V. 3, n. 2, jul./dez. 2012. ISSN 2177-1383.
Editoras-Gerais: Angélica Almeida Gonçalves de Oliveira Rafaela Pinheiro Leite Diretoria de Editoração: Bárbara Figueiredo Oliveira Borges Edson Felipe Nascimento Eduarda Teixeira Oliveira Torres Gustavo Henrique Pacheco Barretto Maia Luciana Ramos da Silva Marina de Carvalho Guedes Mateus Alves Barreto da Costa Raissa Freire de Aquino Rennan de Carvalho Holanda Leite Thiago de Lucena Motta Diretoria de Tradução para a Língua Inglesa: Angélica Almeida Gonçalves de Oliveira Thiago de Lucena Motta Professores Orientadores: Morton Luiz Faria de Medeiros Patrícia Borba Vilar Guimarães
EDITORIAL
Mais seis meses se passaram e, após muito trabalho e dedicação, apresentamos uma nova edição da Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade. A FIDES, pautada na simplicidade, informalidade e incentivo à pesquisa e produção científica vem, em sua 6ª edição, reforçar seu intuito de aproximar saberes e propiciar acesso livre à informação científica. Desde sua 1ª edição, a FIDES renova seu compromisso de distanciar-se da construção de um saber estritamente dogmático, primando por uma valorização da produção acadêmica multidisciplinar, na qual as mais diversas áreas do conhecimento se somam e se multiplicam. Essa é a essência da nossa Revista. Não é demais lembrar que a FIDES é um periódico eletrônico de acesso gratuito, que busca disseminar o conhecimento de forma clara, rápida e de excelente qualidade. Composta de um Conselho Editorial capacitado e imparcial, estimulamos cada vez mais uma produção científica sem maiores requisitos formais e, por meio de uma intensa comunicação com os autores, aliamos esforços e trabalhamos no sentido de aprimorar ao máximo os trabalhos os quais compõem nossa seção de artigos científicos. Nesta edição, ratificamos o compromisso de valorizar o que é nosso, de cultivar nossa cultura, de prezar por nossas raízes. E, como tal, não poderíamos nos esquecer de um dos grandes nomes do cenário nordestino e de todo o país: Luiz Gonzaga. Além de dedicarmos uma seção especial com uma sucinta biografia do ilustre “Rei do Baião”, trazemos uma das suas inúmeras obras que retratam tão bem nossa realidade e prestamos, ainda, nossa homenagem na capa, inspirada na data comemorativa do seu centenário. Reafirmando nossa busca incessante da promoção de uma gradual mudança de cultura no ambiente acadêmico, especialmente no que diz respeito à diversificação das fontes de referência na pesquisa, trazemos a seção “Literatura e Direito” – na qual publicamos o conto “O candidato do povo”, de autoria de Edilson Pereira Nobre Júnior – como forma de relembrar a importância de uma formação multidisciplinar e aberta dos profissionais, especialmente daqueles de Direito. Gostaríamos, desde já, de registrar nossos sinceros agradecimentos a todos os que colaboraram para o lançamento de mais uma edição. Aos autores, que engrandeceram nosso periódico com a submissão de seus trabalhos e, com empenho e dedicação ao longo de todo o
processo editorial, puderam aperfeiçoar suas obras, agradecemos imensamente a confiança depositada na Revista, parabenizando aqueles que tiveram seus artigos publicados. Demonstramos também nossa gratidão aos professores do nosso Conselho Científico que puderam corroborar com uma produção científica de qualidade, sugerindo modificações pertinentes aos diversos temas a nós trazidos e, por fim, mas não menos importante, ao nosso Conselho Editorial, que, com seu incessante trabalho, pôde demonstrar, mais uma vez, o prazer e a dedicação em contribuir com uma produção acadêmica de qualidade. Sejam bem-vindos à nossa 6ª edição! Ótima leitura a todos!
Natal/RN, 30 de outubro de 2012.
Conselho Editorial
SUMÁRIO
HOMENAGEM ESPECIAL A LUIZ GONZAGA LUIZ GONZAGA: O “REI DO BAIÃO”
8–9
A VIDA DO VIAJANTE Luiz Gonzaga e Hervê Cordovil
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ARTIGOS INICIAIS A CONFIANÇA E O DIREITO Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave
11–14
O DIREITO ADMINISTRATIVO CLÁSSICO E O SEU REPENSAR NEOCONSTITUCIONAL Mariana de Siqueira
15-17
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NÃO JULGA, CONDENA: INCURSÃO REFLEXIVA SOBRE O DITO “MENSALÃO” Leonardo Nascimento Costa de Medeiros
18-21
BREVÍSSIMO ENSAIO SOBRE DISCURSO DE GÊNERO E MÉTODO SOB AS LENTES DA FILOSOFIA POLÍTICA E DA MENTE MODERNAS Fábio Bezerra dos Santos
22-33
ARTIGOS CIENTÍFICOS CONVIDADOS A SEGURANÇA JURÍDICA NA INTEGRAÇÃO REGIONAL SUL-AMERICANA: EM BUSCA DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL Marconi Neves Macedo
34-53
ARTIGOS CIENTÍFICOS
A COMPLEXA CORRELAÇÃO ENTRE O MULTICULTURALISMO, O ISLÃ E OS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES: O CASO DO VÉU E DA MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA Samantha Nagle Cunha de Moura
54-74
A RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO ESTADO DIANTE DOS DANOS AMBIENTAIS OCASIONADOS POR PARTICULARES E A EFETIVIDADE DOS PRINCÍPIOS DO DIREITO AMBIENTAL Daniela Pontes Santiago
75-93
AS CONTRIBUIÇÕES DA LEI DA FICHA LIMPA PARA EVOLUÇÃO DA DEMOCRACIA BRASILEIRA E A MORALIZAÇÃO DO PODER PÚBLICO Pedro Amorim Carvalho de Souza Rafael Ramos do Nascimento
94-114
DEMOCRACIA PARTICIPATIVA NO BRASIL: DESAFIOS E POSSIBILIDADES Tatiane Dantas Nascimento
115-126
DIREITO E CONTROLE SOCIAL: SOB A PERSPECTIVA DA EXPERIÊNCIA FRANCESA EM JUSTIÇA DE PROXIMIDADE Andressa Lays Lopes Oliveira Priscila Nunes Oliveira
127-141
ANÁLISE COMPARADA BRASIL – PORTUGAL: A RESPOSTA PENAL COMO CONCRETIZADORA DA PROTEÇÃO À SAÚDE PÚBLICA PERANTE A PROBLEMÁTICA DE CONSUMO DE DROGAS Túlio de Medeiros Jales
142-161
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO MERAMENTE PROTELATÓRIOS: UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA DA ÉTICA E DO NEOCONSTITUCIONALISMO Débora Daniele Rodrigues e Melo
162-179
A SÚMULA VINCULANTE SOB UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA E SUA EFICÁCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Amanda Rêgo Martins de Souza Marcel Gomes de Souza
180-196
O PLURALISMO JURÍDICO NAS COMUIDADES DE ESCRITORES DE FANFICTIONS Eduardo Antonio Martins de Oliveira
197-210
LITERATURA E DIREITO O CANDIDATO DO POVO Edilson Pereira Nobre Júnior
211-213
FIDΣS
LUIZ GONZAGA: O REI DO BAIÃO
Luiz Gonzaga do Nascimento, natural de Exu, Pernambuco, nascido em 1912, tornou-se um dos artistas populares mais conhecidos e estimados do Brasil. Sanfoneiro, cantor e compositor, foi responsável pela valorização dos ritmos nordestinos, divulgando o baião, o xote e o xaxado para todo o país. O “Rei do Baião” teve uma infância difícil. Representante da pobreza do sertão nordestino, um dos oito filhos do mestre Januário – "sanfoneiro de 8 baixos" –, não esmoreceu e, desde menino, já tocava sanfona como aprendiz do pai, o qual mais tarde homenageou no xote “Respeita Januário”. Iniciou sua carreira aos 13 anos, quando, com dinheiro emprestado, comprou sua primeira sanfona. Em 1930, aos 18 anos, entrou para o exército e, com a Revolução de 30, viajou por todo o país. Durante sua passagem pelas forças armadas, foi reprovado num concurso de músico e rebaixado a corneteiro da tropa.
Gonzaga passou a se apresentar em bares, cabarés e programas de calouros. Em 1940, participou do programa de Calouros da Rádio Tupi e ganhou o primeiro lugar com a música "Vira e Mexe". Tocando como sanfoneiro por todo o Brasil, foi descoberto por uma empresa e produziu seu primeiro disco. O sucesso foi rápido e vários álbuns foram lançados, alcançando a marca de 192 discos em cinquenta anos de carreira. Em 1945, gravou seu primeiro trabalho como sanfoneiro e cantor com a música "Dança Mariquinha". Ainda nesse ano, nasceu seu único filho, Gonzaguinha, que seguiu os passos do pai como cantor e compositor. Também foi nessa época que Gonzaga conheceu um dos seus maiores parceiros, Humberto Teixeira, em conjunto com o qual nasce o hino do nordeste brasileiro, a música “Asa Branca”.
FIDES, Natal, v. 3, n. 2, jul./dez. 2012. ISSN 0000-0000
Após nove anos, depois de deixar o exército e se mudar para o Rio de Janeiro,
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FIDΣS Em um dos momentos marcantes da sua carreira, Luiz Gonzaga canta para o Papa João Paulo II, em 1980, e, a convite da cantora amazonense Nazaré Pereira, se apresenta em Paris. Como reconhecimento pelo seu trabalho artístico, recebe o prêmio Nipper de ouro, além de dois discos também de ouro pelo álbum "Sanfoneiro Macho". São de sua autoria grandes sucessos como “Luar do Sertão”, “Súplica Cearense”, “No Meu Pé de Serra”, “Assum Preto”, “Olha Pro Céu”, “Pau de Arara” “Danado de Bom”, “Riacho do Navio”, “Xote das Meninas”, “Numa Sala de Reboco”, “Último Pau de Arara”, entre outros. Não poderia, pois, a Revista FIDES deixar de prestar sua devida homenagem a esse tão importante artista que retrata brilhantemente a cultura nordestina por todo nosso país. O “Rei do Baião” será sempre lembrado pelo seu carisma e talento, especialmente neste ano, no qual comemoramos o centenário de sua história.
REFERÊNCIAS
BARSA PLANETA INTERNACIONAL. Nova Enciclopédia Barsa. 6. ed. São Paulo, 2002.
E-BIOGRAFIAS. Luiz Gonzaga: músico brasileiro. Disponível em: <http://www.e-
FIDES, Natal, v. 3, n. 2, jul./dez. 2012. ISSN 0000-0000
biografias.net/luiz_gonzaga>. Acesso em: 25 out. 2012.
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FIDΣS
A VIDA DO VIAJANTE*
Minha vida é andar por este país Pra ver se um dia descanso feliz Guardando as recordações Das terras onde passei Andando pelos sertões e dos amigos que lá deixei. Chuva e sol, poeira e carvão Longe de casa sigo o roteiro mais uma estação E alegria no coração!
Minha vida é andar por este país Pra ver se um dia descanso feliz Guardando as recordações Das terras onde passei
Mar e terra, inverno e verão Mostro o sorriso, mostro alegria mas eu mesmo não E a saudade no coração.
Luiz Gonzaga e Hervê Cordovil
*
Composição de Luiz Gonzaga e Hervê Cordovil
FIDES, Natal, v. 3, n. 2, jul./dez. 2012. ISSN 0000-0000
Andando pelos sertões e dos amigos que lá deixei.
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FIDΣS Recebido19 out. 2012 Aceito 24 out. 2012
A CONFIANÇA E O DIREITO Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave* A confiança – nas pessoas e nas instituições – é um dos sentimentos que movimenta a história. A presença ou ausência de confiança leva a contornos completamente distintos nas sociedades, fazendo surgir institutos diferenciados e/ou instituições diferenciadas. Vejamos o caso do controle de constitucionalidade das leis (e aqui se considera também o sistema de common law inglês). O marco histórico que aprendemos sobre o controle de constitucionalidade é o famoso julgamento realizado em 1803 pela Suprema Corte americana, proclamado pelo Chief Justice Marshall no caso Marbury v. Madson, em que se afirmou a superioridade da Constituição em face da lei ordinária. Assim, havendo confronto entre a lei e a Constituição, esta última deve prevalecer. Na verdade, este foi o primeiro caso em que a Suprema Corte americana se afirmou competente – e efetivamente exerceu essa competência – para realizar o controle de
(legislativo e executivo). O fundamento deste julgamento está no Federalista 78, escrito por Hamilton, em que afirma que as leis são feitas pelos representantes do povo, os quais não estão autorizados a contrariar a Constituição, obra do próprio povo (poder constituinte originário). Neste mesmo artigo, Hamilton defende que atribuir ao judiciário este poder de anular as leis e atos inconstitucionais não o torna superior ao legislativo e ao executivo: apenas demonstra que o poder do povo é superior ao poder dos representantes do povo.
*
Graduada e mestreo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutoranda em Processo Constitucional pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professora e Coordenadora do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande Norte (UFRN).
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constitucionalidade de leis ou atos normativos emanados dos demais poderes constituídos
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FIDΣS E na Inglaterra, da mesma forma, a confiança no judiciário permitiu o desenvolvimento do sistema de common law, em que os diversos documentos históricos que compõem a chamada “constituição inglesa” são concretizados pelo judiciário. Até mesmo o princípio da soberania do parlamento, um dos pilares do sistema jurídico inglês, foi de certa forma “relativizado” após a assinatura do Human Rights Act em 1998 e a criação da Suprema Corte britânica em 2009. Curioso destacar que a primeira vez em que se falou em controle de legitimidade de atos normativos em face das prescrições do common law ocorreu antes do famoso caso americano acima destacado. Em 1608 foi julgado o caso Bonham, em que Edward Coke considerou que as leis inglesas devem respeitar o common law, sob pena de nulidade. Com a Revolução Gloriosa de 1688 a chamada “doutrina Coke” deixou de ser aplicada, dando lugar ao princípio da soberania do parlamento. E ao lado desta confiança no judiciário, que permitiu o estabelecimento do judicial review, está a falta de confiança no judiciário, cujo exemplo é o caso francês, em que o judiciário não possui qualquer competência no que toca ao controle de constitucionalidade. A Revolução Francesa, tida por muitos como ícone do respeito aos Direitos Humanos por força da Declaração dos Direitos do Homem de 1789, teve como característica o rompimento total com o antigo regime, caracterizado pelo absolutismo monárquico e concessão de privilégios a determinadas classes. Com a tomada da Bastilha, as ideias de separação das funções estatais desenvolvidas por Montesquieu ganharam espaço, tendo a lei um lugar central no novo sistema: as leis, elaboradas pelos representantes do povo (na verdade, representantes dos burgueses), passaram
império da lei. Nascia o princípio da legalidade, conferindo igualdade formal a todos e submetendo os governantes aos ditames das leis. Essa crença no princípio da legalidade decorreu da excessiva confiança no legislativo (os efetivos representantes do povo, os “fabricantes de leis” nas palavras de Dalmo Dallari) e da desconfiança nos juízes, que antes da Revolução Francesa eram parciais e defensores dos interesses das classes privilegiadas. Assim, após a Revolução, acatou-se inteiramente a doutrina da separação dos poderes de Montesquieu, reservando-se aos juízes a competência exclusiva de ser a “boca da lei”. Se houvesse conflito entre duas leis, ou dúvida ou necessidade de interpretação, os juízes deveriam se reportar ao Legislativo, nos termos do art. 12 da Lei Revolucionária de 1790.
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a ser o ponto central do governo. Governantes e governados passaram a ser regidos pelo
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FIDΣS A falta de confiança levou também à criação, na França, de um sistema de controle de constitucionalidade diverso daquele desenvolvido nos Estados Unidos. O controle da constitucionalidade das normas francesas é realizado exclusivamente pelo Conselho Constitucional, um órgão político formado por nove membros (três indicados pelo Presidente da República, três pelo Presidente da Assembleia Nacional e três pelo Presidente do Senado), além dos ex-presidentes franceses, nos termos do art. 56 da Constituição de 1958. Na França, até hoje, não se permite que juiz algum deixe de aplicar uma lei por reputá-la contrária ao bloco de constitucionalidade (que inclui, além da Constituição de 1958, o prefácio da Constituição de 1946, a Carta do Meio Ambiente de 2004 e a Declaração dos Direitos do Homem de 1789). E mais, até a reforma constitucional de 2008, que começou a vigorar apenas em 2010, sequer o controle repressivo de constitucionalidade era admitido. A falta de confiança, se levada ao extremo, leva ao medo, ao terror, à catástrofe: e para combater o medo são cometidas as maiores atrocidades (como exemplo recente podemos citar a “guerra contra o terror” nos Estados Unidos, que justificou a dizimação de civis em países como o Afeganistão e Iraque, além da morte de inúmeros soldados americanos na guerra por eles mesmos produzidas). No nosso caso, a total desconfiança no legislativo e no executivo (curiosamente, desconfiamos dos dois Poderes em que somos nós os únicos responsáveis pela escolha dos membros de cúpula) nos levou a depositar toda a credibilidade no judiciário. Adotamos o judicial review americano desde a primeira Constituição republicana, por força da influência de Rui Barbosa, admirador do modelo estadunidense de controle de constitucionalidade.
constitucionalidade das normas, o que demonstra a confiança nacional nos órgãos do judiciário. Ocorre que a Carta de 1988 também previu a possibilidade de controle repressivo por parte do executivo, à medida que prevê, no art. 23, I, a competência comum à União, Estados, Municípios e Distrito Federal para zelar pela guarda da Constituição, o que permite ao chefe do executivo deixar de aplicar norma que repute inconstitucional. O controle repressivo realizado pelo legislativo limita-se às medidas provisórias, nos termos do art. 62, §5º., CF. É certo, entretanto, que o descrédito no legislativo e no executivo permitiram o agigantamento do controle judicial de constitucionalidade no Brasil. Além dos contornos traçados pela Constituição promulgada em 05 de outubro de 1988, o poder de controle do judiciário foi aumentado sensivelmente pelas Emendas Constitucionais (em especial as
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A Constituição de 1988 também prevê o controle repressivo judicial da
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FIDΣS emendas 03/93 e 45/2004) e também pelo próprio STF em suas decisões (com destaque para a interpretação dada ao art. 52, X no HC 82.959-7/SP, Rcl 4335/AC e ADI 3345-0/DF). Podemos afirmar, assim, que a confiança nos juízes e no judiciário brasileiro, aliada à conjuntura de desconfiança no legislativo e executivo nacionais tornaram o STF o grande
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“guardião da Constituição” brasileira.
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FIDΣS Recebido 18 out. 2012 Aceito 23 out. 2012
O
DIREITO
ADMINISTRATIVO
CLÁSSICO
E
O
SEU
REPENSAR
NEOCONSTITUCIONAL Mariana de Siqueira*
Nos últimos anos, preceitos clássicos do Direito, tanto do Direito Público como do Direito Privado, vêm sofrendo mudanças consideráveis a partir dos elementos teóricos de um movimento iniciado de modo mais intenso após a Segunda Guerra Mundial, movimento este chamado por uns de “neoconstitucionalismo” e por outros de “pós-positivismo”. De uma ou de outra forma, as denominações arguidas para o movimento se referem a premissas teóricas básicas que este possui, podendo ser aqui apontadas de forma simples e não exaustiva algumas; são elas: filtragem constitucional de todo o Direito, força normativa da Constituição, fortalecimento da jurisdição constitucional, normatividade dos princípios jurídicos. Doutrina e jurisprudência refletem estas inovações nas mais variadas temáticas, sendo alvo de críticas focadas em uma possível fragilização da ideia de segurança jurídica e também de aplausos atentos para a ideia de concretização da justiça.
olhares e propostas nascendo, muitos como reflexos dos preceitos neoconstitucionais. Aqui, a título meramente exemplificativo, serão expostos alguns. A ideia de legalidade, por exemplo, classicamente definida para a Administração Pública como legalidade em sentido restrito, ou seja, à Administração só é permitido fazer aquilo que a lei expressamente admite que ela faça, hoje vem sendo ampliada pela ótica da ideia de juridicidade. Na contemporânea ideia de juridicidade, à Administração é permitido fazer tudo aquilo que o Direito permita que ela faça, seja essa permissão viabilizada pelo texto da lei em sentido estrito, por um princípio constitucional explícito ou até mesmo implícito ou por uma *
Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Mestre em Direito Constitucional e Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
FIDES, Natal, v. 3, n. 2, jul./dez. 2012. ISSN 0000-0000
No que tange especificamente ao Direito Administrativo, hoje é possível notar novos
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FIDΣS súmula vinculante, por exemplo. A partir desta nova visão, a atuação da Administração passa a encontrar respaldo não apenas na lei em sentido restrito, mas sim no Direito como um todo, inclusive nos princípios constitucionais. Este novo olhar teórico é corolário típico do neoconstitucionalismo, em especial no que diz respeito à normatividade dos princípios e filtragem constitucional do Direito. Outro aspecto clássico do Direito Administrativo que sofre repensar contemporâneo diz respeito à supremacia do interesse público sobre o privado. Este elemento, classicamente legitimador de práticas como o poder de polícia, a desapropriação, dentre outras, não sofria grandes questionamentos ao ser posto em prática como fundamento dos fazeres administrativos. Hoje, a partir da filtragem constitucional do Direito e da sistemática de proteção constitucional dos Direitos Fundamentais, a ideia clássica de supremacia do interesse público vem sendo repensada por uns e sofrendo até mesmo propostas de extinção por outros. Extingui-la parece ser incompatível com a própria lógica de existência do Direito Público, repensá-la, por sua vez, com foco nos dizeres constitucionais, parece ser razoável no âmbito pós-positivista. No contexto de seu repensar, há quem exponha apenas ser legítimo justificar violações a direitos fundamentais pela supremacia do interesse público sobre o privado no caso de o ato administrativo em questão ser dotado de proporcionalidade e de compatibilidade com a proteção constitucional da dignidade humana. Este novo olhar, como bem se percebe, aparenta coerência com os atuais dizeres do neoconstitucionalismo. Além dos reflexos do neoconstitucionalismo no Direito Administrativo apontados, inúmeros outros existem, sendo igualmente objeto de estudos aprofundados, de inovações jurisprudenciais e críticas da doutrina; é o que ocorre com o controle dos atos discricionários,
ato jurisdicional, dentre outros. Apesar da constatação dos repensares administrativistas atuais, alguns temas ainda parecem caminhar distantes dos preceitos neoconstitucionais. É o que acontece, por exemplo, com os agentes públicos que ocupam cargos de livre nomeação e exoneração e alguns dos direitos dos trabalhadores assegurados constitucionalmente. A Constituição Federal de 1988 trata, dentre outros temas, da existência de cargos de livre nomeação e exoneração dentro da estrutura da Administração Pública. Estes cargos, conforme os dizeres constitucionais, podem ser ocupados por agentes públicos de carreira ou por sujeitos que não pertençam aos quadros formais da Administração. Nesta última hipótese, caminhou o Direito brasileiro no sentido de compatibilizar a realidade dos cargos de livre nomeação e exoneração, com alguns dos princípios
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com o controle jurisdicional de políticas públicas, com a responsabilidade civil do Estado por
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FIDΣS constitucionais da Administração, a exemplo da impessoalidade e moralidade, vedando a prática do nepotismo. Normativas e súmula vinculante vedam hoje expressa e especificamente esta prática, por considerarem-na incompatível com a Constituição. Os cargos de livre nomeação e exoneração, compatibilizados com a CF de 1988 no que tange à vedação ao nepotismo, podem ser alvo de questionamento amparado nos preceitos neoconstitucionais. Estes cargos talvez se situem distantes do texto da CF quando o tema em questão é a saída dos sujeitos que os ocupam em hipóteses de gravidez, acidente, dentre outras. Tradicionalmente vistos como de exoneração plenamente livre, parece ser possível hoje questionar se haveria espaço para a proteção de quem os ocupa, com alguma dosagem mínima de permanência na atuação profissional, nas hipóteses de exoneração de gestante, de trabalhador doente, dentre outras onde há estabilidade assegurada ao trabalhador (gênero) pelo texto constitucional. Seria legítimo exonerar livremente quem ocupa estes cargos quando não caracterizado como servidor de carreira ainda que em caso de gravidez, doença, acidente? Seria possível oferecer aos sujeitos que ocupam estes cargos e que estão acometidos por condições especiais alguma proteção mínima em hipóteses onde a CF confere estabilidade aos trabalhadores? Esta interpretação é legítima na perspectiva da filtragem constitucional e da interpretação sistemática da CF? A resposta positiva aos questionamentos levantados não ocupa hoje amplo espaço de aceitação no Direito. Fica aqui a pergunta na qualidade de fomentadora crítica e a sugestão de um pensar hermenêutico neoconstitucional sobre este tema especificamente e sobre os clássicos elementos do Direito Administrativo.
da segurança jurídica e a proteção da ideia de justiça provavelmente apontará como elemento emblemático. As ideias de segurança jurídica e justiça, tradicional e historicamente apontadas como diametralmente opostas por muitos, talvez possam ser conciliadas e aproximadas em um caminho de equilíbrio. A hermenêutica jurídica atual parece ser legitimada a ofertar auxílios variados para a consecução deste fim. A proposta do presente ensaio é constatar o repensar neoconstitucional do Direito Administrativo e estimular estudos o envolvendo, estudos estes que se foquem nos limites e possibilidades legítimos deste repensar. Feito o convite à pesquisa, é chegada a hora de esperar eventuais resultados acadêmicos que dele apontem!!!
FIDES, Natal, v. 3, n. 2, jul./dez. 2012. ISSN 0000-0000
Responder a este e a outros questionamentos não é tarefa fácil. O limiar entre a tutela
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FIDΣS Recebido 29 set. 2012 Aceito 15 out. 2012
SUPREMO
TRIBUNAL
FEDERAL
NÃO
JULGA,
CONDENA:
INCURSÃO
REFLEXIVA SOBRE O DITO “MENSALÃO” Leonardo Nascimento Costa de Medeiros
O que é o Direito? Há anos refletindo, deparo-me com a indagação toda vez que venho traçar linhas reflexivas sobre algo vinculado ao “Direito”. O curso de direito não ensina, mas direito é a expressão do correto, do reto. “Eu faço direito”, possui, pois, dupla conotação: (i) Eu “curso” direito ou (ii) “produzo” algo de modo direito. Seduzido, pela academia, caio nas vicissitudes da “juventude rebelde”, para asseverar: Direito é a expressão (ou manifestação) de (ou da) Justiça. Direito e Justiça. Droit e Jus. Conexão genética de duas coisas diferentes. O direito é correto, portanto, é justo. Direito é Justiça, mesmo não sendo justo. O que importa é que deve ser justo. Justiça. And justice for all... Pergunto: é correto (direito) condenar sem provas, porque sicrano sabia, ou pelo
sabia, bandido é, e, seguindo, deve ser punido pelo Estado? Na dúvida pro reo e não culpa, não valem no time político. Só valem, para ricos, no time do Judiciário? Entendi. Então vejamos: se não é possível que ele não soubesse, logicamente, ele sabia, e se sabia, deve ser punido pelo Estado. Mas ele é rico. A dúvida deve ser aplicada para ricos! Ok. Então temos: se ele sabia, deve ser punido, mesmo sendo rico. Uau. Que lição de moral.
Advogado e Professor da Universidade Potiguar (UNP). Especialista em Direito. Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
FIDES, Natal, v. 3, n. 2, jul./dez. 2012. ISSN 0000-0000
menos, não é possível que não soubesse? Logo, se não é possível, então, é por que sabia, e se
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FIDΣS É a primeira vez que o Supremo Tribunal Federal, órgão de “cúpula” do Judiciário brasileiro, condena políticos que “roubaram” dinheiro público, no intuito de garantir um “projeto infinito de perpetuação de poder”. E só pode ser “compra de poder político” mesmo, já que Genoíno, por exemplo, é subalterno do segundo escalão do governo, dono de casa em bairro popular da cidade de São Paulo e motorista de carro velho. Estou diante de algo que não é, mas que deve ser. É, ontologia. Deve ser, deontologia. Os meus alunos de Hermenêutica piram. O positivismo, tão mal compreendido, mal estudado, mal pesquisado, e, por derradeiro, mal lecionado, explica não o justo ou o correto, o moral, o reto. É função do positivismo, e de todo seu pragmatismo, dizer o que o direito é, não o que ele deve ser. O direito, então, não é dever ser? É. Mas, a validade e interpretação do direito, pela via juspositivista, enseja a separação entre direito e moral, de modo que o direito como dever ser social não precisa ser justo ou moral para ser (é!) direito! Então, um positivista, analisando o ordenamento jurídico penal, ensinará, sem dúvidas: No caso da dúvida do magistrado, diante das provas apresentadas ao caso concreto, deve a autoridade, absolver o réu por insuficiência de provas (art. 386, vii, CPP). E se não houver provas? O juiz deve absolver o réu com “espeque” no art. 386, v, do mesmo “digesto processual”. Porém, esqueçam tudo isso. Afinal, o juspositivismo, desde o “nazismo” é teoria “velha”, “sepultada na crueldade do III Reich”, “teoria morta”. Agora, amigos, a onda é pós-positivista, neoconstitucionalista, ou qualquer teoria do
conclusão que queira, como queira, de forma livre, e de preferência, com todas as lições de moral possíveis, essas sim, o “verdadeiro” fundamento jurídico de cada condenação penal. É a teoria do decido conforme minha consciência, denunciada há alguns anos pelo professor Lenio Streck. Nem o realismo jurídico é tão cético. O direito, faço questão de deixar claro, para que no futuro não me arrependa de não ter dito, é uma ordem de normas jurídicas válidas, portanto, vinculantes, dotadas de eficácia social, que vão obrigar, permitir ou proibir condutas (ações ou omissões). O direito, então, precisa ser interpretado.
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direito que permita ao juiz, por meio do livre convencimento “motivado”, de oficio, chegar a
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FIDΣS A norma jurídica é a interpretação dada pelo magistrado ao texto normativo. Esse amplo poder discricionário conferido pela Constituição aos magistrados é tema que repercute na doutrina de modos diferentes. Tenho como certo que tudo é efêmero, outrossim, aplaudir o efêmero, é demais. O povo brasileiro idolatra o min. Joaquim Barbosa, diante de sua função de juiz relator do “mensalão”, e já o pede como Presidente da República. Menino pobre e negro que venceu na vida por suas próprias qualidades e que mudou o Brasil. O curioso de Sua Excelência, bisneto de escravos, é ter sido ele, logo ele, o sorteado para “libertar” o país da corrupção endêmica de séculos. Não sou petista, nem tenho partido, nem compromisso com réu, ou com “políticos”, nem com nada que tenha a ver com esse caso. Eu só posso afirmar: Cada grito de vitória, em razão de condenações sem provas, é euforia medieval. No Coliseu era assim. Gladiadores e sangue. Vingança. De resto, o efêmero de sempre: Bandido bom é bandido morto. Jesuítas. Caça as bruxas. Pena de morte. Selvageria, etc. O positivismo jurídico, teoria vazia de conteúdo, e cheia de racionalidades formais, derroca-se diante dos valores extraídos dos direitos ínsitos à pessoa humana, materializados como cláusulas da eternidade na Carta da República de 1988. Direitos fundamentais de resistência enquanto direitos especiais, porquanto espécies normativas de status negativus, de natureza processual penal e penal, as quais impedem que o Estado intervenha na área de proteção e núcleo essencial do direito sacrossanto de liberdade.
de Direito. Antes de direitos, são dois princípios norteadores, os quais medem o grau de civilização de um povo! Quando o Supremo declara aberta uma sessão, ele pode tudo, menos agir como o Congresso. Lá é o lugar do julgamento político! O Supremo é o guardião das liberdades, não a detratora delas! As “casas políticas” que façam julgamentos políticos. O Supremo, ao autorizar a quebra dos vetores acima, autoriza todo um Judiciário a fazê-lo. Este é grande problema que deve ser pesquisado e lecionado daqui para frente. Quem vibra com condenações sem prova hoje, deve saber que, em verdade, está aplaudindo o retrocesso institucional, e, portanto, cravejando na cruz da democracia dois pregos em pulsos que sustentam toda uma reserva de direitos que dão todo o suporte às liberdades.
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O princípio da não-culpa e o favor rei são a própria essência do Estado Democrático
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FIDΣS Não reclamem depois. A culpa é nossa. Nós estamos julgando nosso futuro. A continuar assim, cada um que pegue seu porrete e vá para as ruas defender a si e aos seus. Todos somos culpados, até que um moralista resolva dizer o contrário.
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É como voto.
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FIDΣS Recebido 02 out. 2012 Aceito 25 out. 2012
BREVÍSSIMO ENSAIO SOBRE DISCURSO DE GÊNERO E MÉTODO SOB AS LENTES DA FILOSOFIA POLÍTICA E DA MENTE MODERNAS Fábio Bezerra dos Santos*
1 INTRODUÇÃO A afirmação de que “os limites do seu mundo coincidem com os limites de sua linguagem”, por Wittgenstein no início do século passado, ainda tem suscitado muitas reflexões1. Questões relacionadas com a produção da verdade, realidade e utopias motivam uma busca que tende a revirar antigos paradigmas organizacionais. A ideia de mundo volve a tudo que se apresenta imbuído de significado diante dos olhos de quem vê. Todavia, os sentidos nem sempre transmitem realidade. Assim, desde os primórdios da política, percebe-se tentadora a ideia de trair os sentidos alheios tendo em vista finalidades inconfessáveis. Imperativo, então, compreender o papel e a importância da ilusão e da manipulação a partir das teorias da linguagem, especialmente no que refere ao discurso
como contexto histórico.
2 A LINGUAGEM COMO MÉTODO E CRÍTICA
A questão do mundo sensível que sobressai é: apenas porque não se percebe algo, isto implica sua inexistência? Por certo que a resposta é não. Contudo, do ponto de vista da
*
Professor permanente da Universidade Federal da Paraíba - Faculdade de Direito de João Pessoa. Doutorando em Direito pela UNIMES. 1 Cf. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Tradução de C. K. Ogden. Introdução de Bertrand Russell. Londres: Kegan Paul, Trench, Trubner & Co., Ltd.; e, New York: Harcourt, Brace & Company, Inc., 1922, passim.
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de gênero, tendo as filosofias política e da mente como vetores e o cientificismo moderno
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FIDΣS filosofia política, é como se aquele objeto não existisse mesmo. Isto porque se não é percebido ou mesmo imaginado, logo não adquire sentido. Destituído de significado, também não tem valor e, portanto, não desperta o interesse das pessoas2. De um ponto de vista pragmático, apenas a linguagem é capaz de atribuir significado às coisas, e isto se processa dentro de um sistema complexo de símbolos que interagem entre si buscando sobrepor-se em relação uns aos outros. O simbolismo se apresentou como um movimento cultural em oposição ao realismo, naturalismo e positivismo3. Assim, deparou-se uma perspectiva contrária a toda tendência alienadora, valorizando o interesse pelo individual e o particular em detrimento da visão geral recepcionada pelo organicismo e a ideia de ordem, imperativos desde a concepção de Estadonação vigente à época. Tecer uma crítica à linguagem científica com pretensões de cientificidade pode parecer contraditório. Todavia, como tudo que é cognoscível se processa dentro de um universo comunicacional, a crítica vence o paradoxo quando constitui a si mesma como metalinguagem em relação à linguagem que toma como objeto. Aliás, não se pode negar que os avanços mais significativos no campo da epistemologia se deram logo após a identificação e enfretamento de paradoxos e desarticulação de tautologias4. Desde o iluminismo, o pensamento racional vem sendo colocado em cheque através da intuição de filósofos modernos5. Mas sempre que se intentou qualquer modificação nas estruturas do pensamento racional a linguagem soergue-se como limite (e obstáculo) que tende a resistir às agressões, externas e contradições internas, como esforço de autopreservação6. Assim, a linguagem - e especialmente a linguagem científica - apresenta-se
2
Não se pode dizer, por exemplo, que os extraterrestres são destituídos de significados nos dias atuais, até porque existe toda uma indústria lucrando com o que imaginam e temem em relação aos aliens. 3 Cf. BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. 6.ed. Trad. e notas Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. (originalmente publicada no ano de 1857) 4 Cf. FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e historia dos sistemas. Organizado por Manoel Barros da Motta. 2. ed. Coleção Ditos & Escritos. Vol. II. São Paulo: Forense Universitária, 2005. 5 Nesse sentido a obra de Henri Bergson depara uma filosofia consubstanciada, a priori, em uma crítica às formas de “coisificação” do homem. Trata-se de uma afirmação da liberdade frente as vertentes científicas e filosóficas imbuídas com pretensões de reduzir a dimensão espiritual do homem a leis previsíveis e manipuláveis, análogas às leis naturais e, como imaginou Comte, sociais. Tal filosofia baseia-se na afirmação da possibilidade do real ser assimilado através da intuição da duração. Assim, o tempo vivido é entendido como consciência, é o passado vivo no presente e aberto ao futuro no espírito que compreende o real de modo imediato (BERGSON, Henri. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Tradução de João da Silva Gama. 1. ed. Lisboa: Edições 70, 2011. ______ . Memória e vida. Tradução de Claudia Berliner. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011). 6 Em “Súmula contra os gentios”, Santo Tomás de Aquino deixa evidente que não pode existir incompatibilidade entre razão e religião: “Se é verdade que a verdade da fé cristã ultrapassa as capacidades da razão humana, nem por isso os princípios inatos naturalmente à razão podem estar em contradição com esta verdade sobrenatural.” A
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como se tivesse vida e vontade próprias face a toda pretensão dissonante.
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FIDΣS Muito já se teorizou sobre a relação entre sujeitos e objetos. Criadores e/ou criaturas? Não raras vezes pensadores modernos se depararam com a seguinte desconfiança: “há algo de errado com o mundo”7?
Ela mesma (a linguagem científica) se apresentou à modernidade
como discurso de verdade legitimador das “superestruturas” do Estado. Nesses termos, o pensamento racional e correspondente linguagem, portanto, constituiriam parte de um aparato ideológico? O marxismo percebeu uma falha nesse “universo de aparências” construído e mantido através de uma racionalidade econômica, a qual seria mais bem compreendida à luz de estudos desenvolvidos pela Escola de Frankfurt, sobretudo na primeira metade do século passado sob os direcionamentos de Teodor Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse. Desde então, a teoria crítica à alienação, tendo como foco o capitalismo moderno, tem se aperfeiçoado8. Com a evolução das comunicações, tornou-se ainda mais difícil para o indivíduo saber onde começa e termina o mundo sensível, principalmente porque as racionalidades foram assimiladas como legitimadoras das coisas a que se dirigem e difundidas através de uma política de interesses como as únicas capazes de conferir segurança aos argumentos. Como visto, o pensamento racional é sistemático, portanto, científico, lógico e exclusivista. Contudo, nem assim existe garantia de que haja alguma verdade ou justiça em todo argumento racional. À lógica não é dada conferir virtude aos conteúdos que processa, mas tão somente validade aos raciocínios9. O exclusivismo, por seu turno, apresenta-se como uma característica angular do cientificismo que consiste na afirmação do método de que não apenas “sou o único caminho para a verdade”, como também “sou o único apto a apontar as
empreitada da Igreja desde Aquino no século XIII consistiu em assimilar e submeter o pensamento racional à catequização cristã, partindo de um silogismo bem simples: se toda luz vem Deus, toda clarividência oriunda da razão também só poderia advir da providência divina. Neste sentido, até mesmo o iluminismo seria de inspiração divina, em que pesasse todo alvoroço que o pensamento racional, a priori, pudesse impingir às instituições medievais (AQUINO, Santo Tomás de. Súmula contra os gentios. In: Coleção Os Pensadores: Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot, Ockham. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 66). 7 Esta mesma questão apresentou-se na trilogia cinematográfica Matrix como intuição que motivou o “despertar de Neo”, protagonizado pelo ator Keanu Reeves (Cf. IRWIN, William et al. Matrix: Bem vindo ao deserto do real. Coletânea de William Irwin. Tradução de Marcos Malvezzi Leal. São Paulo: Madras, 2003). 8 Cf. a respeito: HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. Tradução Sebastião Uchoa Leite. Rio de Janeiro: Labor, 1976. ADORNO, Theodor; HORKNEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. 2. ed. Tradução de Vamireh Chacon. Biblioteca Tempo Universitário, n. 60. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. 9 Para citar um exemplo histórico emblemático, basta lembrar que o discurso da supremacia racial ariana que dizimou milhares de pessoas na segunda grande guerra era, sobretudo, um discurso científico que se provou apto a justificar uma absurda ideologia de extermínio.
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falhas dos outros métodos”.
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FIDΣS 3 TRAÍDOS PELOS SENTIDOS
Destarte, os novos paradigmas de identidades sociais surgem tendentes a cometer erros semelhantes e retornarem ao mesmo ponto de partida num círculo sem fim 10. O mimetismo como capacidade de transmutar-se, através de uma conjugação de ideologias, ainda constitui um estratagema eficiente dada à volatilidade com que os reais interesses aparecem e somem diante dos olhos. Nesse sentido, está-se diante de um tempo em que toda subjetividade pode estar alienada, presa a um devir e recomeçar constantes11. A seu turno, comentando sobre a construção da identidade, Manuel Castells esclarece que a compreende como sendo a fonte de significado e experiência de um povo; ou, como “o processo de construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda, um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(is) prevalece(m) sobre outras fontes de significados”. Em seguida, define “significado como a identificação simbólica12, por parte de um ator social, da finalidade da ação praticada por tal ator”. Deste modo, o autor destaca que até mesmo o individualismo (distinto da identidade individual) também pode ser considerado uma forma de identidade coletiva13. Lília do Valle com precisão classifica como assustadora a fragilidade dos sentidos coletivamente instituídos: “longe de ser fenômeno meramente exterior, prolonga e intensifica o sentimento de vazio e de isolamento em que o cotidiano mergulha cada um – não fossem os humanos seres para quem individuação e socialização caminham juntas”14. Apresentada sua objeção, Valle ainda referencia o trabalho de Maria Rita Kehl Sobre ética e psicanálise,
Com exceção de algumas produções muito delirantes na psicose, que mesmo assim são engendradas a partir de alguma forma de endereçamento imaginário, o sentido 10
No último episódio da trilogia Matrix, Neo se apresenta ao Arquiteto do universo matrix e descobre que é a sexta versão de si mesmo e pôde ver numa tela onde seus precedentes fracassaram, bem como o próprio fracasso. 11 É de Jürgen Habermas a expressão “subjetividade alienada” In: HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze Lições. Tradução de Luiz Sérgio Repa; Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 12 Para Pierre Bourdieu, “o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”. O autor também assevera que nas palavras de Durkheim trata-se do “conformismo lógico”. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 7-9. 13 CASTELLS, Manuel. O poder da identidade – a era da informação: economia, sociedade e cultura. V. 2. Tradução de Klauss Brandini Gerhardt. Prefácio de Ruth Correa Leite Cardoso. São Paulo: Paz e Terra S/A, 2006, P. 22-23. 14 VALLE, Lília do. Democracia e movimentos instituintes. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana. In: http://www.scielo.br/pdf/%0D/rbedu/v11n33/a13v1133.pdf. Acesso em 25 de Jun. e 2012, às 16hs e 48min.
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destacando que:
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FIDΣS ou o significado de um ato, de uma experiência ou de uma vida inteira se revela na interface entre o que é mais singular, mais particular para o agente/vivente, e sua inscrição simbólica na cultura em que vive15.
Edmund Husserl anunciou em sua filosofia uma possibilidade de ruptura com o referido círculo enganador através de uma busca metafísica pelas primeiras razões do Ser, noutros termos, a verdade em si, o logos ordenador, a essência dos objetos, apreendidos através de intuição pura com o propósito de descobrir as estruturas essenciais dos atos e das coisas sob análise16. Essa forma de abordagem fenomênica, a priori, revela-se idônea à desconstrução e análise de discursos de gênero alienadores.
4 DISCURSO DE GÊNERO COMO PRÁTICA DE DOMINAÇÃO: UMA ANÁLISE SOB AS ÓTICAS DA TEORIA QUEER E DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
É fácil, portanto, perceber que existe um interesse persistente de muitos seguimentos da sociedade em se apropriar do discurso de proteção de determinadas minorias17. Cumpre, pois, aproximar o arcabouço teórico exposto até aqui à Teoria Queer propugnada por Judith Butler, no intuito de desmitificar o discurso de gênero manipulado por facções políticas contemporâneas. De acordo com a proposta de Butler, orientação e identidade sexual ou de gênero, são resultantes de constructos sociais e, portanto, não há papéis sexuais essenciais ou biologicamente inscritos na natureza humana18.
considerado apenas aquilo que alguém tem ou uma descrição estática daquilo que alguém é, mas, simplesmente, “aquilo que qualifica um corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural”. Ainda de acordo com a autora, “o sujeito é constituído através da força da exclusão e da abjeção, uma força que produz um exterior constitutivo relativamente
15
KEHL, Maria Rita. Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 9. Cf. em HUSSERL, Edmund. A crise da humanidade européia e a filosofia. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. 17 Cf. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 14. ed. São Paulo: Loyola, 2005. ____ . Microfísica do poder. 25. ed. São Paulo: Graal, 2012. 18 BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do "sexo". In: O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Organizado por Guacira Lopes Louro. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, passim. 16
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Evidente, portanto, que Butler parte de uma perspectiva onde o sexo não é
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FIDΣS ao sujeito, um exterior abjeto que está, afinal, "dentro" do sujeito, como seu próprio e fundante repúdio”19. Como se observa, não se pode descartar o valor da representação social incidente nas questões de gênero. Nestes termos, é oportuna a definição de representação social proposta por Moscovici citado in verbis por Miles Hewstone:
Por representações sociais designamos um conjunto de conceitos, enunciados e explicações originado na vida cotidiana. [...] Elas são o equivalente, em nossa sociedade, aos mitos e aos sistemas de crença das sociedades tradicionais; poder-seia mesmo considerá-las como a versão contemporânea do senso comum20.
Se por um lado a abordagem metafísica se apresenta como justificação das questões de gênero, o pragmatismo sugere que os valores por trás dos interesses reforçam a importância da leitura que os atores sociais atribuem aos fatos sociais, independente do valor em si que carreia. Nenhuma dessas hipóteses, contudo, é imune à manipulação por meio da fala21. E, como bem destacou Simone de Beauvoir, célebre representante do feminismo existencialista, tomando o materialismo histórico como ponto de partida, “a humanidade não é uma espécie animal: é uma realidade histórica22.” Para se ter uma ideia do teor ideológico,
Para Judith Butler “o que está em jogo nessa reformulação da materialidade dos corpos é o seguinte: (1) a remodelação da matéria dos corpos como efeito de uma dinâmica do poder, de tal forma que a matéria dos corpos será indissociável das normas regulatórias que governam sua materialização e a significação daqueles efeitos materiais; (2) o entendimento da performatividade não como o ato pelo qual o sujeito traz à existência e aquilo que ela ou ele nomeia, mas, ao invés disso, como aquele poder reiterativo do discurso para produzir os fenômenos que ele regula e constrange; (3) a construção do sexo não mais como um dado corporal sobre o qual o construto do gênero é artificialmente imposto, mas como uma norma cultural que governa a materialização dos corpos; (4) repensar o processo pelo qual uma norma corporal é assumida, apropriada, adotada: vê-la não como algo, estritamente falando, que se passa com um sujeito, mas, ao invés disso, que o sujeito, o "eu" falante, é formado em virtude de ter passado por esse processo de assumir um sexo; e (5) uma vinculação desse processo de "assumir" um sexo com a questão da identificação e com os meios discursivos pelos quais o imperativo heterossexual possibilita certas identificações sexuadas e impede ou nega outras identificações. Esta matriz excludente pela qual os sujeitos são formados exige, pois, a produção simultânea de um domínio de seres abjetos, aqueles que ainda não são "sujeitos", mas que formam o exterior constitutivo relativamente ao domínio do sujeito” (ibidem, p. 151 e seguintes). 20 HEWSTONE, Miles. Representações sociais e causalidade. In: As representações sociais. Organizado por Denise Jodelet. Tradução de Lilian Ulup. Rio de Janeiro: UERJ, 2001, P. 218. 21 Em relação aos níveis da fala, Dino Preti destaca que “cada falante atua de acordo com certos comportamentos lingüísticos constantes na comunidade em que vive e eleitos como ideais para comunicar e transmitir as informações necessárias nos vários momentos de sua vida em comum. Esses hábitos lingüísticos coletivos, em constante mas lenta renovação, ganham gradativamente força de convenções tácitas, leis, admitidas pelas maioria e conservadas através de gerações com características prescritivas. Constituem os usos ou as normas lingüísticas de uma sociedade” (PRETI, Dino. Sociolinguística: os níveis da fala: um estudo sociolingüístico do diálogo na literatura brasileira. 9. ed. São Paulo: USP, 2003, p. 49. ). 22 De minha parte, com uma pitada de neodarwinismo, digo que a humanidade “também” é uma realidade histórica, mas não se pode desprezar, em absoluto, a natureza “guerreadora” de homens e mulheres. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. V. 1. Fatos e mitos. 4. ed. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970, P. 73.
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FIDΣS basta que o próprio leitor avalie a visão dolosa de Beauvoir através da seguinte assertiva: “Only when we abolish the slavery of half of humanity can the reign of liberty be established”23. Observa-se, então, que a valorização da masculinidade parte de uma semiótica bíblica onde Eva se apresenta do homem e para o homem, com substrato no simbolismo “costela de Adão”. Nesse sentido, José Eustáquio Diniz Alves assevera que “A linguagem popular, os chistes e os provérbios refletem e reforçam as desigualdades de gênero”24. Assim, as mulheres foram definidas como o “segundo sexo”, e, posteriormente, normalizadas pela ciência médica como o “sexo frágil”, dentro e a partir de um universo comunicacional que reflete e reforça a diferença de gênero como modo específico de exclusão, onde discursos machistas e feministas, municiados por fatores conjunturais, reforçam, reciprocamente, a submissão do outro25. Hilton Japiassu interroga: “seria a ciência uma intuição masculina?26” Respondo com os argumentos apresentados até aqui, e com Japiassu: é factível reconhecer que não seria um delírio admitir que a ciência moderna fundou-se em uma ideologia marcadamente machista. Do mesmo modo que o presente é marcado por um revanchismo feminista, também manipulado por interesses ocultos, aptos a criar e manter um aparthaid artificialmente construído com base nas genitálias ou mesmo na sexualidade.
5 HÁ SAÍDA PARA AS QUESTÕES DE GÊNERO POR MEIO DE UM AGIR COMUNICATIVO EM UMA REPÚBLICA DE GENITÁLIAS?
ser uma alternativa viável à ruptura desses embates entre discursos bioéticos não fosse uma utopia a ideia de esfera pública imunizada contra as ingerências políticas prevalentes na comunicação social27.
23
Tradução livre: Somente quando abolir a escravidão da metade da humanidade pode o reino da liberdade ser estabelecida. Retirada da biografia de S. Beauvoir: APPIGNANESI, Lisa. Simone de Beauvoir. 1. ed. Londres: INTL PUB. Markenting, 2005, P. 96. 24 ALVES, José Eustáquio Diniz. O discurso da dominação masculina. In: http://www.abep.nepo.unicamp.br/iussp2001/cd/GT_Pop_Gen_Alves_Text.pdf. Acessado em 24.06.2012, às 20hs e15 min. 25 Segundo Jürgen Habermas, “o outro” é tudo que não é você. Noutros termos, a diferença é o fator de justificação da exclusão nas sociedades modernas (HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro. 1. ed. São Paulo: Loyola, 2002). 26 JAPIASSU, Hilton. Ciências: questões impertinentes. Editado Por Márcio Fabri. Aparecida/SP: Idéias e Letras, 2011, P. 25. 27 Cf. HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. São Paulo: Brasiliense, 1989, passim.
