezará exatamente por um novo paradigma na formação dessas novas famílias: o amor sem restrições ou limites. Nesse cenário, todas essas considerações sociológicas acerca do instituto familiar devem igualmente vir acompanhadas de questionamentos jurídicos sobre o tema. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal, em decisão unânime e histórica proferida na resolução da ADPF 132-RJ e da ADI 4.277, sinalizou a possibilidade de considerarmos a tese proposta ao reconhecer o status de União Estável a casais formados por

Embora a norma jurídica seja o principal elemento do nosso ordenamento, há outros meios de regulação das relações sociais que são desempenhadas pela doutrina e jurisprudência, pela analogia, costumes e princípios gerais do Direito, capazes de densificar valorativamente a norma ou, até mesmo, criá-la ou adequá-la ao caso concreto. Nesse ponto, apesar de a jurisprudência e a doutrina serem muito tímidas no embate do tema exposto, hoje já há alguns julgados – nas cortes de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, v.g.4 – que concederam o direito de inserir uma criança em uma família substituta formada por pessoas do mesmo sexo. Esses julgados apontam que não há estudo

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Vários julgados podem ser citados a exemplo do STJ. REsp 889852-RS. Pleno. Rel: Min. Luis Felipe Salomão. j. 27.04.2010. Dje 10.08.2010.

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pessoas do mesmo sexo, seja para fins sucessórios, previdenciários ou patrimoniais.

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FIDΣS próprio que indique qualquer inconveniente na adoção por tais casais, sobrelevando-se a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar. (FERRIANI, 2010, p. 142-143). No mesmo sentido, verificam-se algumas decisões a favor da adoção por casais homoafetivos proferidas pela Vara da Infância e da Juventude na Comarca de Natal-RN. Em pesquisa realizada verificou-se que, até o mês de novembro de 2011, quatro sentenças foram favoráveis à adoção, sendo três conferidas em processos aforados por um casal homossexual e apenas uma delas em processo aforado tendo como autor apenas um dos companheiros. Também se verificou que apenas um pedido de adoção formulado por um casal homossexual foi negado pelo juízo responsável.5 Em essência, a evolução da doutrina que trata do Direito de Família e que embasa a fundamentação dessas sentenças inovadoras e recentes passou a adotar uma postura firme de absoluta defesa e prioridade das garantias constitucionais endereçadas às crianças e adolescentes, capituladas no art. 227 da Constituição Federal6. Cabe ressaltar que as decisões judiciais que adotam o mesmo parâmetro não têm o condão de legalizar e formalizar o casamento homoafetivo, que é passo secundário, porém, não distante, visto que ao reconhecer as uniões estáveis homoafetivas o direito brasileiro, através da decisão da sua Suprema Corte Constitucional, abriu espaço para a possibilidade da sua conversão no casamento, conforme dicção do art. 226, §3º, da Constituição Federal7. O entendimento que deve ser postulado e garantido é o de que as relações afetivas não são delimitadas pelas possibilidades de uniões de gêneros, mas sim pela inata condição humana de realizar a vida através do afeto e da construção da felicidade, com respeito ao outro e a si mesmo. As crianças são nossos bens mais preciosos, e responsáveis pelo futuro da

direitos esculpidos nos diplomas legais que cuidam dos seus interesses. A questão jurídica assentada no art. 1.622 do Código Civil, que revela que “ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher, ou se viverem em união estável”, se encontra vencida, pois guarda a mesma natureza de erro de lógica formal de interpretação, pois é evidente que neste artigo a técnica legislativa não está seguramente 5

Informações fornecidas pela 2ª Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Natal-RN, responsável por todos os processos de adoção nacional da referida comarca de acordo com a Lei de Organização Judiciária do TJRN, tendo sido preservados os nomes das partes e das crianças envolvidas, resguardando, dessa maneira, o segredo de justiça. 6 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

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humanidade, tendo as leis em todo o mundo assim reconhecido, procurando garantir os

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FIDΣS fundamentada nos preceitos constitucionais de respeito à igualdade, à dignidade da pessoa humana e ao direito da não-discriminação, uma vez que restringe o direito de adotar sem aparente razão ou fundamento jurídico para tal. Impõe-se dizer que tal previsão legal está em conflito direto com as normas constitucionais anteriormente citadas, as quais servem de cânone interpretativo primário para as demais regras que compõe o ordenamento jurídico.

7 A (IN)EFICÁCIA DO DIREITO

A intercessão da Ciência Jurídica com a Sociologia resulta no estudo e na apreciação da efetividade do Direito no plano concreto, fático e material, isto é, visa compreender como o Direito se apresenta na experiência humana, propondo estudá-lo como função e produto de processos sociais (NETO, 1987, p. 410-411). É precisamente nesse ponto que se destaca a problemática trazida à baila, conferindo aos operadores do Direito o papel de discutir e embasar questões que vivenciamos avidamente em nosso dia-a-dia. Nessa perspectiva, é significativo relacionar toda essa abordagem com o foco dogmático-sociológico da eficácia do Direito. Parte-se da premissa de que a norma possui três atributos, são eles: validade, justiça e eficácia (BOBBIO, 2001, p. 45-46). Como já mencionado, a sociologia jurídica concentra seus estudos no cumprimento da norma e sua influência no meio social, isto é, estuda a legitimidade ou aceitação da norma jurídica e sua efetiva produção de efeitos nas relações sociais.

mas previstas ou abarcadas pelo legislador. O caso em estudo destaca exatamente a ausência de normas capazes de produzir efeitos no âmbito das uniões homoafetivas. Para essas pessoas, portanto, o Direito não é eficaz, não comporta efeitos que possam ser inseridos nas suas relações, ou simplesmente não existe. Essa defasagem acaba por obstaculizar o acesso a uma ordem jurídica justa, causando inseguranças, pois esses sujeitos acabam por recorrer a subterfúgios com a finalidade de se inserir no contexto legal de eficácia do Direito. Por essa razão, é muito comum que apenas um dos companheiros pleiteie a adoção desejada, passando o seu parceiro ou parceira também a conviver com a criança, construindo um lar. Essa situação de fato é marginalizada pelo Direito, que se mostra, nesse ponto, uma negligente, sem efetividade, deixando cidadãos à mercê da insegurança jurídica, como bem preleciona a desembargadora aposentada Maria Berenice Dias (2010, p. 02):

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O ideal é que as normas formalmente válidas gerem repercussões sociais diversas,

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FIDΣS Há uma realidade da qual não se pode fugir. Crianças vivem com parceiros do mesmo sexo, quer por serem concebidas de forma assistida, quer por serem filhos de apenas um deles. Havendo a convivência familiar, a negativa da adoção veda a possibilidade do surgimento de um vínculo jurídico do filho com quem desempenha o papel de pai, o que, ao invés de benefícios, só acarreta-lhe prejuízos. Mesmo tendo dois pais ou duas mães, a vedação de chancelar dita situação impede, em caso de morte, a percepção de direitos sucessórios ou benefícios previdenciários. Se ocorrer a separação, não haverá direito a alimentos, não se podendo garantir sequer o direito de visitas. Por isso, merece ser louvada a as decisões judiciais, que, de forma corajosa, pensam muito mais no interesse das crianças do que nos preconceitos da sociedade. Estão cercados da proteção legal os filhos que são frutos do afeto. Gerados de forma responsável, geram a responsabilidade jurídica dos pais.

Logo, devem-se abandonar preconceitos e opiniões desprovidas de bases científicas, vencer resistências sociais e institucionais incompatíveis com o objetivo maior de acolher os novos arranjos familiares, mas não apenas esses, baseados no amor incondicional. Não se pode silenciar sobre os vínculos que se consolidam entre pessoas do mesmo sexo

em

decorrência

unicamente

de

estigmas

e

preconceitos

infundados.

A

homossexualidade, em especial após decisão do Supremo Tribunal Federal, demonstrou ser um fato que merece igualmente a tutela jurisdicional e que necessita ser regulado em todas as searas. É um erro não submeter o fato social a efeitos jurídicos, pois essa constitui a razão de ser do Direito, do viver em comunidade e do abraçar e compreender as diferenças. O direito à liberdade no exercício da sexualidade, sem que se sofra com

proclamada pela Constituição Federal, em seu art. 1º, elege esse princípio como um dos fundamentos da República do Brasil. Essa discussão envolve vidas e tem desdobramentos pessoais e patrimoniais que estão a clamar o regramento jurídico. Os aplicadores do Direito que, nesse momento, recebem nova formação devem assumir o comprometimento com tais questões desafiadoras, contundentes, mas que, acima de tudo, devem ser objeto de uma longa caminhada pela defesa do bem-estar de todos, acompanhando, sem dúvida alguma, a evolução da realidade social.

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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discriminações, é corolário da igualdade substancial e o respeito à dignidade humana

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FIDΣS Ante o conteúdo apresentado, conclui-se que o Judiciário, ao equiparar as uniões estáveis homossexuais às heterossexuais, deu um passo importante e significativo em direção a um Estado laico, distanciando-se ainda mais dos dogmas religiosos que, muitas vezes, anulam o núcleo elementar do princípio da dignidade humana. Destaca-se que esse novo cenário é produto do amadurecimento da própria legislação ao tratar do instituto da adoção, por exemplo, quando se demonstrou a preocupação em equiparar os filhos legítimos aos adotados, numa perspectiva em que se observa a mudança de valores promovida pela Constituição Federal. Por isso, os argumentos contrários à adoção por casais homoafetivos que pretendem se revestir de “fundamentos jurídicos” revelam, na verdade, uma ordem moral-religiosa que visa proteger suas próprias doutrinas. O desejo de que esses novos arranjos familiares continuem marginalizados pela sociedade traduz um injusto sentimento de intolerância que permeia e contamina toda uma comunidade, algo expressamente vedado por nossa Constituição, que pretende ser democrática ao abraçar e resguardar as diferenças. Nesse diapasão, conclui-se que, na verificação de problemas de lacunas normativas, o intérprete deve dar correta adequação jurídica aos fatos, embasado nos princípios vigorantes no ordenamento jurídico brasileiro. A adoção é um direito que não pode ser concebido de forma diferente, pois os maiores beneficiários são as crianças abandonadas, carentes de cuidado, afeto, carinho, enfim, carentes de uma família, independente da sua composição, que não pode continuar distante do Direito. Por essa razão, os mesmos critérios fundamentadores da adoção por casais heterossexuais devem ser também observados na adoção homoafetiva. É certo que o papel do juiz é proeminente na solução dessas controvérsias, devendo o

Todavia, não se descarta o momento vivenciado pelo Poder Legislativo ao ser convocado a regulamentar a situação ora exposta. Não é recomendável macular um bem jurídico o qual o Estado se comprometeu a assegurar: a proteção à família em suas mais variadas formas e dimensões. Para além de toda concretude, a tese proposta representa a superação de sentimentos estigmatizantes e excludentes. Propõe-se a vitória da ética, da igualdade material, do direito lúcido e vanguardista; da liberdade sobre uma moral opressora. Essa questão clama por um avanço necessário.

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magistrado defender, como dito, os interesses e princípios tutelados pela Constituição Federal.

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ADOPTION BY HOMOAFFECTIVE COUPLES AND BREAKING PARADIGMS OF SOCIAL: A NECESSARY STEP FORWARD

ABSTRACT This article approaches a portion of the problem concerning of the needing of a plural vision of family structures, by analyzing more specifically about homoaffective union, especially in the core of the legal possibility of granting the adoption of children by these couples.

innovations in the treatment given by standard only to relations built by the diversity of genres. To the operator of law is released the challenge of confrontation and discussion of this issue that involves resistance and discrimination, but, above all, also rights and obligations that cannot be forgotten. Keywords:

Homoaffective

unions.

families.Effectiveness of the justice.

Adoption.Affection.New

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It is possible to find some judicial decisions about the subject,

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FIDΣS Recebido 05 jan. 2012 Aceito 29 abr. 2012

DA

FALÊNCIA

DO

SISTEMA

PENITENCIÁRIO

BRASILEIRO:

CONSTITUCIONALIDADE DA AUTORIZAÇÃO PARA A SAÍDA DE PRESOS CONDENADOS A REGIME SEMIABERTO NO RIO GRANDE DO NORTE Rafael Diógenes Marques

RESUMO O presente artigo tem o intuito de analisar a constitucionalidade das decisões judiciais que denegam autorização a saídas externas aos presos condenados a regime inicial de cumprimento de pena semiaberto no estado do Rio Grande do Norte. Inicialmente, faz-se considerações sobre o sistema penitenciário pátrio e local, partindo-se para uma visão de função da pena que corrobore com os preceitos de Estado Democrático-Constitucional, tal qual elencado em nossa Carta Magna.

Após,

analisa-se

a

constitucionalidade

da

medida

propriamente dita, chegando-se à conclusão inevitável da falência de

cenário caótico. Palavras-chave:

Saída

externa.

Sistema

penitenciário.

Constitucionalidade. “Como concebem as pessoas, incluindo também os juristas, quanto à condenação, algo de análogo àquilo que ocorre quando um homem morre [...]. Sob certo aspecto, pode-se assemelhar a penitenciária a

Graduando em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Presidente da União Norte-riograndese dos Estudantes de Direito Internacional (UNEDI) e Secretário-Geral da XII Edição da Simulação de Organizações Internacionais (SOI). Lattes: <http://lattes.cnpq.br/4149351055118445>.

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nosso sistema penitenciário e do papel do Poder Executivo nesse

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FIDΣS um cemitério; mas esquece-se de que o condenado é um sepultado vivo.” (Francesco Carnelutti)

1 INTRODUÇÃO

O sistema penitenciário brasileiro padece há décadas da falta de efetivas políticas públicas que promovam os direitos dos detentos. O descaso do Poder Público em efetivar o adequado cumprimento da pena, através de estabelecimentos prisionais bem estruturados e profissionais treinados para lidar com a população carcerária, é patente em nosso país e, destacadamente, no estado do Rio Grande do Norte. Com efeito, no que tange ao tratamento do sistema carcerário, percebe-se que há a necessidade de perfeita interação entre dois Poderes da República, o Judiciário e o Executivo. Como ocorre em outras áreas da vida social, na falta de atuação efetiva do Executivo na garantia dos direitos fundamentais dos presos, urge-se para que o Judiciário intervenha na defesa das prerrogativas elencadas na Constituição Federal. A patente falência da política criminal e do modelo punitivo de nossa pátria não podem ser fundamentos para a continuidade de violações a direitos constitucionalmente garantidos. Diante de tal cenário, deve-se indagar qual é o real papel da pena, inserida no contexto do Direito e como fato social, e qual é o resultado que se espera ao punir. A cultura opressiva e de criminalização descontrolada de condutas que vivemos não tem gerado os resultados pretendidos. O Conselho Nacional de Justiça aponta para estatísticas

Nesse ínterim de total ineficiência e desrespeito aos direitos em que o sistema carcerário vive, o presente artigo tem o fulcro de analisar a inconstitucionalidade da manutenção do preso em regime fechado, ou equivalente, quando a sentença condenatória determina cumprimento em regime semiaberto. Com efeito, por vezes o magistrado vê-se na situação em que a falha do Poder Executivo em prover à sociedade estabelecimentos prisionais adequados ao cumprimento de pena em regimes semiaberto (colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar) e aberto (casa de albergado ou estabelecimento adequado), tal como preleciona o artigo 33 do Código

1

Para maiores informações acesse: <http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp. texto=101733>.

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assustadoras, ainda não confirmadas, de mais de 70%1 de reincidência criminosa.

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FIDΣS Penal2, prejudica o direito do apenado de progredir no cumprimento de sua pena. De fato, a falha do Poder Público, especialmente em nosso estado, não embasa a manutenção de preso em regime mais gravoso. Em âmbito local, o Provimento nº031 de 2008 da Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte3 (CGJ), em seu artigo 10, determina que as penas em regime semiaberto e aberto, na ausência de estabelecimento adequado, devem ser cumpridas “em cadeia pública ou estabelecimento prisional congênere, com obrigação de recolhimento noturno e nos dias de folga, na localidade em que o condenado exerce emprego fixo ou residam familiares”. Dessa forma, seguindo entendimento dos Tribunais Superiores, não se mantém, em tese, o apenado em regime mais gravoso. No momento da efetivação do mandado de prisão, expedido pelo juízo de conhecimento, em casos de punições em regime fechado e semiaberto, há que se remeter o processo para o juízo de execução – após expedição da correspondente guia de recolhimento – que será o competente para acompanhar o cumprimento da pena. Deve também a autoridade administrativa do local onde estiver recolhido o preso proceder com a adequação do cumprimento de pena conforme o disposto na sentença, sujeito a controle judicial posterior. Ocorre, dessa forma, que, nas condenações a regime semiaberto, será recolhido o preso em local comum aos presos do regime fechado, em face da falta de vagas em estabelecimento adequado ao cumprimento de regime semiaberto em nosso estado. Logo, será competência do juízo executor determinar a remoção do apenado para o regime adequado em estabelecimento próprio, na ocasião de surgimento de vagas. O modo de cumprimento dos regimes semiaberto e aberto sui generis de nosso

centro de detenção provisória. Nesse contexto, há que se questionar a legitimidade da execução penal em impedir que o apenado tenha autorização para saídas externas, principalmente quando o fundamento utilizado é a espera de vaga. Tal procedimento, na ausência de estabelecimento prisional adequado ou estando este superlotado, figura efetivamente como violação ao direito público subjetivo do réu de cumprir pena nos moldes exatos de sua sentença condenatória, conforme consolidado em nossa Carta Magna. 2

Art. 33, § 1º - Considera-se: a) regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média; b) regime semi-aberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar; c) regime aberto a execução da pena em casa de albergado ou estabelecimento adequado. 3 CORREGEDORIA GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE. Provimento nº 031 de 2008. Disponível em: <http://corregedoria.tjrn.jus.br/index.php?option=com_docman&task=cat_view&gid= 156&Itemid=123>.

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estado autoriza a saída diária do apenado, somente devendo o mesmo pernoitar no presídio ou

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FIDΣS Procurar-se-á fazer uma apreciação atenta da constitucionalidade dessa medida no âmbito da execução penal do estado do Rio Grande do Norte, focando a necessidade de se buscar a análise de cada caso concreto e a devida adequação de nosso sistema prisional aos preceitos de um Estado constitucional.

2 CONDIÇÃO DO SISTEMA CARCERÁRIO E FUNÇÃO DA PENA NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO

Antes de se analisar especificamente o caso, é preciso estabelecer a situação atual de nosso sistema penitenciário, pontuando sua finalidade teleológica pretendida e a realidade vivenciada. Há que se enfatizar o ponto de não se poder falar, efetivamente, em sistema, já que a articulação, a preparação, e os recursos são totalmente mal empregados e mal administrados, resultando em um amontoado de instituições que representam o papel penitenciário em nosso Estado. Quando se trata da estruturação de um ambiente penitenciário adequado, além da má vontade política, o grande problema da questão pode ser atribuído à corrupção, ao preconceito e à falta de capacitação dos agentes envolvidos (RIBEIRO, 2010, p. de internet). O preconceito da sociedade para com a massa carcerária, em grande parte devido a sua origem social pobre, enseja um ciclo vicioso que acaba por marginalizar ainda mais essa população. A falta de objetivo ou aproveitamento dos presos faz com que eles não tenham propósito definido ao sair do estabelecimento prisional. recente e, a partir do início do século XX, “consolida-se o sentimento de que o país não tratava adequadamente seus prisioneiros”. O Brasil nunca se preocupou efetivamente com a condição do sistema carcerário.

2.1 O sistema carcerário norte-rio-grandense

A situação carcerária do estado do Rio Grande do Norte não é destoante do cenário nacional em que pese à inadequação e colapso do sistema. Em relatório confeccionado pelo

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Esse cenário, como aponta Luís Francisco Carvalho Filho (2002, p. 40), não é

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FIDΣS CNJ e divulgado em janeiro de 20114, fruto dos trabalhos do mutirão carcerário, parte da realidade penitenciária do estado foi trazida a lume. A quantidade de presos existentes em âmbito local chega a 5.581, inclusos os que cumprem pena em regime aberto e os submetidos à medida de segurança. São vinte e nove estabelecimentos onde os apenados cumprem penas, sendo quatorze dos quais correspondentes a delegacias convertidas em prisões sem a mínima estrutura digna. Apenados sentenciados convivem normalmente com presos provisórios da mesma forma que compartilham cela com presos civis. O regime semiaberto é cumprido, em boa parte do estado, em estabelecimentos destinados ao regime fechado, ficando o condenado sujeito a autorizações para saída externa, dependendo do entendimento do juízo. Os regimes de privação de liberdade aberto e semiaberto, conforme constatou o CNJ, são regrados de forma distinta conforme o juízo, já que o colapso institucional demanda profundas adaptações do disposto na Lei de Execução Penal. Em conclusão, o relatório afirma: [...] o que se verificou e deve ser qualificada como grave e séria, é a condição estrutural das unidades prisionais do Estado, em sua grande maioria carceragens de Delegacia de Polícia transformadas, por ato do Executivo local, sem o acréscimo de um único tijolo, em Centros de Detenção Provisória que não oferecem aos reclusos, sejam definitivos ou provisórios, a mínima condição de salubridade, higiene e segurança. (CNJ, 2011, p. 280-281)

Há, porém, que se reconhecer que o momento atual é o mais propício para a mudança

cidadania está se consolidando em nossa sociedade e não se pode deixar passar a reforma do sistema carcerário. Nesse ínterim, é de suma importância analisar se a pena está efetivando seu papel tal qual definido pela Constituição Federal.

2.2 A teoria unificadora preventiva e a função da pena sob a lente da Constituição Federal e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969

4

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório do Mutirão Carcerário em atuação no Rio Grande do Norte. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/detentos-e-ex-detentos/pj-mutiraocarcerario/relatorios>. Acesso em: 11 ago. 2011.

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desse cenário. Com efeito, vivemos o maior período democrático de nossa história. A

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FIDΣS A função da pena é tema dos mais controvertidos na discussão doutrinária e prática do Direito Penal. Enquanto punição, a pena possui suas origens nas teorias absolutas ou retributivas, as quais associavam esse instituto à mera retaliação ao mal causado. A pena acabava, portanto, por ser um fim em si mesma. Percebeu-se que mesmo como retribuição, a pena possuía limitações, pois deveria ser atribuída na justa medida do dano causado, compreendendo-se, então, a ideia de limitação pela culpabilidade do autor. Desse modo, o Direito Penal, como instrumento de aplicação da pena pelo Estado, também surge com a necessidade de se impor regras claras para o exercício da força por parte do poder estatal. Como destaca Cezar Roberto Bitencourt (2009, p. 83), a análise do instituto da pena está diretamente relacionada ao entendimento da forma de Estado adotada. Com efeito, sendo a pena a expressão final do poder punitivo estatal, sua função deve ser extraída da própria forma de Estado constituída. Nesse ínterim, cumpre-se tecer breve comentário sobre a função da pena no Estado Democrático-Constitucional, caso aplicável à República Federativa do Brasil, país que, após o advento da Constituição Federal de 1988, adotou uma forma de Estado baseada essencialmente na máxima efetividade dos direitos fundamentais, tendo seu sistema jurídico como ponto de referência a própria Carta Magna. A mudança teleológica e axiológica imposta ao entendimento do Direito Penal e da função punitiva estatal como um todo pela promulgação da Constituição foi extrema. Passa-se de um modelo de Estado policialesco, militarizado e ditatorial para uma estrutura que preza pela dignidade da pessoa humana, pelo respeito aos direitos fundamentais e assentado

O artigo 1º da Constituição, em seu inciso III, estabelece como fundamento da República a dignidade da pessoa humana e, em seu parágrafo único, enuncia o preceito democrático da estrutura estatal. Ademais, o artigo 5º é o marco no estabelecimento de um amplo rol de direitos e garantias fundamentais o qual, saliente-se, não é um rol taxativo. É preciso, então, que à luz da Constituição, possa-se traçar o novo panorama da função da pena prevista pelo constituinte originário para a sociedade. Nesse sentido, Claus Roxin (2008, p. 95) elabora, a partir da compreensão contemporânea de Estado Constitucional, a teoria unificadora preventiva da pena, a qual procura dar entendimento constitucional desse instituto do Direito Penal. Com efeito, afirma o doutrinador:

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essencialmente na democracia.

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FIDΣS O ponto de partida de qualquer teoria hoje defensável deve ser baseada na compreensão de que o fim da pena só pode ser do tipo preventivo. Uma vez que as leis penais só se justificam quando elas tendem a proteger a liberdade individual e a ordem social que está ao seu serviço [...] também a pena concreta só pode perseguir isto, ou seja, um fim preventivo do crime [...] Daqui resulta, além disso, que a prevenção especial e prevenção geral devem ser incluídos em conjunto como o fim da pena. Uma vez que os crimes podem ser evitados através da influência sobre o particular como sobre a coletividade, ambos os meios estão subordinados ao fim último a que se estendem e são igualmente legítimos. 5 [tradução livre]

Para Roxin, portanto, a previsão constitucional denota compreender a pena em seu aspecto primeiramente preventivo. Vale dizer, a pena deve possuir o escopo de evitar que aquela conduta volte a se repetir em âmbito social. Em seu caráter geral, a prevenção atua de modo mais coercitivo, mostrando para a sociedade que aquela conduta não deve ser praticada, pois corresponderá a uma pena. Já no âmbito especial ou específico, a pena deve proporcionar a efetiva ressocialização do apenado, evitando a reiteração da conduta criminosa. Acerca das críticas de conflitos entre os objetivos preventivo-especiais e gerais, Roxin (2008, p. 97) responde afirmando que, nestes casos específicos, deve haver um sopesamento dos escopos, a fim de garantir a efetivação da prevenção a nível social e pessoal do criminoso. Destaca, porém, que a prioridade deve ser da vertente especial da prevenção, vez que sua preferência não prejudica a garantia de premissas preventivo-gerais, enquanto que a primazia desta pode anular os efeitos especiais. Na divisão das fases da pena, Roxin (2008, p. 99) explicita que fins devem ser

constitucionais. Na cominação da pena, ou seja, na determinação abstrata do crime, deve-se seguir o caráter preventivo-geral, já que a codificação tem o objetivo de conscientizar o cidadão, a fim de evitar o cometimento de delitos. Na aplicação da pena, momento da sentença, é necessário atentar-se para os dois escopos – especial e geral –, mas tomando como primário o preventivo-especial, já que esse não exclui o preventivo-geral. Por fim, na execução da pena, prestar-se-á ao fim preventivo-especial, tendo em vista que a principal função nessa fase é a ressocialização, pois o interesse geral de conscientização 5

El punto de partida de toda teoría hoy defendible debe basarse en el entendimiento de que el fin de la pena sólo puede ser de tipo preventivo. Puesto que las normas penales sólo están justificadas cuando tienden a la protección de la libertad individual y a un orden social que está a su servicio […], también la pena concreta sólo puede perseguir esto, es decir, un fin preventivo del delito […] De ello resulta además que la prevención especial y la prevención general deben figurar conjuntamente como fines de la pena. Puesto que los hechos delictivos pueden ser evitados tanto a través de la influencia sobre el particular como sobre la colectividad, ambos medios se subordinan al fin último al que se extienden y son igualmente legítimos.

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perseguidos prioritariamente para que se alcance um Direito Penal condizente com preceitos

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FIDΣS já fora alcançado com a cominação e aplicação da pena. Ademais, esta última fase possui caráter pessoal e a aplicação exacerbada da prevenção geral poderia ocasionar o efeito oposto, o criminoso se sentiria intimidado e à parte da sociedade, vindo a cometer mais crimes. A sistematização de Claus Roxin atende a um modelo de pena que pode ser relacionado ao Estado Democrático-Constitucional. O esforço em centralizar a prevenção corresponde à concretização da garantia da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais. Desse modo, a compreensão da função da pena deve necessariamente perpassar o filtro constitucional, visto que a Carta Magna é suprema em nosso ordenamento, devendo tudo se adequar a seus ditames. Nesse ínterim, o artigo 5º, caput e incisos III6, XLIX7 e LXI8, combinados com o supra referido artigo 1º, inciso III, todos da Constituição Federal , por exemplo, expressam imposições irrevogáveis aos jus puniendi estatal. Representam limitações à aplicação da pena e, assim, constituem conteúdo material para entendimento de sua função. Não é em outro sentido que se dispõe no artigo 5º, (6)9, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) de 1969, ao elencar expressamente que a função da pena deve ser dirigida à ressocialização. Frise-se que o atual entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal assentou-se no sentido de atribuir status supralegal a tratados de Direitos Humanos que não possuam nível constitucional (pela regra do artigo 5º, §2º, da Constituição), o que importa afirmar que tais normas possuem caráter hierárquico superior a leis ordinárias e, portanto, não podem ser revogadas por estas (BRANCO; COELHO; MENDES, 2009, p. 260). Analisando-se a Constituição como um sistema de regras e princípios que devem ser

como se chegar a conclusão diversa daquela sintetizada por Claus Roxin para definir a adequação da pena ao ordenamento brasileiro. Os mandamentos constitucionais relacionados à garantia dos direitos fundamentais e os próprios objetivos da República elencados no artigo 3º da Carta Magna apontam para a função da pena a ser adotada em nossa nação.

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Art. 5º, inciso III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante. Art. 5º, inciso XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral. 8 Art. 5º, inciso LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei. 9 Art. 5º, (6) - As penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados. 7

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interpretados segundo atividade hermenêutica a fim de extrair as normas jurídicas, não há

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FIDΣS A análise sistêmica dos dispositivos constitucionais e supralegais que versam sobre a limitação do jus puniendi estatal impõe, portanto, a conclusão de que a pena inserida no sistema jurídico pátrio deve possuir função mista, priorizando-se essencialmente a ressocialização. Partindo-se dessa premissa, há que, por consentâneo lógico, se promover a tese da ressocialização em todo o Processo Penal, destacando-se aqui a execução da pena, fase em que são verificadas, como já aludido, as maiores atrocidades à nossa Lei Maior.

3 ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DA DENEGAÇÃO DO DIREITO A SAÍDAS EXTERNAS PARA INDIVÍDUOS CONDENADOS A REGIME INICIAL DE CUMPRIMENTO DE PENA SEMIABERTO

Após a exposição dessas considerações iniciais, fundamentais para contextualização sistemática do caso concreto em análise, se fará um esforço hermenêutico-dogmático para auferir a constitucionalidade das medidas executivas adotadas no âmbito do Judiciário norterio-grandense trazidas a lume no tópico referente à introdução. Adotar-se-á a sistemática exposta por Leonardo Martins e Dimitri Dimoulis (2008, p. 246) para conclusão sobre a correspondência ou não da medida com a Constituição Federal. Para tanto, é preciso estabelecer o objeto da análise, ou seja, definí-lo. Dessa forma, deve-se partir para a explanação do procedimento de transferência de competência do juízo de conhecimento para o juízo de execução penal, momento em que se ocorrerá a conduta que

3.1 Delimitação do objeto: do procedimento para início do cumprimento de pena privativa de liberdade A Resolução nº 113/2010 do Conselho Nacional de Justiça10 (CNJ) foi adotada em consonância com a grande deficiência de nosso ordenamento em uniformizar e adequar os procedimentos de execução da pena privativa de liberdade. Em âmbito local, conjuntamente

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CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 113/2010. Publicada no DJ-e nº 73, em 26/04/2010, p. 03-07. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/323-resolucoes/12231resolucao-no-113-de-20-de-abril-de-2010>.>. Acesso em: 13 ago. 2011.

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titula este tópico, foco da perquirição de constitucionalidade.

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FIDΣS com o Provimento nº 31 da Corregedoria de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte11, compõe o arcabouço normativo no que diz respeito aos procedimentos para execução desses tipos de pena. É preciso trazer à baila alguns pontos importantes desses instrumentos para o entendimento do objeto sujeito à análise de constitucionalidade. Inicialmente, cumpre-se esclarecer que quando da condenação transitada em julgado em primeiro grau de jurisdição para penas privativas de liberdade correspondentes ao regime semiaberto ou fechado, deve o juízo de conhecimento proceder à expedição de mandado de prisão para a captura do apenado, somente iniciando-se a execução a partir daí. Tal entendimento encontra guarida no artigo 1º, parágrafo único, do Provimento nº 31 da Corregedoria Geral de Justiça (CGJ), que estabelece expressamente a necessidade do juízo de conhecimento manter os autos em sua Secretaria até o cumprimento do referido mandado. Estando o sentenciado recolhido em estabelecimento prisional, procede-se à confecção da guia de recolhimento, observando-se os requisitos elencados no artigo 106 da Lei de Execução Penal (LEP) e no artigo 2º do supracitado Provimento, e encaminha-se uma cópia para o local onde o indivíduo está preso e outra para o juízo competente para a execução da pena. É dever da administração do estabelecimento prisional, ao receber a guia de recolhimento, promover a adequação do regime de cumprimento de pena ao estabelecido na sentença condenatória, conforme dispõe o artigo 2º, parágrafo 3º da Resolução nº 113 do CNJ, sendo a medida sujeita a controle judicial posterior. Desta forma, em caso de constatação de que a sentença condenatória determinou regime inicial semiaberto, deve a autoridade penitenciária proceder com a remoção do É estabelecido no artigo 33, parágrafo 1º, alínea “a”, do Código Penal, que o regime semiaberto será aquele executado em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar. Por sua vez, é patente a inexistência de tais locais em quantidade e qualidade suficientes para abrigar toda a população carcerária em regime semiaberto no estado do Rio Grande do Norte. Destarte, a CGJ, em seu Provimento nº 31, artigo 10, explicita que na ausência de tais estabelecimentos, as penas em regime aberto e semiaberto serão executadas “em cadeia pública ou estabelecimento prisional congênere, com obrigação de recolhimento noturno e

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CORREGEDORIA GERAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE. Provimento nº 031 de 2008. Disponível em: <http://corregedoria.tjrn.jus.br/index.php?option=com_docman&task=cat_ view&gid=156&Itemid=123>. Acesso em: 11 ago. 2011.

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indivíduo para local adequado para tal regime.

