Editoras-gerais: Clara Silvério Diógenes Tallita de Carvalho Martins Diretoria de Editoração: Camila Cortez de Souza Araújo Érika Ramos Calife Fabiane Araújo de Oliveira Giselle Gomes Barbosa Costa Kylze Carolyne Prata de Lucena Mariana Gomes Pereira Matheus Rabello Fernandes Lopes Nathânia de Medeiros Oliveira Raissa Holanda Ramos Raul Medeiros Bezerra da Costa Diretoria de tradução para a língua inglesa: Giselle Gomes Barbosa Costa Matheus Rabello Fernandes Lopes Professores Orientadores: Morton Luiz Faria de Medeiros Patrícia Borba Vilar Guimarães
CAPA: 50 anos da Ditadura Militar no Brasil - fotografia pelo Armazém Memória, fazendo um resgate de um dos momentos de maior repressão vivenciada pelo país. Fonte: <https://www.flickr.com/photos/armazemmemoria/92701 38889/in/set-72157634615253738> Edição da Capa por Paulo André Magalhães.
FIDΣS
ISSN 2177-1383
Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade
FIDES, Natal, v. 5, n. 1, jan./jun. 2014
EDITORIAL
A Revista FIDES lança a sua nona edição no primeiro semestre de 2014, trazendo o tema dos 50 anos do Golpe Militar de 1 de abril de 1964 no Brasil. Não se trata, evidentemente, de data comemorativa, tendo em vista as inúmeras violações da liberdade e dos demais direitos humanos que marcaram os longos 21 anos de Ditadura Militar no país. Entretanto, ainda que não encontrado motivo algum para comemorar essa data, julgamos imperioso considerá-la nesta edição, levando-se em conta a questão do cerceamento da liberdade de pensamento e o fato de constituirmos um meio legítimo de expressão no ambiente acadêmico. Sabemos que, durante o período de 1964 a 1985, o sistema educacional no Brasil voltou-se para a formação de cidadãos subservientes, incapazes de pensar por si só e de questionar o regime político posto. Imperava, portanto, o ensino por métodos decorativos e repressores da intelectualidade crítica. Aliado a isso, vigorava a censura aos meios de expressão e comunicação do povo, restando apenas revistas, jornais, programas de televisão e de rádio enquanto instrumentos de propagação dos ideais do governo militar. Hoje, superada essa página infeliz da nossa história, como cantou o poeta, precisamos estimular cada vez mais a interpretação e produção de textos, não cultivadas naquele período e cuja dificuldade ainda é sentida pelos alunos. É, pois, nesse contexto, que a Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade (FIDES), fundada há quatro anos sob os pilares da simplicidade, da informalidade e do incentivo à pesquisa e à produção científica, vem reforçar, em sua nona edição, a proposta de criação de artigos científicos no meio acadêmico a partir de uma reflexão crítica própria, combatendo a mera reprodução de pensamento. Nesse sentido, nosso periódico eletrônico preza pela abordagem dos elementos jurídicos sob o viés filosófico. Isso porque visamos à valorização da Filosofia enquanto ato de pensar; almejamos cada vez mais a prevalência do pensamento crítico entre os acadêmicos; e, com isso, queremos a formação de cidadãos questionadores e transformadores da realidade social.
Na edição ora apresentada, celebramos a democracia, a liberdade de expressão, a liberdade de pensamento e a liberdade de crítica. Na primeira seção, contamos com artigos iniciais diversos, escritos por professores do nosso Conselho Científico. Em seguida, temos os artigos científicos convidados de autoria da Professora Érica Verícia Canuto de Oliveira Veras em coautoria com Jackeline Costa (Psicóloga do NAMVID) e Maria Ildéria Castro (Assistente Social do NAMVID), bem como o trabalho do Professor Paulo Afonso de Linhares e do Professor Fábio Ataíde. Contamos ainda com a participação autoral do Professor Juliano Homem de Siqueira, o qual nos traz um poema acerca dos 50 anos do golpe militar, na seção literária. E, então, trazemos dez artigos devidamente avaliados em processo editorial. Por fim, é imprescindível agradecer a cada um que, de alguma forma, contribuiu para a construção da nona edição da Revista. Aos professores do Conselho Científico pela crescente colaboração através da avaliação de artigos e envio de admiráveis trabalhos; aos membros da equipe editorial pela dedicação e desempenho; aos profissionais e universitários por creditar à FIDES a publicação de seus artigos, nossa sincera gratidão. Uma leitura agradável e proveitosa a todos!