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Agrava, então, constatar que o agir comunicativo propugnado por Habermas poderia
28
FIDΣS Sucessos e fracassos na guerra dos sexos constituem dois lados de uma moeda cuja finalidade não depende apenas do indivíduo que a porta, mas, sobretudo, de uma conjuntura de interesses que se interligam a partir da relação jurídica que através dela se estabelece. Assim como a linguagem se compreende a partir de uma teia de signos, também a política, como forma específica de comunicação, obedece a um complexo sistema de interesses historicamente manipuláveis por meio de fatores reais do poder, aí incluído o poder intelectual que normalizou discursos de vertentes bioéticas ao conferir status de cientificidade às questões relacionadas aos sexos e à sexualidade28. Konrad Hesse esclarece que “as forças políticas movem-se consoante suas próprias leis, que atuam independentemente das formas jurídicas”, assim, “questões constitucionais não são, originariamente, questões jurídicas, mas sim questões políticas”
29
. Deste modo,
introduz-se a situação dos fatores reais do poder levantada pelo Hesse, os quais atribuem significados aos fatos, influindo na justificação do poder e na produção dos discursos. Por fim, na obra “A gramática do tempo” Boaventura de Souza Santos propõe um pensamento alternativo. O autor depara apurado diagnóstico de um colapso do contrato social desde Rousseau até a proliferação de fascismos sociais, destacando que é necessário reinventar a democracia, a cultura política e o próprio Estado. Para Boaventura, existiria uma democracia de baixa intensidade, prevalecente nos dias atuais. Sua resposta e alternativa seriam formas de democracia de alta intensidade, municiadas com ferramentas mais efetivas de participação das massas 30.
Por todo o exposto, é possível concluir que o feminismo vem erigindo-se em racionalidade exclusivista, fundada no sexo e na sexualidade. Observa-se, portanto, que não 28
Cf. FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. 2. ed. Organizado por Manoel Barros da Motta. Coleção Ditos & Escritos. Vol. V. São Paulo: Forense Universitária, 2006. 29 “Em 16 de abril de 1862, Ferdinand Lassalle proferiu, numa associação liberal-progressista de Berlim, sua conferência sobre a essência da Constituição (Uber das Verfassungswesen). Segundo sua tese fundamental, questões constitucionais não são questões jurídicas, mas sim questões políticas. É que a Constituição de um país expressa as relações de poder nele dominantes: o poder militar, representado pelas Forças Armadas, o poder social, representado pelos latifundiários, o poder econômico, representado pela grande indústria e pelo grande capital, e, finalmente, ainda que não se equipare ao significado dos demais, o poder intelectual, representado pela consciência e pela cultura gerais. As relações fáticas resultantes da conjugação desses fatores constituem a força ativa determinante das leis e das instituições da sociedade, fazendo com que estas expressem, tão-somente, a correlação de forças que resulta dos fatores reais de poder” (HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Rio Grande do Sul: SAFe, 2009, p. 1). 30 SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tempo. São Paulo: Cortes, 2006 - Apresentação do livro.
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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FIDΣS se trata, apenas, de uma analogia entre o campo da sociolinguística e outras coisas, mas de um complexo ideológico de proporções globais com evidente viés econômico. Urge, pois, estabelecer-se uma tensão específica entre regulação social e a perspectiva emancipatória como condição para se (re)pensar em uma arena pública de debates para o enfrentamento dessas questões de cunho ideológico, (re)criando, antes de tudo, as condições para que não se incorram nos mesmos erros do passado, tampouco sucumbam aos estratagemas dos facciosismos políticos. Trata-se de uma guerra que tende a ser perene, porquanto incutida na natureza humana ao logo de sua evolução. Todavia, atendida esta condição primordial que o iluminismo moderno não foi capaz de criar a questão anunciada em epígrafe ao ponto anterior terá uma resposta afirmativa. Sem isto, toda lucidez é tão efêmera quanto um click e toda saída aboca o trágico fim.
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor; HORKNEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
ALVES, José Eustáquio Diniz. O discurso da dominação masculina. In: http://www.abep.nepo.unicamp.br/iussp2001/cd/GT_Pop_Gen_Alves_Text.pdf. Acessado em 24.06.2012, às 20hs e15 min.
AQUINO, Santo Tomás de. Súmula contra os gentios. In: Coleção Os Pensadores: Tomás de Aquino, Dante, Duns Scot, Ockham. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. 6.ed. Trad. e notas Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. V. 1. Fatos e mitos. 4. ed. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970.
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APPIGNANESI, Lisa. Simone de Beauvoir. 1. ed. Londres: INTL PUB. Markenting, 2005.
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FIDΣS BERGSON, Henri. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Tradução de João da Silva Gama. 1. ed. Lisboa: Edições 70, 2011.
______ . Memória e vida. Tradução de Claudia Berliner. 2. ed. São Paulo: WMF MARTINS FONTES, 2011.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 7-9.
BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do "sexo". In: O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Organizado por Guacira Lopes Louro. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, passim. CASTELLS, Manuel. O poder da identidade – a era da informação: economia, sociedade e cultura. V. 2. Tradução de Klauss Brandini Gerhardt. Prefácio de Ruth Correa Leite Cardoso. São Paulo: Paz e Terra S/A, 2006, P. 22-23.
FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. 2. ed. Organizado por Manoel Barros da Motta. Coleção Ditos & Escritos. Vol. V. São Paulo: Forense Universitária, 2006.
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FIDΣS Recebido 03 set. 2012 Aceito 20 out. 2012
A SEGURANÇA JURÍDICA NA INTEGRAÇÃO REGIONAL SUL-AMERICANA: EM BUSCA DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL Marconi Neves Macedo*
RESUMO A CRFB de 1988 estabelece compromisso com a integração latinoamericana, como forma de alcançar o desenvolvimento social. Assim, o Estado brasileiro celebrou o Tratado de Assunção de 1991, visando criar o Mercosul. Após análise, constatam-se fragilidades do sistema jurídico regional, inclusive reconhecidas pelo STF. Resulta dessas constatações a insuficiência da segurança jurídica desse sistema, especialmente para os particulares. Dentre as possíveis soluções para redução ou eliminação do problema, encontram-se a prática dos acordos
executivos
na
incorporação
das
normas
originárias
Mercosul e/ou a reforma constitucional. Palavras-Chave: Integração regional. Mercosul. Segurança jurídica.
1 INTRODUÇÃO
Em meio a uma pluralidade mundial de Estados justificados com base na Constituição, o direito internacional tem se evidenciado - ao longo das últimas décadas, *
Bacharel em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).Mestre em Direito Pesquisador no Núcleo de Pesquisa em Direito Internacional (NPDI-PPGD-UFRN) da UFRN. Professor de Direito da Integração Sul-Americana no Curso de Especialização em Direito Internacional da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (CEDI-PPGD-UFRN).
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mercosulinas aos Estados, a criação de um tribunal de justiça do
34
FIDΣS especialmente após as duas grandes guerras mundiais – como um importante aliado nessa tarefa, oferecendo soluções de convivência entre os divergentes interesses abrigados pela sociedade internacional, especialmente em se tratando dos interesses dos Estados1. Nesse contexto, há de se considerar que, ante a já forte e ainda crescente interação entre os membros da sociedade internacional – Estados, organizações internacionais e indivíduos –, as relações sociais as quais o direito se compromete a disciplinar são travadas, cada dia mais costumeiramente, em âmbito transnacional. Daí a importância de se estabelecer um sistema jurídico que dê conta dessa dimensão de relações sociais, efetivando uma das razões de ser do direito: a segurança jurídica. Os compromissos assumidos pelo Brasil perante outros Estados, representados pelas convenções internacionais que celebrou, constituem toda uma ordem de juridicidade internacional. Essa normatividade internacional, em razão do modelo de Estado soberano próprio do movimento constitucionalista, deve ser absorvida ou incorporada pelos sistemas jurídicos nacionais para que possa lograr adequadamente seus efeitos práticos, bem como ser respaldada por um sistema jurisdicional que lhe conceda coercibilidade e efetividade. Ao se examinar a situação específica constatada na América do Sul, percebem-se, após o fim dos regimes totalitários – que, em geral, dominaram os Estados do dito continente nas décadas de 1960 a 1980 –, tentativas consistentes de integração regional, tendência esta disseminada nas relações entre os Estados na sociedade internacional, partindo das necessidades econômicas e visando a uma integração de dimensões social, cultural e, até mesmo, política entre seus países (MAGNOLI e ARAÚJO, 2000, p. 99-101). Nesse sentido, é imprescindível ressaltar que o objetivo integracionista é consagrado
parágrafo único, da Constituição Brasileira, pelo que deve ser conduzido prioritariamente. O referido dispositivo estabelece:
Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
1
A exemplo do que consta nos preâmbulos da Carta de São Francisco, que instituiu a Organização das Nações Unidas (ONU), de 26 de junho de 1945 – “Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos [...] a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla”; da Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), de 30 de abril de 1948 – “Convencidos de que a organização jurídica é uma condição necessária à segurança e à paz, baseadas na ordem moral e na justiça”; e, do Tratado de Assunção, que instituiu o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), de 26 de março de 1991 – “Reafirmando sua vontade política de deixar estabelecidas as bases para uma união cada vez mais estreita entre seus povos, com a finalidade de alcançar os objetivos supra mencionados”.
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como Princípio Fundamental da República Federativa do Brasil, nos termos do art. 4º,
35
FIDΣS [...] Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.
Percebe-se que o constituinte de 1988 quis instituir o dever de o Estado brasileiro promover a integração regional, estabelecendo-o em um significativo grau de prioridade, a julgar por sua inserção constitucional. Tendo em vista a consecução desse fim, destaca-se o bloco regional Mercado Comum do Sul (Mercosul), inserido nos objetivos que motivaram a criação da Associação Latino-Americana de Integração2 (ALADI) e, mais recentemente, da União de Nações Sul-Americanas3 (UNASUL). No Mercosul, Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai – com a Venezuela em processo de adesão4 – coadunam seus interesses na busca pela constituição e consolidação de um bloco regional com o objetivo do estabelecimento de um mercado comum, com a livre circulação de produtos, serviços, pessoas e capital, produtos e meios de produção. Idealizado a partir do Tratado de Assunção (1991) e institucionalizado nos termos do Protocolo de Ouro Preto (1994), que lhe atribuiu personalidade jurídica, o Mercosul tem assistido a um desenvolvimento lento e penoso. Vários são os motivos responsáveis por essa constatação, a exemplo das crises econômicas que assolaram o continente sul-americano nos anos 1990 (BARBOSA, 2010, p. 36). A despeito desse fator, a própria postura contraditória do Estado brasileiro também tem sido empecilho, e certamente o principal, para o desenvolvimento do processo de integração, que se ressente, principalmente, da falta de
2
O
FENÔMENO
DA
INTEGRAÇÃO
REGIONAL
E
SEU
PAPEL
NO
DESENVOLVIMENTO SOCIAL LATINO-AMERICANO
A integração regional é um fenômeno surgido no direito internacional. Neste, portanto, encontram-se o seu delineamento conceitual, seus fundamentos e a partir dele é que surge a sua força vinculante. Nesse sentido, o sistema jurídico serve à integração regional 2
Constituída a partir do Tratado de Montevidéu, de agosto de 1980, em substituição à Área de Livre Comércio das Américas (ALALC), com vistas a promover a integração e a criação de um mercado comum latinoamericano (art. 1º). 3 Constituída pelo Tratado de Brasília, de 23 de maio de 2008 – que entrou em vigor no dia 11 de março de 2011, com o depósito, feito pelo Uruguai, do nono instrumento de ratificação –, visa a construir a integração das nações sul-americanas nos âmbitos cultural, social, econômico e político (art. 2º). 4 Protocolo de Caracas, de 04 de julho de 2006.
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segurança jurídica.
36
FIDΣS como o seu instrumento consignador, revelando a necessidade da análise deste em relação às necessidades práticas sentidas pela sociedade internacional. A integração regional se constitui por uma solução procurada a partir de necessidades econômicas surgidas em razão do estabelecimento de uma ordem mundial liberal destinada a promover a maximização dos intercâmbios internacionais (BICHARA, 2008, p. 09), com vistas à busca pela ampliação e expansão dos mercados internacionalizados, de modo a promover o crescimento econômico como meio de alcançar o desenvolvimento, inclusive social, reconhecendo a simultânea dependência e interdependência entre os Estados (CARREAU e JUILLARD, 2003, p. 05). O direito da integração, portanto, constitui um processo de aproximação de Estados vizinhos via estabelecimento de organização internacional exclusiva para este fim, orientado pela cooperação e solidariedade, fundado em interesses econômicos e apoiado em identificações culturais e históricas. Pressupõe o estabelecimento de fases graduais e progressivas para a abertura econômica do grupo de Estados entre si, com a finalidade de acelerar o desenvolvimento econômico e melhorar a inserção internacional, por meio da mitigação das tensões e conflitos de interesses regionais.
2.1 O direito como instrumentalização da integração regional sul-americana
Numa
perspectiva
regional
sul-americana
surgiu
o
ideal
integracionista.
Precisamente, com base nos princípios da cooperação e da solidariedade, revelados a partir do posicionamento de Simon Bolívar, externado no Congresso do Panamá (MENEZES, 2007, p. dos Estados Americanos6 (OEA). O princípio da cooperação concebe a ideia de relação harmônica e construtiva entre os povos expressa no trabalho conjunto em busca do progresso da humanidade, através do desenvolvimento de relações internacionais amigáveis destinadas à abordagem e resolução de
5
Carta de São Francisco, de 26 de junho de 1945, art.1º, § 3º: “Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”; e, arts. 55 a 60. 6 Carta de Bogotá, 30 de abril de 1948, art. 3º, “k”; art. 30: “Os Estados membros, inspirados nos princípios de solidariedade e cooperação interamericanas, comprometem-se a unir seus esforços no sentido de que impere a justiça social internacional em suas relações e de que seus povos alcancem um desenvolvimento integral, condições indispensáveis para a paz e a segurança. O desenvolvimento integral abrange os campos econômico, social, educacional, cultural, científico e tecnológico, nos quais devem ser atingidas as metas que cada país definir para alcançá-lo”; art. 44; e, art. 94.
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117) em 1826 e presentes nas Cartas da Organização das Nações Unidas 5 e da Organização
37
FIDΣS problemas comuns aos Estados. Daí surge o ideal de integração, como um aprofundamento dessa cooperação considerando o contexto específico de vizinhança. Já o princípio da solidariedade implica uma assistência mútua mais profunda, em busca de resultados que propiciem o ganho conjunto dos Estados em contraposição ao direito internacional público clássico (BOHLKE, 2008, p. 195), pressupondo inclusive a assistência mútua entre estes. A proposta original de Bolívar defendia a integração dos países latino-americanos para união de forças contra as metrópoles europeias na tentativa de conseguir alcançar a independência política e econômica para as colônias americanas. Justificava a viabilidade ao observar que a situação das colônias era bastante semelhante no geral, além de compartilharem uma origem cultural comum. Essa é a chamada doutrina bolivariana (BOHLKE, 2008, p. 84). Paralelamente, os Estados Unidos da América, à época uma jovem nação em expansão, propôs a doutrina Monroe, liderada pela máxima “América para os americanos”. Buscando se imiscuir para influenciar no ideal integracionista a seu modo, tentou se incluir nos ideais bolivarianos e propor a integração pan-americana (CARNEIRO, 2007, p. 61). É necessário observar que os princípios indicados, centrais para a questão integracionista, só puderam se desenvolver em razão do reconhecimento e da reflexão sobre outros princípios no contexto da sociedade internacional. Dentre esses princípios orientadores, destaca-se o do direito ao desenvolvimento com vistas ao progresso econômico e social7. Compreender que os ideais de integração são um dos principais planos da América Latina contra a estagnação econômica e os problemas sociais e em favor do desenvolvimento
que os ideais de integração são enfrentados e manuseados em uma plataforma demasiado política, que não oferece a sustentação necessária a um progresso sólido e efetivo.
2.2 Disfuncionamentos jurídicos na integração regional
A primeira razão das dificuldades é referente à soberania. Em muitos países latinoamericanos e especialmente no Brasil, constitui empecilho para a aplicação interna mais
7
Preâmbulos da Carta da Organização dos Estados Americanos, firmada em Bogotá, em 30 de abril de 1948, do Tratado de Assunção que inicia o procedimento de criação do Mercosul, de 26 de março de 1991 e do Tratado de Brasília, que disciplina a criação da UNASUL, de 23 de maio de 2008.
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é fundamental para determinar a importância de efetivar esse projeto. Entretanto, é patente
38
FIDΣS rápida, simples e efetiva das normas internacionais, como se facilitar a vigência interna destas constituísse a eles uma afronta ou mesmo uma ameaça (CASELLA, 1999, p. 71). Cumpre ressaltar, entretanto, que este argumento é paradoxal na medida em que as normas internacionais às quais o Estado se submete são criadas em decorrência do exercício de sua própria vontade estatal e, consequentemente, de sua soberania, especialmente em um continente no qual o constitucionalismo é marcado pela busca da integração regional8. A segunda razão é a processualística de incorporação das normas internacionais de integração ao ordenamento interno brasileiro é demasiado burocrática e lenta, em razão da submissão obrigatória ao crivo do Congresso Nacional em todos os casos de celebração de direito internacional originário, por exemplo. Resta evidente, portanto uma contradição no próprio seio constitucional ao se confrontar os dispositivos constantes do art. 4º, parágrafo único, e do art. 49, I, interferindo contrariamente ao objetivo integracionista, restando mesmo às normas derivadas a necessidade de submissão a um ato interno para efetivar sua incorporação. Assim, essa processualística afeta a segurança jurídica posto que o direito produzido, internacional, depende de um lento e pouco claro processo de internalização ou incorporação ao ordenamento de seus países membros para obter sua vigência e, consequentemente, exigibilidade. Inclusive, o próprio Protocolo de Ouro Preto (1994) estabelece que, ao firmar um compromisso internacional em seu âmbito, o Estado-parte assume apenas o compromisso obrigacional de incorporação da norma, restando a dita norma sem qualquer efetividade imediata. Torna-se mais séria a questão quando se submete uma numerosidade significativa
o art. 42 do Protocolo de Ouro Preto, que determina: As normas emanadas dos órgãos do Mercosul previstos no Artigo 2º deste Protocolo terão caráter obrigatório e deverão, quando necessário, ser incorporadas aos ordenamentos jurídicos nacionais mediante os procedimentos previstos pela legislação de cada país.
E, por fim, a terceira razão da parca segurança jurídica é pertinente ao atual procedimento de solução de controvérsias adotado pelo dito bloco regional econômico, 8
Para exemplificar: Constituição da Argentina, arts. 75 e 24; Constituição do Uruguai, art. 6º; Constituição do Paraguai, art. 145; Constituição da Venezuela, art. 153; Constituição da Bolívia, art. 257, II, 4; Constituição da Colômbia, art. 9º e preâmbulo; Constituição do Peru, art. 44; Constituição de El Salvador, art. 89; Constituição de Honduras, art. 335; Constituição da Nicarágua, art. 9º e preâmbulo; Constituição do Panamá, preâmbulo.
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de normas derivadas, ainda, à necessidade de um ato interno de incorporação, de acordo com
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FIDΣS instituído pelo Protocolo de Olivos, de 18 de fevereiro de 2002, que deixa de garantir a plena exequibilidade das normas mercosulinas. Isso ocorre, em essência, porque o referido não institucionaliza a solução de controvérsias, visto que se utiliza de estruturas ainda temporárias e de caráter intergovernamental. Assim, se as normas internacionais de integração não dispõem de um sistema que garanta sua vigência, perdem força vinculante na medida em que não podem ser executadas por ocasião de seu descumprimento em nível interno. Do ponto de vista internacional, ainda, é importante que as ordens jurídicas internas também aceitem se submeter a um sistema de jurisdição – solução de controvérsias. Assim, resta garantida a observância das normas de integração por uma instituição autônoma e isenta de preferências nacionais (GOMES, 2002, p. 158). As fracas exigibilidade e exequibilidade das normas provenientes da iniciativa integracionista mercosulina – que repercutem tanto na perspectiva internacional quanto do ponto de vista interno do Estado brasileiro – apontam o nível insatisfatório da segurança jurídica do Mercosul. A solução, portanto, deve ter em vista precisamente a desconstituição das barreiras internas à exigibilidade e exequibilidade das normas de integração sul-americanas, em prol da segurança jurídica nas relações econômicas internacionais do Estado brasileiro, considerando a adequada compreensão do instituto da soberania no direito internacional. Resta delineada uma significativa problemática jurídica, que se desdobra em dois planos. Externamente, com a impossibilidade de realização do art. 1º do Tratado de Assunção. E internamente, em decorrência do desdobramento externo, fica impossibilitada a plena dimensões política, social e cultural – tendo em vista que é a partir da dimensão econômica que essas são ensejadas. A partir do conceito de segurança jurídica, então, é possível identificar os requisitos para sua observância em uma integração regional do tipo mercado comum, apresentando-se medidas para a efetivação da segurança jurídica no Mercosul. Assim, são estabelecidos meios para realização do art. 1º do Tratado de Assunção, e, consequentemente, do art. 4º, parágrafo único, da Constituição brasileira, além dos dispositivos constitucionais integracionistas dos demais Estados Membros em prol do desenvolvimento social.
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realização do art. 4º, parágrafo único, da Constituição brasileira. Isto, especialmente em suas
40
FIDΣS 3 O CONCEITO DE SEGURANÇA JURÍDICA E SUA PRESENÇA NA ORDEM CONSTITUCIONAL BRASILEIRA DE 1988
O exame da situação das experiências de integração regional vivenciadas pelo continente sul-americano aponta o Mercosul como a iniciativa de maior expressão e estabilidade, a partir da verificação de sua história e de suas realizações. Esse fato se dá pelo interesse que os países sul-americanos demonstram por ele, na medida em que, para além dos quatro Estados membros iniciais, o Mercosul conta com mais um em processo de adesão, a Venezuela9, e outros cinco na condição de Estados Associados: Chile10 e Bolívia11, desde 1996; Peru12, desde 2003; Equador13 e Colômbia14, desde 2004. Apenas as Guianas e o Suriname, no continente sul-americano, não possuem vínculo com o Mercosul. No entanto, atualmente, as suas normas sofrem de um problema crônico de baixa efetividade, em razão de múltiplas causas. Estas se apresentam em dois campos. O jurídico, desde a ordem constitucional dos países membros, especialmente Brasil e Uruguai 15, se estendendo à sua própria estrutura institucional intergovernamental do bloco e seus reflexos na coercibilidade do direito por este produzido. E o político, conforme se constata na dificuldade em coadunar as políticas macroeconômicas dos Estados Partes, denotando o caráter não prioritário com o qual os governos nacionais encaram a iniciativa integração. A principal consequência decorrente dessa conjuntura é a estagnação do processo de aprofundamento da integração regional em busca do objetivo estatuído no Tratado de Assunção (1991), qual seja, a formação de um mercado comum entre os signatários. O mais
adoção das medidas mais exigentes, a exemplo da consolidação da união aduaneira, que exige o abandono das perfurações à Tarifa Externa Comum (TEC)16. É necessário observar, para definir com clareza os objetivos do Mercosul, que a própria doutrina econômica reconhece para níveis mais profundos, a partir do mercado comum, em virtude da exigência de coordenação de políticas internas e externas, a necessidade da existência de entidades de caráter supranacional. Apenas desse modo é 9
Decisão nº 017/2007 do Conselho do Mercado Comum. Decisão nº 003/1996 do Conselho do Mercado Comum. 11 Decisão nº 014/1996 do Conselho do Mercado Comum. 12 Decisão nº 039/2003 do Conselho do Mercado Comum. 13 Decisão nº 043/2004 do Conselho do Mercado Comum. 14 Decisão nº 044/2004 do Conselho do Mercado Comum. 15 Art. 4º, parágrafo único, e art. 6º, respectivamente. 16 Conforme de constata do confronto entre as Decisões do CMC e a Lista III do Brasil da OMC. 10
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evidente fator caracterizador dessa estagnação é o recorrente adiamento de prazos para a
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FIDΣS possível unificar o que antes se realizava através da associação de normas internacionais externas e tributárias internas, com vistas a garantir a segurança e a harmônica evolução do processo de integração (BAUMANN, CANUTO e GONÇALVES, 2004, p. 107). A estagnação, no caso do processo integracionista ora analisado, é justamente decorrente da baixa efetividade das normas, que acaba prejudicando a segurança jurídica e, consequentemente, diminuindo o aproveitamento e a atuação dos agentes econômicos no ambiente do Mercosul. Portanto, se faz necessário, primeiramente, compreender o que significa a segurança jurídica. Daí, torna-se possível a identificação de possíveis soluções para combater a insegurança que impede a conformação de um mercado comum entre Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai e, mais recentemente, a Venezuela. Registre-se, um mercado comum em prol do desenvolvimento econômico e social. O referido caráter institucional estável enseja a realização dos propósitos motivadores da reunião do povo em Estados, tendo estes consignados em suas constituições aqueles propósitos. É justamente o atributo da segurança jurídica que fornece esse aporte de coesão, consagrando a utilidade social do direito (DELGADO, 2005, p. 08).
3.1 O conceito de segurança jurídica
Desde que o direito assumiu a função de principal elemento regulador da sociedade, por influência do iluminismo modernista (CÁCERES, 1996, p. 250), discute-se a ideia de segurança jurídica. Esta, a segurança proporcionada pela força coercitiva do direito, que induz
dos principais interesses e valores resguardados pela sociedade e encartado nas constituições dos Estados. Assim sendo, é imprescindível considerar inicialmente a segurança jurídica como a característica do direito que o faz útil para a sociedade no papel de instrumento de condução ou, expressão mais consagrada, controle social. É a partir dela que se obtém a coesão social, com a disseminação da confiança em suas instituições. Geralmente, a segurança jurídica é entendida sob um ponto de vista deveras restritivo. Em se tratando de direito internacional, especialmente em face da criação de organismos de natureza internacional, quer sejam intergovernamentais ou supranacionais, a exigência da correta percepção do instituto da segurança jurídica não se contenta com um entendimento que contemple apenas o respeito ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e
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os comportamentos sociais à obediência do ordenamento jurídico legitimado pela proteção
42
FIDΣS à coisa julgada (DELGADO, 2005, p. 03). Necessário, então, tecer considerações acerca do aprofundamento de seu conceito. O respeito aos três institutos indicados acima, conformadores da ideia clássica de segurança jurídica, não é mais suficiente para explicar sua completa dimensão em um mundo globalizado e permeado em diversos níveis pelo direito internacional. Deve-se considerar que a segurança jurídica não é originada apenas da força impositiva do direito, mas também deve ser uma legitimação obtida através do respeito aos pactos e às convenções sociais. Necessário se faz destacar que essas convenções, em regra, são pautadas na vontade comum racionalizada, vocacionada pela boa-fé em busca de conteúdos éticos, exigindo, também, uma conduta positiva (CAVALCANTI FILHO, 1964, p. 64). O próprio fundamento de validade do direito internacional, a regra pacta sunt servanda, aponta para isso. Com a influência da globalização nos choques dos valores sociais entre diferentes culturas, é iminente a perda de influência desses elementos na conduta social. Portanto, resta ao direito cada vez mais responsabilidade quanto à tarefa de disciplinamento das relações desenvolvidas na sociedade, sejam elas de qualquer natureza. O choque desses valores no seio do próprio direito, decorrente do pluralismo cultural da sociedade hodierna, é uma importante questão a ser considerada no estudo jurídico (GALINDO, 2006, p. 114). A segurança jurídica, então, se caracteriza pela confiança transmitida à sociedade pelo direito através de sua acessibilidade, de sua estabilidade e de sua previsibilidade (VALEMBOIS, 2005, p. 18). Isso porque considera reflexamente que as condutas sociais devem respeitar as normas jurídicas, independentemente de concordância ou espontaneidade, mas pela sua força coercitiva, capaz de obrigar os indivíduos à adoção de determinadas
Esse compromisso recíproco da sociedade entre si com respaldo no direito constitui a razão fundamental das constituições dos Estados. Resta então, indissociável a relação entre segurança jurídica e efetividade normativa, que desdobra nos aspectos da exigibilidade e da exequibilidade. Nesse sentido, é de se compreender que as normas devem exercer uma influência psicológica (REALE, 1984, p. 86) sobre o indivíduo, conduzindo seus atos no sentido de buscar não infringi-las em respeito à ordem estabelecida convencionalmente pelo pacto social em torno do direito. Assim, garante-se a harmonia social, decorrente da estabilidade em função da previsibilidade das condutas no seio da sociedade, que devem se aproximar ou, ao menos, respeitar o que está estatuído na ordem jurídica.
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atitudes.
43
FIDΣS Assim, se as normas jurídicas não cumprem a formalização consignada nos instrumentos jurídicos a elas superiores, que as originam e justificam, não pode ser cobrada ou exigida a sua observância. Assim, é caracterizada uma situação de fraca exigibilidade, o que se constata no Mercosul17. Ainda, o sistema jurídico deve considerar que, excepcionalmente, sejam infringidos os seus ditames, e, nesse sentido, é necessário haver um sistema que imponha a observância do direito ao seu descumpridor, seja ele o Estado ou o particular (MELO, 2005, p. 34). A partir desse mesmo raciocínio, mas em sentido inverso, podemos constatar, também, a importância da garantia do acesso direto e indiferenciado a qualquer sujeito no seio da sociedade a esse sistema, para oportunizar a defesa de seus direitos em caso de violação. Trata-se, nesse caso, de forçar o cumprimento da norma diante da resistência oferecida pelo infrator ou descumpridor, quando deve ser, então, efetuada a execução da norma por meio da submissão ao elemento da judicialidade e de seu poder impositivo. Se as normas não são exigíveis, ou se o sistema judicial ou jurisdicional não é vinculante, resta prejudicado o caráter da exequibilidade da norma, o que também é observado no Mercosul18. Há que se considerar, em meio à abordagem do conceito de segurança jurídica, que o processo de construção das relações internacionais entre os Estados, a partir da diplomacia, foi uma alternativa à solução bélica de conflitos, em prol da harmonia e da minimização de prejuízos para toda a sociedade internacional, o que corrobora, em essência, com o conceito ora apresentado. Nesse contexto, é imprescindível o estímulo à confiança entre os Estados. E foi justamente o direito que consignou esta confiança, por meio do fornecimento, a partir de seus
considerando-se também as organizações internacionais e os indivíduos. Assim surgiu e se desenvolveu o direito internacional, permitindo a coexistência pacífica e até mesmo a cooperação entre os sujeitos da sociedade internacional. O direito internacional é uma realidade que demonstra fortes sinais de evolução e que tem contribuído significativamente para a garantia da segurança jurídica no âmbito das relações jurídicas que ultrapassam as fronteiras estatais. Essa finalidade é justamente o que pauta o interesse no tema quando se trata de integração regional, iniciativa surgida a partir de bases jurídicas internacionais.
17
Reconhecida, inclusive, pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Agravo Regimental em Carta Rogatória nº 8.279/1998. 18 Artigo 1º, § 2º, do Protocolo de Olivos.
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instrumentos, da segurança para que as nações confiassem umas nas outras– posteriormente
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FIDΣS Necessário, também, se faz compreender a forma como se expressa a segurança jurídica na Constituição brasileira vigente. Dessa forma, é possível identificar a sua importância no sentido da realização do dispositivo constitucional integracionista.
3.2 A segurança jurídica na Constituição Federal brasileira de 1988
A ordem constitucional brasileira em vigor consagra a ideia de segurança em geral, conforme se constata desde o seu preâmbulo. Repete ainda a menção genérica à segurança na cabeça do seu art. 5º. A despeito dessas menções pouco específicas, o instituto da segurança jurídica, conforme orienta a construção de seu próprio conceito, permeia a existência do Estado de direito, do qual é exemplo o Estado brasileiro. Dessa forma, é um caráter a este ínsito e, portanto, independente de menção expressa no texto constitucional, pois atesta a finalidade do direito perante a ordem social. A construção do mundo jurídico tem, essencialmente, a missão de promover a segurança nas relações sociais. Ainda no art. 5º, inciso XXXVI, a ordem constitucional promulgada defende o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada – os três pilares básicos do conceito clássico de segurança jurídica, conforme referido anteriormente – da possível interferência de leis posteriores, consagrando o caráter de estabilidade e previsibilidade da ordem jurídica. Ressalte-se, em uma das mais expressivas reformas feitas na atual ordem constitucional, a Emenda Constitucional nº 045/2004, de 30 de dezembro de 2004, inseriu na Constituição o art. 103-A19, instituindo o mecanismo das famigeradas “súmulas vinculantes”.
casos a que se referem, desde a primeira instância. O que chama atenção nesse fato é que a ordem constitucional atribui esta competência ao Supremo Tribunal Federal, maior encarregado pela sua defesa, fundando esta atribuição na necessidade de evitar “grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica”, conforme consta do § 1º do art. 103-A.
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“O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei”.
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Consistem estas em súmulas de observância compulsória em sede da apreciação judicial dos
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FIDΣS Nesse sentido, é possível concluir que a segurança jurídica é um valor tão significativo na ordem constitucional brasileira vigente que motivou a adoção de um procedimento de severidade excepcional em busca de sua defesa. Do ponto de vista da doutrina brasileira, a despeito da ausência expressa de dispositivo que ateste a tomada da segurança jurídica como norma constitucional, é defendido o princípio da segurança jurídica como direito fundamental, sob as mais diversas justificativas (DELGADO, 2005, p. 04; GRECO, 2005, p. 568). No mesmo sentido se apresenta, em reiteradas oportunidades, o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que eleva o princípio da segurança jurídica à categoria de princípio constitucional, considerando necessário e incondicional o seu respeito como princípio do Estado de Direito20. Independentemente dessa constatação, e sendo sua existência um reforço ao presente entendimento, a segurança jurídica é indispensável à plena realização constitucional brasileira e, consequentemente, de seu art. 4º, parágrafo único. A efetividade normativa é como condição imprescindível para a observância da segurança jurídica exigida pela sociedade, que pactua entre si um modo de convívio através da instrumentalização em normas jurídicas. Necessário, portanto, indicar meios para promover essa efetividade e a consequente segurança jurídica na integração regional sulamericana, consagrada na ordem constitucional brasileira.
3.3 Medidas em prol da segurança jurídica no Mercosul
mercado comum, é possível propor algumas soluções no intuito de mitigar ou até mesmo resolver os problemas identificados no caso do Mercosul. Essas proposições são: a utilização dos acordos executivos; a criação de um tribunal de justiça do Mercosul com jurisdição aplicável diretamente sobre os Estados Membros; e/ou, a reforma nas Constituições brasileira e uruguaia. Estes acordos, por sua natureza de contiguidade perante o Tratado-quadro de Assunção (1991), se encaixam claramente na condição de acordos executivos. No entanto, pelo procedimento de incorporação genérico, considerando a necessidade de submissão à
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Supremo Tribunal Federal, Ementa do Recurso Extraordinário nº 598099/MS, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 10 de agosto de 2011, e Ementa do Mandado de Segurança nº 26603/DF, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 04 de outubro de 2011.
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Após identificar as condições jurídicas e institucionais para a segurança jurídica no
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FIDΣS apreciação do Poder Legislativo, resta constatado que esses Acordos celebrados no âmbito do Mercosul não são contemplados com esse procedimento abreviado de celebração. Essa observação é lamentável quando se observa a demora na incorporação dos instrumentos, que nos casos apontados variou entre três e cinco anos. Tendo em vista que este tipo de tratamento já é concedido aos acordos de cooperação científica, técnica ou tecnológica (ACCIOLY e SILVA, 2000, p. 30), seria fácil aplicar esta medida, visto que bastaria alterar a prática da incorporação dos acordos provenientes do Mercosul e dotados dessas características. Outra possível solução no sentido de alcançar uma melhor efetividade para as normas mercosulinas e, consequentemente, elevar o nível de segurança jurídica, é a criação de um tribunal responsável por garantir a aplicação das normas mercosulinas vigentes. Vale salientar que o eventual órgão jurisdicional teria que ser necessariamente dotado de certas características para que fosse efetivo no cumprimento de sua missão. Primeiramente, seria imprescindível o reconhecimento de sua jurisdição por parte de todos os Estados membros, bem como a concordância destes em se submeter às suas decisões. Destarte, o conjunto normativo mercosulino teria muito a ganhar, na medida em que poderia ser aplicado de maneira uniforme e sistêmica, conferindo um caráter de maior unidade ao direito da integração. Inclusive, seria oportunizada a formação natural de uma jurisprudência mercosulina, conferindo ainda mais clareza na sua interpretação (BASTOS e FONTOURA, 2004, p. 21). Deve-se registrar, ainda, que a necessidade de um tribunal internacional se torna ainda mais evidente se o objetivo do bloco regional é ir além do nível de zona aduaneira,
certamente constitui um bom referencial (SOUZA, 1999, p. 32). Essa medida, entretanto, destinada a resolver o problema da exequibilidade das normas mercosulinas originárias e derivadas, ainda não seria suficiente para garantir a segurança jurídica no Mercosul. Restaria, ainda, o problema da exigibilidade das normas no tocante tanto ao procedimento de incorporação quanto ao seu posicionamento hierárquico nos sistemas jurídicos dos Estados partes, evidenciando a situação de desprestígio em que se encontram no direito brasileiro. Especialmente a questão da fragilidade do direito derivado seria inalcançável quer por esta medida, quer pela anterior, ou mesmo pela aplicação de ambas em conjunto, dada a sua compatibilidade.
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como ocorre no caso em tela. Nesse sentido, a experiência do Tribunal de Luxemburgo
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FIDΣS Apenas a reforma constitucional brasileira, explicitando a importância e atribuindo preferências ao direito do Mercosul traria, na perspectiva interna, a solução definitiva para os problemas de insegurança jurídica. Saliente-se que, nesse caso, não seria alterada em nada a feição da ordem constitucional de 1988, tendo em vista a importância já destacada que conferiu ao projeto de integração regional no seu art. 4º, parágrafo único. Nesse sentido, o Estado brasileiro encontra-se constitucionalmente desafinado em relação a dois de seus atuais parceiros regionais, quais sejam, Argentina e Paraguai. Assim, compartilha com o Uruguai um sistema constitucional incompatível às exigências observadas para o estabelecimento de uma situação de integração regional em nível de mercado comum (BASTOS e FOUTOURA, 2004, p. 18). Tendo em vista o entendimento manifestado pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro21, não resta outra saída além da reforma da Constituição brasileira, em termos tão específicos quanto foi feito na reforma argentina de 1994. Apenas assim estaria garantida a admissão de instituições supranacionais de integração e de seu direito comunitário – dotado de primazia, aplicabilidade imediata e efeito direito –, em prol da efetiva instalação do Mercosul, como forma de realização do dever contido no art. 4º, parágrafo único, da própria Constituição. No mesmo sentido deveria seguir o Estado do Uruguai, sob pena de incorrer em isolada posição contrária à realização do art. 1º do Tratado de Assunção. Fato este que poderia, inclusive, dificultar sua permanência no bloco. Esta seria a melhor solução à integralidade dos problemas que minam a segurança jurídica no âmbito do Mercosul, do ponto de vista dos agentes econômicos particulares.
dinâmica de intensidade e fluidez das relações econômicas internacionais, alcançando a efetividade normativa necessária à garantia da segurança jurídica e ensejando o sucesso do referido processo de integração, expresso na instalação de um verdadeiro mercado comum entre seus Estados membros.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Supremo Tribunal Federal, ementa do Agravo Regimental em Carta Rogatória nº 8.279 República Argentina, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 17 de junho de 1998.
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Apenas quando vencer estes desafios, ele estará apto a acompanhar o ritmo imposto pela atual
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FIDΣS O processo de integração sul-americana, no âmbito do Mercosul, a despeito do pioneirismo histórico bolivariano, padece pela falta de compromisso político com o seu aprofundamento. Isso é constatado nas atitudes contraditórias de seus Estados membros – principalmente do Estado brasileiro –, que impõem sérias dificuldades à evolução, no sentido de alcançar a efetiva instalação do Mercosul. Diante das dificuldades ínsitas às experiências integracionistas, decorrentes da necessidade de harmonização de interesses inicialmente distintos e, muitas vezes, opostos, deve ser constante o esforço para atingir a melhor arquitetura institucional e jurídica no sentido de garantir a segurança para as relações econômicas dos particulares, efetivos realizadores do processo de integração. Este é o principal motivo determinante do sucesso ou insucesso de um projeto integracionista. Do mesmo modo que a segurança jurídica é o fim próximo e a justiça o fim distante (SAUER, 1933, p.221), a integração regional é o fim próximo e a justiça social o fim distante no contexto do continente sul-americano. Isso porque a integração constitui meio de facilitar à produção econômica o alcance das condições de promover os direitos fundamentais – especialmente em contextos de desigualdade social, como é o caso do subcontinente sulamericano. Os problemas observados na experiência do Mercosul são decorrentes de fraquezas em duas dimensões: a estrutura institucional e, por decorrência desta, a falta efetividade do direito produzido pelo bloco de integração. As fraquezas apontadas, por sua vez, já são, em parte, decorrência de limitações existentes nas ordens jurídicas dos seus membros. O Estado brasileiro, que deveria ser líder regional, revela em seu sistema
adoção de um modelo soberanista apegado ao dualismo, constituindo entraves ao cumprimento de seus compromissos internacionais. Por outro lado, estabelece como Princípio Fundamental da República Federativa do Brasil a implantação da integração latino-americana, conforme consta do art. 4º, parágrafo único, da Constituição Federal. O Supremo Tribunal Federal, na qualidade de intérprete constitucional, poderia ter concedido ao objetivo integracionista alguma distinção interpretativa. Entretanto, diante da ausência no texto constitucional de qualquer dispositivo de concessão de privilégio à incorporação das normas mercosulinas, asseverou a impossibilidade de conferir qualquer tratamento diferenciado a estas. Dessa forma, tanto o direito originário quanto o derivado produzidos em sede do Mercosul enfrentam significativas dificuldades para atingir a devida vigência em ambas
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constitucional óbices significativos ao processo integracionista. A principal contradição é a
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FIDΣS dimensões jurídicas, internacional e interna, em cada Estado membro. Assim, resta fortemente enfraquecida a exigibilidade de seu sistema jurídico e o seu caráter vinculante – responsável por induzir as condutas dos particulares em direção à realização do projeto integracionista. Por outro lado, o sistema de solução de controvérsias do Mercosul, que deveria obrigar os países membros externa e internamente ao cumprimento das normas de integração, encontra-se em um estágio de fraca evolução, especialmente considerando-se seu caráter ainda provisório. O sistema é, também, de caráter aberto, posto que faculta à busca por outras estruturas de solução de controvérsias, que certamente não têm compromisso com a defesa dos interesses do processo de integração, ensejando o esquivamento por partes de eventuais infratores do direito do Mercosul. Ademais, não tem o condão de alcançar as necessidades dos particulares, na medida em que veda sua participação direta na solução de controvérsias. Assim, o atual mecanismo de solução de controvérsias não consegue exercer a força coercitiva necessária perante as condutas dos Estados e dos particulares, no sentido de garantir a exequibilidade, a aplicação, a efetividade das normas jurídicas vigentes no Mercosul – fato este que seria necessário para a evolução do processo de integração até a formação do mercado comum. A principal consequência dessa dupla problemática, decorrente em parte da ordem constitucional brasileira, é um prejuízo severo à garantia da segurança jurídica nas relações econômicas no contexto da integração mercosulina, quer seja do ponto de vista regional, quer seja do aspecto interno de cada Estado-parte. O apego à soberania como pretexto para assumir uma postura contraditória, como a do Estado brasileiro, anulando a regulação e as correções efetuadas pelo direito internacional, enseja a submissão a pressões puramente imediatistas,
Em cumprimento ao art. 1º do Tratado de Assunção e ao princípio fundamental estatuído no parágrafo único do artigo 4º da Constituição Federal de 1988, conclui-se que, para além de soluções como o recurso aos acordos executivos ou à criação de um tribunal de justiça mercosulino, é necessária a reforma constitucional brasileira – e, também, uruguaia, atentando-se para a venezuelana em razão de sua entrada no bloco regional. Apenas dessa forma é possível garantir a efetivação do Mercado Comum do Sul.
REFERÊNCIAS
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muitas vezes, prejudicando o interesse nacional (GARCIA, 2001, p. 22).
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THE LEGAL CERTAINTY IN SOUTH AMERICAN’S REGIONAL INTEGRATION: SEARCHING THE REGIONAL DEVEPLOMENT
ABSTRACT The 1988’s Brazilian constitutional commits to the Latin-American regional integration. So, it celebrated the Asuncion Treaty in order to create Mercosul. However, the regional law system has fragilities, recognized by the Brazilian Supreme Court. It follows from these findings the lack of legal certainty provided by the mercosul’s legal system, considering its effects both international and within the brazilian state. Among the possible solutions to reduce or eliminate the problem are the executive agreements in the mercosul’s original rules incorporation to the brazilian state, the creation of a mercosul’s court of law and/or a constitutional reform. FIDES, Natal, v.3, n. 2, jul./dez. 2012. ISSN 0000-0000
Keywords: Regional integration. Mercosul. Legal certainty.
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FIDΣS Recebido 21 set. 2012 Aceito 12 out. 2012
A COMPLEXA CORRELAÇÃO ENTRE O MULTICULTURALISMO, O ISLÃ E OS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES: O CASO DO VÉU E DA MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA Samantha Nagle Cunha de Moura*
RESUMO O choque de valores entre sociedades ocidentais e comunidades islâmicas acaba produzindo inúmeros desafios no que tange aos direitos humanos das mulheres muçulmanas, tradicionalmente subordinadas em suas culturas. Este artigo discute a existência de interpretações progressistas do Islã e a desconstrução da identidade muçulmana como um bloco monolítico; aborda as tensões culturais existentes em sociedades ocidentais multiculturais a partir de dois estudos de caso – a questão do véu na França e a mutilação genital feminina –, e problematiza a possibilidade de uma compreensão dos
internacionais já existentes. Palavras-chave: Direitos humanos das mulheres. Multiculturalismo. Islã.
1 INTRODUÇÃO
*
Graduanda em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Diretora geral do comitê Organização para Cooperação de Xangai (OCX) da recém-concluída XII Simulação de Organizações Internacionais (SOI) e advogada na área cível/criminal. Lattes: <http://lattes.cnpq.br/3482341440598209>.
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direitos humanos que respeite as diferenças culturais e os padrões
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FIDΣS Os direitos humanos nos propõem desafios aparentemente insustentáveis em um mundo marcado por multiculturalidades e tensões entre modelos políticos, sociais e de desenvolvimento fundamentalmente distintos. A pretensão da universalidade – pretensão utópica? – de valores frequentemente associados a um sistema de pensamento marcadamente ocidental obstaculiza o diálogo intercultural em uma comunidade internacional plurívoca e repleta de diferenças? Há determinados sistemas de valores essencialmente incompatíveis com os direitos humanos demarcados pelo sistema internacional de proteção? Há possibilidade de uma construção interativa e compreensiva entre cosmovisões diferentes? As questões relativas aos direitos humanos das mulheres, sobretudo das muçulmanas, minoria especialmente afetada por discriminações das mais variadas fontes e espécies, representam um desafio particularmente intrincado. A temática abarca noções dissonantes acerca do próprio Islã e das representações de gênero ali reservadas às mulheres, além de problematizar os limites de expressão da liberdade de crença religiosa em sociedades multiculturais. O papel e o status das mulheres muçulmanas têm se tornado altamente politizados e carregados de símbolos nas batalhas culturais entre o mundo muçulmano e o Ocidente, assim como dentro do próprio mundo muçulmano. As provisões adotadas por países como França e Turquia no sentido de proibir o uso do véu em escolas e/ou locais públicos e as dificuldades enfrentadas por países como Canadá e Grã-Bretanha para lidar e discutir a prática da mutilação genital feminina são exemplos paradigmáticos para ilustrar as tensões que aqui pretendemos abordar. O mais importante fator a ser considerado, contudo, é como promover e garantir uma plataforma comum e um entendimento inclusivo para construir a verdadeira emancipação das “mínimo ético irredutível” decantado nos instrumentos internacionais de direitos humanos. Coerentemente com o próprio processo histórico de especificação do sujeito de direito, o valor da igualdade deve ser repensado, situando a mulher historicamente e considerando suas especificidades identitárias, sem anular as particularidades e as crenças que eventualmente possa professar.
2 OS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES MUÇULMANAS EM UM CONTEXTO MULTICULTURAL
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mulheres – sejam elas católicas, muçulmanas, hindus, ateias – sem negligenciar o chamado
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FIDΣS Ao enfatizar a questão da igualdade (formal) de todos os seres humanos, independentemente de sexo, raça, etnia, nacionalidade, religião ou qualquer outra condição, a luta da modernidade pelos direitos humanos acabou colocando em evidência os chamados “direitos de liberdade negativa”, pressupostos de um absenteísmo estatal assegurador de um espaço privado livre de quaisquer absolutismos. Na esfera internacional, todavia, uma crescente aspiração de determinados grupos sociais de serem reconhecidos em sua identidade específica e de serem especialmente protegidos por suas vulnerabilidades acabou sobrelevando o direito à igualdade para dar lugar ao direito à diferença. A questão da diferença assume importância especial e transforma-se num direito: não só o direito dos diferentes a serem iguais, mas o direito de afirmar a diferença (CANDAU, 2008, p. de internet). Nesse diapasão, os direitos humanos deixam de ser associados a uma ótica puramente individualista (fundamentalmente direitos civis e políticos) e passam a ampliar seu catálogo de significados para abarcar direitos coletivos, culturais e ambientais. Como preconiza Flávia Piovesan, Luciana Piovesan e Priscila Kei Sato (2012, p. 262):
Se uma primeira vertente de instrumentos internacionais nasce com a vocação de proporcionar uma proteção geral, genérica e abstrata, refletindo o próprio temor da diferença (que na era Hitler foi justificativa para o extermínio e a destruição), percebe-se, posteriormente, a necessidade de conferir, a determinados grupos, uma proteção especial e particularizada, em face de sua própria vulnerabilidade. Isto significa que a diferença não mais seria utilizada para a aniquilação de direitos,
Há, contudo, grandes críticas tecidas por relativistas que condenam a linguagem e o processo de formação dos direitos humanos como conhecemos hoje, acusando a prevalência de uma visão ocidentalizada e o desprezo ao pluralismo cultural. Os universalistas, por outro lado, rechaçam a suposta “arrogância imperialista” apontando que muitos Estados se utilizam desses argumentos como forma de legitimar determinadas violações de direitos e liberdades fundamentais e ficar imunes ao controle da comunidade internacional (PIOVESAN, 2009, p. 153). Uma terceira alternativa, por sua vez, propõe a superação da dicotomia universalismo/relativismo e o estabelecimento de um cosmopolitismo contra-hegemônico e insurgente, com diálogos interculturais sobre preocupações convergentes, ainda que expressas a partir de diversos universos culturais.
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mas, ao revés, para a promoção de direitos. (grifo nosso).