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FIDΣS nos dias de folga, na localidade em que o condenado exerce emprego fixo ou residam familiares”. A disciplina dos regimes de cumprimento de pena distintos do fechado em nosso estado está, aparentemente, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal 12 e Superior Tribunal de Justiça13, que efetivamente assentaram entendimento no sentido de que a ausência de estabelecimento adequado correspondente ao regime imposto não pode obstar o apenado de concretamente progredir no cumprimento de pena. Dessa forma, as cortes superiores têm decidido que, nesses casos, não deve o apenado ser mantido no regime mais gravoso, podendo ser determinada a prisão domiciliar ou semelhante de menor gravidade. Com efeito, ao constatar então que o preso foi condenado a regime semiaberto, a administração do presídio ou cadeia pública de nosso estado deve mantê-lo no estabelecimento, convivendo com os reeducandos em regime fechado, pois este é o local determinado para seu cumprimento de pena. Somente terá direito o preso a se recolher unicamente em período noturno quando da instauração de seu processo de execução da pena e consequente autorização do juiz da execução penal para saídas externas. É aqui que se chega ao objeto da análise de constitucionalidade, porquanto a necessidade de autorização para saída externa do preso configura possivelmente ameaça ao seu direito de cumprir a pena nos estritos mandamentos da sentença condenatória e, além do mais, não corresponde à disciplina legal da saída externa pela Lei de Execução Penal. Definido o objeto, qual seja, a constitucionalidade da autorização para saída externa pelo juízo da execução em casos de condenação a regime de cumprimento de pena

3.2 Direito fundamental cuja esfera de proteção é ameaçada pela persistência da necessidade de autorização para saída externa no regime semiaberto em nosso estado

O constituinte originário foi feliz em estabelecer um amplo rol de garantias e direitos fundamentais em nossa Constituição Federal. A falta de técnica do operador do direito,

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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Habeas Corpus 94526-SP. Primeira Turma. Rel. Ministra Cármen Lúcia. j. 24.06.2008. DJe 29.08.2008. 13 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Habeas Corpus 97.940-RS. Quinta Turma. Rel. Ministra Laurita Vaz. j. 12.08.2008. DJe 08.09.2008.

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inicialmente semiaberto, passa-se à análise pormenorizada da referida medida judicial.

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FIDΣS porém, por vezes gera equívocos no momento da identificação do direito fundamental específico cuja esfera de proteção está sendo ameaçada pela medida estatal. É essencial que se despenda atenção especial a esse ponto, pois é a partir da identificação do direito fundamental que se pode analisar, dentre outras coisas, as reservas legais impostas pela própria Constituição, a natureza desse direito fundamental e os seus efeitos na ordem jurídica. Com efeito, o artigo 5º, caput, da Carta Magna estabelece direitos fundamentais que possuem abrangente área de proteção, sendo eles o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Os incisos do referido artigo trazem direitos fundamentais cujas áreas de proteção se apresentam mais restritas, seja em decorrência da limitação de seus titulares ou da especificação de reservas legais. Ao deparar-se com o caso em questão, à primeira análise, aduz-se que o possível direito fundamental cerceado pela medida judicial é o direito à liberdade, exposto no caput do artigo 5º da Constituição. É necessário, porém, que se atente para a existência de direitos fundamentais que, apesar de inseridos na esfera do direito à liberdade, são lex specialis em relação ao gênero liberdade, caso em que deve-se optar por estes últimos em razão de serem mais específicos. Dessa forma, podem-se citar como direitos fundamentais atinentes ao gênero a liberdade de pensamento (artigo 5º, inciso IV), de culto (artigo 5º, inciso VI), de expressão (artigo 5º, inciso IX), entre outras. A liberdade é, essencialmente, conceito abstrato que impõe esforço hermenêutico para extrair da palavra a melhor significação jurídica. Enquanto direito fundamental, pode ser classificado como de status negativo, posto que representa uma obrigação de não interferência

A essência do direito está na proibição imediata de interferência imposta ao Estado. Trata-se de um direito negativo, pois gera a obrigação negativa endereçada ao Estado de deixar de fazer algo. Trata-se de uma obrigação de abster-se da intervenção na esfera de liberdade garantida pela Constituição (imperativo de omissão – Unterlassungsgebot). (MARTINS; DIMOULIS, 2008, p. 65) [grifos do autor]

O caso em tela, ao lidar com a atividade punitiva do Estado e com a aplicação de penas privativas de liberdade, como o próprio nome implica, lida essencialmente com o núcleo do direito à liberdade exposto no caput do artigo 5º da Constituição. Os direitos

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do Estado na esfera do indivíduo. Assim, assevera-se acerca dessa classificação de direitos:

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FIDΣS específicos elencados nos incisos deste artigo possuem áreas de proteção específicas, destinadas a certos casos fáticos que não se coadunam com a situação em análise. A pena privativa de liberdade compreende medida extrema adotada pelo braço coercitivo do Estado para punir aqueles que ferem bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal. Apesar de sua função ressocializadora, é a maior forma de intervenção do Estado Democrático-Constitucional no direito à liberdade exposto em nossa Lei Maior. Assim sendo, pode-se definir o direito fundamental à liberdade, exposto no artigo 5º, caput, da Constituição Federal, como o parâmetro de análise da constitucionalidade da autorização para saídas externas no cumprimento do regime de pena semiaberto no estado do Rio Grande do Norte.

3.3 Da intervenção estatal no direito fundamental à liberdade

Na análise da constitucionalidade, é imprescindível atentarmos para a justificativa da intervenção estatal no direito fundamental em questão. Destarte, deve-se vislumbrar a permissão que a Constituição fornece, em casos específicos, para que o direito fundamental à liberdade sofra limitações. É evidente que, apesar de muito criticada, a pena privativa de liberdade é o centro da política criminal na maioria dos países. Representa, em regra, para Estados que não adotam a pena de morte, o último recurso do jus puniendi estatal para intervir em determinada situação. Como já evidenciado, o Direito Penal surge com a premissa de limitar o poder estatal no exercício de sua força. Nesse sentido, vale ressaltar as lições de Walter Nunes (2008, p.

processo penal, dois institutos intimamente relacionados. Desse modo, elenca o autor:

Se o processo penal regula o direito-dever de punir do Estado na perspectiva democrática, ele é um instrumento de tutela dos direitos fundamentais do cidadão. Nessa visão, embora o processo sirva de instrumento para que o poder público, tendo em mira manter ou restaurar a ordem social, exercite a persecução criminal com autoridade e legitimidade, por outro lado, ele tem como principal missão estabelecer os limites do uso da força estatal na busca da punição do agente infrator. (SILVA JÚNIOR, 2008, p. 267)

Esse excerto sumariza a ideia de intervenção estatal no direito fundamental à liberdade tal como analisado neste artigo. Na sua função primordialmente pacificadora, não

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265-267) quando estabelece uma importante relação entre os direitos fundamentais e o

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FIDΣS pode o Estado se eximir de aplicar a pena, esta, porém, deve atender às exigências da ordem constitucional e da prevalência dos direitos fundamentais. Logo, a aplicação da pena privativa de liberdade, no contexto do Estado Democrático-Constitucional, não pode ser de outra forma senão por meio do processo penal. A Constituição foi clara ao estabelecer essa ideia no artigo 5º, inciso LIV, estatuindo o devido processo legal como pressuposto da intervenção no direito à liberdade Assim, não restam dúvidas de que para se mostrar autorizada a intervenção do Estado no direito fundamental à liberdade, é necessário que, além de que essa ação esteja revestida da proteção garantida pela Constituição, que tenha sido respeitado o devido processo legal, com todos os seus princípios correlatos: ampla defesa, contraditório, presunção de inocência, etc. Na situação em tela, parte-se do pressuposto de que a sentença condenatória transitada em julgado que prevê pena privativa de liberdade em regime de cumprimento de pena inicialmente semiaberto preenche todos os requisitos referentes ao devido processo legal, já que possui o Estado legitimidade para intervir no direito fundamental à liberdade do apenado, impondo-lhe pena capaz de cumprir com os desígnios da Carta Magna. Porém, como toda intervenção à esfera de proteção dos direitos fundamentais, é preciso que a medida alvo de análise seja proporcional. Assim, aduz-se a ideia exposta por Leonardo Martins (2003, p. 15-24) ao defender que o direito pode ser alvo de intervenção, mas é necessário que esta atenda ao critério da proporcionalidade14 a fim de prosperar no ordenamento jurídico pátrio. Dessa forma, in verbis:

A dogmática geral dos direitos fundamentais corresponde no geral a um processo

intervenção estatal e 3°) análise da possibilidade de justificação desta em face da aplicação de um limite constitucional. O controle da aplicação do limite constitucional é feito pela análise da proporcionalidade. Daí se classificar o critério da proporcionalidade como sendo um “limite do limite” (Schrankenschranke) constitucional. (MARTINS, 2003, p. 24)

3.4 Análise do critério da proporcionalidade na intervenção estatal

14

Não será tratado aqui da discussão doutrinária sobre a caracterização da proporcionalidade como princípio norteador ou como critério de aferição de constitucionalidade. Parte-se da premissa, portanto, que como critério a proporcionalidade possui maior dogmática jurídica e sistematicidade para análise do caso concreto.

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trifásico: 1°) análise do objeto tutelado pelo direito fundamental; 2°) análise da

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FIDΣS Perpassados os obstáculos até agora presentes, pode-se inferir que a proibição de saída externa para presos condenados a regime de pena inicialmente semiaberto, nos moldes dados a esse regime pelo Provimento nº 31 da CGJ, representa uma intervenção estatal ao direito fundamental à liberdade. Como tal, possui respaldo constitucional, partindo-se do pressuposto de que a sentença condenatória transitada em julgado para penas a tal regime tenha respeitado o devido processo legal. Então, como medida interventiva, prima facie constitucionalmente aceitável, é imprescindível que se avalie a proporcionalidade da mesma, evidenciando se seus termos condizem com o sistema constitucional. Notadamente, qualquer limitação imposta ao exercício dos direitos fundamentais, ainda que permitida pela Constituição – uma vez que não são direitos absolutos –, é passível de análise de sua proporcionalidade. No âmbito de análise deste critério, impõe-se que o propósito da intervenção seja lícito, ou seja, o objetivo que ela almeja deve ser aquele depreendido da Constituição. Além disso, o meio utilizado para operar a intervenção deve ser lícito e se mostrar adequado e necessário para o alcance do propósito gerador da limitação. O primeiro ponto a ser tratado se refere ao objetivo ou propósito perseguido pelo magistrado ao determinar que o apenado não possua autorização a saídas externas. Efetivamente, a autorização cumpre papel importante no processo de inserção do apenado no meio social. Enquanto progressivo, o sistema de cumprimento de pena impõe uma gradual reinserção do preso na sociedade. A saída externa em regime semiaberto representa o primeiro grande passo no contato do apenado com a sociedade, posto que neste sistema o preso possui a chance de frequentar cursos profissionalizantes fora do complexo prisional, ou até mesmo trabalhar em local externo.

constitucionalmente imposto para pena é a prevenção especial: a ressocialização do apenado. Nesse sentido, a Lei de Execução Penal estabelece em seu artigo 122 as hipóteses em que o magistrado está autorizado a conceder a saída externa ao apenado. Desta forma, a não autorização a essas saídas deve ser motivada, inicialmente, pela não comprovação por parte do apenado de que efetivamente utilizará desse direito para cumprir com seus propósitos, quais sejam, visitar a família, frequentar cursos ou participar de atividades que colaborem para o retorno ao convívio social. Sob outro ponto de vista, porém, pode também o magistrado, com base no artigo 123 da Lei de Execução Penal, negar a saída embasado no comportamento inadequado do preso, ou ainda, na hipótese de verificar que esse direito não se adequa aos objetivos da pena naquele caso concreto.

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Durante todo o processo de execução, como já evidenciado, o propósito

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FIDΣS Logo, a não autorização possui propósito lícito em nosso sistema constitucional, vez que se baseia na tentativa do Judiciário de garantir que os objetivos essenciais de ressocialização sejam atingidos por meio da pena. É a tentativa de garantir que o sujeito que esteja gozando da saída externa possua os mínimos requisitos de convívio social e, ao mesmo tempo, possam-se evidenciar indícios de que o mesmo não voltará a delinquir. Sendo o propósito perseguido pela medida abarcado pela nossa Constituição, cumpre-se detalhar as questões pertinentes ao meio escolhido pelo Judiciário para efetivar o propósito. No estado do Rio Grande do Norte, tendo-se em vista a situação caótica e desumana de nosso sistema penitenciário, fica evidente que, ao ser recepcionado no regime fechado, grande parte dos presos não possui a mínima perspectiva de reinserção social. São, em geral, pessoas de baixa renda, que não possuem emprego ou qualquer qualificação profissional e não veem outra alternativa além ser manter-se no mundo do crime. O Provimento nº 31 da CGJ, no que concerne à disciplina do regime semiaberto no estado, possui justamente o intuito de efetivar que o preso possua um sistema progressivo de cumprimento de pena, uma vez que não existe estabelecimento adequado ao regime semiaberto para a maioria dos presos do estado. Então, partindo-se dessa premissa, o juízo de conhecimento, ao prolatar sentença condenatória, deve atentar às condições do sistema carcerário, inclusive para a disciplina do regime semiaberto sui generis. Da mesma forma, o juízo de execução penal, ao atentar para o cumprimento da pena, não pode olvidar de considerar a situação carcerária do estado. Ao ser condenado ao regime inicial de cumprimento de pena semiaberto, o

liberdade de maneira menos gravosa do que alguém condenado a regime fechado. Essa menor gravidade atenta para a função de ressocialização da pena e, portanto, corresponde ao direito do apenado de possuir sua liberdade transgredida nos estritos limites estabelecidos na sentença condenatória. Sendo iniciada a execução penal, há que se distinguir, portanto, aqueles que cumprem pena em cada um dos regimes estatuídos em nosso Código Penal – fechado, semiaberto e aberto –, pois cada um deles corresponde a uma fase diferente do processo de ressocialização. O que acontece, porém, com o apenado condenado a regime inicial semiaberto que porventura venha a ter seu direito à saída externa rejeitado pelo magistrado das execuções penais? Evidentemente, ele estará cumprindo pena nos mesmos termos daqueles que o fazem em regime fechado.

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Judiciário, através do processo penal, evidencia que aquele sujeito deve ser infligido em sua

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FIDΣS É este o ponto principal que se deve analisar no presente trabalho. Apesar do propósito da negativa de saída externa ser efetivamente adequado ao nosso sistema constitucional, a sua implementação no estado do Rio Grande do Norte, e em boa parte do Brasil, não corresponde a uma medida adequada a se alcançar o propósito da pena, tal qual depreendido da hermenêutica constitucional e dos fundamentos do Estado DemocráticoConstitucional. Esse fato decorre, evidentemente, do colapso de nosso sistema carcerário. Como uma fileira de dominós, os institutos do Direito Penal caem um a um frente à realidade esmagadoramente cruel e desumana de nossos presídios. No caso em tela, pela inexistência de estabelecimento adequado ao regime semiaberto, vê-se que, além de se frustrar o objetivo essencial da pena, tem-se que adequar toda a sistemática processual da execução penal para que se garanta o mínimo de dignidade aos cumpridores de pena, sob óbice de inconstitucionalidade das medidas. Nesse afã, é necessário perceber que, tendo o juiz de conhecimento condenado o sujeito ao regime inicial de cumprimento semiaberto, entende-se que o jus puniendi estatal não deve ser superior àquele prelecionado para o tratamento neste regime. É nesse sentido que dispõe o Provimento nº 31 da CGJ, ao estabelecer que a obrigação seja somente de “recolhimento noturno e nos dias de folga, na localidade em que o condenado exerce emprego fixo ou residam familiares”. A falta de autorização para saídas externas é, portanto, sucedâneo de efetiva regressão de regime prisional, uma vez que o preso ficará em cadeia pública ou estabelecimento prisional congênere convivendo normalmente com condenados a regime

Como os requisitos para a concessão de saída externa são dificilmente alcançados pelos apenados, sua negativa é quase que certa se baseando nas exigências da Lei de Execução Penal. Em decorrência desse fato, não se pode considerar a negativa a saída externa a presos que cumpram regime de pena inicialmente semiaberto, ou mesmo que tenham progredido de regime prisional, em nosso estado, pois essa medida judicial representa clara afronta ao direito fundamental à liberdade do preso, mais especificamente, é ato que carece de adequação para se alcançar o propósito constitucional da pena, tal qual desenvolvido no início deste artigo. Há que se verificar, portanto, que em âmbito local a autorização para saídas externas é conditio sine qua non do regime de cumprimento de pena semiaberto. Sua denegação é clara violação aos preceitos constitucionais, vez que subverte o sistema progressivo de pena, afeta

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fechado, sem nenhuma distinção dos regimes de cumprimento de pena.

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FIDΣS profundamente a liberdade do preso e, ainda por cima, anula qualquer caráter ressocializador que a pena possa possuir. É, dessa forma, medida que sofre de inconstitucionalidade por violação ao critério da proporcionalidade na intervenção realizada no direito fundamental à liberdade, estatuído no artigo 5º, caput, da Constituição Federal. Indaga-se, portanto, qual seria a intervenção adequada constitucionalmente quando o juiz depara-se com casos de apenados condenados inicialmente a regime semiaberto, mas que não possuem as mínimas condições de convívio social adequado, sendo criminosos reincidentes e tendo cometido o crime com violência. Evidentemente, a solução jurídica não se encontra na execução penal, nos moldes de nossa sistemática de regimes de cumprimento de pena. A única via eficaz para se garantir que esse indivíduo cumpra sua pena inicialmente em cárcere sem o convívio externo é o recurso de apelação por parte do Ministério Público para reforma da sentença do juízo de conhecimento, pleiteando a reconsideração do regime inicial de cumprimento de pena para o fechado. Porém chega-se a outro dilema. O cumprimento da pena em regime inicial fechado, em nosso estado, é certeza de não alcance do objetivo primordial da pena, a ressocialização. De mesma forma, a manutenção do apenado em regime semiaberto, nos moldes estabelecidos pela CGJ, não é a medida mais eficaz para se perseguir o fim da pena. O impasse se estabelece, pois a única medida realmente eficaz e adequada à solução do problema deve partir do Poder Executivo e não da esfera judicial. É nesse ponto que se constata a falência do sistema penitenciário brasileiro e sua completa dissonância com os

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise pontual da situação de inconstitucionalidade da denegação de autorização para saídas externas a condenados a regime inicial de pena semiaberto revela um cenário de irregularidades ainda mais abrangente. A necessidade de integração entre os Poderes Executivo e Judiciário na fase de execução da pena é essencial para que se ponham em prática os preceitos constitucionais. O que se constata, porém, é que o descaso para com a condição do sistema penitenciário por parte da Administração Pública gera enormes entraves à efetivação dos direitos fundamentais dos cidadãos.

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preceitos e objetivos estabelecidos na Constituição.

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FIDΣS Sendo a ressocialização a principal função da pena, tal qual estabelecida em nossa Carta Magna, a sua não implementação no sistema carcerário brasileiro gera um impasse jurídico de difícil superação. Se mantido preso, o apenado não possuirá a mínima expectativa de melhora e retorno adequado ao convívio social, mas se mantido solto também não é garantia de ressocialização. No que pese a atuação do Poder Judiciário, é de se ressaltar que a opção pela soltura do apenado é sempre a menos onerosa para os direitos fundamentais, atentando-se para as especificidades do caso concreto. Como salientava Alessandro Baratta (1976, p. 45), não há como conceber o sistema ressocializador da pena sem uma efetiva política criminal que incentive a ascensão social das classes mais pobres e as tire da condição de marginalização, efetiva causa de adesão à vida do crime no Brasil. Enquanto o Executivo não implementa esses ditames de nossa Constituição, não deve o Judiciário se contaminar pela falência do sistema carcerário, simplesmente chancelando os atos da Administração Pública. Seu dever é garantir que o jus puniendi estatal não se aproveite do caos penitenciário para transgredir o prelecionado na Carta Magna, pois efetivamente não pode o condenado ser prejudicado pelo fato de o Estado não possuir estrutura adequada para fazer valer o objetivo da pena de ressocialização, sob óbice de retorno aos regimes medievais de execução penal. Evidentemente,

constata-se

que

a

medida

mais

adequada

e

necessária

constitucionalmente para a efetivação do propósito ressocializador da pena é a atuação eficaz do Poder Executivo para reestruturação profunda do sistema penitenciário. Somente assim será possível a garantia completa dos direitos fundamentais dos apenados. Enquanto essa

direitos fundamentais dos cidadãos. Na situação em análise, portanto, é de se impor a inconstitucionalidade de denegação do direito de saída externa para presos condenados a regime inicial de pena semiaberto no estado do Rio Grande do Norte, por representar medida totalmente inadequada ao alcance dos propósitos constitucionais da pena privativa de liberdade.

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medida não é efetivada, no caso concreto deve-se optar pela intervenção menos onerosa aos

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SILVA JÚNIOR, Walter Nunes. Curso de Direito Processual Penal: Teoria (Constitucional) do Processo Penal. 1 ed. .Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

THE COLLAPSE OF THE BRAZILIAN PENITENTIARY SYSTEM: THE EXTERNAL DEPARTURES CONSTITUTIONALITY FOR PRISIONERS CONDEMNED TO SEMI-OPEN CONDITIONS IN RIO GRANDE DO NORTE ABSTRACT

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ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General. Tomo I. Fundamentos. La Estructura de la

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FIDΣS This article aims to analyze the constitutionality of judicial decisions that deny authorization of external departures to prisoners sentenced to the initial regime of imprisonment semi-open at the state of Rio Grande do Norte. Initially, some considerations are made about national and local prison systems, reaching a vision for the penalty function that corroborates with the precepts of a Constitutional-Democratic State, as stated in our Constitution. After, it’s analyzed the constitutionality of the measure itself, reaching the inevitable conclusion of the collapse of our prison system and the role of Executive Power in this chaotic scene.

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Keywords: External departures. Prison system. Constitutionality.

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FIDΣS Recebido 01 set. 2011 Aceito 22 abr. 2012

ENTRE A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL E A RESERVA DO POSSÍVEL: UMA

ANÁLISE

PREFERENCIAL

DA DOS

PROBLEMÁTICA DIREITOS

EM

TORNO

FUNDAMENTAIS

DA DE

EFETIVAÇÃO CRIANÇAS

E

ADOLESCENTES Mariana Camila Silva Catão

RESUMO O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma ampla visão da dinâmica dos direitos da criança e do adolescente, sob o viés da doutrina da proteção integral. Em contraponto à referida doutrina, é abordada a cláusula da reserva do possível, o que nos remete a uma reflexão democrática e axiológica sobre o orçamento público, a efetivação de direitos fundamentais sociais e a proteção preferencial e global dos direitos da criança e do adolescente. Palavras-chave: Proteção Integral. Políticas públicas. Efetivação de

“O importante é saber por quem estamos fazendo a opção e aliança. É o oprimido e não o opressor. Estamos do lado do menino, do explorado, do oprimido. Há uma identificação com os interesses das classes populares.” (Paulo Freire)

1 INTRODUÇÃO 

Graduanda em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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Direitos Fundamentais. Reserva do Possível.

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FIDΣS Inicialmente, faz-se mister entender que o direito da criança e do adolescente passou por um processo de intensas modificações e aperfeiçoamentos ao longo do tempo. Esses sujeitos passam a ser sujeitos de direitos, vistos em conformidade com sua situação peculiar de seres em desenvolvimento, que demandam atenção e cuidados especiais por parte do Estado, da família e da sociedade. Todavia, esses direitos, entendidos como direitos fundamentais, podem vir a sofrer mitigações em virtude da aplicação da cláusula da reserva do possível, entendida pela doutrina como a possibilidade de o Estado prestar determinados direitos dentro dos limites tidos como razoáveis no que concerne a recursos e possibilidade fática. Desta feita, como passo a demonstrar, tal questão merece uma reflexão aprofundada requerendo, sobretudo, o uso da ponderação quando da colisão das duas frentes abordadas. Assim, cada caso irá determinar os limites de aplicação dos preceitos ora em análise.

2 BREVE HISTÓRICO DO DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E CONTEXTO NACIONAL

Vinculada à perspectiva de expansão internacional dos Direitos Humanos, a proteção quanto a crianças e adolescentes, no contexto mundial, somente se fortaleceu no período posterior às duas grandes Guerras Mundiais, quando houve uma maior preocupação com as crianças órfãs de guerra. Surgiram, dessa forma, instituições como a “Save the children”

dispositivo que, embora não dotado de dever-ser, mostrou-se bastante relevante na luta pelos direitos das crianças e adolescentes, pois representa seu marco inicial. Esse contexto de expansão proporcionou o movimento de codificação dos direitos das crianças e adolescentes, visando garantir direitos e evitar a sua violação em diversos níveis, destacando-se a “Declaração Universal dos Direitos do Homem” de 1948, que trazia a equiparação entre filhos havidos dentro e fora do casamento; a “Declaração Universal dos Direitos da Criança” de 1959, que, sobretudo, trouxe a ideia de proteção integral de crianças e adolescentes; e a “Convenção Internacional dos Direitos das Crianças” de 1989, responsável por estabelecer o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.

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(1919), responsável pela elaboração da “Declaração sobre os direitos das crianças”,

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FIDΣS Para a promoção de um melhor entendimento da proteção aos direitos das crianças e dos adolescentes no Brasil, é necessário focarmos nas duas correntes jurídico-doutrinárias acerca da proteção da infância em nosso país desde o século XIX. A doutrina da situação irregular passou a existir no âmbito jurídico com o advento de um Código de Menores em 1927, que entedia as crianças e adolescentes como elementos sociais sujeitos à intervenção estatal a partir da constatação de um estado de patologia social definido legalmente (SOUZA, 2002, p. 1). Com efeito, essa corrente doutrinária contribuía para que Estado se eximisse de suas obrigações para com a situação da infância e da juventude no país, só cessando sua omissão mediante a situação irregular, que determinava a legitimação da intervenção estatal, pelo que aduz o professor André Viana Custódio (2008, p. 25):

De outro modo, os poderes legislativo, executivo e judiciário mantinham-se regularmente omissos, manifestando-se apenas quando as crianças assumiam a condição de objeto de interesse “jurídico”, seja pela prática de infrações, seja pela própria condição de exclusão social que as colocava em evidência. Aí, era o momento de configurar a irregularidade, que nunca era das instituições, mas sempre recaía sobre a criança, pela própria previsão ordenada no sistema jurídico ou pela condição de fragilidade que a submetia a imposições adultas produzindo o paradoxo da reprodução da exclusão integral pela via da inclusão na condição de objeto de repressão.

A legislação em comento caracterizava-se pelo poder arbitrário do juiz de menores, o

totalmente desvinculada das causas geradoras das situações de abandono e delinquência. Visava-se, sobretudo, preservar o menor infrator e marginalizado da ameaça que ele representava para si próprio e para a sociedade. De forma ilustrativa, transcreve-se abaixo o artigo do Código de Menores de 1927 que apontava o público a ser atingido por suas disposições: “Art.1º. O menor, de um ou de outro sexo, abandonado, ou delinqüente, que tiver menos de 18 anos de idade, será submetido pela autoridade competente às medidas de assistência e proteção contidas neste código” 1. Com a promulgação do Novo Código de Menores em 1979, que se pautava num direito de caráter assistencial e autoritário, o debate sobre a infância ganhou mais repercussão, 1

BRASIL. Decreto Nº 17.943-A de 12 de outubro de 1927. Consolida as leis de assistência e proteção a menores. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1910-1929/D17943A.htm>. Acesso em: 15 maio 2011.

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qual adotava a internação como medida coercitiva, bem como pela prática intervencionista

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FIDΣS resultando na focalização dos novos movimentos sociais que garantiram a incorporação dos preceitos inovadores sobre criança e adolescente no ordenamento jurídico brasileiro (SOUZA, 2002, p.4). No ano de 1986, aconteceu o Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua, que estabelecia uma nova perspectiva pedagógica, pautada na idéia de que os próprios meninos e meninas devem ter voz e decisão sobre seus direitos (SOUZA, 2002, p.6). Seguiram-se assim diversos debates acerca da doutrina da proteção integral em contraposição à doutrina da situação irregular, já eram usadas nessa época expressões como crianças, adolescentes, sujeitos de direitos. Como corolário dos intensos movimentos sociais em prol dos direitos da infância e da juventude, duas emendas populares “Criança e Constituinte” e “Criança Prioridade Nacional”, resultaram nãos artigos 204 e 227 da Constituição Federal de 1988, doravante Constituição Federal. Tais artigos tratam, respectivamente, da participação popular na formulação de políticas públicas e da absoluta prioridade em favor das crianças na prestação de direitos fundamentais e de políticas públicas em geral. Já em 1990, no II Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua, houve uma aprovação simbólica do Estatuto da Criança e do Adolescente no Congresso Nacional, fato que se tornou público e repercutiu de forma positiva na mídia (SOUZA, 2002, p.7). Essa mobilização teve como resultado a posterior aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente pelo Congresso Nacional em 1990 e sua sanção pela Presidência da República. Instaurava-se, desta feita, a doutrina da proteção integral, que representava uma ruptura dos paradigmas até então impostos pela doutrina da situação irregular, garantindo uma

3 PRINCÍPIOS NORTEADORES DA DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL

A doutrina da proteção integral possui um viés eminentemente principiológico, proporcionando que os direitos das crianças e adolescentes sejam analisados sob uma perspectiva dinâmica, que se ajusta às mudanças trazidas pelos fatores sociais e históricos, assumindo, assim, um compromisso ético, jurídico e político com a proteção desses sujeitos de direitos.

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análise mais profunda do sistema de garantias de direitos das crianças e adolescentes.

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FIDΣS O direito infanto-juvenil se embasa em princípios estruturantes e concretizadores, dentre os quais merecem destaque a absoluta prioridade, a universalização e o melhor interesse. Como corolário do reconhecimento dos direitos fundamentais às crianças e adolescentes, surge o princípio da universalização, de acordo com o qual são suscetíveis de reivindicação todos os referidos direitos, sendo a sua efetivação dever do Estado (CUSTÓDIO, 2008, p. 32). O princípio ora em comento estabelece também que a efetivação desses direitos, por tratar-se de prestação positiva, exige a participação ativa de todos os setores sociais, quais sejam a família, a sociedade e o Estado, revelando dessa forma seu caráter garantista. Com origens no instituto inglês parens patriae, que em resumo pode ser definido como a autoridade herdada pelo Estado para proteger aqueles indivíduos que não podiam fazê-lo por conta própria, em virtude de limitações jurídicas, o princípio do melhor interesse da criança norteia o Direito da Criança e do Adolescente. Esse princípio se justifica a partir do modelo de sociedade desigual produzida pelo sistema capitalista, concretizando-se na resolução de conflitos em que colidam interesses da criança e de outras pessoas, hipótese na qual devem se sobressair os interesses da criança (CUSTÓDIO, 2008, p. 33). Portanto, o princípio do melhor interesse serve como critério estruturante na prestação e efetivação de direitos fundamentais, orientando que todas as ações para atingir esse fim considerem quais as oportunidades e facilidades que melhor atendem ao interesse superior da criança. O princípio da absoluta prioridade guarda relação intrínseca com o princípio do melhor interesse da criança, uma vez que, em seu artigo 4º, o Estatuto da Criança e do

tarefa de assegurar às crianças, com prioridade absoluta, todos os direitos fundamentais inerentes à vida. Por conseguinte, o princípio ora analisado consiste basicamente na primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, como também na preferência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, como também preferência na formulação e na execução das políticas públicas, garantindo ainda a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude, conforme estabelecido no artigo 4º do ECA. O Direito da Criança e do Adolescente consubstancia-se em princípios intimamente ligados à dignidade da pessoa humana e aos direitos humanos fundamentais. Entretanto, sua aplicação se torna diferenciada, uma vez que deve observar-se sempre a situação peculiar de seres em desenvolvimento em que as crianças e adolescente se encontram.

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Adolescente (Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990) atribui ao Estado, à sociedade e à família, a

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FIDΣS

4 CONDIÇÃO PECULIAR DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

O nosso ordenamento já provou obsoleto o modelo tutelar, pautado na ideia de que a criança é um modelo deficitário de pessoa, enxergando seus direitos apenas como aqueles que lhes faltam, entendendo crianças e adolescentes como adultos que eles “devem” ser, uma visão equivocada de desenvolvimento humano remetida sempre ao futuro. A doutrina da proteção integral traz à tona a desvinculação do discurso das necessidades para compreender crianças e adolescentes a partir de seus próprios e atuais interesses. Garantido, desta feita, o reconhecimento da subjetividade jurídica da criança, que passa a ser tomada como referência primária na medida de seus interesses, ditados agora não pelos adultos (família, Estado ou sociedade), mas pela própria criança, que é, neste momento, sujeito de direito, conquanto assistida nas variadas formas da lei:

A criança e o adolescente deixam de ser objeto de tutela e passam a ser sujeitos de direto, isto é, protagonistas sociais capazes de construírem as suas próprias histórias, enfim, de praticarem atividades e cumprirem obrigações, contudo, limitadas e condicionadas à peculiar circunstância de serem pessoas que se encontram ou na infância ou na juventude, enquanto fases do desenvolvimento humano. (RAMIDOFF, 2010, p. 44).

Ademais, as crianças e adolescentes são dotados de todos os direitos que concernem

da Criança e do Adolescente, em seu artigo 6º, tais indivíduos encontram-se em condição peculiar de seres em desenvolvimento. Indispensável ressaltar que o referido entendimento de desempenha uma função hermenêutica legitimadora do tratamento diferenciado a ser dispensado a esses sujeitos de direito:

Para a transformação da percepção dos direitos não basta, portanto, a afirmação de que se é sujeito de direitos. Precisa-se compreender de modo distinto como se reconhecer as competências jurídicas por meio da legitimação de participação social de crianças e adolescentes pela afirmação de suas competências sociais. 2

2

BRASIL. Presidência da República, 2010. Direitos humanos: percepções da opinião pública: análises de pesquisa nacional. Organização de Gustavo Venturi. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2010.

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aos adultos, todavia eles possuem direitos especiais, isto porque, como bem afirma o Estatuto

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FIDΣS Necessária se faz a constatação de que só assim, reconhecendo crianças e adolescentes como sujeitos de direitos em situação peculiar de seres em desenvolvimento, é que se fomenta uma perspectiva efetivamente transformadora da realidade jurídica infantojuvenil.