Natal/RN, 30 de abril de 2014.
Conselho Editorial
SUMÁRIO
RECAPITULANDO OS 50 ANOS DA DITADURA MILITAR NO BRASIL “PÁGINA INFELIZ DA NOSSA HISTÓRIA” Clara Silvério Diógenes Tallita de Carvalho Martins
8 -10
50 ANOS DO GOLPE MILITAR FASCISTA DE 1º DE ABRIL DE 1964 Juliano Homem de Siqueira
11-17
ARTIGOS INICIAIS
APONTAMENTOS SOBRE A PESQUISA EM DIREITO NO BRASIL Anderson Souza da Silva Lanzillo Patrícia Borba Vilar Guimarães
18 - 21
DIREITO, DEMOCRACIA E CONSERVADORISMO Lauro Ericksen Cavalcanti de Oliveira
22 - 27
TRIBUNAL DO JÚRI E SUA COMPETÊNCIA: CONSTITUCIONAL Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave
UMA
ANÁLISE
28 - 31
ARTIGOS CIENTÍFICOS CONVIDADOS
A RETÓRICA COMO ANTÍSTROFE DA DIALÉTICA EM ARISTÓTELES Paulo Afonso Linhares
32 – 50
REDEFININDO O PAPEL DOS JURADOS: UM DEBATE EM TORNO DO PROBLEMA DO CONCEITO DE ORDEM PÚBLICA E A NEGATIVA DO DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE NAS DECISÕES CONDENATÓRIAS DO TRIBUNAL DO JÚRI Fábio Wellington Ataíde Alves
51- 64
PROGRAMA DE AGRESSORES COMO PARTE DA RESPOSTA COORDENADA DA COMUNIDADE – A EXPERIÊNCIA DO GRUPO REFLEXIVO DE HOMENS NO MINISTÉRIO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO NORTE Érica Verícia Canuto de Oliveira Veras Jackeline Costa Maria Ildérica Castro
65 - 83
ARTIGOS CIENTÍFICOS
AFETIVIDADE EM QUESTÃO: A DISTINÇÃO JURÍDICA ENTRE O NAMORO E A UNIÃO ESTÁVEL Fernanda Holanda Fernandes
84 - 101
A (IN)COMPATIBILIDADE ENTRE O TRIBUNAL DO JÚRI BRASILEIRO E O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: UMA ANÁLISE À LUZ DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA Moadenildo Freire Domingos Junior
102 - 117
A VEDAÇÃO À CAPACIDADE ELEITORAL PASSIVA DO ANALFABETO E A CONTRADIÇÃO CONSTITUCIONAL DIANTE DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Lucas Bezerra Vieira Didier Pironi Evaristo Almeida
118-130
DIREITO À CONVIVÊNCIA E SEPARAÇÃO CONCRETIZAÇÃO COMO PRIORIDADE Luiz Afonso Rangel Serrano
GENITORES:
131-140
DIREITO À INFORMAÇÃO NAS RELAÇÕES DE CONSUMO DE PRODUTOS ALIMENTÍCIOS NO ATACADO E NO VAREJO: PARTICULARIDADES SOBRE COMPOSIÇÃO, CARACTERÍSTICAS, PREÇO E QUANTIDADE DO PRODUTO Joaquim de Assis Úrsula Júnior Rafael Heider Barros Feijó
141- 157
O DIREITO ENTRE O ESTADO E O ESTADO DE DIREITO: REVISITANDO A TEORIA DO DIREITO E DO ESTADO DE LEÓN DUGUIT Ian Pimentel Gameiro
158-174
O INSTITUTO DA FIDELIDADE PARTIDÁRIA E A SUA APLICABILIDADE NO DIREITO ELEITORAL BRASILEIRO QUANTO À TITULARIDADE DO MANDATO ELETIVO Kleber Fernandes da Silva
175-193
O VÍNCULO ENTRE A REVOLUÇÃO E O PODER CONSTITUINTE Raquel Emanuele Albuquerque Galdino