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FIDΣS Ao falar de multiculturalismo, Vera Maria Candau (2008, p. de internet) apresenta duas abordagens fundamentais: uma descritiva e uma prescritiva. Aquela afirma que o multiculturalismo é um fato, uma característica, presente nas sociedades atuais; esta entende o fenômeno como uma maneira de transformação da dinâmica social, aceitando que os processos de “hibridização cultural” fazem parte da contemporaneidade e mobilizam a construção de identidades em construção permanente e incentivando a promoção da interrelação entre grupos culturais distintos. O cerne do multiculturalismo como um projeto, uma visão, uma ideologia e uma maneira de formular políticas públicas repousa no reconhecimento do “outro” como uma ressignificação da cidadania e na possibilidade de construção de uma compreensão de direitos humanos que contemple os mais variados significados da dignidade da pessoa humana. O caso das mulheres muçulmanas é um dos tópicos mais polêmicos nesse contexto. A região árabe, lugar de origem de muitas dessas mulheres, apresenta sérios problemas que dificultam sobremaneira o progresso de seus direitos humanos. Nesse sentido, os dados trazidos pelo Relatório de Desenvolvimento Humano Árabe de 2005 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) são elucidativos para compreender o contexto socioeconômico de onde essas mulheres vieram: países árabes apresentam altas e inaceitáveis taxas de morbidade e mortalidade associados à gravidez e funções reprodutivas; mulheres em diversas partes do mundo árabe não são economicamente independentes (o que aumenta a sua dependência dos homens e as tornam mais expostas à subjugação sexual e violência física); muitas meninas e mulheres conhecem muito pouco de seus corpos, de sua saúde sexual e reprodutiva e do vírus da AIDS – a vasta maioria contrai a doença de seus próprios maridos; a taxas de analfabetismo entre mulheres – metade delas são analfabetas –, o que denuncia a pobre preparação que elas têm para participar efetivamente da vida pública. As mulheres e o núcleo familiar frequentemente representam papeis simbólicos cruciais na construção de uma “solidariedade de grupo” frente à sociedade mais ampla, sendo vistas como as últimas e invioláveis carregadoras e transmissoras da identidade e dos valores autênticos do grupo. Tal valorização ocorre mediante a construção cuidadosa de códigos binários de comportamento: a parte feminina do grupo deve ser coberta (ao contrário de exposta), modesta (ao contrário de promíscua), leal (ao contrário de moralmente corrupta), casada (ao contrário de sexualizada), fértil (ao contrário de sem filhos) e assim sucessivamente. Nessas condições, o desafio às práticas tradicionais pode ser rapidamente
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região árabe tem uma das menores taxas mundiais de educação feminina e uma das maiores
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FIDΣS interpretado como um ataque à própria essência e existência daquela comunidade (SHACHAR, 2006, p. 52). Por essas razões, a mulher e a sua sexualidade são fatores que ocupam um espaço de maior relevância no imaginário cultural e nas instituições políticas islâmicas: o seu corpo e os seus comportamentos são politizados e, muitas vezes, dissociados de qualquer análise em termos de autodeterminação e de direitos sexuais e reprodutivos. O clamor de vozes mais progressistas, transgressoras da integridade comunal para os mais tradicionalistas e/ou poderosos, pode ser rapidamente silenciado e tachado de imoralidade ou deslealdade ao grupo. Outrossim, não se pode olvidar que as relações intragrupo são atravessadas pelo poder e, por isso, indubitavelmente assimétricas. Para Ayelet Shachar (2006, p. 52), o endurecimento das fronteiras de inclusão e exclusão, acompanhado pelo medo dos desafios apresentados pela assimilação e secularização, frequentemente é utilizado como argumento para líderes conservadores imporem uma leitura rígida e estrita das leis de uma tradição em nome de um esforço coletivo para preservar a identidade distinta do grupo em face de uma real ou imaginária ameaça externa – fenômeno este alcunhado pela autora de “culturalismo reativo”. As fortes políticas de assimilação de grupos minoritários devem, portanto, atentar para os riscos desproporcionais que subgrupos mais vulneráveis, dentre eles, as mulheres, podem sofrer dentro de comunidades encampadoras de discriminações de gênero. A situação das mulheres muçulmanas vem, há muito, sendo condenada pela comunidade internacional e por ativistas de direitos humanos, vez que os relatos informam que elas ainda estão sujeitas a fortes estereótipos de gênero que as colocam em uma posição “honra”, violência doméstica e mutilação genital feminina são práticas recorrentes e frequentemente fundamentadas na religião. De acordo com a Shari’a1, um homem pode divorciar-se de uma mulher por simples repúdio, enquanto a mulher deve oferecer justificação para requerer o divórcio, além disso, se ela casar-se novamente perderá a custódia de seus filhos, mesmo que o pai seja abusivo. Em qualquer procedimento judicial a palavra da mulher vale apenas metade da do homem. Além disso, a Shari’a considera crimes capitais o homossexualismo, a apostasia e o sexo fora do
1
A Shari’a é o corpo de leis islâmicas que regulamenta matérias de ordem civil, criminal e familiar. Ela descende do Corão, do Hadith (texto que documenta os ensinamentos e os feitos do Profeta Mohammed, compilados um século depois de sua morte), do ijma (consenso dos teólogos) e do qiyas (raciocínio da analogia) (THE AHA FOUNDATION, 2012, p. de internet).
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de inferioridade dentro e fora de casa. Casamentos forçados, violência por questões de
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FIDΣS casamento pela mulher, neste caso, a penalidade consiste no apedrejamento até a morte (THE AHA FOUNDATION, 2012, p. de internet). Esse status quo não significa, no entanto, que as estruturas patriarcais existentes em determinadas sociedades islâmicas são imutáveis e que devem ser aceitas de qualquer forma em nome da tolerância e do pluralismo cultural. Um número crescente de mulheres e homens muçulmanos reformistas, nos Estados Unidos e em outros lugares, estão, de fato, clamando por uma reinterpretação de certos versos corânicos usados para a subjugação da mulher. Porém tal tarefa está sendo extremamente dificultada pela pressão exercida por fundamentalistas (THE AHA FOUNDATION, 2009, p. 2). As abordagens encontradas por ativistas para pressionar transformações na compreensão da Shari’a são variadas. A maioria das mulheres ativistas em países islâmicos tem alicerçado as suas reivindicações nos padrões internacionais de direitos humanos, reafirmando, por exemplo, o princípio da não discriminação trazido pela Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, ou CEDAW, de 1979, e a importância entre uma separação maior entre religião e Estado. Outras, por seu turno, preferem sustentar suas pretensões emancipatórias dentro dos moldes da religião islâmica, preconizando que o espírito da mensagem divina – especialmente igualdade (perante Deus), justiça (através de Deus) e a prioridade do bem-estar geral – deve ser aplicados atualmente, de forma contextualizada e sistemática, evitando interpretações de versos esparsos como técnica argumentativa. Embora em ambos os casos o objetivo seja a concretização dos direitos humanos nas vidas de homens e mulheres, esta última abordagem reflete que algumas ativistas não estão
forma igualitária (GESELLSCHAFT FÜR TECHNISCHE ZUSAMMENARBEIT, 2009, p. de internet). Nenhum grupo foi mais influenciado de maneira drástica e imediata pela difusão da educação e da comunicação em massa do que as mulheres muçulmanas, que têm lutado por reformas legais e pela construção de novas regras (MONSHIPOURI, 2004, p. de internet). Os argumentos ventilados pelo grupo de advocacy capitaneado pelas ativistas muçulmanas são bastante firmes no sentido de revisitar os textos sagrados – Corão e Hadith – com olhos mais sensíveis às modernas aspirações e expectativas em relação aos papeis sociais e sexuais esperados e incentivados em homens e mulheres. Para elas, a desigualdade entre sexos na maior parte das sociedades árabemuçulmanas é apenas uma construção de intérpretes misóginos e anacrônicos – em sua grande
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dispostas a renunciar suas convicções religiosas e suas identidades culturais para viver de
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FIDΣS maioria, homens –, que distorcem a mensagem divina para justificar tratamentos degradantes às mulheres com base nas relações existentes na península arábica patriarcal e escravagista do século VII.2 Aïcha El Hajjami (2008, p. de internet), por exemplo, preconiza que o princípio igualitário encontra-se decantado no próprio conceito de unicidade de Deus, sendo extremamente significativo que a quarta sura intitulada “as Mulheres” – que contém a maior parte das prescrições relativas à vida familiar – abre-se com a ideia da origem comum do homem e da mulher, que é a “alma única” (nafs). Os textos corânicos, ela acrescenta, apresentam ensinamentos muito ricos em termos de respeito e dignidade para as mulheres que, infelizmente, não foram traduzidos pelos diferentes intérpretes para as normas jurídicas. Pior do que isso, algumas prescrições corânicas, libertadoras para a época em que foram instituídas, foram desviadas de suas finalidades e interpretadas com um sentido opressivo, como é o caso da poligamia, da herança e da dissolução do laço conjugal. Asma Barlas (citado por BALDI, 2006, p. de internet), por sua vez, salienta que diferentes leituras produzem “fundamentalmente diferentes Islãs” para as mulheres, sendo necessário verificar quem lê, como e em que contexto, para extrair uma leitura que não apoie as modernas formas de patriarcado nem a manutenção de papeis delimitados pela biologia. Sustenta, ainda, que alegações frequentemente apresentadas em sociedades muçulmanas de que o próprio Deus elevou o homem sobre a mulher advêm de interpretações de palavras ou versos solitários do Corão: se Deus não é criado (e, portanto, está além do sexo e do gênero) e se Ele não provoca zulm (transgride direitos), não há motivos para masculinizar
Seria uma incongruência tremenda que as mulheres sejam iguais aos homens perante Deus, mas desiguais perante homens. Nesse diapasão, Barlas (citado por BALDI, 2006, p. de internet) convoca uma gender jihad (jihad de gênero) para estabelecer a tão almejada justiça de gênero no pensamento e na práxis muçulmana, com a inclusão da mulher em todos os aspectos da vida islâmica.3 2
Um exemplo paradigmático é a possibilidade (ou não) do exercício da magistratura pelas mulheres. Em inúmeros países da região árabe, às mulheres não é permitido ocupar um cargo desse porte por serem “emocionais demais” e por razões fundamentadas em versos do Corão. Em outros países árabes, todavia, várias mulheres exercem a magistratura, já que é entendido que, pela Shari’a, elas podem ocupar tais cargos. O fato de que interpretações diametralmente opostas podem ser sustentadas a partir de um mesmo referencial teórico demonstra, para alguns, a possibilidade de transformação por meio do Islã nas nações muçulmanas (GESELLSCHAFT FÜR TECHNISCHE ZUSAMMENARBEIT, 2009, p. de internet). 3 Embora muitos rotulem tais reivindicações como “feminismo islâmico”, a epistemologia de tais teorias é marcadamente islâmica, e não feminista. Esse denominado feminismo não somente quebra a díade leste/oeste,
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Deus ou atribuí-lo injustiças derivado da supremacia do homem (BARLAS, 2009, p. 3).
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FIDΣS Nessa ótica, é de fundamental importância reconhecer e considerar as desigualdades que ainda residem no seio da comunidade islâmica do que simplesmente promover o diálogo entre “representantes” oficiais para viabilizar políticas multiculturais (BENHABIB, DEVEAUX citado por SHACHAR, 2006, p. 71). O processo discursivo deve ser aberto mediante canais de comunicação sólidos e constantes em três instâncias: dentro da comunidade, dentro da sociedade mais ampla e entre ambos. Não só isso, os proponentes de soluções legais/institucionais devem procurar delinear políticas multiculturais que incentivem a reinterpretação de tradições pelos grupos minoritários de forma a preservar sua cultura e identidade e, ao mesmo tempo, permitir que as mulheres gozem de um progresso em suas posições dentro do grupo (SHACHAR, 2006, p. 71). De qualquer forma, a conciliação entre as pretensões de igualdade de gênero e a fé islâmica seria claramente factível e até desejável para aqueles que querem se integrar em sociedades multiculturais, mas que não se sentem obrigados ou dispostos a abrir mão de suas convicções religiosas para tanto. Talvez uma nova consciência quanto à relação entre a mulher e o Islã seja a inovação que faltava para anular os estigmas que ainda circundam a cultura muçulmana e viabilizar uma maior comunicação entre a esfera secular e a esfera religiosa em determinadas sociedades.
2.1 O caso do véu na França A problemática do véu é um dos exemplos mais paradigmáticos das “guerras comunidades islâmicas. Em diversos países europeus4, a discussão pública adquiriu tons proibicionistas, reputando a prática muçulmana como uma afronta à laicidade do Estado e aos valores republicanos, além de símbolo da submissão das mulheres no Islã. O corpo da mulher, como de costume, tornou-se o ponto central de um debate inserido em um conjunto de
como também desafia a polaridade religioso/secular. Como diz Margot Badran (citado por BALDI, 2006, p. de internet), “pessoas do mundo inteiro chegam a conceitos de igualdade de gênero e justiça social por meio de diferentes rotas, através de diferentes textos – religiosos ou seculares”. 4 França, Bélgica e Turquia estão entre os países europeus que instituíram de forma geral o banimento da utilização de véus que cobrem todo o rosto. Espanha, Itália e Alemanha aprovaram o banimento apenas em localidades específicas em seus territórios. BBC. The Islamic Veil Across Europe. Disponível em: <http://www.bbc.co.uk/news/world-europe-13038095>. Acesso em: 19 ago. 2012.
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culturais” que se travam entre sociedades com tradições fortemente seculares e as
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FIDΣS conflitos intercomunais políticos e sociais muito mais amplo do que um simples código de vestimenta. O caso francês, nesse contexto, foi de longe o mais polêmico e agressivo. A regulação da questão advém de meados de 2004, com a Lei sobre Secularidade e Símbolos Religiosos Conspícuos em Escolas que proibia a ostentação de símbolos ou vestimentas que manifestassem abertamente a filiação religiosa do indivíduo nas escolas, o que diretamente afetava a utilização dos véus por estudantes muçulmanas. Seis anos depois, a Assembleia Nacional e o Senado votaram uma nova lei, entrando em vigor em abril de 2011, que veda a dissimulação do rosto com roupas em qualquer ambiente público (cafés, restaurantes, lojas, lobby de hotéis, bancos, escolas, teatros, cinemas, florestas, praias, jardins públicos etc). A extensão das proibições trazidas por essa nova lei é assustadora: não só mulheres francesas são atingidas, mas qualquer mulher que pise em solo francês poderá se submeter às sanções caso não respeite as disposições legais. As sanções constituem em multa de 150 euros à mulher recalcitrante que use alguma peça indumentária que cubra o rosto (aí incluindo, obviamente, hijabs, niqabs e burqas) e uma multa de 30.000 euros e um ano de prisão ao indivíduo que forçar qualquer mulher a utilizar tais vestimentas (se a “vítima” for menor de idade, a multa é de 60.000 euros e o encarceramento é de dois anos) (SNYDER, 2011, p. 15). A fundamentação dos argumentos se arrima na tradição secular francesa, construída e fortalecida há séculos e positivada no artigo 1º da Constituição de 1958. A solidificação de uma identidade cultural comum francesa sempre pressupôs – e ainda pressupõe – o afastamento total da influência da religião da esfera pública e dos assuntos estatais. Como dito pelo Conselho de Estado em 1989, vestir o hijab dentro da sala de aula é potencialmente uma
2006, p. 80). A teleologia da legislação francesa é a mesma das legislações pretéritas e de outros relatórios do governo sobre o assunto, como o relatório ao Presidente da República Francesa da Comissão de reflexão sobre a aplicação da laicidade na República, de 11 de dezembro de 2003. O referido relatório, ao expor suas razões para banir o véu islâmico, aprofunda a dicotomia entre o “nós” e o “outro”, partindo-se da premissa de que o islamismo é a priori uma cultura incompatível com a unidade de valores fundante da República francesa e, por isso, descabida de ser expressada no ambiente público. O que não se considera, todavia, é que não se pode confundir a neutralidade do Estado e a de seus representantes legais com a neutralidade do cidadão (PINTO, 2006, p. de internet).
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“ameaça à ordem do estabelecimento ou ao funcionamento normal do ensino” (SHACHAR,
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FIDΣS A Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) e a Convenção Europeia de Direitos Humanos são clarividentes ao instituir a liberdade de pensamento, de consciência e de religião como um direito humano universal e inalienável. A Declaração Universal de Direitos Humanos, em seu art. XVIII, afirma que:
Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.
Já a Convenção Europeia, em seu art. 9º, prescreve que:
1. Todos têm direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade, seja sozinho ou em comunidade com outros e em público ou em particular, de manifestar sua religião ou crença pelo culto, pelo ensino, pela prática e pela observância. 2. A liberdade de o indivíduo manifestar religião e crenças deve estar sujeita somente a limitações que são prescritas por lei ou necessárias à sociedade democrática no interesse da segurança pública, para a proteção da ordem pública, saúde e moralidade, ou para a proteção dos direitos e liberdades de outrem. (tradução livre)
A cláusula de limitações prevista no item 2 do artigo supratranscrito acabou por servir como abertura para uma legislação restritiva Europa afora. A própria Corte Europeia de
utilização do véu em escolas públicas de países com forte tradição secular, como se pode atestar em Dahlab vs. Suíça, Leyla Sahin vs. Turquia e Dogru vs. França (SNYDER, 2011, p. 15). Apesar da jurisprudência, temos que as finalidades pretensamente almejadas pelo legislador francês (proteção dos valores republicanos e do secularismo, emancipação das mulheres islâmicas e integração da comunidade na sociedade francesa), apesar de legítimos, não são adequadamente alcançados pela restrição imposta. Como já ventilado neste trabalho, o islamismo não é uma cultura ou religião monolítica. O termo define uma pequena porção do que representa o mundo islâmico, cujos membros perfazem 1 bilhão de pessoas e que inclui dezenas de países, sociedades, tradições, linguagens e um infinito número de diferentes experiências (BALDI, 2006, p. de internet).
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Direitos Humanos já decidiu em diversas oportunidades pela procedência da proibição da
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FIDΣS Nem as interpretações dos textos corânicos são homogêneas em relação aos direitos das mulheres. A rejeição tão sumária, por legislações ocidentais, de um símbolo da cultura muçulmana denuncia duas tendências: primeiro, uma visão extremamente essencialista e mal informada por parte de muitos Estados ocidentais acerca da miríade de valores que permeiam a comunidade islâmica; segundo, um profundo medo da escalada de radicalizações e extremismos religiosos. Se a impressão transmitida pelo uso de burqas, niqabs, hijabs e outros véus dissimuladores da figura feminina é a de intensa submissão das mulheres aos homens, de que forma a proibição removeria as desigualdades de gênero? Nada obstante a sujeição feminina de fato exista – e aqui não se nega esse fato – o empoderamento não se realiza de cima para baixo, sem a discussão com as discriminadas e os discriminadores acerca das assimetrias de gênero que existem dentro (e fora) da comunidade islâmica. A proibição da expressão de uma crença religiosa tão fortemente ligada a determinadas comunidades com certeza não contribui para facilitar a inclusão dessas mulheres na sociedade mais ampla, além de dificultar sobremaneira a abertura de um fluxo dialético entre culturas e tradições diferentes para a construção de uma cidadania verdadeiramente multicultural que não imponha uma situação de “escolha de Sofia”: ou se tornam membros aculturais evitando vestir o véu (e assim ganhando o direito de usufruir das benesses de uma cidadania substantiva) ou, ao escolher usar o véu, têm suas ações compreendidas como a expressão de uma identidade de grupo que desrespeita os valores republicanos e a unidade nacional.
mudam mentalidades. Os efeitos práticos acabam revitimizando as mulheres muçulmanas e aprofundando o fosso existente entre o “nós” e o “outro” em uma sociedade diversificada, já que exclui a possibilidade de mulheres cobertas viverem uma vida livre e plena nos ambientes públicos, entrarem em contato com culturas e valores diferentes dos seus e educarem-se em escolas públicas francesas como todas as outras cidadãs que não usam o véu. A pretensa “neutralidade” tão orgulhosamente bradada pelos representantes políticos franceses na verdade promove um desserviço àquelas que, por particularidade religiosa, sentem-se inclinadas a utilizar uma vestimenta também particular para professar a sua fé. Um ponto importante bastante negligenciado em toda a discussão é que as mulheres têm motivos extremamente diversos para utilizar o véu. Para algumas, trata-se de consequência de uma cultura de sujeição, muitas vezes inconsciente; para outras, a expressão
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Tais medidas pretensamente emancipatórias na verdade não conscientizam e não
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FIDΣS de um sentimento de orgulho da fé islâmica, o receio de assédios ou até o objetivo de transmitir uma mensagem. De acordo com Dounia Bouzar (citado por SNYDER, 2011, p. 19), antropóloga muçulmana francesa, 90% das mulheres que cobrem seus rostos têm menos de 40 anos. Destas, dois terços são francesas e metade delas é imigrante de segunda ou terceira geração. E continua: “Em outras palavras, a maioria das mulheres muçulmanas na França que cobrem os seus rostos não são imigrantes recentes do Oriente Médio. Várias mães dessas mulheres não cobriam os seus rostos. Essas mulheres mais jovens vestem um véu facial para mandar uma mensagem.”. Estudos já mostraram que o nível de escolaridade e de independência financeira são fatores que afetam substancialmente a relação da mulher com a religião e com a sexualidade. Em estudo, Janine Mossuz-Lavau (2005, p. de internet), por exemplo, constatou que as mulheres de origem marroquina ou algeriana que fizeram estudos universitários e ocupavam cargos importantes acabaram adaptando os preceitos religiosos ao seu novo status: a religião foi reinterpretada pessoalmente, como uma tradição cultural ou uma experiência individual, ou abandonada completamente. O capital escolar, nesse sentido, é de fundamental importância para o empoderamento duradouro das mulheres, o que torna as provisões acerca do véu extremamente perigosas quando forçam algumas muçulmanas a permanecerem apenas no âmbito privado para viverem plenamente sua religião. Célia Regina Jardim Pinto (2006, p. de internet) é definitiva nessa questão:
expostas ao espaço público, laico, diferenciado. Que elas estejam em locais públicos, e a escola laica francesa é um desses locais privilegiados, onde possam expressar-se e ouvir posições distintas das suas. Aí reside a possibilidade da retirada do véu a seu favor. Possivelmente, neste cenário, muitas mulheres retirariam o véu, outras tantas não. Mas esta é a única forma igualitária de tratar todos os cidadãos.
Por tudo o que foi exposto, vê-se que a legislação proibicionista nesse caso é indubitavelmente desproporcional aos fins que quer atingir (unidade nacional, estabilidade social, igualdade de gênero etc.), representando um retrocesso à luta das mulheres pela liberdade.
2.2 O caso da mutilação genital feminina
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A única forma de agir com justiça com estas mulheres é permitir que elas sejam
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FIDΣS A mutilação genital feminina apresenta-se como uma prática polêmica e desafiadora, visto que é um costume que tem se difundido em sociedades multiculturais por comunidades migrantes das regiões leste, oeste e nordeste da África, de alguns países da Ásia e do Oriente Médio. Dados da Organização Mundial da Saúde (2012, p. de internet) atestam que cerca de 140 milhões de meninas e mulheres vivem atualmente com as consequências desse procedimento e, somente na África, por volta de 92 milhões de meninas com 10 anos de idade ou mais foram submetidas à ablação. Além disso, estima-se que três milhões de meninas africanas correm risco de serem mutiladas anualmente. As vítimas geralmente são meninas jovens, desde infantes até os 15 anos de idade, em média, ocorrendo apenas ocasionalmente em mulheres adultas. Em simples termos, a mutilação genital feminina consiste em procedimentos que intencionalmente alteram ou causam lesão aos órgãos genitais femininos por razões não medicinais. A mutilação apresenta quatro tipos possíveis: clitoridectomia, excisão, infibulação ou qualquer outro procedimento danoso para propósitos não medicinais, de acordo com a severidade da ablação realizada – na infibulação, mais grave de todas, são retirados o clitóris, os lábios menores e os lábios maiores da mulher, e a pele remanescente é costurada deixando apenas um pequeno orifício para as necessidades fisiológicas. A prática não traz nenhum benefício para a saúde das meninas e mulheres, causando, muito pelo contrário, consequências físicas e psicológicas duradouras no corpo das vítimas. As complicações imediatas que podem surgir abrangem dores severas, choque, hemorragias, tétano, retenção urinária e feridas abertas na área genital. As complicações a longo prazo a necessidade de cirurgias posteriores5. Apesar de a mutilação genital ser frequentemente justificada por imperativos religiosos, a prática não está prescrita em nenhum texto religioso – nem mesmo no Corão. A origem histórica do procedimento, inclusive, remonta de 2200 a.C., antes mesmo do advento do Cristianismo ou do Islamismo6. Apesar de não haver referência direta à prática nos textos corânicos, alguns estudiosos ainda assim apontam a sua existência em um hadith demasiadamente controverso. De uma forma ou de outra, a mutilação genital ainda pode ser constatada em diversas 5
WORLD HEALTH ORGANIZATION. Female Genital Mutilation. Disponível <http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs241/en/>. Acesso em: 20 ago. 2012. 6 ORCHID PROJECT. Where does FGC comes from? Disponível <http://orchidproject.org/category/about-fgc/why-fgc-happens/>. Acesso em: 25 ago. 2012.
em: em:
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abarcam infecções urinárias, cistos, infertilidade, riscos altíssimos de complicações no parto e
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FIDΣS comunidades islâmicas, sendo estas as que mais realizam a operação no mundo ocidental (em países como Estados Unidos, Canadá e Grã-Bretanha). Nada obstante a controvérsia, a motivação subjacente à prática denota uma discriminação profunda e arraigada acerca do comportamento sexual esperado ou tido como adequado para as mulheres: recatadas e modestas, as mulheres dessas comunidades não podem experimentar o prazer sexual nem antes e nem depois do casamento, de forma a impedir qualquer traição ou compulsão sexual. Mulheres que eventualmente não se submetem à operação muitas vezes são ostracizadas ou não conseguem um companheiro interessado em contrair um matrimônio, fato ensejador de grande desonra para o núcleo familiar patriarcal. Esse status quo obviamente fere inúmeros instrumentos internacionais de direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a CEDAW (1979) e a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), dentre outros. A mutilação genital feminina tolhe o direito universal à vida, à liberdade e a não ser submetido à tortura, tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante (DUDH, arts. III e V), além de desrespeitar o comando inscrito no art. 5º da CEDAW:
Modificar padrões socioculturais de conduta de homens e mulheres, com vistas a alcançar a eliminação dos preconceitos e práticas consuetudinárias e de qualquer outra índole que estejam baseados na ideia da inferioridade ou superioridade de qualquer dos sexos ou em funções estereotipadas de homens e mulheres.
Não só isso, se a vítima for menor de 18 anos de idade (o que constitui a vasta
sobretudo as disposições referentes ao direito à vida (art. 6º, item 1), à liberdade de pensamento, de consciência e de crença (art. 14, item 1), à adoção de todas as medidas eficazes e adequadas para abolir práticas tradicionais que sejam prejudiciais à saúde da criança (art. 24, item 3) e à proteção das crianças de toda forma de discriminação ou castigo por causa das opiniões ou crenças de seus pais, representantes legais ou familiares (art. 2º, item 2). Como se vê, o marco regulatório internacional é robusto o suficiente para deslegitimar a mutilação genital feminina como tradição anacrônica e perpetuadora de papeis sexuais diferenciados e discriminatórios em relação às mulheres. Ainda assim, a questão adquire outros matizes quando colocada dentro da discussão do multiculturalismo.
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maioria dos casos), a Convenção sobre os Direitos da Criança também se aplicará ao caso,
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FIDΣS Prática endossada e passada de geração em geração em muitas comunidades islâmicas, alguns preconizam que se trata de expressão de uma identidade cultural que deve ser respeitada, ainda que aparentemente incompreensível aos olhos da sensibilidade ocidental majoritária. A questão que atormenta a maioria dos ativistas de direitos humanos que trabalham em comunidades onde a mutilação genital é realizada, todavia, não é tanto se a comunidade (inter)nacional deve tolerar a prática, mas sim como erradicá-la. O respeito à diversidade cultural não requer a tolerância de práticas fundamentalmente e irremediavelmente violentas, debilitantes e misóginas. Diversos países onde o procedimento é recorrente e endossado pela cultura dominante vêm empreendendo esforços legais no sentido de eliminá-la. No Canadá, por exemplo, as próprias mulheres africanas de grupos imigrantes decidiram encetar um processo de reforma legislativa, o que atesta um fato muitas vezes desconhecido: muitas mulheres e muitos homens dentro das próprias comunidades rejeitam a validade dos argumentos religiosos e culturais levantados a favor da mutilação genital feminina (MACKLIN, 2006, p. 210). O argumento cultural, sobretudo nesta temática, é completamente descabido e essencialmente levantado para fazer subsistir uma submissão feminina que não tem mais espaço em sociedades democráticas e igualitárias, sobretudo quando se leva em consideração que o consentimento da vítima quase nunca existe. Nesses termos, a tolerância da mutilação genital feminina em nome do multiculturalismo somente reforçaria uma das piores expressões da cultura patriarcal que
de poder intracomunidade. Conforme preconiza Seyla Benhabib (citado por PINTO, 2006, p. de internet), o argumento cultural acaba transformando indivíduos em fantoches de suas culturas. Se a consideração da cultura pode fazer justiça ao criminoso em julgamento, não faz justiça à vítima, particularmente quando a questão refere-se a relações entre homens e mulheres, onde muitas vezes assassinatos, torturas e privação de liberdade são justificados como princípios culturais. Existe o receio de alguns estudiosos de que a criminalização específica da mutilação genital feminina possa, a longo prazo, agravar a “guetização” e estigmatização das comunidades islâmicas em sociedades ocidentais, cristalizando a percepção de que o Ocidente
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precisa ser discutida e extirpada do meio social, além de continuar a assimetria das relações
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FIDΣS é iluminado, humano, libertador e seguidor das regras, enquanto tais comunidades são violentas, sexistas, primitivas e criminosas (MACKLIN, 2006, p. 212). Uma questão, no entanto, precisa ser posta: o problema fundamental é do discriminado ou de quem discrimina? A estigmatização dos imigrantes não pode ser usada como obstáculo para a criminalização adequada de um crime tão odioso quanto a mutilação genital em meninas, visto que elas precisam dessa proteção. O preconceito do qual os grupos islâmicos são alvo deve também ser apreciado, debatido e desencorajado simultaneamente e em espaços próprios de discussão, mas uma coisa não invalida a outra. Apesar de constituir uma situação extremamente excepcional e inusitada – já que as maiores vítimas são meninas em tenra idade –, não se olvida a possibilidade de uma mulher, maior de idade, capaz e plenamente consciente, voluntariamente optar por se submeter ao procedimento.7 Nada obstante as motivações baseadas em estereótipos sexuais misóginos, uma mulher ainda assim tem direito a ter a sua escolha respeitada como um ato de disposição do próprio corpo. O papel do Estado, nesse caso, é conceder à mulher o acesso a todas as informações acerca do procedimento em si e das suas consequências mentais e físicas a curto e a longo prazo, além de permitir que ela conheça que outros papeis sexuais são possíveis. Cumprido o dever de educação, a opção pelo empoderamento recai nos ombros da mulher, que adotará – longe de qualquer imposição estatal – o comportamento sexual que achar mais apropriado à sua vida. O posicionamento encampado neste trabalho está em sintonia com os instrumentos internacionais que consagram os direitos sexuais e reprodutivos como parte integral,
Desenvolvimento de 1994, por exemplo, 184 Estados reconheceram os direitos reprodutivos como direitos humanos, concebendo o direito a ter controle sobre as questões relativas à sexualidade e à saúde sexual e reprodutiva, assim como a decisão livre de coerção, discriminação e violência, como um direito fundamental (PIOVESAN, 2012, p. 330). A mutilação genital feminina, conclui-se, quando desrespeitadora da liberdade, da vontade e da autodeterminação sexual da mulher, constitui grave violação de direitos básicos inalienáveis que, indiferente de prescrições culturais que eventualmente possam existir em
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As legislações têm oscilado na questão do consentimento. Nos Estados Unidos e no Canadá, por exemplo, o consentimento eventualmente dado pela mulher só é válido quando esta tem pelo menos dezoito anos de idade. No Reino Unido, por outro lado, a criminalização é geral, não importando a idade da vítima.
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indivisível e inalienável dos direitos humanos. Na Conferência do Cairo sobre População e
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FIDΣS comunidades minoritárias, não pode ser ignorada e negligenciada por sociedades multiculturais.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Retornando à pergunta inicialmente feita: há possibilidade de uma construção interativa e compreensiva entre cosmovisões diferentes de direitos humanos? A resposta é um sonoro sim. Como demonstrado exaustivamente neste trabalho, nenhuma cultura de direitos é um bloco monolítico e hermético a valores e ideias externas – e o Islã é um exemplo significativo. Apesar das crenças em contrário, a cultura muçulmana abarca uma diversidade de compreensões e interpretações que podem ou não ser afeitos aos direitos humanos das mulheres. Nada obstante o entendimento oficial e majoritário ainda estar marcado por pensamentos retrógrados e análises desiguais do que significa ser uma mulher muçulmana, muitos outros estudiosos, ativistas e cidadãos dessa mesma comunidade vêm reivindicando uma oxigenação da leitura dos principais documentos que dão suporte ao estilo de vida islâmico. As similaridades entre a narrativa ocidental e a islâmica, apesar de pertencentes a universos culturais distintos, são muito maiores do que nossos preconceitos poderiam conceber. Em sociedades multiculturais, tensões são muito mais evidentes e apresentam
direitos humanos sem comprometer a estabilidade dos valores de uma sociedade ocidental, extremamente individualista, e a coexistência entre este e comunidades minoritárias islâmicas, muito mais coletivistas, que compartilham um mesmo território. Mais do que um debate sobre secularismo e religião, a pedra de toque desses conflitos é a compatibilidade com os padrões internacionais de direitos humanos e o respeito à liberdade individual de identificação cultural. O conceito multicultural de direitos humanos tem procedência ao visualizar uma construção desses direitos que possa abarcar o maior número de narrativas possível e ao reconstruir um conceito de cidadania que reconhece e protege o direito de gozar de uma identidade cultural específica.
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problemáticas que desafiam até que ponto as tradições culturais podem afetar e influenciar os
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FIDΣS Tal intento, todavia, não obstaculiza a possibilidade de um universalismo de confluência, ou seja, a formação de um universalismo após um processo conflitivo e discursivo que objetiva alcançar um catálogo de valores que tenha concordância de todos os participantes da sociedade internacional. Os padrões internacionais de direitos humanos, obviamente, podem ser reformulados e modificados para aperfeiçoar a proteção ao indivíduo, mas já constituem uma plataforma comum e trazem um mínimo ético irredutível a ser seguido. As peculiaridades e diferenças culturais são fundamentais e fazem parte da construção da identidade dos homens e das mulheres. No entanto, a utilização do relativismo cultural como justificativa para legitimar práticas que vão de encontro com os valores acordados pela própria comunidade internacional em diversas oportunidades – a Declaração Universal dos Direitos Humanos é o exemplo histórico mais pungente – não passa de um estratagema argumentativo covarde e perigoso. Tal argumento foi prontamente rechaçado neste trabalho ao tratar da mutilação genital feminina, visto que tal tradição virtualmente não conta com a possibilidade do consentimento das vítimas antes da realização do procedimento. O caso do véu analisado neste trabalho, como se viu, apresentou outras nuanças que acabaram por redundar em uma conclusão diferente: não se aceitou a proibição imposta pelo Estado francês e outros que adotaram o mesmo posicionamento, visto que o uso do véu é expressão da liberdade, religiosa ou não, da mulher. A motivação deste uso é diversa da motivação subjacente à mutilação genital feminina: o véu pode ser símbolo para inúmeras coisas, dentre elas, a opressão feminina;
são impostos em meninas vulneráveis e em pleno desenvolvimento. As duas situações, contudo, têm um denominador comum: a luta pelo empoderamento das mulheres não pode ser uma dádiva ou uma imposição de quem quer seja. O papel fundamental do Estado que se vê diante de situações que denunciam padrões socioculturais misóginos é o de conscientizar: disponibilizar o acesso das mulheres à informação, ao conhecimento e a outros valores para que, então, elas próprias possam fazer suas escolhas. Além de completamente ineficiente para os fins a que se propõe realizar, um viés simplesmente proibicionista frente algumas minorias étnicas desrespeita frontalmente a liberdade de crença destas e ignora que outros valores e estilos de vida, apesar de
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enquanto que a mutilação é baseada única e exclusivamente em estereótipos de gênero que
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FIDΣS aparentemente incompreensíveis aos olhos da cultura dominante, podem e devem ser possíveis.
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THE COMPLEX CORRELATION BETWEEN MULTICULTURALISM, ISLAM AND WOMEN’S HUMAN RIGHTS: THE CASE OF THE VEIL AND THE FEMALE GENITAL MUTILATION
ABSTRACT The clash of values between western societies and Islamic communities ends up producing countless challenges regarding the human rights of muslim women, traditionally oppressed in their cultures. This article discusses the existence of progressive interpretations of Islam and the deconstruction of the muslim identity as a monolithic block; it approaches the cultural tensions existing in diverse western societies from two case studies – the matter of the veil possibility of a human rights’ comprehension that acknowledges the cultural differences and the already existing international standards. Keywords: Women’s human rights. Multiculturalism. Islam.
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in France and the female genital mutilation; and it puts in doubt the
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FIDΣS Recebido 31 ago. 2012 Aceito 10 out. 2012
A RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO ESTADO DIANTE DOS DANOS AMBIENTAIS OCASIONADOS POR PARTICULARES E A EFETIVIDADE DOS PRINCÍPIOS DO DIREITO AMBIENTAL Daniela Pontes Santiago
RESUMO Esta pesquisa examina a incidência e o respeito aos princípios do direito ambiental perquirindo-os na implantação da obra ou atividade capazes de causar significativos danos ambientais. Ressalta a necessidade da adoção da teoria do risco integral decorrente da responsabilidade objetiva no tocante aos danos ambientais para particulares e/ou Estado. Propõe a responsabilização solidária do ente estatal quando, mesmo que indiretamente, facilita a ocorrência do dano ambiental, seja por ação ou omissão. Aborda, por meio do estudo de caso concreto e sob a perspectiva da doutrina e jurisprudência, a
Palavras-chave: Teoria do risco integral. Responsabilidade objetiva. Responsabilização solidária. Precaução. Poluidor-pagador. “Os seres humanos constituem o centro das preocupações relacionadas com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva em harmonia com a natureza”. (Princípio 01 da Declaração do Rio de Janeiro de 1992)
Graduanda em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e estagiária do Ministério Público Federal. Lattes: <http://lattes.cnpq.br/8871861589328673>.
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aplicação dos princípios da precaução e do poluidor-pagador.
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FIDΣS 1 INTRODUÇÃO
A Constituição Federal do Brasil, por meio de seu art. 225, caput, consagra como direito fundamental o meio ambiente ecologicamente equilibrado. No entanto, a efetivação deste direito perpassa pela adequação do desenvolvimento econômico à preservação dos recursos naturais, aflorando um direito ambiental econômico que visa ao uso sustentável da natureza em benefício da coletividade. Surge, então, a necessidade de amoldar as atividades econômicas aos princípios regentes do direito ambiental, dentre os quais se podem destacar o princípio do poluidor pagador e, principalmente, o da precaução, oportunamente abordados. Inicialmente, acreditava-se que a abundância natural era de tamanha imensidão que inexistia qualquer tipo de preocupação com a esgotabilidade dos recursos ambientais. Em verdade, o meio ambiente poderia ser considerado res nullius ou res derelictae (coisa sem dono ou abandonada), inexistindo a concepção atual da sua imprescindibilidade que o caracteriza hodiernamente como res communis omnium, ou seja, um bem comum e pertencente a todos. Analisar-se-á os termos utilizados pela Constituição Federal para garantir a proteção deste direito, pormenorizando semanticamente cada trecho inserido, a fim de extrair a teleologia da norma constitucional. Será demonstrada a necessidade de observância do princípio da precaução, precipuamente na fase anterior à instalação da atividade econômica e as consequências da aplicação do princípio do poluidor-pagador no ordenamento jurídico atual. Continuamente, será defendida a adoção da responsabilidade objetiva por meio da
responsabilização do Estado, juntamente com o particular, nas situações em que aquele admite posturas – ação ou omissão – que favoreçam, incentivem ou falsamente legitimem a degradação ambiental, sendo prudente sua responsabilização.
2 DA PROTEÇÃO AMBIENTAL
Antes de adentrar no tema da proteção ambiental, julga-se necessário realizar uma análise conceitual delimitada tanto pela legislação infraconstitucional quanto constitucional com a contribuição da doutrina qualificada na matéria. Apesar de haver diferenciação topográfica da legislação em estudo, é válido ressaltar que a importância do mandamento, se
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teoria do risco integral no que diz respeito aos danos ambientais. Além de viabilizar a
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FIDΣS legal ou constitucional, não interfere no grau de respeitabilidade e aplicação que deve ser exigido pela sociedade e pelo aplicador do direito.
2.1 Uma análise conceitual Ab initio, é cabível expor, segundo o conceito legal1, o que se entende por meio ambiente. A legislação infraconstitucional buscou abranger inúmeras situações a fim de que o direito pudesse exercer seu poder coercitivo diante de um vasto campo de aplicação. José Afonso da Silva (2007, p. 20) compila tal conceito considerando-o como a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que, em conjunto ou separadamente, propiciem e permitam o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas. Poderá ser cultural, quando a ação criativa do ser humano delimita o que deve ou não ser entendido como meio ambiente (ANTUNES, 2006, p. 231), permitindo interpretações distintas a serem empreendidas casuisticamente (MILARÉ, 2009, p. 866) e podendo variar de acordo com a realidade apresentada à época. É certo que, independente do conceito adotado, não se pode olvidar dos elementos abióticos – físicos e químicos –, tendo em vista sua influência diante dos elementos bióticos, entendidos como a flora e a fauna. Deve-se ter em mente que o ser humano, como indivíduo ou em coletividade, constitui-se parte intrínseca do universo natural, do qual fazem parte todas as formas de vida, seja ela, humana, animal ou vegetal. A definição conceitual do meio ambiente afigura-se como fundamental para que seja possível averiguar a incidência, principalmente, da tipificação dos crimes ambientais. Neste
poluição e quem pode figurar como agente poluidor, como será demonstrado alhures. Entende-se que as alterações adversas das características do meio ambiente classificam-se como uma degradação da qualidade ambiental. Já a poluição é considerada aquela que afeta o meio ambiente de maneira mais acentuada. Em geral, resulta de atividades que, direta ou indiretamente, prejudiquem a saúde, a segurança e o bem estar das populações; afetem desfavoravelmente a biota2; criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; afetem condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente ou lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos. 1
Art. 3º, I, da Lei 6.938/81: “Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: I - meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. 2 Entende-se por biota o conjunto de seres vivos (fauna e flora) que habitam o meio ambiente.
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diapasão, também constitui de alta relevância expor o que a doutrina adota pelo termo
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FIDΣS É possível figurar como poluidor, segundo a definição adotada pela legislação infraconstitucional3, as pessoas físicas ou jurídicas (incluindo os entes despersonalizados, apesar da omissão legislativa), de direito público ou privado, que sejam responsáveis, direta ou indiretamente, pela atividade causadora de degradação ambiental. O legislador, coerentemente, do mesmo modo que foi genérico quanto à descrição do conceito de meio ambiente, também o foi para caracterizar o poluidor, visando alcançar todos que mereçam receber reprimenda diante da ocorrência de consequências negativas ambientais, evitando a defasagem do mandamento legal. Na lição de Édis Milaré (2009, p. 866), “dano ambiental é a lesão aos recursos ambientais4, com consequente degradação – alteração adversa in pejus – do equilíbrio ecológico e da qualidade de vida”. O dano ambiental resta configurado quando ocorre um prejuízo por ter-se lesado recursos naturais, podendo provocar desequilíbrio ecológico. Em síntese, é afetar um bem ambiental de modo que supere os limites de tolerância do sistema, gerando uma perda do equilíbrio. O dano ecológico pode afetar o meio ambiente (sentido amplo) ou seus elementos naturais (sentido estrito). Na lição de Paulo de Bessa Antunes (2006, p. 231), o meio ambiente é bem jurídico autônomo e unitário, não se confundindo com os diversos bens jurídicos que o integram, como a flora, a fauna, os recursos hídricos, entre outros. O dano ambiental pode ser coletivo, quando interfere no meio ambiente considerado em sua totalidade; ou individual, se, nada obstante o dano coletivo, também se atingem interesses pessoais que mereçam ser tutelados por meio de ações individuais, paralelamente à Ação Civil Pública ou à Ação Popular. com arrimo na legislação infraconstitucional5. Em verdade, ainda existe certa resistência na concessão à indenização por danos morais ambientais coletivos, tendo em vista que os Tribunais tendem a conceder danos morais individualmente considerados, ou seja, quando,
3
Art. 3º, IV da Lei 6.938/81: “Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: IV - poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental”. 4 Art. 3º, V, da Lei 6.938/81: “Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: V - recursos ambientais: a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora”. Devem-se incluir neste rol os elementos artificiais e culturais, diante da inter-relação homem-natureza. 5 Art. 1º, I, da Lei 7.347 com redação dada pela Lei 8.884/94: “Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: I - ao meioambiente”.
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O dano ambiental pode ser de ordem patrimonial ou moral, podendo ser requeridos
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FIDΣS por prejuízo coletivo, se afeta moralmente interesses pessoais de indivíduos determinados, e não na concepção de dano moral coletivo6. Em síntese, dano ambiental e meio ambiente – apesar de existir, para este último, definição legal – remetem a conceitos relativamente abertos, não se configurando como petrificados e pré-determinados, delegando ao intérprete do direito a responsabilidade de colmatá-los no caso concreto.
2.2 Proteção constitucional ao meio ambiente: uma apreciação terminológica do art. 225, caput, da Constituição Federal O art. 225, caput, da Constituição Federal dispõe nos seguintes termos: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendêlo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” 7. O constituinte originário expôs a titularidade deste direito a “todos”, incluindo neste rol a população brasileira e qualquer estrangeiro residente ou não no país, sem distinção de qualquer natureza. O direito ao meio ambiente, pela sua natureza jurídica de bem de uso comum do povo, pertence ao indivíduo e ao mesmo tempo é transindividual (MACHADO, 2007, p. 116), inserindo-se na categoria dos direitos difusos. Sua natureza metaindividual intensifica a característica de direito subjetivo, o qual pode ser exigível na dimensão administrativa e jurisdicional. A Constituição Federal inter-relacionou, portanto, o antropocentrismo ao
buscando o desenvolvimento sustentável e a relação harmônica entre o meio natural e o artificial. O meio ambiente é constitucionalmente garantido como res communis omnium, devendo ser protegido por todos os seus titulares e pelo Estado. Inicialmente, a Constituição Federal assegurava o direito à vida, no entanto, progrediu ao dispor sobre a “sadia qualidade
6
A favor do dano moral coletivamente considerado: SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Resp 1057274. T2. Min, Eliana Calmon. j. 01/12/2009. DJ. 26/02/2010. Contra: STJ. Resp 598.281. T1. Min, Luiz Fux. j. 02/05/2006. DJ. 01/06/2006. 7
Surpreendentemente, é a primeira Constituição brasileira a empregar o termo meio ambiente. 8
Entende-se por biocentrismo a necessidade de que todas as formas de vida sejam igualmente respeitadas, e não apenas a humanidade, atribuindo o foco principalmente nos deveres do homem para com a natureza.
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biocentrismo8, consagrando a expressão meio ambiente ecologicamente equilibrado e
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FIDΣS de vida”9 e, agora, impor que ela depende de um “meio ambiente ecologicamente equilibrado”. A atividade de proteção ambiental foi atribuída constitucionalmente aos particulares conjuntamente com o Poder Público, e principalmente a este, segundo dicção de seu parágrafo primeiro e incisos10. Verifica-se a incidência do direito ambiental em diversos momentos na Constituição Federal, como por exemplo, a atribuição comum conferida à União, Estados, Distrito Federal e Municípios de proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas e de preservar a floresta, a fauna e a flora11. Em relação ao direito ambiental econômico, por sua vez, encontra-se consolidado como princípio da ordem econômica a defesa do meio ambiente, buscando a convivência construtiva e ao mesmo tempo saudável. Como forma de legitimar a defesa do meio ambiente, a Constituição Federal assegura a medida judicial consistente na Ação Popular12, ao permitir que qualquer cidadão proponha ação visando anular ato lesivo ao meio ambiente. Atribui, ainda, ao Ministério Público, como função institucional, promover o inquérito civil e a Ação Civil Pública13 objetivando a proteção deste bem jurídico.
3
A
PRECAUÇÃO
COMO
CONDIÇÃO
SINE
QUA
NON
PARA
O
DESENVOLVIMENTO DA ATIVIDADE ECONÔMICA Art. 225 da CF: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações”. 10 Art. 225, § 1º, da CF “Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.”. 11 Art. 23 da CF: “É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: VI proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; VII - preservar as florestas, a fauna e a flora”. 12 Art. 5º, LXXIII, da CF “Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”. 13 Art. 129 da CF: “São funções institucionais do Ministério Público: III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”.
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FIDΣS Ao Poder Público, conforme determina o aludido art. 225 da Constituição Federal, incube exigir estudo prévio de impacto ambiental para licenciar a instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação ambiental, possibilitando ampla publicidade. Nos termos escolhidos pelo legislador constituinte, não se configura ato discricionário, facultativo, mas sim vinculado, diante da imposição do verbo “exigir” presente no dispositivo. A publicidade prevista constitucionalmente permite a participação popular nas discussões, principalmente por meio das audiências públicas. O estudo prévio de impacto ambiental, segundo Édis Milaré (2009, p. 168) apresenta por escopo central evitar que um projeto (obra ou atividade), justificável sob o prisma econômico, revele-se nefasto ou catastrófico para o meio ambiente. Para Paulo Affonso Leme Machado (2007, p. 63), a obrigação de prevenir ou evitar danos ambientais, quando passíveis de ser antecipadamente detectados, é uma realidade incontestável, que não visa impedir a atuação humana, mas sim, garantir a durabilidade da sadia qualidade de vida das gerações no planeta. O desenvolvimento econômico não é indesejável, porém, inconcebível a partir do momento em que ocasiona a destruição dos recursos naturais, notadamente irreversíveis. O princípio da precaução incide na ausência de certeza científica sobre a possibilidade dos danos ambientais. Precaver-se é agir antecipadamente diante de risco ou perigo, mesmo diante da inexistência da extensão dos danos. O princípio 1514 da Declaração do Rio de Janeiro de 199215 é imperioso ao afirmar a necessidade de adotar medidas eficazes para prevenir a degradação ambiental, mesmo quando os estudos ambientais não traduzam a absoluta certeza científica da ocorrência dos danos. Portanto, a simples ameaça de danos sérios ou irreversíveis é suficiente para impedir
dubio pro natura, prezando-se primordialmente pela conservação da natureza. Na visão de Paulo de Bessa Antunes (2006, p. 33), o princípio jurídico da precaução, também denominado de cautela, surge como um divisor de águas quando o meio ambiente possa sofrer impactos decorrentes de novos produtos e tecnologias a serem inseridos no 14
Tradução livre de: “In order to protect the environment, the precautionary approach shall be widely applied by States according to their capabilities. Where there are threats of serious or irreversible damage, lack of full scientific certainty shall not be used as a reason for postponing cost-effective measures to prevent environmental degradation”. (THE UNITED NATIONS CONFERENCE ON ENVIRONMENT AND DEVELOPMENT. Rio Declaration on Environment and Development. Principle 15. 14 jun. 1992. Disponível em: <http://www.unep.org/Documents.Multilingual/Default.asp?documentid=78&articleid=1163>. Acesso em: 24 abr. 2012. 15 A “Declaração do Rio de Janeiro” contém 27 princípios votados por unanimidade na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, ocorrida no Rio de Janeiro em 1992. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/sitio/index.php?ido=conteudo.monta&idEstrutura=18&idConteudo=576>. Acesso em 02 maio 2012.
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a postergação das medidas protetivas. Nesse caso, tem-se a preeminência do princípio in
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FIDΣS mercado, mas das quais não se tem arquivo informacional suficiente para atestar as consequências que poderão advir de sua liberação no meio ambiente. Neste caso, fazem-se, indubitavelmente, necessárias as medidas protetivas. De forma concisa, o grupo ambientalista Greenpeace define o princípio da seguinte forma: “Não emita uma substância se não tiver provas de que ela não irá prejudicar o meio ambiente” (Relatório do Greenpeace citado por ANTUNES, 2006, p. 34, grifos nossos). No entanto, tal assertiva é duvidosa, haja vista que a substância em si pode não afetar diretamente o meio ambiente, mas a periodicidade de sua eliminação dificilmente não será passível de provocar algum desequilíbrio ecológico. Atualmente, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça é pela prevalência do princípio da precaução, como pode se depreender do julgado abaixo:
PEDIDO DE SUSPENSÃO DE LIMINAR. SAÚDE PÚBLICA E MEIO AMBIENTE. PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO. Em matéria de saúde pública e de meio ambiente, vigora o princípio da precaução que, em situações como a dos autos, recomenda a ampliação da rede de esgotos antes de que se iniciem novos empreendimentos imobiliários. Agravo regimental não provido (grifos nossos)16.