5 PARTICIPAÇÃO DA FAMÍLIA, DA SOCIEDADE E DO ESTADO

O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 4º, exige a participação da família, da sociedade em geral e do poder público na prestação dos direitos fundamentais a crianças e adolescentes:

Enquanto o Código de Menores responsabilizava a família pelas condições em que se encontrava e, até mesmo destituía o poder familiar em função de sua situação de miserabilidade, o Estatuto localiza e define instâncias concretas. Ou seja, reconhece família, sociedade e Estado como os violadores dos direitos das crianças e adolescentes, sujeitando-os a penalizações quando do não cumprimento de suas responsabilidades (SOUZA, 2010, p. 12-13).

Importante ressalvar que também na Constituição Federal, artigo 227, existe a previsão dos mesmos entes como protetores dos direitos das crianças e adolescentes, o que evidencia a importância dessa atribuição de deveres. A partir do paradigma da doutrina da proteção integral, diversos diplomas jurídicos, inclusive internacionais, passam a determinar a convivência familiar como um direito

consubstancia-se como suporte físico e emocional essencial para o desenvolvimento saudável de qualquer indivíduo. A família3 assume, a partir de então, um papel ativo na regulamentação de parâmetros protetivos e na efetivação de direitos em favor de crianças e adolescentes. O Estado, por outro lado, através de seus agentes públicos, é também corresponsável pela efetivação do direito infanto-juvenil em todas as suas vertentes. A partir de instituições como a Defensoria Púbica, o Ministério Público, o Conselho Tutelar, os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Fundo de Atendimento da Infância e da Adolescência, entre outros diversos entes, especializados ou não, o Estado promove a defesa

3

É importante ressaltar o processo de ruptura dos fatores biológicos para a determinação da família, deslocando seu núcleo fundamental de pertença para o afeto ou socioafetividade, com o reconhecimento de outras configurações familiares como a família homoafetiva, a anaparental e pluriparental, por exemplo.

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fundamental (OLIVEIRA, 2008, p. 6.625), o entendimento é de que o convívio familiar

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FIDΣS dos direitos das crianças e adolescentes com fulcro na doutrina da proteção integral e em todos os preceitos que desta emanam. O exercício da cidadania, como é sabido, revela-se pela participação social na luta pela efetivação de direitos e cumprimento de deveres. Desta feita, o Estatuto da Criança e do Adolescente define que a sociedade é também encarregada de fiscalizar e efetivar os direitos das crianças e adolescentes, instituindo movimentos sociais e organizações capazes de promover esse dever social normativamente estabelecido. Verifica-se, portanto, que o processo democrático de construção de direitos com enfoque em crianças e adolescentes é tanto eficaz quanto necessário e, por esse motivo, o Estatuto da Criança e do Adolescente convoca todos ao esforço de romper com os vícios da doutrina da situação irregular:

Esta

sistemática

de

co-responsabilização

democrática,

implicando

na

descentralização político-administrativa e participação popular (art.204), está direcionada pelo referencial máximo de prioridade absoluta dos direitos da criança e do adolescente, dando função social aos indivíduos (adultos) e instituições que precisam engajar-se numa cultura política na qual passa a ser dever de todos (família, sociedade e Estado) a participação nas mudanças e proteções da realidade infanto-juvenil nacional, com vista a lhes proporcionar sempre as melhores condições de desenvolvimento e respeito a dignidade humana (OLIVEIRA, 2008, p. 6.627).

Com efeito, a omissão ou violação dos direitos ou desenvolvimento das crianças e

sejam, a família, o Estado e a sociedade, o que torna passível a aplicação de medidas protetivas.

6 ASPECTOS MÚLTIPLOS DA DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL

Como outrora mencionado, a doutrina da proteção integral enxerga crianças e adolescentes sob uma perspectiva diferenciada, entendendo-os como sujeitos de direitos em condição peculiar de seres em desenvolvimento. Faz-se necessário, por óbvio, que esses sujeitos vejam contemplados seus direitos de forma global, daí se depreende o caráter dúplice da integralidade da doutrina em apreço:

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adolescentes importa na responsabilidade de todos esses agentes públicos ou privados, quais

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FIDΣS A doutrina da proteção integral é integral num duplo sentido: reconhecimento de direitos fundamentais em todas as dimensões dos direitos humanos para as crianças e adolescentes em um grau diferenciado de exigibilidade, ante seu status principiológico de prioridade absoluta e, além disso, compreensão holística dos aspectos humanos que precisam ser contemplados pela lógica da pessoa em desenvolvimento (OLIVEIRA, 2008, p. 6.627).

Por conseguinte, o artigo 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente, doravante ECA, elenca dimensões do desenvolvimento humano, a saber, desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social. Tais dimensões são enumeradas em consonância com a definição de saúde estabelecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que consiste em um estado de completo bem-estar físico, mental e social, não correspondendo apenas à ausência de doença ou de enfermidade (OLIVEIRA, 2008, p. 6.628). É importante salientar que o ECA não se aprofunda na conceituação dessas dimensões, lacuna que resta suprida pelos apontamentos doutrinários e pelas reflexões hermenêuticas.

7 ACERCA DA RESERVA DO POSSÍVEL

Os direitos sociais constituem-se como prestações positivas por parte do Estado e direcionadas ao indivíduo. Por tal motivo, estão vinculados à destinação, distribuição e criação de bens materiais, o que revela sua dimensão econômica. Desta feita, a efetivação dos

dependência em relação às circunstâncias econômicas do Estado. Com base nesse contexto é que se dá a construção teórica da reserva do possível, com origens na Alemanha, especialmente no início dos anos 1970: A “reserva do possível” (“Vorbehalt des Möglichen”) é entendida como limite ao poder do Estado de concretizar efetivamente direitos fundamentais a prestações, tendo por origem a doutrina constitucionalista alemã da limitação de acesso ao ensino universitário de um estudante (“numerus-clausus Entscheidung”). Nesse caso, a Corte Constitucional alemã (Bundesverfassungsgericht) entendeu existirem limitações fáticas para o atendimento de todas as demandas de acesso a um direito (CALIENDO, 2010, p.176).

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referidos direitos enseja o gasto de recursos públicos, fato que os coloca numa posição de

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FIDΣS Neste sentido, entende-se, pela teoria da reserva do possível, que o Estado tem o dever de efetivação dos direitos fundamentais, com prestações positivas no caso dos direitos sociais. Por outro lado, o Estado não é obrigado à prestação daquilo que está fora dos limites da razoabilidade. A problemática da reserva do possível envolve diversos fatores como a disponibilidade fática e jurídica dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais, bem como a proporcionalidade da prestação desses direitos, observando-se a exigibilidade e a razoabilidade de tais prestações (CALIENDO, 2010, p.180). Exige-se, portanto, um planejamento constitucional adequado e sistematizado de forma a garantir a máxima eficácia e efetividade dos direitos fundamentais, incluindo os direitos sociais, decorrentes de prestações positivas do Estado. É cediço o entendimento de que o Estado não dispõe de capacidade de prestar integralmente os direitos fundamentais sociais, uma vez que a limitação de recursos consubstancia-se como um limite fático à efetivação desses direitos. Sob esse aspecto é que se funda a reserva do possível que, compreendida em amplo sentido, vai além de uma ausência de recursos materiais propriamente ditos. Faz-se necessário, no entanto, compreender a fundo a atual problemática posta pela necessidade de destinação de recursos para a efetivação dos direitos, apontada por muitos como “custo dos direitos”, ideia intrinsecamente ligada à reserva do possível. A crise em que se encontra a efetividade de direitos apontados pela Constituição Federal como fundamentais está conectada à carência de recursos disponíveis para o atendimento de políticas públicas. Conquanto, quanto mais reduzida disponibilidade de recursos, mais necessária se faz uma distribuição minuciosa e responsável por parte do poder público, o que nos leva a concluir

É válido ressalvar que no exercício da administração pública, sobretudo quando da busca pela efetivação de direitos, deve ser observado, essencialmente, o princípio da proporcionalidade, no que concerne tanto à proibição da insuficiência quanto do excesso, desta feita temos a seguinte explanação:

Isto significa, em apertadíssima síntese, que os responsáveis pela efetivação de direitos fundamentais, inclusive e especialmente no caso dos direitos sociais, onde a insuficiência ou inoperância (em virtude da omissão plena ou parcial do legislador e administrador) causa impacto mais direto e expressivo, deverão observar os critérios parciais de adequação (aptidão do meio no que diz com a consecução da finalidade almejada),

necessidade

(menor

sacrifício

do

direito

restringido)

e

da

proporcionalidade em sentido estrito (avaliação da adequação custo-benefício – para

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quão necessária se faz a participação democrática na gestão do orçamento público.

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FIDΣS alguns, da razoabilidade no que diz com a relação entre os meios e os fins), respeitando sempre o núcleo essencial do(s) direito(s) restringido(s), mas também não poderão, a pretexto de promover algum direito, desguarnecer a proteção de outro(s) no sentido de ficar aquém de um patamar minimamente eficiente de realização e de garantia do direito (SARLET; FIGUEIREDO, 2010, p. 33).

Por fim, é necessário identificar a questão do eventual impacto da reserva do possível, que deve sofrer abrandamento mediante controle (democrático, político e até mesmo jurisdicional) da destinação de recursos disponibilizados para a efetivação de políticas públicas. Tendo em vista o viés econômico dos direitos fundamentais sociais, é fácil inferir que as decisões acerca da efetivação de políticas públicas versam, essencialmente, sobre alocação de recursos. Sendo assim, tais decisões versando sobre a deliberação de quais direitos serão efetivados preferencialmente devem ser feitas do modo mais aberto e transparente possível. Ora, se é a população destinatária dos direitos reconhecidos pela Constituição Federal, resta óbvio o poder-dever de fiscalização por parte dos cidadãos, tendo como auxiliares outros agentes públicos, como o poder judiciário, por exemplo.

8 ESCASSEZ DE RECURSOS, DIREITOS E RESERVA DO POSSÍVEL SEGUNDO O ENTENDIMENTO DO STF

Diante do já explanado, é fácil inferir, em linhas gerais, que as políticas públicas demandadas para a efetivação dos direitos fundamentais, representam, deveras vezes, gasto de

pressupõe preferência. Dessa forma, revela-se como ponto central do debate a impossibilidade de a Administração suprir todos os direitos previstos na Constituição Federal sem prejudicar a tutela de outro direito, ora entendido como mais relevante pelo Poder Público. Todavia, é de suma importância elucidar que a prestação dos direitos não é discricionário ao Poder Público, há discricionariedade somente quanto aos meios utilizados para atingir tal prestação (WANG, 2008, p. 541). O Supremo Tribunal Federal, doravante STF, por óbvio, não ficou inerte ante tão acentuado debate. Portanto, diversas são as discussões levadas ao Pretório Excelso em razão da contraposição entre reserva do possível e direitos fundamentais. Sendo assim, destacamos infra os direitos mais recorrentes de discussão pela Corte ora em comento.

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recursos públicos. Como é sabido, a escassez de recursos exige do Estado escolhas, o que

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FIDΣS 8.1 Do direito à saúde

No que concerne ao direito à saúde, a maioria das discussões levadas ao STF versa sobre pedido de medicamentos e tratamentos médicos, os quais não são oferecidos pelo Poder Público, ou o são em escalas que não atendem as demandas da população. Anteriormente à Suspensão de Tutela Antecipada nº 914, julgada pelo STF em fevereiro de 2007, todas as decisões eram julgadas favoráveis à concessão de medicamentos e tratamentos médicos, como exemplos os julgados Recurso Extraordinário nº 273.834/RS5, Recurso Extraordinário nº 198.265/RS6 e o Recurso Extraordinário nº 232.335/RS7. Entretanto, a não obrigatoriedade do Estado em fornecer o medicamento resultou do julgamento do Recurso Extraordinário supramencionado no qual a Ministra Ellen Gracie, na condição de relatora, fundou-se na limitação de recursos e na necessidade de racionalização dos gastos para o atendimento de um maior número de pessoas. Essa decisão promoveu a perspectiva de que o direito à saúde é um direito a ser concretizado por políticas públicas para um acesso coletivo igual e universal e não um direito a ser prestado em situações individualizadas. Todavia, julgados mais recentes, nos quais a ministra Ellen Gracie obriga judicialmente o Estado a fornecer medicamentos, mostram como o pedido de medicamentos e tratamentos médicos precisam ser analisados caso a caso e não de forma totalmente genérica e abstrata, estabelecendo sempre uma ponderação de direitos, na qual há uma tendência de o

8.2 Do direito à educação

Inicialmente, é importante identificar como a matéria mais discutida pelo STF quando se trata de direito à educação a obrigação dos municípios de disponibilizar atendimento a crianças em creches e pré-escolas. Além disso, as ações nessa perspectiva são

4

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Suspensão de Tutela Antecipada nº 91/AL. Min. Ellen Gracie. 26/02/2007. DJ 05/03/2007. 5 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário nº 273.834/RS. Min. Celso de Mello. 23/08/2000. DJ 18/09/2000. 6 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário nº 198.265/RS. Min. Celso de Mello. 19/09/2001. DJ 21/11/2001. 7 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário nº 232.335/RS. Min. Celso de Mello. 01/08/2000. DJ 25/08/2000.

j. j. j. j.

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direito à vida sobrepujar os demais.

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FIDΣS em sua maioria propostas pelo Ministério Público no exercício de sua função protetora dos direitos das crianças e adolescentes. Relativamente ao direito em tela, o STF vem entendendo em algumas decisões, como, por exemplo, o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 410.715/SP8 e do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 436.996/SP9 (ambas decisões com referência à Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 4510), que a cláusula da reserva do possível não pode ser usada como excusa do Estado para não promover as políticas públicas relativas à educação, cuja obrigatoriedade é prevista na Constituição Federal. No mesmo sentido, o STF aduz que mesmo que não seja papel do Poder Judiciário deliberar acerca da implementação de políticas públicas, cabe a esse poder, em situações excepcionais, obrigar que políticas sejam implementadas pelos órgãos estatais desde que sua omissão represente risco a eficácia e a integridade de direitos sociais impregnados de estatura constitucional e dotados de essencial fundamentalidade. Entende ainda o STF que o processo de concretização do direito à educação infantil não se subordina à discricionariedade do Poder Público, vez que a educação constitui direito fundamental de cunho social e indispensável a todos, não podendo por tais motivos ser mitigado via reserva do possível.

9 RESERVA DO POSSÍVEL E PROTEÇÃO INTEGRAL

É diante da necessidade de alocação de recursos públicos para a efetivação de

integral, que se funda em uma vertente axiológica voltada a uma proteção global e prioritária da criança e do adolescente, defronta-se com a cláusula da reserva do possível, pautada na dúplice faceta exigibilidade/disponibilidade de o Estado efetivar determinadas prestações. Temos então um embate entre o orçamento público e a proteção de crianças e adolescentes, preceituada como integral. Em primeiro caso, devemos observar a reserva do possível sob o viés da absoluta prioridade. Como supramencionado, o princípio da absoluta prioridade fundamenta-se na 8

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 410.715/SP. Min. Celso de Mello. j. 22/11/2005. DJ 03/02/2006. 9 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 436.996/SP. Min. Celso de Mello. j. 26/10/2005. DJ 07/11/2005. 10 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45 MC/DF. Min. Celso de Mello. j. 29/04/2004. DJ 04/05/2004.

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direitos fundamentais direcionados a crianças e adolescentes que a doutrina da proteção

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FIDΣS idéia de que os direitos da criança e do adolescente devem ser supridos com total prioridade em relação a quaisquer outros. Tal preceito também alcança o orçamento público, ou seja, os recursos públicos devem ser alocados observando a prioridade infanto-juvenil. Assim, se há escassez de recursos para a efetivação de políticas públicas, deve haver um planejamento transparente e responsável que priorize o atendimento dos interesses da criança de do adolescente. Desta feita, resta inequívoca a impossibilidade da aplicação da cláusula da reserva do possível quando tratamos de direitos infanto-juvenis, vez que tais direitos devem ter sua efetivação garantida e priorizada desde o planejamento orçamentário. Cabendo, outrossim, a fiscalização do planejamento orçamentário e da aplicação de recursos públicos àqueles cujo dever de proteção à criança e ao adolescente está outorgado tanto na Constituição Federal quanto no ECA. Ademais, analisando a questão da escassez de recursos sob o enfoque de princípios como o Melhor Interesse e a Universalização, podemos concluir que é dever do Estado a prestação dos direitos relativos à infância e à juventude, obrigação que não se desfaz diante da escassez de recursos públicos. A efetivação desses direitos deve ser prestada de maneira universal e observando a situação peculiar de ser em desenvolvimento em que a criança e o adolescente se encontram. Além disso, a criança e o adolescente merecem especial atenção do Estado, tendo em vista a impossibilidade de defenderem seus direitos por si só. Assim sendo, é fácil afirmar que a cláusula de reserva do possível, ressalvado um justo motivo, não pode ser invocada pelo Estado para exonerar-se do cumprimento de sua obrigação constitucional, violando, dessa maneira, um direito fundamental. Ora, sabemos que hodiernamente a hermenêutica do Direito está cada vez mais

tal espécie de norma já possui reconhecidamente um caráter de dever-ser, embora dotada de alto grau de abstração. Assim, entendemos que a cláusula da reserva do possível não é capaz de sobrepujar normas imperativas, como aquelas adotadas pela doutrina da proteção integral, sejam essas normas regras ou princípios. Portanto, há que se analisar cada caso in concreto partindo-se para uma ponderação até o alcance daquilo que é mais relevante, observadas a absoluta prioridade da criança e do adolescente, seu melhor interesse e todos os preceitos estabelecidos pela doutrina da proteção integral.

11

Entende-se hoje que regras e princípios são espécies do gênero norma jurídica, diferenciam-se, entretanto, no grau de abstração que apresentam. As regras possuem um caráter mais concreto e seguem a regra do “tudo ou nada”, enquanto que os princípios são dotados de alto grau de abstração e obedecem a regra da ponderação diante de uma eventual colisão. (DWORKIN, 2007, p.46).

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voltada à assunção de princípios11 como norteadores de toda e qualquer interpretação jurídica,

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FIDΣS 10 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como direitos fundamentais que são, pautados na dignidade da pessoa humana, os direitos da criança e do adolescente não podem ser submetidos a uma análise matemática do poder público. Deve-se, portanto, levar em consideração todos os princípios adotados como norteadores da doutrina da proteção integral quando elaborado o orçamento público ou quando adotadas políticas públicas de efetivação dos direitos fundamentais. Dessa forma, não há que se falar em submissão à reserva do possível quando o objeto da prestação é disponível e consiste primordialmente em dever do Estado. Entretanto, o que se observa, atualmente, é o uso falacioso dessa cláusula para o Estado eximir-se de determinadas obrigações, que colocam em xeque outros interesses do poder público. Ora, é dever do Estado, da família e da sociedade defender os direitos da criança e do adolescente, portanto, resta por óbvio que a mobilização social deve ter um papel de maior destaque na luta pela efetivação de direitos e pela exigência de uma destinação de recursos que priorize crianças e adolescentes, evitando o uso falacioso da cláusula da reserva do possível.

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BETWEEN THE DOCTRINE OF FULL PROTECTION AND THE POSSIBLE RESERVE: ANALYSIS OF THE PROBLEM AROUND THE PREFERENTIAL EFFECTIVATION OF CHILDREN AND TEENS FUNDAMENTAL RIGHTS

ABSTRACT This paper aims to present a broad overview of the dynamics of the rights of children and adolescents, under the bias of the Doctrine of Full Protection. In contrast to that doctrine, we discuss the possible reserve clause, which leads us to a democratic and axiological reflection on the public budget, the realization of fundamental social

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ago. 2011.

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FIDÎŁS rights and protection of global and preferential rights of children and adolescents. Keywords: Full Protection. Public policies. Enforcement of

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Fundamental Rights. Possible Reserve.

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FIDΣS Recebido 29 fev. 2012 Aceito 29 abr. 2012

O BULLYING E O PRINCÍPIO DA CO-CULPABILIDADE Edyllânison Pereira do Nascimento

RESUMO O comportamento social conhecido como bullying se manifesta em diferentes formas de agressão em uma relação desigual de poder. Inúmeras são as atuais demonstrações de violência relacionadas a tal conduta. Tornando, por conseguinte, pujante a necessidade de uma tutela estatal a essa mazela moderna. O presente estudo buscou apresentar esse comportamento como um produto da inobservância do Estado e da Sociedade para com essas situações. Buscando, para isso, respaldo jurídico na Teoria da Co-culpabilidade, sob uma nova acepção, a saber, no que tange a uma negligência tanto do Estado quanto da Sociedade em promover a solidariedade entre os indivíduos.

1 INTRODUÇÃO A regularidade com que nos deparamos, dia após dia, com verdadeiros massacres em estabelecimentos educacionais é, por demais, preocupante. De forma precoce, ao tomarmos conhecimento de tais repulsivos eventos somos quase que naturalmente tomados por um forte sentimento de comoção perante as vítimas e suas famílias. Tratando, desde já, toda a sociedade e especialmente a mídia - às vezes mais interessada nos frutos econômicos que a

Graduando em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e estagiário do Ministério Público Estadual.

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Palavras-chave: Bullying. Co-culpabilidade. Estado. Sociedade.

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FIDΣS triste notícia propiciará, do que com a real intenção de propagar tal informação - de demonizar a pessoa responsável pelo crime, bem como de execrar todos os seus familiares do convívio social harmônico. Mas o que será realmente que desperta nessas pessoas tal ânimo de deliberadamente adentrar em escolas, universidades e locais de trabalho, ferindo ou mesmo matando de forma indiscriminada, toda e qualquer pessoa que se coloque em seu caminho? Será esta mais uma demonstração da maldade tão perceptível em alguns seres humanos? Ou seria essa, uma resposta, uma exteriorização de um interior, reiteradamente agredido, humilhado e destruído? Em meio a tais acontecimentos, torna-se relevante a concreção de uma análise científica que busque entender tal fenômeno moderno e, consequentemente, adequá-lo, de fato, ao ramo da Ciência do Direito responsável por disciplinar tais comportamentos, notadamente, o Direito Penal, uma vez que é nessa vertente do direito que se encontra a sanção mais contundente com que conta o Estado. O presente trabalho, dessa forma, tem o intuito de realizar um estudo a respeito de tal corrente tema, traçando um necessário paralelo com um princípio do Direito Penal, a saber: o da Co-culpabilidade. Tal princípio, ainda não positivado em nossa legislação, tem o condão de suscitar uma espécie de responsabilidade solidária da sociedade frente a determinados delitos, devido à situação de total abandono, desrespeito e exclusão em que se encontravam tais agentes, promovendo assim, uma verdadeira individualização da pena.

O Bullying não é uma peculiaridade brasileira, mas sim, um fenômeno moderno constatado em todo o mundo, devendo ser entendido, portanto, enquanto “atos de violência (física ou não) que ocorrem de forma intencional e repetitiva contra um ou mais alunos que se encontram impossibilitados de fazer frente às agressões sofridas, não apresentando motivações específicas ou justificáveis” (SILVA, 2010, p.7). O Estudo a respeito do bullying tem sua gênese na década de 1970, sob a égide do professor Dan Olweus da Universidade de Bergen, Noruega (ANTUNES; ZUIN, 2008, p.34). A priori, o tema não suscitou interesse na sociedade. Contudo, uma vez que se começou a perceber a relação de tais atos discriminatórios com ações violentas no âmbito educacional, envolvendo jovens ou mesmo adultos, admitiu-se a relevância desse assunto e, por

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2 BULLYING: CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DOS ENVOLVIDOS

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FIDΣS conseguinte, a necessidade da adoção de medidas capazes de mitigar, ou mesmo eliminar tais atos do contexto moderno. Afere-se a prática do bullying tanto por pessoas do sexo masculino quanto do feminino, de forma indiscriminada, ressaltando-se, todavia, a maior constatação de atos de violência física por indivíduos do sexo masculino (SILVA, 2010, p.7). O bullying pode se apresentar de diversas maneiras, a saber: verbal (insultar, ofender, colocar apelidos pejorativos), física e material (bater, empurrar, roubar, furtar), psicológica e moral (humilhar, excluir, discriminar, intimidar), sexual (abusar, violentar, assediar) e, a face mais recente desse verdadeiro drama social, o cyberbullying, que nada mais é do que o tradicional bullying realizado através de ferramentas tecnológicas. Subdivide-se ainda o bullying, aproveitando-se a classificação acima exposta em: direto, quando envolve agressões físicas, abuso sexual, roubo ou deterioração de objetos de outra pessoa, extorsão, insultos, apelidos e comentários racistas; e indireto, quando compreende a exclusão de uma pessoa do grupo, fofocas e apelidos que marginalizam o outro e, qualquer outro tipo de manipulação cometida por um indivíduo ou um grupo contra outra pessoa (CALBO, 2009, p.74). Tal espécie é mais perceptível no contexto das relações femininas. Na estrutura dessas relações notadamente de poder, se constata a presença de três sujeitos: o autor, a vítima e as testemunhas. O autor do Bullying é a pessoa responsável por praticar os atos de violência. Encontra-se completamente inserido no grupo e apresenta a capacidade de influenciar os demais, ou pela sua própria personalidade, pela opinião positiva que tem de si mesmo, ou pela imposição da força aos demais, devido à potencialidade que tem de estender a sua “esfera de

Pesquisas demonstram que tais pessoas advêm, comumente (sem querer os escusar de qualquer responsabilidade, pois este não é o objetivo do presente trabalho, pelo contrário), de núcleos familiares desagregados, onde não encontram uma salutar orientação dos pais, como também, limites aos seus comportamentos impulsivos (LOPES NETO, 2005, p. 167). Impõem, portanto, sofrimento, humilhações aos demais, tendo o intuito de destruir completamente a moral da vítima como uma forma de externar seus traumas, ou mesmo revolta, podendo, ademais, apresentar os seguintes comportamentos: hiperatividade, impulsividade, distúrbios comportamentais, dificuldades de atenção, baixa inteligência e desempenho escolar deficiente (LOPES NETO, 2005, p.167). Situada no pólo passivo de tal relação, apresenta-se a vítima do bullying, ou como é comumente denominada, o “alvo”. Entende-se por alvo a pessoa que é exposta reiteradamente

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poder” a seu bel-prazer.

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FIDΣS a ações negativas levadas a efeito pelos demais. Essas pessoas, quase sempre, apresentam determinadas características que os fragilizam ante o agressor, ou por serem fisicamente incapazes de se impor ou por apresentarem alguma peculiaridade percebida como negativa, algo que os diferencie dos demais, considerados “iguais” do grupo (CALBO, 2009, p.75), como se todos nós não fossemos biologicamente pertencentes à mesma espécie. Por fim, se apresenta um elemento, sujeitos não menos importantes à concreção do bullying: as testemunhas. Tais pessoas não se envolvem diretamente nos atos de bullying, permanecem à sombra, omissos, inertes a tais comportamentos. Comumente, por temerem ser a próxima vítima ou ainda por inconscientemente, em alguns casos, não se importarem com o sofrimento alheio, achando até mesmo hilário tal grotesca demonstração de violência. Para os fins do presente trabalho, entendemos ser a testemunha do bullying a fiel representação da sociedade frente a tais atos. O corpo social simplesmente aceita ou mesmo fomenta tais ações de discriminação ao repetir, dia após dia, uma cultura de desrespeito frente ao demais, cultura essa que é reproduzida e catalisada pelos meios de comunicação. Há um perceptível desrespeito perante o outro. Pessoas perdem o nome e “ganham” apelidos aviltantes, são execradas do convívio social, são rotuladas com suas piores características, são humilhadas, diminuídas. E, tudo isso, é naturalmente absorvido por grande parte da sociedade, uma vez que não os atinge, não os afeta, revelando-se assim, um notório sentimento de individualismo, inquestionavelmente, incompatível com uma vida harmônica em sociedade.

São inquestionáveis os malefícios que o bullying pode causar nas vítimas, de forma imediata e em longo prazo. Identificou-se que tais reiteradas ações de violência e humilhação tem o condão de dar origem a: desinteresse pela escola, problemas psicossomáticos, problemas comportamentais e psíquicos como transtorno do pânico, anorexia e bulimia, fobia escolar, fobia social e ansiedade generalizada (SILVA, 2010, p.9). Afora as hipóteses em que o bullying tem o poder de agravar problemas preexistentes, devido ao tempo prolongado de estresse a que a vítima é submetida (SILVA, 2010, p.9). Ainda podem-se constatar nas vítimas, em razão das tais reiteradas humilhações, uma baixa autoestima, angústia, tristeza, depressão, irritabilidade e instabilidade emocional (INÁCIO, 2010, p. de internet).

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3 BULLYING: UM CRIME CONTRA A DIGNIDADE HUMANA

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FIDΣS Os diagnósticos de tais sintomas estão, inexoravelmente, vinculados às repetidas ações aviltantes às quais as vítimas são submetidas, apresentando tais atos a capacidade de potencializar um profundo sentimento de inferioridade, fazendo com que essas pessoas não se sintam numa relação de paridade com as demais, mas sim, em um plano subalterno, chegando esporadicamente, à drástica situação de não mais se reconhecerem enquanto integrantes do corpo social, preferindo o degredo para um “universo” repleto de dor e ressentimento capaz de dar origem aos sentimentos mais primitivos. Outra drástica consequência da prática do bullying é a potencialidade imanente deste ato em atentar diretamente contra o acesso à educação e a integridade da relação familiar. Notadamente, aquelas pessoas que são alvos de tais comportamentos perdem completamente o interesse pelo ambiente escolar. A escola, que tem a suma missão de propiciar aos alunos o desenvolvimento no sentido da concreção de um pleno aprendizado, formando os indivíduos não apenas para o mercado de trabalho, mas preponderantemente para a sociedade enquanto cidadãos conscientes de seus direitos e deveres, torna-se um ambiente tenebroso que reflete aquilo que o ser humano tem de pior, as relações de discriminação, submissão, desrespeito e violência, sendo elucidativa, nesse contexto, a referência à seguinte passagem:

O contexto relacional e psicológico que se produz com o bullying é típico de um sistema em grupo fechado, problemático, que não encontrou brechas para desenvolver positivamente as relações entre os seus membros. Na ausência disso, ganham espaço as dinâmicas mais negativas, nas quais as relações internas entre os companheiros se cristalizam em rituais, em atitudes de zombaria e escárnio, de intimidação e de desvalorização do outro, de passividade e de impotência; ou ainda

para escapar de situações desagradáveis que se convertem em isolamento e marginalização da vítima. Produzem-se assim, identidades individuais e de grupo que tendem a cristalizar-se em relações e comportamentos repetitivos, nos quais ficam gravados, de forma permanente, estereótipos, funções e rótulos (COSTATINI citado por DETONI, 2008, p.122).

Conforme acima mencionado, outra instituição que é prejudicada com o bullying é a família. Percebe-se, comumente, que as vítimas não dividem tais situações com os seus familiares, uma vez que se tornam reféns do jogo de poder instituído pelos agressores. Agem, portanto, dominadas pela falsa crença de que essa postura é capaz de evitar possíveis retaliações dos agressores e por acreditarem que, ao sofrerem sozinhos e calados, pouparão seus familiares da decepção de ter um parente frágil e covarde (SILVA, 2010, p.10).

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(da parte da chamada maioria silenciosa) em gestos de indiferença e passividade,

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FIDΣS Percebe-se, desse modo, que o potencial desagregador que o bullying apresenta perante a família, instituto esse entendido como um instrumento de desenvolvimento da personalidade, é simplesmente cerceado da esfera de disponibilidade da vítima, ressaltandose, enquanto outra questão ainda digna de destaque, o caso em que a vítima conta tais atos aos seus responsáveis e não encontra a esperada reposta, dando origem, nesse caso, a uma total desconfiança em sua unidade familiar, capaz de gerar um sentimento análogo ao de uma traição. Perante esses argumentos, ressalta-se a necessidade da tutela estatal de tais situações, de forma a coibir tais vis lesões, fazendo-se uso de seu “braço” repressor, notadamente, o Direito Penal. Não se quer, contudo, difundir a noção de um Direito Penal máximo, imposto indiscriminadamente a todas as situações da vida, uma vez que tal ideia fere mortalmente, um de seus princípios reitores e também um dos mais relevantes, a saber: o da Subsidiariedade, responsável por emanar uma noção de ultima ratio, ou seja, aplicação do Direito Penal apenas quando os demais ramos do direito mostrarem-se incapazes de tutelar tal situação conflituosa. Mas sim, reconhecer nesse caso a potente lesão a bens jurídicos, especialmente de natureza constitucional (a vida, integridade, honra, educação, a proteção da família e, preponderantemente, ao valor norteador que direciona todo o nosso ordenamento jurídico, encartado no art. 1°, III da Constituição Federal de 1988: o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana) que necessitam de sua tutela. Nesse contexto, observa-se atualmente uma preocupação com a multiplicação vertiginosa de incidentes envolvendo as vítimas de bullying e o ambiente escolar. Aquelas pessoas alvos de reiterados e ininterruptos atos de desrespeito, humilhação e violência

ódio. Tal sentimento não é direcionado apenas a pessoas específicas, aos autores do bullying, mas a todo o ambiente hostil, representando este, um local onde diariamente todos os viam sofrer e nada faziam para protegê-los. É somente a partir desse quadro de revolta das vítimas que devemos buscar entender as constantes ações violentas em escolas com que nos deparamos ultimamente. Mereceriam tais pessoas receber a potência máxima da reprimenda penal? Tal infração não teve a “participação” de elementos da sociedade na sua concreção? É sob essa perspectiva que o presente trabalho busca desvendar a real responsabilidade do Estado e da Sociedade na prática de tais delitos, ressaltando-se, contudo, que não desejamos isentar os possíveis autores das penas referentes aos seus crimes, mas buscar entender a situação em que aconteceu, atenuando, esporadicamente, a resposta penal, e

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desenvolvem naturalmente um dos sentimentos mais irracionais e vis da espécie humana: o

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FIDΣS apenas dessa forma, portanto, conseguiremos alcançar a tão necessária individualização da pena (art. 5°, XLVI da Constituição Federal de 1988).