194-212
DOS
TRABALHO INFANTIL PERIGOSO: CONSEQUÊNCIAS JURÍDICO-SOCIAIS Shade Dandara Monteiro de Melo Costa
VIOLAÇÃO
À
SAÚDE
E
213-233
UMA ANÁLISE CRÍTICA DA ESTRUTURA REGULATÓRIA DO SETOR NUCLEAR BRASILEIRO Wescley Bruno Lima dos Santos
234-252
LITERATURA E DIREITO
CANTO DO CÁRCERE, NUM ÚLTIMO ADEUS Juliano Homem de Siqueira
253-254
FIDΣS
“PÁGINA INFELIZ DA NOSSA HISTÓRIA”
Clara Silvério Diógenes* Tallita de Carvalho Martins**
Há 50 anos o povo brasileiro passou por um dos períodos mais tristes e de maior repressão da sua história política que se estendeu por longos 21 anos. Momento esse em que se instaurou um golpe militar, deflagrado contra o governo de João Goulart, o qual adotava uma política nacionalista e reformista, fortalecendo os movimentos sociais, apresentando defesa às Reformas de Base e forte oposição à União Democrática Nacional (UDN)1. Nesse espectro, a famigerada Ditadura Militar constituiu-se com o apoio dos setores conservadores sob a justificativa de tentar conter uma crise econômica, evitando, assim, a “esquerdização” do poder. Foram, portanto, 21 anos marcados por crimes de tortura, censura e variados fatos históricos decorrentes de tais irregularidades que só cessaram com a
Enquanto isso, a repressão aos partidos de resistência, tal qual a União Nacional Estudantil (UNE) e o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), foi ferrenha, resultando em inúmeras prisões e mortes. Nessa luta, um dos maiores símbolos de obstinação foi o pernambucano Gregório Bezerra que acabou amarrado e arrastado pelas ruas da sua cidade como “exemplo” aos subversivos2. Dentre os incontáveis absurdos desse período ditatorial, a promulgação da Constituição Federal de 1967, amplamente emendada no ano subsequente, deu azo à * Discente do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Editora-Geral da Revista FIDES. Estagiária do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte. ** Discente do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Editora-Geral da Revista FIDES. Membra do Projeto de Extensão Simulações de Organizações Internacionais (SOI). 1 MORAIS, Edenilson. Do governo Dutra ao governo João Goulart. 01 set. 2011. Disponível em: <http://pt.slideshare.net/Edenilson/do-governo-dutra-ao-governo-joo-goulart> . Acesso em: 29 abr. 2014. 2 CASTRO, Celso. O golpe de 1964 e a instauração do regime militar. FGV – CPDOC, São Paulo, 2012. Disponível em: < http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/Golpe1964> Acesso em: 29 abr. 2014.
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consolidação de uma nova ordem política.