No caso supramencionado, a ampliação da rede de esgotos foi a medida protetiva adotada como meio de prevenir eventual dano ambiental decorrente da construção de novos empreendimentos imobiliários. Inexistia a certeza absoluta do dano a ser gerado a partir da edificação. No entanto, a prudência e a cautela devem ser primordialmente observadas. Como todo ato humano é passível de falhas, inúmeras vezes sequer as posições
pode ser eventualmente causado. Estudos de impactos ambientais podem diferir em suas conclusões, principalmente quando se convocam peritos para defender e não para avaliar a atividade e suas possíveis consequências para o meio ambiente. Tais episódios, por certo, enaltecem a tese das incertezas dos impactos ambientais a serem gerados, deixando claro que se deve prezar pela precaução, conforme estabelece o princípio in dubio pro natura. A incerteza científica sobre a existência de danos ambientais decorrentes da atividade ou obra pode por em risco toda a humanidade. Prudente é o ensinamento de Paulo de Bessa Antunes (2006, p. 32) ao expor que nem sempre a ciência estará apta a fornecer ao Direito uma certeza sobre as medidas para evitar as consequências danosas ao meio ambiente. O que 16
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgRg na SLS 1429. Corte Especial. Min, Ari Pargendler. j. 05/12/2011. DJ. 29/02/2012.
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científicas são suficientes para dirimir dúvidas sobre a extensão ou a magnitude do dano que
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FIDΣS hoje se apresenta como inócuo, amanhã pode ser o responsável por alguma doença ou anomalia. O implante de medidas acautelatórias deve existir independentemente da certeza dos danos ambientais, agindo-se antecipadamente diante de qualquer risco ou perigo. Desse modo, a existência de dúvida quanto aos impactos justifica a rigorosidade da fiscalização e da exigência de medidas de proteção, sendo pertinente a inversão do ônus da prova, cabendo ao ‘poluidor’ comprovar que foram tomadas medidas efetivas para prevenir a poluição e de que demonstre, por meio de estudos, que a atividade não causará degradação ambiental. A doutrina estabelece diferenciação entre o princípio da prevenção e o da precaução. Para aquele, em virtude de saber-se que a atividade é indubitavelmente danosa – o que implica certeza – tenta-se impedir o risco de dano em potencial. Já a incidência do princípio da precaução acentua-se na tentativa de inibir o risco de perigo potencial, diante da possibilidade do dano em abstrato, ou seja, da ausência de certeza quanto ao perigo da atividade. O Poder de Polícia administrativa do Estado é condizente com o que preceitua o art. 37, § 6º da CF17, legitimando seus agentes a mitigar a liberdade do exercício da atividade econômica quando se deparam com situações de risco para com a natureza. Nesse sentido, precisas são as palavras de Paulo Affonso Leme Machado (2007, p. 78):
Contraria a moralidade e a legalidade administrativas o adiamento de medidas de precaução que devam ser tomadas imediatamente. Violam o princípio da publicidade e o da impessoalidade administrativas os acordos e/ou licenciamentos em que o cronograma da execução de projetos ou a execução de obras não são
possam participar do procedimento das decisões (grifos nossos).
Desse modo, fere o princípio da eficiência omitir-se (quando havia o dever de agir) na exigência de estudo prévio de impacto ambiental e não impor medidas de precaução quando estas seriam cabíveis, configurando a co-responsabilidade do ente Público. A efetivação do princípio da precaução depende, pois, do respeito e observância aos demais princípios, não podendo se sobrepor indiscriminadamente.
17
Art. 37, caput, da CF: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...]”.
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apresentados previamente ao público, possibilitando que os setores interessados
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FIDΣS Paulo de Bessa Antunes (2006, p. 38), por sua vez, confere legitimidade ao princípio da precaução apenas quando são observados os princípios fundamentais da República e ante a inexistência de norma adequada para proceder à avaliação dos impactos ambientais. Fora destes limites, teria aplicação arbitrária, obstaculizando o desenvolvimento econômico.
4 PRINCÍPIOS AMBIENTAIS E AS CONSEQUÊNCIAS DO POLUIDOR-PAGADOR
A efetividade do direito ambiental perpassa pela aplicação incisiva dos princípios ambientais, independentemente de sua base ser constitucional ou infraconstitucional. É cediço que incube ao Poder Público a obrigação de, primariamente, prezar pelos recursos naturais da nação brasileira. Porém, a consecução deste Estado ambiental somente prosperará quando a população se conscientizar da crise da esgotabilidade irreversível a qual estamos prestes a presenciar. No entanto, a providência proativa deve partir, inicialmente, do ente Público, iniciando pelo seu dever de informação, a concretizar a participação cidadã em busca da cooperação ambiental. Incube ao Poder Público, portanto, o primeiro passo para “promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente”18. Os princípios ambientais, interdependentes entre si, têm papel fundamental nessa conscientização. Sua efetivação depende da eficiência da aplicação de outros princípios, como se pode verificar no princípio da informação19, da participação social20, e o da solidariedade
a agir em harmonia com a natureza, buscando preservar o direito das futuras gerações de desenvolverem-se sustentavelmente. A despeito da existência do Estudo de Impacto Ambiental (EIA), a empresa pode ser surpreendida ao constatar que a obra ou atividade é passível de ocasionar danos que não se 18
Art. 225, § 1º, VI: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente”. 19 Por meio da informação ocorre o processo de educação ambiental e a partir desta proporciona-se à comunidade agir de modo consciente de suas ações, em prol do bem estar comum social e ambiental. 20 A educação ambiental, fruto da informação, permite a participação da população na defesa do meio ambiente preservando os interesses difusos e coletivos da sociedade, possibilitando tomada de decisões em conjunto. 21 “Este princípio busca assegurar a solidariedade da presente geração em relação às futuras, para que também estas possam usufruir, de forma sustentável, dos recursos naturais” (MILARÉ, 2009, p. 819).
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intergeracional21. A informação proporciona a educação ambiental, a qual instrui a sociedade
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FIDΣS encontravam previstos incialmente na análise científica. Desse modo, não cabe à sociedade tolerar esses descompassos solitariamente. De acordo com o princípio do poluidor-pagador caberá ao infrator suportar os custos externos. Na lição de Édis Milaré (2009, p. 827):
[...] este princípio [...] se inspira na teoria econômica de que os custos sociais externos que acompanham o processo produtivo (v.g., o custo resultante de danos ambientais) precisam ser internalizados, vale dizer, que os agentes econômicos devem levá-los em conta ao elaborar os custos da produção e, consequentemente, assumi-los (grifos nossos).
Os custos para a reparação do dano ecológico advindo da implantação da atividade devem ser imputados exclusivamente ao poluidor quando este for o único causador da poluição. Internalizar os custos externos que, a princípio, seriam suportados pela população, significa atribuir ao poluidor as despesas resultante do prejuízo ocasionado, evitando-se, portanto, a “privatização de lucros e socialização de perdas” (MILARÉ, 2009, p. 828). Tal princípio é, portanto, comumente denominado princípio da responsabilidade, em virtude de o ônus ocasionado pelo dano ambiental não poder ser exclusivamente social, devendo ser arcado pelo particular, haja vista ter sido este o provocador do prejuízo. O princípio em foco possui base infraconstitucional expressa pelo art. 4º, VII22, da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), que impõe ao poluidor o dever de recuperar e/ou indenizar os danos causados. A própria Constituição Federal assentou em seu art. 225, § 3º que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão independentemente da obrigação de reparar os danos causados”, consagrando a responsabilização nas esferas penal, civil e administrativa sem configurar bis in idem. O nomen juris atribuído ao princípio do poluidor-pagador pode induzir à ilusão de que “poluo, mas pago”, entretanto, tal pensamento está longe de representar a essência do princípio, o qual de maneira alguma se constitui em autorização para poluir, desde que se proceda à indenização. A poluição continua extremamente vedada, porém, na eventualidade de sua ocorrência, deve-se operar a recomposição in natura e a indenização dos danos insuscetíveis de recomposição. Corroborando com o entendimento esposado, afirma Paulo 22
Art. 4º, VII, da Lei 6.938/81: “A Política Nacional do Meio Ambiente visará: VII - à imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados e, ao usuário, da contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos”.
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os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas,
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FIDΣS Affonso Leme Machado (2007, p. 63) que “o pagamento efetuado pelo poluidor ou pelo predador não lhes confere qualquer direito a poluir”. O intuito deste mandamento é recuperar a área a fim de retornar ao status quo ante. Porém, é iniludível que a dificuldade da recuperação in natura deixa-nos com restritas opções, as quais muitas vezes convertem-se em pecúnia23 de difícil quantificação, principalmente quando o dano é irreversível, ou, conforme o caso de difícil reparação24. No processo de quantificação dos danos devem-se averiguar alguns critérios norteadores como a anormalidade do dano, a periodicidade, a gravidade do prejuízo, entre outros, a fim de traduzir em números uma possível reparação (LUCARELLI apud VIANNA, 2009, p. 135). Outros meios de aplicação deste princípio é a possibilidade de reconstruir área semelhante à devastada ou operar via compensação, beneficiando a natureza sem recuperar a área em específico, mas trabalhando em outro local como forma de compensar os prejuízos ocasionados. Dessa forma, a obrigação pode ser de fazer, não fazer e/ou de pagar quantia certa, operando-se por qualquer meio idôneo a realizar a reparação mais adequada e eficiente. Seguindo esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça vem acolhendo em seus julgados a preocupação com o meio ambiente, aplicando como legitimador da punição em virtude do dano ambiental o princípio do poluidor-pagador. Em sede de Recurso Especial, a construção de um hotel em área rochosa que avança para o mar (promontório) foi devidamente embargada diante da declaração de nulidade da autorização ou licença ambiental concedida em desconformidade com o mandamento legal, de forma a inadmitir convalidação. Tal fato, deriva da potencialidade significativa de degradação ao meio ambiente,
objetiva, como se pode ver neste julgado, in verbis:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
RESPONSABILIDADE
POR
DANO
CAUSADO
AO
MEIO
AMBIENTE. ZONA COSTEIRA. LEI 7.661/1988. CONSTRUÇÃO DE HOTEL EM ÁREA DE PROMONTÓRIO. NULIDADE DE AUTORIZAÇÃO OU LICENÇA
URBANÍSTICO-AMBIENTAL.
OBRA
POTENCIALMENTE
CAUSADORA DE SIGNIFICATIVA DEGRADAÇÃO DO MEIO AMBIENTE ESTUDO PRÉVIO DE IMPACTO AMBIENTAL - EPIA E RELATÓRIO DE IMPACTO AMBIENTAL - RIMA. COMPETÊNCIA PARA LICENCIAMENTO 23
Esta indenização reverte-se para o fundo ambiental de reconstrução de bens lesados (Fundo de Defesa de Direitos Difusos), mas podem existir outros fundos Estaduais ou Municipais. 24 Como exemplo, podemos citar a caça de espécies em extinção.
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obrigando o poluidor a reparar os prejuízos ocasionados, regendo-se pela responsabilidade
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FIDΣS URBANÍSTICO-AMBIENTAL. PRINCÍPIO DO POLUIDOR-PAGADOR (ART. 4°, VII, PRIMEIRA PARTE, DA LEI 6.938/1981). RESPONSABILIDADE OBJETIVA (ART. 14, § 1°, DA LEI 6.938/1981). PRINCÍPIO DA MELHORIA DA QUALIDADE AMBIENTAL (ART. 2°, CAPUT, DA LEI 6.938/1981). [...] 6. É inválida, ex tunc, por nulidade absoluta decorrente de vício congênito, a autorização ou licença urbanístico-ambiental que ignore ou descumpra as exigências estabelecidas por lei e atos normativos federais, estaduais e municipais, não produzindo os efeitos que lhe são ordinariamente próprios (quod nullum est, nullum producit effectum), nem admitindo confirmação ou convalidação. 11. [...] o degradador, em decorrência do princípio do poluidor-pagador previsto no art. 4°, VII (primeira parte), do mesmo estatuto, é obrigado, independentemente da existência de culpa, a reparar - por óbvio que às suas expensas - todos os danos que cause ao meio ambiente e a terceiros afetados por sua atividade, sendo prescindível perquirir acerca do elemento subjetivo, o que, consequentemente, torna irrelevante eventual boa ou má-fé para fins de acertamento da natureza, conteúdo e extensão dos deveres de restauração do status quo ante ecológico e de indenização. 13. Não se pode deixar de registrar, em obiter dictum, que causa no mínimo perplexidade o fato de que, segundo consta do aresto recorrido, o Secretário de Planejamento Municipal e Urbanismo, Carlos Alberto Brito Loureiro, a quem coube assinar o Alvará de construção, é o próprio engenheiro responsável pela obra do hotel.[...] (grifos nossos)25.
Por mais acertada e coerente que seja a posição adotada pelo STJ em proteger o meio ambiente, mesmo quando a potencialidade do dano não esteja cientificamente comprovada compartilhar a ‘culpa’ com o ente Público, quando este possui parcela de responsabilidade pelo dano ocasionado. No caso em tela, a licença foi concedida descumprindo as exigências legais, ou seja, o Poder Público não teve a cautela necessária para exigir e analisar os estudos de impacto ambiental, concedendo-a sem os devidos cuidados. É ressaltado, ainda, no julgado, que o Secretário de Planejamento Municipal e Urbanístico que concedeu o alvará de construção é o próprio engenheiro responsável pela obra do hotel. A partir do instante em que a principal referência de proteção ambiental – o Estado – atua beneficiando a classe empresária, abstendo-se de seu poder-dever de fiscalização e renegando a força dos princípios insculpidos na Constituição Federal, notadamente a 25
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 769753. T2. Min, Herman Benjamin.j. 08/09/2009. DJ 10/06/2011.
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(aplicação do princípio da precaução), verifica-se, no entanto, que ainda há resistência em
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FIDΣS precaução e eximindo-se da responsabilidade (poluidor pagador), rompe-se todo o arcabouço da força normativa dos princípios, violando não só os mandamentos constitucionais como o sistema de proteção ambiental que deveria ser resguardado pelo Poder Público. No avançado Estado Democrático de Direito no qual se encontra o país, é inadmissível que o ente estatal não seja responsabilizado por sua atitude irresponsável, devendo responder objetivamente por suas ações e subjetivamente por suas omissões, cabendo, no entanto, por via da análise subjetiva, regresso contra o agente público que tenha, por dolo ou culpa, agido de modo a ocasionar o dano ambiental.
5
AÇÃO
OU
OMISSÃO
ESTATAL
COMO
FATO
GERADOR
DA
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO ESTADO O sistema jurídico brasileiro adotou, segundo o art. 14, § 1º da Lei 6.938/81 26, a responsabilidade objetiva decorrente de prejuízos causados ao meio ambiente, diferentemente do que dispõe, para os particulares, o Código Civil vigente, em seu art. 18627, pautado na responsabilidade subjetiva. Excepcionalmente, por força de lei ou quando a natureza da atividade origine riscos28, insculpido na teoria do risco criado, é que o Código em vigor baseia-se na responsabilidade objetiva. A doutrina, em matéria ambiental, ainda não consolidou de forma pacífica o pensamento, neste artigo defendido, de adotar, sem exceções, a teoria do risco integral no tocante aos danos ambientais empreendidos. Por meio desta teoria, fruto da responsabilização
(OLIVEIRA, 2009, p. 133), visto que, segundo José Afonso da Silva (2007, p. 314), a prova do nexo causal é de difícil demonstração, sendo o poluidor raramente o responsável direto e imediato, haja vista sempre incidirem influências externas que favorecem a poluição. Segundo critérios adotados por Nelson Nery Júnior e Rosa Maria B. B. de Andrade Nery (citado por MILARÉ, 2009, p. 961) o dever de indenizar prescinde da investigação de culpa; torna irrelevante a licitude da atividade e inadmite causas de exclusão da responsabilidade civil. 26
Art. 14, § 1º da Lei 6.938/81: “Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade [...] (grifos nossos)”. 27 Art. 186 do CC: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. 28 Art. 927, P.U, do CC: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem” (grifos nossos).
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objetiva, afirma-se que a simples existência da atividade é equiparada à causa do dano
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FIDΣS O bem jurídico – meio ambiente – a ser tutelado não pode ficar desamparado diante das atrocidades cometidas pelos seres humanos. Assim, não se analisa o elemento subjetivo – dolo ou culpa – na ação do agente poluidor. Em outras palavras, “passa a lei a procurar identificar um responsável pela indenização, e não necessariamente um culpado, individualmente tomado” (Cláudio Luiz Bueno de Godoy citado por MILARÉ, 2009, p. 955). Independe se o poluidor alega ser sua conduta lícita, por respeitar os padrões legalmente estabelecidos pela autoridade administrativa, ou que detinha autorização ou licença para realizar a atividade, afinal, a Administração Pública não está legitimada a autorizar atos nocivos ao meio ambiente (VIANNA, 2009, p. 115), o que importa é a existência do dano e a necessidade de reparação. Neste sistema objetivo, não se admite as excludentes de responsabilidade alegando-se caso fortuito, força maior ou fato de terceiro. A necessidade de proteger os recursos naturais a fim de garantir o desenvolvimento intergeracional legitima a aplicação desse modelo, diante do histórico de impunidades que assola o país em matéria ambiental. É notória a dificuldade de identificar os poluidores, daí a instituição da responsabilidade solidária; o descaso com os bens naturais e o desamparo às vitimas. Esta novel situação permite a consagração do princípio do poluidor-pagador e impõe ao transgressor ambiental os custos sociais de sua atividade econômica. Por esse sistema só haverá exoneração de responsabilidade quando o dano não existir ou for ausente nexo de causalidade direto deste com a atividade desenvolvida. As pessoas jurídicas de direito público, como visto anteriormente, podem figurar como poluidores direto, quando o Estado, por exemplo, age em desconformidade com a lei; ou por via indireta, quando se omite na fiscalização; não exige Estudo de Impacto Ambiental
sido provocados por terceiros, o Estado pode ter agido como facilitador ou legitimador da infração, descumprindo deveres impostos legalmente, sendo prudente a aplicação da responsabilidade solidária do ente Estatal, cabendo ação regressiva aos demais corresponsáveis. Neste último caso, contudo, a particularidade da omissão no exercício do poder de polícia ou na fiscalização de atividades econômicas deverá ser analisada no caso concreto, a ser perquirida pela responsabilidade subjetiva (OLIVEIRA, 2009, p. 134), baseada na falta grave (analisa-se dolo ou culpa)29.
29
Precedente jurisprudencial que adota a responsabilidade subjetiva em se tratando de omissão na fiscalização pelo Poder Público a depender da verificação de culpa: SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgRg no Ag 822764. T1. Min, José Delgado. j. 05/06/2007. DJ. 02/08/2007 p. 364.
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ou não impõe medidas acautelatórias aos particulares. A despeito dos danos ambientais terem
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FIDΣS Na lição de Álvaro Luiz Valery Mirra (citado por MONTEMEZZO, 2008, p. de internet) o Poder Público se omite no controle e na fiscalização das atividades potencialmente degradadoras quando não exerce ou exerce inadequadamente o poder de polícia ambiental (v.g. concessão indevida de licença ou autorização) e nas situações em que não adota providências administrativas necessárias à prevenção e à restauração de bens e recursos ambientais, desincumbindo-se do dever de impor medidas de prevenção antes de licenciar as atividades ou obras capazes de gerar significativo dano ambiental. Assim, a responsabilidade estatal pode decorrer de atos comissivos ou omissivos, seja por autorizar indevidamente uma atividade lesiva ao meio ambiente, seja por ocultar-se ao dever de fiscalizar (MONTEMEZZO, 2008, p. de internet). Corroborando com este entendimento, explica Paulo Affonso Leme Machado (2007, p. 341) que o Poder Público só será prudente e cuidadoso se puder ser responsabilizado solidariamente com o particular, quando desrespeitarem a saúde ambiental. Seria uma forma de compeli-lo a agir dentro dos padrões legais ambientais. Este alargamento da responsabilidade justifica-se, também, pela necessidade de proteção ambiental e, principalmente, de recuperação do bem lesado. No entanto, deve-se ter prudência na aplicação desta responsabilidade em virtude de que o ônus será dividido pela sociedade, além de que, esta estará financiando-o indiretamente. Outra preocupação consiste na possibilidade de alguns danos não serem reparados, visto que os corresponsáveis podem se acomodar e continuar desrespeitando as normas ambientais30. Faz-se necessário, também, enorme cautela quando se envolve o Estado por eventual atitude omissiva, nem sempre facilmente caracterizável.
meio da fiscalização, impõe às empresas a observância de condições para que possam desenvolver suas atividades. Dessa forma, o ente estatal estabelece medidas acautelatórias para evitar a ocorrência de danos ambientais, mas não se limita apenas a determinar a medida, ao Poder Público também incube a exigência de seu cumprimento. No entanto, é, muitas vezes, nesta obrigação que ocorre a omissão do Estado. Não se pode negar que se encontra nas mãos do ente estatal a decisão sobre o licenciamento ambiental. É por meio deste que se pode limitar a prática de atividades que
30
A fim de solucionar este problema, Édis Milaré (2009, p. 967) propõe que o Estado só seja acionado quando for ele causador direto do dano. Se configurar como poluidor indireto, pela regra da solidariedade, deve-se demandar primeiro o agente lucrador da atividade.
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O poder de polícia administrativa é de competência exclusiva do Estado, o qual, por
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FIDΣS possam ocasionar riscos ambientais. Deve-se observar a viabilidade da existência da atividade potencialmente devastadora e a manutenção do equilíbrio ecológico na área ambiental. Desse modo, para aliar-se ao desenvolvimento econômico sem prejudicar a natureza, o Estado deve impor ao particular medidas de proteção ambiental, efetivando o princípio da precaução e mitigando eventuais riscos ambientais, concedendo, dessa forma, a licença ambiental. É indiscutível que a presença do Estado antes, durante e após a instalação da atividade potencialmente degradante é fundamental na verificação da possível ocorrência de danos. Sua ausência fiscalizatória pode sim ensejar responsabilidade solidária, visto que, por uma falha na fiscalização pode ter autorizado o que não poderia ser alvo de ação humana nos moldes daquela atividade, enquadrando-se como corresponsável, proporcionando, mesmo que indiretamente, o dano. Assim, deve incidir a responsabilidade solidária do Estado quando configurada uma omissão inescusável, aplicando-se a teoria subjetiva. Por fim, é imprescindível atentar para o escopo da responsabilização ambiental: punir veementemente aqueles que, de algum modo, concorreram para a ocorrência do dano e, principalmente, buscar recuperar a área afetada, se possível, restabelecendo ao status quo ante.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Enquanto os seres humanos não aprenderem a conviver harmonicamente com o meio
equilíbrio ecológico ambiental. Por meio do princípio da precaução, deve-se aliar o desenvolvimento econômico com a sustentabilidade dos recursos naturais. A ação humana não pode preceder a avaliação dos impactos ambientais e, principalmente, a adoção de medidas acautelatórias que aniquilem, ou – pelo menos – amenizem os danos ambientais, inclusive, e, sobretudo, quando inexistir certeza científica absoluta sobre a real possibilidade e extensão do dano. A responsabilidade pelos danos ambientais pode ser perquirida com arrimo no princípio do poluidor-pagador, impondo a reparação integral do prejuízo causado, preferencialmente, retornando ao status quo ante. O ordenamento jurídico pátrio, ao adotar a responsabilidade objetiva no tocante aos danos ambientais, permite instituir a teoria integral
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ambiente, será necessário um sistema rígido e repressivo que garanta a manutenção do
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FIDΣS como norteadora da reparação dos danos ecológicos ocasionados pelo particular ou pelo Estado, inadmitindo qualquer excludente de responsabilidade. Viabilizar a responsabilização solidária do Estado quando sua ação ou omissão gerou ou concorreu para a ocorrência do dano faz-se necessário para impor maiores cautelas ao Poder Público no que diz respeito ao bem jurídico meio ambiente. A precaução e reparação dos danos ambientais são primordiais. Não se trata de encontrar o poluidor, mas sim de encontrar quem poderá ser responsabilizado pela reparação.
REFERÊNCIAS
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MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 15. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007.
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco. Doutrina. Jurisprudência. Glossário. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
MONTEMEZZO, Patrícia. A prudência ambiental e o papel do Estado nos danos gerados por sua omissão. 2008. 129 f. Mestrado (Dissertação) - Universidade de Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, 2008. Disponível em:
OLIVEIRA, Fabiano Melo Gonçalves de. Difusos e coletivos: direito ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, v.15.
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VIANNA, José Ricardo Alvarez. Responsabilidade civil por danos ao meio ambiente. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2009.
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<http://tede.ucs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=154>. Acesso em: 05 abr. 2012.
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FIDÎŁS THE JOINT LIABILITY OF THE PUBLIC ADMINISTRATION IN THE FACE OF ENVIRONMENTAL DAMAGE CAUSED BY PRIVATE INDIVIDUALS AND THE EFFECTIVENESS OF ENVIRONMENTAL LAW PRINCIPLES
ABSTRACT This research examines the incidence and the respect for the principles of environmental law investigating in the deployment of the work or activity which is able of causing significant environmental damage. Noting the need to adopt the theory of integral risk arising from objective liability in respect of environmental damage to individuals and/or to the government. It proposes joint liability of the Government when it, even if indirectly, facilitates the occurrence of environmental damage, by action/omission. It discusses, through concrete case study, and from the perspective of the doctrine and jurisprudence, the application of the precautionary and the polluter-payer principles.
Keywords: Integral risk theory. Objective liability. Joint liability.
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Precaution. Polluter-payer.
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FIDΣS Recebido 31 ago. 2012 Aceito 12 out. 2012
AS CONTRIBUIÇÕES DA LEI DA FICHA LIMPA PARA A EVOLUÇÃO DA DEMOCRACIA BRASILEIRA E A MORALIZAÇÃO DO PODER PÚBLICO Pedro Amorim Carvalho de Souza* Rafael Ramos do Nascimento*
RESUMO Trata-se de uma análise sobre o quanto a Lei Complementar nº 135/2010 (Lei da Ficha Limpa) poderá contribuir para o avanço da democracia brasileira e a moralização do Poder Público. Inicialmente, tenta-se expor uma noção acerca do que se entende por probidade e moralidade administrativa, partindo-se, após, para uma análise das principais causas do fenômeno da improbidade administrativa. Em seguida, será expendida uma análise acerca dos posicionamentos do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal sobre o novel diploma legal. Por fim, empreender-se-á uma abordagem sobre
Limpa nesse processo. Palavras-chave: Lei da Ficha Limpa. Improbidade Administrativa. Democracia. Responsabilidade social. Responsabilidade jurídica.
1 INTRODUÇÃO
*
Graduando em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e estagiário da Justiça Federal do Rio Grande do Norte. * Graduando em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e estagiário da Defensoria Pública da União (Natal-RN).
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a democracia, como ela pode evoluir e que impacto tem a Lei da Ficha
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FIDΣS A sociedade brasileira há décadas clama por democracia. Até o fim da década de 80, o povo brasileiro lutava pela democracia no seu sentido mais amplo e universalizado. À época, pleiteava-se o direito de sufrágio popular para escolha do Chefe do Executivo Federal. Hoje, no Brasil, a busca pelo aprimoramento do regime democrático correlaciona-se à defesa da moralização política. Diante do cenário político do país, o povo, visando a uma reviravolta na presente situação, fez valer a sua soberania por meio da iniciativa popular. A campanha iniciada no ano de 2008, mediante a mobilização do MCCE – Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral – nos meio de comunicação social, conseguiu reunir a expressiva quantidade de 1.604.815 assinaturas, número esse correspondente à participação superior a 1% do eleitorado brasileiro. Diante disso, percebe-se o quão é importante analisar a Lei da Ficha Limpa na perspectiva da evolução da democracia brasileira. A atualidade do tema se justifica ante a inovação que esse diploma legal representa no recrudescimento do combate à improbidade administrativa e na evolução da democracia brasileira. Esses dois pontos podem ser observados no processo de formação e na aplicação da lei. Nesse contexto, observando as discussões jurídicas atinentes à validade constitucional e à real eficácia da lei ora em análise mostra-se imperiosa uma abordagem sociológica pautada em uma perspectiva filosófica da Lei Complementar nº 135/2010 no combate a corrupção. A metodologia empregada consistiu no cotejo entre as lições de importantes estudiosos da democracia no mundo e a realidade sociológica brasileira.
CONSIDERAÇÕES
SOBRE
A
PROBIDADE
E
A
MORALIDADE
ADMINISTRATIVA
Cumpre desde já expor uma noção, ainda que incipiente e com imperfeições conaturais, do que sejam a probidade e a moralidade administrativas. Cuida-se de uma tarefa árdua, como é todo intento de explicar determinada abstração. O indivíduo precisa refletir acerca do que irá delimitar, a fim de não deixar à margem da noção elementos essenciais à sua substância e nem inserir elementos a ela dispensáveis. A probidade e a moralidade são termos abstratos, de conteúdo vago. Em virtude dessa característica, boa parte da doutrina administrativista pátria os considera princípios. A própria Constituição Federal, no art. 37 caput, prescreve que a Administração Pública deve respeitar, entre outros princípios, o da moralidade administrativa. Na visão de Maria Sylvia
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FIDΣS Zanella Di Pietro (2004, p, 711), moralidade e probidade são, como princípios praticamente a mesma coisa, ambas dizendo respeito à noção do agir administrativo honestamente. Com uma visão distinta da citada jurista, Fabio Medina Osório (2007, p. 89) defende que a improbidade administrativa é uma imoralidade administrativa qualificada. Assim, imoralidade administrativa seria gênero, do qual a improbidade seria uma espécie. Essa última seria uma imoralidade com contornos jurídicos. Para ele, a improbidade administrativa é um ponto de encontro entre a ética administrativa e o Direito. Ressalte-se que esse último entendimento não é acolhido pela nossa legislação. A lei nº 8.429/92 considera alguns atos como de improbidade administrativa. Entre esses atos encontra-se a lesão à moralidade administrativa, denotando que a imoralidade administrativa, em termos legais, é espécie de improbidade administrativa (DI PIETRO, 2004, p. 711-712). O que se pretende neste estudo, entretanto, não é uma conceituação precisa desses dois termos, uma vez que, por serem vagos, apresentam uma série de potencialidades de aplicação prática, sendo impossível engessá-los em contornos restritos. Porém, é possível apresentar uma noção como ponto de partida para tratar do fenômeno da improbidade administrativa, suas causas, formas de combate e a importância da Lei da Ficha Limpa nesse cenário. Portanto, considerando ambos os termos como sinônimos, é possível definir probidade e moralidade, na seara administrativa, como o dever do Administrador Público de não violar a confiança que lhe é posta. Essa confiança reside na defesa do interesse público em face de interesses meramente privados quando na gestão da coisa pública. Todo agente público, seja servidor público, agente político, militar ou particular em colaboração com o
intuito de bem servi-la, primando pela consecução de interesses públicos em face dos meramente privados. Como já salientado, essa é uma noção abstrata. Todavia, como toda noção acerca de um objeto abstrato, pode-se dizer que ela envolve uma zona de certeza positiva, uma zona de certeza negativa e uma zona de penumbra/cinzenta. Celso Antônio Bandeira de Mello, citando Fernando Sainz Moreno, expõe que em relação aos conceitos imprecisos haverá sempre essas zonas de certeza positiva e de certeza negativa (MELLO, 2010, p. 974). No primeiro caso (zona de certeza positiva), percebe-se claramente o respeito ao interesse público, enquanto no segundo caso descura-se desse interesse quando em contraste com um interesse privado. Já na zona de penumbra, não há ao certo uma determinação quanto à conduta ser ímproba ou não.
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Poder Público, recebe da sociedade a confiança de que irá desenvolver sua atividade no
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FIDΣS Um exemplo de conduta inserida na zona de certeza positiva é a do administrador que em vez de contratar parentes para ocupar cargo em comissão sobre o qual exerce função de chefia efetua processo seletivo simplificado para que a escolha se dê em razão do mérito. Já como exemplo de conduta inserta na zona de certeza negativa, pode-se considerar a do Agente Estatal, que, em vez de aplicar recursos públicos na construção de uma rodovia, desvia-os em prol de seu patrimônio. Já na zona de penumbra pendem dúvidas acerca da caracterização do interesse a princípio privado, porquanto, a depender do ponto de vista, ele também pode ser considerado público, como um objeto cuja proteção é importante também para a sociedade. Mas não cabe adentrar tanto nessa questão, pois ela exigiria uma análise mais minuciosa, que desborda dos objetivos ora propostos. Deveras, na maior parte das situações caracterizadas como ímprobas, há o desrespeito ao patrimônio público, como no caso do exemplo dantes citado para ilustrar o que seria zona de certeza negativa. Entretanto, é possível que o administrador público viole um dever de confiança inerente não à defesa do erário, mas a de outros interesses públicos, como a imparcialidade. A situação elencada como exemplo de zona de certeza positiva evidencia uma situação em que foi respeitado o dever de imparcialidade. Não foi o caso de tutelar o patrimônio público, pois decerto o parente do administrador poderia ser muito eficaz na prestação do serviço inerente ao cargo comissionado. Imperou o dever de imparcialidade, consubstanciado na não discriminação de pessoas com base em critérios subjetivos. Impende ainda tecer uma consideração quanto à possível distinção entre corrupção
administrativa, pois está em seu bojo a violação do interesse público em prol do interesse privado. Corrupção pública pode ser definida como o comércio da coisa pública entre um agente público e uma pessoa externa ou interna ao Poder Público. Corrupção, assim, sempre pressupõe uma troca, um acordo entre duas pessoas. É nesse sentido o entendimento de Flávia Schilling (1999, p. 49), para quem a corrupção caracteriza-se pela existência de uma relação de forças (poder econômico versus poder decisório) entre as partes, que tende a se equilibrar em um acordo. O Código Penal brasileiro,
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de improbidade administrativa. Em verdade, a corrupção é uma forma de improbidade
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FIDΣS ao tratar dos crimes de corrupção passiva1 e ativa2, alberga essa visão da corrupção como um contrato ilícito. Os atos ímprobos, entretanto, nem sempre pressupõem a existência de um acordo entre duas pessoas. Com efeito, certas improbidades podem ser verificadas em atos unilaterais de agentes públicos, como a hipótese de um governante embolsar parte de recursos públicos a priori destinados à construção de uma escola estadual, que estejam a sua disposição. Inexistindo um acordo entre ele e outrem (nem ao menos quanto ao sigilo dessa conduta), não se pode dizer que houve aí corrupção. Porém, é certa a ocorrência de improbidade administrativa. Superada essa tentativa de nortear o que se deve entender por probidade administrativa, incumbe agora analisar, sob uma perspectiva filosófica, o que leva um agente público a violar esse dever de confiança atribuído pela sociedade. A resposta a esse questionamento é o marco inicial para buscar formas de combater os atos ímprobos na Administração Pública.
2.1 O princípio hedonista como justificador dos atos ímprobos
É imprescindível perquirir qual o motivo que leva um agente público, investido da confiança social, a violar essa fidúcia, cometendo atos ímprobos. Consoante já salientado, tais atos são marcados pela preponderância de interesses meramente privados em face de interesses públicos. O ímprobo prima pela satisfação dos seus interesses ou daqueles que lhes são
prazer momentâneo, afastando a dor. Deveras, satisfazer as exigências sociais requer muito trabalho, é muito “doloroso”. O homem, assim, é tentado a não as atender, pois é do espírito humano a procura pelo caminho mais fácil. A isso se chama princípio hedonista, ou lei do menor esforço. O indivíduo, psicologicamente, é levado a buscar vantagens, se esforçando o mínimo possível, apenas o
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“Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 10.763, de 12.11.2003).” 2 “Art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 10.763, de 12.11.2003).”
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próximos em detrimento daquilo que é útil a toda a sociedade. Percebe-se que ele busca o
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FIDΣS necessário para obter o proveito almejado. Acerca desse princípio, são esclarecedores os comentários de Fabio Nusdeo (2008, p.114):
O hedonismo nada mais vem a ser do que uma atitude segundo a qual o homem visa sempre a maximizar os resultados de suas ações e iniciativas. (...) Ou, dito de outra maneira, se ele fixar uma dada remuneração ou rendimento mensal que o atenda, ele dedicará para produzi-lo o menor número de horas ou o menor esforço possível, desde que compatível com a remuneração previamente fixada. Vê-se, pois, que o hedonismo corresponde, grosso modo, àquilo conhecido popularmente como a lei do menor esforço.
Se um agente público sabe que ao fim de certo período receberá a mesma remuneração do período anterior, tanto trabalhando bastante para atender as necessidades sociais, quanto ficando ocioso, é certo que ele optará por esse último comportamento. Pior ocorre quando ele percebe que pode ascender patrimonialmente e profissionalmente à custa da violação do patrimônio público (ou de outros interesses públicos albergados pela confiança social) e não ser punido por isso. Com base no exposto, as causas da improbidade administrativa podem ser resumidas em três: o princípio hedonista norteador das condutas humanas; o não estabelecimento de metas ao agente público para possibilitar sua ascensão profissional e, por fim, a impunidade dos desonestos. Esse último quesito é a causa mais relevante, tendo em vista a ramificação de condutas ímprobas que ela gera.
Conforme exposto, o indivíduo, de acordo com o princípio hedonista, tende a procurar o “caminho mais fácil”. Entretanto, caso ele perceba que quem segue esse caminho sofre duras penas, certamente não o adotará, visto que tal estrada não se apresenta mais “tão fácil”. Porém, se os desonestos não recebem punição alguma, o homem, a princípio probo, sofrerá a chacota daqueles, e, espiritualmente, tenderá a corromper-se. Dessarte, a improbidade de um sujeito aliada à falta de imposição de uma sanção enseja a ramificação social da desonestidade pública, levando a sociedade à destruição moral. Writgh Mills (1981, p.404), com uma frase, ilustra esse estado social: “bem aventurados são os cínicos, porque somente eles têm o que leva ao êxito”.
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2.2 A impunidade como causa principal da desonestidade no Poder Público
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FIDΣS Percebe-se, assim, a necessidade de punir os ímprobos. Essa punição pode ser de três naturezas: responsabilidades social, política e jurídica (OSÓRIO, 2007, p. 100-110). A responsabilidade social consiste no repúdio popular a determinados indivíduos envolvidos em escândalos de improbidade administrativa. É comum, no Brasil, a veiculação através dos meios de comunicação (principalmente a televisão) de escândalos de corrupção. Podem ser citados, como exemplos recentes, os casos do ex-senador Demóstenes Torres envolvido com o bicheiro Carlinhos Cachoeira e do mensalão, que voltou ao cenário nacional em virtude do julgamento dos réus pelo Supremo Tribunal Federal. O povo brasileiro assiste atônito e com revolta aos noticiários que trazem essas informações. Entretanto, as ocupações rotineiras dos cidadãos e a apresentação de novas notícias pela mídia cotidianamente acarreta o esquecimento público acerca desses escândalos. O futebol e a novela passam novamente a ser mais importantes que a moralidade na Administração Pública. A responsabilidade política, por sua vez, reside na possibilidade de alguns agentes públicos perderem seus cargos, em virtude de condutas ímprobas, por decisões de autoridades, que não as judiciárias. Segundo Osório (2007, p.103-109), os exemplos mais claros de responsabilização política são a demissão ad nutum de agentes investidos em cargo de comissão ou função de confiança e a perda de um mandato eletivo por decisão de um colegiado político. Com efeito, percebe-se que essas decisões fundam-se em certo grau de discricionariedade do competente para decidir. Ele poderá optar por manter no cargo o sujeito acusado de ter cometido ato ímprobo, confiando na sua inocência, até o fim de processo
investigado e o chefe. Assim como a responsabilidade social, a responsabilidade política é ineficaz no Brasil. Embora seja relativamente comum a destituição de Ministros, Secretários Estaduais e Municipais envolvidos em escândalos de corrupção, verifica-se que esses, sendo o caso, voltam a ocupar seus cargos públicos originários ou a desempenhar normalmente suas atividades particulares. É que tais cargos têm o caráter da temporariedade e os seus ocupantes já possuem a consciência de que em breve deles sairão. Por sua vez, são raros os casos de parlamentares cassados por envolvimento em situações de corrupção. Para citar um exemplo, perlustre-se o Senado Federal: malgrado os inúmeros escândalos de improbidade nessa casa legislativa, somente dois senadores foram cassados por seus pares até hoje: Luiz Estevão e Demóstenes Torres.
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judicial ou desde logo demiti-lo/exonerá-lo. Há uma dependência da relação entre o
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FIDΣS Fábio Medina Osório (2007, p. 108) é claro ao apontar que, nessas situações de responsabilidade política, “o rigor ou o beneplácito podem ser mais intensos, dependendo das relações do acusado com as autoridades competentes, eis uma realidade indigesta, porém inquestionável”. Ante os dados verificados, não é desarrazoado supor que, no Brasil, o beneplácito é mais intenso. Por fim, tem-se a responsabilidade jurídica. Saliente-se, de início, que ela abrange não só um ramo do Direito. O art. 123 da Lei de Improbidade Administrativa, por exemplo, dispõe que o responsável por ato de improbidade administrativa fica sujeito às sanções previstas nesse diploma legal sem prejuízo de outras sanções de caráter civil, penal ou administrativa. No campo penal, os atos criminosos ligados à violação da fidúcia depositada pela sociedade aos agentes públicos nem sempre são punidos. Embora se reconheça que a lei penal comina penas severas, por exemplo, para o crime de corrupção (tanto na sua modalidade ativa quanto na passiva4), as punições não são devidamente implementadas tanto quanto maior for o poder econômico do acusado. No embate entre o poder econômico e o poder punitivo estatal, aquele por vezes prevalece, gerando o fenômeno criminológico conhecido por cifra dourada. A Criminologia Crítica, abordada por Alessandro Baratta (2002, p. 161), explica bem esse fenômeno: o crime não é resultado de características ontológicas de determinados sujeitos ou comportamentos, mas é o resultado da atribuição a determinados indivíduos de um status. Esses indivíduos são os ocupantes das camadas sociais mais baixas. Aludida seleção, baseada na estratificação social, se dá primeiramente na definição
pelos mais pobres) e depois na própria aplicação das medidas repressoras. Com efeito, os detentores do poder econômico (sujeitos mais comuns nos crimes envolvendo a desonestidade administrativa) possuem várias formas de se esquivar da repressão penal, seja através da contratação de bons advogados criminalistas ou mesmo por meio da adoção de meios para diminuir os elementos probatórios indiciadores da conduta criminosa. A Criminologia Crítica pode ser resumida, em linhas gerais, no seguinte escólio de Alessandro Baratta (2002, p. 165): 3
“Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato: (Redação dada pela Lei nº 12.120, de 2009).” 4 Para ambos os crimes o código penal prevê reclusão de 2 a 12 anos e multa, de acordo com os outrora citados arts. 317 e 333.
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dos tipos penais (comportando maior gravidade aquelas condutas habitualmente cometidas
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FIDΣS As maiores chances de ser selecionado para fazer parte da “população criminosa” aparecem, de fato, concentradas nos níveis mais baixos da escala social (subproletariado e grupos marginais). A posição precária no mercado de trabalho (desocupação, subocupação, falta de qualificação profissional) e defeitos de socialização familiar e escolar, que são características dos indivíduos pertencentes aos níveis mais baixos, e que na criminologia positivista e em boa parte da criminologia liberal contemporânea são indicados como as causas da criminalidade, revelam ser, antes, conotações sobre a base das quais o status de criminoso é atribuído.
Do acima exposto, conclui-se que os agentes públicos desonestos não temem o poder penal punitivo do Estado brasileiro. Este, via de regra, é ineficaz para reprimir as condutas por eles praticadas. A melhor forma de punir judicialmente um ímprobo é atacar aquilo que ele mais valoriza. No caso dos detentores de mandato eletivo, eleitos pelo voto popular, a melhor forma de repressão é retirar deles o mandato ou impedir que eles venham a competir nas eleições pela sua conquista. Com efeito, os políticos temem bastante o Direito Eleitoral. Esse ramo jurídico é acentuadamente mais célere quando comparado ao Direito Penal, em virtude da simplicidade dos procedimentos e dos curtos prazos processuais preclusivos.5 Um candidato à eleição que tenha cometido ato ímprobo não teme a prisão (pois esta dificilmente lhe será aplicada). Mas, a possibilidade de perder o direito a sua candidatura lhe amedronta profundamente. Assim é que a Lei Complementar nº 135/2010 cumpre um
conseguinte, fazer algumas considerações acerca desse novel diploma legal.
3 A LEI COMPLEMENTAR Nº 135/2010: ALTERAÇÕES NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA E POSICIONAMENTO DAS CORTES SUPERIORES
A Lei Complementar nº 135/2010 representou a união de vários projetos de leis complementares (PLP) que circulam na Câmara dos Deputados desde 19936 com o objetivo 5
Veja-se, como exemplos disso, a possibilidade prevista na lei das eleições de as intimações de decisões judiciais serem feitas via fac-símile (art. 94 § 4° da lei 9.504/1997) e os prazos recursais, que, via de regra, são de três dias pela citada lei. 6 PLPsnºs 168/93, 22/99, 53/03, 35/03, 203/04, 376/08, 446/09, 487/09, 499/09, 502/09, 518/09, 519/09 e 544/09.
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importante papel no combate à imoralidade na Administração Pública. Impende, por
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FIDΣS de modificação de artigos da Lei Complementar nº 64/90 (lei das inelegibilidades), de forma a proporcionar maior probidade administrativa e lisura no exercício do mandato. A tramitação desses projetos legislativos obteve mais atenção da sociedade e da mídia a partir da entrega da PLP 519/2009, de iniciativa popular, a Câmara Federal. Esse último visava acrescentar a esse diploma legal preceitos normativos que reprimissem ainda mais a capacidade eleitoral passiva daqueles que cometessem certas condutas, consideradas como ímprobas. Para uma melhor compreensão do papel da Lei da Ficha Limpa na evolução da democracia brasileira e no combate à corrupção, importa tratar dos posicionamentos do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal acerca de algumas controvérsias surgidas após sua vigência. 3.1 Posicionamentos do Tribunal Superior Eleitoral
Antes e após a entrada em vigor da Lei da Ficha Limpa, iniciaram-se uma série de críticas e dúvidas, principalmente quanto à aplicabilidade desta norma ao processo eletivo de 2010 e a sua retroatividade para casos de inelegibilidade ainda em tramitação. No intuito de resolver essas problemáticas, discutindo o teor jurídico desta lei complementar, foram propostas, antes mesmo do início de sua vigência, ao Tribunal Superior Eleitoral três consultas, uma de autoria do Senador Arthur Virgílio (PSDB), outra pelo Deputado Federal Jerônimo Reis (DEM-SE) e a última pelo Deputado Federal Ilderlei Cordeiro (PPS-AC). Nessas consultas foram analisados os principais pontos controvertidos da aplicação
de 2010; b) se essa lei seria utilizada para julgar processos que se iniciaram antes da entrada em vigor da referida norma; c) se essa lei seria aplicada para julgar processos em tramitação que já foram julgados, mas estão em grau de recursos, tendo a decisão inicial estabelecido punição com base em lei anterior; d) se as penas previstas na nova lei, que são mais extensas que as da lei anterior, poderiam ser aplicadas aos processos iniciados antes da sua vigência. O Tribunal Superior Eleitoral, após a análise e votação de todos os quesitos sobreditos, respondeu “sim” a todos eles. Os membros dessa corte (com exceção do Ministro Marco Aurélio) argumentaram que a Lei Complementar nº 135/2010 apenas incluía novas sanções e casos de inelegibilidade com a finalidade de se conceder maior importância à vida pregressa dos candidatos. Em face disso, consideraram que ela se situava fora do processo eleitoral, não o modificando.
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desta norma, a seguir elencados: a) se a lei eleitoral da ficha limpa seria aplicada às eleições
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FIDΣS De tal forma, inexistiria afronta ao disposto no artigo 16 7, da Constituição Federal, o qual afirma que a lei modificadora do processo eleitoral não se aplicará à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência. Assim, a Corte Superior entendeu que esta nova lei poderia ser utilizada para as eleições de 2010. O Tribunal Eleitoral acima citado também se posicionou a respeito da retroatividade da lei e de suas penas. De acordo com o relator da última consulta, o Ministro Arnaldo Versiani, “a Lei Complementar 135/10 se aplica aos processos em tramitação iniciados e mesmo encerrados antes da entrada em vigor. Não há direito adquirido de elegibilidade” 8. Essa frase representou o voto majoritário e também assentou que tanto as sanções estendidas presentes na nova lei, quanto as novas hipóteses de inelegibilidade por ela disciplinadas, se aplicariam aos processos anteriores, julgados (mas em sede recursal) ou não. Estas respostas do Tribunal Superior Eleitoral às consultas não possuíram força vinculativa, mas serviram de base jurídica para as decisões dos Tribunais Regionais Eleitorais e dos demais órgãos eleitorais do país.
3.2 Posicionamentos do Supremo Tribunal Federal
Após postergar a apreciação da matéria da Lei da Ficha Limpa, tendo em vista a grande celeuma acerca da aplicabilidade imediata da norma que entrou em vigor em junho de 2010, e que impedia a candidatura de políticos condenados por decisões de colegiados, o Supremo Tribunal Federal, no dia 23 de março do ano de 2011, por 6 votos a 5, decidiu que a Lei da Ficha Limpa não deveria ter sido aplicada às eleições do ano de 2010, restando, dessa
Nessa decisão, os ministros julgaram recurso do ex-secretário municipal de Uberlândia Leonídio Bouças (PMDB-MG), condenado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) por improbidade administrativa. Bouças teve o registro de candidatura a deputado estadual negado pela Justiça Eleitoral com base nas novas disposições legais e recorreu ao Supremo. A maioria dos ministros desse sodalício entendeu que a lei interferiu no
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“Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 4, de 1993).” 8 TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Consulta nº 114709/DF. Pleno. Min. Arnaldo Versiani. j. 17/06/2010. DJe. 24/09/2010, p. 21. 9 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário nº 633703/MG. Pleno. Min. Gilmar Mendes. j. 23/03/2011. DJe. 17/11/2011, p. 65.
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forma, adiados os efeitos da decisão para as eleições de 20129.
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FIDΣS processo eleitoral de 2010, não podendo ser aplicada a uma eleição marcada para o mesmo ano de sua publicação. Nesse diapasão, entenderam que a norma que entrou em vigor no dia 7 de junho de 2010, vale dizer, quatro meses antes do primeiro turno eleitoral, não pôde ser aplicada às eleições do mesmo ano, eis que uma lei que modifica o processo eleitoral só pode valer no ano seguinte de sua entrada em vigor, de acordo com o referido art. 16 da Carta Magna. A partir desse julgamento, os ministros ficaram autorizados a decidir, de forma individual, outros recursos semelhantes, com base na posição fixada pelo plenário. Ressalte-se, ainda, que, com a supracitada decisão, restou alterada a composição do Congresso Nacional, porque políticos que concorreram sem registro e obtiveram votos suficientes para se eleger puderam reivindicar os mandatos para os quais foram eleitos, razão pela qual a Justiça Eleitoral, em Brasília e nos estados, precisou refazer os cálculos de votos do legislativo para ver quem deveria deixar o cargo e quem teria direito de assumir, como foi a situação dos ex-deputados Jader Barbalho (PMDB-PA) e Cássio Cunha Lima (PSDB-PB), que concorreram nas últimas eleições e, mesmo barrados pela Lei da Ficha Limpa, obtiveram votos suficientes para se eleger ao Senado por seus estados. Frise-se, ainda, que, nas duas vezes em que o plenário da Corte analisou processos contra a ficha limpa, em 2010, houve empate, em 5 votos a 5, empate este decorrente da ausência de um integrante da Corte, depois da aposentadoria do ministro Eros Grau, em agosto de 2010. No entanto, com a posse do ministro Luiz Fux, houve grande expectativa em relação ao seu voto, que decidiu o resultado do julgamento, alegando que a lei não poderia ser
ministro Gilmar Mendes. Os ministros Dias Toffoli, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Cezar Peluso mantiveram suas posições anteriores, votando contra a aplicação da lei para as eleições de 2010, pois entenderam que a referida lei somente deveria ser aplicada a partir de 2012, em contraposição a defesa da ficha limpa nas eleições de 2010, feita pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral e integrante do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, e pelos ministros Joaquim Barbosa, Ayres Britto, Ellen Gracie e Cármen Lúcia. No final do ano de 2011, o Supremo Tribunal Federal procedeu com o julgamento de três ações referentes à Lei da Ficha Limpa, a fim de decidir definitivamente quanto a sua aplicação nas eleições municipais de 2012. Foram duas Ações Declaratórias de Constitucionalidade propostas, respectivamente, pelo Partido Popular Socialista (ADC nº.