4 PRINCÍPIO DA CO-CULPABILIDADE E O DIREITO PENAL

No decorrer da história, o Direito Penal foi e ainda é um dos ramos da Ciência do Direito a que se dá mais atenção, dentre outras razões, devido a complexidades das condutas a que ele se propõe a normatizar. Desde a humanização das penas, conduzida pela Escola Clássica, sob a égide de Beccaria, passando por Liszt, Belling, Roxin, Welzel, dentre tantos outros, afere-se a pujança da doutrina penal na conformação dos conceitos imprescindíveis a nossa atual concepção do que seja o fenômeno social denominado crime. Hodiernamente, entende-se por crime, de acordo com o seu conceito analítico1, como sendo um fato típico, ilícito e culpável. Afora todas as ricas discussões doutrinárias a respeito da tipicidade - dentre elas, por exemplo, a tipicidade material e o Princípio da Insignificância e da ilicitude, podendo-se citar superficialmente os limites das causas de justificação, fixaremos nossa atenção no estudo da culpabilidade, em especial, em uma de suas vertentes, o Princípio da Co-culpabilidade. Entende-se a culpabilidade como sendo, de acordo com as lições de Hans Welzel, “a reprovabilidade da configuração da vontade” (citado por GRECO, 2010, p. 363), ou, “o juízo de reprovação pessoal que recai sobre o autor, por ter agido de forma contrária ao direito, quando podia ter atuado em conformidade com a vontade da ordem jurídica”, de acordo com mais didática, como sendo “o juízo de reprovação pessoal que se realiza sobre a conduta típica e ilícita praticada pelo agente”, conforme Rogério Greco (2010, p.362). A culpabilidade apresenta inquestionável importância no estudo do crime, apresentando, de acordo com Luiz Flávio Gomes (2001, p. 12), uma tríplice função, a saber:

(a) ela é fundamento da pena (porque esta no sistema brasileiro tem - também finalidade retributiva (CP, art. 59, in fine); (b) é fator de graduação da pena (CP, art. 59: o juiz levará em conta, para a fixação da pena, a culpabilidade, antecedentes etc.) e (c) é seu limite máximo (CP, art. 29: cada um deve ser punido nos limites da sua

1

Sendo sempre salutar mencionar que, tal noção não deixa de entender esse fenômeno social como um todo unitário e indivisível, mas apenas, o fraciona para a sua melhor compreensão.

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Luis Augusto S. Brodt (citado por GRECO, 2010, p.362). Compreendendo-se ainda, de forma

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FIDΣS culpabilidade = a pena deve ser proporcional ao fato cometido e seu agente). Nessa terceira acepção, a culpabilidade encontra-se com a proporcionalidade.

Diante da concepção finalista do crime erigida sob a égide de Hans Welzel2, aferimos a presença de três elementos responsáveis por integrar a noção de culpabilidade: a Imputabilidade, a Potencial Consciência sobre a Ilicitude do Fato e a Exigibilidade de Conduta Diversa. Realizando-se apenas um superficial esclarecimento a respeito dos dois primeiros integrantes da culpabilidade, entende-se ser a imputabilidade a possibilidade de se atribuir, imputar, o fato típico e ilícito ao agente (GRECO, 2010, p.377) e, a potencial consciência da ilicitude do fato, como um erro, uma falsa representação da realidade, que induz o agente a cometer um ato ilícito devido a uma ignorância perante a situação concreta. No que tange a exigibilidade de conduta diversa, constatamos a necessidade de uma incursão mais detalhada, uma vez que, é imanente a essa que se encontra um dos cernes do presente trabalho, a saber: o Princípio da Co-culpabilidade. Por exigibilidade de conduta diversa se entende, segundo Rogério Greco (2010, p.395), como sendo “a possibilidade que tinha o agente de, no momento da ação ou da omissão, agir de acordo com o direito, considerando-se a sua particular condição de pessoa humana”. Tal vertente da culpabilidade, portanto, suscita uma análise a respeito das condições em que se encontravam o agente no momento da ação, dando especial ênfase a nossa falha e imperfeita situação de ser humano. Dá origem, dessa forma, a uma construção doutrinária que erige essa dimensão da culpabilidade enquanto uma causa supralegal de exclusão da

previstas no art. 66 do Código Penal, nas chamadas atenuantes genéricas. Merece ressalva, nesse cenário, que de acordo com Grégore Moura (2006, p.93-95) poderia o Princípio da Co-culpabilidade ser inserido no ordenamento jurídico Pátrio:

Como circunstância judicial prevista no art. 59 do Código Penal, sendo essa a proposta mais tímida entre as demais, visto que será inócuo o reconhecimento da coculpabilidade se a pena base for fixada no mínimo legal, pois é cediço que as circunstâncias judiciais não podem trazer a pena aquém do mínimo legal; como atenuante genérica prevista no art. 65 do Código Penal, sendo essa uma proposta mais audaz, uma vez que a previsão expressa da co-culpabilidade como atenuante 2

Doutrina essa responsável por redefinir os elementos integrantes do conceito de crime, especialmente, o conceito de ação, que passa no seu entendimento a ser o exercício de uma atividade final, bem como a relevante transferência do dolo e da culpa para o tipo.

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culpabilidade, não expressa nos artigos 26, 27 e 128, II do Código Penal, e implicitamente

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FIDΣS genérica reforçaria a necessidade de sua aplicação, bem como limitaria o poder de liberdade e interpretação do magistrado, tão amplo quando da análise do art. 59 do diploma legal; como causa de diminuição prevista na Parte Geral do Código Penal, consistindo essa num acréscimo ao art. 29 do Código Penal, dizendo que ‘se o agente estiver submetido a precárias condições culturais, econômicas, sociais, num estado de hipossuficiência e miserabilidade sua pena será diminuída de um terço (1/3) a dois terços (2/3), desde que estas condições tenham influenciado e sejam compatíveis com o crime cometido’, permitindo, uma maior individualização da pena aplicada, além de poder reduzir a pena aquém do mínimo legal; como cláusula de exclusão da culpabilidade prevista no art. 29 do código Penal, visto que o estado social de miserabilidade e vulnerabilidade do cidadão é tão caótico, proeminente e elevado, que sobre o agente não incidiria qualquer reprovação social e penal, já que seu comportamento, além de ser esperado pelos seus co-cidadãos, é consequência exclusiva da inadimplência do Estado.

Afora a discussão doutrinária suscitada relativa à qual hipótese seria mais salutar à introdução do Princípio da Co-culpabilidade no direito pátrio, posiciona-se favoravelmente, como já demonstrado, à corrente que pleiteia a sua positivação enquanto uma atenuante genérica. Indiferentemente, por conseguinte, ao fato de que conforme parte da doutrina e práxis jurídica3, as atenuantes não terem o condão de levar a pena aquém do mínimo legal, realizando desse modo, sob o nosso jugo, uma interpretação contra legem do art.65 do Código Penal, que expressamente expõe serem as atenuantes “circunstâncias que sempre atenuam a pena”. Nesse diapasão, posiciona-se, mutatis mutandi, sob a esteira da ideia defendida por

Que o intérprete deve ter em mente que deve haver compatibilidade entre estado de miserabilidade e o crime cometido para que haja a sua aplicação no caso concreto, ou seja, o estado de miserabilidade do agente do agente deve ser uma das causas determinantes do crime (2006, p.96).

Destarte, apreende-se que o autor do crime deve ser compelido em direção à sua concreção, em virtude de um contexto fático peculiar em que estava inserido. Não deve, ou dizendo melhor, não pode ser compreendida nesse âmbito qualquer sutil dificuldade da vida cotidiana, mas, pelo contrário, apenas aquelas situações de completa miserabilidade, na qual 3

Entendimento digno de súmula. Súmula 231 do STJ: “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”.

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Grégore Moura, quando aduz:

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FIDΣS foi impulsionado pela falta de oportunidades, privações materiais e emocionais ou, mesmo, desespero, ao universo do crime.

4.1 O Princípio da Co-culpabilidade: conceito e características

A força normativa hoje comungada pelos princípios é retumbante. Erigidos de simples exortações políticas a verdadeiros alicerces do atual Estado Constitucional e Democrático de Direito, tal espécie normativa representa verdadeiros standards, ou seja, valores positivados, sendo dotado da função de direcionar todo o ordenamento jurídico, devido ao seu notório caráter axiológico, intrinsecamente relacionado com o ideal de justiça. Os princípios refletem, dessa maneira, uma imanente relevância corroborada pelas lapidares lições do ilustre Paulo Bonavides (2010, p.288), quando aduz que “as regras vigem, os princípios valem”. Ainda sob a égide do grande constitucionalista cearense, são os princípios a sede de toda legitimidade do poder, representando o direito “em toda sua extensão, substância, plenitude e abrangência” (BONAVIDES, 2010, p.289). Constata-se, nesse cenário, que não é apenas em sede doutrinária que os princípios gozam de tal envergadura hierárquica. O próprio Poder Constituinte Originário de 1988 reconheceu a relevância dos princípios ao consagrá-los em seu art. 1°, enquanto fundamentos da República Federativa do Brasil. Dentre os princípios implícitos do nosso ordenamento jurídico ressalta-se o da Coculpabilidade, entendendo-se este, segundo Grégore Moura (2006, p.37), como:

determinados delitos, praticados por cidadãos que possuem menor âmbito de autodeterminação diante das circunstâncias do caso concreto, principalmente no que se refere às condições sociais econômicas do agente, o que enseja menor reprovação social, gerando consequências práticas não só na aplicação e execução da pena, mas também no processo penal.

Ou ainda, nas palavras de Juan Andrés Cumiz (citado por MOURA, 2006, p.38):

Adequando esta teoria as sociedades do nosso tempo, é indiscutível sustentar que este contempla a todos com as mesmas possibilidades. Esta desigual realidade tem o efeito direto no âmbito jurídico, especialmente no campo de análises da culpabilidade. Se a todos não são dadas as mesmas oportunidades e possibilidades,

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O reconhecimento da co-responsabilidade do Estado no cometimento de

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FIDΣS tem-se por consequência que existe uma gama de possibilidades que são oferecidas a uns e das quais não são oferecidas a outras, portanto, quando uma pessoa é integrante dos setores menos favorecidos na divisão de renda, as possibilidades das quais foram cerceadas são compensadas, transferindo parte da responsabilidade do fato a toda sociedade, que dividiu de forma injusta as oportunidades. Então esta ‘mea culpa’ atribuída a sociedade deve ser embasada na equidade e na solidariedade, princípios esses que geralmente não norteiam as decisões e ações do autor. Se um Estado situa uma pessoa em um determinado estado de vulnerabilidade o direito penal deve impedir que este mesmo poder exerça uma criminalização em função de uma situação em que previamente a colocou.

Nesse cenário, identifica-se em tal princípio um comando normativo para que a exegese do intérprete seja guiada a partir de uma prévia compreensão da situação de vulnerabilidade que se encontrava o autor do crime. Permitindo, portanto, uma interpretação adequada ao contexto fático na qual se insere sua conduta, bem como, entender de onde a mesma advém. 4.2 Princípios legitimadores da Teoria da Co-culpabilidade É importante, nesse cenário, ressaltar que essa atribuição de uma parcela responsabilidade ao Estado em virtude de sua reiterada inadimplência no cumprimento de seus deveres, em especial aqueles relativos à inclusão socioeconômica de seus cidadãos, não se trata de uma responsabilização penal do Estado4, mas apenas se reconhece sua inoperância em cumprir seus deveres, o que em contrapartida exige uma menor reprovação penal do acusado que se encontra em uma situação de hipossuficiência, uma vez que essa peculiar

Uma parcela da doutrina penal, buscando fundamentar o caráter normativo do Princípio da Co-culpabilidade, extrai, nos demais princípios positivados em nosso ordenamento jurídico, o respaldo necessário para legitimá-lo. Dentre esses, devido a sua relevância, elencamos os seguintes princípios: isonomia e individualização da Pena O princípio da isonomia, de maneira singela, significa que serão tratados de forma igual os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade. Na Constituição Federal de 1988, esse princípio vem exposto na afirmação de que “todos os cidadãos são iguais perante a lei” (art. 5°, caput). Portanto, o Estado não pode punir de maneira diversa 4

Uma vez que essa seria incabível, pois como já demonstrado, ao entender-se o crime, de acordo com o seu conceito analítico, como um fato típico, ilícito e culpável e, sendo o Estado uma pessoa jurídica, seria tal relação impraticável. Na medida em que, já no primeiro estágio da configuração criminosa, em seu aspecto subjetivo, encontrar-se-ia uma intransponível barreira conceitual, a saber: a constatação de dolo ou culpa.

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situação represente influência determinante na prática da conduta delitiva.

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FIDΣS condutas que se encontram em uma mesma situação. Significando dizer também, que se exigirá igualdade na aplicação do Direito, como bem destacado na seguinte passagem: “as leis devem ser executadas sem olhar às pessoas” (CANOTILHO, 2003, p.389). Portanto, o princípio da igualdade dirige-se ao próprio legislador, que deve criar um Direito igual para todos os cidadãos, pois, indivíduos em mesma situação, devem obter da mesma lei, situações ou resultados iguais. O princípio da Igualdade não impossibilita que a lei estabeleça distinções. Proíbe, o que a doutrina portuguesa denomina de “arbítrio”, em outras palavras, a diferenciação de tratamento sem fundamentação material, sem justificações plausíveis. A seu turno, o princípio da individualização da pena5 encontra-se intrinsecamente ligado ao princípio da pessoalidade (intransmissibilidade da pena), sendo previsto no art.5°, XLV e XLVI, da Constituição Federal de 1988. O objetivo desse princípio é limitar o efeito da pena a somente aquele ou aqueles que cometeram o delito, não abrangendo pessoas alheias a situação. Mesmo assim, é inegável que uma pena pode atingir pessoas diversas, como indivíduos da família do apenado. Expostos os necessários conceitos para uma análise mais apurada do Princípio da Co-culpabilidade no estudo do crime e sua relação com princípios basilares do Estado Constitucional e Democrático de Direito, suscitamos uma nova aplicação do supracitado princípio na hodierna conjuntura jurídico-social. Nesse diapasão, postulamos que o Princípio da Co-culpabilidade além de abarcar a responsabilização do Estado devido a sua conduta omissa de fomentar a igualdade material, entendendo-se esta, segundo Paulo Bonavides (2010, p.378), como “o patamar mais alto e normativa de direito positivo”, ensejando uma menor reprovação da conduta do agente, alcança também, as hipóteses em que Estado e a Sociedade são responsáveis pela situação de vulnerabilidade de determinados indivíduos, uma vez que não foram capazes de promover relações solidárias aptas a impulsionar uma coexistência harmônica e paritária dos cidadãos.

5

A individualização da pena se dará em três etapas: 1°) o legislador irá editar o tipo penal selecionando as condutas e estabelecendo as sanções de acordo com patamares mínimos e máximos fixados previamente, circunstâncias judiciais, agravantes/atenuantes, causas de aumento/diminuição de pena dentre outros fatores. 2°) a fase de aplicação, fixando a sentença através do processo trifásico, levando em análise critérios subjetivos e objetivos que influenciaram o fato, bem como as medidas a serem tomadas, para que a pena atinja o seu caráter retributivo e preventivo em relação ao infrator, atingindo assim o seu objetivo. 3°) Por fim, o indivíduo deverá cumprir a pena levando em contar também as suas características pessoais, portanto, haverá estabelecimentos próprios para mulheres, homens, deficientes ou até mesmo regime e benefícios diferenciados de acordo com cada situação específica (GRECO, 2010, p. 67-68).

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talvez mais justo e refinado a que pode subir o princípio da igualdade numa estrutura

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FIDΣS Dentre estas situações, tomamos como escopo para o presente trabalho a situação sui generis do Bullying.

5 O BULLYING E O PRINCÍPIO DA CO-CULPABILIDADE Columbine, Virginia Tech e o massacre de Realengo, no Rio de Janeiro, são alguns dos trágicos eventos que verificamos comumente, enquanto produtos desse tão aviltante comportamento social que, ainda, não recebeu a adequada atenção do Estado. De maneira alguma queremos, no presente trabalho, isentar tais pessoas da necessária reprimenda estatal pelo cometimento de seus delitos, uma vez que, em tal situação estaríamos a defender uma completa impunidade e, por conseguinte, uma tenebrosa insegurança jurídica. Conforme já explicitado, é inquestionável as marcas deixadas pelo bullying nas suas vítimas. Pessoas são constantemente transformadas em “coisas”, em objetos da diversão e, até mesmo, do sadismo dos agentes. Em meio a esse fato, devido a um profundo sentimento de indignação frente àquele corpo social notadamente opressor de sua personalidade, tendem as vítimas a comumente se revoltar, dando origem a indiscriminadas agressões contra bens jurídicos. Afere-se, nesse contexto, uma completa omissão tanto do Estado, ao não ser capaz de fomentar entre as pessoas um verdadeiro sentimento de solidariedade, de não discriminação, de harmonia no sentido do pleno desenvolvimento, quanto da sociedade ao representar a figura inerte perante tal conduta, ou mesmo, de ser a principal fomentadora desse vil ato, ao aceitar e propagar naturalmente uma cultura de desrespeito ao “diferente”.

suma missão de tutelar os interesses de todos os seus cidadãos na busca do bem comum, compreendido “não como a soma de todos os bens, mas a ordenação daquilo que uma pode realizar sem o prejuízo do bem alheio” (REALE, 2009, p.59). Tal compromisso tornou-se ainda mais inquestionável com a evolução conceitual e, acima de tudo, normativa dos direitos fundamentais na estrutura hierárquica jurídica, podendo-se entender esses direitos, conforme expõe Konrad Hesse (citado por Bonavides, 2010, p.560), enquanto “pressupostos elementares para a concreção de uma vida pautada na liberdade e na dignidade da pessoa humana”. É nesse compromisso do Estado em fomentar a paz social, a solidariedade entre as pessoas, que reside a potencial responsabilização pelo inadimplemento dessa missão. O Estado ao não concretizar tal tarefa, permitindo assim, a exclusão de determinadas pessoas da

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O Estado, ao ser o ente dotado de máximo poder dentro de seu território, assumiu a

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FIDΣS sociedade, devido à prática do bullying, é também responsável pelos trágicos resultados que dele podem emanar, devendo dessa forma, realizar uma mais branda, adequada punição do agente em virtude de sua tão grave omissão. Nesse contexto, são dignos de destaque os compromissos assumidos pelo Poder Constituinte de 1988, em seu art. 3°, a saber: “I- a construção de uma sociedade livre justa e solidária, [...] IV- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. A partir da redação de tais dispositivos, constatamos a obrigação, notadamente constitucional, do Estado em execrar condutas tidas como discriminatórias, ou seja, responsáveis por promover qualquer espécie de diferenciação entre os cidadãos. O Estado, nesse diapasão, não pode se escusar de enfrentar tal realidade de conflito, na medida em que sua omissão apenas terá o condão de alastrar tal comportamento pela sociedade, sendo sempre salutar relembrar as lapidares lições de Maquiavel (1513, p. 14) quando dizia “nunca se deve deixar prosseguir uma crise para escapar a uma guerra, mesmo porque dela não se foge, mas apenas se adia para desvantagem própria”. Ressalta-se ainda que a responsabilidade de tais atos não pertence única e exclusivamente ao Estado, mas também, e, especialmente, à sociedade. Ao ser a responsável por aceitar tal conduta e, de certa forma, fomentar, à sociedade também é atribuída uma parcela de culpa nas respostas à prática do Bullying. Disfarçado por um pseudo animus jocandi, o corpo social reproduz hodiernamente uma cultura discriminatória, aceitando a prática do bullying enquanto uma conduta socialmente aceita, não digna dessa forma, da tutela estatal repressiva. Contudo, deve-se

advindos do bullying à sociedade, uma vez que esta é corresponsável pela difusão de comportamentos solidários, e ainda, por ser a força “imaterial” responsável por emanar ao Estado o seu interesse na tutela de pontuais bens jurídicos. Dessa forma, exposta essa dupla responsabilidade atribuída ao Estado e a sociedade, frente à prática de atos violentos necessariamente vinculados ao bullying, ressalta-se a necessidade de uma amenização da reprimenda penal frente a tais autores, conforme erige o princípio da Co-culpabilidade.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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entender, enquanto inafastável, a atribuição de uma parcela de culpa dos atos violentos

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FIDΣS O bullying é um fenômeno social moderno que necessita de uma atenção especial de todos os sujeitos sociais. O Estado juntamente com a sociedade, deve desenvolver políticas que promovam a maior coesão entre os indivíduos vítimas do bullying e o meio em que eles convivem, de forma que as vítimas deste tipo de agressão, não se tornem alheias ao convívio social. Não obstante, a vítima do bullying se torna um indivíduo coagido em sua própria individualidade, e em situações extremas, a única forma que acha para se libertar dessa angústia, dessa tortura moral e física é tentar eliminar os seus medos, direcionando-se assim, em alguns casos, ao crime como uma solução para os seus problemas. São crimes que se destacam por não possuírem alvos específicos, evidenciando dessa maneira, que o infrator vítima de bullying não deseja em geral matar alguém, mas sim, eliminar da sua vida um conjunto de sensações que o faz temer ser novamente vítima de agressões e humilhações. Tomando a Co-culpabilidade em uma nova concepção, postulamos uma responsabilização do Estado e da Sociedade por não adotarem políticas que fomentem a solução do bullying nos ambientes, especialmente os escolares. Concluímos que, Estado e sociedade assumem a sua parcela de culpabilidade no crime, e portanto, a cominação da pena deve levar em conta a inércia dos responsáveis por não reprimi-las e preveni-las. O que buscamos neste estudo, como já enfatizado, não é ilidir o autor do crime da sua parcela de culpa, mas reconhecer que fatores alheios a sua vontade, como por exemplo, a admissão do bullying como prática “aceita” pela sociedade e a falta de políticas que concretizem um ideal solidário e de coesão social, o impuseram em uma situação de

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vulnerabilidade.

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FIDÎŁS BULLYING AND THE CO-CULPABILITY PRINCIPLE

ABSTRACT The social behavior known as bullying can be spotted by different ways of violence, in an uneven relation of power. Uncountable are the acts of violence involving this conduct in the present days. As consequence, turns out that it's vital a strong governmental response to this modern social disease. This study has the purpose to show this behavior as a result from lack of acts from both government and society to those kind of situations, having as base a new way to understand the Theory of Co-Culpability. This new way introduces a new comprehension of the theory, based on both government and society negligence to promote solidarity between individuals.

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Keywords: Bullying. Co-culpability. Government. Society.

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FIDΣS Recebido 30 ago. 2011 Aceito 22 abr. 2012

O DESCUMPRIMENTO INDISCRIMINADO DA LEI 11.788/08: O DESRESPEITO À FINALIDADE DOS ESTÁGIOS JURÍDICOS Alex Humboldt de Souza Ramos

RESUMO A Lei 11.788/08 trouxe inovações sobre as relações de estágios. O presente artigo visa mostrar que o objetivo do estágio jurídico, segundo tal legislação, não vem sendo cumprido. Muitas vezes, o estagiário realiza serviços que não contribuem para seu aprendizado e a deficiência na fiscalização dos estágios agrava essa situação. Tais abusos devem ser combatidos através das reivindicações dos estagiários e pela efetiva aplicação das medidas legais. Palavras-chave: Estágio. Lei 11.788/08. Finalidade. Abusos. Falta de

1 INTRODUÇÃO

É notório que experiências práticas podem proporcionar ao futuro profissional grandes oportunidades. Garante a possibilidade de construção e evolução do conhecimento jurídico não apenas a partir do ensino, mas também da pesquisa e da extensão. No intuito de ampliar seus conhecimentos jurídicos e cumprir a carga horária mínima de atividades complementares do curso, os estudantes de Direito buscam participar de ações de extensão, a exemplo do estágio, o qual é acessível, em regra, por processo seletivo.

Graduando em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), bolsista do Programa de Recursos Humanos da Agência Nacional do Petróleo, Estagiário do Ministério Público Federal.

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fiscalização.

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FIDΣS Tendo em vista os avanços e a valorização das relações de estágio, entrou em vigor, em 26 de setembro de 2008, a Lei 11.788, revogando a 6.494/77, antiga legislação que tratava sobre essa matéria. Além disso, a nova Lei do Estágio alterou a redação de vários outros dispositivos do ordenamento jurídico brasileiro. Logo em seu início, ela estabeleceu a definição do estágio, seu objetivo e classificação. Como se perceberá, já no primeiro artigo dessa norma, há um enunciado que não está sendo cumprido, o qual afirma que o estágio visa o aprendizado de competências próprias da atividade profissional, objetivando o desenvolvimento do educando para a vida cidadã e o trabalho. Diante desse problema, é necessária a aplicação das devidas sanções. O presente artigo visa demonstrar que, não raramente, o estágio jurídico não tem atendido as finalidades contidas na lei 11.788/08. Aponta, ainda, que a falta de fiscalização contribui para tal abuso, cuja coibição é premente.

2 AS PRINCIPAIS MUDANÇAS A PARTIR DA LEI 11.788/08

Inicialmente, cabe esclarecer que o fenômeno sócio jurídico da relação de emprego deriva da conjugação de certos elementos inarredáveis (DELGADO, 2011, p. 279), como o trabalho por pessoa física, a pessoalidade, a não eventualidade, a onerosidade e a subordinação. Na ausência de qualquer um desses requisitos, não se configura a relação trabalhista. Por prescindir de alguns elementos, como a não eventualidade e a onerosidade, o estágio difere das relações de emprego. empregado tem condições de se adaptar ao ambiente de trabalho (MARTINS, 2011, p. 121) – à medida que constitui uma atividade de aprendizagem social, profissional e cultural, a qual insere o estudante em situações reais de vida e trabalho e contribui para a complementação dos conhecimentos adquiridos em sala de aula (LEÃO, 2011, p. de internet). O contrato de aprendizagem é outro instituto que se distingue do estágio, pois, enquanto este não é um contrato de trabalho, o primeiro, conforme o no artigo 428 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), é um contrato de trabalho especial, ajustado por escrito e por prazo determinado, em que o empregador se compromete a assegurar, ao maior de 14 (quatorze) e menor de 24 (vinte e quatro) anos inscrito em programa de aprendizagem, formação técnico-profissional metódica, compatível com o seu desenvolvimento físico, moral

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O estágio também difere do contrato de experiência – o qual visa verificar se o futuro

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FIDΣS e psicológico, e o aprendiz, a executar com zelo e diligência as tarefas necessárias a essa formação. Antes da nova Lei do Estágio, essa atividade era uma forma das concedentes obterem mão-de-obra menos onerosa em virtude da ausência de vínculo empregatício. Com o advento dessa regulamentação, os estudantes passaram a ter mais direitos garantidos. Após a análise dos artigos 10 a 13 e 17 da referida lei, inferem-se alguns dos direitos dos estagiários: a jornada de atividade é de até trinta horas semanais; é proibido que o estágio na mesma parte cedente exceda dois anos; há a limitação da quantidade de estagiários em cada local de atividade; exige-se a concessão de bolsa-estágio em determinadas hipóteses; e, sempre que o estágio tenha duração igual ou superior a um ano, o estagiário tem direito a um recesso remunerado, nos casos em que recebe bolsa. Ademais, vislumbra-se que a nova disposição legal assegurou ao estagiário o auxíliotransporte, que é uma concessão pela instituição concedente de recursos financeiros para auxiliar nas despesas de deslocamento do estagiário ao local de estágio e seu retorno. Igualmente, estabeleceu o direito ao seguro contra acidentes pessoais, que abrange acidentes ocorridos com o estudante durante o período de vigência do estágio, cobrindo morte ou invalidez permanente, total ou parcial, provocadas por esses ocorridos (BRASIL, 2010, p. 15). Segundo a Nova Cartilha Esclarecedora sobre a Lei do Estágio (BRASIL, 2010, p. 20), são cabíveis outras formas de contraprestação para remuneração, devendo ser acordadas no Termo de Compromisso. O valor e forma da concessão da bolsa ou outra forma de contraprestação, bem como o auxílio-transporte, devem ser definidos no referido termo e são de responsabilidade da parte concedente.

um acordo celebrado entre o educando ou seu representante ou assistente legal, a parte concedente do estágio e a instituição de ensino, prevendo as condições de adequação do estágio à proposta pedagógica do curso, à etapa e modalidade da formação escolar do estudante e ao horário e calendário escolar. Recomenda-se que conste nele todas as cláusulas que nortearão o contrato de estágio. Numa entrevista em 2009, a então Presidente da União Nacional dos Estudantes, Lúcia Stumpf, falou acerca do avanço para os estudantes com a modificação da legislação:

A regulamentação do estágio é uma reivindicação antiga do movimento estudantil. Consideramos a lei e toda a garantia de direitos que ela dá aos estudantes um avanço importante. Antes da lei, o estágio era utilizado como forma de precarização do

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O Termo de Compromisso de Estágio, conforme esclarece a mencionada cartilha, é

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FIDΣS trabalho dos jovens. Contratavam estagiários de Direito para fazer serviço de office boy, estagiários de jornalismo para ser recepcionistas. Todos com baixos salários e nenhum direito trabalhista garantido. Para a ampla maioria dos estudantes, o estágio não servia para a função de lhe inserir no mercado de trabalho e iniciar na profissão como forma de complementação do ensino formal. 1

Segundo Sérgio Pinto Martins (2010, p. 33), professor titular de Direito do Trabalho e autor de diversos livros na área, as principais alterações trazidas pela Lei 11.788/08 foram em relação ao recesso, à jornada do estagiário e ao auxílio-alimentação. Conforme esse doutrinador, as concedentes de estágios ainda não estão preparadas para se adequar às novas regras, principalmente devido a dificuldades nas novas questões burocráticas estabelecidas pela nova lei, que visam evitar fraudes nas contratações. Igualmente, informa que será dificultada a exploração do estudante por parte da concedente, em virtude de a lei afirmar que a não observância dos seus requisitos caracterizará vínculo de emprego. Todavia, na prática, não é exatamente isso o que ocorre, mesmo após a entrada em vigor da Lei 11.788/08, como se verá a seguir.

3 O DESCUMPRIMENTO DO §2º DO ARTIGO 1º DA LEI 11.788/08 E A ATUAÇÃO PASSIVA DO ESTAGIÁRIO

A lei 11.788/08 veio disciplinar uma matéria que, atualmente, possui extrema relevância na área jurídica, haja vista que o estágio pode ser uma experiência riquíssima para

desempenhados no Judiciário, em que o grande volume de processos demanda sempre mais recursos humanos. O art. 1º e seu § 2º trazem, respectivamente, a definição legal de estágio, permitindo sua ocorrência não apenas durante o Ensino Superior, como em outros ciclos, e sua finalidade, conforme se depreende da leitura a seguir:

Art. 1º Estágio é ato educativo escolar supervisionado, desenvolvido no ambiente de trabalho, que visa à preparação para o trabalho produtivo de educandos que estejam 1

STUMPF, Lúcia citada por MARCONDES, Celso. “A UNE e a Lei do Estágio”. Carta Capital, São Paulo, 05 maio 2009. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-une-e-a-lei-do-estagio>. Acesso em: 06 maio 2011.

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o contratado e mesmo de considerável utilidade social, como no caso dos estágios

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FIDΣS frequentando o ensino regular em instituições de educação superior, de educação profissional, de ensino médio, da educação especial e dos anos finais do ensino fundamental, na modalidade profissional da educação de jovens e adultos. §1º O estágio faz parte do projeto pedagógico do curso, além de integrar o itinerário formativo do educando. §2º O estágio visa ao aprendizado de competências próprias da atividade profissional e à contextualização curricular, objetivando o desenvolvimento do educando para a vida cidadã e para o trabalho.

Corroborando esse entendimento, Eduardo Antônio Kremer Martins, advogado, afirmou que o estágio não pode ser visto como um “primeiro-emprego”, mas sim, como uma função social da concedente, que proporciona ao estudante o desenvolvimento prático em sua área de estudo2. A partir do objetivo traçado pela lei, podem-se extrair outros fins, como pôr em prática o que se estuda na teoria, o estímulo à evolução intelectual e o fomento de diversas habilidades que um profissional competente deve possuir. A Lei do Estágio, indubitavelmente, trouxe benefícios aos estudantes que realizam tal atividade complementar, uma vez que, como se pode extrair de seus dispositivos, tais pessoas passaram a ter direitos garantidos. Não obstante, o que se está por discutir não são as várias inovações ou benefícios que essa legislação proporcionou aos estagiários, mas sim, o corrente desvio da finalidade do estágio por parte daqueles que concedem as oportunidades, em que o estudante deixa de ser um aprendiz com potencial destinado a evoluir e fomentar seu conhecimento.

remuneração e menos direitos, uma vez que não possui vínculo empregatício e apenas recebe uma bolsa-estágio como auxílio. A respeito dessa situação desfavorável a que estão sujeitos, Lúcia Stumpf, na entrevista anteriormente mencionada, indagada sobre a queda de ofertas de estágio após a Lei 11.788/09 e apresenta informações que corroboram a existência de um desvirtuamento das finalidades do estágio:

Era maior a oferta de estágios porque a contratação era fácil e barata ao empregador uma vez que dispensava os direitos trabalhistas. Mas os estágios não eram efetivamente voltados à profissão ou formação do estudante, nem serviam para a 2

MARTINS, Eduardo Antônio Kremer. O contrato de estágio como mecanismo de fraude à legislação trabalhista. Disponível em: < http://jusvi.com/artigos/36884/2>. Acesso em: 07 jun. 2011.