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FIDΣS instauração do mais arbitrário documento da história política brasileira: o Ato Institucional Número 5. Nas palavras de Maria Celina D’Araújo (2012, p. da internet), “O AI-5 não só se impunha como um instrumento de intolerância em um momento de intensa polarização ideológica, como referendava uma concepção de modelo econômico em que o crescimento seria feito com ‘sangue, suor e lágrima’”3. Inaugurado durante o governo do general Costa e Silva, em 13 de dezembro de 1968, o AI-5 vigorou por dez anos produzindo “um elenco de ações arbitrárias de efeitos duradouros”. Dentre elas, autorizava-se que o presidente, em caráter excepcional e, portanto, sem apreciação judicial, decretasse o recesso do Congresso Nacional; interviesse nos estados e municípios; cassasse mandatos parlamentares; suspendesse, por dez anos, os direitos políticos de qualquer cidadão; decretasse o confisco de bens considerados ilícitos e suspendesse a garantia do habeas-corpus4. Com o movimento das Diretas-Já, considerada uma das maiores campanhas cívicas da história do Brasil, políticos, sindicalistas, artistas e pessoas das mais variadas classes apoiaram a defesa do projeto que recuperaria o poder do sufrágio. Embora rejeitado pelo governo de João Figueiredo, o qual declarou estado de emergência dias antes da votação da proposta, que seria apreciada em 25 de abril de 1984, cercando o Congresso com militares na véspera, censurando o noticiário político na TV e chegando a prender dois deputados que votariam no dia seguinte, o “enterro” da emenda não foi o fim para a população que estava farta de uma ditadura marcada por perseguições, corrupções e crises financeiras5.
última eleição, e sua simbólica morte logo em seguida, constituíram um importante passo para um longo caminho de redemocratização que viria a ser trilhado. Todavia, é bem verdade que até os dias de hoje o país ainda se encontra em busca da fática consolidação de um Estado Constitucional Democrático, apesar de serem visíveis e irrefutáveis os grandes avanços nestes 25 anos de promulgação da Constituição Federal de 1988. Nessa esteira, atualmente ainda se pode observar certos privilégios, aos militares aposentados e àqueles que permanecem na carreira, a exemplo da intocada previdência que prevalece preservada das reformas que atingiram os setores público e privado e, por seu turno, 3
ARAÚJO, D’ Maria Celina. O AI-5. FGV – CPDOC, São Paulo, 2012. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/AI5> Acesso em: 29 abr. 2014. 4 Idem. 5 MENDONÇA, Ricardo. Votação e Derrota da emenda das Diretas-Já completa 30 anos. Folha de S. Paulo, São Paulo, 25 abr. 2014. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/04/1445161-votacao-ederrota-da-emenda-das-diretas-ja-completa-30-anos.shtml>. Acesso em: 29 abr. 2014.
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Destarte, a ícone eleição de Tancredo Neves, depois de passados mais de 20 anos da
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FIDΣS custa ao Estado maior despesa do que o dispêndio com programas sociais como o Bolsa Família6. Além disso, há a polêmica Lei da Anistia para a qual se tem incessante luta em prol da sua revisão, tendo sido, inclusive, criada a Comissão Nacional da Verdade no anseio de se ver concretizada a proposta do Senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), autor do supracitado projeto “revisional” 7. Desta feita, são mais que evidentes os impactos desse período ditatorial, causando ecos até hoje e, por conseqüência, sendo de suma relevância a sua discussão no ambiente acadêmico, após esses 50 anos que, apesar de atenuados pelo tempo, parecem nunca acabar, sobretudo, para as suas vítimas, inclusive, as que sofrem com as marcas deixadas por aquele
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DINHEIRO PÚBLICO & CIA. Intocada, previdência dos militares gasta mais do que o Bolsa Família. Folha de S. Paulo. São Paulo, 29 dez. 2013. Disponível em: <http://dinheiropublico.blogfolha.uol.com.br/ 2013/12/29/intocada-previdencia-dos-militares-gasta-mais-do-que-o-bolsa-familia/>. Acesso em: 29 abr. 2014. 7 MENDES, Priscila. Comissão de Direitos Humanos aprova revisão da Lei da Anistia. G1. Política, Brasília, 09 abr. 2014. Disponível em: < http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/04/comissao-de-direitos-humanos-aprovarevisao-da-lei-da-anistia.html> . Acesso em: 29 abr. 2014.