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aplicada no mesmo ano das eleições, acompanhando o entendimento do relator do caso,
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FIDΣS 29)10 e pela Ordem dos Advogados do Brasil (ADC nº. 30)11, ambas defendendo a validade total da retro mencionada lei. Por outro lado, a Confederação Nacional das Profissões Liberais questionava em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº. 4578)12 o dispositivo da lei que tornava inelegível o profissional condenado administrativamente por entidades de classe. Por sete votos a quatro, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a lei é constitucional, vale a partir das eleições municipais de 2012 e alcança fatos anteriores a edição da norma. Os ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Cezar Peluso, se opuseram contra alguns pontos da lei, em especial, no que concerne a presunção de inocência, cláusula pétrea do art. 5º13 da Carta Magna e quanto ao art. 15, III14, do mesmo diploma legal, o qual veda a cassação dos direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará no caso de condenação criminal transitada em julgado, e, portanto, seria inconstitucional qualquer dispositivo que torne inelegível o profissional que fosse condenado no âmbito administrativo por sua entidade de classe. Entretanto, os demais sete ministros votaram a favor da total constitucionalidade da Lei Complementar nº 135/2010, aduzindo a importância da lei para o Estado Democrático de Direito, favorecendo a coletividade e visando preservar a legitimidade das eleições, ressaltando que a própria Constituição Federal em seu Art. 14, § 9º 15, prevê a probidade administrativa e moralidade para os candidatos ao pleito eleitoral.
4 A IMPORTÂNCIA DA LEI DA FICHA LIMPA PARA A DEMOCRACIA
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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 29/DF. Pleno. Min. Luiz Fux. j. 16/02/2012. DJe n. 127, publ. 29/06/2012. 11 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 30/DF. Pleno. Min. Luiz Fux. j. 16/02/2012. DJe n. 127, publ. 29/06/2012. 12 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4578/DF. Pleno. Min. Luiz Fux. j. 16/02/2012. DJe n. 127, publ. 29/06/2012. 13 “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes [...].” 14 “Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: [...] III condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos.” 15 “Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: [...] § 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. (Redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 4, de 1994).”
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FIDΣS Antes de adentrar na discussão da relevância democrática da Lei da Ficha Limpa, importa expor brevemente algumas questões sobre a Democracia, as quais serão úteis para o desenrolar futuro do tema central. A Democracia pode ser conceituada como o regime de governo que se funda em três pilares: liberdade de reunião, liberdade de opinião e sufrágio universal. A junção desses elementos em um Estado torna-o democrático porque nele teremos uma pluralidade de ideias sobre os destinos da sociedade, expressadas livremente pelos cidadãos, que podem fazê-las prevalecer politicamente através do instrumento do voto popular. De acordo com Robert Dahl (2005, p. 26), existem três condições necessárias para uma democracia, relativas às oportunidades plenas que são concedidas aos cidadãos para: a) “formular suas preferências”; b) “expressar suas preferências a seus concidadãos e ao governo através da ação individual e coletiva” e c) “ter suas preferências igualmente consideradas na conduta do governo, ou seja, consideradas sem discriminação decorrente do conteúdo ou da fonte de preferência”. Fazendo um paralelo com os ensinamentos desse autor, pode-se considerar que a liberdade de expressão liga-se à primeira condição, a liberdade de associação assemelha-se à segunda condição e o sufrágio universal está próximo da ideia explicitada como terceira condição. Além dessa análise sobre os três pilares da democracia, é importante ressaltar que o dissenso é a sua principal característica. Num regime democrático, sempre haverá aqueles que defendem opiniões contrárias. Prevalecerá aquela que a maioria dos cidadãos escolher, por meio de um consenso. Todavia, em regra há sempre discordantes dessa escolha. Esses últimos
De acordo com Norberto Bobbio (2006, p. 74), as democracias se baseiam no consenso da maioria e dissenso da minoria. Um Estado que não tutela a liberdade de opinião não pode ser democrático. Nele os indivíduos podem até discordar, mentalmente, das decisões políticas tomadas, mas não podem externar seus pensamentos contrários ao modo de governo. Desse modo, acredita-se que toda a sociedade consente com os governantes. Mas esse consenso é uma mera aparência, pois baseado na opressão. Já um Estado que tutele a liberdade de opinião, mas não a liberdade de reunião, também não pode ser considerado democrático. É que de nada adianta ao homem poder expressar suas opiniões contrárias ao modo de governar se ele não puder reunir-se com seus concidadãos para tentar convencê-los disso. Seria uma voz “clamando no deserto”, que
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são os dissidentes, daí por que o caráter indissociável do dissenso aos regimes democráticos.
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FIDΣS poucos escutarão. Por conseguinte, conclui-se, com relativa segurança, que a não proteção da liberdade de reunião acarreta a inexistência da liberdade de expressão, pois essa restará infrutífera. Conforme preleciona Ernane César de Oliveira Bastos (2010, p. 110-111), a conjugação da liberdade de associação (ora denominada liberdade de reunião para diferenciar a liberdade de associação que se destina tão somente à formação de pessoas jurídicas, como sociedades e associações) com a liberdade de expressão gera as manifestações públicas, aquilo que Robert Dahl (2008, p. 29) denomina “espaço de contestação”. O precitado autor defende, inclusive, que as manifestações públicas, inicialmente fenômenos unicamente sociais, devem ser protegidas juridicamente, pois os seus elementos estruturais (liberdade de reunião e de expressão) são tutelados pela ordem jurídica brasileira. No seu sentir, as manifestações públicas podem ser consideradas um valor sócio-jurídico autônomo, o que as caracteriza como direito fundamental “interdependente em relação à ideia de autodeterminação e desenvolvimento pleno do indivíduo social” (BASTOS, 2010, p. 113). Por fim, o sufrágio universal é o outro pilar da Democracia. Ele é o instrumento para que uma ideia expressada por um certo grupo de indivíduos possa vencer as demais no jogo político. De nada adiantaria garantir aos cidadãos liberdade de expressão e reunião se as classes políticas não as atendem e nem podem ser destituídas das funções decisórias que exercem. Substancialmente um Estado desse tipo não se diferencia dos Estados autocráticos.
4.1 O estágio atual da democracia brasileira e seus possíveis futuros avanços
expressão, liberdade de reunião e sufrágio universal. O Brasil é hoje considerado um país democrático pelo fato de proteger as duas liberdades citadas e por garantir o sufrágio universal (somente poucos brasileiros não podem votar nas eleições). Exemplo de proteção estatal às liberdades de expressão e reunião pode ser visto no entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 18716, em que restou decidida a legalidade das manifestações
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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 187/DF. Pleno. Min. Celso de Mello. j. 15/06/2011. DJe n. 121, publ. 27/06/2011.
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Já restou salientado que a democracia funda-se sob três pilares: liberdade de
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FIDΣS públicas em favor da legalização do consumo e venda da maconha. O Poder Judiciário, representando o Estado brasileiro, considerou legítimas manifestações desse tipo. Todavia, a democracia brasileira ainda tem muito a evoluir. O principal problema do nosso regime democrático diz respeito à apatia da sociedade relativamente a assuntos políticos. Esse fenômeno já foi sucintamente referido linhas atrás, quando se tratou da repressão social em face de agentes públicos ímprobos. Tal apatia é fruto da falta de educação para a cidadania, a qual é considerada por Norberto Bobbio (2006, p. 43) uma das seis promessas que os defensores da democracia idealizada não conseguiram ver na prática. De acordo com o referido politólogo italiano, “nas democracias mais consolidadas assistimos impotentes ao fenômeno da apatia política, que frequentemente chega a envolver cerca da metade dos que têm direito ao voto” (BOBBIO, 2006, p. 45). Com base nessas considerações, percebe-se que a democracia brasileira necessita, para avançar, de que seus sujeitos virem efetivamente cidadãos. É preciso mais participação política, mais exercício do valor sócio-jurídico da manifestação pública e, principalmente, de mais responsabilidade social. Essa maior participação ocorrerá caso sejam ampliados os espaços decisórios no seio da sociedade. Cuida-se da passagem da democracia política para a democracia social, que consiste na adoção de procedimentos democráticos para a tomada de decisões nos diversos campos da sociedade civil. Essa análise pode ser resumida nas palavras de Norberto Bobbio (2006, p. 67):
como erroneamente muitas vezes se diz, na passagem da democracia representativa para a democracia direta quanto na passagem da democracia política em sentido estrito para a democracia social, ou melhor, consiste na extensão do poder ascendente, que até agora havia ocupado quase exclusivamente o campo da grande sociedade política (...), para o campo da sociedade civil nas suas várias articulações, da escola à fábrica.
Diante da constatação de que é necessária a educação política para que a democracia brasileira possa evoluir ainda mais (ou, na visão de Robert Dahl (2005, p. 31), para que a poliarquia brasileira possa atingir um estágio mais próximo da democracia ideal, situação plena que inexiste em grandes sistemas mundiais. O referido autor adota o termo poliarquia em vez de democracia, justamente por considerar que esta, atualmente, inexiste), e
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(...) se hoje se pode falar de processo de democratização, ele consiste não tanto,
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FIDΣS verificando-se que essa educação parte da exigência de democratização dos espaços sociais de decisão, impende verificar em que passo a Lei da Ficha Limpa pode contribuir nesse processo.
4.2 A importância da Lei da Ficha Limpa para a evolução da democracia brasileira
Foi afirmado no tópico anterior que, para evoluir, a democracia brasileira necessita de um aumento nos níveis de educação política dos cidadãos. Isso será obtido gradualmente, através da adoção de procedimentos democráticos nas decisões tomadas nos espaços sociais de decisão. Impende analisar o quão a Lei da Ficha Limpa pôde e ainda pode contribuir nesse processo. Também já se tratou do processo de formação da Lei Complementar nº 135/2010, de iniciativa popular. Organizações civis se movimentaram para recolher assinaturas a fim de dar entrada do projeto de lei no Congresso Nacional. Esse processo de formação da Lei da Ficha Limpa pode ser considerado um indício de mudança na realidade brasileira, no tocante ao processo de educação política dos cidadãos. É bem verdade que o cidadão comum continua apático quando o assunto é exercício da cidadania no tocante à escolha e controle dos representantes políticos. Todavia, essa conclusão decorre da análise do cidadão enquanto indivíduo isolado. De fato, o indivíduo, quando olha apenas para si, verifica sua impotência para resolver os problemas democráticos, especialmente os relativos à desonestidade dos representantes populares. Todavia, essa realidade muda quando ele se insere em um grupo.
A Lei da Ficha Limpa foi importante porque denota esse engajamento de grupos da sociedade civil, no afã de alterar o cenário democrático brasileiro, combatendo mazelas que o afligem. A responsabilidade social (adotando novamente aqui a noção tripartite de responsabilidade definida por Fábio Medina Osório) ganha, assim, prestígio na repressão à improbidade administrativa. Trata-se de processo ainda incipiente, mas sua importância reside na mudança do panorama. Acreditar que o homem isolado com uma cédula de voto irá fazer com que a democracia evolua é um erro. Esse homem democrático (o cidadão) necessita de uma força. Essa força só exsurge quando o grupo se envolve nos problemas democráticos. Compartilha desse entendimento Oliveira Vianna (1999, p. 488-489), ao salientar que:
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Abre-se então a possibilidade de mudanças efetivas.
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FIDΣS Em matéria de democracia e de eleições, nossas elites “marginalistas” se limitam (e acham que isso é bastante) a soltar, como um novo Adão – neste Paraíso da Democracia Liberal, que pretendem instituir aqui por meio de decretos e Constituições – o cidadão do povo-massa nuzinho em pê-lo, só e escoteiro, sem nada que o abrigue e o defenda, tendo apenas na mão, como arma, uma quadrícula de papel – uma cédula eleitoral. E desta infantilidade esperam nossa regeneração democrática!
Um segundo ponto importante da Lei da Ficha Limpa diz respeito à responsabilidade jurídica. Aqui o enfoque passa ao exame das consequências da lei, não mais ao seu processo de formação. Afirmou-se, linhas atrás, que a responsabilidade jurídica penal é ineficaz na punição dos agentes ímprobos, por causa do poder econômico a eles inerente. No entanto, o Direito Eleitoral sobressai-se como ramo jurídico dotado de maior eficácia na proteção da moralidade administrativa. O político teme o Direito Eleitoral, em virtude principalmente da sua celeridade processual. O diploma legal em comento recrudesceu a sanção de inelegibilidade dos representantes políticos e de outros agentes públicos. Ele inseriu novas hipóteses de inelegibilidade e ampliou os prazos de duração. Trata-se de um avanço na tentativa de moralizar a política brasileira. Se a promessa de que o povo elegeria sempre os mais sábios para governar não se concretizou até agora, cabe fortalecer os mecanismos jurídicos de repressão dos representantes ímprobos. A efetivação da aludida promessa não ocorreu, pois os teóricos iniciais entendiam que o cidadão deveria participar da democracia de forma isolada. “A
Essa situação, contudo, tende a mudar face à constatação de que, para a evolução da democracia, é imperiosa a participação das organizações civis nessa seara. Esse é um processo gradual, lento. Inobstante isso, as perspectivas atuais são boas: a responsabilidade judicial tende a se fortalecer, assim como a opinião pública (responsabilidade social). A Lei da Ficha Limpa congrega esses dois avanços. Eis a sua importância.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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democracia nasceu de uma concepção individualista da sociedade” (BOBBIO, 2006, p. 34).
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FIDΣS Ante todo o exposto, verifica-se que a apatia política dos cidadãos e a ausência de eficácia estatal no exercício do seu poder punitivo em face dos agentes públicos ímprobos são questões de cuja solução depende a evolução da democracia brasileira. O fortalecimento da opinião pública pressupõe examinar o cidadão não como um ser isolado. De nada adianta garantir-lhe o direito de votar, caso ele não seja inserido em grupos de reivindicação por melhorias democráticas. A organização da sociedade civil em torno de associações com fins democráticos é pressuposto essencial à mudança desse paradigma. Com esse processo gradual, os níveis de educação política aumentarão. Enquanto isso não é implementado, contudo, compete ao Poder Judiciário recrudescer a repressão quanto aos agentes públicos desonestos. A impunidade dos ímprobos acarreta a ramificação da imoralidade na Administração Pública. Para tanto, o manejo do Direito Eleitoral é imprescindível, pois constitui o ramo jurídico dotado de regras processuais mais céleres. A Lei Complementar nº 135/2010 se sobressai como um diploma legal atento a esses dois problemas. Ela pode ser examinada sob duas óticas: no seu processo de formação e na sua aplicação. Seu processo de formação denota que as organizações sociais estão se engajando na luta por um regime mais democrático. O poder político antes restrito à classes dos representantes populares passa a se difundir no seio da sociedade, fenômeno chamado de passagem da democracia política para a democracia social. O diploma legal em comento insere no ordenamento jurídico punições mais severas e mais casos de inelegibilidade. A aplicação pelos juízes, com prudência, desses ditames
brasileira, não ocorrendo impunidade, a improbidade administrativa (incluídos os atos de corrupção) o fenômeno da sua ramificação inexistirá. Com base nesses dois pontos, percebe-se que a Lei da Ficha Limpa realmente constitui um avanço para a diminuição dos índices de improbidade administrativa no Brasil e também para a evolução da democracia.
REFERÊNCIAS
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contribuirá para a concretização do princípio da moralidade na Administração Pública
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FIDΣS BASTOS, Ernane César de Oliveira. A manifestação pública como valor sócio-jurídico autônomo e o peso do avanço informacional na ampliação dos espaços de exercício da cidadania. Revista do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte, Natal, v. 24, n. 1, p. 103-116, jan./dez. 2010.
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SCHILLING, Flávia. Corrupção: ilegalidade intolerável? Comissões parlamentares de
VIANA, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. Brasília: Conselho editorial do Senado Federal, 1999.
THE CONTRIBUTIONS OF THE LAW OF CLEAN RECORD FOR THE EVOLUTION OF BRAZILIAN DEMOCRACY AND MORALIZATION OF THE PUBLIC POWER
ABSTRACT
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inquérito e a luta contra a corrupção no Brasil (1980-1992). São Paulo: IBCCrim, 1999.
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FIDÎŁS This is an analysis of how the Complementary Law No. 135/2010 (Law of Clean Record) may contribute to the advancement of democracy and moralization of the Brazilian Government. Initially, it attempts to expose a notion of what is meant by administrative probity and morality, proceeding to an analysis of the main causes of the phenomenon of administrative misconduct. Then, takes place an analysis regarding the positions of the Supreme Electoral Tribunal and the Supreme Court over the recent statute. Finally, it will take an approach on democracy, how it can evolve and what impact has the Law of Clean Record in this process. Keywords:
Clean
Record
Act.
Administrative
misconduct.
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Democracy. Social responsibility. Legal liability.
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FIDΣS Recebido 15 set. 2012 Aceito 20 out. 2012
DEMOCRACIA PARTICIPATIVA NO BRASIL: DESAFIOS E POSSIBILIDADES Tatiane Dantas Nascimento*
RESUMO O presente artigo busca demonstrar que a Democracia só pode ser entendida como resultado do processo de constitucionalização do Estado de Direito através da soberania popular. Nesse sentido, os desafios e as possibilidades de uma Democracia verdadeiramente participativa estão diretamente ligados com a qualidade e o grau de consciência da sociedade em participar do processo político. A melhora do nível educacional da população, o fortalecimento das instituições sociais, o fomento de um espaço público bem informado e atuante juntamente com representantes políticos adequados são fundamentais para a promoção desse desiderato constitucional.
“Cada povo tem sua maneira de ser grande.” (Rui Barbosa)
1 INTRODUÇÃO
O presente estudo tem por finalidade traçar um panorama acerca das possibilidades, a partir da dialética dos desafios, de se efetivar uma Democracia Participativa no Brasil em conformidade com os desideratos constitucionais do atual Estado Democrático de Direito. *
Graduada em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), mestranda em Direito Constitucional pela UFRN. Lattes:< http://lattes.cnpq.br/9012982122710631>.
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Palavras-chave: Constituição . Democracia . Participação.
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FIDΣS Assim, no primeiro momento tratar-se-á acerca da evolução da Democracia Constitucional para que se compreenda como ocorreu o processo de constitucionalização do Estado e como esse processo é determinante para a concretização dos direitos fundamentais dos cidadãos. De tal forma, será demonstrado que o processo de constitucionalização do direito e do Estado é uma condição indispensável para o advento da Democracia Participativa. No segundo ponto, ingressar-se-á nos principais aspectos da Teoria da Democracia Participativa, tendo como principal referencial teórico a obra do professor Paulo Bonavides, com o intuito de, dialeticamente, apresentar os desafios que impedem o advento desse tipo de Democracia no Brasil e as possibilidades de fomentá-la.
2 EVOLUÇÃO DA DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL
Para entender as possibilidades de existência de uma Democracia Participativa no Brasil, faz-se necessário observar, primordialmente, o contexto histórico e político promovido pelas grandes Revoluções do século XVIII, em especial, a Revolução Francesa de 1790 que marcou uma mudança significativa no modelo estatal então vigente com a queda das Monarquias Absolutistas e advento do Estado Constitucional de cunho liberal e capitalista. Foi a partir da luta dos ideais revolucionários resumidos pela consagrada tríade “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” que o povo, embora representado pela burguesia, passou a ter participação na vida política na medida em que lutava por suas liberdades e seus
Ultrapassada, portanto, a ideia de que os direitos eram apenas fundamentos jusnaturalistas de cunho moral e filosófico, bem como a representação do rei como uma figura divina e soberana, surgiu, então, a necessidade de se estabelecer os limites de atuação da sociedade e do Estado através de um instrumento: a Constituição moderna escrita. Assim, percebe-se que, para buscar um equilíbrio entre os “fatores reais de poder”, conforme preceituou Lassalle (2001, p. 10) ao tentar identificar a essência deste diploma jurídico, a Constituição moderna buscou ordenar o poder político e garantir os direitos e as liberdades dos indivíduos, especialmente no sentido de protegê-los contra arbitrariedades. Entretanto, Hesse (1991, p. 13-23) adverte com clareza que a Constituição não tem apenas a finalidade de conformar o poder e garantir direitos, ela é o reflexo dos valores sociais defendidos por uma comunidade, cujo teor promove sua força normativa. Essa “vontade de
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direitos. Deixavam, então, de ser apenas súditos para serem cidadãos.
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FIDΣS Constituição” está sempre em um constante processo cambiante de acordo com a realidade histórica e cultural vivenciada pela sociedade, em uma intensa coordenação entre o ser e o dever ser. É o Estado moderno da separação dos poderes e do contrato social, conforme teorizaram Montesquieu, Locke e Rousseau, os quais propulsionaram o Constitucionalismo das leis, ou seja, a filosofia do direito propagada através da constatação das mudanças sociais e da difusão dessas teorias, proporcionando a construção e efetivação do Estado de Direito. Em razão dessas mudanças, especialmente do desenvolvimento do capitalismo industrial, nota-se um segundo momento do constitucionalismo, que é a transição do Estado Liberal para o Estado Social. A ideologia dessa época foi essencialmente pautada na doutrina socialista, que acarretou no surgimento das políticas totalitárias do século XX como o nazismo alemão, o fascismo italiano, o comunismo soviético e as ditaduras que existiram em Portugal, na Espanha e na América Latina. Os discursos de exaltação da igualdade e da legalidade em detrimento da liberdade não foram suficientes para promover os direitos sociais e, ao revés, trouxeram inúmeras atrocidades como as que a humanidade presenciou durante o período das grandes guerras mundiais (HORTA, 2012). Como forma de retaliação a essa transgressão violenta, emerge uma consciência coletiva de valorização da humanidade desembocando no atual Estado Democrático de Direito, a criação da Declaração Universal dos Direitos dos Homens e do Cidadão e das Nações Unidas. O Estado Constitucional Democrático de Direito traz em sua essência a ideia de ressurgimento dos valores, principalmente o desejo de justiça, que passam a ter força
dos direitos fundamentais e dos direitos humanos. É exatamente essa concretização que tem sido a marca desse Estado de Direito que mobiliza os três poderes na construção da efetivação dos direitos fundamentais através de políticas públicas, legislações e sentenças judiciais concretizantes. Destaca-se, portanto, o papel do Poder Judiciário como guardião da Constituição (KELSEN) através da hermenêutica constitucional, seja ela metodologicamente tópica, como idealizou Viehweg, ou concretista, como teorizou Müller. Esse momento também é intitulado na doutrina como neoconstitucionalismo (CARBONELL, 2005, p. 9-12), porém, é importante ressaltar que não se trata de um modelo consolidado e sim um processo contínuo de abertura constitucional efetivado por meio da técnica da ponderação de princípios e regras.
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normativa na forma de princípios constitucionais, bem como na positivação e concretização
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FIDΣS Portanto, como bem esclarece Canotilho (2001, p. 51-60), não há apenas um constitucionalismo e sim vários momentos constitucionais que variam de acordo com a complexidade dos fenômenos sociais e com a realidade cultural de cada país. É preciso entender também que esses fenômenos ocorreram concomitantemente às três dimensões de direitos defendidas por Bobbio (2004). Em seu livro “A Era dos Direitos”, esse filósofo italiano apresenta uma teoria dos direitos humanos a partir da construção do que ele denominou gerações de direitos. Os direitos de primeira geração referem-se aos direitos fundamentais do homem, caracterizados pela luta contra as arbitrariedades do poder absoluto, limitando tal poder em prol da preservação da vida, da liberdade e da igualdade. Os direitos de segunda geração estão relacionados com as lutas de classes, ou seja, com a promoção dos direitos sociais para promoverem uma vida digna, como o direito à moradia, ao trabalho, à saúde, educação etc. Ao passo que os direitos de terceira geração estão relacionados com a preocupação de manutenção da vida na Terra, também chamados de direitos de solidariedade por estarem relacionados com o meio ambiente e com o direito do consumidor.Por fim, Bobbio fala em direitos de quarta geração ligados ao elemento político de proteção ao patrimônio genético, preocupação com a bioética etc. Não obstante a importância da teoria mencionada, hoje a construção de uma democracia participativa dependerá do aprimoramento dessas gerações e não apenas da quarta geração como defende, data vênia, Paulo Bonavides (2008, p. 52) em sua obra Teoria do Estado. Afinal, a concretização dos direitos sociais ainda é uma celeuma jurídica que tem sido o mínimo existencial e a vedação do retrocesso1.
3 TEORIA DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES
Entendido o Estado Democrático de Direito como condição sine qua non para a efetivação de uma Democracia Participativa, serão apresentados os desafios que precisam ser superados para que esse Estado se coadune com o ideal de Democracia apresentado. 1
ARE 639337 AgR / Município de SÃO PAULO x MP/SP. AG.REG. NO RE COM AGRAVO. Relator(a): Min. CELSO DE MELLO. Julgamento: 23/08/2011. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28efetividade+dos+direitos+fundame ntais%29&base=baseAcordaos>.
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construída jurisprudencialmente e doutrinariamente a partir da construção de conceitos como
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FIDΣS Seguindo a linha de raciocínio já traçada alhures, é preciso se ter em mente que só há Democracia se houver participação do povo, assim o processo de constitucionalização descrito acima nos oferece a primeira barreira que é a participação da sociedade no processo político de decisão. É sabido, historicamente, que, no Brasil, o processo de constitucionalização foi bastante diferenciado, pois não se identifica a legitimidade revolucionária de uma Assembleia Constituinte soberanamente instituída pelo povo e sim um Poder Constituinte que se intitulou democrático, mas que em sua essência reuniu apenas representantes da classe dominante. Paulo Lopo Saraiva (1995, p. 13) esclarece que, na verdade, a Assembleia Nacional Constituinte Brasileira nada mais fez do que atualizar as Constituições nacionais anteriores, sendo a Constituição de 1988, dessa forma, fruto dos avanços que a dinâmica social lhe impôs. Dessa forma, não é possível falar em Democracia Participativa sem que haja uma verdadeira soberania popular no sentido de promover uma interação política consciente que de fato influencie nas decisões de forma positiva. Haveria, assim, a otimização da ideia de povo-ícone da vonlunté générale disseminada por Rousseau (BONAVIDES, 2008, p. 50-65). Com isso, consagrar-se-á o sentido jurídico de povo na medida em que ele tenha conhecimento de sua cidadania vinculada a uma ordem jurídica a qual foi conquistada por seus próprios méritos e força política. O Poder Constituinte, na verdade, é um conceito limite do direito constitucional, pois no plano político ele se revela como o pressuposto democrático de autorganização de uma coletividade e do ponto de vista jurídico constitui uma ordem jurídica relativamente ao problema da legitimação e da legitimidade (CANOTILHO, 2000, p.
A essência do poder político encontra-se, portanto, no seio social, na convivência em grupo que constitui um organismo ético harmônico, se sujeita a uma disciplina geral e, apesar de suas diferenças, apresenta três notas comuns: (i) a ideia de um fim pelo qual as pessoas se associam em prol de sua permanência, gerando o fundamento do poder político: a obediência; (ii) a comunhão humana em razão de um bem a realizar de forma organizada como um meio de alcançar o fim almejado; (iii) por fim, a terceira nota comum é o Governo do grupo, a instituição que simboliza o poder de direção. Tais características são comuns a qualquer sociedade humana e constitui um corpo social que poderá conduzir suas ideias de acordo com a sua história e sua identidade cultural (JUNIOR TELLES, 2003, p. 23-26). O povo não deve servir apenas como um meio
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FIDΣS legitimante da política conservadora da classe dominante, mas sim como uma voz que atua diretamente na construção e fortalecimento da Democracia. Nesse sentido, percebe-se que o sistema representativo atual constitui uma barreira a ser superada, tendo em vista que mitiga os instrumentos de democracia direta dispostos nos artigos 1º e 14 da Constituição Federal de 1988. O sistema representativo é o princípio regulador que deve legitimar a delegação da soberania nacional como reflexo da liberdade política. Portanto, o governo de todos por todos deve compreender três ideias capitais: (i) a delegação da soberania em sua generalidade que é a própria representação; (ii) a delegação da soberania em relação ao direito do cidadão através do voto; (iii) regra para tornar efetiva a delegação da soberania por meio da eleição (ALENCAR, 1996, p. 25-34). Dessa maneira, a soberania popular não é a soma de vontades individuais, ou resultado de uma quantidade de votos, mas sim um poder indivisível que advém da totalidade de um país. Ela se mostra uma vontade plena em que todos os cidadãos concorrerão, sem deixar de respeitar os direitos individuais a fim de resguardar constitucionalmente a vida privada. A cidadania é a relação estabelecida entre o indivíduo cidadão e o ordenamento jurídico interpretado por três aspectos: o primeiro está relacionado com o fato de o indivíduo atuar de forma ativa e transformadora das condutas sociais; o segundo refere-se aos valores que consagram direitos mínimos e necessários que identificam uma sociedade enquanto grupo social; o terceiro relaciona-se com os instrumentos efetivadores dos direitos. Os elementos constitucionais de democracia semidireta, como o referendo popular, o
política (MENDONÇA, 2000, p. 4-5). Ressalta-se, portanto, que o sistema representativo é necessário, mas ele deve ser um instrumento legítimo do exercício da cidadania e da soberania popular de modo a não se correr o risco de usurpação da vontade geral, assim como a instituição da ditadura das minorias em detrimento das maiorias. Não é mais admissível que se continue em uma democracia que emana do Estado e de grupos privilegiados, sem que haja partidos políticos sérios, verdadeiramente representativos e que consulte a população não somente em questões secundárias, mas em questões essenciais para o desenvolvimento nacional. Martinez (1992, p. 4) adverte que o plebiscito realizado em 1993, no qual o povo escolheu a forma de governo presidencialista, assim como em 1962, não passou de demagogia, pois o “jeitinho” brasileiro sempre consegue mudar as coisas e quando o povo
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plebiscito, a iniciativa popular e o próprio direito de petição são um convite à participação
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FIDΣS resolve ameaçar, o poderio das forças armadas e do dinheiro sempre surge para preservar a demagogia. Ainda que a premissa majoritária seja considerada a verdadeira essência da democracia, pois revela uma tese acerca dos resultados justos de um processo político em que uma maioria plural de cidadãos decide acerca de uma questão importante, nem sempre esse resultado é verdadeiramente justo por faltar informações necessárias ou por tempo insuficiente de reflexão e deliberação sobre a temática. A concepção constitucional de democracia rechaça esse tipo de premissa majoritária na medida em que admite que a população envolvida seja realmente atuante e consciente e que as decisões políticas sejam tomadas após amplo conhecimento popular e por meio de instituições sociais que tratam e respeitam todos os membros da comunidade como indivíduos iguais (DWORKIN, 2002, p. 10). A mídia, a qual atua diretamente na formação da opinião pública, sob o manto constitucional da liberdade de expressão, também se mostra como uma barreira para a Democracia Participativa, haja vista que manipula informações de acordo com os interesses da classe dominante e conservadora, com a finalidade precípua de perpetuar o seu poder (BONAVIDES, 2008, p. 50-65). Entretanto, na sociedade da informação, da era da globalização, a população tem, cada vez mais, acesso aos meios de comunicação, de forma que essa dinâmica está sendo paulatinamente mitigada com a popularização da internet, bem como com a intensificação da concorrência do espaço televisivo em que não mais têm-se apenas uma grande emissora. Percebe-se ainda que os programas televisivos, em especial os jornalísticos e até
fiscalizar as ações dos agentes públicos, demonstrando o quanto a mídia tem encontrado espaço para exercer a cidadania e como ela pode ser um instrumento importante para primar pela ética no espaço público. Nesse sentido, o espaço público se mostra um dos mais importantes centros de participação política da cidadania em virtude de suas ações democráticas, tanto no âmbito político quanto social, que se fortalecem ainda mais no seio das comunidades organizadas, pois atuam com maior velocidade e mais diretamente na esfera dos interesses imediatos comuns. É o que ocorre, por exemplo, em algumas favelas do Rio de Janeiro e nas comunidades hispânicas que seguem o mesmo modelo tradicional comunitário dos primórdios
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mesmo os de cunho humorístico, estão cada vez mais preocupados em denunciar fraudes e
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FIDΣS da civilização política do ocidente, as civitas romanas e a polis grega. (BONAVIDES, 2008, p. 277-280). Bobbio (1992, p. 27) também coaduna com essa ideia de que o espaço de exercício da democracia, muitas vezes, demonstra-se limitado ao círculo social do indivíduo e que as grandes transformações sociais ocorreram em ambientes fabris e não em ambientes nacionais de discussão política. O baixo rendimento da democracia no sentido de sua ingovernabilidade em alcançar todos os cidadãos também é um obstáculo que fomenta a participação da sociedade civil em demandas governistas. É primordial, portanto, o fortalecimento e moralização das instituições locais, que amparam diretamente o cidadão, restabelecendo a relação de confiança com o que contratualmente estabelecemos como de interesse público. Para se ter uma ideia de quanto o espaço público é importante para a efetivação da Democracia Participativa, uma ação de extensão realizada via internet pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte para a comunidade acadêmica, em abril de 2012, intitulada “Participação do cidadão na gestão pública e exercício do controle social” abriu vários fóruns de discussão e debate de textos indicados pelos professores e alunos questionando especialmente o que seria necessário fazer para que houvesse uma maior participação da população nas questões políticas. Dentre as várias respostas, pode-se identificar, principalmente, a necessidade de uma maior conscientização da população por meio da educação, pois não basta somente o acesso à informação, é preciso saber interpretar os conteúdos. Outro ponto levantado, e de grande relevância, é a integração entre a universidade e a comunidade, incentivando mais ações
universidade, ou que tragam a comunidade para dentro dela, consolidando a função pública de uma universidade para todos. Palestrantes do 10º Congresso Internacional de Direito Constitucional – Jurisdição Constitucional, Democracia e Direitos Fundamentais, realizado pela Escola Brasileira de Estudos Constitucionais, nos dias 26, 27 e 28 de abril de 2012, no Centro de Convenções de Natal, levantaram interessante proposta no sentido de criar uma disciplina de direito constitucional nas escolas para que esse tipo de conhecimento fosse difundido desde cedo. Coadunamos com essa ideia, pois ela proporcionaria uma maior conscientização política dos jovens, especialmente se essa disciplina fosse ministrada no ensino médio, período em que os jovens podem optar pelo exercício de seus direitos políticos a partir dos dezesseis anos de idade.
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acadêmicas que façam com que os alunos levem seus conhecimentos para fora dos limites da
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FIDΣS Além disso, abriria oportunidades de emprego para os bacharéis em direito que poderiam pagar disciplinas complementares na graduação que os preparasse para essa nobre função sem que os deixassem única e exclusivamente dependentes do exame de ordem para ingressarem no mercado de trabalho. Portanto, plebiscito, referendo e iniciativa popular ou quaisquer outras formas de participação só irão ser meios de concretização da Democracia Direta se houver uma atuação real do povo em manifestar a sua vontade consciente. A construção dessa consciência coletiva também está diretamente ligada ao nível de educação da população, pois sem pensamento crítico não é possível fazer escolhas. Uma verdadeira Democracia Participativa não se consubstancia somente no direito de participar direta ou indiretamente na tomada de decisões coletivas, nem tampouco em regras procedimentais como a da maioria. Faz-se mister promover a liberdade individual de escolha entre uma ou outra medida, de expressar opiniões, de reunir-se, enfim, garantir direitos fundamentais mínimos para o eficaz exercício da cidadania. A Constituição é, dessa maneira, o ponto de partida, e os poderes estatais, assim como as instituições sociais, têm o dever de prover as condições ideais para a concretização dessa consciência coletiva. A concretização da democracia e da cidadania como direitos fundamentais também deve ser uma premissa necessária para a efetivação da Democracia Participativa no Brasil. Eis o desafio que a sociedade plural do século necessita superar para que se possa, de fato e de direito, consagrar e conciliar a tríade da liberdade, igualdade e fraternidade, em prol
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A evolução da Democracia no plano constitucional fornece as diretrizes que a história da humanidade traçou para chegar ao entendimento da necessidade da elaboração de uma Constituição escrita que contemplasse os anseios sociais de forma a conformar o poder e garantir as liberdades individuais do cidadão. É nesse contexto que se insere a transformação do Estado Nacional Absolutista em Estado Social, e, por fim, em Estado Democrático de Direito. Este irá consagrar os valores, em especial o da dignidade da pessoa humana e irá nortear as nações para a positivação e
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de um futuro mais justo e democrático.
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FIDΣS concretização dos direitos fundamentais, dentre eles o exercício efetivo da cidadania por meio da construção de uma Democracia Participativa. Com efeito, a realidade de uma Democracia Participativa ainda é um ideal a ser perseguido, especialmente porque é necessário superar muitos obstáculos que impedem a sua concretização. O primeiro deles é a participação popular no processo de decisão política, haja vista que toda a história do Brasil demonstra a ausência dessa participação, especialmente no processo constituinte que foi liderado pela minoritária classe dominante da época e que se perpetua no poder até hoje. Dessa forma, o sistema representativo brasileiro acaba sendo uma falácia institucional, pois não representa de fato o povo-ícone da vontade geral, desconstituindo a legitimidade do procedimento eleitoral que acaba sem trazer a alternância necessária ao fortalecimento da democracia. O domínio dos meios de comunicação também é uma barreira, pois reflete os interesses de quem está no poder, mitigando ainda mais a participação popular no processo de decisão política, perpetuando o status quo. Apesar disso, é importante destacar que, na era da informação, os meios de comunicação estão cada vez mais comprometidos com a ética, além de que a concorrência fornece subsídios positivos, mas, ainda assim, é preciso haver um povo educado e dotado de senso crítico para distinguir o que realmente é importante para o todo. O espaço público mostra-se, portanto, essencial para o fortalecimento dessa consciência geral e deve ser construído, inicialmente, do âmbito comunitário local para o nacional, pois muitas conquistas acontecem em ambientes de trabalho como o que ocorreu nas
A constitucionalização dos direitos fundamentais e a própria Constituição são a garantia de que é possível haver uma Democracia Direta no Brasil. Para isso, é preciso que os poderes estatais e as instituições sociais atuem de forma coerente com os desideratos constitucionais e promovam as condições ideais para que a população possa conquistar o senso crítico de que necessita para participar efetivamente das decisões políticas locais ou nacionais.
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SARAIVA, Paulo Lopo. Manual de direito constitucional. São Paulo: Acadêmica, 1995.
PARTICIPATORY
DEMOCRACY
IN
BRAZIL:
CHALLENGES
AND
OPPORTUNITIES
ABSTRACT
This article seeks to demonstrate that democracy can only be
rule of law through popular sovereignty. In this sense, the challenges and possibilities of a truly participatory democracy are directly linked with the quality and level of awareness of society to participate in the political process. The improvement of the educational level of the population, the strengthening of social institutions, the promotion of a public well informed and active along with political representatives are adequate to promote this fundamental constitutional desideratum. Keywords: Constitution . Democracy . Participation.
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understood as a result of the process of constitutionalization of the
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FIDΣS Recebido 28 ago. 2012 Aceito 21 out . 2012
DIREITO E CONTROLE SOCIAL: SOB A PERSPECTIVA DA EXPERIÊNCIA FRANCESA EM JUSTIÇA DE PROXIMIDADE Andressa Lays Lopes Oliveira Priscila Nunes Oliveira RESUMO Trata-se de uma análise da inovação do direito francês no papel de controle social. Discute-se a função do direito quanto fator de sustentação da harmonia da sociedade. Embora esta seja capaz de solucionar conflitos espontaneamente, existe, em determinados casos, maior necessidade de utilização do poder coercitivo que o exercido pela comunidade. O direito, então, regulará as relações sociais – através da imposição de sanções. Porém, há de se respeitar a proporcionalidade na sua aplicação, além de garantir a efetividade dessas medidas. Nessa perspectiva, é apresentado o exemplo do Estado francês, que aproximou direito e sociedade civil, realizando uma reforma na estrutura judiciária a partir da diretriz de justiça de proximidade.
proximidade. Estado francês. “Nossas pesquisas não seriam dignas de uma hora de trabalho, se elas só tivessem um interesse especulativo.” (Émile Durkheim)
Graduanda em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), estagiária na 17ª Vara Cível do Fórum Miguel Seabra Fagundes. Graduanda em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), estagiária na 17ª Vara Cível do Fórum Miguel Seabra Fagundes.
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Palavras-chave: Controle Social. Reforma judiciária. Justiça de
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FIDΣS 1 INTRODUÇÃO
O comando das normas objetiva a paz e harmonia da sociedade, visto que, da própria realidade social emergem conflitos derivados do convívio e do choque entre liberdade dos indivíduos entre si, ou desses para com o Estado. O direito atua na prescrição de condutas esperadas e seus desvios, criando também mecanismos coercitivos que os previnam. As normas visam então garantir valores, principalmente quando observadas a partir da perspectiva do Estado democrático de direito, cujo traço significativo está na constitucionalização de toda a ordem jurídica. A eficácia e o poder coercitivo de práticas consuetudinárias de controle social – usos, costume e moral - diluem-se conforme aumenta a complexidade das relações humanas em uma sociedade. O costume, a moral, a religião e os usos são todos dispositivos de controle social informal e de atuação limitada quando aplicados a nações politicamente organizadas. As leis, as instituições administrativas e judiciárias, entretanto, integram a esfera do controle social formal, este sim, competente na contenção e mediação de conflitos dentro de sociedades mais complexas. O direito é, com efeito, um dos meios mais eficazes de contenção social. Porém, a sociedade atual passa por uma crise na justiça, traduzida na morosidade e ineficiência do sistema judiciário. Desse processo, advém a juridificação da sociedade, que é como esclarece Friedman, citado por Pedroso (2003, p. 12) “extensão dos processos jurídicos a um número crescente de domínio da vida econômica e social.” Essa tendência tem retirado
demanda social por justiça, portanto, aumenta exponencialmente, traduzindo-se em sobrecarga das instituições judiciárias e em uma justiça tardia, consequentemente ineficaz. Em contrapartida, o Estado francês tomou a frente na modernização do direito e na reaproximação desse à sociedade civil, trazendo para perto dos bairros mais carentes - les quartiers sensibles – as instituições judiciárias capazes de promover e incentivar soluções alternativas para os conflitos. Essa iniciativa, que tem por maior expressão as Maisons de Justice et Droit (traduzido rudemente como Casas de justiça e de Direito) e o Juiz de proximidade, recebeu a alcunha de “justiça de proximidade” e é reflexo da preocupação do direito com a sua real efetividade, para que a lei não seja apenas letra morta.
2 DIREITO E CONTROLE SOCIAL
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da própria sociedade grande parte de sua capacidade de resolução espontânea de conflitos. A
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FIDΣS Antes de iniciar uma reflexão mais profunda, há de se verificar exatamente o que se entende por controle social - aqui tomado como sinônimo de contenção ou regulação social. A expressão, portanto, é entendida pela perspectiva da sociologia, mas pode acumular significados diversos dependendo da ótica pela qual se analise. Por exemplo, para a ciência política o termo pode designar tanto o controle do Estado sobre a sociedade como aquele exercido em sentido inverso. Portanto, controle social, para os fins desta pesquisa, pode ser conceituado como: Conjunto de dispositivos sociais – usos, costumes, leis, instituições, sanções – que objetivam a interação social dos indivíduos, o estabelecimento da ordem, a preservação da estrutura social, alicerçado nos valores e expresso na imposição de vontade dos líderes da classe dominante ou do consenso grupal. (CASTRO, 2003, p. 93).
O controle social é, portanto, um mecanismo instintivo e espontâneo, originado da “preocupação de evitar o caos e estabelecer uma forma de ordem em que se possa viver” (CASTRO, 2003, p. 335-336). Nesse sentido, os dispositivos e instituições de contenção da sociedade têm como função garantir a ordem social, das quais são os principais exemplos: a moral, o direito, a religião e a educação. Estas instituições exerceram pressão sobre o comportamento do homem, para que equilibre as antinomias inerentes que surgem do convívio em sociedade. Nesse sentido, diferem-se dois tipos de controle social – o informal e o formal. O primeiro é encontrado nos usos, costumes e na opinião pública. A coação do indivíduo é
marginalização do indivíduo pelo grupo. O comportamento que sai do padrão, geralmente, é visto como reprovável, provocando sentimentos de repulsa no grupo, o que torna a pessoa dona da conduta, mal vista. É um tipo de controle que pertence ao domínio dos folkways; diluído na sociedade, não tem uma rigidez em seu exercício. O controle social formal, por sua vez, é exercido com dispositivos burocráticos, ou seja, leis e normas, cuja elaboração depende da necessidade de preservação burocrática de um costume ou do estabelecimento racional de um comportamento moral. Há sanções para previsões de comportamentos, aplicadas obedecendo a uma graduação e contando com instituições especializadas em exercê-las. Como argumenta Kelsen (1998, p. 37) “o que não distingue a ordem jurídica de todas as outras ordens sociais é o fato de que ela regula a
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realidade através de sanções não burocráticas, como a reprovação do comportamento e a
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FIDΣS conduta humana por meio de técnica específica” - os dois tipos de controle, portanto, diferenciam-se exatamente pela técnica, a forma de coação – rígida ou diluída, através de sanções burocráticas ou não. Dessa forma, quanto maior a complexidade do grupo social a que se pretende controlar, maior deve ser o poder coercitivo da instituição, por isso, o direito e seu sistema de normas são os principais reguladores da harmonia da sociedade, a qual “sem o direito não resistiria, seria anárquica, teria o seu fim” (DURKHEIM, 1960, p.17). O direito media, então, a teia de interações humanas dentro da sociedade, regulando os valores a serem preservados ou conquistados a partir de padrões e modelos do que é justo. Com efeito, normas morais e usos podem ser normatizados e passar a integrar o direito positivo, entrando para a esfera de coação através de penas/sanções. “Há sempre uma sanção dirigida contra o membro da comunidade que não cumpre seu dever”. (KELSEN,1998b, p. 40). A palavra sanção é originada do latim “sancitio” que significa ato santificador, um processo que torna algo um objeto de respeito. Juridicamente, isso quer dizer reconhecer como válido, devendo ser posto em execução. Daí se abstrai a importância da efetividade do direito, e de onde nasceu o ideal de justiça de proximidade e inovação na resolução de conflitos.
3 CRISE DA JUSTIÇA E A SOBRECARGA DO JUDICIÁRIO
democráticos, um processo de congestionamento do judiciário e da administração judiciária, que tem sido designado por “crise da justiça”. A maior abertura dos Estados à proteção dos direitos humanos e o incentivo ao acesso à justiça não foram acompanhados por reformas nas instituições judiciárias capazes de traduzir o direito material em efetividade. A morosidade, o congestionamento dos processos, o sentimento enraizado de ineficiência do judiciário, a distância deste para a sociedade civil são as principais características da crise da justiça. O problema não é particular do Estado brasileiro – Espanha, França, Itália, Alemanha e os outros Estados democráticos tem assumido posição reacionária frente a este momento de ruptura. Na base dessa crise estão os surtos de pobreza e exclusão social em um contexto de excessiva regulamentação legislativa e prestação social – sobrepeso que carrega o Estado
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A partir da década de 80, constatou-se, de forma generalizada nos Estados
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FIDΣS social de direito – além dos extremismos processuais que violam o princípio da economia processual. Ou seja, em um Estado que arremata excessivas pretensões, a fim de resguardar direitos sociais diversos, os grandes centros urbanos tornam-se áreas problemáticas, de onde surgem litígios dos mais diversos. Soma-se ainda um direito processual ainda com entraves à célere condução dos processos e um direito material indeterminado. Este recurso, de ampliação de garantia e direitos, embora seja de excepcional efeito à adaptação da realidade nos contornos das previsões legislativas, determina também relativa incerteza e insegurança na aplicação da letra da lei. Em consonância com a crise do judiciário (sendo melhor classificado talvez como uma de suas causas) ocorre o processo de juridificação da sociedade. Tal processo é a inserção de diversas áreas da vida social dentro de litígios processuais. Em consequência temos a sobrecarga do sistema judiciário e em cascata os efeitos que advém desse, já citados acima. A morosidade, um desses efeitos, traduziu-se em ineficácia do direito, uma vez que justiça tardia quase sempre não é eficaz. Pode-se também dizer que as reformas sociais movimentadas pelo progresso tecnológico fizeram aflorar uma vida social em ritmo vertiginoso, o qual, a justiça do século passado – cautelosa e garantística – não pode acompanhar. A realidade social força mudanças em passo acelerado, exigindo que o direito abranja as novas condutas sociais, sem, entretanto, deixar de corresponder a uma prestação rápida, eficaz e coerente. Esse é também o argumento de Esteves (2003, p. 70) para explicar a crise:
A surpresa causada pela velocidade da história e o receio do desequilíbrio de um
antecipada e refletida à revolução civilizacional em curso, pelo que as múltiplas reações a que vimos assistindo não fogem aos rótulos de tardias, tímidas e parcelares.
Como causa secundária da crise da justiça pode-se citar o advento do Estado social de direito, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial. Marcado por uma política fortemente intervencionista, o tal modelo de Estado trouxe consigo maior abrangência da previsão legislativa e a extensão da atividade jurídica a quase todos os domínios da vida econômica e social,de forma que o judiciário não foi capaz de atender a demanda social crescente por justiça, inflada tanto em ordem quantitativa como qualitativa – refletindo perda de eficiência e eficácia na realização das tarefas quotidianas da justiça.
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sistema tão pensado e aparentemente tão perfeito, não permitiu uma adequação
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FIDΣS 4 REAÇÃO À CRISE: REFORMA DO JUDICIÁRIO
Em razão do papel que o direito opera no controle social e, por conseguinte, na sua harmonia, os governos democráticos têm assumido posição reacionária em relação à crise da justiça – através da adoção de reformas administrativas no judiciário ou no modo operante pelo qual se percorre o curso processual. As propostas de reformas são enquadradas, segundo Pedroso (2003, p. 24-27), em três tipos, sejam eles: reformas de orientação tecnocrática, tecnológica e do modelo de desjudicialização da resolução de litígios. Existem duas modalidades de reformas de orientação tecnocrática. A primeira, de cunho lógico, propõe o incremento dos recursos disponíveis ao judiciário, no que se refere às pessoas envolvidas no sistema. O aumento do número de juízes e tribunais, além de maiores e melhores auxiliares da justiça configura a primeira “solução” à crise da justiça, “todavia, a incapacidade financeira do Estado para alargar de forma contínua e ilimitada o orçamento da justiça é o principal obstáculo à sua concretização” (CARVALHO, 2003, p. 251). A segunda, tentando corrigir as limitações da primeira, espera do judiciário a sua adequação no âmbito da divisão do trabalho judicial, na delegação do trabalho para outras entidades e da criação de um processo judicial mais simples e rápido. Para alcançar esse objetivo, as justiças têm lançado mão da desburocratização do processo e do incentivo aos substitutivos da jurisdição (conciliação, mediação, juiz arbitral, etc.). Como ensina Humberto Theodoro (2012, p.6):
Este intenso movimento reformador não é fenômeno isolado do processo brasileiro.
ordenamento positivo processual seguindo orientação mais ou menos similar, cuja preocupação dominante é a de superar a visão liberal herdade do século XIX, excessivamente individualista e pouco atento ao resultado prático da resposta jurisdicional.
Com efeito, tem se notado mudanças nos ritos processuais nas legislações italianas, francesas e alemãs. Na Itália, o Código de Processo Civil e a Constituição foram alterados para que abrigassem o termo “processo justo” e lhe concedessem status novo. A Constituição italiana também garante que a jurisdição deve ser praticada através do justo processo e que a lei, dessa forma, assegurará uma duração razoável.