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Torna-se o estagiário uma espécie de “funcionário” do local em que atua, com menor

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FIDΣS complementação do ensino formal. Esses dados apresentados servem para provocar a discussão sobre o papel do estágio e o ingresso dos jovens no mercado de trabalho. É preciso encontrar mecanismos capazes de incentivar o ingresso da juventude no mercado de trabalho de forma altiva, complementar a sua formação. Os estágios que deixaram de existir certamente são agora postos de trabalhos também ocupados por jovens, mas com direitos assegurados. Só oferece estágio hoje quem de fato está interessado em formar os futuros profissionais que sairão das escolas e universidades. Culpar a regulamentação do estágio pela diminuição de postos de estágio oferecidos aos jovens nada mais é do que uma tentativa de tentar mascarar a exploração velada que existia por trás da política de estágios. 3

No âmbito jurídico não é diferente. Tanto em estágios proporcionados por órgãos públicos quanto em escritórios de advocacia, verifica-se que o principal objetivo da Lei 11.788/08 não está sendo respeitado. No primeiro caso, pode-se tomar como exemplo um estágio vinculado a um Tribunal de Justiça. O estagiário, caso esteja em uma metrópole, realizará essa atividade em uma das varas de sua respectiva comarca. Muitas vezes, ele apenas fará serviços burocráticos, como juntada de petições, expedição de mandados, atualizações de dados no sistema e alguns outros que não contribuem de maneira alguma para o seu aprendizado. Destarte, significa dizer que, de fato, o estagiário de uma vara não está aprendendo as competências próprias de uma atividade profissional. Pelo contrário, está apenas fazendo serviços que acarretam perda de tempo, que, nos dias de hoje, é precioso, tendo em vista a alta carga horária e o excesso de compromissos pessoais e acadêmicos de cada individuo.

bastante recompensador, visto que o custo de um estagiário é bem menor e ele realiza os ofícios como se fosse um serventuário da justiça, ou seja, atua substituindo um funcionário que é, consideravelmente, mais dispendioso financeiramente. No que se refere aos escritórios de advocacia, a situação aparenta ser mais problemática. Isso porque, mesmo após o advento da Lei 11.788/08, o estagiário, inúmeras vezes, deixa de aprender em virtude das atividades mecânicas e burocráticas que realiza. Ele se torna office-boy, passando a ser o responsável por fazer todas as cargas dos processos que necessitam de alguma manifestação.

3

STUMPF, Lúcia citada por MARCONDES, Celso. A UNE e a Lei do Estágio. Carta Capital. São Paulo, 05 mai. 2009. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-une-e-a-lei-do-estagio>. Acesso em: 06 mai. 2011.

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Quanto à concedente do estágio, a relação sem vínculo empregatício é um negócio

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FIDΣS Além de incumbidos de ir aos juízos buscarem os autos dos processos, alguns estagiários dos escritórios de advocacia devem organizar documentos, abrir pastas, cadastrar processos no sistema e elaborar petições que se limitam a requerer cópia ou carga dos autos. De plano, vislumbra-se que são atividades meramente burocráticas e que não possuem nenhuma contribuição intelectual ao estudante. Como no primeiro exemplo, percebe-se que o objetivo do estágio não está sendo alcançado em alguns escritórios de advocacia, pois o estudante não aprofunda, de forma alguma, seu conhecimento. Ele apenas serve como um instrumento de trabalho barato para seus chefes, que distorcem a forma pela qual o estagiário deve se portar em sua atividade complementar. Segundo lições de Sérgio Pinto Martins (2011, p. 181), a contratação do estagiário não deve ter por objetivo apenas o aproveitamento de mão-de-obra mais barata, sem pagamento de qualquer encargo social, mascarando a relação de emprego e exigindo do trabalhador muitas horas de trabalho. É o que se chama de escraviário ou office boy de luxo. Deve efetivamente proporcionar o aprendizado ao estagiário. Entretanto, diante de tais fatos, por que o estagiário não se desvincula da concedente e busca uma melhor opção para seu aprendizado? O estagiário não age assim porque, em muitos casos, acredita, equivocadamente, que a questão financeira é a mais relevante, não se importando tanto com o seu aprendizado. Apenas realiza suas atividades visando à bolsa que receberá no final do mês. Contudo, essa atitude não é correta. O estagiário que cursa Direito deve buscar a satisfação de seus direitos através das medidas cabíveis. Ademais, não pode se abster de

estágio pode ser um diferencial na vida do futuro profissional. Infelizmente, o desvio da finalidade do estágio é uma prática corriqueira. Essa lamentável situação não pode mais perdurar, sobretudo quando se trata de estágios jurídicos. É preciso que se instituam meios que garantam o verdadeiro aprendizado do estagiário, ou seja, formas que efetivamente busquem cumprir o disposto no §2º do artigo 1º da Lei 11.788/08. Deve haver, ainda, uma maior conscientização dos estagiários acerca do verdadeiro objetivo do estágio, da legislação e dos meios pelos quais eles podem alcançar seus direitos, evitando, assim, situações manifestamente abusivas e deturpantes.

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procurar as melhores oportunidades para sua evolução acadêmica, haja vista que um ótimo

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FIDΣS 4 A CARACTERIZAÇÃO DA RELAÇÃO DE TRABALHO EM FACE DO DESCUMPRIMENTO DA LEI DO ESTÁGIO

Como dito anteriormente, em seu artigo 1º, a Lei do Estágio informa o que essa atividade visa. Ao tratar da fiscalização, o artigo 15 da referida lei, assim dispõe:

Art. 15. A manutenção de estagiários em desconformidade com esta Lei caracteriza vínculo de emprego do educando com a parte concedente do estágio para todos os fins da legislação trabalhista e previdenciária. §1° “A instituição privada ou pública que reincidir na irregularidade de que trata este artigo ficará impedida de receber estagiários por 2 (dois) anos, contados da data da decisão definitiva do processo administrativo correspondente.”.

Tal ideia não foi expressa apenas após a citada lei, pois, ainda na vigência da Lei 6.494/77, alguns julgados já adotavam tal entendimento:

Estágio - Vínculo de Emprego: para que se reconheça a relação regida pela Lei nº 6.494 de 07/12/77 (Estágio de Estudante) além do termo de compromisso a que se refere o art. 2º, daquela Lei, necessário é a prova de que as atividades desenvolvidas visavam a complementação do ensino e aprendizagem, cujo planejamento, execução, acompanhamento e avaliação se davam na conformidade com o currículo, programa e calendários escolares (§ 2º, do Art. 1º, da Lei nº 6.494/77). Improvados estes pressupostos, bem como evidenciado que o labor desenvolvido era equivalente

Estagiário - Vínculo Empregatício: o estágio previsto na Lei nº 6.494/77, visa propiciar a complementação do ensino e da aprendizagem do estudante-estagiário, em conformidade com seu currículo, programas e calendários escolares, mediante planejamento, acompanhamento e avaliação do estagiário. Não restando alcançada tal finalidade e, ao contrário, havendo o Reclamante laborado na reclamada como qualquer outro de seus funcionários, restou desvirtuado o estágio firmado, caracterizando-se o vínculo empregatício entre as partes.5 [grifos nossos]

No que se refere à adoção de tal entendimento após a entrada em vigor da Lei 11.788/08, Deusdedith Brasil, advogado e professor da UFPA, afirma que a manutenção de um estagiário sem um plano de atividades elaborado em acordo com o educando, a 4 5

TRT-PR. RO 4882/88.1ª T. Relator: Juiz Silvonei Sérgio Piovesan. DJ-PR 04/10/89, pg. 112. TRT-PR. RO -3706/89. 1ª T. Relator: Juiz Silvonei Sérgio Piovesan. DJ 05/10/90, pg. 74.

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a outros empregados, resta caracterizada a relação de emprego, regida pela CLT.4

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FIDΣS concedente e a instituição de ensino acarreta na desqualificação da atividade como estágio. Aduz que, se há uma desconformidade com a Lei de Estágio, é indubitável a existência de uma relação de emprego para todos os fins trabalhistas e previdenciários6. Anderson Leão (2011, p. de internet), advogado da área trabalhista, afirma que, uma vez visualizada a ocorrência da desvirtuação do contrato de estágio, coexistindo uma relação empregatícia, cabe ao Estado, ao ser acionado, interferir a fim de proteger o estudante dessa prática ilícita. Segundo Carlos Reinaldo Mendes Ribeiro, professor, consultor, escritor e empresário, o jovem que inicia o estágio sem qualquer preparo prévio, sem acompanhamento por parte da instituição de ensino, passa a executar trabalhos que, na maioria das vezes, são burocráticos, repetitivos e que não tem nenhuma conexão com sua formação educacional, o que acarreta em um “emprego disfarçado”, e não em um verdadeiro estágio. E continua, dizendo que é necessária a ida da instituição de ensino ao local da atividade, bem como o inverso, para que, desse modo, essas partes interajam, pois, por si só, o estágio não é um processo de integração7. Verificado o desvio da finalidade do estágio, ou seja, caso o estagiário não esteja adquirindo o aprendizado de competências próprias da atividade profissional, resta caracterizado o vínculo de emprego do educando com a parte concedente do estágio, para todos os fins da legislação trabalhista e previdenciária, em que a parte cedente deverá arcar com todas as obrigações legais. Todavia, essa pena prevista na legislação é demasiadamente branda. Para que a concedente seja devidamente punida por essa prática abusiva e ilegal, outras sanções

a infratora a não incidir novamente na ilegalidade. Só assim o principal motivo para o uso de estagiários, ao invés de servidores ou trabalhadores, seria atendido.

5 A NECESSIDADE DE UMA MAIOR FISCALIZAÇÃO DOS ESTÁGIOS

Compete à Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, órgão ligado ao Ministério do Trabalho em Emprego, a fiscalização da relação de estágio por meio de seus 6

BRASIL, Deusdedith. A Nova Lei de Estágio. Disponível <http://www.empregabilidade.net/page.php?55>. Acesso em: 06 jul. 2011. 7 RIBEIRO, Carlos Reinaldo Mendes. Estágio ou Emprego Disfarçado? Disponível <http://www.empregabilidade.net/page.php?49>. Acesso em: 07 jul. 2011.

em: em:

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deveriam ser impostas. Seria interessante a aplicação de uma multa que efetivamente coagisse

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FIDΣS agentes. Eles deverão fiscalizar o acordo de cooperação e o termo de compromisso de estágio (ESTAGIÁRIOS, 2011, p. de internet). No tocante ao acordo de cooperação, instrumento celebrado pela concedente e a instituição de ensino, o fiscal deverá verificar a qualificação e assinatura das duas partes, as condições de realização do estágio e a compatibilização entre as atividades a serem realizadas pelo estagiário e as condições pactuadas (ESTAGIÁRIOS, 2011, p. de internet). Quanto ao termo de compromisso de estágio, celebrado entre a concedente e o estudante (com interveniência obrigatória da instituição de ensino), cabe ao fiscal averiguar as assinaturas das três partes, a indicação expressa que o termo decorre do acordo de cooperação, o número da apólice de seguro contra acidentes pessoais, na qual o estagiário deverá estar incluído durante a vigência do termo de compromisso do estágio, e o nome da companhia seguradora, bem como o curso do estudante e a compatibilização do mesmo com as atividades desenvolvidas na empresa, e a data de início e término do estágio (BRASIL, 2010, p. 35). Caso o Fiscal do Trabalho verifique a descaracterização do estágio, deverá exigir a regularização da situação do estudante, que passará a possuir vínculo empregatício com a concedente. Se estiver caracterizado o estágio, o fiscal apenas averiguará os documentos supramencionados (ESTAGIÁRIOS, 2011, p. de internet). Na teoria, vislumbra-se que a nova Lei do Estágio trouxe vários benefícios aos estudantes. Contudo, a realidade é bastante diversa. A fiscalização não ocorre com frequência, dando margem aos abusos e contratações sem o devido respeito às normas. Além de esporádica, serve como um estímulo para as partes cedentes (BAHR, 2011, p. de internet), que, ao perceberem a omissão dos responsáveis pela fiscalização, se sentem

estagiários se tornam ainda mais vulneráveis e suscetíveis a terem seus direitos violados.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Lei 11.788 revogou a de número 6.494/77 e alterou a redação de outros dispositivos, como o artigo 428 da Consolidação das Leis do Trabalho e a Lei 9.394/96, além de ter trazido vários benefícios aos estagiários, que, até então, quase não tinham direitos. Analisando tal legislação, constatam-se várias inovações, como o direito ao recesso, a diversos auxílios e à jornada semanal de atividade com limite de trinta horas.

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livres para contratar como quiserem. Essa permissividade é deplorável e ilegal, visto que os

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FIDΣS Contudo, ainda existe uma grande quantidade de estágios com sua finalidade desvirtuada. Caso isso seja comprovado, resta caracterizado o vínculo empregatício do educando com a parte concedente do estágio para todos os fins da legislação trabalhista e previdenciária. Porém, apenas a aplicação dessa sanção não aparenta ser o ideal. Na prática, atesta-se que a fiscalização das concedentes não é frequente, facilitando os abusos e o desrespeito à lei. Há a necessidade de uma fiscalização corriqueira e eficaz, haja vista que a norma preconiza e foca no aprendizado de competências próprias da atividade profissional, ou seja, na real evolução do conhecimento teórico e prático do estagiário. Portanto, o disposto no §2º do artigo 1º da Lei 11.788/08 deve ser efetivamente cumprido, devendo o estagiário realizar atividades que contribuam efetivamente para o seu aprendizado. O estudante de Direito, dessa forma, não pode agir passivamente diante dessa situação que, lamentavelmente, mesmo após a edição da lei, ainda ocorre é verificada em inúmeros estágios.

REFERÊNCIAS

BAHR, Fabio. O mapa do estágio. 2011. Disponível em: <http://www.venko.com/imprensa4.html>. Acesso em: 15 ago. 2011.

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DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2011.

ESTAGIÁRIOS. Fiscalização do estágio. 2011. Disponível em: <http://www.estagiarios.com/emp_fiscalizacao.asp?T=P>. Acesso em: 12 ago. 2011.

LEÃO, Anderson. Reconhecimento do vínculo empregatício na desvirtuação do contrato de estágio. 2011. Disponível em: <http://www.artigonal.com/doutrinaartigos/reconhecimento-do-vinculo-empregaticio-na-desvirtuacao-do-contrato-de-estagio4916565.html>. Acesso em: 07 jul. 2011.

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FIDΣS MARTINS, Sergio Pinto. Direito do trabalho. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2011.

______. Estágio e relação de emprego, 2 ed. São Paulo: Atlas, 2010.

THE INDISCRIMINATE NON-COMPLIANCE OF THE LAW 11.788/08: THE DISRESPECT OF THE LEGAL INTERNSHIPS PURPOSE

ABSTRACT The law 11.788/08 brought some innovations about the internship relations. This article aims to show that the goal of the legal internships, as that law, is not being accomplished. Sometimes, the internship do not perform services that contribute to his learning. The deficiency in internships examination aggravates that situation. Those abuses must be combated by the internships claims and the effective aplication of the legal measures. Keywords: Internship. Law 11.788/08. Purpose. Abuses. Lack of

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fisalization.

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FIDΣS Recebido 29 fev. 2012 Aceito 29 abr. 2012

O LEVIATÃ DE HOBBES COMO REVISÃO DA HISTÓRIA DAS PESSOAS JURÍDICAS Eduardo Antônio de Oliveira Jean Barbosa Gibson

RESUMO O presente artigo objetiva desenvolver uma nova visão acerca das origens históricas da pessoa jurídica, tendo como base a obra de Thomas Hobbes, Leviatã. A doutrina oferece uma resposta inflexível sobre o tema e parece sugerir a desnecessidade de questioná-la novamente. Através de uma análise comparativa entre as ideias hobbesianas e de teóricos atuais, pretende-se fundamentar a possibilidade de haver figuras de pessoa jurídica anteriores ao Estado Romano. O livro evidencia a presença de elementos caracterizadores de personalidade jurídica baseado nas Escrituras, apresentando

Palavras-chave: Pessoa jurídica. História do Direito. Relativização conceitual. “Poderás tirar com anzol o Leviatã, ou ligarás a sua língua com uma corda? [...] Ele vê tudo o que é alto; é rei sobre todos os filhos da soberba”. (Bíblia)

1 INTRODUÇÃO  

Graduando em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Graduando em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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claramente o povo judeu e a Igreja antiga como pessoas jurídicas.

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FIDΣS Como em outros aspectos do Direito, a ideia de pessoa jurídica exsurge na História como construção gradual, sendo ela considerada um fenômeno sociocultural desenvolvido pela necessidade crescente de novas formas de organização que as relações humanas passavam a exigir. Ao passo que a noção de um ente coletivo, com personalidade e direitos próprios, foi ganhando força e proporções significativas dentro dos sistemas políticos e sociais, iniciaram-se os estudos dessas novas estruturas organizativas, no ensejo de delinear suas origens, fundamentos e motivações. Resultante de séculos de exaustivas discussões e pontos de vista conflitantes sobre o princípio histórico da pessoa jurídica, a doutrina parece adotar, por fim, uma teoria unânime para sua origem. A aceitação de um marco delimitador fincado no Direito Romano clássico, no entanto, ignora elementos anteriores a esse período igualmente importantes para a composição de uma análise mais acurada do tema. Diante de uma investigação como essa, cujo objeto é composto primordialmente por fatos associados à própria história das civilizações, torna-se necessário revisar tais definições aparentemente inflexíveis. A evolução do pensamento humano e as mudanças nos valores culturais sugerem, por sua própria natureza, novas visões acerca de velhos paradigmas. O Leviatã, obra magna do filósofo Thomas Hobbes, tem seu conteúdo explorado em diversas áreas da Ciência, mormente na Teoria Geral do Estado. No entanto, o livro do insigne teórico ainda não é considerado na análise histórica da pessoa jurídica – embora seja de grande valia em outras seções do Direito. Ao tratar sobre religião e organização política, Hobbes traz à baila uma nova concepção sobre o surgimento do Estado, mostrando exemplos

Absolutismo, cujo apogeu coincidiu com o período de produção teórica do autor. Ademais, ele contribui para a Teoria da Pessoa Jurídica de forma mais específica, quando apresenta à sociedade a teoria do ser artificial, e expõe outros argumentos bastante similares aos critérios atualmente utilizados para a caracterização da pessoa jurídica. Através das ideias de Hobbes acerca do Estado e de sua representação por um soberano ou assembleia, é possível questionar a alocação das sociedades antigas na situação de governos personificados, com maior foco na civilização hebraica e em sua evolução política. Diante disso, não seria absurdo imaginar uma relativização da teoria clássica, tão confiante na incontestabilidade de seus fundamentos.

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nas Escrituras hebraicas e na religião cristã ao traçar paralelos entre o Reino de Deus e o

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FIDΣS 2 A PESSOA JURÍDICA E O PENSAMENTO CLÁSSICO

Devido às controvérsias a respeito da natureza jurídica da pessoa coletiva, a doutrina majoritária optou por tratá-la com um conceito mais lato, que não penetra nos méritos específicos de sua forma. Desse modo, conceitua-se a pessoa jurídica como “unidade de pessoas naturais ou patrimônios, que visa à consecução de certos fins, reconhecida essa unidade como sujeito de direitos e obrigações” (DINIZ, 2011, p. 262). Em complemento a isso, a teoria apresenta outras características gerais para a qualidade de pessoa jurídica. Sendo sujeito de direitos, ela possui “personalidade jurídica própria” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 224) – com personalidade, patrimônio e existência distintos de seus membros. A interdependência se resume à necessidade de “presentar” a pessoa jurídica. No mais, ela possui direitos da personalidade restritos à sua forma, não sendo capaz de cometer atos restritos à pessoa natural (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 325). No Direito Civil brasileiro, delimita-se que “o ente ora tratado pode gozar de direitos patrimoniais (ser proprietário, usufrutuário etc.), de direitos obrigacionais (contratar) e de direitos sucessórios, já que pode adquirir causa mortis” (VENOSA, 2001, p. 215). Para que os ordenamentos jurídicos atuais chegassem a tal nível de abstração conceitual, foram necessários séculos de estudos e acontecimentos históricos para que se pudesse falar em pacificação teórica. Vencidas as controvérsias maiores – embora haja estudiosos que tratem essa concordata como intencional por parte de autores que, “antes de solucionar a intrincada questão conceitual desse instituto, tencionavam, na verdade, verem-se

cronologia de desenvolvimento da pessoa jurídica que agradasse à doutrina em geral.

2.1 As primeiras noções conceituais acerca da pessoa jurídica

Fala-se de duas dimensões no estudo histórico da Pessoa Jurídica: a fática e a conceitual. Convencionou-se que os primeiros registros explícitos de teorização a respeito das pessoas fictícias surgiram no Direito Canônico, considerando-se que ideias abstratas como essa não tiveram lugar na Roma antiga ou nos primórdios do Direito germânico (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 322,323). Foi com os canonistas e glosadores que um conceito de pessoa não natural surgiu como matéria de ciência jurídica pela primeira vez.

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livres dela” (COELHO citado por CUNHA, 1996, p. 231-232) –, foi possível delinear uma

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FIDΣS O principal motivo para que se compreenda essa ausência no Direito pré-clássico é sua própria tradição, pois com “a unidade de produção sendo familiar, as regras de imputação de responsabilidade e de unificação do patrimônio no pai de família dispensavam o invento da pessoa jurídica” (LOPES, 2009, p. 384). “Os romanos, nesse período, entendiam que, quando um patrimônio pertencia a várias pessoas, o titular dele não era uma entidade abstrata [...], mas, sim, os diferentes indivíduos que constituíam o conjunto, cada um titular de parcela dos bens” (ALVES, 1992, p. 160). Percebe-se que, além da incapacidade de apreensão da ideia de um ser fictício nesse período, tampouco se sentia a necessidade de criá-lo, visto que até então, a sociedade parecia ir muito bem sem essa nova técnica jurídica. Entretanto, é sabido que os fatos históricos não dependem de teorias para que possam surtir efeitos na sociedade. Muito antes do Direito Medieval se interessar pela ciência dos entes coletivos, o Direito Público romano já possuía modelos de organização política diferenciados, que a História do Direito, tradicionalmente, passou a definir como os primeiros exemplos de pessoa jurídica – dentre eles, como o principal e mais antigo, o Estado romano do Período Clássico. Posteriores a isso, outras instituições públicas foram se especializando com o tempo, chegando à criação de corpos hoje denominados de pessoas de Direito Privado – igrejas e outros estabelecimentos eclesiásticos no Baixo Império (CHAMOUN, 1957). Tais instituições são consideradas assim porque já se reconhecia a elas direitos autônomos e capacidade jurídica (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 322), pressupostos da consideração atual de pessoa jurídica. A ideia do surgimento do Estado, em Roma, como ente coletivo pioneiro na história, é plausível por dois motivos claros: a) a própria teoria de formação da pessoa jurídica sugere

próprio Estado como ente de Direito Internacional - considerando-se que "a personalidade jurídica do estado, em direito das gentes, diz-se originária, enquanto derivada a das organizações." (REZEK, 1998, p. 155). Sendo assim, o Estado se autodetermina, abstraindo um direito do próprio ordenamento; b) para a criação do Direito Privado, é necessária a existência anterior de um Direito Público que o suporte, o que de fato se comprovou na experiência política romana (CARTAXO, 1954). O grande debate que se propõe trata dos precedentes da pessoa jurídica anteriores ao Direito clássico romano, como os contratos já existentes na Babilônia e na Grécia (GILISSEN, 2003, p. 772). A doutrina aceita que, apesar de vestígios como esses em sociedades anteriores, não se consideram suficientes as características apontadas para a composição conceitual de pessoa jurídica.

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anuência do ordenamento jurídico, sendo essa ideia relativizada apenas no que diz respeito ao

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FIDΣS 2.2 Relativização da teoria clássica

Em experiências normativas conhecidas da Antiguidade, como as civilizações egípcia e mesopotâmica, o principal argumento contra o reconhecimento do Governo desses povos como pessoa jurídica é a não distinção deste com a figura de seu governante – o que se comprovou historicamente (PINTO, 2010). A análise histórica demonstra que o Direito Público dessas sociedades não era dissociado da figura do rei, que era o poder político em si. Com base nisso, inferiu-se que, nas organizações humanas anteriores ao Estado Romano, seria impossível encontrar um corpo que reunisse elementos válidos para sua caracterização como ente jurídico. Todavia, esse aparente esgotamento teórico parece maléfico à própria dinâmica do estudo do Direito, tendo em vista que:

Na interpretação de qualquer figura jurídica, é essencial ter em mente a dimensão temporal em que se insere, nela identificando a etapa da evolução do tema no contexto da experiência humana. Ou seja, o primeiro ponto a considerar é o posicionamento histórico do fenômeno e a compreensão de sua eventual mudança de perfil por agregação de novas características em razão da constatação de outros valores igualmente relevantes, ao lado daqueles que, até então, haviam informado a figura jurídica. (GRECO, 1996, p. 84)

Diante disso, entende-se que o surgimento de novos estudos acerca das organizações humanas da Antiguidade pode contribuir para que a História do Direito não fique estagnada, p. 277), ao afirmar que o invólucro conceitual da pessoa jurídica resulta “de um longo processo de evolução histórica”, deixa claro que a matéria tratada não deve possuir um ponto fixo de origem – dada a natureza gradual da evolução social.

3 CARACTERÍSTICAS DA PESSOA JURÍDICA À LUZ DO LEVIATÃ

Thomas Hobbes foi um importante filósofo nascido na Inglaterra no fim do século XVI. Admirador das ideias de Aristóteles, o teórico formado em Oxford produziu trabalhos importantes para a definição da política de sua época. Dentre eles, o Leviatã – ou Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil – é conhecido por se propor a estudar a

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assentada em conceitos válidos somente ao tempo em que foram concebidos. Amaral (2003,

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FIDΣS supremacia do poder político que suplantou o poderio da Igreja medieval. Defensor da ideologia absolutista, o trabalho de Hobbes sugere indícios racionais de aceitação da soberania do Estado e de seu representante, como forma de garantir a efetividade do contrato feito entre o rei e seus súditos (DIMOULIS, 2011, p. 26-27). O Leviatã, no entanto, não deixa de explorar profundamente aspectos religiosos – prática comum para a época, ainda vinculada ao mando da Igreja –, com o pressuposto de serem elementos de uma racionalidade transcendental, de cunho claramente jusnaturalista. Há trechos da obra em que o pensador parece se afastar completamente do conteúdo político para tratar de tópicos puramente espirituais, pincelando valores éticos e princípios cristãos ao longo de descrições sobre um modelo distinto de politica: o Reino de Deus. É através dessa reunião de teorizações científicas e espirituais que se torna possível avaliar as contribuições de Hobbes para a desconstrução do argumento que atribuiu ao Estado Romano o título de primeira pessoa jurídica da história. Apesar de não discutir tal paradigma diretamente, o Leviatã oferece um quadro peculiar de constatações que permitem cotejar aspectos das instituições tratadas no livro com características pertinentes à consideração de uma instituição como ente jurídico. A abordagem diversificada da obra possibilita a divisão desses indícios em seis temas principais, que vão de definições breves dos termos utilizados à descrição de entes coletivos por uma ótica mais abrangente que os conceitos tradicionais.

3.1 A pessoa jurídica propriamente dita

Thomas Hobbes (2006, p. 167-178) chega a falar especificamente sobre os entes

uma abordagem conceitual diferente da teoria contemporânea. Ele trata do conceito de pessoa jurídica que se utiliza hoje, em sentido lato, quando se refere à dimensão ampla dos sistemas, tanto os regulares quanto os irregulares – de classificação diferente da atual, sem correspondentes estritamente proporcionais na divisão contemporânea. Quando trata de sistemas subordinados políticos, “também designados corpos políticos ou pessoa jurídicas”, dizendo que esses “são os criados pelo poder soberano do Estado”, na verdade está definindo as corporações de Direito Público, subdivisão da universitas personarum, terminologia que surgiu apenas com estudos sobre Direito Romano e que subsiste em seus fundamentos no Direito Civil atual (CRETELLA JÚNIOR, 1993, p. 82-89). As definições hobbesianas realmente possuem um grau de importância para o estudo da pessoa jurídica em seu contexto geral, mas sua verdadeira contribuição teórica para o

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coletivos no capítulo 22 de seu livro, Sobre os sistemas sujeitos, políticos e privados, mas em

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FIDΣS assunto se encontra distribuída no decorrer de todo o livro. O motivo é simples: o conteúdo relevante para tal estudo não foi esquematizado com o propósito de avaliar o Estado e outras instituições no matiz próprio da pessoa jurídica, mas está presente em capítulos de substância análoga, em que se podem extrair informações pertinentes ao estudo proposto. Os elementos e critérios que permeiam a conceituação da pessoa jurídica são muitos – o exemplo de contrato e a caracterização do Estado são apenas uma pequena parte dos assuntos tratados no Leviatã que podem ajudar a formular uma nova visão sobre a pessoa jurídica na Antiguidade. Encontradas de forma mais ou menos esparsa, estão ideias sobre a representação, a autonomia da personalidade jurídica e a teoria orgânica desenvolvida por Thomas Hobbes, com influências bíblicas evidentes, principalmente das Epístolas de Paulo no Novo Testamento.

3.2 O Estado

Para dar escopo à sua teoria simpatizante de um reino soberano centralizado no monarca, Hobbes (2006, p. 280-281) se utiliza de fundamentos fortemente calcados nas escrituras cristãs – a saber, o Pentateuco e demais livros do Velho e do Novo Testamento. Seu afinco à análise da sociedade hebraica em comparação aos reinos da Idade Moderna é parte fundamental na identificação de elementos da nação cristã na Antiguidade que possibilitem a existência de pessoas jurídicas na forma conceitual que se admite hoje. O Leviatã é famoso por contribuir para a corrente teórica do contratualismo moderno, dada sua análise singular sobre a natureza humana e suas tendências para o conflito, de modo as pessoas. O filósofo, no entanto, afirma que há no homem um desígnio natural, o “desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a consequência necessária (conforme se mostrou) das paixões naturais dos homens” (HOBBES, 2006, p. 127). Para que se torne possível essa convivência entre tais seres naturalmente fadados à disputa, conformando-os em uma sociedade, Hobbes apresenta uma lei fundamental:

Que um homem concorde, conjuntamente com outros, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo. (HOBBES, 2006, p. 102)

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que a sociedade em seu estado natural viveria em um clima permanente de guerra entre todas

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FIDΣS É essa abdicação mútua que se chama contrato, e é nesse interim que surge a pessoa do Estado. É preciso, no entanto, mais que um simples acordo mútuo de convivência: acima desse grupo de homens, deve haver a figura do “homem ou assembléia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles [...] a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes homens” (HOBBES, 2006, p. 132). Percebem-se, já nesse trecho, características da pessoa jurídica: uma união de pessoas representadas por um ou mais administradores, com vistas a um fim. A ideia de surgimento da pessoa jurídica através de contratos também está presente no estudo de Lopes (2009, p. 386) acerca das empresas do século XVII: “As companhias coloniais representaram à época um pacto entre comerciantes e o soberano”. É através desse modelo que se permite exemplificar, no Leviatã, a influência de tal conceito na organização política hebraica. Estudiosos explicam os primórdios da sociedade israelita como “uma sociedade pastoral seminômade, vivendo da criação de gado e movendo-se em caravanas de mulas de uma pastagem para outra. Abraão, Isaac e Jacó são apresentados como líderes de clãs compostos por diferentes famílias” (SOUZA, 2010, p. 55). De fato, Thomas Hobbes (2006, p. 338-339) diz que “o pai dos fiéis e o primeiro no reino de Deus por contrato foi Abraão”, adindo que “foi com ele que o contrato foi primeiro feito, pelo qual se obrigou, e a sua semente depois dele, a reconhecer e obedecer às ordens de Deus”. Nessa conformação, já está presente a confiança da vontade geral a um representante, já que o contrato foi feito com Abraão, mas vinculou toda sua família e descendência. Visualiza-se, pela primeira vez na história dos hebreus, o conceito de contrato,

pacto, mas somente com ele se adquiriu uma forma política nova ao povo de Israel. Sobre isso, o autor do Leviatã comenta:

Obteve-se para Deus um reino por meio desta constituição. Posto, porém, que Moisés não tinha autoridade para governar os israelitas como sucessor do direito de Abraão, porque não podia reclamá-lo por herança, ainda parece que o povo só era obrigado a encará-lo como representante de Deus enquanto acreditava que Deus lhe falava. [...] Portanto, sua autoridade, bem como a autoridade de todos os outros príncipes, tem de ter como fundamento o consentimento do povo e sua promessa de lhe obedecer. (HOBBES, 2006, p. 340)

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embora uma submissão moral já existisse desde o início; havia uma autoridade anterior ao

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FIDΣS Está, portanto, bastante clara a presença do contrato na sociedade israelita, e da sujeição a seu representante. Vale lembrar que não é esse o único argumento utilizado para afirmar a nação hebraica como um Estado. O próprio Hobbes (2006, p. 326) conclui que “o Reino de Deus é um Estado civil”, e, com ainda mais especificidade: Por Reino de Deus se entende propriamente um Estado, instituído – pelo consentimento dos que lhe iriam ficar sujeitos - para seu governo civil e para o controle de seu comportamento, não apenas para com Deus, seu soberano, mas também uns para com os outros em matéria de justiça, e para com as outras nações tanto na paz como na guerra. (HOBBES, 2006, p. 297)

Além da própria conceituação do Estado hebraico como pessoa jurídica sui generis (reforçada pela ideia de criação da personalidade advinda do próprio ordenamento), tem-se exemplificada, nesse trecho do Leviatã, sua capacidade de interação com outros Estados – afastando, assim, a ideia de que Israel não possuiria autonomia como pessoa coletiva para responder juridicamente nas relações internacionais.