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momento e para quem dedicamos a singela homenagem da edição ora apresentada.
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FIDΣS Recebido 16 abr. 2014 Aceito 17 abr. 2014
50 ANOS DO GOLPE MILITAR FASCISTA DE 1º DE ABRIL DE 1964 Aos que resistiram, aos presos e torturados, aos mortos e desaparecidos Juliano Homem de Siqueira
Aproxima-se, neste 13 de março, cinquenta anos passados do grande comício da Central do Brasil, pelas Reformas de Base, comandado pelo Presidente João Goulart, com a presença de mais de trezentas mil pessoas, o cinquentenário de uma tragédia, melhor dizendo, conforme a lição de Marx (“A história não se repete…”), em “O Dezoito Brumário…”, uma farsa trágica que, por vinte e um anos, oprimiu, envergonhou, ensanguentou a Nação brasileira e sua “ Brava gente”. Para milhares, às dezenas, de compatriotas cessou o brilho do “Sol da liberdade”. Foi-nos imposta a escravidão da ignorância, da intolerância, da violência fascista.
Nordeste, do País. Mas, convencido do sentido universal da nossa luta, da máxima de Marti (“Pátria é humanidade”), o que ganha força com as batalhas, agora, em curso, nos mais diversos recantos do Planeta (Síria, Ucrânia, Venezuela), na gesta revolucionáriointernacionalista, com seus dramas e glórias, como missão coletiva e comum, inspirei-me além das fronteiras da minha terra. Isto posto, convenci-me de que, para mim e os companheiros e companheiras do Partido dos Trabalhadores (PT), com a humildade e obrigação de aprender sempre, resgatar a memória dos nossos heróis e heroínas, de suas vidas, dedicação e exemplo, é uma boa forma, um passo necessário, um justo caminho, para darmos início à mobilização, no sentido de
Mestrado: Teoria Geral do Estado (UFPE-UFRN). Especialização: Ciência Política (FJA); Filosofia dos Valores (Política, Ética e Estética)-UFRN. Graduação: Ciência Sociais e Jurídicas - Direito (UFRN); Sociologia e Política (FJA-UFRN). Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
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Poderia escrever uma crônica nacional, com fatos e personagens de Natal, do
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FIDΣS denunciar, criminalizar, rechaçar, com plena razão histórica, o golpe militar (com respaldo civil dos reacionários da mídia, do latifúndio, do capital, das igrejas e seitas de corte medieval) de 1º de abril de 1964. Apoio-me na paixão libertário-socialista de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, assassinados, ambos com 48 anos de idade, pelo gendarmes de Weimar, paramilitares, milícias direitistas, embriões dos bandos criminosos SA e SS nazistas, com a colaboração indecorosa da ala direita (parlamentar-reformista e instalada no governo) do Partido SocialDemocrata Alemão (SPD), em 15 de janeiro 1919. Leo Jogiches, participante ativo da Revolução Bolchevique, companheiro de Rosa, foi morto, de modo análogo, dois meses depois. Os assassinatos de Rosa e Karl marcaram, de maneira contundente, a derrota da Insurreição Operária de Berlim, inspirada na Grande Revolução Russa de 1917 e dirigida pela Liga Spártacus, núcleo principal do KPD. Um ano antes, em 1918, os spartaquistas, somados a jovens marxistas- leninistas, fundaram o Partido Comunista Alemão (KPD) – baluarte na resistência à ascensão do nazismo, sob os lemas de “unidade contra o fascismo” e “socialismo ou barbárie”. Sem dúvida, consignas de indiscutível e triste atualidade. Este trabalho, não desdenhando-se as limitações intelectuais do autor, impossíveis de serem camufladas, na seleção, tradução e organização dos textos que se seguem; estes, sim, merecendo ser tomados como conclusão teleológica essencial, espero que seja lido com
ANTOLOGIA DA LIBERDADE
I-Rosa Luxemburgo: Frases e Pensamentos
“A ordem reina em Berlim!…Ah! Estúpidos e insensatos carrascos! Não perceberam que vossa ‘ordem’ está construída sobre a areia. A Revolução levantará sua cabeça novamente, amanhã e, para o horror estampado em vossos rostos, anunciará com todas as sua trombetas: Eu fui. Eu sou. Eu serei!” (“Últimas palavras escritas”). * “Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”.