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Todo o mundo ocidental de raízes romanísticas tem procurado modernizar o
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FIDΣS O código de processo civil alemão tornou obrigatória em várias fases processuais a tentativa de conciliação do litígio, seguindo a já admirável iniciativa francesa de por, junto ao juiz, a figura do conciliador, cuja função será tanto a de evitar a instauração do processo, através da mediação das partes, como a de encurtar os trâmites processuais e assegurar que os litigantes atinjam uma solução pacífica. Portanto, o Estado francês privilegia não somente a prestação material efetiva, mas, principalmente, a resolução do conflito, com vista ao sentimento de justiça e conformidade dos litigantes. Muitas vezes o direito material é concedido à parte e o processo se encerra, porém, as partes permanecem em situação conflitante, o que não é do interesse do direito que, em ultima instância, visa à manutenção da ordem social. Por sua vez, uma terceira tendência de reforma, de cunho tecnológico, sugere à justiça a sua adaptação aos contornos da sociedade atual no que se refere à inovação tecnológica. A justiça brasileira, em grande escala, tem tentado se adequar, automatizando o processamento de dados. O uso generalizado da tecnologia de vídeo, por exemplo, na produção da prova testemunhal à distância e a digitalização do processo têm sido as maiores referências em questão de reforma no sentido de evitar a morosidade e aumentar a eficiência do sistema judiciário. A quarta, e última perspectiva de reforma, recebe comumente a alcunha de processo de desjudicialização. De acordo com a doutrina, este modelo de reforma visa desviar a atenção da população para meios alternativos de resolução de conflitos, em vez de fazê-la recorrer à jurisdição formal. Portanto, nesse aspecto incluem-se todas as instâncias menores, não judiciais, que prestam serviço de mediação e conciliação.
de pouca demanda material, que com gestão alternativa à justiça tradicional, terão solução efetiva e evitarão o acúmulo inútil da máquina judicial. Em acordo entende Ietswaart, citado por Pedroso, (2003, p. 40):
A noção de desjudicialização é a base ideológica de transferência de certas categorias de litígios cíveis, bem como de problemas de natureza penal para instituições parajudiciais ou privadas existentes ou a criar em substituição dos tribunais judiciais.
No Brasil, expressão desse tipo de reforma veio com a institucionalização dos Juizados Especiais de Pequenas Causas (JEPC) pela Lei n.º 7244/84. Os termos dos art. 1º e
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A ideia, então, é atrair para uma área de atuação mais simplificada litígios simples ou
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FIDΣS 3º da Lei n.º 9.099/95, que aperfeiçoou o funcionamento dos citados juizados, indicam sua função referente a “conciliação, processo, julgamento e execução, nas causas da sua competência”, em especial para as “causas cíveis de menor complexidade”. 1 Abriu-se, então, um espaço para tutela de pretensões do setor mais pobre da sociedade, que não tendo como arcar com a demanda de custos de um processo regular, teria seu direito fundamental de acesso à justiça cerceado. A respeito do assunto, Watanabe (1986, p.11), conclui que “O Juizado das Pequenas Causas tem como ideia-chave a facilitação do acesso à justiça, mas não constitui, como já se acentuou repetidas vezes, um mero procedimento abreviado, mas um verdadeiro conjunto de ideias e inovações”. Acompanhando a proposta dos juizados cíveis, o estado brasileiro incentiva também formas não judiciais de resolução de conflito. Neste sentido, a resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010, dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário. O TJRJ foi o primeiro tribunal do país a cumprir a instalação de Centros de Mediação, conforme meta prevista pela resolução do CNJ. Os casos podem ser encaminhados a esses centros por solicitação das partes ou de seus advogados, sendo enviados especialmente os casos que versam sobre vizinhança, as relações de família e as relações societárias. A mediação é uma oportunidade única de falar com profissionais especializados, expondo os problemas a serem resolvidos em cada caso, sem o custo emocional e financeiro de um processo judicial.2 Esse mecanismo é, portanto, a concretização do pensamento já acertado pela doutrina de que, hoje em dia, “o jurisdicionado aspira a uma justiça mais simples, menos solene, mais próxima de suas preocupações cotidianas, àquilo que numa palavra se denomina Justiça de
informalidade de novos meios de autocomposição de conflito, mas também um processo de reaproximação da justiça à sociedade civil, para que trabalhando com os litigantes de perto, possa melhor conhecer suas necessidades.
5 JUSTIÇA DE PROXIMIDADE E A EXPERIÊNCIA FRANCESA
1
BRASIL. Lei 9.099 de 26 de setembro de 1995. Aperfeiçoou o funcionamento dos Juizados Especiais de Pequenas Causas (JEPC). Diário Oficial da União, Brasília, DF, v. 9, p. 15033, 27 set.1995. Seção 1. 2 Poder Judiciário do estado do Rio de Janeiro. O que é mediação? Disponível em: <http://www.tjrj.jus.br/web/guest/pagina-inicial/mediacao/o-que-e-mediacao>. Acesso em: 15 ago. 2012.
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proximidade” (THEODORO, 2012, p. 7). Essa expressão designa não apenas a celeridade e
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FIDΣS Em meio à crise da justiça, doutrinadores diversos debruçaram-se sobre as medidas reacionárias progressistas que deveriam encorajar a mudança do cenário. Por fim, durante a década de 90, surge a expressão “justiça de proximidade”. Esta é a alcunha pela qual atenderá o novo guia da justiça para minimizar os efeitos da sobrecarga do judiciário. Justiça de proximidade, pois, é a diretriz pela qual se orientará toda uma reforma nos Estados de tradição romana, visando à simplificação dos métodos tradicionais de resolução de conflito. Portanto, a expressão vai englobar as transformações pelas quais passaram o Direito Processual, além de novas políticas públicas de administração da justiça e o incentivo à mediação, conciliação e formas de autocomposição do litígio. Portanto, a orientação é acionar o judiciário em uma batalha pela reaproximação da sociedade civil e do direito, para que se amplie o acesso à justiça. Aqui se entende acesso à justiça em dois sentidos: o primeiro refere-se ao acesso ao direito, isto é, às suas instituições. Os juízes têm se distanciado da população, bem como o direito passou a ser entendido como elemento misterioso, indisponível e de utilidade apenas às classes mais altas da sociedade. O segundo entendimento refere-se ao acesso à prestação jurisdicional, traduzida em justiça, pois esta é a motivação principal do cidadão quando recorre ao direito. Desta feita, em referência às experiências promissoras que seguem essa diretriz, estão os juizados especiais cíveis no Brasil, os julgados de paz em Portugal e a jurisdição de proximidade, na França. As três instituições compartilham a primazia pelo princípio da informalidade e da oralidade. Seguem ritos específicos para sua atuação e têm competência reduzida em comparação com os demais órgãos judiciários de seus Estados. Mais importante, porém, é citar que nesses aparelhos judiciários a orientação é buscar uma resolução pacífica
Em consequência, dos tribunais acima escoará um grande número de litígios simples que, pela numerosidade, consomem tempo demais do juiz, desviando atenção das lides mais complexas e que necessitam de maior comprometimento. Para as partes, o envolvimento e entendimento real do processo farão com que se sintam incluídos no processo de decisão, de maneira efetiva, e que, chegada a sentença, possam estar conformados com ela. Como o objeto dessa pesquisa é a análise da experiência francesa, deixa-se de lado os juizados especiais cíveis e os julgados de paz. Preocupa-se apenas em conhecer de que modo o Estado francês adotou a nova técnica de controle social – a chamada jurisdição de proximidade. Tal jurisidção, que se formaliza com o juiz de proximidade, teve como precursor a Maison de Justice et Droit. Estes centros instalados em bairros carentes e violentos
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através do diálogo entre as partes, por meio de uma mediação judicial ou extrajudicial.
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FIDΣS mostraram-se tão promissores que foram institucionalizados e posteriormente substituídos pela sua forma lapidada, os juízes de proximidade.
5.1 Maisons de Justice et Droit
Por volta da década de 90, a questão da insegurança e da pequena delinquência agitava a periferia das cidades francesas. Some-se a isso a dificuldade, nos bairros mais carentes, de acesso à justiça e a falta de entendimento dos contornos legais e das formas de defesa dos direitos. Este tipo de carência motivou a instalação de centros de auxílio jurídico e de resolução alternativa de conflitos, batizados de Maisons de Justice et Droit. As primeiras casas de justiça foram instaladas em 1990 e 1991 – a primeira em Cergy-Pontoise e três posteriores com as mesmas características. Sete anos depois, no dia 18 de dezembro de 1998, veio a Lei n.º 98-1163/98 para tratar do acesso ao direito à resolução amigável de conflitos. O art. 21 dessa lei prevê a institucionalização das casas de justiça. 3 O trabalho destes centros baseava-se em assistência jurídica extrajudicial, adequando-se a necessidade do bairro onde se instalava. Apesar de apresentar variações importantes em cada localidade, a assistência social girava em torno da gestão de conflitos cíveis do cotidiano (problemas na vizinha e com familiares), bem como, da pequena delinquência, especialmente no que diz respeito aos jovens (acompanhamento de pena, mediação penal, formas diversas de suspensão condicional da pena, entre outros). É interessante abordar que o foco inicial das casas de justiça eram justamente as
vítimas, cuja responsabilidade estava sobre os membros do Ministério Público que atuava junto a essas casas. Porém, o tempo determinou a ampliação destas diretrizes para a inclusão da atividade de acesso ao direito e auxílio extrajudicial na resolução de conflitos de matéria civil. Cada casa de justiça estava ligada a um Tribunal D’instance - órgão de primeira instância da justiça francesa – e ficava sob a responsabilidade do presidente deste tribunal. Para a instalação de uma destas casas era necessário o esforço coordenado da municipalidade e da justiça comum, que gerava um acordo de convênio submetido ao Ministério da Justiça.
3
FRANÇA. Lei nº 98-1163, de 18/12/1998. Disponível em: < http://www.legifrance.gouv.fr/>. Acesso em: 20 ago. 2012.
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medidas voltadas ao controle da delinquência e às prestações de assistência diversas às
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FIDΣS Ao assinar, o ministério engajava diversos profissionais que iriam trabalhar dentro das instalações da casa. Portanto, selecionados os profissionais, divididas as despesas materiais entre a coletividade e o Estado, as casas entravam em funcionamento. O funcionamento de uma casa de justiça se opera através de uma equipe constituída de chefes de jurisdição - presidente do Tribunal e representante do Ministério Público – magistrados, um escrivão, assistentes sociais, um educador da Proteção Judiciária da Juventude (órgão administrativo francês), um conciliador e representante de uma associação de ajuda às vítimas, além de diversos outros profissionais voluntários. Ao trazer os funcionários públicos para perto dos bairros carentes, e integrar os próprios moradores no processo de resolução de conflitos, a justiça francesa trouxe uma inovação enorme ao sistema. A iniciativa permitiu a conciliação de métodos formais e informais de controle social – o direito representado pelos chefes de jurisdição e a comunidade representada pelo conciliador.
5.2 Juízes de proximidade
O sucesso da figura do conciliador nas casas de justiça e a necessidade de desafogar os órgãos jurisdicionais inspiraram a criação de mais um deles, em primeira instância, para julgar os casos mais simples em matéria cível e penal. Surgem, então, em respostas às críticas e limitações das casas de justiça, a jurisdição de proximidade (juge de proximité). A inovação foi prevista pela Lei de 9 de setembro de 2002. A partir do ano seguinte, começaram a atuar os primeiros juízes. A nova jurisdição ficou subordinada
absorveu parte de sua competência, de forma a desafogar sua demanda. Pode-se fazer comparação entre a jurisdição de proximidade e os juizados especiais cíveis brasileiros, no que diz respeito ao seu objetivo e função – desafogar os demais órgãos judiciais, desviando suas competências mais simples. Porém, os juízes de proximidade não são juízes togados, isto é, profissionais, como é o caso dos juízes que atuam nos Juizados Especiais. A Lei de 2002 relegou aos juízes de proximidade a matéria civil para ações pessoais materiais, movidas por pessoas físicas, de até 1.500 euros ou de valor indeterminado se tivessem origem na execução de uma obrigação cujo montante não excedesse esta soma. Em matéria penal, a jurisdição de proximidade engloba as contravenções simples (ditas das quatro primeiras classes) cometidas por maiores e menores e algumas contravenções superiores
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administrativamente ao Tribunal D’Instance (outro órgão de primeira instância), bem como
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FIDΣS cometidas por maiores. O juiz de proximidade é competente, ainda, quando delegado pelo presidente do Tribunal D’instance junto ao qual atua, para validar alternativas ao processo decididas pelo Ministério Público. Nova Lei, em 2005, vem ampliar as competências dos juízes de proximidade, que podem assumir agora ações nas mesmas características originais, mas com valor de até 4.000 euros, além de incluir a possibilidade de ações neste parâmetro voltadas para pessoas jurídicas. No mesmo ano, o Ministério da Justiça pediu relatório das atividades das jurisdições de proximidade. Este revela sensível diminuição das ações nos tribunais tradicionais de primeira instância. A confiabilidade destas figuras na resolução de conflitos advém de um processo meticuloso na sua seleção. É necessário, primeiramente, que comprove conhecimento na área judicial, por isso podem ser empossados os juízes aposentados, os maiores de 35 anos que tenham experiência em posições gerenciais, os que tenham mais de 25 anos de trabalho junto a órgãos jurisdicionais, funcionários públicos aposentados que tenha exercido funções judiciárias e os conciliadores de justiça que trabalharam pelo menos mais de 5 anos nesta função. O candidato deve mandar sua proposta ao Ministério da Justiça, onde o pedido é avaliado pela Corte de Apelação na região judiciária da qual pretende trabalhar. Se aprovado, é nomeado por decreto para assumir imediatamente. O então juiz de proximidade exercerá mandato de 7 anos, não renovável, e deve trabalhar por meio período, podendo manter emprego anterior. São renumerados por horas trabalhadas no tribunal. Não vestem a toga durante as audiências – símbolo do juiz na França – ao invés, usam uma medalha dourada ao
Com o novo órgão de jurisdição, o Estado francês espera limpar a imagem da justiça, retirando-lhe os títulos de lenta e ineficaz. Desafogar as instâncias de primeiro grau era a necessidade urgente e pode ser concretizada graças ao juiz de proximidade. Desprovido de toga, torna-se figura capaz de dialogar de igual para igual com as partes, aproximando-se delas, ouvindo-as e respondendo-as na mesma linguagem informal. É este tipo de contato direto com as pessoas que torna a jurisdição de proximidade um excelente meio termo entre o controle social exercido pelo direito, tradicionalmente, através do império da lei, e o exercido pela sociedade, espontaneamente, através da comunicação entre os indivíduos.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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redor do pescoço como símbolo de sua posição.
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FIDΣS Como visto, o direito é o pilar de sustentação da sociedade moderna, que tem recorrido à justiça em detrimento das formas preliminares e informais de resolução de conflitos. O controle social informal tornou-se muito diluído e de pouca efetividade quando se trata das comunidades dos centros urbanos. Associada a esta tendência, o próprio judiciário encontra-se em estado crise nos mais diversos estados de herança romana. Isto porque o Estado Social de Direito abriu um leque muito grande de prestações sociais, pondo ao encargo do judiciário o sobrepeso de atender à demanda de justiça da população. Há então uma contradição evidente – um Estado garantista e uma justiça incapaz de suprir efetivamente as promessas daquele. As principais formas de reação a esta crise são os avanços propostos em atualização do direito processual, além do incentivo às formas alternativas de resolução de conflito – conciliação e mediação em especial. Com efeito, o Brasil adaptou-se para desafogar o seu judiciário. O CNJ propôs a inauguração de centros de mediação com profissionais especializados em auxiliar a autocomposição da lide. Porém, a maior referência em modernização é mesmo o Juizado Cível Especial, inovação do sistema brasileiro que atende à demanda do setor mais pobre, garantindo o acesso à justiça previsto pela Constituição. O esforço conjunto de renovação da justiça recebeu a alcunha, pela doutrina, de justiça de proximidade e tem excelente referencial na experiência francesa. Dentre as muitas renovações estão as casas de justiça e direito e o juiz de proximidade. Como já analisado, eles têm mostrado real eficiência no trabalho de desafogar o judiciário de causas mais simples, tanto em matéria civil, como penal.
países em crise. Se, no Brasil, os Juizados Cíveis Especiais são o maior expoente de justiça de proximidade que se conhece, falta ainda a característica de aproximação real com o homem comum. O desembaraço da justiça, para que esta fique clara aos olhos do individuo, deve mover esforços futuros na busca de um judiciário mais simples e que priorize a equidade acima do rigor extremista da lei.
REFERÊNCIAS
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O exemplo francês e seu sucesso devem ser tomados como referência aos demais
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FIDΣS CARVALHO, Daniel Proença de. TAVARES, Luís Valadares. CABRAL, Francisco Sarsfield. MATEUS, Abel. Reformar Portugal: 17 Estratégias de Mudança. 1 ed. Lisboa: Oficina do Livro, 2002. CASTRO, Celso Antonio Pinheiro de. Sociologia do direito. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. 9 ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1960.
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THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual civil e processo de conhecimento. 53 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
LAW AND SOCIAL CONTROL: UNDER THE PERSPECTIVE OF FRENCH EXPERIENCE IN PROXIMITY JUSTICE
ABSTRACT
The harmony of society is supported by the law. Although society is able to solve conflicts spontaneously, in certain cases there is the necessity of coercive power larger than the exerted by community. The law, then, will regulate social relations – through the imposition of sanctions. However, the proportionality in their application must be respected, and ensure the effectiveness of these measures. In this
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WATANABE, Kazuo. Juizados Especiais de Pequenas Causas. São Paulo: RT, 1985.
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FIDÎŁS perspective, the French State approached the law and civil society, performing a reform in the judicial structure from the guideline of proximity justice. Keywords: Social Control. Judicial Reform. Proximity Justice.
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French State.
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FIDΣS Recebido1º set. 2012 Aceito 12 out. 2012
ANÁLISE COMPARADA BRASIL – PORTUGAL: A RESPOSTA PENAL COMO CONCRETIZADORA DA PROTEÇÃO À SAÚDE PÚBLICA PERANTE A PROBLEMÁTICA DO CONSUMO DE DROGAS Túlio de Medeiros Jales*
RESUMO O artigo objetiva questionar a efetividade do direito penal como instrumento promotor da saúde pública em relação aos casos de consumo de droga. Ao mesmo tempo em que se examina o modelo penal brasileiro, busca-se uma alternativa através da apresentação e análise do sistema normativo português para o uso de drogas. A comparação dos dois modelos legais tem como fim a resposta à pergunta: por que deve o consumo de drogas ser criminalizado? Palavras-chave: Controle Penal. Saúde Pública. Consumo de drogas.
"A minha alucinação é suportar o dia-a-dia, E meu delírio é a experiência com coisas reais (...) Amar e mudar as coisas, amar e mudar as coisas me interessa mais." (Belchior, Alucinação)
*
Graduando em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Coordenador Administrativo do Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti (CAAC), membro da Base de Pesquisa Direito e Desenvolvimento. Lattes: <http://lattes.cnpq.br/2603672957639753>.
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Experiência Portuguesa. Descriminalização das drogas.
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FIDΣS 1 INTRODUÇÃO
Busca-se, inicialmente, definir qual questionamento melhor colocará à prova o modelo penal como concretizador da proteção da saúde pública diante da problemática do uso de drogas. Em seguida, apresenta-se a moderna teoria do bem jurídico penal da qual se navega, a fim de identificar o bem jurídico protegido pelas normativas brasileira e portuguesa direcionadas aos usuários de drogas. Alcançada a identificação, será analisado com que véu protetor as Constituições brasileira e portuguesa buscaram resguardar tal bem. Construído esse anteparo teórico, caracterizados serão os modelos de tratar a conduta de consumir drogas nos países em comparação. Além da diferenciação, serão apresentados dados estatísticos que demonstram resultados sociais práticos que os modelos alcançaram. É perante a avaliação crítica desses resultados que formularemos os méritos e limites de cada sistema normativo apresentado.
2 DA COLOCAÇÂO DO PROBLEMA
Não é incomum que as dificuldades encontradas na busca por soluções de questões sociais possam originar-se da própria formulação do problema que se pretende resolver. O controle legal do consumo de drogas ilícitas parece inserir-se nessa hipótese. Ao determinar o consumo de certa substância como ilícita, o Estado supostamente pretende reconhecer que a utilização da mesma acarreta, em primeiro plano, gravosos danos à
acaba por criar um problema de saúde coletivo, podendo transmudar-se em diversos outros distúrbios sociais. Afloram, atualmente, discussões em torno da inserção de certas substâncias no rol daquelas que deveriam ou não ser proibidas. Não intenta este trabalho elucidar tais dúvidas. Parte-se do pressuposto de que “droga” será aquela substância que tem seu potencial danoso comprovado, tanto em relação ao indivíduo quanto em relação ao ambiente coletivo, devendo ser sua utilização controlada para assim ser também diminuída. Numa primeira análise, entende-se que a avaliação de eficácia de determinado meio de controle legal mede-se pela sua capacidade de contenção do consumo. Contudo, limitar-se a esse ponto de vista seria abdicar de uma visão geral do fenômeno do consumo de entorpecentes. Assim nos coloca Jorge Quintas (2011, p.100):
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saúde do indivíduo e, como consequência desse primário efeito, a difusão de sua utilização
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FIDΣS Medir a extensão dos problemas das drogas exige mais do que estimar o número de pessoas que usam drogas. As taxas de prevalência do consumo não são, assim, o único fator de avaliação do sucesso de determinada política. Nesta perspectiva, ainda que se admita a possibilidade de determinado esquema legal regulador resultar em maiores níveis de consumo de drogas, é necessário, ainda, verificar se as consequências dos consumos de drogas são mais ou menos negativas. Dado que altos níveis de prevalência de uso de drogas podem mesmo coexistir com baixos níveis de consumo problemático (Jay, 2002), não é certo que um possível aumento do consumo se acompanhe necessariamente de um aumento dos abusos danosos para a sociedade. Para esta análise, é importante observar as mudanças nos consumos de drogas ilícitas, verificando simultaneamente a magnitude das consequências negativas que daí podem resultar.
Depreende-se do acima exposto que as cifras que indiquem uma diminuição ou aumento do número de consumidores de drogas não devem ser lidas solitariamente, senão conjugadas com a análise de outras consequências, outros efeitos sociais. Tais efeitos, à frente especificados, representarão, assim, alterações derivadas do próprio modelo de controle escolhido, o qual pode gerar danos ou benefícios coletivos que não incidem diretamente na circunscrição do número de usuários ou dependentes de entorpecentes. Dois foram os modelos escolhidos para passar pelo crivo dos critérios expostos. O modelo proibicionista criminalizante brasileiro, baseado na Lei 11.343/20061, e o modelo proibicionista descriminalizante português, insculpido no Decreto-Lei 30 de 20002.
exercício de comparação entre os modelos buscando responder pergunta fundamental para compreensão da problemática do consumo de drogas, principalmente no Brasil: (aqui remetese ao primeiro parágrafo do tópico) por que deve o consumo de drogas ser criminalizado?
1
Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. BRASIL. Lei 11.343, de 23 de agosto de 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20042006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em: 14 set. 2009 2 Artigo 1º, 1 - A presente lei tem como objecto a definição do regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica. PORTUGAL. Decreto lei 30 de 2000 de 29 de novembro de 2000.Disponívelem:<http://www.idt.pt/PT/Lesgislacao/Legislao%20Ficheiros/Controle_da_Oferta_e_da_Procur a/lei_30_2000.pfd>. Acesso em: 13 set. 2012.
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Ao término da análise crítica de ambos os projetos reguladores, realizar-se-á um
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FIDΣS 3 A TEORIA DO BEM JURÍDICO PENAL
Toda e qualquer atividade penal incriminadora por parte do Estado deve basear-se, em última análise, na proteção de direitos, de bens jurídicos que possuem alta posição na escala axiológica definida pela própria sociedade. É a partir dessa concepção que emerge, no estudo da legitimação do direito penal, a teoria do bem jurídico penal. Sobre o tema, pertinente a lição de Luigi Ferrajoli (2008, p. 467), quando expõe que:
[...] a necessária lesividade a um bem jurídico condiciona toda justificação utilitária do direito penal, como instrumento de tutela, constituindo seu principal limite externo. A partir do reconhecimento da afirmativa de que algo é um bem jurídico penal, é de se proceder a um juízo de valor sobre a justificação de sua tutela por meio do instrumento mais extremo, que é a pena e, inversamente, admitindo-se que um objeto somente deva ser considerado bem jurídico penal quando sua tutela esteja justificada.
A teoria do de bem jurídico penal foi, ao longo da evolução de seu estudo, preenchida por variados conteúdos. Infelizmente, o traçado metodológico do presente trabalho não permitiria que fosse apresentado todo o trajeto histórico percorrido pela mesma, perpassando desde seu viés de proteção privatística, até a mais moderna concepção garantista. Não obstante, também a ausência de qualquer referencial definidor do que entenderíamos por bem jurídico penal viria a prejudicar a análise empreendida. Portanto,
assentada e defendida pela doutrina garantista, aqui bem apresentada pelo Professor Winfreid Hassemer ( citado por: BECHARA,2008, p. 14):
[...] parte-se do pressuposto de que, no estágio atual do Estado Democrático de Direito, o conteúdo material do delito e, assim, o conteúdo do bem jurídico não podem ser tomados segundo a mera descrição normativa formal, de um lado, ou conforme exigências ético-sociais de caráter fundamentalmente moral ou religioso, de outro, para afirmar que só ganha sentido uma concepção que pretenda relacionar diretamente o conceito material de crime e o conteúdo de bem jurídico ao problema da missão e dos limites do direito penal na medida em que este conceito for situado fora do âmbito jurídico-penal positivado. O conceito será porém, estabelecido previamente pelo legislador, em nível constitucional, mediante a eleição de bens
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cumpre-nos adotar e expor aquela concepção que hodiernamentente mais parece estar
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FIDΣS jurídicos dignos de tutela, de forma a constituir-se um padrão crítico a indicar aquilo que deve ser criminalizado e aquilo que se deve deixar fora do campo de incidência penal.
Diante do exposto, fica claro que o texto constitucional passa a ser o parâmetro de onde devem decolar os valores, os bens jurídicos dignos de uma proteção penal. A experiência histórica nos leciona que é na Constituição, e somente nela, onde devem ser encontrados os mandados criminalizadores. Tal monopólio, por mais sólido que necessite ser, não tornará estanque a definição do que virá a tornar-se um bem jurídico-penal. Alessandro Barata (1994, p.10) muito oportunamente nos auxilia:
[...] sendo os valores constitucionais fundamentais objetos de análise de praticamente todos os ramos do direito, a fragmentação das áreas de tutela em cada esfera (mormente a penal) dependerá não tanto da natureza dos bens, mas, principalmente, da estrutura das diversas situações que lhe são prejudiciais e da qual se incumbem os diversos ramos, concorrendo, e ora sendo preferido um ao outro, com as técnicas específicas de proteção.
Os princípios constitucionais protegidos sob o manto do direito penal devem ser, portanto, lidos e relidos à luz da realidade social, sob as lentes da proporcionalidade e da razoabilidade, para constatação da sua efetiva proteção, sob pena de, em caso de uma proteção insuficiente, estar-se possibilitando a violação gratuita de um bem jurídico elegido pela Constituição como essencial à harmonia social, ou, ainda, em caso de uma proteção
positiva nas liberdades de ação dos indivíduos, desrespeitando o princípio da subsidiariedade do instrumento penal. Será, assim, esse exercício de averiguação da real proteção que o direito penal vem garantindo à sociedade, no específico recorte da criminalização do consumo de drogas, que buscaremos empreender com elaboração desta pesquisa.
4
A
IDENTIFICAÇÃO
DO
BEM
JURÍDICO
CRIMINALIZAÇÃO DO CONSUMO DE DROGAS
PROTEGIDO
PELA
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desproporcional ou desnecessária, estar o Estado ultrapassando os limites de intervenção
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FIDΣS Delimitada a teoria do bem jurídico a ser utilizada como referencial, podemos partir, então, para a análise de que valor se busca proteger na criminalização da conduta em análise, a saber: o consumo de drogas. De acordo com a doutrina brasileira, o bem jurídico protegido no crime de consumo de entorpecentes é a saúde pública, visto que o consumo de substâncias psicoativas prejudicaria a saúde dos usuários, podendo levá-los, inclusive, à morte. Nesse sentido, Vicente Greco Filho e João Daniel Rassi (2009, p. 32) propalam que:
O bem jurídico protegido é a saúde pública. A deterioração da saúde pública não se limita àquele que a ingere, mas põe em risco a própria integridade social. (...) basicamente o que a lei visa evitar é o dano causado à saúde pelo uso de droga. Para a existência do delito, não há necessidade de ocorrência do dano. O próprio perigo é presumido em caráter absoluto, bastando para a configuração do crime que a conduta seja subsumida num dos verbos previstos.
Não só a construção doutrinária agrega esse entendimento. O Código Penal de 1940, em seu texto original, previa o crime de uso de entorpecentes a altura abraçado pelo Capítulo III, relativo aos Crimes contra a saúde pública. Posteriormente, essa parcela do Código Penal viria ser revogada pela edição da Lei 6368 de 1976, que trataria especificamente dos crimes relativos às drogas. Este instrumento legislativo, por sua vez, manter-se-ia regrando as condutas relativas ao consumo e tráfico de entorpecentes em nosso ordenamento até a promulgação da atual Lei de Drogas, a 11.343 de 20063.
proteção à saúde humana. Em verdade, tal finalidade buscou ser ampliada, como se vislumbra com a criação pela lei 11.343, do SISNAD – Sistema Nacional de Políticas Públicas Sobre Drogas, na busca por incutir uma importância maior à esfera da prevenção ao uso da droga, subtraindo cada vez mais o problema da esfera policial para somá-lo ao âmbito da saúde pública e assistência social.
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Lei 11.343: Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências.
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Embora modificadas as vias legislativas, constata-se a não alteração do telos de
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FIDΣS Em solo lusitano a compreensão não é outra. Desde a primeira vez que o consumo encontra-se expressamente representado nas normativas portuguesas, a partir do Decreto Lei 420/704, sua criminalização aparece embasada na proteção da saúde,
Ao ter em conta os perigos que aquele consumo comporta para a saúde física e moral dos indivíduos passa-se da droga mercadoria à droga delito. O consumidor de drogas é, pela primeira vez, tomado em consideração na lei, mas faz-se corresponder a esta figura apenas uma vertente criminal, na convicção de que as ortopedias punitivas são a solução para obstar o consumo (QUINTAS, 2011, p.106).
A atual lei que rege a matéria é a confirmação do olhar voltado à integridade da saúde do consumidor, assim nos define Carlos Poiares (2001, p.70): A droga emerge então num contexto que privilegia a vertente da saúde, o que permite considerar que essa descriminalização está a ser feita pela via construtiva, assinalando-se objetivos que são, marcadamente, do domínio da saúde, desde logo dos diplomas que instituem os regimes legais de prevenção e redução de riscos e minimização de danos, e o regime das comissões de dissuasão e toxicodependência.
Atesta-se, portanto, que a proteção da saúde humana é o cerne fundamentador da criação deste desempenho penal por parte do Estado, seja na instituição de regimes criminalizantes, como é o brasileiro e como foi, preteritamente. o português, seja na constituição de modelos descriminalizantes, como caracteriza-se atualmente o modelo luso.
Avocado pelo Constituinte de 1988 no rol das garantias sociais a serem prestadas pelo Estado aos seus cidadãos por meio do art. 6º da CF5, o direito a saúde, como todos os demais direitos sociais, “existe para produzir as condições e os pressupostos reais e fáticos indispensáveis ao exercício dos direitos fundamentais” (BONAVIDES, 2010, p.378).
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Decreto- Lei 420/70. Ministério da Justiça Português. Preâmbulo. O consumo de substâncias estupefacientes e em geral de drogas susceptíveis de provocar toxicomania assumiu neste século uma extensão e gravidade que o tornaram motivo de especial atenção e cuidado dos Estados e de organizações internacionais. Têm-se na verdade presentes os perigos que aquele consumo comporta para a saúde física e moral dos indivíduos e a sua não rara interpenetração com fenómenos de delinquência. 5 Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
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4.1 A proteção constitucional à saúde pública e a criminalização do uso de drogas
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FIDΣS Os pressupostos abarcados pela esfera da proteção à saúde relacionam-se à manutenção do estado de bem-estar físico, mental e social do indivíduo e não simplesmente a garantia da ausência de doença ou enfermidade6. Insere-se, assim, a obrigação de prestação positiva do Estado em imprimir esforços para que as condições de saúde, entendida essa de maneira ampla, venham a ser promotoras e não obstáculos para o alcance dos demais direitos fundamentais. Quando trata da saúde em seu art. 64º, mais cirúrgico ainda é o constituinte português ao fazer constar no ponto três: “3. Para assegurar o direito à protecção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado: (...) f) Estabelecer políticas de prevenção e tratamento da toxicodependência”. Realçado deve ser que o legislador português não mais considera que a criminalização do consumo de entorpecentes deva ser o meio utilizado para dar cumprimento à obrigação constitucional. Posteriormente desenvolveremos onde se funda tal escolha. Caso não estejam exercitando as obrigações assumidas nas suas Constituições, estarão, os Estados, incorrendo em evidente comportamento inconstitucional. A natureza programática da norma constitucional ora em comento não pode ser álibi para transformá-la em promessa constitucional inconseqüente, postergando seu atendimento à discricionariedade governamental. É por intermédio desse matiz protecionista, fruto do entendimento de que vivemos em um Estado patrocinador de uma “política de proteção integral de direitos” (BARATA, 1999, p. 109), que podemos permitir a interferência do poder público na proibição de atos e comportamentos socialmente e individualmente danosos à saúde, como é o consumo de certas substâncias classificadas como entorpecentes.
de crack, por exemplo, o faz por entender que aquela atitude acaba por lesar um bem jurídico penal. No caso da utilização de entorpecentes, o aparato criminalístico é instrumentalizado pelo Estado como meio de efetivação da proteção que o mesmo tem por dever assegurar à saúde de seus cidadãos. O bem jurídico da saúde humana, “como objeto que é em si mesmo socialmente relevante fundamental para a integridade do Estado” (BARATA,1999, p.110), reveste-se com o manto da proteção penal. No caso exemplificativo mencionado, tal proteção é consequência, por sua vez, da sólida certeza de que o consumo de crack é uma ação que, pelas
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Conceito de Saúde elaborado pela Organização Mundial da Saúde ( OMS).
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Quando o Estado proíbe e passa a repreender, por meio do direito penal, o consumo
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FIDΣS consequências degradantes que carrega, deve ser evitada a todo custo para o bem da harmonia social. Impera-nos investigar, entretanto, se tal intervenção atinge, na prática, os objetivos impostos pelo contrato constitucional ao Estado, quando esse se viu obrigado a empreender tarefas concernentes à proteção da saúde de seus cidadãos.
5 MODELO PROIBICIONISTA BRASILEIRO
Fundamentado o suposto motivo da utilização do direito penal para o controle do consumo de drogas, insta esclarecer que tipo de criminalização atua sobre tal conduta em nosso ordenamento. A doutrina caracteriza o modelo brasileiro exposto pela Lei 11.343 como um proibicionismo moderado. Embora o consumo e o tráfico de entorpecentes sejam identificados como ilícitos penais, apenas o segundo enseja uma resposta prisional, sendo o delito de consumo cominado com penas alternativas. A conduta de drogas passou, assim, por um processo de despenalização. Aqui, visando uma melhor compreensão do desenvolvimento da pesquisa, cabe-nos uma breve digressão para diferenciar a despenalização, descriminalização e a legalização, termos por vezes indevidamente permutados no ambiente jurídico. A descriminalização compreende a remoção do tratamento de uma conduta ou atividade da esfera da lei penal. Tal conduta ou atividade poderia passar a representar agora,
Difere-se da despenalização porquanto essa se relaciona com a sanção penal imposta pela afronta a lei penal. Na lição de Luiz Flávio Gomes (2006, p.4) “Despenalizar significa adotar penas alternativas para o ilícito penal de modo que suavize a resposta penal e evite a aplicação da pena privativa de liberdade”7. Diante do caso brasileiro, percebemos ser esse o sistema que passa a estar em vigência com Lei 11.343 em relação ao usuário. O consumidor de drogas, assim identificado, não mais irá preso. Responde, sim, a uma ofensa penal, mas não tem a pena de prisão como uma possível sanção cominada; circunstâncias não proporcionadas por um regime legalizante. 7
Atentemos, no entanto, que o termo despenalização não parece ser o hermeneuticamente mais adequado, isso porque se deixa brecha para a falsa impressão de que passa a inexistir pena cominada ao ilícito despenalizado, quando na verdade é a utilização de um tipo específico de pena que foi abandonada (pena privativa de liberdade). Não obstante, por ser um termo consagrado na doutrina brasileira, opta-se por assim defini-la.
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uma ofensa administrativa, ou nem isso. De todo modo, não mais seria uma agressão penal.
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FIDΣS Na legalização, não mais se proíbe, por qualquer via jurídica, a prática de consumir drogas, por exemplo. Tal atividade passa, pelo contrário, a ter sua realização agora protegida pelo Estado, visto que a conduta estará na atmosfera dos atos lícitos, não podendo ser tolhida a liberdade do cidadão de executá-lo. Depois dessa breve incursão pedagógica, voltamos à análise do chamado proibicionismo à brasileira. Percebe-se que o modelo gestado, ao atribuir penas bem distintas para os crimes de tráfico e consumo pessoal, delega considerável importância ao momento em que definir-se-á, no processo penal, quem será usuário e quem será traficante. O legislador acabou por transferir essa responsabilidade ao magistrado que, examinando critérios objetivos e subjetivos presentes no §2º do art 28 da Lei de Drogas 8, decidirá se o consumo era para fins pessoais ou destinava-se ao tráfico. Cabe afirmar que a supracitada norma expressa a tomada de consciência do legislador pátrio a respeito da necessidade de adequação da resposta penal a uma nova concepção da figura do usuário. A mentalidade de que o tratamento punitivo rigoroso, com penas de reclusão ou detenção representa o melhor caminho para lidar com o uso de drogas cai. Dá-se mais ênfase a proteção da saúde do usuário que, por sua vez, é a melhor proteção da própria sociedade. Sendo o indivíduo identificado como usuário, o juiz aplicará as penas alternativas que os três primeiros incisos do art. 28 oferecem: admoestação verbal, prestação de serviços a comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Em caso de recusa do agente de submeter-se às penas aplicadas, o juiz poderá valer-se novamente de uma admoestação verbal ou imprimir uma multa.
o juiz determinará ao poder público que coloque a disposição do infrator algum estabelecimento para tratamento especializado. Em linhas gerais, assim define-se enquadramento legal brasileiro ao usuário de drogas. Em linhas gerais, o modelo brasileiro acaba por não deixar claro se enxerga o usuário como delinquente ou como um doente que necessitará de auxílio terapêutico. Embora tratados com penas alternativas, não podendo ser presos – clara adoção da política de redução de danos – permanecem aqueles em contato com o sistema penal. Adiante tentaremos desvelar as possíveis consequências dessa indefinição do quadro legal pátrio. 8
Art. 28 (...)§ 2o “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.” Lei 11.343/2006.
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Digno de ressalva para os fins deste estudo é o § 7° também do art. 28 que versa que
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FIDΣS
6 O MODELO PORTUGUÊS DE REGULAÇÃO DO CONSUMO DE DROGAS
Ao contrário do que a princípio possa parecer, não é apenas o modelo legalizante que pode colmatar o vazio deixado pela ausência do controle proibicionista criminalizante. A pesquisa ampla no tema nos traz, por exemplo, a experiência da descriminalização do uso de entorpecentes adotada pelo governo português em 2001 e que vem apresentando, desde então, resultados dignos de uma análise mais detalha sobre essa experiência no contexto europeu. Mister faz-se entender de uma forma panorâmica o funcionamento da estratégia em Portugal. A Lei 30 de 2000, definidora do novo regime jurídico português aplicado ao consumo de substâncias psicotrópicas, bem como à proteção sanitária e social que envolve os consumidores, identificará como tal aquele que for encontrado “detendo, para uso próprio, uma quantidade de estupefaciente não superior à necessária ao consumo médio individual durante dez dias”9. Alocado dentro dessa margem, passa o consumidor a recair não em sanções penais, mas numa série de sanções administrativas, denominadas contra ordenações, que variam conforme a aferição ou não da toxicodependência do usuário e em função da necessidade de prevenir um novo consumo de substâncias psicotrópicas. Para os não dependentes, as penalidades podem redundar de um nada, com o arquivamento do procedimento administrativo (obrigatória na primeira infração) à imposição de coimas (multas); aos toxicodependentes, pendulam as penas entre a indicação de voluntariamente, os dependentes terão seus processos contra “ordenacionais” suspensos. A não sujeição pode implicar a apresentação obrigatória a serviços de saúde, com vistas à melhoria das condições sanitárias ou a aplicação à de penalidades administrativas, tais quais a suspensão do porte de arma, cassação de autorização para exercício de profissão e a proibição para frequentar certos lugares. Todo o procedimento administrativo de aplicação das contra ordenações ocorre na chamada Comissão para Dissuasão da Toxicodependência (CDT), órgão administrativo vinculado ao Ministério da Saúde criado com a finalidade específica de lidar com os casos de consumo de estupefacientes.
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Art. 2º (2). Lei 30. 2000, Assembleia da República Portuguesa.
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tratamentos psicossociais, os quais o consumidor escolhe sujeitar-se ou não. Caso sujeitem-se
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FIDΣS Concebida para proporcionar ao utente um ambiente completamente diferente do de um juízo criminal, as comissões tem por base um política de proximidade e prevenção, são compostas por três pessoas sendo, dentre elas, um indicado pelo Ministro da Justiça, um pelo Ministro da Saúde e outro pelo Governo Civil responsável. As comissões irão, assim, adjetivar a experiência portuguesa como uma descriminalização desjudicializante. Jorge Quintas (2011, p. 121), em sua tese de doutorado já citada anteriormente, vinca que a aplicação da lei atende a uma dupla finalidade:
i)convencer os não toxicodependentes dos riscos e da indesejabilidade do uso; ii)incentivar os toxicodependentes a seguirem um processo de tratamento e reinserção na sociedade, ou pelo menos, importante inovação, a submeterem-se a medidas de mero controle sanitário que permitem a redução de danos e riscos provocados pelo consumo.
Pelo exposto conclui-se que o objetivo da lei portuguesa não é aplicar sanções, mas sim possibilitar por diversos caminhos o tratamento dos infratores. A criação de uma instância administrativa vinculada diretamente ao ministério da saúde expõe claramente a ênfase no tratamento do toxicodependente, relegando para segundo plano o sancionamento dos atos. A opção pela proibição legal do consumo é mantida sob o pretexto pedagógico de demonstrar a desaprovação da conduta, contudo, sustenta-se essa desaprovação com uma resposta descriminalizante que se demonstra preocupada com o momento pós-identificação do
7 ANÁLISE COMPARATIVA DOS MODELOS APRESENTADOS
7.1 Resultados
Com intenção de medir os benefícios sociais globais dos dois modelos apresentados, os analisaremos segundo os critérios mencionados no início do estudo, a saber, o número de consumidores de drogas e evolução de outros efeitos sociais. Impende definirmos, desde logo, o que seriam esses outros efeitos sociais que levaremos em consideração. Muitas alterações sociais poderiam ser invocadas como relacionadas direta ou indiretamente ao modelo legal de tratamento dos usuários. Ficamos, contudo, restritos aos dados que entram nos relatórios de organismos de investigação sobre o
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usuário.
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FIDΣS tema. Esses trazem estatísticas, tais quais o número de casos de AIDS ou outras doenças relacionados ao uso de drogas injetáveis, internações decorrentes do uso de drogas, mortes devida overdose e o impacto nos consumos problemáticos. O último relatório do OBID – Observatório Brasileiro de Investigação sobre Drogas, divulgado em 2009, traz que o nível de prevalência no consumo de drogas ilícitas entre 2001 e 2005 subiu de 19,4% para 22,8% da população geral. O níveis de prevalência de maconha (6,9% – 8,8%), crack (0,4% – 0,7%), estimulantes (1,5% – 3,2%), cocaína (2,3% – 2,9%) e alucinógenos (0,6% – 1,1%), cresceram, tendências que comprovadamente não mudam nos anos seguintes a implementação da nova Lei de Drogas, como revela o mais atual e já referido relatório UNODC (UNODC, 2011). Acresce referir que a cifra representativa dos estudantes do ensino fundamental e médio das redes estaduais e municipais também subiu, embora pouco, entre 2001 e 2005 de 21,6% para 22,6%, segundo o OBID. (OBID, 2009) Os dados em Portugal são obtidos através dos relatórios do IDT – Instituto da Droga e Toxicodependência, os quais demonstram que, entre 2001 e 2007, houve um aumento de aproximadamente 3% no nível de prevalência do consumo de substâncias ilícitas entre entra a população de 15 a 24 anos. (IDT, 2007. Citado por GREENWALD, 2009, pag. 14). Destrinchando os dados, notamos que, entre a faixa da população dos 15 aos 19 anos, houve um decréscimo de 3% no nível de prevalência, havendo o aumento no consumo de indivíduos entre 19 e 24 anos (6%) compensado tal decréscimo. Um dos dados mais reveladores vem a ser os relativos ao consumo de drogas entre os
grandes quedas. O uso de maconha caiu de 27% para 17%, o de ecstasy de 5% para menos de 3% assim como o uso de cocaína. (IDT, 2007. Citado por GREENWALD, 2009, p.13). Saliente-se que o período da pesquisa coincide exatamente com a implementação do novo regime legal descriminalizante, sendo que os níveis do aumento de consumo precedem a mudança legislativa, não havendo nenhuma brusca alteração no número de usuários, em qualquer faixa etária, seja para mais ou para menos, além do fato de Portugal ter mantido em todos estes períodos níveis modestos de consumo quando comparado aos demais países europeus (QUINTAS, 2011. p. 219). Seguindo nas análises dos resultados dos dois sistemas cabe comparar outros reflexos sociais como os casos de AIDS e os de outras doenças relacionados ao consumo além dos óbitos associados ao uso de drogas.
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estudantes secundaristas (ensino médio no Brasil), com as taxas de prevalência sofrendo
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FIDΣS No Brasil, o OBID informa que, entre 2001 e 2006, o número de indivíduos na categoria de exposição UDI (usuário de drogas ilícitas) detectados com HIV passou de 3,9% para 5,1%. Quando os números levam em conta os casos de hepatite C relacionados com o consumo de drogas os aumentos são mais surpreendentes. De 2001 a 2007, os casos de hepatite B com uso de drogas como provável fonte de infecção passaram de 11 para 254. Os de hepatite C, no mesmo período, saltaram de 149 para 2039. No país, o número de internações decorrentes do consumo de drogas diminuiu entre 2001 e 2007, de 143.199 para 134.674, uma informação preocupante quando os dados do mesmo relatório demonstram que os níveis de consumo não diminuíram, sinal de que o atendimento ao dependente vem se mostrando falho e deixando cada vez mais pessoas a sua margem. O número de óbitos associados a transtornos mentais e comportamentais derivados do uso de drogas também cresceu. Entre 2001 e 2007, os casos passaram de 5389 para 7856. (OBID, 2009, p. 127-183) Em terras lusas, os casos de AIDS relacionados à toxicodependência passaram de 556 em 2001, para 252 em 2006. O número mortes relacionadas ao consumo sofreu incremento, passando de 280, em 2001, para 338 em 2008, cifra que ainda é menor do que o número de 369 casos atingido em 1999, ainda sob a vigência do modelo criminalizante. O número de utentes atendidos com quadro de consumo problemático nas instituições de tratamento públicas era de mais de 10000 no início dos anos 2000 e chegou a cair a faixa dos 5000 no ano de 2006. Atualmente, retoma o crescimento, ficando na faixa dos 7000 atendidos. Assim, desde a descriminalização, ocorreu uma diminuição nas cifras de atendimentos a indivíduos
Considerando suficiente o acervo estatístico apresentado, passamos agora a uma análise mais profunda das relações entre os quadros legais adotados em Brasil e Portugal e os resultados obtidos.
7.2 Méritos e limitações O primeiro mito que decai da análise dos dados é o pré-julgamento, muitas vezes realizado, de que a descriminalização do consumo de drogas levaria a um vertiginoso aumento do número de usuários. O que se demonstra no caso português é a continuidade da tendência de crescimento constatada nos anos anteriores à descriminalização. Se não se pode afirmar que a
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em situação de consumo problemático (QUINTAS, 2011. p 211-233).
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FIDΣS descriminalização do consumo ocasiona uma diminuição nos níveis de prevalência, o contrário, que os eleva, igualmente, não pode ser dito. Confirma-se, pois, que a alteração legislativa brasileira, despenalizando o uso, também não foi capaz de conter a escalada nos níveis de utilização. O grande diferencial entre os dois modelos normativos vem revelar-se, quando passamos à análise dos diversos efeitos sociais que as medidas legais parecem contribuir para originar ou, pelo menos, manter. Os índices de casos de AIDS, mortes ocasionadas pelo uso de drogas e de consumo problemático em Portugal diminuíram nos anos seguintes à descriminalização. O Brasil, ao reverso, apresentou um aumento nos casos de AIDS, hepatites B e C, mortes relacionadas às drogas e a preocupante diminuição no número de atendimentos a usuários mesmo com o crescimento do consumo de tóxicos. Ao que nos parece, o modelo brasileiro constrói óbices que o impedem de atingir suas próprias finalidades. Ao não definir claramente o modo de encarar a figura do usuário, a lei brasileira não abre completamente a porta para que os consumidores saiam do vício ou, pelo menos, do uso problemático, aquele mais suscetível a ocasionar danos à saúde. Ao não descriminalizar, acaba por impedir que a sociedade lance um olhar diferente sobre o usuário, ao mesmo tempo em que o desmotiva, impedindo que o consumidor enxergue a si próprio como alguém que precise de tratamento. O quadro legal também é frágil, ao realizar a interface entre o sistema da justiça e o sistema de saúde. O §7º do art.28, que poderia efetivar tal imbricação, é insuficiente. Não há garantia de que um tratamento será realizado em uma pessoa dependente, por exemplo. Ora, pela teoria do bem jurídico, desenvolvida em linhas pretéritas, afirma-se que
revestida pelo direito penal. Faz-se necessário que o instrumento penal demonstre sua eficiência para proporcionar tal proteção, o que visivelmente não vem se demonstrando no caso brasileiro. Ainda antes disso, em respeito ao princípio da subsidiariedade, caso haja instrumento social, que não a criminalização, para que se proteja eficientemente um bem essencial, deve este meio preterir à utilização do aparato penalístico. É nesta perspectiva que o modelo luso parece melhor acabado, mais coerente com seus próprios fins. É claro que a destipificação não implica somente em consequências acadêmicas e, ao compararmos modelo brasileiro ao modelo português, temos a prova disso, representando uma clara alternativa à criminalização e, assim, prenunciando seu próprio fim.
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não bastará a um bem jurídico ser fundamental à sociedade para que possa ter sua proteção
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FIDΣS Como vimos, além de descriminalizar, Portugal desjudicializou a forma de tratar o usuário com a criação das Comissões de Dissuasão e Toxicodependência, possibilitando uma maior capilaridade do sistema de saúde aos consumidores, identificados pelo sistema de segurança pública. Guedes Valente (2006, p. 160) bem define a importância da desjudicialização para o funcionamento do sistema: O próprio cariz e fundamento da descriminalização, que é de sentido técnico, ao permitir uma materialização mais visível e eficaz dos princípios do consenso e da oportunidade impõe que não seja um órgão jurisdicional a processar as contra ordenações e a aplicar as correspondentes sanções, ou seja, ao descriminalizar-se não faria qualquer sentido manter-se a mesma estrutura e o mesmo iter judicial, mas por si sempre fiscalizado e controlado.