3.3 A teoria organicista

As ideias modernas da pessoa jurídica procuraram estabelecer similaridades e correspondência de direitos entre o ser fictício e o físico, para uma possibilidade de garantias de direitos proporcionais a cada situação. Hobbes (2006, p. 123) trata sobre a etimologia da palavra, atribuindo-lhe origem latina, significando a representação de outrem. O estudioso

conceito de pessoa para o Direito: Do que foi dito podemos distinguir três significados principais da palavra ‘pessoa’: em sentido fisio-antropológico quer dizer homem, em sentido teológico-filosófico, quer dizer ente racional, consciente, capaz de querer, em sentido jurídico, quer dizer ente que tem função jurídica, qualidades no direito, capacidade. Agora, é uma exigência metodológica não trocar esses diferentes significados e utilizar com fins jurídicos conceitos e princípios estranhos ao direito. Por isso é equivocada a tendência daqueles escritores que definem a pessoa como um ente orgânico consciente e com vontade. [...] pessoa é o homem no direito, enquanto é reconhecido como ente jurídico, dotado de direitos subjetivos [...]. Por isso, o conceito de pessoa

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italiano Francisco Ferrara aprofunda a ideia, fazendo um importante levantamento sobre o

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FIDΣS não coincide e é mais amplo que o de homem e, por conseguinte, nada obsta a que haja personas que não sejam homens. (FERRARA, 1929, p. 318) [tradução livre]

Nesse sentido, Ferrara busca desvincular a ideia de pessoa com um ser orgânico. Do outro lado da teoria, Hobbes parece buscar na pessoa fictícia atribuições similares às orgânicas, de modo que estas passem a ser cognoscíveis como corpos artificiais, entes com uma “alma”. Enquanto há referências a órgãos e partes do sistema biológico humano em analogia com o funcionamento do Estado em várias partes do Leviatã, é na Introdução do livro que tal ideia se encontra mais condensada:

Da mesma forma que tantas outras, a natureza, mediante a qual Deus fez e governa o mundo, é imitada pela arte humana também nisto: é possível fazer um animal artificial. Sendo a vida nada mais do que um movimento de membros, cujo início ocorre em alguma parte interna, por que não poderíamos dizer que todos os autômatos (máquinas que se movem a si mesmas por meio de molas, igual a um relógio) possuem uma vida artificial? [...] A arte vai mais longe ainda, imitando a criatura racional, a mais excelente obra da natureza, o Homem. Porque, pela arte, é criado aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade (em latim Civitas), que nada mais é senão um homem artificial, de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado. No Estado, a soberania é uma alma artificial, pois dá vida e movimento a todo o corpo; os magistrados e outros funcionários judiciais ou executivos, juntas artificiais; a recompensa e o castigo (pelos quais, ligados ao trono da soberania, juntas e membros são levados a cumprir seu dever) são os nervos, que executam a mesma função do corpo natural [...]. Finalmente, os pactos e convenções pelos quais as partes deste Corpo Político homem” proferido por Deus na Criação. (HOBBES, 2006, p. 15-16)

O autor inglês, evidentemente, não busca convencer de que o Estado é um homem real, mas artificial, que necessita de um corpo físico para se sustentar como sujeito de direitos – sendo essa pessoa (ou grupo de pessoas) capaz de interpretar, ou representar, a si mesmo ou a esse ente fictício (HOBBES, 2006, p. 123-124). Sobre a existência da entidade orgânica no livro Leviatã, Hobbes menciona referências a essa ideia retiradas da Bíblia. De fato, há um capítulo na Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios, intitulado A unidade orgânica da igreja, que trata exatamente sobre analogias entre o corpo humano e a comunhão de cristãos:

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foram criadas, reunidas e unificadas assemelham-se àquele Fiat, ao “Façamos o

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FIDΣS Porque, assim como o corpo é um e tem muitos membros, e todos os membros, sendo muitos, constituem um só corpo, assim também com respeito a Cristo. Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado beber de um só Espírito. Porque também o corpo não é um só membro, mas muitos. [...] Se todo o corpo fosse olho, onde estaria o ouvido? Se todo fosse ouvido, onde, o olfato? Mas Deus dispôs os membros, colocando cada um deles no corpo, como lhe aprouve [...], concedendo muito mais honra àquilo que menos tinha, para que não haja divisão no corpo. (BÍBLIA SAGRADA, 1997, p. 1622).

Sobre esse trecho, Russell Shedd (1997, p. 1622) comenta que “a Igreja e Cristo funcionam como um só organismo. Todos os cristãos são batizados no Espírito que os forma num corpo”. Ele faz uma análise similar ao trecho da Epístola de Paulo aos Romanos (1997, p. 1599), que afirma, ao falar da igreja: “Pois assim como num só corpo temos muitos membros, mas nem todos os membros têm a mesma função, assim também nós, conquanto muitos, somos um só corpo em Cristo e membros uns dos outros [...]”. A ideia de corpo uno dos cristãos, já nessa época, serviu para construir a ideia que chegou ao seu ápice com a Igreja da Idade Média – objeto de estudo de Hobbes (2006) em várias passagens do Leviatã.

3.4 A representação

Retomando a solução dada por Hobbes a respeito do contrato entre homens, para que

[É preciso] conferir toda a força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade [...], considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que os representa praticar ou vier a realizar [...]. Isso é mais do que consentimento ou concórdia, pois resume-se numa verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens [...]. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele enorme Leviatã, ou [...] daquele deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. [...] É nele que consiste a essência do testado, a qual pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa

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a proteção e a convivência sejam efetivadas, ele reitera que:

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FIDΣS comum. Àquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano. (HOBBES, 2006, p. 130-131)

O trecho supracitado traz à reflexão inúmeros temas, em uma análise à parte da intenção de seu livro, pertinentes à pessoa jurídica estatal – a unidade de patrimônios e personalidades, a multidão unida debaixo do Estado e uma finalidade comum ao ente coletivo. Ao final do excerto, tem-se a figura do representante, do qual Hobbes tanto fala – notadamente por ser seu livro voltado para a questão do soberano absolutista. Na atualidade, o conceito de representação se manteve:

Por não poder atuar por si própria, a pessoa jurídica, como ente da criação da lei, deve ser representada por uma pessoa física (ou natural) ativa e passivamente, exteriorizando sua vontade, nos atos judiciais ou extrajudiciais. Ou seja, é necessário que haja uma Pessoa Física para assumir os compromissos e assinar os contratos dessa Pessoa Jurídica. De uma forma geral esta Pessoa Física age como se fosse o próprio ente social, devendo exprimir a vontade da Pessoa Jurídica, executando os seus objetivos. (ESCOBAR, [20--]ano, p. 2)

A informação peculiar que se extrai deste trecho diz respeito à figura do representante. Na visão de Hobbes (2006, p. 125), “é a unidade do representante, e não a unidade do representado, que faz com que a pessoa seja una. O representante é o portador da pessoa, e só de uma pessoa. Esta é a única maneira como é possível entender a unidade de uma multidão”. Tendo em vista a conformação teórica na qual o autor insere a figura do

jurídico que esta representa. No entanto, nota-se que esta não é uma interpretação correta – tanto pelo fato de a teoria da pessoa jurídica contemporânea também se utilizar dessa unidade aparente, como pela própria afirmação de Thomas Hobbes (2006, p. 142): “seja quem for que seja portador da pessoa do povo, ou membro da assembléia que dela é portadora, é também portador de sua própria pessoa natural”. Assim, fica menos nebulosa a separação entre as pessoas do representante – para o qual ele usa a expressão “portador”, referindo-se à capacidade de atuar nos interesses de um ente abstrato. Há, ainda, uma interessante relação entre o poder do soberano e suas atribuições, em correspondência com a finalidade da pessoa jurídica. Embora afirme o poder superior do monarca ou assembleia, Hobbes (2006, p. 244) entende que “o cargo do soberano consiste no

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representante, imagina-se de início que não há uma divisão entre a pessoa física e o ente

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FIDΣS objetivo para o qual lhe foi confiado o soberano poder, principalmente para obtenção da segurança do povo, poder a que está obrigado pela lei natural e do qual tem de prestar contas a Deus”. Coadunando com sua ideia, Cunha (1996, p.232) assegura:

A abordagem histórica fornece um quadro da relatividade do conceito de pessoa jurídica e de sua função, e a função de um instituto jurídico é satisfazer determinadas necessidades compatíveis com o ordenamento jurídico, utilizando-se de uma forma compatível com o mesmo.

Como já foi visto, Hobbes defende que a criação do Estado de Israel se iniciou com um contrato entre Deus e o representante daquele povo. Porém, esse caráter divino dos contratos leva a pensar imediatamente na personificação da pessoa natural como pessoa coletiva, inferindo-se que essas duas personalidades não se dissociariam. De fato, as experiências egípcias e mesopotâmicas já demonstraram que essas duas civilizações possuíam um direito divino individualizante, no qual o foco das relações políticas se restringia a uma pessoa física. Hobbes e outros pensadores já deixaram claro, no entanto, que o representante hebraico não era mais do que um meio necessário de se exercer a vontade divina entre os homens – já que a figura de Deus é abstrata, da mesma forma que a finalidade da pessoa jurídica. O autor do Leviatã, em um trecho, diz claramente: “O verdadeiro Deus pode ser personificado. E efetivamente foi, primeiro por Moisés, que governou os israelitas que não eram o seu povo, e sim o povo de Deus –, não em seu próprio nome, com Hoc dicit Moyses, mas em nome de Deus, com Hoc dicit Dominus” (HOBBES, 2006, p. 125). A mesma estado não residia na sua pessoa, nem na de seu sucessor. Residia em Jeová”. Nota-se, portanto, que a imagem de soberania residia no próprio Deus, e não em seu representante terreno. Nessa dimensão, entretanto, é preciso considerar que, não sendo pessoa natural, Deus não deve ser entendido pelo Direito como indivíduo físico, mas como princípio mobilizador de tais pessoas jurídicas – como na visão de Fustel de Coulanges, citado por Ourliac ([19--], p. 118), acerca da situação do imperador de Roma frente ao poder: “no era la cima de todo; la idea del Estado está por encima de él”. Atribuindo-se uma analogia a isso, pode-se entender Deus como a ideia de Estado, e o soberano como seu representante. Tal confusão entre ideias morais e religiosas se explica através da comparação entre teóricos, que tratam de assuntos similares utilizando termos aparentemente conflitantes. Ao passo que Hobbes (2006, p. 88) fala das sementes da religião, afirmando que os “que o

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confirmação aparece em Altavila (2001, p. 23), quando comenta que “a soberania do seu

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FIDΣS fizeram sob o mando e direção de Deus [...] tiveram o objetivo de fazer os que neles confiavam tender mais para a obediência, as leis, a paz, a caridade e a sociedade civil”, Dimoulis (2011, p. 56-57) assevera que “a moral decorre da vontade de Deus, da necessidade do convívio social, da reflexão humana sobre o justo” e que “a moral funciona como um dever ser em relação à atuação das pessoas. Fazer o mal viola a ordem e acarreta sanções de variadas formas”. Sendo assim, a reunião de um grupo de pessoas sob um princípio religioso e moral seria o que se conhece hoje como a finalidade da pessoa jurídica. Uma última consideração a respeito disso é que:

Partindo desta interpretação literal do Reino de Deus, surge também a verdadeira interpretação da palavra santo. Deus, rei de Israel, era a pessoa santa de Israel. A nação que está sujeita a um soberano terreno é a nação desse soberano, isto é, da pessoa pública. Dessa forma, os judeus, que eram a nação de Deus, eram chamados [Êx 19,6] uma nação santa. Por santo sempre se entendeu o próprio Deus ou o que é propriedade de Deus. Público sempre significou ou a própria pessoa do Estado ou alguma coisa que pertence ao Estado de tal modo que nenhuma pessoa particular pode pretender sua propriedade. (HOBBES, 2006, p. 299)

Diante disso, está claro que o soberano na terra é portador de uma questão abstrata, traduzida pela vontade divina para os hebreus, e pela ficção do ente coletivo na atualidade. É provável que a ideia de pessoa santa tenha sido a primeira classificação próxima ao conceito de pessoa jurídica que se desenvolveu com os canonistas.

Hobbes não deixa de comentar a respeito de outro importante aspecto da pessoa jurídica: a personalidade de seus membros dissociada dos direitos e obrigações adotadas pelo ente coletivo. Como aduzido anteriormente, este possui autonomia de ação que não deve ser confundida com a responsabilidade dos particulares – quando se encontra no desenvolvimento de suas funções. O autor trata, como parte de uma teoria geral da representação:

Se o representante for um homem, qualquer coisa que faça na pessoa do corpo que não seja permitida por suas cartas ou pelas leis, é seu próprio ato, e não o ato do corpo, ou de qualquer dos membros deste além de si mesmo. Para além dos limites estabelecidos por suas cartas e pelas leis, ele não representa a pessoa de ninguém a não ser a de si mesmo. Aquilo que ele fizer de acordo com elas será o ato de todos,

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3.5 A responsabilidade autônoma

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FIDΣS já que do ato do soberano todos são autores, dado que ele é seu representante ilimitado. [...] Caso o representante seja uma assembléia, qualquer coisa que essa assembléia decrete não permitida pelas cartas ou pelas leis será o ato da assembléia, ou corpo político, e o ato de cada um daqueles por cujo voto o decreto foi decidido. [...] e, se for um crime, a assembléia pode ser punida, na medida em que de tal é passível, como por dissolução, ou cassação de suas cartas (o que é mortal, para esses corpos artificiais e fictícios) [...]. Porque dos castigos corporais a natureza isentou todos os corpos políticos. (HOBBES, 2006, p. 169-170)

Como ato da pessoa jurídica, Hobbes entende que por ele um particular não se responsabiliza – nem mesmo o soberano ou assembleia, e isso é o mais importante nessa questão. Além disso, Hobbes também traz à tona a questão da responsabilização da pessoa jurídica por normas que o Direito criou para a pessoa natural – mais um elemento, portanto, do estudo atual da personalidade jurídica a esses entes coletivos. Na história dos hebreus, observa-se que desde os primórdios de sua organização política já havia o distanciamento da pessoa do soberano e do exercício da vontade coletiva. No artigo O Direito Hebraico Antigo, de Marcos Antônio de Souza (2010, p. 55), há o seguinte relato:

Nesse tipo de organização social o poder se concentrava no líder do clã tanto para assuntos internos como externos, sendo responsável por qualquer crime cometido por um membro de seu clã contra um estrangeiro. Uma falha por parte do líder quanto a expulsar o membro culpado do clã, ou puni-lo, como satisfação ao clã queixosa (sic), resultava em uma guerra contra todo o clã. Evidenciava-se dessa

afetava (sic) o grupo como um todo.

Está evidente, dessa forma, que o Estado hebraico, como pessoa jurídica, também respeitava esse requisito, que hoje é utilizado como critério para a classificação de um ente como coletivo.

3.6 A personalidade da Igreja

Não raro, o estudo histórico das instituições jurídicas faz menção às primeiras organizações religiosas do cristianismo, sobretudo no período medieval, no entanto, a influência direta da Igreja na política da época impossibilita sua dissociação da própria noção

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maneira o princípio de responsabilidade coletiva em que as ações de um indivíduo

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FIDΣS de Governo (CARTAXO, 1954, p. 50-52). Somente com a laicização das ordens normativas foi possível chegar ao entendimento das organizações religiosas como pessoas jurídicas de Direito Privado (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2011, p. 263-264). No Leviatã, apresenta-se uma dicotomia importante entre dois reinados divinos propostos por Thomas Hobbes: um seria mais amplo, enquanto o outro, o Estado hebraico, era restrito àqueles eleitos por Deus, que firmaram um pacto consigo. Esse reino maior é dos que Hobbes considera como “natural, quando governa pelos ditames naturais da justa razão aqueles homens que reconhecem sua providência” (2006, p. 259). O primeiro reino, portanto, é aberto a todos que aceitam submissos pela razão, de forma que “os súditos do reino de Deus não são [...] os ateus, nem aqueles que não acreditam que Deus se preocupe com as ações humanas, porque não reconhecem nenhuma palavra como sendo sua, nem têm esperança em suas recompensas nem receio de suas ameaças” (HOBBES, 2006, p. 259). É através dessas palavras que se conceitua a origem filosófica da posterior instituição da Igreja. Durante o período de soberania de Israel, os poderes eclesiásticos e civis estavam sob o mando de um mesmo representante, sendo este o líder político e religioso do povo – passando a se diferenciar, com o passar do tempo, quando a sociedade hebraica se desestabiliza, mas a religião tende a continuar firme – tendo Pedro, enquanto não houvesse um rei em comando, como o monarca religioso, soberano de todos os súditos do Reino de Deus, e, pela terminologia já presente em Hobbes (2006), o primeiro Papa –, sendo possível, até, que o líder religioso fosse elevado à condição de soberano, se assim o povo quisesse. A Igreja, evoluindo desses precedentes, passa a figurar como instituição autônoma. Com efeito, o autor inglês ressalta aspectos importantes sobre a unidade do corpo

lemos em 1 Tim 4,14, mas aqui deve entender-se que algum deles o fez por delegação do presbiterato, muito provavelmente seu proestós, ou prolocutor, que talvez fosse o próprio São Paulo” (HOBBES, 2006, p. 393). Apesar de tudo, Hobbes ainda ressalva que o reino religioso, se não estiver no poder do mesmo soberano político, não incide influência de necessidade contratual. Acerca da conceituação de Igreja, Hobbes (2006, p. 336) aponta diversas possibilidades, mais distantes do conceito de pessoa jurídica: a) Igreja como sendo um templo de reunião dos cristãos; b) uma palavra coletiva para se referir aos próprios cristãos, no sentido de agrupá-los em uma característica comum; c) uma reunião de cidadãos convocada para ouvir um magistrado; e d) homens com direito de participar da congregação, mesmo quando não estejam agrupados. Já no sentido de personalidade unificada, tem-se que:

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administrativo da Igreja, quando “o presbiterato inteiro pôs as mãos em Timóteo, conforme

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FIDΣS Designa, ainda, uma congregação reunida, cujos membros professam o cristianismo [...]. É apenas neste último sentido que a igreja pode ser entendida como uma pessoa, ou seja, que nela se pode admitir o poder de querer, de pronunciar, de ordenar, de ser obedecida, de fazer leis ou de praticar qualquer espécie de ação. Pois quando não há autoridade de uma congregação legítima, seja qual for o ato praticado por um conjunto de pessoas trata-se de um ato individual de cada um dos que estavam presentes e contribuíram para a prática desse ato, e não um ato de todos eles em conjunto, como um só corpo. [...] Defino uma Igreja, nessa linha de raciocínio, como uma companhia de pessoas que professam a religião cristã, unidas na pessoa de um soberano [...]. (HOBBES, 2006, p. 337)

É notória a importância no tratamento do tema. Caso a Igreja realmente seja composta de elementos relevantes para sua consideração como pessoa jurídica, tornar-se-ia possível tratá-la como de origem anterior ou simultânea ao Estado romano. Acerca disso, Hobbes (2006, p. 282) constrói opinião acerca de sua relativização:

Da Igreja, se foi uma pessoa, é a mesma coisa que um Estado de cristãos, e sendo um Estado, porque consiste numa quantidade de homens unidos numa pessoa, o seu soberano, e sendo uma Igreja porque é formada de cristãos, unidos sob um soberano cristão. Se a Igreja não for uma pessoa não possui qualquer espécie de autoridade. [...] Pois, se todos os cristãos não se encontrarem abrangidos por um só Estado eles não constituem uma pessoa, nem existe uma Igreja universal que tenha sobre eles qualquer autoridade.

Igreja – sendo, no ordenamento jurídico atual (e devido às informações obtidas até então) possível entendê-la como sujeito de direitos e capacidade distinta de seus membros. Percebese que Hobbes vai além da territorialidade ou da divergência de ordenamentos sob os quais os membros desse suposto ente se encontrem para afirmar a presença de um contrato internacional entre pessoas físicas – fenômeno que, hoje, já se vislumbra graças à globalização de informações e relações sociais.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Através das conjeturas hobbesianas, pode-se refletir sobre a personalidade jurídica da

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FIDΣS No decorrer do presente trabalho, buscou-se investigar a existência de correspondentes históricos da pessoa jurídica anteriores ao Estado romano. O livro de Hobbes se mostrou essencial para que fosse possível analisar o contrato do povo judeu com seu soberano divino na forma de um Estado, com elementos de inquestionável similaridade aos modelos conceituais de hoje. Não obstante à pretensão aparente de Hobbes em defender racionalmente o direito divino de um Estado absolutista, suas ideias se mostram válidas para o campo das teorias da personalidade jurídica. Ademais, a ideia é corroborada por célebres autores contemporâneos – o que reforça a relevância nos estudos do Leviatã para a quebra dos paradigmas atuais. Talvez se argumente a ausência, no Direito Hebraico, de um sistema normativo similar às ordenações jurídicas moldadas à forma moderna, mas isto é um erro: a nação hebraica se mostrou, desde o início, avançada para sua época, tendo nos seus contratos a presença de características estudadas somente anos mais tarde pelos teóricos da Idade Média. Portanto, as claras indicações de forma política e jurídica no Leviatã só comprovam, de forma patente, a existência de uma pessoa jurídica de Direito Público Internacional na figura do Estado Hebraico – e, por extensão, à Igreja primitiva de Cristo. A teoria das personalidades é mais um campo das Ciências Sociais que Thomas Hobbes alcança com sua obra, embora ele ainda seja subaproveitado nesse sentido. Faz-se, nessa oportunidade, um apelo aos que se renderam à comodidade de aceitar um marco histórico deveras recente para um instituto tão arraigado na própria existência da sociedade, sem ao menos contestarem: que, com essa nova visão extraída da obra clássica de Hobbes, sejam aprofundados os estudos sobre a origem da pessoa jurídica, lembrando-se

REFERÊNCIAS

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sempre da grande necessidade de se entenderem os fatos históricos dentro de seu contexto.

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HOBBES’ LEVIATHAN AS A REVIEW OF THE HISTORY OF LEGAL PERSONS

ABSTRACT

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Saraiva, 1998.

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FIDÎŁS This article aims to develop a new vision of the historical origin of the legal person, based on the work of Thomas Hobbes, Leviathan. The doctrine offers a firm answer on the subject and seems to have no interest in a new evaluation. Through a comparative analysis between the ideas of Hobbes and current theoreticals, this work tries to justify the possibility of legal persons existing before the Roman state. The book reveals the presence of characteristic elements of legal personality based on the Scriptures, clearly presenting the Jewish people and the ancient Church as artificial persons.

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Keywords: Legal person. History of Law. Conceptual relativism.

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FIDΣS Recebido 31 ago. 2011 Aceito 29 abr. 2012

PUBLICIDADE INFANTO-JUVENIL: PROIBIÇÃO E AMORTIZAÇÃO SEGUNDO A

INTERPRETAÇÃO

SISTEMÁTICA

DO

ORDENAMENTO

JURÍDICO

BRASILEIRO Amanda Rocha dos Santos Renata Tavares Afonso Fonseca

RESUMO O presente estudo pretende tecer breves abordagens sobre a implicação negativa da publicidade infanto-juvenil. Aborda como este tipo de divulgação vem ganhando a atenção do direito devido ao intenso desenvolvimento dos meios de comunicação. Através da exposição de diversos dispositivos do ordenamento jurídico, busca demonstrar o papel do hermeneuta na solução do conflito existente entre os direitos dos anunciantes e os do público infanto-juvenil frente à inexistência de regulamentação específica. Sugere a utilização do

consiste na conciliação de direitos, eliminando paulatinamente a publicidade infantil e permitindo com ressalvas a publicidade juvenil. Palavras-chave: Publicidade. Criança. Adolescente. Ordenamento. Interpretação Sistemática.

Graduanda em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Estagiária PRT 21ª Região. Lattes: <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4330686T0>.  Graduanda em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), monitora de direito da criança e do adolescente, membro do grupo de pesquisa "Jurisdição, Democracia e Direitos Fundamentais". Lattes: <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4325493Y0>.

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método de interpretação sistemática, concluindo que a melhor solução

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FIDΣS 1 INTRODUÇÃO

A publicidade é meio de divulgação com vistas a facilitar o acesso à aquisição de produtos para aqueles considerados potenciais compradores. Com o intuito de reunir interessados a determinados produtos, comerciantes e publicitários classificam seus públicos alvos e constroem os mecanismos publicitários necessários para lhes chamar a atenção, fato que também ocorre com relação ao público infanto-juvenil. Cumpre trazer à baila no presente trabalho as implicações que a publicidade pode causar no imaginário de crianças e adolescentes. Aceitando que inexiste regulamentação legal específica para disciplinar a matéria, diversos dispositivos do Ordenamento Jurídico podem ser aplicados, em conformidade com os ditames da Constituição Federal, para selecionar o melhor caminho a se seguir diante das várias alternativas de solução que podem ser propostas. A presente pesquisa intenta demonstrar como a interpretação sistemática do ordenamento jurídico brasileiro tem papel fundamental na busca pela melhor solução. Esta interpretação é a capaz de demonstrar a vontade do sistema jurídico adotado pelo Brasil, sem deixar de representar as orientações constitucionais. Nesse contexto, em que conflitam os interesses econômicos dos comerciantes e os interesses humanos dos infanto-juvenis, o melhor caminho a se seguir é o da compatibilização de interesses, alternativa de solução que tentaremos demonstrar ao longo do estudo que segue.

É certo que as crianças e os adolescentes desfrutam de proteção especial no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Diz-se que eles gozam de absoluta prioridade, situação jurídica absolutamente protegida pela Constituição Federal através de seu art. 227, o qual consagra os direitos fundamentais destes seres, repetindo os direitos humanos garantidos aos cidadãos como um todo e acrescentando outros que respeitam sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (PEREIRA, 2008, p. 791). A Publicidade Infanto-juvenil, como se pode observar da simples interpretação literal da expressão, é a publicidade voltada para crianças e adolescentes. Nesta espécie de merchandising, as empresas e agentes publicitários adotam como público alvo de seus produtos os indivíduos que se encontram na faixa etária de até dezoito anos incompletos, isto é: as crianças (pessoas até doze anos de idade incompletos) e os adolescentes (aqueles que

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2 PUBLICIDADE INFANTO-JUVENIL

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FIDΣS possuem entre doze e dezoito anos de idade), conforme classificação etária adotada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente1. Neste ínterim, realizando estudos técnicos e psicológicos sobre a melhor forma de articular seus anúncios publicitários, os anunciantes constroem suas estratégias de venda sem levar em consideração a condição peculiar de desenvolvimento de crianças e adolescentes, muitas vezes usurpando-se de sua vulnerabilidade. Esse fato, cumpre dizer, é justificado pelos resultados econômicos e por eles estimulado, em grande parte, se não completamente2.. Não obstante este resultado econômico, não se pode ignorar a condição das crianças e adolescentes de receptoras das mensagens publicitárias. Sobre o tema, sábias foram as palavras do Conselho Regional de Psicologia do Estado do Rio de Janeiro (2008), entidade que se preocupou com o assunto e escreveu o que segue: A autonomia intelectual e moral é construída paulatinamente. É preciso esperar, em média, a idade dos 12 anos para que o indivíduo possua um repertório cognitivo capaz de liberá-lo [...] da forte referência a fontes exteriores de prestígio e autoridade. […] Como as propagandas para público infantil costumam ser veiculadas pela mídia, e que a mídia costuma ser vista como instituição de prestigio, é certo que seu poder de influência pode ser grande sobre as crianças. Logo, existe a tendência de a criança julgar que aquilo que mostram é realmente como é, e que aquilo que dizem ser sensacional, necessário, de valor, realmente possui essas qualidades. […] Quanto ao adolescente [...] isso se deve mais à falta de experiência de vida do que a características estruturais do seu intelecto e de sua moral. [...] é mais fácil despertar vontades em quem ainda não se fixou sobre quereres próprios

Desta maneira, ultrapassada a fase preliminar de apresentação do tema, pode-se dizer que a propaganda comercial, em especial a direcionada para pessoas que ainda não

1

O diploma normativo que cuida da proteção integral de crianças e adolescentes, no Brasil, é o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, o qual, em seu art. 2º, dispõe: “Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”. De acordo com o parágrafo único deste mesmo dispositivo, apenas em casos excepcionais e expressamente autorizados em lei, aplica-se o Estatuto da Criança e do Adolescente para pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade. 2 De acordo com a Revista Caderno Econômico, dentro do mercado de planos de previdência privada, 4% do faturamento do setor é com o público mirim. Cfr. Matéria de Catherine Vieira “Pequenos grandes investidores”. Valor Econômico. Caderno Eu &. São Paulo, 16 de dezembro de 2002 citado por CREPALDI, Lideli; GIACOMINI FILHO, Gino. “O público infanto-juvenil como alvo secundário da propaganda da esfera dos adultos”. NP 03 Publicidade, propaganda e marketing do IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa Intercom. No prelo. Informação encontrada no site: <http://galaxy.intercom.org.br:8180/dspace/bitstream/1904/17450/1/ R0555-1.pdf>. Acesso em: 29 set. 2011.

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do que em pessoas que já possuem algumas metas definidas […].

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FIDΣS completaram seu período vital e natural de maturação física, psicológica e emocional, recebe regulamentação pelo ordenamento jurídico, apesar de não específica3. Apoiando-se em elementos de fácil compreensão e anúncios intelectualmente simples, os publicitários muitas vezes fazem uso de figuras e personagens que já fazem parte do imaginário juvenil para despertar o interesse dos púberes4. Neste sentido, também enuncia o supracitado Conselho de Psicologia: Portanto, é correto dizer que a criança [...] não possui a sofisticação intelectual para abstrair as leis (físicas e sociais) que regem esse mundo e avaliar criticamente os discursos que outros fazem a seu respeito. [...] não devemos esquecer que a publicidade é um discurso, com frases e imagens. […] Ora, para avaliar a distância que não deixará de haver entre as imagens mostradas na televisão e a realidade, é preciso as ferramentas intelectuais de que falamos, é preciso avaliar a relação entre o ‘real’ [...] e o possível [...]. Isto nem é sempre fácil para adultos, e menos ainda para crianças [...] Logo, é certo que certas propagandas podem enganar as crianças, vendendo-lhes gato por lebre, e isto sem mentir, mas apresentando discursos e imagens que não poderão ser passados pelo crivo da crítica. […].

Destarte, conforme os pensamentos acima explicitados, mesmo quando não há por parte da categoria publicitária a intenção de ludibriar o público jovem, vê-se que – e isso, ressalte-se, de acordo com a opinião de especialistas -, mesmo assim, eles conseguem facilmente convencê-lo pela simples razão de não possuir formação crítica. De tal modo, tendo em vista os apontamentos acima, a prática publicitária de persuadir o público jovem merece especial atenção do mundo jurídico como um todo. Isso se

atenção ao assunto e legislativo se propõe a editar lei, não obstante a proteção que a Constituição Federal já garante a estes indivíduos5 – conforme se verificará a seguir.

3

Isto se deve, em grande parte, à preocupação que se tem em relação ao poder de persuasão que tais institutos, típicos de uma sociedade que adota o modelo econômico capitalista, possuem frente aos seus destinatários. 4 Outrossim, o próprio cotidiano permite-nos perceber o quanto a publicidade voltada para o público infantojuvenil se utiliza injustamente da fragilidade intelectual que estes seres apresentam, principalmente no que diz respeito à ingenuidade e credulidade das crianças, para alcançar seus objetivos mercadológicos. 5 A Constituição Federal, ao enquadrar as crianças e os adolescentes como verdadeiros sujeitos de direito, mas com a condição peculiar e sempre respeitada de ser em desenvolvimento, estabeleceu um novo paradigma na cultura jurídica, o de sempre levar em consideração essa situação especial. Assim, conforme as palavras de Flávia Piovesan (2003, p. 296-297): “este novo paradigma fomenta a doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente e consagra uma lógica e uma principiologia voltadas a assegurar a prevalência e a primazia do interesse da criança e do adolescente”.

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deve, principalmente, ao momento atual, em que doutrina e jurisprudência vêm dando maior

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FIDΣS 3 A SISTEMATIZAÇÃO JURÍDICA DA PUBLICIDADE INFANTIL

Como se sabe, não há fato sem direito que se lhe aplique. Diferente não poderia ser com o tema da publicidade infantil. Essa afirmação é verdadeira, uma vez que não existe no ordenamento jurídico brasileiro legislação específica que regulamente o tema, subsistindo apenas normas esparsas que podem lhes ser aplicadas através de uma interpretação sistemática. Nesse desiderato, para realizar de forma salutar essa técnica hermenêutica de interpretação, os aplicadores do direito não podem desconsiderar a denominada técnica da ponderação, analisando com razoabilidade quais são os dispositivos do ordenamento que podem ser aplicados à problemática em questão, concluindo para a solução mais viável e adequada diante do contexto jurídico nacional. A ponderação, conforme Luís Roberto Barroso e Ana Paula Barcelos, no livro “A Nova Interpretação Constitucional” (BARROSO, 2006, p. 345), é a técnica de decisão aplicável a casos difíceis (ou hard cases, do inglês) em que a técnica clássica subsuntiva se mostrou insuficiente, em especial quando a situação concreta dá ensejo à aplicação de normas que indicam soluções diferentes. São as palavras dos autores:

A dificuldade que se acaba de descrever já foi amplamente percebida pela doutrina; é pacífico que casos como esses não são resolvidos por uma subsunção simples. Será preciso um raciocínio de estrutura diversa, mais complexos [...], produzindo a regra concreta que vai reger a hipótese a partir de uma síntese dos distintos elementos normativos incidentes sobre aquele conjunto de fatos. De alguma forma, cada um

para o caso concreto, de modo que na solução final, tal qual em um quadro bem pintado, as diferentes cores possam ser percebidas, ainda que uma ou algumas delas venham a se destacar sobre as demais. Esse é, de maneira geral, o objetivo daquilo que se convencionou denominar de técnica da ponderação. [grifos dos autores]

Desta feita, a cor que deve prevalecer no caso concreto da publicidade infantojuvenil deve ser aquela que representa o direito a uma proteção especial das crianças e adolescentes. E isso, claro, conforme o posicionamento acima apontado, sem deixar de considerar e permitir a expressão dos diversos outros direitos constantes do ordenamento que conflitem de alguma forma com a proteção especial dada aos seres em desenvolvimento.

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desses elementos deverá ser considerado na medida de sua importância e pertinência

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FIDΣS Adiante, será abordado quais âmbitos do direito, e, mais especificamente, quais dispositivos jurídicos podem ser aplicados no caso da publicidade voltada para crianças e adolescentes, principalmente, ressalte-se, no que diz respeito à defesa e proteção desses indivíduos.