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generosidade e muito boa vontade.
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FIDΣS * “Quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem”. * “No meio das trevas, sorrio à vida, como se conhecesse a fórmula mágica que transforma o mal e a tristeza em claridade e em felicidade. Então, procuro uma razão para esta alegria, não a acho e não posso deixar de rir de mim mesma. Creio que a própria vida é o único segredo”. * “Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e uma liberdade de reunião ilimitadas, sem uma luta de opiniões livres, a vida vegeta e murcha em todas as instituições públicas, e a burocracia torna-se o único elemento ativo”. * “A liberdade apenas para os partidários do governo, apenas para os membros do partido, por muitos que sejam, não é liberdade. A liberdade é sempre a liberdade para o que pensa diferente”. * “Não estamos perdidos. Ao contrário, venceremos se não tivermos desaprendido a aprender”. *
* “A massa não é apenas objeto da ação revolucionária; é sobretudo sujeito”. * “A Liberdade é quase sempre, exclusivamente, a liberdade de quem pensa diferente de nós”.
II- Karl Liebknecht
Na Prisão Vós me roubais a terra mas não o céu. Não me resta dele mais do que um pedaço estreito onde cravo meus olhos através das grades de uma janela de ferro encurvada nas paredes pesadas…
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“Há todo um velho mundo ainda por destruir e todo um novo mundo a construir. Mas nós conseguiremos, jovens amigos, não é verdade?”.
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FIDΣS
III- Bertolt Brecht Epitáfio de Rosa (Réquiem de Berlim) Aqui jaz Rosa Luxemburgo, Judia da Polônia, Vanguarda dos operários alemães, morta por ordem dos opressores. Oprimidos, enterrai vossas desavenças! IV-Martin Niemöller Quando os nazistas vieram buscar os comunistas, eu fiquei em silêncio; eu não era comunista.Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu fiquei em silêncio;
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Mas para mim é bastante ver o azul resplandescente do céu de onde vem a luz, que me ofusca quando me aproximo, e de onde às vezes também cai dançando um ligeiro murmúrio de pássaros… Basta-me que uma gralha negra, tagarela, amiga fiel dos dias de cárcere, me faça ver um ser alçando um vôo livre, e que uma nuvem viajante me ofereça a imagem das coisas mutáveis. Não vejo mais do que um pequeno espaço do céu. À noite passada a estrela mais clara brilhava neste espaço, a mais clara estrela resplandecia, e seus raios brotavam das extremidades do firmamento dominando o mundo, mais claros, mais cálidos, com um resplendor mais juvenil na minha estreita cela do que para vós que estais em liberdade. A estrela projetava aqui sua pequena mancha de luz. Vós me roubais a terra, mas não o céu… Não vejo dele mais do que um pequeno pedaço através das grades de uma janela de ferro… Mas esta luz devolve os sentidos a este corpo, animado por uma alma livre como jamais tivestes, vós que acreditastes que poderíeis aniquilar-me nas grades desta prisão!
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FIDΣS eu não era um social-democrata.Quando eles vieram buscar os sindicalistas, eu não disse nada; eu não era um sindicalista. Quando eles buscaram os judeus, eu fiquei em silêncio; eu não era um judeu.Quando eles me vieram buscar, já não havia ninguém que pudesse protestar. V- Eduardo Alves da Costa No Caminho, com Maiakóvski Assim como a criança humildemente afaga a imagem do herói, assim me aproximo de ti, Maiakóvski. Não importa o que me possa acontecer por andar ombro a ombro com um poeta soviético. Lendo teus versos, aprendi a ter coragem.
Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada. Nos dias que correm a ninguém é dado repousar a cabeça alheia ao terror. Os humildes baixam a cerviz; e nós, que não temos pacto algum com os senhores do mundo,
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Tu sabes, conheces melhor do que eu a velha história. Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada.
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FIDΣS por temor nos calamos. No silêncio de me quarto a ousadia me afogueia as faces e eu fantasio um levante; mas manhã, diante do juiz, talvez meus lábios calem a verdade como um foco de germes capaz de me destruir. Olho ao redor e o que vejo e acabo por repetir são mentiras. Mal sabe a criança dizer mãe e a propaganda lhe destrói a consciência. A mim, quase me arrastam pela gola do paletó à porta do templo e me pedem que aguarde até que a Democracia se digne aparecer no balcão.
Vamos ao campo e não os vemos ao nosso lado, no plantio. Mas ao tempo da colheita lá estão e acabam por nos roubar até o último grão de trigo. Dizem-nos que de nós emana o poder mas sempre o temos contra nós. Dizem-nos que é preciso defender nossos lares mas se nos rebelamos contra a opressão é sobre nós que marcham os soldados. E por temor eu me calo, por temor aceito a condição
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Mas eu sei, porque não estou amedrontado a ponto de cegar, que ela tem uma espada a lhe espetar as costelas e o riso que nos mostra é uma tênue cortina lançada sobre os arsenais.
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de falso democrata e rotulo meus gestos com a palavra liberdade, procurando, num sorriso, esconder minha dor diante de meus superiores. Mas dentro de mim, com a potência de um milhão de vozes, o coração grita – MENTIRA!
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APONTAMENTOS SOBRE A PESQUISA EM DIREITO NO BRASIL
Anderson Souza da Silva Lanzillo* Patrícia Borba Vilar Guimarães**
Apesar de não ser uma discussão ampla e frequente no meio acadêmico brasileiro, a discussão acerca da realização e, principalmente, da qualidade da pesquisa jurídica vem tomando cada vez mais espaço1. No Brasil essa discussão ocorre em certa medida não pelo aspecto intrínseco ao que deve ser uma pesquisa em Direito, mas em razão da sua ligação com a formação e com o ensino jurídico. Nesse sentido, discutir a pesquisa jurídica nesse contexto significa traçar o papel do ensino na formação do futuro profissional e essa discussão é posta assim pelos contornos assumidos por esse ensino, dominado pela realidade e pelo imaginário dos concursos públicos no Brasil. O objetivo desse breve ensaio não é propriamente discutir a relação entre pesquisa
aqui fazer a caracterização de duas práticas arraigadas do modo de fazer pesquisa jurídica no Brasil e que problemas elas trazem para realizar pesquisa que seja quantitativamente e qualitativamente mais profunda, permitindo e ampliando o horizonte de conhecimento acerca do fenômeno jurídico. Essas duas práticas são denominadas nesse ensaio da seguinte forma: manualismo e parecerismo. Poderiam ser listadas e discutidas outras práticas e aspectos da pesquisa jurídica no Brasil (incompreensão/confusão do que vem a ser metodologia, carência
* Mestrado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2007). Atualmente é Professor Assistente do Departamento de Direito Privado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. ** Doutora em Recursos Naturais pela Universidade Federal de Campina Grande (2010). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2008). Mestre pelo Programa Interdisciplinar em Ciências da Sociedade, na área de Políticas Sociais, Conflito e Regulação Social, pela Universidade Estadual da Paraíba (2002). É Advogada e Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 1 Sobre a pesquisa em Direito, vide: NOBRE, Marcos et alii. O que pesquisa em direito? São Paulo: Quartier Latin, 2005.