João Castel-Branco Goulão, presidente do Instituto de Drogas e Toxicodependência, relata que, antes de 2001, o principal desafio enfrentado era a o medo que os usuários possuíam de buscar um tratamento para sua dependência; havia por parte deles o receio de serem presos ou processados criminalmente. A primeira evolução foi proporcionar aos usuários meios de tratamentos efetivos e humanos que pudessem ser alcançados sem o medo do utente ter de carregar o signo da criminalização. Além disso, a descriminalização poupou milhões de euros destinados ao combate criminal do consumo de drogas para reverte-los à seara da saúde e assistência social, reside aí o primeiro mérito deste modelo legal. (GREENWALD, 2009. p. 9-8)
português, que consegue fazer com que o utente, mesmo que não queira realizar um tratamento, interaja com o sistema de saúde da maneira mais atrativa possível. Primeiro, há de se diferenciar o consumidor dependente do não dependente. Tal definição será realizada, como já citado, por uma comissão de profissionais de diversas áreas, proporcionando uma ampla visão do juízo concebido sobre o caso. Se identificado como não dependente, o princípio da oportunidade norteará a ação da comissão, que poderá, por exemplo, suspender o processo. Mesmo em tal caso, todavia, já se possibilita o início de um tratamento. Em caso de identificação como dependente, o contato com o sistema de saúde já será obrigatório. Tenta-se deixar a “oferta” de tratamento o mais atrativa possível, mas se mesmo assim o dependente
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O segundo mérito é a configuração do modelo de tratamento biopsicossocial
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FIDΣS não aceitá-la haverá de comparecer nos estabelecimentos de saúde para que sejam garantidas a redução de danos e a minimização dos riscos do uso. Não se trata nem de obrigar o consumidor é um tratamento nem de deixá-lo ao largo de qualquer medida de cuidado. Quintas nos ajuda a definir:
Mais do que servir como dissuasão dos comportamentos de consumo a lei da descriminalização do consumo instaura efetivamente, na prática, uma intenção, já antiga, de conduzir os consumidores toxicodependentes detectados por actos de consumo aos serviços de tratamento. Condicionar positivamente a evolução de um tratamento é a mais evidente das consequências da descriminalização do consumo, fornecendo oportunidades para aplicar uma medida de reação legal, já anteriormente, considerada mais adaptada às transgressões de consumo.” (QUINTAS, 2011, p. 219)
Por fim, a política biopsicossocial, como todos os outros modelos de enquadramento legal do consumo de drogas, não fica imune a críticas. Há quem defina como um erro tratar o usuário como doente ou submetê-lo a qualquer contato que seja com um sistema de saúde. Se nos perguntamos no começo do estudo por que deve ser o consumo drogas criminalizado?, poderíamos muito bem perguntar, em uma pesquisa com um novo enfoque, por que deve ser o consumo de drogas legalmente controlado?, ou mesmo por que deve ser o consumo de drogas proibido?, com o diferencial de que não teríamos nenhuma experiência empírica a ocorrer no mundo atual que nos permitisse uma comparação com diversos modelos legais de controle.
lei portuguesa nos parecem bastante evidentes diante das constatações fáticas. É consenso de que o modelo legal não será o único fator que definirá os ritmos dos danos que o consumo de tóxicos infringe numa população, os mais diversos fatores interagem para tal; essencial é, todavia, que o sistema potencialize os fatores que podem desencadear uma a diminuição do consumo, não sendo óbice a tal. Foi nesse último papel, no entanto, que o modelo criminalizante brasileiro mostrou atuar, sendo incapaz de sustentar sua própria existência e, assim, de bem responder a pergunta por nós colocada: por que deve ser o consumo de drogas criminalizado? Nesse contexto, o sistema português aparece como capaz de oferecer boas propostas sobre as quais devemos refletir vez que, mesmo não conseguindo diminuir as taxas de
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Não obstante, os benefícios que descriminalização e a desjudicialização chancelam a
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FIDΣS consumo na população em geral, parece catalisar os fatores de diminuição de danos sociais que esse consumo acarreta no meio.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir de tudo o que foi dito pode-se concluir que a mais moderna teoria do bem jurídico penal compreende que os objetos da proteção criminal devem ser apreendidos tão somente a partir da escala valorativa imposta pela Constituição; a resposta penal deve passar, ainda, pelo crivo da eficácia e da subsidiariedade para que, aí sim, possa legitimar sua atuação. O bem jurídico que busca ser protegido pela criminalização do consumo de drogas, tanto no Brasil quanto em Portugal, é o da saúde pública. O controle penal sobre o uso de drogas é expressado, no ordenamento brasileiro, por meio de um proibicionismo criminalizante moderado. Em terras lusas, o controle do consumo de drogas é realizado através de um enquadramento não penal (administrativo) desjudicializante, através das Comissões de Dissuasão e Toxicodependência. Os dados coletados demonstram que o proibicionismo à brasileira não diminuiu os níveis de consumo de tóxicos e a descriminalização, em Portugal, não foi capaz de alterar a tendência já anteriormente constatada de aumento do consumo de drogas. Entretanto, o modelo português, ao contrário do brasileiro, reduziu diversos efeitos sociais negativos relacionados direta ou indiretamente ao consumo de drogas. Tal diminuição deve-se, primeiramente, ao fato da descriminalização ter sido desjudicializante, trazendo o
social. O segundo fator elementar é o forte poder de atuação do sistema de saúde que a lei Oconcede, colocando sobre proteção legal e social aqueles que antes não estavam. O modelo criminalizante não consegue, portanto, sustentar-se, havendo claras vantagens na adoção de enquadramentos legais alternativos.
REFERÊNCIAS
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usuário para uma dimensão muito mais adequada à sua reinserção ou, por vezes, inserção
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COMPARATIVE ANALYSES BRAZIL- PORTUGAL: THE CRIMINAL CONTROL AS AN EFFECTIVE WAY TO PROTECT PUBLIC HEALTH REGARDING THE PROBLEMATIC OF DRUGS USE
ABSTRACT The article aims to question the effectiveness of criminal law as an instrument to promote public health regarding the cases of drugs use. It examines the Brazilian criminal model comparing it with the Portuguese regulatory system for drugs use. The comparison of the two legal models has the goal to answer the question: why should
Keywords: Criminal control. Public Health. Drugs consumption. Portuguese Experience. Drugs Decriminalization.
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drugs use be criminalized?
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FIDΣS Recebido 29 ago. 2012 Aceito10 out . 2012
EMBARGOS
DE
DECLARAÇÃO
MERAMENTE
PROTELATÓRIOS:
UMA
ANÁLISE SOB A ÓTICA DA ÉTICA E DO NEOCONSTITUCIONALISMO Débora Daniele Rodrigues e Melo
RESUMO Verifica-se, na práxis forense, a interposição de embargos declaratórios meramente procrastinatórios. Analisa-se esse fenômeno sob as óticas da litigância de má-fé e abuso de direito. Constata-se ser ele isento de eticidade, obstaculizar a concretização da razoável duração do processo e destoar dos valores neoconstitucionais consagrados no ordenamento jurídico pátrio. Reflete-se sobre a importância de dispensar tratamento mais rígido a quem interpõe esse tipo de recurso. Sugerem-se mudanças a serem efetuadas na reforma processual civil vindoura, como a aplicação de multa mais severa e o dever impreterível dos magistrados, desde a primeira instância, em
Palavras-chave: Embargos de declaração. Procrastinação. Eticidade. Neoconstitucionalismo. Razoável duração do processo.
1 INTRODUÇÃO
Graduanda em Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, monitora da disciplina Civil I e membro do Projeto de Extensão Justiça Itinerante, estagiária na 5ª Vara Cível no Fórum Desembargador Seabra Fagundes. Lattes:<http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4362398P0>.
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não condescenderem com esse tipo de prática.
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FIDΣS Notório problema do Judiciário pátrio hodiernamente é a falta de celeridade, a qual põe em risco a efetivação da tutela jurisdicional em tempo hábil e consequentemente a concretização do direito fundamental à razoável duração do processo. No leque de práticas estorvadoras do bom andamento processual e, por conseguinte, agravadoras da dramática situação da morosidade judiciária, está a prática de interposição de embargos declaratórios meramente procrastinatórios. Não raras vezes se encontra, na prática forense, a utilização desse remédio processual de maneira indigna, abusiva, eivada de má fé e em dissonância com a tábua axiológica consagrada pelo neoconstitucionalismo que, dentre outros valores, enaltece a observância da eticidade no âmbito judicial. Em razão do exposto, debatem-se, neste trabalho, os aspectos jurídicos dos embargos de declaração inicialmente, para depois avaliar o seu efeito interruptivo nos prazos para interposição de outros recursos, sob a ótica da litigância de má fé, do abuso de direito e da necessidade de concretização do direito à razoável duração do processo, consagrado na Constituição Federal em seu art. 5º, LXXVIII. Analisa-se ainda a observância de parâmetros éticos no atual contexto do neoconstitucionalismo, no sentido de destinar um tratamento mais rigoroso aos que adotam essa prática meramente protelatória. Constata-se a ineficácia dos atuais modos de repressão à conduta de interpor embargos
de
declaração
indevidos
para,
posteriormente,
sugerirem-se
mudanças
imprescindíveis a serem observadas na vindoura reforma do Código de Processo Civil, sob o
2 ASPECTOS JURÍDICOS DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO
Os embargos de declaração, declarativos ou aclaratórios, são mecanismos processuais que buscam a elucidação, a complementação ou o aperfeiçoamento de um dado provimento jurisdicional (ARRUDA, 2008, O INEQUÍVOCO). Sérgio Bermudes (citado por ORIONE NETO, 2006, p. 387), por exemplo, ressalta que, por almejar reformar a sentença ou acórdão, sem atingir seu teor material, não se pode admitir a natureza recursal dos embargos de declaração, tendo em vista ser seu escopo somente aperfeiçoar a forma pela qual o entendimento do juiz foi emanado. Contudo, a decisão permanece imutável quanto ao conteúdo.
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Projeto de Lei nº 8046/2010.
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FIDΣS A vertente dominante, porém, considera sua natureza recursal, em consonância com a localização dada, pelo legislador, a esse instituto no Código de Processo Civil ora vigente. Nesse sentido, Marinoni (2010, p. 555) leciona:
A falta de exame do recurso por outro órgão jurisdicional não lhe tolhe o caráter recursal, já que não é isso essencial à definição de recurso. Por outro lado, a função complementar que têm os embargos de declaração também não pode ser menosprezada, uma vez que uma decisão obscura, omissa ou mesmo contraditória praticamente equivale à ausência de decisão (ou, pelo menos, à sua falta de fundamentação), já que não se pode alcançar sua extensão adequada, ou não se pode compreender as razões que levaram o órgão jurisdicional a determinado entendimento.
Assim, não obstante os argumentos utilizados pela corrente que não enxerga o caráter recursal dos embargos de declaração - dentre eles, o fato de não serem julgados por outro órgão judicial, não haver previsão para o contraditório, interromperem o prazo para recurso e não objetivarem reforma da decisão (LEITE citado por ARES, 2009, p. de internet) –, parece consolidada, pela razoabilidade, a concepção da natureza jurídica de recurso desse instituto processual. Conforme o Código de Processo Civil, “art. 535. Cabem embargos de declaração quando: I - houver, na sentença ou no acórdão, obscuridade ou contradição; II - for omitido ponto sobre o qual devia pronunciar-se o juiz ou tribunal.”. Entrementes essa clara previsão, tem-se admitido, na doutrina e jurisprudência – por
interlocutória apresentadora dos vícios enumerados, quais sejam, obscuridade, contradição e omissão. Assim, enuncia Nelson Nery Júnior (1997, p. 927) que, embora se refira expressamente à sentença e ao acórdão, os problemas, alvo do ataque dos embargos de declaração, também podem se manifestar em decisões interlocutórias. Nessa linha, se posiciona o STJ, “os embargos declaratórios são cabíveis contra qualquer decisão judicial e, uma vez interpostos, interrompem o prazo recursal. A interpretação meramente literal do art. 535, Código de Processo Civil, atrita a sistemática que
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meio de interpretação extensiva -, a admissibilidade dessa espécie de recurso contra decisão
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FIDΣS deriva do próprio ordenamento processual.”1; e ainda, “É entendimento pacífico desta Corte que os embargos declaratórios são cabíveis contra quaisquer decisões judiciais.”.2 Destarte, em caso de decisão obscura ou contraditória, os embargos de declaração visam uma nova redação do provimento jurisdicional. Esses vícios podem se encontrar tanto no fundamento, quanto no aspecto decisório em si (WAMBIER; ALMEIDA; TALAMINI, 2002, p. 646). Eles representam, assim, a incongruência lógica entre os distintos elementos da decisão judicial que impedem o hermeneuta de apreender adequadamente a fundamentação dada pelo juiz ou tribunal (MARINONI; ARENHART, 2010, p. 555). Como dispõe o Código de Processo Civil de maneira cristalina em seus arts. 536 e 537, os embargos de declaração serão interpostos via petição escrita dirigida ao relator do acórdão ou ao juiz prolator da sentença, em cinco dias contados da publicação do provimento jurisdicional defeituoso. A principal consequência da medida ora em apreço é o seu efeito interruptivo em relação ao prazo para interposição de outros recursos, para ambas as partes, até que o vício apontado seja sanado, de acordo com o que elucida o art. 538 do Código de Processo Civil. Assim, quando da ocorrência do conhecimento de embargos de declaração pelo juízo ou tribunal – ou seja, quando se admite que, de fato, a decisão, sentença ou acórdão continha elementos obscuros, contraditórios ou omissos, e então novo ato decisório é formulado - as partes devem ser intimadas acerca do novo provimento e, a partir desse ponto, reiniciará o
3
EMBARGOS
DE
DECLARAÇÃO
MERAMENTE
PROTELATÓRIOS:
LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ, RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO E ABUSO DE DIREITO
É a partir da análise desse efeito principal dos embargos de declaração, o interruptivo para a interposição de outros recursos, que se alicerça o estudo aqui empreendido. Tem-se verificado, na prática forense brasileira, a utilização dessa medida processual com o intuito meramente protelatório. Isto é, quando não há, nos provimentos judiciais 1
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº 173.021/SP. T4. Min. Sálvio De Figueiredo Teixeira. j. 06/08/1998. 2 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº 762.384/SP. T1. Min. Teori Albino Zavascki. j. 19/12/2005.
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prazo, integral, para outros recursos serem aplicados.
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FIDΣS questionados, vícios de obscuridade, omissão ou contradição e, ainda assim, interpõem-se embargos de declaração. Nesse sentido, Garcia Medina (citado por BARRETO, 2005, p.1) alerta: "não havendo obscuridade, contradição ou omissão, não há lugar para a interposição dos embargos de declaração". Humberto Theodoro Júnior (2000, p. 120), por sua vez, comenta que esse recurso “enseja vasta possibilidade de chicana e maliciosa procrastinação do processo”, “já que repetidos
indevidamente
podem
provocar
a
suspensão
indefinida
do
feito
e,
consequentemente, da coisa julgada”. O conhecimento desse tipo de recurso, desse modo, em hipóteses não taxativamente elencadas pela lei, pode dar azo ao emprego e indiretamente incentivar embargos de declaração meramente protelatórios pelas partes, com fins manifestamente ilícitos, fraudulentos à essência e ao fim do ordenamento jurídico pátrio. Ressalva-se, é claro, a exceção consagrada pela Súmula nº 98 do Superior Tribunal de Justiça, [Seria mais importante colocar o texto da súmula que o do art. 535 como ocorreu anteriormente] quanto ao fato de não caracterizar procrastinação quando os embargos declaratórios visam o prequestionamento de questões de direito, necessário para o oferecimento de recurso especial e extraordinário. Na primeira hipótese, porém, é evidente o fito das partes em apenas procrastinar a solução da lide, no intuito de auferir mais tempo para a confecção de recurso específico, dilatar o trânsito em julgado da causa, retardar o processo de execução, congestionar, enfim, o andamento do feito, aproveitando-se da lentidão que acomete o Poder Judiciário e a
O Código de Processo Civil hodierno, datado de 1973, repugna a prática da litigância de má-fé, que pode ser conceituada como o agir em desconformidade com o dever jurídico de lealdade processual (DORIA, 2005, p. 649). Esse dever, por sua vez, essencialmente vinculado a valores éticos que fundamentam o processo, determina que todos os sujeitos da relação processual precisam atuar no feito de modo probo, condizente com a moralidade, a fim de que o processo atinja seu objetivo precípuo: a solução digna e justa da lide (REIS, 2011, PRINCÍPIO). Nesse sentido, é preciso “atuar segundo parâmetros éticos, para o sadio desenvolvimento do processo” (LEONARDO, 2001, p. 407). Em contradição a essas premissas se coloca a prática da litigância de má-fé transcrita no art. 17, VII do Código de Processo Civil. Quem age de tal maneira intenta a utilização
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agravando ainda mais.
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FIDΣS ardilosa de mecanismos processuais para dificultar a efetivação do satisfatório provimento jurisdicional, evidenciando condutas abusivas, antiéticas, de fins indignos e, portanto, não respaldados pela ordem jurídica. Grinover (2000, p. 63) reverbera:
Mais do que nunca, o processo deve ser informado por princípios éticos. A relação jurídica processual, estabelecida entre as partes e o juiz, rege-se por normas jurídicas e por normas de conduta. De há muito, o processo deixou de ser visto como instrumento meramente técnico, para assumir a dimensão de instrumento ético voltado a pacificar com justiça. Nessa ótica, a atividade das partes, embora empenhadas em obter a vitória, convencendo o juiz de suas razões, assume uma dimensão de cooperação com o órgão judiciário, de modo que de sua posição dialética no processo possa emanar um provimento jurisdicional o mais aderente possível à verdade, sempre entendida como verdade processual e não antológica, ou seja, como algo que se aproxime ao máximo da certeza, adquirindo um alto grau de probabilidade. É por isso que os Códigos Processuais adotam normas que visam a inibir e a sancionar o abuso do processo, impondo uma conduta irrepreensível às partes e a seus procuradores.
Impende, desse modo, a todos os litigantes, a observância das premissas éticas e da boa fé, afim de que o provimento jurisdicional seja o mais justo, correto e ágil possível, pois:
Se as partes pedem ao Estado a tutela da jurisdição, também lhes é imposto um dever de boa-fé perante o juiz, o qual, no dizer de Stefano Costa, “tem o poder de exigir do cidadão que lhe pede justiça, prestar com lealdade os meios tendentes a
expedientes condenáveis seria a negação do processo, pois transformaria o judicium em tablado de luta desleal, onde venceria o mais hábil, em detrimento da justiça e da reta aplicação da lei. (VARGAS, 2001, p. 90.)
Ora, percebe-se claramente que o emprego de embargos de declaração, sem arrazoada fundamentação jurídica que o legitime, configura a má-fé do embargante, que almeja estorvar o bom andamento processual – já tão maculado no Brasil pela morosidade do Judiciário. Essa atividade não demonstra respeito para com os pilares éticos que devem reger o processo, nem para com os princípios da lealdade – designado no art. 14, II Código de Processo Civil – e da celeridade processual - sendo que este passou a ter substrato normativo
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fazer atuar sua pretensão ou sua defesa”. Um processo dominado pela chicana ou
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FIDΣS constitucional, conforme o art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal, que consagra a razoável duração do processo. Esse direito fundamental, por sua vez, está inserido no princípio do amplo acesso à Justiça - art. 5º, XXXV da Constituição Federal -, porque quanto mais rápido o trâmite judicial, mais efetivo é o acesso (MELO, 2010, p. 33). Sendo assim, o fator tempo é deveras obstáculo ao acesso à Justiça, pois “de nada adianta ir a juízo, se não há uma resposta ao poder Judiciário em tempo hábil e capaz de realizar os objetivos da jurisdição.” (CORTÊS; MAGALHÃES, 2006, p. 85). Fica claro que o uso indevido dos embargos de declaração é uma forma de se mitigar a razoável duração do processo, pois, por meio de ato voluntário e consciente, as partes empregam recurso apenas para protelar a solução da lide. Nesse diapasão, é possível também enquadrar a prática de interpor embargos de declaração protelatórios, além da litigância de má-fé, como abuso de direito. Ele consiste numa forma de ato ilícito e pressupõe a existência de um direito subjetivo exercido de maneira anormal, ou seja, provocando danos a outrem (NADER, 2007, 295). Na situação em apreço, o ato de, numa relação processual, interpor embargos de declaração contra provimentos jurisdicionais é, sem dúvida, direito subjetivo do cidadão. O recurso – gênero do qual o embargo de declaração é considerado espécie, apesar da celeuma doutrinária já referida - é um remédio voluntário usado pelo legitimado que acredita ter sofrido prejuízo, para promover a reforma, a invalidação, o esclarecimento ou a colmatação de decisão judicial que se impugna (MOREIRA, 1993, p. 193).
Consiste o abuso de direito processual nos atos de má-fé praticados por quem tenha uma faculdade de agir no curso do processo, mas que dela se utilize não para seus fins normais, mas para protelar a solução do litígio ou para desviá-la da correta apreciação judicial, embaraçando, assim, o resultado justo da prestação jurisdicional.
Configurando um direito do cidadão o ato de recorrer a decisões judiciais, interpondo a elas embargos aclaratórios, infere-se a possibilidade do excesso na execução dessa prerrogativa.
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Nesse diapasão, Humberto Theodoro Júnior (2000, p. 113):
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FIDΣS Quando exercida de maneira antiética e com má-fé, caracteriza o famigerado embargo de declaração meramente protelatório, cujo intuito é apenas atrasar o desenrolar processual a fim de se obter vantagens questionáveis durante o trâmite processual.
4 OS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO PROTELATÓRIOS NO CONTEXTO DO NEOCONSTITUCIONALISMO
Na exposição de motivos do Min. Alfredo Buzaid (2006, p. 10) quanto ao Código de Processo Civil de 1973, já se debatia a questão da eticidade no processo:
Posto que o processo civil seja, de sua índole, eminentemente dialético, é reprovável que as partes se sirvam dele, faltando ao dever da verdade, agindo com deslealdade e empregando artifícios fraudulentos; porque tal conduta não se compadece com a dignidade de um instrumento que o Estado põe à disposição dos contendores para atuação do Direito e realização da justiça.
Apesar dessa já embrionária preocupação com os parâmetros morais, quando foi lançado, em 1973, o Código de Processo Civil não mencionava a possibilidade de utilização dos embargos de declaração de maneira protelatória3, não se enxergava – ou pelo menos não se legislou sobre - o uso fraudulento desse tipo de recurso. Essa omissão legislativa se funda na conjuntura político-jurídica da época, pois não havia a sintonia com os valores da eticidade como atualmente. Ainda se vivia sob o regime
de 1988. Em sua redação original4, o Código de Processo Civil sequer elencava como litigante de má-fé os que interpusessem recursos meramente protelatórios, trecho que só foi adicionado pela Lei nº 9.668/98. Em 1994, porém, a Lei nº 8.950 começa a mudar essa conjuntura, revogando todos os dispositivos acerca dos embargos de declaração da legislação de outrora e compilando novos. Dentre as modificações realizadas, inserem-se a extinção da possibilidade de caber esse recurso quando houver dúvida no provimento jurisdicional e a designação de multa 3
Conforme se observa na leitura dos arts. 464 e 465 do diploma em sua redação original. Consoante art. 17 do diploma em sua redação original.
4
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ditatorial, não se tinham erigido os ditames principiológico contidos na Constituição Federal
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FIDΣS específica para o embargante que agir de forma meramente protelatória. Com essa última disposição, o legislador intencionou angariar medidas para obstaculizar a interposição desse tipo de embargo, desestimular sua prática mediante a aplicação de uma sanção pecuniária para os que agirem de má-fé processual. A partir dessa lei, inicia-se uma tentativa de aderir ao Processo a tão necessária eticidade, quanto à prática de interpor embargos de declaração meramente protelatórios. Inaceitável é admitir esse tipo de ação na contemporaneidade, já que se vive na era do neoconstitucionalismo, fenômeno que influencia todas as searas do Direito e que prega a sua reaproximação com a moral e a valorização de categorias éticas no âmbito da práxis jurídica (BARROSO, 2007, p. de internet) Nesse sentido, percebe-se que:
a recuperação dos fundamentos éticos no campo dominado pelo direito não se deu apenas em um ou outro segmento do ordenamento jurídico. Todo o direito contemporâneo foi permeado pelos valores morais, a começar, obviamente, da macroestrutura constitucional. (THEODORO JÚNIOR, 2008, p. de internet)
Da macroestrutura constitucional, esses valores se infiltraram em todos os ramos do Direito, inclusive no Processo, que não mais pode ser tratado como simples instrumento de justiça formal, mas como ampla garantia de justiça material (THEODORO JÚNIOR, 2008, p. de internet). Diante dessa tábua axiológica, impossível se torna admitir prática tão desvirtuada no
Os valores que norteiam o Direito não admitem a manifesta intenção de burlar o sistema para alcançar fins indignos: de ganhar tempo, atrasar o andamento processual, evitar a execução de uma decisão, dentre outros.
5 A INEFICÁCIA DOS MEIOS ATUALMENTE UTILIZADOS PARA COMBATER A PRÁTICA
DE
INTERPOSIÇÃO
DE
EMBARGOS
DECLARATÓRIOS
PROTELATÓRIOS
Observam-se
contemporaneamente,
no
ordenamento
jurídico
pátrio
e
no
entendimento doutrinário e jurisprudencial, dois modos de dissuasão dessa prática: a
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ordenamento jurídico pátrio, como a interposição de embargos aclaratórios protelatórios.
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FIDΣS interposição de multa ao embargante e a ineficácia da interrupção do prazo para interposição de outros recursos. Sobre esta última medida, o ex-ministro do Supremo Tribunal de Justiça, Athos Gusmão Carneiro (2001, DOS EMBARGOS), comenta que, apesar de se ter entendido que a interrupção do prazo recursal pressupõe o conhecimento dos embargos de declaração, esse instituto não pode ser tratado dessa maneira, sob pena de gerar tremenda insegurança jurídica. Isto é, mesmo que os embargos de declaração sejam manifestamente protelatórios, o art. 538 do Código de Processo Civil prevê a multa como sanção, operando-se, portanto, o efeito interruptivo mesmo nessas condições. Esse entendimento se mostra por demais legalista, uma vez que, apesar de não estar expressamente determinado no código, quando manifestamente protelatórios - por estarem eivados de antieticidade e má-fé e por intencionarem se aproveitar de mecanismo processual para fins indignos, qual seja, protelar o andamento do processo -, não se deve executar o efeito interruptivo dos embargos. Se assim se fizesse, estar-se-ia estimulando uma prática condenada pelo ordenamento enquanto sistema. Nesse sentido, os seguintes julgados:
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. ACÓRDÃO. CONTRADIÇÃO E OMISSÃO. REDISCUSSÃO
DO
JULGADO.
CARÁTER
PROTELATÓRIO.
RECONHECIMENTO. IMPOSSIBILIDADE DE EFEITO SUSPENSIVO OU INTERRUPTIVO. Se o acórdão esquadrinhou todas as questões manejadas pelo embargante, de forma que foram devidamente conhecidas, fundamentadas e decididas, inexiste omissão ou contradição e impõe-se a negativa de provimento aos
infringentes nos casos excepcionais admitidos pela jurisprudência e pela doutrina. Os embargos de declaração que visam apenas rediscutir o julgado são manifestamente protelatórios e não suspendem ou interrompem o prazo para interposição de outros recursos.5
Entretanto, a questão ainda não se encontra pacificada, pois é possível encontrar entendimentos semelhantes ao do ex-ministro, como o que se segue:
[...] EMBARGOS DE DECLARAÇÃO - reconhecidos como protelatórios - devida a punição como litigante de má-fé, mas ilegal a retirada do efeito interruptivo do prazo 5
TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL/RO. Embargos de declaração em recurso contra expedição de diploma, protocolo nº 275722009. T1. Relator: Rowilson Teixeira. j. 18/05/2010.
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declaratórios, que não se prestam ao rejulgamento da causa, somente tendo efeitos
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FIDΣS assegurado pelo art. 538 do Código de Processo Civil. Agravo provido para restituir o efeito interruptivo e assim considerar a apelação tempestiva e merecedora de processamento.6
É devido a essa concepção retrógrada, que não condiz com a essência do Direito Processual Civil Constitucional que se faz urgente um consenso quanto à eficácia do efeito interruptivo de Embargos declaratórios meramente protelatórios. Reitera-se, neste trabalho, ante todo o exposto, que ilógica é a concessão desse efeito em casos desse tipo, pois não se encontra em sintonia com a essência do ordenamento pátrio. Conceder a interrupção do prazo para quem age de má-fé corresponde a estimular o indivíduo a reiterar essa prática. Segundo o ilustre Pontes de Miranda (1975, p. 874 citado por BARRETO, 2005, p. 1), os embargos de declaração "afirmam e têm de provar que a sentença, como está, não satisfaz as exigências de prestação jurisdicional, pois não se sabe, ao certo, de que consta". Ora se o provimento está completo e o embargo de declaração configura-se como meramente protelatório, não há fundamento para se conceder o prazo interruptivo, uma vez que essa medida intenta a interrupção de outros recursos até que nova decisão seja pronunciada, posto que a anterior estava defeituosa. (MARINONI; ARENHART, 2010, p. 559). Se a sentença primeira era completa, entende-se que para nenhum fim serve o efeito interruptivo, além do estritamente protelatório. A outra medida adotada pelo ordenamento pátrio para dissuadir a prática de interpor embargos aclaratórios meramente protelatórios consiste na multa específica aplicada ao
Civil. Ora, evidente é a irrisoriedade do valor da multa aplicada se a compararmos com a gravidade do comportamento adotado pelo litigante, que, sem boa fé e ética, se utiliza de mecanismos processuais para procrastinar a resolução do feito e debilitar o andamento processual. É em virtude da pequena expressividade da multa adotada pela legislação processual civil que se vê na mídia e na prática forense a reiteração de comportamentos com esse viés, pois, no geral, é entendido pelos litigantes ser válido pagar um pequeno valor para continuar protelando a resolução de uma causa que, às vezes, tem importância econômica muito maior.
6
TRIBUNAL DE JUSTIÇA/SP. Agravo de instrumento nº 994092690421. T2. Relator: José Luiz Germano. j. 09/02/2010.
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litigante de má fé, como se vê na dicção do art. 538, parágrafo único, do Código Processual
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FIDΣS Esse quadro é expresso pelo seguinte caso, noticiado pela Secretaria de Comunicação Social do Tribunal Superior do Trabalho:
A insistência em interpor recursos infundados, com mera intenção protelatória, levou a Subseção 1 Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1) do Tribunal Superior do Trabalho a aplicar multa de R$ 1,2 mil à empresa Bacabal Transportes Rodoviários Ltda. A penalidade foi imposta após a interposição de quatro embargos de declaração para discussão de um mesmo tema. (...)7
Diante da falta de coercibilidade e eficácia da atual sanção empregada pela legislação brasileira a condutas dessa estirpe, torna-se necessário um tratamento mais severo para os que se utilizam dessa prática com o fito de atrapalhar o andamento processual e consequentemente dificultar a efetivação do direito fundamental à razoável duração do processo.
6 DO TRATAMENTO NECESSÁRIO: A REFORMA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Entende-se haver duas medidas imprescindíveis a serem adotadas a fim de se desestimular a prática da interposição de embargos declaratórios no âmbito processual brasileiro. A primeira é, sem dúvida, consolidar e executar as felizes mudanças propostas pelo Projeto de Lei nº 8046/2010, no sentido de dar uma especial atenção a práticas
pode ser visto nos projetos dos arts. 84, (multa mais intensa contra litigante de má fé) e 354, parágrafo único (o juiz deve indeferir em decisão fundamentada diligências protelatórias), por exemplo. Quanto aos embargos de declaração meramente protelatórios, especificamente, é possível enxergar grandes avanços ao seu combate. Nos §§ 4º e 6º do art. 980 do Projeto de Lei em debate, tem-se:
7
SECRETARIA DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO. Empresa é multada após interpor vários embargos de declaração protelatórios. 2011. Disponível em: < http://tst.jusbrasil.com.br/noticias/2756729/empresa-e-multada-apos-interpor-varios-embargos-de-declaracaoprotelatorios>. Acesso em: 12 abr. 2012.
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manifestamente protelatórias, sancionando-as com mais vigor em varias oportunidades - como
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FIDΣS § 4º Quando manifestamente protelatórios os embargos, o juiz ou o tribunal condenará o embargante a pagar ao embargado multa não excedente a cinco por cento sobre o valor da causa. [...] § 6º A interposição de qualquer outro recurso fica condicionada ao depósito do valor de cada multa, ressalvados os beneficiários da gratuidade de justiça que a recolherão ao final, conforme a lei.
Com a consolidação do Projeto de Lei nº 8046/2010, passará a se aplicar uma multa mais considerável aos litigantes que interponham esse tipo de recurso, aumentando-se o valor iníquo de 1% para a quantia mais razoável de 5%. Ademais, o § 6º consagra a vinculação do depósito do valor da multa para possibilitar a interposição de outros recursos desde o primeiro embargo tido como protelatório, quando, na redação atual do código, se fala em “reiteração de embargos protelatórios” Ou seja, atualmente, o depósito da multa só é obrigatório quando já houve mais de um embargo taxado de procrastinatório. Vê-se a disposição do legislador em tratar com mais rigidez práticas dessa estirpe, a fim de extinguir, ou pelo menos atenuar, sua existência na práxis forense pátria. Entretanto, de nada valerá esse esforço se a outra medida entendida como necessária para consolidar o expurgo dessa prática antiética do nosso cotidiano jurídico não for empregada. Conforme leciona José Afonso da Silva (2009, p. 432), “não basta uma declaração formal de um direito ou de uma garantia individual para que, num passe de magica, tudo se
pelo Projeto de Lei seja, de fato, adotada no Judiciário brasileiro, desde a primeira instância. Os juízes de primeiro grau tem grande parcela de responsabilidade e importância para se efetivar esse combate aos embargos de declaração meramente protelatórios, porque, para desestimular essa prática, é preciso que desde o início do trâmite processual ela seja sancionada, para que a multa tenha o efeito educativo e de advertência a que se propõe. Não se pode relegar essa função defensiva dos princípios e valores do ordenamento para as instâncias superiores, se se quer, de fato, introduzir a ética em todos os âmbitos do Processo e o coadunar com os valores do neoconstitucionalismo. Como felizmente diz o art. 876 do Projeto de Lei nº 8046/2010: “Considera-se conduta atentatória à dignidade da justiça o oferecimento de embargos manifestamente protelatórios.”. Se essa conduta é indigna, não se coaduna com os valores hodiernos que o
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realize como declarado”, por isso, é preciso que a postura atuante e repressiva demonstrada
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FIDΣS ordenamento consagra, e, por isso, não pode ser tolerada. Daí advém a necessidade premente da repressão dessa prática desde a primeira instância judicial, uma vez que não se pode protelar a repressão a condutas antiéticas.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ante o exposto, conclui-se que os embargos de declaração são um tipo de recurso muito utilizado pelos que querem estorvar o andamento processual. Eles acabam por protelar a resolução da lide, visto que a redação do Código de Processo Civil lhe concedeu o efeito de interromper o prazo para interposição de outros recursos. Se não forem observados parâmetros éticos de conduta no seu emprego, os embargos de declaração tornam-se instrumentos meramente procrastinatórios, cujos fins não coadunam com os valores consagrados no ordenamento jurídico pátrio hodierno. Nos dias atuais, o Direito está sintonizado com os preceitos neoconstitucionais, especialmente no que tange à sua reaproximação com a moral e à observância da ética na práxis judicial. Nesse ínterim, é preciso destinar um tratamento mais severo aos que interpõem embargos de declaração meramente protelatórios, posto que essa prática constitui abuso de direito e dificulta a concretização da tão necessária razoável duração do processo, a fim de que se efetive, em tempo hábil, uma boa tutela jurisdicional. Na reforma do Código de Processo Civil, Projeto de Lei nº 8046/2010, já se pode
aumentar o percentual da multa hoje aplicada aos embargantes de má fé para 5% do valor da causa, além de se vincular a interposição de qualquer recurso ao depósito da quantia a ser paga pelo autor do embargo protelatório. Tal mudança já se mostra um avanço no combate a condutas antiéticas na práxis forense. Entretanto, só será possível, de fato, extirpar os embargos de declaração meramente protelatórios do cotidiano jurídico brasileiro se os magistrados, desde a primeira instância, se conscientizarem do dever impreterível que tem em aplicar a multa específica, sendo rigorosos com esse tipo de comportamento eivado de má-fé e abusividade. Sob a égide da Constituição de 1988 e dos princípios neoconstitucionais é inadmissível permissividade quanto a condutas dessa estirpe. Elas só contaminam o trâmite processual com suas mazelas e obstaculizam a efetivação de uma prestação jurisdicional em
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perceber uma sanção mais condizente com a gravidade desse tipo de litigância. Intenciona-se
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FIDΣS tempo razoável, agravando a lentidão judiciária e dificultando a concretização do princípio da celeridade processual.
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PROCRASTINATING DECLARATION EMBARGOES: AN ANALYSIS FROM THE PERSPECTIVE OF THE ETHICS AND THE NEOCONSTITUTIONALISM
ABSTRACT It’s seen, in forensic praxis, the interposition of procrastinating declaration embargoes. This article studies this phenomenon from perspective of bad faith litigation and abuse of right. Infers it has no ethics, hampers the concretization of reasonable duration of process, and doesn’t match neoconstitucionalism values. It reflects about the
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Curso avançado de processo civil. 9. ed. São Paulo: RT, 2002.
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FIDÎŁS importance of treat more severely people that utilize such kind of resource. It suggests changes to be effectuated on the reform of Brazilian Civil Process Code, like the application of more intense fine, and the imperative duty of magistrate, since the first instance, to not be condescending with this kind of practice. Keywords:
Declaration
embargoes.
Procrastination.
Ethics.
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Neoconstitucionalism. Reasonable duration of process.
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FIDΣS Recebido 09 ago. 2012 Aceito 17 out. 2012
A SÚMULA VINCULANTE SOB UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA E SUA EFICÁCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Amanda Rêgo Martins de Souza* Marcel Gomes de Sousa*
RESUMO Trata-se de uma investigação do instituto da súmula vinculante, inicialmente mostrando como se suscitou a prática de vinculação de precedentes na história do direito brasileiro, e abordando, por conseguinte, os sistemas do direito moderno, quais sejam o da civil law e da common law. Em seguida explana conceitualmente a súmula propriamente dita, e uma de suas classificações, a súmula vinculante, inserida através da Emenda Constitucional n.º 45 no ordenamento jurídico brasileiro, tratando de seus fundamentos e aspectos. Em conclusão, apresenta considerações feitas acerca das perspectivas da
instituto. Palavras-chave: Civil Law. Common Law. Efeito Vinculante. Súmula. Súmula vinculante.
1 INTRODUÇÃO
*
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, bolsista do Projeto de extensão Justiça Itinerante da UFRN e estagiária na 7ª vara cível do Tribunal de Justiça de Natal. * Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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súmula vinculante e, também, no tocante às críticas relacionadas a este
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FIDΣS É inevitável que o direito acompanhe a dinamicidade de uma evolução social que clama por uma prestação jurisdicional eficaz. Perante a grande demanda social que exige esta prestação, relativa aos inúmeros processos submetidos à análise do Supremo Tribunal Federal, a reivindicação por um sistema jurídico célere torna-se indispensável. Mostra-se clara a questão de que, após incontáveis mudanças e notáveis reflexões, a adesão ao sistema de aplicação da súmula vinculante, bem como dos precedentes, é absolutamente necessária. Afinal, nada justificaria o enorme tempo gasto com a interposição de recurso extraordinário, uma vez que a tese recorrida já fora devidamente pacificada pelo Supremo Tribunal Federal, responsável por definir, dando a última palavra, a interpretação constitucional. Além disso, faz-se necessário evitar interpretações normativas distintas que terminam por conceder a uns o direito que a outros é negado. O sistema jurídico brasileiro rejeitava muitas vezes a jurisprudência, ao passo que alentava, sobremaneira, a lei. Contudo, visando atribuir maior segurança jurídica aos julgados, adotou-se, através da Emenda Constitucional n.º 03, o efeito vinculante. Este seria o primeiro passo para que fosse instituída a súmula vinculante, o que ocorreu onze anos depois, em 2004, com a aprovação da Emenda Constitucional n.º 45 que estendia o efeito vinculante às súmulas. A Reforma do Judiciário, como se denominou a Emenda Constitucional n.º 45, visava, portanto, evitar sobrecarga de processos e os conflitos de leituras distintas, no tocante a matéria constitucional já resolvida em súmula do Supremo Tribunal Federal. Ademais,
2 ORIGENS JURISPRUDENCIAIS
Objetivando entender o processo que suscitou o início da força vinculante em relação aos precedentes judiciais, faz-se mister o retrocesso no curso histórico do direito brasileiro, o que nos remete às heranças jurídicas ibéricas, mais precisamente as lusitanas. Tomando como ponto de partida o direito lusitano codificado com a promulgação das Ordenações Afonsinas, em 1447, com a qual houve notável unificação do direito de Portugal, decorrente da necessidade de organização que visava evitar as incertezas promovidas pelo caráter disperso da legislação existente, é sabido que o ordenamento jurídico português, nesta época, consubstanciava-se no princípio de que a interpretação incontestável das leis fundamentava-se como direito essencial do Rei.
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trataremos a cerca dos principais aspectos da figura da súmula vinculante.
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FIDΣS Destarte, proferida a sentença pelo monarca, mediante publicação de leis interpretativas ou ao presidir as sessões da Casa de Suplicação (tribunal da corte em que se convertera a antiga primeira mesa da sua Casa de Justiça), esta se tornava precedente judicial com eficácia vinculante para casos análogos. Mais adiante, já em 1521, no contexto de descoberta da Índia e da América, envolto em grande euforia, o então Rei D. Manoel, após muita confusão e com o objetivo de destacar o seu reinado, entendeu ser a legislação o instrumento para efetivar tal vontade, cunhou, assim, com seu nome, o diploma legislativo lusitano. As Ordenações Manuelinas, contudo, limitavam-se a um conteúdo com meras modificações no que diz respeito às ordenações anteriores, e tal como nas Ordenações Afonsinas, na hipótese de lacunas, as quais fossem decorrentes da ausência de fonte jurídica que se pronuncie sobre a questão em análise, ou mesmo da não existência de norma aplicável em matéria do direito romano, deveriam ser dirigidas à decisão do rei. Enquanto isso, embasados no uti possidetis e através dos seus poderes absolutos, na época de colonização do Brasil, os donatários das capitanias produziam com relativa autonomia o direito escrito, seja nas áreas criminais ou civis, e indicavam, ainda, os ouvidores que, por competência própria, eram responsáveis por solucionar litígios assim como os ouvidores gerais, que estavam articulados à coroa metropolitana, circunstância facilitadora da atividade legislativa dos proprietários das capitanias. Dessa forma, ainda que não fossem aplicadas em território nacional as Ordenações, durante sua vigência, observou-se o início da prática que pretendia recorrer ao que se chamava de “assentos da Casa de Suplicação” como fonte de interpretação do direito. Esta
sentido de alguma lei, deveriam as mesmas dúvidas ser expostas ao Regedor da Casa de Suplicação, para que juntamente com os desembargadores fosse decidida a interpretação a ser adotada, terminando tais “assentos” por equiparar-se à força de lei. Remetendo-se, ainda, ao livro V, título LVIII das Ordenações Manuelinas, encontrase a disposição que explica o fato do próprio rei deslocar-se à Suplicação, enquanto que, nas restantes judicaturas, eram os tribunais que se deslocavam ao rei. Define-se, portanto, “o porquê da Supremacia da Casa de Suplicação relativamente aos outros tribunais” (SILVA, 2000, p. 343). É possível inferir, de acordo com a história, que a origem jurisprudencial do direito manifestado na colônia encontra-se nestes assentos, mesmo que fossem apenas retrato da origem pragmática do direito escrito. Sendo as origens jurisprudenciais relacionadas aos
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prática visava à uniformização judicial, assim, na hipótese de dúvidas no que diz respeito ao
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FIDΣS pronunciamentos do monarca, principalmente com o advento da Lei da Boa Razão, que visava fixar a verdadeira inteligência da lei, estes pronunciamentos aprofundaram a sua força vinculativa, passando a dirimir questões de direito muitas vezes a partir de precedentes já aplicados, o que, consequentemente, obrigava o juiz à sua aplicação, que ficavam, inclusive, no contexto das Ordenações Filipinas, a mercê de suspensão caso relutassem à subordinação vinculada. Para parte da doutrina, destarte, “considera-se o instituto dos Assentos da Casa de Suplicação a primeira experiência brasileira com decisões judiciais de efeito vinculante” (SOUZA, 2006, p. 178).
2.1 Tradições romano-germâncias (civil law)
O direito moderno apresenta duas famílias, quais sejam, as de tradição romanogermânica, denominada civil law, e as de tradição anglo-saxônica, ou também, common law. Sendo tema principal desta obra a súmula vinculante, e uma vez que o common law apresenta instituto análogo a este, faz-se necessária breve incursão no tocante à dicotomia das supracitadas famílias do direito moderno, analisando portanto, as funções da jurisprudência e dos precedentes judiciais. Tratando inicialmente da família romano-germânica, sabe-se que esta é responsável por abranger os países que tem os pilares de sua ciência do direito amparados pelo direito romano e suas regras “concebidas como regras de conduta intimamente ligadas a questões de justiça e moral, sendo que muitos elementos deste sistema derivam de fontes diversas do
O direito de origem romano-germânica suscita-se através da empreitada que enfrentaram as universidades do Velho Mundo, quais sejam as dos países latinos ou germânicos, elaborando uma ciência jurídica, embasada nas compilações de Justiniano, adequada a era moderna e de caráter igualitário. Consequentemente,
Devido à colonização intensa promovida pelas nações europeias continentais, principalmente após o período das navegações ultramarinas, o direito de origem romano-germânica conquistou vastos territórios pelo mundo, onde atualmente se aplicam direitos pertencentes ou aparentados com o mesmo. (DAVID, 2002, p. 24)
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direito romano” (DAVID, 2002, p. 15).
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FIDΣS Nos diversos territórios, sob os quais o sistema romano-germânico apresentava influência, iniciado o processo de codificação, a partir do século XIX, permitiu-se atribuir função de notável importância à lei, visto que, através desta, foi exposto o direito conveniente à sociedade moderna, ou seja, o direito que, longe das complicações referentes às compilações Justinianas, deveria ser aplicado através dos tribunais. Analisando-o à concepção de regra de direito, o sistema da civil law tratava-a como uma regra referente à conduta, ou seja, não existia pretensão de utilizá-la a fim de garantir a solução de um caso concreto. Destarte, é fácil depreender o porquê do sistema romanogermânico centrar-se no direito legislado, no qual “o direito origina-se de diplomas legais criados, em geral, pelo Poder Legislativo, constituídos essencialmente por textos de códigos, de leis, decretos”. (COSTA, 2002, p. 09) Miguel Reale (2002, p. 141) aborda, neste contexto, a civil law pelo primado do processo legislativo, com atribuição de valor secundário às demais fontes do direito. Deixa claro que a tradição latina ou continental acentuou-se especialmente após a Revolução Francesa, quando a lei passou a ser considerada a única expressão autêntica da nação, da vontade geral. A primazia da lei a lato sensu, o exagero e exacerbo do elemento legislativo, contudo, são acompanhados de outras importantes fontes do direito. Todos os países do sistema romano- germânico surgem como sendo “países de direito escrito”, nos quais os juristas procuram, antes de tudo, descobrir as regras e soluções do direito, estribando-se nos textos legislativos ou regulamentares emanados do parlamento ou das autoridades governamentais ou administrativas
Ainda que primado do sistema de direito abordado, a lei não afasta a importância de seu processo de interpretação, enaltecendo, por conseguinte, o papel criador do juiz e revelando o poder criador da doutrina, e principalmente da jurisprudência. Dessa forma, a jurisprudência apresenta uma função criadora que se apresenta, quase sempre, encoberta por uma aparência de interpretação da lei, o que a faz abster-se, portanto, de criar regras de direito, visto que esta tarefa é reservada ao legislador. Outrossim, “move-se dentro de quadros estabelecidos pelo legislador, sendo o alcance daquela limitado, aspecto exatamente inverso do que é permitido pela common law” (DAVID, 2002, p. 150).
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(DAVID, 2002, p. 111).
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FIDΣS 2.2 Tradições anglo-saxônicas (common law)
O sistema da common law é, também, uma família de direito que comporta o direito da Inglaterra e os direitos que se modelaram sobre o direito inglês, o qual se configura fundamentalmente em analisar os precedentes judiciais a fim de extrair uma regra de direito. Como expõe Miguel Reale (2002, p. 142), nessa família, “o direito é coordenado e consolidado em precedentes judiciais, isto é, segundo uma série de decisões baseadas em usos e costumes prévios”. Sua origem e desenvolvimento aconteceram na Inglaterra, entre os anos de 1066, quando o direito britânico tornara-se um poder forte e centralizado para toda a Inglaterra devido à conquista normanda, e em 1845, ano em que se iniciou a dinastia Tudor. Segundo Tucci (2004, p. 151), este período “é caracterizado como a época de formação da common law, ou seja, quando se firma um novo sistema jurídico frente aos costumes locais”. Diferentemente do sistema da civil law, relativamente racional e lógico, o sistema da common law foi concebido sem preocupações no tocante à lógica, assim, elaborado pela jurisprudência, sua legal rule distingue-se da regra de direito da família romano-germânica, habitualmente sistematizada pela doutrina ou enunciada pelo legislador, suscitando-se em nível de generalidade bastante inferior ao da regra de direito dessa. Nesse sentido, René David (2002, p. 409) postula que:
A regra de direito inglês é uma regra apta a dar, de forma imediata, a sua solução a um litígio, que nada tem a ver com a legal rule do direito romano-germânico, que é
e casos, sem relação com um litígio particular.
Baseada na doutrina do stare decisis, a obrigação de recorrer às regras estabelecidas pelos juízes, objetivando os precedentes judiciais, é o correlato lógico de um sistema jurisprudencial. A obrigação imposta aos juízes ingleses em recorrer às regras criadas por seus predecessores, no entanto, foi estabelecida somente em meados do século XIX, através da rule of precedent, segundo a qual, “em cada caso o juiz deve aplicar o princípio legal existente, devendo seguir o exemplo ou precedente das decisões anteriores” (STRECK, 1998, p. 94). Os precedentes, contudo, além de se aplicarem somente às questões de direito, mesmo que estejam relacionados aos fatos, devem ser analisados com muito esmero a fim de
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enunciada pelo legislador e apta a dirigir a conduta dos cidadãos, numa generalidade
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FIDΣS concluir a existência de similaridades de fato e de direito, e estabelecer a posição atual da Corte no que diz respeito ao caso anterior. Não devem, destarte, ser aplicados de forma automática. Por fim, quanto à análise do sistema e a vinculação de precedentes, Tucci (2004, p. 157) nos ensina:
Não era o caso julgado em si que irrompia importante, mas, sim, a ratio decidendi, isto é, o princípio de direito contido na sentença. É da ratio que constitui a esssência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto (rule of law), e que vincula os julgamentos futuros inter alia. A submissão ao precedente indica o dever jurídico de conformar-se às rationes dos precedentes. A ratio dicendi, pois encerra uma escolha, uma opção hermenêutica de cunho universal, repercutindo sobre os casos futuros aos quais tenha ele pertinência.
3 SÚMULAS
Originado do latim summula, o termo súmula significa síntese, resumo. No caso do direito, expressa o resumo da jurisprudência. As súmulas consistem em um mecanismo utilizado pelo Supremo Tribunal Federal e pelos Tribunais Superiores a fim de uniformizar decisões de casos diversos, porém similares quanto ao conteúdo, os quais, muitas vezes, chegam aos tribunais e recebem reiteradas e similares decisões oriundas dos juízes. “O direito jurisprudencial não se forma através de uma de continuidade e coerência.” (REALE, 2002, p. 168). Essas súmulas possuem efeito persuasivo, e não de caráter obrigatório, podendo originar-se através de duas situações diversas: na primeira delas, a decisão do juiz de pirmeiro grau é encaminhada por meio de recurso aos graus superiores (Tribunal de Justiça, Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal) onde o acórdão dará origem à súmula. Na segunda situação ocorre a junção de três ou mais acórdãos de diferentes casos em um mesmo tribunal também dando origem à súmula. Tal mecanismo atua de forma otimizadora no sistema jurídico brasileiro, auxiliando na redução do número de recursos que tramitam nos tribunais. A uniformização anteriormente citada, além de aliviar o número de processos e recursos que chegam aos tribunais, facilita as
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ou três sentenças, mas exige uma serie de julgados que guardem, entre si, uma linha essencial
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FIDΣS decisões dos juízes e a atividade dos advogados, que possuem, assim, uma fonte do direito – pacificada nos tribunais e detentora de validade e eficácia jurisprudencial - para auxiliá-los. É de suma importância que casos iguais obtenham decisões iguais, evitando assim, divergências que terminem prejudicando o entendimento do direito, seu exercício e sua legitimidade perante a sociedade. Lenio Streck (1998, p. 43) afirma que a perda de legitimidade do sistema jurídico brasileiro é oriunda do exacerbado número de processos similares existentes nos tribunais e corrobora com a utilização das súmulas, sendo ele mais especifico e fazendo referencia às súmulas vinculantes:
A enorme quantidade de processos versando sobre matéria idêntica no STF e nos Tribunais Superiores, conforme dados estatísticos, gera insatisfação e perda de legitimidade do Poder Judiciário. Diante de tal situação, é bastante razoável a criação da súmula com efeito vinculante.