3.1 A Constituição Federal: direito à dignidade e respeito dos seres em desenvolvimento versus liberdade de expressão

A Constituição Federal, em seu art. 227, caput, garante às crianças e aos adolescentes a absoluta prioridade de direitos, estabelecendo, assim, o Princípio da Proteção Integral. Apreende-se tal assertiva da leitura deste dispositivo, o qual estabelece, in verbis: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Não obstante a proteção dada aos infanto-juvenis, na qual tanto a família, quanto o Estado e a sociedade em geral são responsáveis, a Constituição Federal, em seu art. 220, caput, inaugurando capítulo dedicado à comunicação social, garante o direito à liberdade de expressão dos publicitários estabelecendo que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer

Sabe-se que a Constituição Federal se consubstancia em um sistema aberto de regras e princípios, que um problema é toda questão que – ao menos aparentemente – admite mais de uma resposta, e que a tópica é a técnica do pensamento problemático (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 123). Sendo assim, não se pode negar que a problemática da publicidade infanto-juvenil requer a utilização do emergente modelo de interpretação concretizador, dando-se ao intérprete do direito a prerrogativa de escolher e aplicar a melhor solução para o caso concreto apresentado, sem deixar de considerar, obviamente, a ponderação de valores. Inocêncio Mártires Coelho (MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 113), ao tratar dos limites da interpretação constitucional e da autonomia do objeto nas ciências de espírito, com clareza dissertou sobre a impossibilidade de o aplicador do direito fugir da intenção das normas constitucionais. É o que se observa adiante, ipsis litteris:

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restrição, observado o disposto nesta Constituição”.

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FIDΣS Consoante esse paradigma, cumpre ao intérprete procurar extrair o significado inerente às formas representativas, em vez de tentar atribuir-lhes, ab extra e de modo arbitrário, ou até mesmo fraudulentamente, sentidos outros, a elas de todo estranhos ou nem longe de coincidentes com aquilo que imaginava seus criadores [grifos do autor].

Assim, e mais especificamente no caso da publicidade voltada para crianças e adolescentes, o aplicador do direito não pode fugir da intenção da norma constitucional, que no caso é a de limitar o direito à liberdade de expressão dos publicitários ao direito especial de proteção da integridade psíquica e moral da sociedade infanto-juvenil. Tal conclusão não advém unicamente de posicionamento jurídico adotado neste trabalho, decorre da própria hermenêutica constitucional, uma vez que a Constituição Federal expressamente determinou que o direito da comunicação social não poderá sofrer qualquer restrição, desde que seja “observado o disposto nesta Constituição”6 (art. 220, caput, parte final). Nas palavras da autora Tânia da Silva Pereira (2008, p. 791), no art. 220: O legislador constituinte enfatizou o princípio da hermenêutica constitucional da interpretação conforme a Constituição, deixando claro que a garantia da liberdade de expressão e manifestação do pensamento precisa respeitar de igual modo outros direitos constitucionalmente protegidos. [...] Sendo assim, por prioridade absoluta de direitos elencados no art. 227, CF deve-se entender o parâmetro a ser considerado no caso de colisão de direitos. Este é o sentido da norma, de total clareza, mas que a

Continuando seus pensamentos, ainda assevera (PEREIRA, 2008, p. 792): Voltando-se ao tema em questão, conclui-se que, quando houver o conflito entre direitos constitucionalmente garantidos, tendo de um lado o direito humano da criança (art. 227, CF) e de outro o direito econômico das emissoras de televisão, ou provedores de Internet, mascarado pela liberdade de expressão do art. 5º, CF, devese fazer a ponderação levando em conta a absoluta prioridade daqueles que estão em desenvolvimento, para se identificar o núcleo de proteção inatingível dos princípios.

6

Outra conclusão não se poderia chegar, outrossim, que, na aplicação deste dispositivo, o que o intérprete deve observar é justamente a proteção especial que recebem crianças e adolescentes.

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neblina da sociedade capitalista não permite que transpareça sua verdadeira ratio.

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FIDΣS Sendo assim, acompanha-se o pensamento acima, acrescentando que a necessária ponderação entre os princípios apresentados deve considerar o núcleo de proteção das normas expostas, fazendo com que ambos coexistam pacificamente. Desse modo, deve-se sempre observar o que as normas almejam de fato proteger, e, sendo no caso do art. 227 a integridade e dignidade da sociedade juvenil, deve-se restringir a liberdade de expressão dos agentes publicitários nos limites em que esta expressão atinja tais direitos das crianças e adolescentes, isto é, o direito a uma formação e maturação digna e saudável.

3.2 O Código de Defesa do Consumidor e a publicidade enganosa ou abusiva

Na seara do controle da publicidade enganosa ou abusiva, o Código de Defesa do Consumidor foi inovador. Antes de seu advento, existiam apenas algumas leis esparsas que cuidavam do abuso de publicidade dentro do seu âmbito de aplicação – como ocorria com a Lei nº 4.591/64, com relação ao lançamento de incorporações imobiliárias. Com o surgimento do Código de Defesa do Consumidor, isto é, da Lei nº 8.078 de 1990, criou-se regulamentação clara e genérica para tentar conter a má gestão da publicidade por aqueles que cuidam desse tipo de atividade7. O código, além de estabelecer princípios norteadores do que seja publicidade enganosa e abusiva, cuidou de prever delitos em espécie para controlá-la, além de estabelecer suas respectivas sanções8. Sobre o tratamento dado à publicidade enganosa e abusiva, leia-se o seguinte

Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 1º É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de gerar dúvidas ou induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços. § 2º É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência 7

A criação de uma regulamentação ampla e abstrata sobre o tema da publicidade era uma necessidade da sociedade em geral, sobretudo quando se observa o surgimento de diversas formas de veiculação da publicidade, muito em virtude do notável processo de evolução tecnológica, a qual também propiciou a produção de bens e serviços das mais variadas espécies (FILOMENO, 2007, p. 309). 8 O art. 67, do Código de Defesa do Consumidor, prevê punição para aqueles que praticam a conduta de “fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva”, estabelecendo pena de detenção de três meses a um ano, cumulada com multa, para quem efetue o delito.

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dispositivo do Código de Defesa do Consumidor:

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FIDΣS de julgamento e experiência da criança, desrespeite valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.9[grifos nossos].

Deve-se ter presente, para a boa compreensão do dito dispositivo, que o legislador buscou proteger de engano e de abuso todos os consumidores, mostrando uma preocupação especial – e isto deve ser reconhecido em virtude da previsão expressa do seu §2º - à deficiência de julgamento e experiência da criança – e porque não dizer, também, do adolescente, apesar de este não aparecer expressamente no dispositivo10. Assim, mesmo aqueles que são contrários a dita interpretação não podem negar que os dispositivos consumeristas dantes colacionados, colocados lado a lado de todas as normas elencadas em tópicos anteriores, bem como com as que serão tratadas a seguir, induzem à afirmação de que o ordenamento jurídico brasileiro tende a restringir a liberdade dos anunciantes frente aos direitos intrínsecos dos seres em desenvolvimento. Em suma, o ordenamento jurídico brasileiro carece apenas de legislação específica para solucionar toda a celeuma que existe sobre o tema em jurisprudência e doutrina11.

3.3 O Código Civil e a capacidade para relações de consumo

É importante enfatizar que o Código Civil de 2002, ao dispor acerca das incapacidades das pessoas naturais, inseriu os menores de dezesseis anos no seu art. 3º, rol dos absolutamente incapazes. Na concepção de Gonçalves (2009, p. 85), incapacidade “é a excepcionalmente, necessitam de proteção, pois a capacidade é a regra”. O referido Código considera que até atingir os dezesseis anos, o ser humano não tem completado o seu desenvolvimento intelectual e nem mesmo o poder de adaptação às

9

Assim, é enganosa a publicidade que, por qualquer meio, seja capaz de gerar dúvidas ou induzir a erro o consumidor; e abusiva a que se configure em uma das possibilidades elencadas não exaustivamente no parágrafo segundo do dispositivo retrocolacionado. A publicidade enganosa mais tem a ver com a veracidade das informações trespassadas pelos anunciantes, não dizendo respeito ao modus procedendi pelo qual tais informações foram veiculadas. Nas lições de Sergio Cavalieri Filho (2008, p. 117): “O Código consagrou o princípio da veracidade da publicidade ao proibir a publicidade enganosa”. 10 Nesta esteira, há que se somar aos argumentos expostos em tópicos anteriores, que também o Código de Defesa do Consumidor, mesmo que genericamente, protege as crianças e adolescentes da publicidade enganosa e abusiva, tendo em vista a especial condição em que se encontram. 11 Poder-se-ia dizer, por melhor, que falta na verdade vontade ou coragem legislativa para encerrar de vez qualquer discussão que haja sobre o tema da publicidade infanto-juvenil, encarando os poderosos que poderiam ser economicamente prejudicados com a solução do problema e assegurando às crianças e aos adolescentes direitos básicos já consagrados, porém mitigados.

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restrição legal ao exercício dos atos da vida civil, imposta pela lei somente aos que,

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FIDΣS condições da vida social, não tendo discernimento suficiente para dirigir sua vida e seus negócios. Em virtude disso, esses indivíduos devem ser representados juridicamente por seus pais, tutores ou curadores, conforme reverbera Francisco Amaral (2003, p. 232-233) no instante em que leciona: Até os 16 anos, considera-se que o ser humano não tem o necessário discernimento para a prática de atos jurídicos, pelo que não se pode validamente praticar. A incapacidade é absoluta e tais atos serão nulos [...]. A incapacidade absoluta impede a prática dos atos da vida civil. Embora com capacidade de direito, o agente não pode exercer sua vontade para produzir efeitos jurídicos. O direito afasta-o da atividade jurídica por acreditá-lo sem o necessário discernimento, por falta da idade necessária ou por sofrer de enfermidade mental, ou ainda em função de causa transitória que lhe impeça a manifestação de vontade.

Neste diapasão, verifica-se que, do mesmo modo que a criança e o adolescente não têm plena capacidade para responder por seus atos na seara privada – ao menos aquelas crianças e adolescentes menores de 16 anos –, por ainda encontrar-se em absoluta incapacidade civil e formação de personalidade, estas também não podem ser consideradas sujeitos passivos das relações de consumo. Sendo assim, não faz sentido que o público alvo das práticas publicitárias sejam crianças e adolescentes, uma vez que estes não são capazes para exercer atividades da vida civil independentemente. Assim, se não são plenamente autônomos, sendo, ao contrário, vulneráveis às influências da publicidade, não se justifica a engrenagem publicitária voltada

irão exercer os atos de consumo, isto é, aos responsáveis pelas crianças e adolescentes.

3.4 O Estatuto da Criança e do Adolescente e a proteção integral

No Estatuto da Criança e do Adolescente é possível verificar a existência de normas que regulamentam a proteção integral do jovem, sugerindo a proibição ou amortização da publicidade infanto-juvenil. Primeiramente, temos o seu art. 4º, o qual, transcrevendo o art. 227 da Constituição, estabelece que a família e, subsidiariamente, o Estado e a sociedade, devem assegurar de todas as maneiras e formas possíveis, com absoluta prioridade, os direitos constitucionais garantidos ao cidadão. Neste sentido, dispõe o referido dispositivo, in verbis:

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para este público, devendo os publicitários direcionar seus anúncios diretamente àqueles que

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FIDΣS Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução nas políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e juventude.

Dessa forma, pode-se entender por absoluta prioridade a situação de precedência que crianças e adolescentes possuem frente às adversidades da vida, devendo ser colocados em primeiro plano nas situações de proteção e socorro, nos atendimentos de serviços públicos, nas políticas públicas dos governantes e no direcionamento de recursos públicos, de forma a serem atendidas com total prioridade. O art. 7º, do Estatuto supramencionado12, continua a dispor acerca da proteção integral e, implicitamente, proíbe a publicidade infanto-juvenil, ao proteger a criança e o adolescente contra qualquer política social pública que prejudique o seu nascimento e desenvolvimento sadio e harmonioso13. É nesse sentido que Liberati (2008, p. 20) discorre, verbis: A criança e o adolescente, que estão em fase de desenvolvimento, devem merecer a

condições e programas específicos que permitam seu nascimento e desenvolvimento de forma sadia e harmoniosa.

Ainda protegendo o desenvolvimento sadio desses seres em formação, o art. 17, do Estatuto14, defende o direito ao respeito dos púberes, estabelecendo a inviolabilidade da sua integridade física, psíquica e moral. Segundo Liberati (2008, p. 21), “esses direitos são 12

Assim dispõe o art. 7º, do Estatuto da Criança e do Adolescente: “A criança e o adolescente têm direito à proteção, à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”. 13 Esta proteção se deve ao fato de o Estatuto da Criança e do Adolescente assegurar aos jovens os direitos fundamentais à vida e à saúde, conforme ditames constitucionais, inserindo seu art. 7º dentro do Capítulo I (Do Direito à Vida e à Saúde) do Título II (Dos Direitos Fundamentais) do seu Livro primeiro. 14 Desta feita, é o art. 17, do Estatuto da Criança e do Adolescente: “O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”.

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proteção especial da família, da sociedade e do Poder Público, devendo este criar

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FIDΣS valores intrínsecos que asseguram as condições que determinam o desenvolvimento da personalidade infanto-juvenil, e sem os quais o ser ‘frágil’ tem frustrada a sua evolução”. Neste sentido, pode-se verificar que os dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente, além de encontrar-se em conformidade com a regulamentação que a Constituição Federal atribui ao jovem, enfatiza a proteção integral estabelecida pelo seu art. 1º, caput, procurando amparar estes seres em todos os aspectos, sejam eles físicos, materiais, psicológicos ou morais.

3.5 O Projeto de Lei nº 5.921 de 2001 e o caminho do meio

Evidenciando um início de mudança dessa situação e uma preocupação do legislativo em regulamentar a publicidade infanto-juvenil, existe projeto de lei que, em trâmite desde 2001, já se encontra em processo de aprovação. Trata-se do Projeto de Lei nº 5.921/2001, o qual propõe uma legislação proibindo a publicidade dirigida a crianças de até 12 anos incompletos, em qualquer horário e por intermédio de qualquer suporte ou mídia. Especificamente, o projeto propõe a proibição da publicidade para crianças, como também veda a comunicação mercadológica dirigida a este público, tais como anúncios impressos, comerciais televisivos, spots de rádio, banners, sites na internet, embalagens, promoções e disposição dos produtos nos pontos de vendas15. Conforme sabemos, o marketing voltado para o público infanto-juvenil, no Brasil, não possui regulamentação legal específica, ficando a cargo das agências publicitárias procederem à auto-regulamentação. O que impende, no presente, ressaltar, é que esse modelo

quem mais tem interesse na plena liberdade de expressão e comunicação: os publicitários. Neste desiderato, o projeto de lei nº 5.921/2001 surgiu como uma perspectiva de solução para o problema. Ele procura, neste sentido, encontrar o caminho do meio que poderá levar à conciliação da liberdade de expressão e comunicação dos publicitários, defendida com restrições pela Constituição Federal – como visto supra –, com os direitos protetivos de

15

O projeto também proíbe que o elenco infantil participe de qualquer tipo de publicidade ou comunicação mercadológica, exceto no caso de campanhas de utilidade pública relacionadas a informações sobre boa alimentação, segurança, educação, saúde e outros assuntos referentes ao melhor desenvolvimento da criança. Com relação aos adolescentes, o substitutivo determina que a publicidade e a comunicação mercadológica devem respeitar a sua ingenuidade, credulidade e inexperiência, não induzindo, mesmo implicitamente, o sentimento de inferioridade caso o jovem não consuma determinado produto ou serviço, além de não induzir a qualquer espécie de violência.

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de auto-regulamentação faz com que a atividade publicitária fique à mercê da conveniência de

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FIDΣS crianças e adolescentes, sugerindo as limitações necessárias à publicidade relacionada às crianças e aos adolescentes e respeitando o seu desenvolvimento intelectual incompleto. Em que pese as afirmações explanadas, verifica-se aqui o papel fundamental do Poder Judiciário na adoção de soluções para os casos concretos enquanto não existe lei específica – sobretudo quando se pensa na incipiência da construção jurisprudencial sobre o tema. Este Poder deve encontrar o caminho do meio16 na solução do estudado conflito de direitos, uma vez que não se pode afetar a economia e limitar completamente a liberdade de expressão dos publicitários nem ignorar a situação de desenvolvimento intelectual dos infantes.

4 A ATUAÇÃO DO CONAR E DO INSTITUTO ALANA

Feitas as considerações acerca das normas constantes do ordenamento jurídico brasileiro que são aplicáveis ao tema, faz-se necessário realizar a uma breve explanação sobre alguns institutos criados no país para regulamentar o tema da publicidade, quais sejam: o CONAR – Conselho de Auto-Regulamentação Publicitária –, e o Instituto Alana. O CONAR é uma organização da sociedade civil fundada por entidades do mercado publicitário brasileiro com o objetivo de regular a publicidade no país 17. O Instituto Alana, por sua vez, é uma organização, sem fins lucrativos, que desenvolve projetos com o intuito de defender os direitos das crianças e dos adolescentes no âmbito do consumo em geral, principalmente no que diz respeito ao consumismo excessivo ao qual são expostos.

sobre o tema, gera o consumismo exacerbado dos seres em formação, acarretando

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Este caminho do meio, cumpre esclarecer, seria aquele que levasse à restrição da liberdade de expressão dos publicitários na medida em que essa liberdade possa influenciar o desenvolvimento intelectual dos seres em formação física, intelectual e moral. Assim, sugere-se uma limitação mais ostensiva da publicidade infantil, em todos os horários ou através de um controle rígido das formas divulgação (que não poderiam fazer uso de artifícios tecnicamente formulados para influenciar sua opinião), e uma limitação mais moderada da publicidade voltada para adolescentes, limitando-se horários de exibição ou tipos de produtos a serem divulgados (tendo em vista que estes últimos já possuem certa capacidade de discernimento). 17 Sendo mantido com recursos das principais empresas e entidades do próprio mercado, defende a necessidade de se proteger cada vez mais o público infanto-juvenil, visto que este se encontra com personalidade ainda em formação e, consequentemente, presume-se que sejam imaturos para envolver-se com o consumo e seus apelos. Tais informações podem ser apreendidas do próprio “Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária”, disponível no site do CONAR, qual seja: <http://www.conar.org.br>. Acesso em: 29 set. 2011.

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A publicidade voltada ao público infanto-juvenil, de acordo com estudos e pesquisas

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FIDΣS consequências, como: obesidade infantil, erotização precoce, banalização da agressividade e violência, estresse familiar, entre outras18. O Instituto Alana, por meio de seus projetos, debate e aponta justamente formas de minimizar esses impactos negativos gerados pelo investimento na mercantilização da infância e da juventude, buscando, pioneiramente, proibir legal e expressamente toda e qualquer comunicação mercadológica tendo como alvo a criança no Brasil. As tentativas do Instituto mostram-se essenciais para a proteção dos direitos infantojuvenis no país, uma vez que pesquisas mostram que a preocupação do mercado em realizar propagandas publicitárias voltadas ao público infanto-juvenil decorre do fato do grande poder de influência que filhos possuem nas decisões de compras da família – 80% das compras de uma família brasileira são influenciadas pelas crianças19. O CONAR, por sua vez, tem a missão primordial de atender às denúncias de consumidores, autoridades, dos seus associados, ou ainda aquelas formuladas pelos integrantes da sua própria diretoria (PEREIRA, 2008, p. 810). Essas denúncias são julgadas pelo Conselho de Ética do CONAR que toma por referência o Código Brasileiro de AutoRegulamentação Publicitária20, oferecendo total e plena garantia do direito de defesa aos responsáveis pelo anúncio21. O supracitado código é, frise-se, norma de auto-regulamentação, proposto pela própria classe publicitária, possuindo a “função de zelar pela liberdade de expressão comercial e defender os interesses das partes envolvidas no mercado publicitário, inclusive os do consumidor” (PEREIRA, 2008, p. 811). Neste sentido, por se preocupar apenas com o que está sendo ou foi veiculado, o

18

A televisão, como é fácil perceber, é o principal meio publicitário utilizado para persuadir os consumidores mirins, e se justifica pelo fato de a criança brasileira passar em média 4 horas 50 minutos e 11 segundos por dia com os olhares voltados para esse instrumento de comunicação. É por isso que muitas das propagandas direcionadas aos jovens consumidores não são de produtos infantis, mas de produtos direcionados a adultos, utilizando-se as crianças e os adolescentes como excelentes meios de persuasão da compra dos pais. Mais informações estão disponíveis no tópico “comunicação: perguntas e respostas” no site do Instituto Alana: <http://www.alana.org.br/CriancaConsumo/Comunicacao.aspx?page=1&v=4>. Acesso em: 18 out. 2010. 19 Tal informação foi retirada do tópico “Criança, mídia e consumo” do Projeto Criança e Consumo do Instituto Alana, no site: <http://www.escolatrilhas.com.br/projetos/projetos_crianca.html>.Acesso em: 18 out. 2010. 20 Este Código, criado no final dos anos 70, nasceu como alternativa à intenção do governo federal de sancionar lei que criaria espécie de censura prévia à propaganda. 21 Em caso de comprovação da procedência da denúncia, é função do conselho recomendar aos veículos de comunicação a suspensão da exibição da peça ou sugerir correções à propaganda.

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CONAR não exerce censura prévia sobre peças publicitárias, circunstância que evidencia a

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FIDΣS carência do ordenamento de meios para evitar, desde logo, isto é, antes de sua veiculação, anúncios abusivos no que tange à capacidade intelectual de crianças e adolescentes22.

5 A INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA COMO ALTERNATIVA HERMENÊUTICA SOLUCIONADORA DA OMISSÃO LEGISLATIVA

Acreditando que não basta mostrar o problema, neste ponto do estudo buscaremos indicar alternativas capazes de solucionar a celeuma jurídica que permeia a questão da publicidade infanto-juvenil. Com efeito, Flávia Piovesan, Professora Doutora e Procuradora do Estado de São Paulo, em sua obra “Temas de Direitos Humanos” (2003, p. 297), elucida: Apesar da clareza dos comandos normativos nacionais e internacionais em atribuir direitos às crianças e aos adolescentes, a ainda recente luta pela democratização da sociedade brasileira, as gritantes desigualdades sociais que a permeiam e o desafio de incorporação de novos paradigmas igualitários e democráticos fazem com que persista um padrão de desrespeito aos mais elementares direitos humanos, de que são titulares crianças e adolescentes. [...] É emergencial romper, em definitivo, com as reminiscências de uma cultura e práticas autoritárias, que inibem a construção emancipatória dos direitos humanos das crianças e adolescentes, violando, sobretudo, seu direito fundamental ao respeito e à dignidade.

Diante desse cenário, deve-se ter presente que a solução imediata para o problema reside na interpretação sistemática do ordenamento jurídico, o qual induz a um

medida dos níveis da capacidade de discernimento de cada um. Por interpretação sistemática entende-se a hermenêutica que busca compreender e aferir a vontade do ordenamento, ou sistema jurídico, considerando que este constitui um todo normativo. Coaduna com essa ideia Luís Roberto Barroso (2009, p. 140), quando afirma: A interpretação sistemática é fruto da ideia de unidade do ordenamento jurídico. Através dela, o intérprete situa o dispositivo a ser interpretado dentro do contexto normativo geral e particular, estabelecendo as conexões internas que enlaçam as

22

Não obstante a isso, não se pode negar a importância dos ditos institutos na repressão da publicidade abusiva. Eles são o passo inicial para uma regulamentação específica do problema e para a criação de órgãos governamentais autônomos que consigam, de fato e desvinculadamente, controlar a atuação publicitária.

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posicionamento tendente a proteger crianças e adolescentes da publicidade abusiva, na

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FIDΣS instituições e as normas jurídicas. [...] No centro do sistema, irradiando-se por todo o ordenamento, encontra-se a Constituição, principal elemento de sua unidade, porque a ela se reconduzem todas as normas no âmbito do Estado. [...] Ora bem: a ordem jurídica infraconstitucional é elaborada ao longo do tempo, no curso de muitas décadas, e espelha períodos históricos diversos [...]. Pode parecer implausível a tarefa de encontrar coerência e sistematicidade em normas jurídicas sujeitas a influências tão aleatórias e variadas. Essa tarefa, de fato, não se viabilizaria se todas as normas, mesmo as anteriores à Constituição em vigor, não recebessem dela um novo fundamento de validade, subordinando-se aos valores e princípios nela consagrados.

Sendo assim, faz-se necessário encontrar a coerência das normas neste trabalho anteriormente expostas com base nos valores e princípios da Constituição. É preciso encarar as disposições do Código de Defesa do Consumidor, do Código Civil e do Estatuto da Criança e do Adolescente como um todo unitário que deseja informar a vontade da Constituição Federal23, que é a de garantir os direitos da criança e do adolescente com absoluta prioridade. Ora, se a Constituição Federal, através de uma interpretação sistêmica de seus dispositivos, sugere, como demonstrado retro, a limitação da liberdade de expressão dos publicitários frente à absoluta prioridade dos direitos infanto-juvenis, outra interpretação não poderia ser dada aos dispositivos infraconstitucionais que podem ser aplicados na solução do tema. Isto posto, conclui-se que, enquanto não existe norma específica que seja aplicável ao problema enfrentado, deve-se de aplicar a vontade do ordenamento jurídico, sempre

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do quanto sobredito, pode-se asseverar que a problemática da publicidade infantojuvenil no panorama jurídico brasileiro se deve à ausência de construção legislativa que estabeleça em que medida cada seara de direitos – tanto os dos publicitários como os das crianças e adolescentes – deve ser limitada para que a outra subsista.

23

A Constituição de um país é a sua norma fundamental, não existindo Estado sem Constituição, “visto que toda sociedade politicamente organizada contém uma estrutura mínima” no que se refere à composição e ao funcionamento da ordem política, fato que exprime o aspecto material da Constituição(BONAVIDES, 2008, p. 80-81). As normas constitucionais, assim, foram inseridas no topo da pirâmide normativa de Kelsen, gozando de supremacia diante de todas as outras normas do ordenamento, consideração que induz a noção de interpretação sistemática do sistema jurídico com base nos ditames constitucionais.

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considerando a intenção maior da Constituição Federal.

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FIDΣS Apesar da carência legislativa, Código de Defesa do Consumidor, Código Civil e Estatuto da Criança e do Adolescente devem ser levados em consideração para que a vontade da Constituição Federal seja informada e aplicada aos casos concretos. Em sendo assim, outra conclusão não se poderia chegar que não a de que deve ocorrer a limitação do direito à liberdade de expressão e comunicação dos publicitários frente aos cuidados especiais que carecem crianças e adolescentes, cuidados estes representados por seus direitos absolutamente prioritários. Têm-se, na problemática jurídica apresentada, nítido exemplo de caso em que os aplicadores do direito devem fazer uso de técnica de interpretação – mais precisamente, da interpretação sistemática – para encontrar a solução mais razoável e ponderada para o problema, preenchendo a existente lacuna do ordenamento. Assim, e por fim, não possuindo as crianças autonomia intelectual e moral e estando os adolescentes em fase de construção opinativa crítica, entende-se que publicidade voltada para crianças deve ser paulatinamente extinta e publicidade voltada para adolescentes deve ser controlada.

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PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2003.

CHILDREN’S

ADVERTISING:

PROHIBITION

AND

AMORTIZATION

BY

ABSTRACT This study aims to make brief approaches to the implication ofnegative juvenile publicity. Discusses how this type of disclosurehas been gaining the attention of law due to the intensedevelopment of the media. Through the exposure of several provisions of law, seeks to demonstrate the role of interpreter in the solution to the conflict between the rights of advertisers and children and youth as there are no specific regulations. It suggests the use of the method of systematic interpretation, concluding that the best solution lies in the integration

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SYSTEMATIC INTERPRETATION OF BRAZILIAN LAW

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FIDÎŁS of rights, gradually eliminating advertising to children and allowing youngsters with exceptions. Keywords: Advertising. Child. Adolescent. Planning. Systematic

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Interpretation.

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FIDΣS Recebido 24 fev. 2012 Aceito 29 abr. 2012

TRANSEXUALIDADE: CIRURGIA DE ADEQUAÇÃO AO SEXO E PROBLEMAS JURÍDICOS DELA DECORRENTES Marcel Fernandes de Oliveira Rocha 

RESUMO O presente trabalho aborda a problemática que envolve o transexual, portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual que busca a cirurgia de mudança de sexo a fim de amenizar esse transtorno. Para tanto, será detalhado o conceito de transexual, a diferença em relação ao homossexual, os requisitos para procedimento cirúrgico e as consequências jurídicas após a mudança de sexo. Será ressaltada a importância da adoção de medidas direcionadas à proteção do transexual à exposição a situações vexatórias e à sua inclusão na sociedade. A metodologia utilizada será a análise doutrinária, legislativa e jurisprudencial brasileiras, pautada no

Palavras-chave: Identidade Sexual. Cirurgia. Inclusão.

1 INTRODUÇÃO

A transexualidade consiste em uma experiência frustrante do ser humano em não ver mente e corpo se harmonizarem. O transexual, além da angústia de se sentir preso em um corpo que reconhece não ser seu, encontra-se sujeito ao forte preconceito da sociedade, que o exclui das relações sociais por considerá-lo um “ser estranho”. Em sua resolução de número

Graduando em Direito, pela UNIRN.

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método dialético.

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FIDΣS 1.652/2002, o Conselho Federal de Medicina define o transexual como portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e ou autoextermínio.

Muitos são os problemas que cercam o indivíduo

portador de tal desvio, dentre os quais se pode citar, a dificuldade de inserção no mercado de trabalho, acentuada pela rejeição social e familiar. Nesse sentido, o desemprego não tem relação com a incapacidade, mas é favorecido pela inadequação do registro civil à aparência. A matéria é de interesse multidisciplinar, envolvendo vários especialistas a exemplo dos cirurgiões plásticos, urologistas, geneticistas, neuropsiquiatras, psicólogos, psicanalistas, assistentes sociais, entre outros. Faz-se, portanto, necessário um estudo mais aprofundado em relação ao tema, o qual proporcione, além do conhecimento necessário a respeito dos requisitos para a permissão da cirurgia, o entendimento das consequências jurídicas da mudança de sexo, dando ênfase à elucidação dos reflexos diretamente ligados ao registro civil, aos benefícios previdenciários e às questões sucessória, trabalhista e esportiva. A metodologia utilizada será a pesquisa bibliográfica, com análise da legislação e jurisprudência brasileiras junto com o método dialético. Esta pesquisa terá como estudo a transexualidade no Brasil e no Estado do Rio Grande do Norte, com o estudo do posicionamento dos tribunais brasileiros e de sua jurisprudência, comparada ao posicionamento de outros países, a exemplo dos Estados Unidos, Alemanha e Itália, entre outros, acerca da matéria. Para a realização do trabalho é necessário levantar informações do conceito de transexual, já visto, da diferença entre homossexual e transexual e sobre seus direitos. Depois de realizada esta etapa, deve-se, na pesquisa, descrever todo o procedimento para a permissão

médico. Por fim, será feita a análise da doutrina e jurisprudência para se conhecer o posicionamento dos tribunais a respeito do tema tratado.

2 SEXUALIDADE HUMANA E IDENTIDADE SEXUAL

A sexualidade pode ser vista sob quatro aspectos. O primeiro deles é o gênero que corresponde ao sexo da pessoa, nesse caso temos a divisão do sexo masculino e feminino, além dos hermafroditas, que possuem ambas as características sexuais. O segundo ponto a ser abordado é a orientação sexual que diz respeito à atração que se sente por outros indivíduos. Nesse caso, fala-se em homossexualismo – atração por aquele

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da cirurgia e o acompanhamento dos profissionais, também citando qual tipo de obrigação do

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FIDΣS de mesmo sexo –, heterossexualismo – atração pelo sexo oposto –, bissexualismo – atração por ambos os sexos– e, por fim, assexualismo – não sentem atração sexual. Em terceiro lugar, deve-se abordar o papel sexual que está relacionado com o comportamento do gênero que a pessoa desempenha na sociedade e, por último, fala-se da identidade sexual, que é a maneira do indivíduo se perceber em relação ao gênero que possui. É sob esse aspecto que é inserido o transexual, à medida que, pertence a determinado gênero, mas se sente como se fosse de outro. Segundo Giddens (2005, p.115):

Assim como as noções tradicionais de gênero estão sendo transformadas, as idéias acerca da sexualidade também estão sofrendo mudanças dramáticas. Nas últimas décadas, nos países ocidentais, aspectos importantes da vida sexual das pessoas foram alteradas de maneira fundamental. Nas sociedades tradicionais, a sexualidade estava intimamente ligada ao processo de reprodução, mas, em nossa época, desvencilhou-se dele. A sexualidade tornou-se uma dimensão da vida que cada indivíduo pode explorar e amoldar. Se a sexualidade foi “definida” em termos de heterossexualidade e monogamia no contexto das relações matrimoniais, agora há uma crescente aceitação de diferentes formas de comportamento e orientações sexuais numa variedade abrangente de contextos.

Há, destarte, uma crescente manifestação de diferentes formas de comportamento e orientações sexuais, entretanto, alguns conceitos não estão claros para a sociedade. O senso comum costuma confundir homossexualidade e transexualidade. Contudo, trata-se de

rejeição pelos seus atributos genitais naturais e, consequentemente, interesse pela mudança de sexo, enquanto, por outro lado, o homossexual não tem o intuito de mudar de sexo nem o repudia, busca, apenas, relações afetivas com indivíduos do mesmo gênero. Hoje, não se pode mais restringir o sexo apenas na questão biológica. Deve-se levar em consideração os vários aspectos da sexualidade. No mesmo sentido, afirma a Ministra Nancy Andrigui (2009, p. 4):

Quando se iniciou a obrigatoriedade do registro civil, a distinção entre os dois sexos era feita baseada na conformação da genitália. Hoje, com o desenvolvimento científico e tecnológico, existem vários outros elementos identificadores do sexo, razão pela qual a definição do gênero não pode mais ser limitada somente ao sexo aparente. Todo um conjunto de fatores, tanto psicológicos quanto biológicos,

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conceitos distintos: o transexual possui a convicção de pertencer ao sexo oposto, tendo

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FIDΣS culturais e familiares, devem ser considerados. A título exemplificativo, podem ser apontados, para a caracterização sexual, os critérios cromossomial, gonodal, cromatínico, da genitália interna, psíquico ou comportamental, médico-legal, e jurídico.

3 BIOÉTICA, BIODIREITO E TRANSEXUALIDADE

Nos últimos anos, percebe-se um grande avanço científico da medicina, que hoje realiza feitos até o início do século passado inimagináveis. Pode-se citar como exemplos a castração química de um criminoso ou deficiente mental voltado para a prática de delitos sexuais contra criança ou adolescente e o prolongamento do tempo de vida de um paciente em fase terminal numa UTI – que se torna um contraponto para a legalização da eutanásia –, dentre outras inovações da medicina. Por um lado, o progresso científico traz inúmeros benefícios à sociedade, como a descoberta da cura de doenças que não possuíam tratamento, mas, como diz Schaefer (2007, p. 33):

A Ética e o Direito não têm sido capazes de acompanhar as inovações biotecnológicas que colocam em discussão velhos dilemas, paradigmas e valores tradicionais, considerados absolutos e imutáveis como, por exemplo, vida e morte. São avanços que podem alterar completamente o rumo da vida humana presente e futura e, por isso, merecem atenção especial, com a imposição de novos e mais dinâmicos limites éticos, morais e jurídicos, capazes de garantir a efetiva tutela dos

Desta forma, torna-se fundamental o estudo da Bioética, que consiste no estudo da moralidade da conduta humana na área das ciências da vida, e o conhecimento das práticas médicas em particular, o que permitirá à população refletir a respeito do propósito perseguido pelos transexuais na busca de uma vida mais digna, concretizando um princípio constitucional atinente ao direito da personalidade: o direito à identidade sexual. No entendimento de Tereza Rodrigues Vieira (2003, p. 1): “A inclusão do estudo do transexualismo na bioética se deve principalmente ao fato do assunto abranger a dignidade da pessoa humana, os princípios da bioética, a licitude e a eticidade da intervenção cirúrgica e a multidisciplinaridade”.

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direitos humanos e dos direitos fundamentais.

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FIDΣS Alguns princípios que regem a bioética são o da autonomia, beneficência, nãomaleficência, que constitui um desdobramento do anterior, e o da justiça. O princípio da autonomia requer que o profissional da saúde respeite a vontade do paciente, reconhecendo o domínio deste sobre sua própria vida e respeitando a sua intimidade. Tem-se o princípio da beneficência juntamente com o da não-maleficência, que requer que o profissional use o tratamento para o bem do paciente, segundo sua capacidade e juízo, e nunca para fazer o mal ou praticar injustiça. Por último, o princípio da justiça defende a imparcialidade na distribuição dos riscos e benefícios pelos profissionais da saúde, tratando todos os pacientes de maneira igual. Tais princípios mostram que é lícita a intervenção cirúrgica no sujeito transexual, tendo em vista que a cirurgia tem por finalidade adaptar o corpo à mente e minimizar os transtornos e constrangimentos vividos por tais pessoas. Para Maria Helena Diniz (2009, p. 7):

O direito não pode furtar-se aos desafios levantados pela biomedicina, surge uma nova disciplina, o biodireito, estudo jurídico que, tomando por fontes imediatas a bioética e a biogenética, teria a vida por objeto principal, salientando que a verdade científica não poderá sobrepor-se à ética e ao direito, assim como o progresso científico não poderá acobertar crimes contra a dignidade humana.

Com isso, o biodireito é o estudo jurídico que irá regulamentar os avanços da biologia, biotecnologia e medicina, com base em três grandes pilares do direito: o Direito Constitucional, Civil e Penal. A relação com o Direito Constitucional é que este tem por

saúde. Tal proteção será também objetivo da atuação do biodireito. Por sua vez, a relação com o Direito Civil, ramo do direito privado, está relacionada aos direitos da personalidade e ao direito de dispor do próprio corpo. Por fim, a relação com o Direito Penal encontra-se no fato de este apontar quais condutas são consideradas antijurídicas pelo ordenamento jurídico vigente. As fontes do direito são os fatos jurídicos – acontecimentos de origem natural ou humana que geram consequências jurídicas – de que resulta a norma. No biodireito, tem-se por fontes a biotecnologia e a medicina, que são responsáveis por uma revolução na vida do ser humano com descobertas ligadas no âmbito das ciências da vida e da saúde humana. Com

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estudo a Constituição Federal, que protege os direitos fundamentais como a vida, liberdade e

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FIDΣS isso, além da bioética que, como já conceituada anteriormente, o biodireito consiste em um estudo sistêmico da conduta do ser humano nas ciências da vida e da saúde.

4 TRANSEXUALIDADE E OS DIREITOS DA PERSONALIDADE

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, passou-se a proteger com maior amplitude o direito da personalidade, diante da Declaração Universal dos direitos do Homem de 1948 e da Convenção Européia para Salvaguarda dos Direitos do Homem e Liberdades Fundamentais de 1950. Seguindo a mesma diretriz, o Código Civil de 2002 passou a tratar dos direitos da personalidade nos seus artigos 11 a 21. Com o escopo de conceituar essa categoria de direito, remete-se às palavras da ilustre doutrinadora Maria Helena Diniz (2009, p. 122) que define o direito da personalidade como “o direito da pessoa de defender o que lhe é próprio, como a vida, a identidade, a liberdade, a imagem, a privacidade, a honra etc. É o direito subjetivo, convém repetir, de exigir um comportamento negativo de todos, protegendo um bem próprio, valendo-se de ação judicial”. Percebe-se, a partir dessa definição, que os direitos da personalidade têm por objetos os modos de ser, físicos ou morais, do indivíduo, à medida que esse direito está associado ao princípio da proteção da dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito da República Federativa do Brasil, conforme o disposto no artigo 1º, III 1, da Constituição Federal. Como visto anteriormente, o biodireito possui como um dos pilares de sustentação o

artigo 13 do Código Civil, situado no capítulo II, referente aos direitos da personalidade, dispõe que: “Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes”. Em relação a este artigo, podem ser feitas duas interpretações. A primeira delas afirma que o dispositivo permite a cirurgia de adequação ao sexo, tendo em vista que o sujeito é portador de desvio psicológico permanente, evitando assim a possibilidade de suicídio. Por outro lado, há uma interpretação mais rígida, que não permite a

1

“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento: [...] III- A dignidade da pessoa humana.”

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direito civil, que remete ao direito da personalidade e ao direito de dispor do próprio corpo. O

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FIDΣS disposição do próprio corpo no caso do transexual, o que iria contrariar os bons costumes, além de gerar a perda irreparável dos órgãos sexuais. Percebe-se que a primeira interpretação do artigo 13 do Código Civil é a que prevalece, segundo a IV Jornada de Direito Civil, na qual foi aprovado o Enunciado de número 276, estabelecendo que:

O artigo 13 do Código Civil, ao permitir a disposição do próprio corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias de transgenitalização, em conformidade com os procedimentos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a consequente alteração do prenome e do sexo no Registro Civil.

Recentemente, o grande obstáculo para os transexuais deixou de ser a permissão da cirurgia de adequação do sexo, pois, com o passar do tempo, vem se aperfeiçoando e sendo crescentemente permitida pelo Conselho Federal de Medicina, e passou a envolver a questão do registro civil, embora a sua retificação já seja admitida pelo Superior Tribunal de Justiça, que é a conclusão para o equilíbrio entre mente e corpo do sujeito. Sobre o assunto aborda Maria Berenice Dias (2011, p. 140):

A identificação do indivíduo é feita no momento do nascimento, por meio do critério anatômico, de acordo com o aspecto de sua genitália externa. O sistema jurídico, cioso de seus mecanismos de controle, estabelece, desde logo, com o nascimento, uma identidade sexual teoricamente imutável e única. No entanto, a aparência externa não é uma única circunstância para atribuição da identidade sexual, pois com o lado externo concorre o elemento psicológico. Assim, sexo civil ou jurídico deve

Com isso, deve-se perceber o sexo em suas diferentes acepções: biológica, psíquica e civil. O sexo biológico compreende as características corporais do indivíduo, por outro lado o sexo psíquico compreende uma reação psicológica do sujeito diante de determinados estímulos. Por último, tem-se o sexo civil que também se denomina como sexo jurídico ou legal que é determinado no registro do nascimento de acordo com a relação da pessoa com a sociedade. A legislação brasileira traz tratamento diferenciado em razão do sexo. Por isso, antecipando um pouco o debate sobre o registro civil, deve ser permitida a retificação do nome, tendo em vista que para analisar o sexo são necessárias suas diferentes acepções para a identificação sexual do indivíduo, abandonando-se a definição pela avaliação apenas do critério do sexo biológico.

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espelhar e coincidir com o sexo vivido socialmente pela pessoa.

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FIDΣS

5 REQUISITOS PARA PERMISSÃO DA CIRURGIA DE ADEQUAÇÃO AO SEXO

Para o reconhecimento de um transexual é necessário verificar os critérios de identificação que são encontrados no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. São eles: forte e persistente identificação com o sexo oposto; desconforto renitente com seu sexo biológico; não-concomitância dessa perturbação mental com uma condição intersexual física, e sofrimento psíquico intenso e lesivo às suas atividades ocupacionais e sociais. Primeiramente, antes de elencar os requisitos para permissão da cirurgia de adequação ao sexo, é necessário conhecer quais possíveis causas a transexualidade pode sobrevir. Não há consenso ou predominância na opinião dos especialistas em relação a essa questão, mas a alteração numérica ou estrutural de cromossomos sexuais, estresse inusitado na gestante e fatores ambientais adversos, que prejudicam a identificação do menino com a figura paterna na infância, são elencadas como possíveis causas. A cirurgia de adequação ao sexo é permitida no caso dos intersexuais, tendo em vista que, nesse caso, há uma indeterminação sexual. Esta intervenção cirúrgica visa definir o sexo do sujeito, pois esse tem sexualidade imprecisa, por isso, a cirurgia é lícita nesses casos e consequentemente a retificação do nome e do registro civil. Em sua resolução de número 1.482/97, o Conselho Federal de Medicina permitiu a cirurgia de adequação ao sexo desde que presentes o desconforto com o sexo anatômico

primários e secundários do próprio sexo e ganhar os do sexo oposto; a permanência do distúrbio de identidade sexual de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos; a ausência de outros transtornos mentais e a avaliação de equipe médica composta por vários especialistas. O ideal é a realização da cirurgia em transexual solteiro a fim de evitar constrangimento aos filhos. Negar permissão de proceder à cirurgia em transexual casado, contudo, torna-se uma situação de restrição de direitos do sujeito, devendo ser aceita desde que se comprove que o paciente sofre mesmo do desvio psicológico permanente. Caso seja realizada, permanecem inalterados os direitos e deveres entre transexual e seus filhos, sob a condição de que aquele não venha ocasionar, com suas maneiras, qualquer dano moral ou material à educação destes, podendo ter consequência restritiva no direito de visita.

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natural; o desejo compulsivo expresso de eliminar a genitália externa, perder os caracteres

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FIDΣS Vale ressaltar a importância da análise criteriosa para a concessão da cirurgia com o acompanhamento de vários especialistas como urologista, psiquiatra, geneticista e psicólogo pelo período de dois anos, tendo em vista o fato de a cirurgia acarretar a perda irreparável dos órgãos sexuais. Houve um caso em que um casal húngaro, contemplando uma ideia de aventura ou fantasia, resolveu inverter os papéis com a cirurgia de adequação ao sexo feita com o auxílio de uma equipe médica de Budapeste. A legislação brasileira, neste caso, deve vedar a concessão da cirurgia, tendo em vista que para a sua autorização deve ser demonstrado o desconforto com a genitália e o desejo compulsivo de eliminá-la, acompanhado pelo período de dois anos com uma equipe médica. Em 19 de agosto de 2009, o Ministério da Saúde editou a Portaria de número 457, incorporando a cirurgia de adequação ao sexo dos transexuais, que convencionou chamar de “processo transexualizador”, ao Sistema Único de Saúde. Ao adotar tal medida, essa Portaria levou em consideração um direito fundamental encontrado no artigo 1962 da Constituição Federal, e, no mesmo sentido, assevera Vieira (citado por Pereira, 2010, p.847):

O direito à saúde é tutelado pela Constituição Federal brasileira e implica o direito à busca do melhor e mais adequado tratamento para o problema. No caso em tela [transexualidade], significa reivindicar o bem-estar geral, psíquico, físico e social, o qual contribuirá para o desenvolvimento da personalidade, superando a angústia experimentada com a imposição de uma genitália repulsiva, dissociada da sua

6 CRIME DE MUTILAÇÃO, RESPONSABILIDADE PENAL E OBRIGAÇÃO DO MÉDICO

O Conselho Federal de Medicina, em sua resolução de número 1482/1997, que foi substituída, em 6 de novembro de 2002, pela resolução de número 1652/2002, considera que a cirurgia não constitui, desde que precedida de avaliação criteriosa feita por equipe multidisciplinar especializada, crime de mutilação, previsto no artigo 129 do Código Penal, por ter fins terapêuticos de adequar a genitália ao sexo psíquico. Com isso, não há que se falar

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“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”.

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verdadeira identificação.

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FIDΣS em crime de lesão corporal, pela ausência de dolo, constituindo uma conduta atípica e, portanto, que não configura crime. Além de não haver possibilidade de tipificar a conduta cirúrgica pelo crime previsto no artigo 129, § 2º, inciso III3, do Código Penal, por ausência de dolo, também não há de se falar em antijuridicidade. O médico não é responsabilizado penalmente, tendo em vista que, em regra, a cirurgia de adequação do sexo decorre de uma excludente de ilicitude do exercício regular de direito, prevista no artigo 23, inciso III4 do Código penal, pela existência de um interesse terapêutico. É importante destacar que para se configurar o exercício regular de direito faz-se necessária a presença de dois requisitos: o consentimento do ofendido e o interesse e recomendação médicas. Quanto ao papel do médico, o direito obrigacional se divide em duas vertentes em relação ao fim que se destina: obrigação de meio e de resultado. A obrigação de meio é aquela em que o obrigado se compromete a empregar todos os elementos possíveis (meios, conhecimentos) a fim de alcançar determinado resultado, todavia, não tem como se responsabilizar por ele. Por outro lado, as obrigações de resultado são as que o devedor só se exonera da obrigação quando ocorre o resultado esperado e o fim prometido é alcançado. Em relação à cirurgia de adequação do sexo, por ter o fim terapêutico de adequar a genitália ao sexo psíquico, o médico possui obrigação de meio, tendo em vista não poder garantir a cura mental do paciente nem a aquisição do orgasmo, sendo sua responsabilidade subjetiva. Contudo, em relação às necessidades fisiológicas básicas, o médico possui obrigação de resultado, sendo sua responsabilidade objetiva. No que tange as necessidades fisiológicas básicas, a Folha de São Paulo do dia

dano oriundo da cirurgia de adequação ao sexo, pois passou a ter dificuldades em urinar.

7 REGISTRO CIVIL E OUTRAS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS

Depois de realizada, a cirurgia de adaptação ao sexo trará inúmeras repercussões jurídicas no que tange ao registro civil, aos benefícios previdenciários, assim como ao direito sucessório, trabalhista, esportivo, dentre outros. 3

“Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: § 2° Se resulta: III - perda ou inutilização do membro, sentido ou função;” 4 “Não há crime quando o agente pratica o fato: III- Em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.”.

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30/03/1994 relata um episódio de um transexual israelense que obteve uma indenização por

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FIDΣS Inicialmente, deve-se tratar da grande problemática que envolve esse tema: a questão do registro civil, um termo jurídico que designa o registro dos fatos da vida de um indivíduo, como nascimento, casamento, divórcio e morte. Na Lei de Registros Públicos prevalecia a regra da imutabilidade do nome, pelo fato de os documentos deverem ser fiéis aos fatos da vida e por questão de segurança jurídica. Todavia, a lei, em seu artigo 555, diz que os oficiais do registro civil não irão registrar prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores; permite que seja feita a correção do nome excepcionalmente, de acordo com a manifestação do juiz ao qual estiver sujeito o registro, em seu artigo 576, e, no artigo 58, admite a substituição do prenome por apelidos públicos e notórios. Percebe-se, portanto, que, em nenhum momento, os dispositivos da Lei de Registros Públicos vedam a alteração de prenome nos casos de mudança de sexo. No uso do direito comparado em relação ao registro civil, Maria Helena Diniz7 (2009, p.294) aborda que no Direito Português e Americano: João Paulo F. Remédio Marques observa que o reconhecimento da adequação e retificação do sexo reside no artigo 26 da Constituição portuguesa, que consagra o direito à identidade pessoal, entendendo que o tratamento e a intervenção cirúrgica que visam modificar sexo são terapêuticos, resguardando o direito à saúde física e psíquica. Deveras, o estado de saúde do transexual só melhorará quando fizer um tratamento hormono-cirúrgico e obtiver a alteração do nome e do sexo no registro civil. Isso é assim porque a conversão sexual traz implicações jurídicas de toda sorte, como a possibilidade de casamento, direito à aposentadoria, obrigação de prestar serviço militar ou direito de se engajar nas Forças Armadas, direito

declarou que aquele que mudasse de sexo podia desfrutar de todos os direitos que têm os do mesmo sexo, inclusive o de casar.

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“Quando o declarante não indicar o nome completo, o oficial lançará adiante do prenome escolhido o nome do pai, e na falta, o da mãe, se forem conhecidos e não o impedir a condição de ilegitimidade, salvo reconhecimento no ato. Parágrafo único: Os oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores. Quando os pais não se conformarem com a recusa do oficial, este submeterá por escrito o caso, independente da cobrança de quaisquer emolumentos, à decisão do Juiz competente.” 6 “A alteração posterior de nome, somente por exceção e motivadamente, após audiência do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o mandado e publicando-se a alteração pela imprensa, ressalvada a hipótese do art. 110 desta Lei.” 7 A autora também discorre que: “A Corte italiana, em 24 de maio de 1975, reformando decisão do Tribunal de Apelação de Nápoles, declarou que a retificação judicial de atribuição do sexo não se restringe ao caso de hermafroditismo, devendo ser aplicada também no de transexualismo, pois o encontro da integridade psicofísica assegura o direito à saúde, que abrange a saúde psíquica.” (DINIZ, 2009, p.294)

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sucessório ou de adotar filho etc. Em 1976, por exemplo, em New Jersey, o tribunal

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FIDΣS Antes do posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, a jurisprudência negava a retificação do registro civil em virtude da necessidade de o registro público ser preciso e regular e, quando aceitava que fosse feita a correção, fazia a exigência de que fosse colocado, na área destinada à especificação sexo, o termo “transexual”. Colocar o termo transexual, contudo, é mais uma situação de constrangimento vivida pelo sujeito. Finalmente, em 2009, através de um recurso especial, o Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento no sentido de permitir a alteração do prenome do transexual cirurgiado. Na Conclusão do Acórdão, a Ministra Nancy Andrigui8 afirma que:

Deve, pois, ser facilitada a alteração do estado sexual, de quem já enfrentou tantas dificuldades ao longo da vida, vencendo-se a barreira do preconceito e da intolerância. O direito não pode fechar os olhos para a realidade social estabelecida, notadamente no que concerne à identidade sexual, cuja realização afeta o mais íntimo aspecto da vida privada da pessoa. E a alteração do designativo de sexo, no registro civil, bem como do prenome alterado, é tão importante quanto a adequação cirúrgica, porquanto é desta um desdobramento, uma decorrência lógica que o Direito deve assegurar.

Vetar a mudança de nome do sujeito que fez a cirurgia fere a dignidade da pessoa humana que é assegurada pela Constituição Federal, pois o sujeito se sentirá angustiado em sofrer constrangimento quando identificar-se. Como visto anteriormente, não se pode mais restringir o sexo apenas numa concepção biológica, deve-se levar em consideração também outros aspectos da sexualidade.

casamento. Pode-se conceituar casamento como união de duas pessoas de sexos distintos que tem por objetivo a constituição de uma família baseada em um vínculo de afeto que é reconhecido pelo Estado. Como é permitida a retificação do registro civil, o casamento também é possível desde que o transexual revele ao cônjuge sua situação anterior. Caso contrário, caberá a ação de anulação do casamento por erro essencial quanto à pessoa, previsto no artigo 1556 9 do Código Civil. Em relação à questão sucessória, por sua vez, não haverá problemas, só é necessário que o sujeito operado comprove sua filiação para que receba o que lhe é cabível. 8

“Ilação extraída do voto da Ministra Nancy Andrigui proferida no julgamento do STJ. RESP nº 1.008.398-SP (2007/0273360-5). 3ª T.Rel. Ministra Nancy Andrigui.j. 15.10.2009. DJU 18.11.2009”. 9 “O casamento pode ser anulado por vício da vontade, se houve por parte de um dos nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro.”

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A cirurgia traz, além disso, outras consequências jurídicas, como em relação ao

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FIDΣS No esporte, a doutrina elenca que por basear-se em sexo hormonal, não haverá problema em disputar campeonato, mesmo sem registro civil. Entretanto, será vedada a sua participação se os índices hormonais forem superiores aos permitidos no torneio pleiteado. Em relação à questão previdenciária, tem-se que os benefícios previdenciários são as necessidades básicas de seguridade social previstas no sistema previdenciário brasileiro, tais como a aposentadoria por invalidez, por tempo de contribuição, por idade, compulsória, especial, proporcional por tempo de serviço e a pensão por morte. Nesse caso, haverá modificação nos benefícios, que deverão ter um procedimento judicial tramitando em segredo de justiça, modificando, por exemplo, a questão do tempo de serviço que irá computar o tempo cumprido como homem e como mulher. Na Seara Trabalhista, não poderá haver discriminação com o trabalhador que se submeteu à cirurgia de adequação ao sexo, respeitando o artigo 7º, XXX10, da Constituição Federal e o artigo 1º11 da lei de número 9.029, de 13 de abril de 1995.

8 TRANSEXUALIDADE E O DECRETO Nº 22.331 DO GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE

No dia 12 de agosto de 2011, a Governadora do Estado do Rio Grande do Norte elaborou o Decreto de número 22.33112, que assegura aos transexuais e travestis o direito de ser identificado pelo correspondente nome social em todos os procedimentos realizados no âmbito do Poder Executivo Estadual. Por nome social, o parágrafo único do artigo 1º do

meio social. O decreto contém observações no que tange ao nome social, que só deve ser utilizado para fins internos administrativos. Em seguida, o decreto afirma que não se aplica o que foi exposto anteriormente para fins de confecção de documento oficial, bem como nos casos em 10

“São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil;” 11 “Fica proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso a relação de emprego, ou sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade, ressalvadas, neste caso, as hipóteses de proteção ao menor previstas no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal.” 12 RIO GRANDE DO NORTE. Decreto nº22. 331, de 12 de agosto de 2011. Assegura aos travestis e transexuais o direito de ser identificado pelo correspondente nome social em todos os atos e procedimentos realizados no âmbito do Poder Executivo Estadual. Diário Oficial do Estado. Palácio de Despachos de Lagoa Nova, em Natal, 12 de agosto de 2011, 190º da Independência e 123º da República.

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decreto diz que é aquele pelo qual os transexuais e travestis são conhecidos na comunidade e

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FIDΣS que o interesse público exigir, mesmo para salvaguardar direitos de terceiros. Para indicar o nome social é necessário que o interessado preencha um cadastro, ficha ou qualquer outro documento perante Órgão ou Ente Público do Poder Executivo Estadual. A elaboração do Decreto levou em conta a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil; a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Esses fundamentos constituem o escopo da República Federativa do Brasil e elencam a igualdade perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, no rol dos direitos e garantias fundamentais. A legislação brasileira pouco dispõe sobre os direitos dos transexuais. O Rio Grande do Norte deu um grande passo no reconhecimento de direitos dessas pessoas que são esquecidas pelos órgãos legisladores. Entretanto, faz-se necessário adoção de novas medidas com o intuito de eliminar o preconceito da sociedade em relação ao sujeito transexual, tendo em vista ser dever do Estado garantir a efetiva tutela dos direitos humanos e fundamentais a ele inerentes.

9 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo visa à reflexão da sociedade para todas as situações vividas pelo sujeito transexual, como suas aflições e constrangimentos, e ao conhecimento dos requisitos que tornam necessária a realização da cirurgia de adequação ao sexo. Para isso, foi abordada a

campos da bioética e do biodireito, o qual defende que a verdade científica nunca irá sobrepor a ética e o direito. Discutiu-se também o Direito da Personalidade, os requisitos para a permissão da cirurgia, se esta compreende crime de mutilação, responsabilidade penal e obrigação do médico, além do debate acerca das mudanças no registro civil e as consequências jurídicas dela decorrentes. Para amenizar o transtorno que envolve o transexual, não basta apenas a realização da cirurgia de transgenitalização, deve também haver medidas que resguardem o indivíduo à exposição a situações vexatórias, como retificação do registro civil, o qual irá adequar o prenome ao novo sexo do transexual, com a possibilidade de casamento e de acesso aos benefícios previdenciários, dentre outras medidas.

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sexualidade humana relacionada à identidade sexual, dando ênfase ao tratamento do tema nos

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FIDΣS Como visto, a legislação brasileira carece de muitos dispositivos para regular a questão do transexual. Há um Projeto de Lei de número 70-B13 no Congresso Nacional, de autoria do deputado Federal José Coimbra, que propõe a alteração do artigo 129 do Código Penal para excluir o crime de lesão corporal nos casos da cirurgia de redesignação sexual e também a alteração do artigo 58 da Lei de Registros Públicos, admitindo a alteração do prenome mediante autorização judicial nos casos em que o requerente se submeteu à intervenção cirúrgica destinada a alterar o sexo originário, mas que até agora não foi aprovada. A cirurgia de adequação sexual faz-se necessária tendo em vista o fato de os tratamentos psicoterápicos e de psicanálise terem se tornado infrutíferos, tendo em vista que a convicção do transexual é imutável fazendo com que a única solução viável seja a cirurgia. Por outro lado, a permissão da realização cirúrgica deve ser acompanhada de um critério rígido para que não seja concedida para fins de aventura ou fantasia sexual, como aconteceu com o casal húngaro, tendo em vista que a cirurgia leva à perda irreparável dos órgãos sexuais. A questão da possibilidade de retificação do prenome no registro civil já está pacificada, conforme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, editada em 2009, que permite a alteração, pois indeferir a correção afronta a dignidade da pessoa humana, que é fundamento do Estado Democrático de Direito da República Federativa do Brasil. Alguns doutrinadores, antes do posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, levantaram a possibilidade da criação de um terceiro sexo civil. Tal fato, porém, não configuraria uma solução, pelo contrário, geraria um grande constrangimento ao sujeito

convicção imutável de pertencer ao sexo oposto. Com isso, deve o poder público, juntamente com a sociedade, respeitar os direitos dos transexuais – os quais compreendem uma minoria na coletividade em que se vive –, além de instituir políticas públicas focadas em eliminar o preconceito da população e esclarecer toda a problemática que vive o sujeito transexual.

REFERÊNCIAS

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Projeto de Lei nº 70-B de 1995, proposto por José Coimbra - PTB/SP. Disponível em: < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=15009>. Acesso em: 30 mar. 2012.

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portador desse desvio psicológico permanente de identidade sexual, pois o transexual tem a

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FIDΣS ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM-IV. 4. ed. Trad. de Dayse Batista. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

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GIDDENS, Anthony. Sociologia. 4 ed. Porto Alegre: Artmed, 2005.

PEREIRA, Carolina Grant. Bioética e Transexualidade: para além da patologização, uma questão de identidade de gênero. Disponível em: <www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/fortaleza/4144.pdf>. Acesso em: 19 set. 2011.

SCHAEFER, Fernanda. Bioética, biodireito e direitos humanos. In: MEIRELLES, Jussara Maria Leal. Biodireito em Discussão. Curitiba: Juruá, 2007. p. 31-52.

VIEIRA, Tereza Rodrigues. O direito do transexual e a bioética. Jus Navigandi, Teresina, a.

transexual-e-a-bioetica>. Acesso em: 14 abr. 2011.

TRANSEXUAL:

SEX

REASSIGNMENT

SURGERY

AND

LEGAL

ISSUES

INVOLVED

ABSTRACT This paper discusses the problems that involves the transsexual, those people who are suffering from permanent psychological disorder of sexual identity and that seeks sex change surgery to alleviate this disorder. For that, this paper will detail the concept of transsexual, the

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8, n.125, 8 nov. 2003. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/4354/o-direito-do-

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FIDÎŁS difference to the homosexual, the requirements for surgical procedure and the legal consequences after the sex change. The methodology used is the analysis of the literature, Brazilian law and jurisprudence with the dialectical method.

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Keywords: Sexual Identity. Surgery. Inclusion.

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FIDΣS Recebido 20 abr. 2012 Aceito 29 abr. 2012

ARGUMENTO SEDUTOR Edilson Pereira Nobre Júnior

Benjamim Franklim, um dos pais fundadores da pujante pátria norte-americana, pregava que a virtude de economizar faz bem para prosperidade duma nação. O lema, embora digno de embalar sonhos ufanistas, não combina com o modo de viver seguido por Paulo Oliveira de Carvalho, estróina sem igual. Só para o leitor ter uma ideia das características dissipadoras do amigo Paulo, mais conhecido como Paulinho Money, é preciso saber que um dos seus prazeres é o de patrocinar grandes farras na suíte presidencial do Copacabana Palace, adornadas pela companhia de jovens candidatas promissoras a modelos e atrizes.

E, como se não bastasse, um dos

momentos de deleite em tais eventos bacantes é o inesquecível enchimento das banheiras dos régios ambientes com champagne francesa. Diante de tanta e imoderada gastança, procurei satisfizer uma curiosidade sobre Paulinho. Num certo dia, ao depois de tomados alguns chopes em botequim no Leblon,

- PAULINHO, MEU CHAPA, VOCÊ NÃO PARA DE GASTAR. MESMO ASSIM, DINHEIRO NÃO LHE FALTA. OS SEUS PAIS OU FAMILIARES TRABALHAM, OU TRABALHARAM MUITO, PARA QUE VOCÊ POSSA LEVAR ESSA VIDA DE ÓCIO? - QUE NADA, MEU AMIGO. NA MINHA FAMÍLIA NINGUÉM É DADO A ESSA COISA HORRIPILANTE QUE SE CHAMA TRABALHO. A ÚNICA PESSOA QUE TRABALHOU PARA QUE

Professor da Faculdade de Direito do Recife (UFPE), instituição na qual concluiu mestrado e doutoramento em Direito Público. Desembargador do Tribunal Regional Federal a 5ª Região.

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perguntei-lhe:

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FIDΣS A GENTE PUDESSE VIVER NUMA BOA FOI MINHA BISAVÓ, ROSA MARIA DOS ANJOS.

Daí veio o relato duma emocionante história. Certo dia, durante a ditadura Vargas, o senhor Cláudio Brandão Loureiro, juntamente com grande comitiva, resolveu fazer uma visita a uma bucólica cidade do interior nordestino. O fato seria irrelevante caso não fosse o ilustre visitante Interventor Federal no respectivo Estado e, portanto, igual na terra a Deus no céu. A recepção do dignatário foi a mais efusiva possível. Não faltou banda de música nem convite para lautas refeições. Prévio conhecedor das predileções do visitante pelos encantos e desencantos do sexo oposto, o prefeito, então intendente, com o propósito de despertar no interventor a atenção para o desenvolvimento do município, cuidou de agraciá-lo com uma tenra companhia para que, de modo agradável, pudesse suportar a saudade da família e da vida animada da Capital. Para tanto, procurou a mulher mais bela das paragens. Sem dúvida, a pesquisa convergiu para Rosinha de seu Pilar, cuja faceirice do seu corpo moreno de 19 anos, adornada pela beleza invulgar de sua tenra face, equiparava-a a uma Pompadour para o regozijo de um sedento Luís XV. A similitude com a amante do rei francês se verificava por outra circunstância, qual seja a de que, numa manhã de sábado, na feira municipal, uma cigana, quando Rosinha ainda era uma criança, leu a sua mão e vaticinou:

- MINHA PEQUENA, QUANDO VOCÊ CRESCER SERÁ

Assim, Rosinha que, até então, as únicas emoções que protagonizara constituíam andar de cavalo com os jovens de sua idade, foi impelida a passar uma noite na pensão de Dona Francisca, cujos aposentos, embora mal conservados, ainda assim representavam a melhor estalagem da localidade. Mas não era mero pernoite. Teria de satisfazer os desejos luxuriosos do Senhor Interventor, pena deste, não feliz com os afagos de sua eventual companheira, despejar sua ira contra a sua pobre cidade natal. Esse intento meritório não sensibilizou Rosinha que, no verdor de sua inocência, esperava, qual Branca de Neve, apenas entregar o seu amor a um príncipe encantado. O rotundo dignitário não satisfazia – nem de longe – tal expectativa.

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AMANTE DE UM HOMEM PODEROSO QUE A PROTEGERÁ.

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FIDΣS Rosinha, então, atuou como bastião duma resistência heróica. Isto levou a que, durante mais de três horas, o Senhor Interventor em vão suplicasse conquistar os carinhos da inocente, e então apavorada, musa. O pior de tudo é que – e este particular quase esquecia – o Senhor Interventor, talvez acostumado à circunstância de que seu cargo representava um infalível imã diante das mulheres, precipitou-se, sugerindo a realização duma forma sexual cuja utilização, pelos gregos, romanos e troianos, foi usual como forma infalível de anticoncepcional. A negativa de Rosinha, que se mantinha inflexível por longo tempo, transformou os galanteios do Senhor Interventor em humilhação, até o ponto de que este, num desespero sem igual, como último recurso, lançou o seguinte apelo:

- ROSINHA, MINHA PRINCESA. SEI QUE NÃO SOU O ROMEU QUE VOCÊ, NOS SEUS SONHOS, PROCURA. DIGO-LHE APENAS QUE VOCÊ PENSE UM POUCO, POIS, SE VOCÊ ME TORNAR GRANDIOSO NESTA NOITE, PODERÁ ME PEDIR O QUE VOCÊ QUISER NESTE MUNDO!

No quarto ao lado, cujas finas espessuras das paredes impediam qualquer segredo do que se passava, o chefe de gabinete da Interventoria, que perdeu suas esperanças quanto a qualquer pretensão de sono, e que a tudo escutava com ansiedade, disparou:

- PEÇA O SEGUNDO CARTÓRIO DA CAPITAL, QUE ESTÁ

Daí dinheiro não mais se tornou problema para o Paulinho e seus familiares.

FIDES, Natal, v. 3, n. 1, jan./jun. 2012. ISSN 0000-0000

VAGO E CUIDA DO REGISTRO DE IMÓVEIS!

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