Observada, portanto, a possibilidade de proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei, enxerga-se na súmula vinculante um instrumento para desafogar o Poder Judiciário através da diminuição da quantidade de processos, e aumentar a celeridade da justiça na resolução de conflitos de interesse, ainda que seja necessária a limitação da liberdade do magistrado.
3.1 Histórico
anos sessenta, pelo até então Ministro do Supremo Tribunal Federal Victor Nunes Leal, que juntamente com outros participantes da então denominada “Comissão de Jurisprudência” implantaram as súmulas, as quais não obtinham nenhum caráter vinculante. Contudo, antes disso, na década de quarenta, o jurista Haroldo Valadão propôs a elaboração de um mecanismo que auxiliasse na uniformização das jurisprudências. Proposta esta que não foi recepcionada pela constituição de 1946. Já nos anos sessenta, Valadão recomendou o projeto “Lei Geral de Aplicação das Normas Jurídicas” cujo objetivo era caracterizar como vinculantes (cogentes) as decisões da Corte Maior quando comparadas às decisões dos demais órgãos da república. Tal iniciativa também não foi aceita, pois fora tida como limitadora do poder dos juízes, retirando destes a liberdade de julgar com fundamento em suas convicções e restringindo a evolução do direito.
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As primeiras ideias acerca das súmulas foram introduzidas no direito brasileiro nos
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FIDΣS Ainda na mesma década, precisamente em 1964, outro nome sugeriu proposta acerca deste tema. Alfredo Buzaid, na época presidente da comissão elaboradora do Novo Código de Processo Civil, recomendou a introdução dos “assentos” que teriam força de lei em todo o país (quando editados pelo Supremo Tribunal Federal) e nos estados dos Tribunais de Justiça que os elaborasse. Estes assentos determinariam o caminho a ser seguido na resolução de casos similares que possuíssem sentenças divergentes entre si. Esta proposta também foi vetada. Logo após, surgiriam as “Súmulas de Jurisprudência Dominante” as quais foram defendidas pelo já mencionado Victor Nunes Leal. Estas foram aceitas e acrescentadas ao ordenamento jurídico brasileiro. Por fim, é valido ressaltar que a emissão de súmulas pelos tribunais - ainda sem caráter vinculante, obrigatório - somente tornou-se prevista em lei na década de setenta, quando o Código de Processo Civil estabeleceu em seu artigo 479: “O julgamento tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal, será objeto de sumula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência”.
4 SÚMULAS VINCULANTES
A organização jurídica brasileira é vinculada a muitos princípios legais. O artigo 4º da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro (anteriormente denominada de Lei de Introdução ao Novo Código Civil Brasileiro) autoriza, quando for omissa a lei, que o juiz
5º do Código Civil lembra que a aplicação da lei deve atender aos fins sociais a que esta se dirige e às exigências do bem comum. Assim, os tribunais se deparam com o complexo dever de definir a relevância que será dada às leis e aos precedentes jurisprudenciais em cada caso concreto. Dessa maneira, buscando encontrar soluções para tal impasse (norma legal positivada versus jurisprudência), os tribunais e órgãos administrativos vêm não apenas aplicando a lei, clara e direta como é encontrada na Constituição e nos demais diplomas, mas também preenchendo as lacunas deixadas por ela através da elaboração e utilização de instrumentos como as súmulas ordinárias e vinculantes. As súmulas vinculantes, diferentemente das súmulas em sentido lato - as quais servem como orientação na solução de casos similares e possuem efeito facultativo - têm
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julgue o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito. O artigo
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FIDΣS cunho obrigatório e efeito vinculante (conforme o nome indica). Bilhalva Teixeira (2008, p. 76) afirma em sua obra “Súmula vinculante: Perigo ou Solução” que:
As súmulas vinculantes podem ser definidas como pronunciamentos jurisdicionais, decorrentes de reiteradas decisões sobre matéria constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, que condicionam os demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, a seguirem a mesma interpretação em suas decisões.
É interessante ressaltar que para haver possibilidade de edição de uma súmula é necessário que o tema abordado no caso concreto possua íntima relação com temas constitucionais e gere divergências interpretativas entre os órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública. Ainda acerca deste tema, interessante colocação é feita por Sergio Shimura (2007, p. 191), o qual considera a Súmula como algo intermediário entre o sistema do Civil Law, onde o direito posto, legislado e positivado é predominante e o do Common Law, cuja ênfase é dada ao direito consuetudinário.
4.1 Origem
Antes de expor como se deu a origem das súmulas vinculantes, é de grande valia que se faça uma diferenciação entre estas e o efeito vinculante. Para Marco Antonio Botto
Súmula Vinculante e Efeito Vinculante não são exatamente a mesma coisa. Súmula é uma proposição sintética, caracterizando o produto de jurisprudência assentada pelo tribunal; como regra é emitida após diversos pronunciamentos da corte, num mesmo sentido, a respeito de certa matéria. O efeito vinculante, tal qual idealizado na Proposta de Emenda à Constituição, é atributo das decisões definitivas de mérito da Suprema Corte, e não da súmula que venha a ser editada com base nessas decisões. Em tese, uma só decisão definitiva de mérito, desde que aprovada por dois terços dos integrantes do Pretório Excelso, pode merecer efeito vinculante.
A súmula vinculante foi prevista e inserida em nosso ordenamento jurídico em 1988 com a implantação da Constituição Federal. Para Odelmir Bilhalva, a súmula teria sido criada para atuar como elo entre as decisões proferidas em uma dimensão concreta e as decisões
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Muscari (1999, p.2):
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FIDΣS proferidas em dimensão abstrata (legal) funcionando como uma passagem do concretoespecífico para o abstrato-geral. Ademais, em 30 de dezembro de 2004, com a Emenda Constitucional nº45, as súmulas proferidas pelo Supremo Tribunal Federal passaram a ter efeito vinculante para os demais órgãos do judiciário brasileiro e da administração pública (direta e indireta) nas esferas federal, estadual e municipal. Esta emenda acrescentou o artigo 103-A a Constituição Federal, o qual passou a trazer o seguinte enunciado em seu caput:
O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
Dessa forma, o Estado, após avocar a si o monopólio sobre a resolução de conflitos, desenvolveu a prestação jurisdicional, sendo possível notar a necessidade desta função ser reformada, inclusive no que diz respeito ao texto constitucional, com o fito de tornar o direito um instrumento dinâmico e que evolui concomitantemente às mudanças sociais, apesar de sofrer inúmeras transformações no curso da história..
4.2 Os aspectos negativos da súmula vinculante e os contra-argumentos
Federal (implementada em nosso ordenamento com a Emenda Constitucional nº 45) pelos demais tribunais de graus inferiores e órgãos da administração pública, gera, desde a sua adoção, complexas e constantes discussões entre vertentes de juristas cujos posicionamentos divergem entre si acerca deste tema. Muitos são os argumentos utilizados por aqueles que recriminam tal prática. A seguir eles serão expostos, sendo, então, apontadas as devidas contra-argumentações. O primeiro argumento utilizado pelos juristas contrários à adoção das súmulas vinculantes tange à suposta lesão à autonomia do magistrado, argumento este que se fundamenta no artigo 2º da Constituição Federal, cujo texto diz: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”
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A obrigatoriedade na utilização de súmula vinculante oriunda do Supremo Tribunal
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FIDΣS Contudo, tal crítica não procede, pois o poder do magistrado não é limitado nem sua independência é ferida. O que ocorre, de fato, é uma diminuição no número de processos desnecessariamente repetidos que chegam ao aparelho judiciário e o superlotam. A independência do juiz permanece, já que há a possibilidade dele discordar da decisão proferida pela súmula caso fundamente o seu posicionamento de maneira inovadora e convincente, podendo provocar sua revogação pelo Supremo Tribunal Federal. Uma segunda crítica faz referência à suposta lesão ao principio constitucional da separação dos poderes, localizado no artigo 60, § 4º, III, da Constituição Federal: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: a separação dos poderes”. Lênio Streck (1998, p. 267) corrobora com este posicionamento: Ninguém ignora que – e isto já ocorre no sistema em vigor – ao editarem uma Súmula, o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça (ou o Tribunal Superior do Trabalho) passam a ter o poder maior que o do Poder Legislativo. Conseqüentemente, com o poder constitucional de vincular o efeito das Súmulas e até mesmo das decisões de mérito do Supremo Tribunal Federal, o Poder Judiciário, por suas cúpulas, passará a legislar, o que, à evidencia, quebrará a harmonia e a independência que deve haver entre os Poderes da República.
Entretanto, não há, de fato, infração à cláusula pétrea anteriormente citada, pois, na atualidade, os três poderes (Judiciário, Legislativo e Executivo) se complementam buscando o bem comum. A súmula vinculante não fere os direitos e garantias individuais nem a separação dos poderes porque não é uma lei, com ela não concorre nem tão pouco extingue ou altera
atipicamente. Ao editar uma súmula vinculante, o poder judiciário não está realizando tarefa do legislador (criação de leis), mas garantindo seu principal papel: manter a paz social e a segurança jurídica. A terceira crítica mantém relação com o direito de acesso à justiça - resguardado no artigo 5º, XXXV, Constituição Federal: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”– ao afirmar que tal direito fundamental é ferido. Discordando disto, Ada Pellegrini Grinover (1999, p. 87) afirma: “o acesso à justiça não se identifica, pois, com a mera admissão ao processo, ou possibilidade de ingresso em juízo (...)”. As súmulas não impedem que o cidadão ingresse na justiça.
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algum direito ou dever; é uma norma, ilustrando um momento onde o poder judiciário atua
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FIDΣS Caso sinta-se injustiçado, poderá ajuizar uma ação na qual exponha novos e convincentes argumentos defensores de seu posicionamento. Assim, nem o juiz ficará desinformado dos novos casos nem o acesso à justiça será vetado. As súmulas vinculantes apenas atuam inibindo e minimizando o número de ações ajuizadas repetitivamente, as quais não expressam a garantia constitucional prevista no artigo 5º e apenas atrapalham o trâmite processual. Continuando, outro ponto trazido à baila pelos juristas desfavoráveis às súmulas tange ao princípio constitucional de motivação das decisões judiciais. Para eles, todas as decisões posteriores à adoção de uma súmula vinculante serão ações meramente mecânicas, nas quais o juiz desconsidera, por exemplo, as provas do processo, ao fundamentar sua decisão exclusivamente na súmula anteriormente editada. Diferentemente disto, o que ocorre é que o juiz não apenas segue a súmula de forma automática, mas busca fundamentar a sua aplicação no caso concreto, expondo assim, que o objeto do caso se enquadra na sua situação abstrata. Assim, para verificar a adequação do caso concreto à súmula, ele necessita analisar detalhadamente o caso a fim de encaixá-lo nesse instituto. Por fim, a quinta critica é fundamentada no artigo 5º, LV, Constituição Federal, cujo enunciado é: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Para os juristas contrários à adoção da súmula vinculante, esta impossibilita a dupla jurisdição já que a interposição de um recurso é inútil, tendo a decisão final do tribunal resultado já conhecido.
disposição sumular foi utilizada erroneamente naquele caso concreto, por ser este substancialmente distinto daquele que deu origem à súmula. É possível também alterar a orientação sumulada, desde que argumentos inovadores e bem fundamentados sejam apresentados ao Supremo Tribunal Federal.
5 SÚMULA VINCULANTE Nº11: UMA POLÊMICA CRIAÇÃO
Em 7 de agosto de 2008, o Supremo Tribunal Federal anulou a condenação por Tribunal do Júri de um pedreiro que permanecera algemado durante todo o seu julgamento. Para a Suprema Corte a utilização de algemas naquela circunstância foi indevida.
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Apesar disso, é possível, sim, que recurso seja interposto. É necessário mostrar que a
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FIDΣS Diante disso, o Supremo Tribunal Federal decidiu esclarecer o seu posicionamento acerca da utilização das algemas. Cinco dias após o fato – em 13 de agosto de 2008 – foi aprovada a 11ª súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal, cujo enunciado diz:
Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.
Com esta súmula ficou claro o posicionamento do Supremo Tribunal Federal no que tange ao uso de algemas: estas devem ser a exceção e não a regra. A edição da súmula nº11 provocou desde o momento de sua aprovação muita polêmica devido a uma série de fatores. O primeiro deles está relacionado com o fato da referida súmula não ter obedecido aos requisitos presentes no artigo 103-A da Constituição Federal1, já que o tema abordado não passou por repetidas decisões de âmbito constitucional que envolvessem algemas, não sofreu controvérsias entre os órgãos do judiciário ou entre estes e a administração pública - podendo gerar certa insegurança jurídica – e não foi objeto de repetidas decisões naquela casa ou em graus inferiores. Além de não ter seguido os requisitos anteriormente citados, é possível enxergar que ela possui um público certo (o delinquente de colarinho branco) e age como um instrumento na proteção de uma elite criminosa, que vem sendo atingida pela lei e pelo exemplar trabalho da Policia Federal, por exemplo, nos últimos anos.
resistência, perigo à integridade física própria ou alheia e risco de fuga. Nenhum criminoso de elite - “alto escalão” - com poderio financeiro e influência política precisa fugir ou resistir à prisão. Ele simplesmente contrata os melhores advogados e estes conseguem colocá-los em liberdade quantas vezes forem necessárias. Parece absurdo considerar o uso de algemas como exceção à regra, já que algemar o preso, independente de seu nível social, raça ou sexo, foi tido sempre como o certo, o
1
“O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.”
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Afinal, as condições, já ditas anteriormente, para o uso de algemas são bem claras:
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FIDΣS coerente, a regra, e foi esse o ponto de vista defendido pela Polícia Federal. Visão esta esmagada pela edição da referida súmula.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Assim como em muitos temas do universo jurídico – aborto, maioridade penal, relativização da supremacia do interesse publico – em torno da súmula vinculante é também criada uma dicotomia. De um lado encontra-se a corrente doutrinária contrária à existência deste instrumento. Para esta vertente a súmula vinculante fere diversos princípios constitucionais como o direito ao acesso à justiça2, a separação dos poderes3 ou ainda o principio que resguarda a dupla jurisdição4, além de limitar a atuação dos juízes, retirando destes sua autonomia. Em contrapartida, há uma corrente a qual defende a criação e o funcionamento do instituto da súmula vinculante. Para ela, tal instrumento não lesiona os princípios constitucionais. Na realidade, súmula vinculante controla uma verdadeira “babel jurídica”, onde cada juiz entende e, principalmente, julga de maneira distinta e arbitrária casos similares cujos desfechos deveriam ser parecidos. Além disso, gera celeridade processual (em um momento no qual o poder judiciário encontra-se em crise devido ao exacerbado número de recursos que chegam continuamente e de Haya, Ruy Barbosa, em sua obra “Oração aos moços”: “Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta.”.
REFERÊNCIAS
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Art. 5º, XXXV, CF/88: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Art. 60, §4º, III, CF/88: não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: a separação dos poderes. 4 Art. 5º, LV, CF/88: aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. 3
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de maneira repetitiva) a qual deve ser inerente à justiça, conforme asseverou o eterno Águia
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THE BINDING SUMMULA IN A HISTORICAL PERSPECTIVE AND ITS EFFECTIVENESS IN BRAZILIAN JURIDICAL ORDAINMENT
ABSTRACT
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STRECK, Lênio Luiz. Súmulas no direito brasileiro: eficácia, poder e função: a
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FIDÎŁS This article is an investigation on the binding summula, treating initially the development of the binding precedent in the history of Brazilian law, and broaching, then, the systems of modern law, namely civil law and common law. Afterwards, it explains the concept of summula and one of its classifications, the binding summula, inserted by Constitutional Amendment nÂş. 45 in the Brazilian juridical system, attending to its fundaments and aspects. Finally, it presents considerations about the prospects of the binding summula and also, critiques related to this institute. Keywords: Civil Law. Common Law. Binding effect. Summula.
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Binding Summula.
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FIDΣS Recebido 01 set. 2012 Aceito 16 out. 2012
O PLURALISMO JURÍDICO NAS COMUNIDADES DE ESCRITORES DE FANFICTIONS Eduardo Antonio Martins de Oliveira*
RESUMO O presente artigo objetiva desenvolver uma nova visão acerca da concepção de pluralismo jurídico, adicionando o fenômeno das redes sociais virtuais através de exemplo. A realidade das comunidades na Internet favorece o estudo acerca do tema dentro da Sociologia Jurídica, pois apresenta normas similares às da regulação jurídica e possuem as características de um grupo social comumente caracterizado como real. A realidade dos escritores de fanfictions, histórias baseadas em material protegido por direito autoral, organizados em fóruns fechados na Rede, permite avaliar a dinâmica evolutiva dos grupos sociais no contexto da pluralidade de sistemas jurídicos sob uma mesma jurisdição.
virtual. “Se é proibido escrever nos monumentos, também deveria haver uma lei que proibisse escrever sobre Shakespeare e Camões”. (Mário Quintana)
1 INTRODUÇÃO
*
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, membro do Projeto de Pesquisas Jurídicas (PPJ) e estagiário da Procuradoria Jurídica da UFRN.Lattes:<http://lattes.cnpq.br/4191660197124096>.
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Palavras-chave: Pluralismo jurídico. Redes sociais. Comunidade
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FIDΣS O debate acerca do reconhecimento dos institutos que denotam a presença de um pluralismo jurídico na sociedade já é discussão antiga, não encontrando supedâneo nos ideais positivistas centralizadores da ideia de Direito na concepção monista de Poder de regulação legítimo. Ainda na contemporaneidade, não se dá muito espaço à multiplicidade de ordenamentos que se identificam na observação atenta das dinâmicas sociais, visto que o próprio ideal de segurança jurídica seria posto em perigo com a prática de reconhecimento de regras e princípios vinculantes conflituosos sob a égide de uma mesma jurisdição. Essa concepção de pluralismo jurídico vai além do caráter de neutralidade judicial de algumas organizações, que, mesmo possuindo uma dinâmica de interações humanas bem delimitadas e diferenciadas da organização estritamente normativa do ordenamento jurídico pátrio, não se chocam obrigatoriamente com a norma positivada. Há, com efeito, casos em que a organização social diversificada trilha rumos próprios, muitas vezes contrários à lei. Tais organizações passam a oferecer normas e regulamentação que vão de encontro aos códigos oficiais em diversos níveis e submetem seus membros a esse regime jurídico diferenciado. É possível, através da análise de comunidades virtuais construídas graças à instrumentalidade da rede mundial de computadores – Internet –, identificar o enquadramento da regulação social em meio eletrônico como mais um caso que demonstra discrepâncias normativas na sociedade contemporânea. Exemplos de fóruns fechados de escritores de ficção não-original, como o caso do objeto a ser estudado, possibilitam a compreensão do fenômeno do pluralismo jurídico na Internet. Mediante regras próprias, na medida em que é conveniente à administração dessas
indivíduos novas regras de convivência, que vão além de um mero contrato entre partes à luz do Direito Civil. O modo pelo qual são criados laços de interação entre os membros da comunidade virtual permite entender a conformação de um novo modelo jurídico, que em alguns pontos desobedece à lei e em outros a segue. Tal característica é típica de um modelo subsidiário de ligação social entre indivíduos com interesses em comum. Organizações como essa, que surgem pela associação livre entre pessoas com o mesmo objetivo, anunciam a existência de uma necessidade: a aferição de juridicidade das ações do grupo quando entram em conflito com o ordenamento jurídico considerado legítimo. Através de uma análise antropossociológica das condições preexistentes de submissão do comportamento de agrupamentos humanos diante de regras e princípios
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comunidades online divergir da normatividade brasileira oficial, estabelecem-se entre os
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FIDΣS contrastantes com o ordenamento oficial de uma comunidade em esfera mais ampla, faz-se possível analisar o verdadeiro grau de lesividade das ações efetuadas em um grupo plural – e, em maior abstração, inquirir acerca da própria existência de ofensa aos dispositivos socialmente aceitos. Nesse cotejo, figuram as ofensas ao direito à liberdade e aos Princípios da Livre Associação, da Anterioridade e da Legalidade, por exemplo.
2 O PLURALISMO JURÍDICO E AS REDES SOCIAIS
Ao apresentar resultados de suas pesquisas na área da Sociologia Jurídica, Boaventura de Sousa Santos (1999) define espaços estruturais de pluralismo jurídico em diferentes critérios – fazendo diferença, por exemplo, entre os ambientes doméstico, de produção, de mercado e de comunidade. Esta última está definida como um agrupamento de relações socais que se desenvolvem através de uma identificação coletiva, que vincula indivíduos a um território, que pode ser tanto físico quanto simbólico. Esse território simbólico ao qual o autor se refere denota a presença de um liame subjetivo entre os indivíduos, que se associam entre si através de uma característica comum presente neles. Um exemplo utilizado por estudiosos do Direito e da Teoria do Estado é o do instituto do Cristianismo como uma concepção de comunidade religiosa esparsa territorialmente, porém unida ideologicamente (ALTAVILA, 2001, p. 23). Da mesma forma acontece com a sociedade desenvolvida através da Internet – ou Rede Mundial de Computadores –, principalmente no que Recuero (2011, p. 94) chama de
de interesse, inclusive, é desenvolvida através de gostos e objetivos comuns que se podem observar em quaisquer áreas do comportamento e da cultura da humanidade. Os indivíduos que se apropriam do instrumento eletrônico para favorecer sua interação apenas transportam suas intenções e relações comunicativas a um novo meio, que afasta fisicamente os indivíduos, mas os mantém em comunicação frequente e quase instantânea.
2.1 As comunidades eletrônicas e a convivência online
No aspecto sociológico da evolução dos agrupamentos humanos, as comunidades da Internet inovaram a relação entre o homem e seus pares através da nova plataforma que se
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“redes sociais emergentes”. Nelas, a interação se faz similarmente a qualquer outra; a ligação
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FIDΣS inaugurou com seu advento, mas mantiveram características importantes que são encontradas nas redes sociais tradicionais, conhecidas por possibilitarem contato físico entre os indivíduos e por apresentarem o meio aparentemente mais seguro de interação entre as pessoas. Desse modo, é possível estender o longo estudo das redes sociais, realizado massivamente a partir da segunda metade do século XX – quando ainda não se pensava nas possibilidades e dimensões que o relacionamento virtual poderia tomar – , também, às redes online de relacionamento social (RECUERO, 2011). Inclusive em seu aspecto jurídico, observa-se uma tendência de mimetizar a realidade normativa oficial, recriando aspectos e mantendo outros nessa nova conformação regulamentada por particulares. O resultado dessa experiência, que pode diferir amplamente de caso para caso, começa a expor à doutrina informações novas e relevantes para a crescente tentativa de compreensão das dinâmicas de grupo pelo viés jurídico.
2.2 A ilegalidade na Internet
A despeito da tentativa de regulação do ambiente virtual e das consequências disso para a já perseguida manutenção da liberdade de informação na Internet, cresce com cada vez mais força a mobilização jurídica para normatização desse território até então conhecido por favorecer o cometimento de diversas ilicitudes – inclusive penais – não tipificadas taxativamente nas leis, portanto não passíveis de punição severa em alguns casos. Afora a grande relevância da persecução de tratamento mais rígido às ilicitudes relativas ao Direito Penal, discute-se também a condição das infrações civis que possuem
discutido, inclusive, no processo de aprovação de diversas leis e tratados de Direito Internacional, é o dos direitos autorais, atingidos através da circulação não onerosa de material protegido por leis de propriedade intelectual pelo mundo1 Não obstante o repúdio popular em relação à votação de dois projetos de lei norteamericanos que versam sobre o tema, que acabou influenciando no adiamento indefinido de sua apreciação, a regulação de transgressões civis e penais na seara cibernética continua em
1
CARVALHO, Caio. ACTA: a Lei que promete ser ainda mais severa que o SOPA. Olhar Digital, São Paulo, 30 jan. 2012. Disponível em: <http://olhardigital.uol.com.br/produtos/digital_news/noticias/voce-sabe-o-que-eo-acta-lei-garante-ser-mais-severa-que-o-sopa>. Acesso em: 20 jun. 2012.
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como facilitador o uso da Internet. O principal exemplo que se tem atualmente, bastante
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FIDΣS curso no Brasil2. No primeiro semestre de 2012, a Câmara dos Deputados deu prosseguimento à votação de dois Projetos de Lei concernentes à regulação de práticas ilícitas de difusão, aquisição e reprodução de informações não autorizadas em meio digital3. A proteção de direitos autorais na produção de novas obras com uso indevido de propriedade intelectual alheia não é, contudo, estranha ao ordenamento jurídico brasileiro. A legislação brasileira prevê, através da Lei nº. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que a prática conhecida por plágio afeta quaisquer materiais em circulação, incluindo trechos inéditos de produção intelectual, que se apropriarem indevidamente de obra protegida e utilizada ilegitimamente. Nesse ínterim, depreende-se que os esforços legislativos em judicializar as interações humanas de conexão virtual não caminham indiferentes à crescente relevância desse meio de comunicação na sociedade contemporânea, e nas diversas possibilidades que ele oferece ao oportunizar recursos variados de circulação de informações. O presente contexto que envolve o mundo virtual, pelo ponto de vista sociológico, ameaça a sensação de controle que o Direito proporciona à sociedade, haja vista que, para os indivíduos intimidados pela nova realidade, não prevê em seus diplomas normativos certas composições carentes de urgente regulação.
3 AS COMUNIDADES DE FANFICTIONS E SUA SIMILARIDADE COM OUTRAS ORGANIZAÇÕES JURÍDICAS
Segundo a pesquisadora Maria Lúcia Bandeira Vargas, a definição de fanfiction gira
uma história fictícia, derivada de um trabalho ficcional preexistente, escrita por um fã daquele original” (2005, p. 21). Em outras palavras, é uma extensão não autorizada da história oficial que se conta através de um produto midiático protegido por direitos autorais. Outros autores também incluem ao conceito de fanfictions a veiculação de histórias utilizando pessoas reais como personagens (NORMANDO4, 2012; SANTOS, 2011). 2
LANDIM, Wikerson. Conheça a Lei Azeredo, o SOPA brasileiro. Tecmundo, São Paulo, 24 jan. 2012. Disponível em: <http://www.tecmundo.com.br/ciencia/18357-conheca-a-lei-azeredo-o-sopa-brasileiro.htm>. Acesso em: 20 jun. 2012. 3 COMISSÃO APROVA VERSÃO ‘LIGHT’ DA ‘LEI AZEREDO’. Olhar Digital, São Paulo, 25 maio 2012. Disponível em: <http://olhardigital.uol.com.br/negocios/digital_news/noticias/comissao-aprova-versao-light-dalei-azeredo>. Acesso em: 20 jun. 2012. 4 NORMANDO, Leilane. Escritores de Fanfiction recriam obras de ficção. Trilha Cultural, Brasília, 16 mar. 2012. Disponível em: <http://agenciatrilhacultural.com/2012/03/16/escritores-de-fanfiction-recriam-obras-deficcao/>. Acesso em: 20 jun. 2012.
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em torno do significado inerente à sua tradução (do inglês, “ficção de fã”), a qual “designa
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FIDΣS Desse ponto, surgem problemas de interpretação através do questionamento da possibilidade de se discutir a juridicidade, também, da afronta à imagem do indivíduo. Neste caso, já não se fala em ofensa em direito autoral, mas no que o Código Civil brasileiro estatui, em seu art. 20, como “divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa”. Percebe-se, portanto, que tais aspectos viriam exatamente de encontro à investida das jurisdições por todo o mundo na tentativa de se coibir quaisquer práticas de ofensa a esses direitos da personalidade. Em contramão a isso, também, estariam as comunidades virtuais que, de alguma forma, compactuam com a proliferação de tais condutas, de modo que, uma vez abarcadas à positivação do ordenamento jurídico, estariam suscetíveis às consequências legais ocasionadas pelo encorajamento ou prática das referidas ilicitudes. Entretanto, há, na Internet, redes sociais construídas exclusivamente por grupos que possuem um interesse comum na leitura e produção desse tipo de histórias, comumente conhecidas também como fanfics. Há diversos exemplos, tanto de âmbito internacional como nacional, de comunidades que se organizaram distintamente com vistas ao mesmo objetivo de cooperação entre os indivíduos leitores e escritores de fanfictions (fic readers e fic writers, respectivamente) – a exemplo das páginas FanFiction.Net5 (p. de internet) e Nyah! Fanfiction6 (p. de internet). A grande parte das redes nesse sentido, no entanto, é caracterizada pelo que Recuero (2011) conhece como redes de menor densidade, por serem abertas e estarem muito mais ligadas à criação de um perfil individual para o membro associado do que à cooperação e interação que reflita na relação entre indivíduos um caráter de proximidade. informações com maior proximidade – como no caso específico que se estudará em seguida. O fórum de escritores, referido no presente artigo pela sigla NFF, é um exemplo de comunidade fechada com regras e hierarquia organizacional próprias, coadunando em vários pontos com a interpretação sistemática do Direito com finalidade de pacificação social e irrelevância de ofensas pouco significantes ao bem jurídico.
3.1 O fórum NFF e sua finalidade
5 6
FANFICTION.NET. Disponível em: <http://www.fanfiction.net> Acesso em: 21 jun. 2012. NYAH! FANFICTION. Disponível em: <https://fanfiction.com.br > Acesso em: 21 jun. 2012.
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Há, no entanto, fóruns fechados para visitação anônima, que privilegiam a troca de
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FIDΣS Tendo seu surgimento datado de 22 de junho de 2009, a comunidade virtual NFF surgiu com o intuito de reunir fanfictions em português e possibilitar a interação maior dos escritores com os leitores dessa prática literária, de modo a favorecer o crescimento da produção e da qualidade das obras ficcionais no fórum7. Essa ideia de cooperação é bastante desenvolvida nas ideias de VARGAS (2005, p. 21), ao definir que:
Os autores de fanfiction dedicam-se a escrevê-las em virtude de terem desenvolvido laços afetivos tão fortes com o original, que não lhes basta consumir o material que lhes é disponibilizado, passando a haver a necessidade de interagir, de interferir naquele universo ficcional, de deixar a sua marca de autoria.
O fórum possui, ainda, espaço para a publicação de histórias originais, em que não se enquadra o fator “ilicitude” na produção literária. A prática conta pontos positivos para a compreensão da verdadeira finalidade por trás da organização de uma comunidade virtual como essa: a inter-relação entre escritores como forma de aprimoramento das técnicas de escrita e do compartilhamento de preferências midiáticas de forma gratuita, como aduz NÚÑEZ (2006, p. 63-76).
3.2 Aspectos de sociologia jurídica
No ensejo de se regular eventuais conflitos que possam surgir na interação entre os membros do fórum NFF, os idealizadores da página elaboraram regras pertinentes à boa
e abordagens. Além dos regulamentos específicos para eventos, campeonatos e outras competições culturais, a comunidade conta com normas técnicas para submissão de estórias, regras procedimentais para validação de novos membros e mandamentos éticos para escritores e leitores. O tópico intitulado “Regras básicas do fórum” trata de regulamentar diversas dimensões da participação dos indivíduos no processo de construção do conteúdo no sítio eletrônico: regras para criação de subcategorias na comunidade, proibições e permissões de postagem de conteúdo, regras para normatização de textos e imagens e uma relação de penalidades apresentadas juntamente a suas respectivas punições.
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NEED FOR FIC. Disponível em: <http://www.needforfic.net> Acesso em: 20 jun. 2012.
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convivência entre seus membros, estipulando uma série de normas gerais com variados temas
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FIDΣS Esse último tópico, que vai das cláusulas 4 a 6, e respectivos subitens, possui especial tratamento na resolução de conflitos no fórum, trabalhando em uma função análoga ao poder exercido pelo Direito Penal no ordenamento pátrio. O descumprimento de cada proibição estatuída no regulamento implica uma punição diferente, que vai da inserção de um “aviso” no perfil do usuário infrator até o banimento de sua conta, buscando-se assim a impossibilidade de que ele volte a participar daquela comunidade (NEED FOR FIC, p. de internet). As regras, juridicamente falando, funcionam como um contrato de adesão, em que o usuário, ao concordar com as normas estabelecidas no tópico de regulamento, inscreve-se na comunidade e aceita arcar com as consequências avindas da transgressão de suas regras. Outra similaridade com o processo legítimo de produção normativa é a presença de regulamentos específicos, funcionando como leis ordinárias que especializam o que está disposto no regulamento geral de participação do fórum (BULOS, 2011, p. 1138-1198). Esse debate, no entanto, se faz à luz dos conceitos de nulidade e anulabilidade do contrato por vício no objeto, pensamento esse que é conduzido similarmente pela doutrina (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 527-528). Ao se tratar de um contrato que possui como interesse – entendido como Recuero como o “Capital Social” (2011, p. 44) – a subversão dos direitos personalíssimos através da divulgação de material não autorizado, mostra-se frágil a legitimidade das exigências feitas pelo contrato à luz do direito tido como oficial. É esse tipo de conflito que se entende como fonte dos estudos acerca do pluralismo jurídico. Em entrevista à administradora do fórum, aqui referida pelo pseudônimo de Leds, ela defende que o fórum trabalha com “um material não comercializado, que é escrito apenas para
prática de produção de fanfictions. De acordo com Araújo (citado por NORMANDO9, 2012, p. de internet), “não há violação de propriedade intelectual se não tiver comercialização, sobretudo se o escritor acrescentar nota explicativa que credita a obra ao verdadeiro autor”. Santos (2011) também trabalha o conceito, conhecido pela expressão em inglês disclaimer. Não se pode dizer, no entanto, que a prática possui eficácia na garantia de direitos aos fic writers – por definição, escritores de ficção, em linguagem difundida pelo grupo de usuários de tais fóruns (VARGAS, 2005). Com efeito, estes apenas declaram que não 8
LEDS. Need For Fic. Internet, 25 jun. 2012. Entrevista a Eduardo Antonio Martins de Oliveira. NORMANDO, Leilane. Escritores de Fanfiction recriam obras de ficção. Trilha Cultural, Brasília, 16 mar. 2012. Disponível em: <http://agenciatrilhacultural.com/2012/03/16/escritores-de-fanfiction-recriam-obras-deficcao/>. Acesso em: 20 jun. 2012. 9
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entretenimento”8. Nesse mesmo sentido, outros pensadores defendem a não-lesividade da
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FIDΣS possuem intuito de lucro ou qualquer espécie de benefício financeiro, mas não ficam livres de perderem suas publicações na página eletrônica. Grandes depósitos virtuais de fanfictions, conhecidos internacionalmente, já acataram a solicitações de retirada de material, devido a determinações legais ou por requerimento do próprio detentor de direitos sobre algum material de mídia10. A dificuldade na aferição de ilegalidade do material, no caso de fóruns fechados como o NFF, reside na impossibilidade de comprovação sem a violação das informações privadas dos usuários dentro do ambiente da Internet. A irregularidade da situação do supracitado fórum relembra o exemplo da comunidade real estudada por Boaventura de Sousa Santos (1988, p. 9-17), chamada em seus trabalhos de Pasárgada. O grupo de pessoas sob o comando de uma liderança paragovernamental, que regulava conflitos com base em um mínimo ético e regras próprias, preferia se manter afastado da fiscalização policial tendo em vista seu caráter irregular, de modo a manter em paz suas relações sociais da forma acordada entre o próprio grupo. Segundo Santos (1988, p. 14):
O direito de Pasárgada é um direito paralelo não oficial, cobrindo uma interacção jurídica muito intensa à margem do sistema jurídico estatal (o direito do asfalto, como lhe chamamos moradores das favelas, por ser o direito que vigora apenas nas zonas urbanizadas e, portanto, com pavimentos asfaltados). Obviamente, o direito de Pasárgada é apenas válido no seio da comunidade e a sua estrutura normativa assenta na inversão da norma básica (grundnorm) da propriedade, através da qual o estatuto jurídico da terra de Pasárgada é consequentemente invertido: a ocupação
(segundo o direito de Pasárgada).
Abstrai-se, do excerto supra, outra correspondência de características entre a composição dos agrupamentos plurais reais e os virtuais: a reunião de indivíduos em torno de um interesse comum, que é geralmente tratado de modo diverso das disposições normativas vigentes. É possível visualizar a necessidade sentida pelos indivíduos participantes de tais comunidades como reflexo da própria contrariedade ao conceito tradicional, por exemplo, de propriedade imobiliária e direito autoral.
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NORMANDO, Leilane. Escritores de Fanfiction recriam obras de ficção. Trilha Cultural, Brasília, 16 mar. 2012. Disponível em: <http://agenciatrilhacultural.com/2012/03/16/escritores-de-fanfiction-recriam-obras-deficcao/>. Acesso em: 20 jun. 2012.
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ilegal (segundo o direito do asfalto) transforma-se em posse e propriedade legais
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FIDΣS Na situação tratada neste trabalho, o fórum também possui uma hierarquia de funções bem delimitada e toda uma organização política, que proporciona ao grupo uma condição bastante similar a uma sociedade complexa de pequeno porte. Em três anos de existência, o fórum soma mais de mil usuários ativos, e já passou por mudanças de liderança em mais de uma ocasião11. Não raro, a solução de conflitos se dá através de decisões que visem à participação dos usuários interessados, com vistas a um ideal de democracia. Segundo a entrevistada:
Procuramos sempre ouvir os usuários para tomarmos uma decisão, mas existe conflito eventualmente. Procuramos também ser rígidos em relação às regras, para não haver confusão e virar baderna. Como em qualquer convívio em sociedade (seja virtual ou real), existem erros, acertos, brigas, conciliações, etc., de ambas as partes. A Administração comete erros, os usuários cometem erros. Mas temos um balanço positivo, acredito eu. Entre trancos e barrancos, tocamos o fórum com muito esforço e eu trato essa dinâmica com muita seriedade, como se fosse uma empresa virtual 12.
Não se pode ignorar, visto isso, o ideal tácito de negação a determinadas normas, consideradas, de algum modo, desarrazoadas pelo grupo de pessoas que se une em torno de uma comunidade que, no seu seio, permite-se a prática tendo como base uma licitude autoafirmada. A luta pela desjudicialização dos referidos atos não está, inobstante, apenas nas ações presumidas desses agentes: encontra-se também nos estudos libertários e nas novas visões científicas que se acumulam na tentativa de reestruturar conceitos e atribuir novas
(PADRÃO, 2007, p. 1-13).
3.3 Princípios jurídicos
No Brasil, os princípios jurídicos consagrados pela lei, doutrina e jurisprudência possuem papel importante no Direito quotidiano – pois vincula as relações entre a norma e o caso concreto (BONAVIDES, 2006). No fórum NFF, observa-se a tentativa de se aplicar tais princípios na dinâmica da comunidade virtual:
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NEED FOR FIC. Disponível em: <http://www.needforfic.net> Acesso dia: 20 jun. 2012. LEDS. Need For Fic. Internet, 25 jun. 2012. Entrevista a Eduardo Antonio Martins de Oliveira.
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características à cultura de ficções escritas por fãs de material da Indústria Cultural
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FIDΣS Acrescentamos as regras quando percebemos novos problemas não previstos anteriormente. Mas os efeitos das novas regras são geralmente ex-nunc (sem efeitos retroativos). Seguimos as regras não só do fórum, mas também da lei penal brasileira. O que não estiver previsto como punição no fórum, mas estiver previsto na lei penal, aplicamos a última sem o menor problema. Não é porque é um fórum de internet que não se aplica a lei brasileira. [...] houve um caso de invasão de privacidade, que um usuário invadiu a conta privativa da administradora para ler suas mensagens pessoais. Esse usuário foi banido do fórum, mas ainda não foi punido pela legislação brasileira. Denunciei o crime cibernético no site da polícia, mas nunca me retornaram13.
Experimenta-se, na ocasião, a aplicação de Princípios como o da Legalidade e da Anterioridade. Reforça-se, portanto, que, apesar do aparente caráter ilícito do objetivo principal da comunidade, não se pode negar a tentativa de adequação das regras a valores internalizados por seus membros, que nem sempre divergem da norma positivada. Não há que se dizer, portanto, na irrelevância da consideração dos efeitos legítimos das relações dentro do fórum e fora dele, através do estabelecimento de regras nos “casos concretos”.
3.4 Multiplexidade e Competição
Ainda no estudo das redes sociais, Recuero (2011) desenvolve dois importantes conceitos, de aplicação pertinente ao caso do fórum em questão: mutiplexidade e competição. Com efeito, ambas são características identificadas, através do estudo de vários teóricos, por
portanto, o caso em tela. O conceito de multiplexidade gira em torno da quantidade de laços internos e externos que a comunidade desenvolve. No conceito de Recuero, “refere-se à medida de diferentes tipos de relação social que existem em uma determinada rede” (2011, p. 77). No fórum em questão, observa-se a interação de seus membros tanto na própria página quanto em perfis de outras redes sociais, como Facebook e Twitter. Além das interações virtuais diversificadas, o fórum proporciona o encontro pessoal de seus membros, em eventos organizados pela equipe que administra a página ou em comunicações espontâneas entre os indivíduos14.
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fazerem parte da organização da vida social e das relações entre indivíduos. Não é diferente,
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FIDΣS A competição, por sua vez, é definida por compreender “a luta, mas não a hostilidade, característica do conflito” (RECUERO, 2011, p. 81-82). Desse modo, a autora desenvolve que a realidade das competições em uma rede social pode ser saudável, de modo a estimular a cooperação. De fato, o fórum NFF possibilita a cooperação dos membros e a competição entre eles através de gincanas e premiações anuais, concursos e desafios de escritores periódicos e projetos permanentes de homenagem aos leitores mais assíduos.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da análise do caso específico do fórum NFF em comparação às características estipuladas por teóricos das Ciências Sociais como fatores indicadores de uma rede social juridicamente organizada, percebe-se que as comunidades de escritores da chamada “ficção de fã” são um exemplo contundente de pluralismo jurídico no Brasil e no mundo. A despeito de possuírem aparentemente uma ligação apenas abstrata, os laços obtidos pela interação dos indivíduos configura uma real composição de grupo social ligado por interesses comuns. Desse modo, urge instigar os debates acerca da consideração das redes sociais na Internet como parte do fenômeno do pluralismo jurídico na sociedade. Levá-las em conta ajudará a entender os caminhos que a humanidade trilha rumo a uma nova concepção de relacionamento jurídico e social. O papel da Sociologia Jurídica, portanto, é salutar para a identificação de pontos que devem ser analisados antes de um juízo de valor acerca da
Não se pode alegar, no entanto, apenas a condição diferenciada na qual as redes virtuais se encontram na sociedade: é preciso compreender os fundamentos do advento dessa nova conformação de indivíduos, e os fatores preponderantes para sua consolidação dentro dos grupos emergentes e nos subgrupos estabelecidos com ainda mais especificidade de interesses comuns. Ignorar o papel e a influência das comunidades virtuais na forma com que se enxerga a sociedade, através de seus próprios atores, é se negar a conhecer as etapas futuras de evolução da dinâmica humana. Em um mundo onde as relações virtuais são mais rápidas que as reais, é de suma importância avaliar os variados exemplos de apropriação dos princípios jurídicos na produção de regras e valorações dentro dessas comunidades.
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legitimidade de ordens aparentemente ilícitas e contrárias ao ordenamento jurídico vigente.
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FIDΣS REFERÊNCIAS
ALTAVILA, Jayme de. Origem dos direitos dos povos. 9. ed. São Paulo: Ícone, 2001.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: teoria geral. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. NÚÑEZ, Eloy Martos. “Tunear” los libros: series, fanfiction, blogs y otras prácticas emergentes de lectura. Revista OCNOS, Cuenca, a. 2, n. 2, jan. 2006. Disponível em: <http://www.uclm.es/cepli/v1_doc/ocnos/02/ocnos_02_cap4.pdf>. Acesso em: 21 jun. 2012.
PADRÃO, Márcio. Ascenção de uma subcultura literária: ensaio sobre a fanfiction como objeto de comunicação e sociabilização. Revista Ciberlegenda, a. 10, n. 19, out. 2007. Disponível em: <http://www.uff.br/ciberlegenda/ojs/index.php/revista/article/view/173/70>. Acesso em: 21 jun. 2012.
SANTOS, Boaventura de Sousa. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988.
______. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7. ed. Porto: Afrontamento, 1999.
SANTOS, Marcia Dantas Dos. Fanfiction: uma manifestação cultural atual. São Paulo: [s.n.], 2011. CD-ROM.
VARGAS, Maria Lucia Bandeira. O fenômeno fanfiction: novas leituras e escrituras em meio eletrônico. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2005.
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RECUERO, Raquel. Redes sociais na Internet. 2. ed. Porto Alegre: Sulina, 2011.
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THE LEGAL PLURALISM WITHIN FANFICTION WRITERS COMMUNITIES
ABSTRACT This article aims to develop a new vision about the concept of legal pluralism, using social networking by example. The reality of the communities on the Internet promotes the study of the subject within Legal Sociology, as it has similar rules to the legal regulation and the characteristics of a social group traditionally known as real. The reality of the writers of fan fictions, stories based on copyrighted material, arranged in closed forums in Network, enables the evaluation of the dynamics of the evolution of social groups in the context of plurality of legal systems under a single jurisdiction.
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Keywords: Legal pluralism. Social networks. Virtual community.
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FIDΣS Recebido 20 out. 2012 Aceito 25 out. 2012
O CANDIDATO DO POVO Edilson Pereira Nobre Júnior*
Era uma vez um homem da cidade, um autêntico dândi. Muito se assemelhava ao Jacinto de Tormes, personagem de Eça de Queiroz no seu livro de edição póstuma “A cidade e as serras”, sem faltar a influência do requinte parisiense, devido à parcela de sua educação obtida na pátria de Molière, quando de sua juventude dourada. Chamava-se Astrogildo de Albuquerque Lima, nascido no seio duma aristocrática família de um dos estados nordestinos. Durante o Estado novo, contando com mais de trinta e cinco anos, assumiu importantes cargos na burocracia varguista, o que lhe assegurou uma vida tranquila economicamente, mas ao mesmo tempo socialmente tumultuada diante dos costumes impostos pelo progresso e pelos ouriços da capital. Retornando o país à normalidade democrática, com a primeira queda do ditador dos pampas, o Dr. Astrogildo se viu forçado a continuar na arena política. A influência de que gozava perante o Partido Social Democrático – PSD, agremiação partidária que reunira os ex-
Estado de nascimento, do qual se encontrava ausente alguns anos. A situação agora era diferente. Abolido o fraudulento modelo do voto à bico de pena, que embalou durante décadas o jogo de poder da República Velha, a conquista dos mandatos passou a depender dum novo ingrediente: o voto secreto, sobre o qual, dizia seu Benedito Valadares, é algo a conduzir o eleitor a uma vontade enorme para a traição. Portanto, o sucesso eleitoral estava a depender não só do prestígio político ou da pujança econômica, mas da conjugação da simpatia do postulante e da correspondente empatia do eleitor.
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Professor da Faculdade de Direito do Recife (UFPE), instituição na qual concluiu mestrado e doutoramento em Direito Público. Desembargador do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.
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interventores, tornou irreversível sua candidatura a uma das vagas para Senado pelo seu
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FIDΣS Isso constituía um motivo de forte preocupação para as hostes pessedistas. O Dr. Astrogildo não era lá dos mais populares. Pelo contrário, os seus modos fidalgos contrastavam em muito com os do típico homem do povo, principalmente com os rudes habitantes das zonas rurais, à época ainda na condição de representativos da maioria do contingente eleitoral. A oposição não perdeu tempo. Logo passou a apelidar o Dr. Astrogildo de conde ou marquês, advertindo ao povo que o importante para o seu bem-estar não era o conhecimento sobre a Europa, sobre os poetas franceses, mas sim a defesa do algodão, produto do qual dependia a subsistência da grande maioria dos nordestinos e quem disso entendia era o Virgílio Bastos, médico do povo, candidato a senador pela União Democrática Nacional – UDN. Preocupado com a situação, o então presidente estadual do PSD e, coincidentemente, candidato a governador na chapa do Dr. Astrogildo, decidiu tomar algumas providências antes que a vaca fosse para o brejo. Tratou logo de mandar um emissário para conversar com o Coronel Bonifácio das Oiticicas, prestigioso líder político do sertão, confiando-lhe uma importante missão. Era preciso, custasse o que custasse, que o Dr. Astrogildo fosse fazer um estágio na zona rural, a fim de se familiarizar com os costumes campesinos e conquistar a simpatia dos sertanejos. Dito e feito. Passados alguns dias, o Dr. Astrogildo, um pouco a contragosto, pôs-se nos rumos do sertão. Tão logo aportou nos domínios do Coronel Bonifácio, este cuidou de transformar o seu promitente senador em autêntico sertanejo. Vestido a caráter, com chapéu de couro e gibão, o candidato passou a montar no lombo dum cavalo baio, passando a
mesmo suportaria fazer hipismo ou esquiar nos lugares mais apropriados do continente europeu. E não foi só. Apreciador dos charutos cubanos, bem como dos mais sofisticados cachimbos ingleses e belgas, impôs-se ao Dr. Astrogildo um cachimbo sertanejo, apropriado para fumo de rolo. A façanha fez com que ao candidato fosse atribuído um apelido, tão ao gosto do povo, que o denominava, com certa euforia, de “Cachimbão”. Passada uma semana de aventuras, sucedeu um fato interessante. Estava-se durante a realização duma mescla de forró e de comício na Fazenda do Major Rosendo e de Dona Cândida, quando, logo após o anoitecer, o candidato “Cachimbão” sentiu uma enorme vontade de fazer suas necessidades fisiológicas, tendo em vista que o clima seco da caatinga lhe provocava enorme sede.
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percorrer as localidades da região em festas e forrós. Não foi algo fácil para quem nem
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FIDΣS Coronel Bonifácio, cioso do seu candidato, e considerando que tais necessidades tinham de ser satisfeitas ao ar livre, chamou um dos homens de sua confiança, que atendia pelo nome de “Zé de Rafael”, para acompanhar “Cachimbão” até os arbustos que fariam às vezes de banheiros e seus biombos. Distanciando-se um pouco do grupo de seus seguidores, “Cachimbão”, protegido pela vegetação florestal, pôs-se a aliviar-se com a expulsão duma quantidade imensa de líquido. Concluída a tarefa, e devidamente confortado, bradou para “Zé de Rafael” com satisfação: – AH, ZÉ DE RAFAEL, VOCÊ JÁ OUVIU DIZER EXISTIR COISA MELHOR DO QUE U...?
Meio desconfiado, mas com a astúcia do bom matuto, que todos pensam que é uma besta, respondeu: – DOTÔ, PARA ISSO SER VERDADE É PORQUE EU NUNCA FIZ OU PORQUE O SENHOR NÃO SABE O QUE É MUIÉ.
Pode-se ver que o resultado da peleja eleitoral foi óbvio. O Virgílio Bastos venceu com folgada maioria. Não pensem, no entanto, que o Dr. Astrogildo levou a pior. Derrotado, mas ainda com prestígio no PSD, que foi – e ainda é até hoje – governo, voltou a residir na Europa, onde ocupou bons postos na diplomacia, vindo ao Brasil apenas para visitar o Rio de
durante o restante de sua existência: foi com o fato, que considerava uma grande insensatez, de Juscelino ter transferido a capital para o não desbravado Planalto Central.
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Janeiro, esquecendo-se definitivamente da sua terra natal. Somente acalentou um desgosto
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