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jurídica e ensino do Direito, embora possua implicações nesse campo. Na verdade, busca-se
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FIDΣS de estudos empíricos, etc.), mas as práticas aqui denominadas possuem um largo espectro de utilização, sendo correntes no meio acadêmico em seus variados níveis. O que está aqui sendo denominado de manualismo? Para dar um conceito, manualismo seria a prática de que, para fazer pesquisa em Direito, deve ser escolhido um tema e sobre esse tema deve ser feita uma dissertação a exaustão de todos os aspectos que o envolveria. A denominação"manualismo" é realizada pelo fato de que essa prática de pesquisa reproduz a maneira pela qual são redigidos os manuais de Direito no Brasil. Cria-se uma relação de circularidade: o material que deveria ser um instrumento de ensino serve também para a pesquisa; e a pesquisa que deveria ser um instrumento de investigação serve também para o ensino. Talvez essa circularidade não seria vista nos termos iniciais aqui colocados como prejudicial (afinal, a pesquisa não deve servir ao ensino?). Porém, como será discutido, essa circularidade é muito mais problemática do que parece nessa primeira formulação. Enquanto material, o manual de Direito segue uma função e uma estrutura. A função, como já abordado, é o ensino. Mas qual seria essa estrutura? Tradicionalmente (esqueça-se por um momento a popularização dos resumos, que tem alterado as estruturas dos manuais) há os seguintes elementos: um tema (direito civil, processo de execução, direito penal, etc.), um histórico sobre o tema (seu surgimento e desenvolvimento ao longo da história), os fundamentos do tema (princípios, institutos, etc.), a doutrina sobre o tema e a jurisprudência sobre o tema (vale notar que a jurisprudência possui cada vez maior destaque em face da doutrina). Diante dessa estrutura dos manuais, o que se vê nos artigos acadêmicos, monografias e mesmo em dissertações e teses? Vê-se muitas vezes a reprodução, em maior ou
pode representar sérios problemas no meio acadêmico. Mesmo em trabalhos onde há a proposta de um corte (na verdade só há pesquisa onde há um corte epistemológico e empírico), antes de adentrar realmente no corte da pesquisa, podem ser identificados todos esses elementos que são apontados como pertencentes ao manualismo na pesquisa jurídica. Com essas considerações agora e possível compreender o efeito de circularidade, problema crucial dessa maneira de pesquisar: o manualismo é uma forma de falar sobre um assunto sem realmente pesquisar, pois na verdade se parte de um manual para produzir outro manual. Em suma, o manualismo nega a possibilidade de pesquisa, pois implica a reafirmação e reprodução de uma série de conhecimentos já sedimentados nesses manuais. Haveria um conhecimento dado que deve ser corroborado a todo momento, demonstrado de maneira explícita. Com isso, perde-se o essencial de uma pesquisa: buscar a compreensão de uma realidade a partir de um corte, da maneira mais
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menor grau desse tipo de estrutura. É como se fosse um caminho canônico do qual o desvio
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FIDΣS profunda possível tendo em conta o nível de conhecimento a que se propõe, trazendo novos olhares sobre um objeto ou mesmo um novo olhar sobre olhares já existentes. O manualismo “deixa tudo do jeito que está”, não produzindo nenhum conhecimento verdadeiramente novo. Pense um pouco nesse exemplo: nas pesquisas sobre vírus na área de Medicina você não vai com certeza encontrar nos artigos primeiro uma definição de vírus e da história desse estudo. Isso não será encontrado em geral pelo fato de que conceitos básicos devem ser aprendidos como algo da formação básica. A discussão de conceitos numa pesquisa, por exemplo, só são relevantes em razão do corte epistemológico realizado, principalmente nos campos onde há diversas disputas teóricas. Entretanto, no meio acadêmico brasileiro parece não haver bem essa compreensão, processo que é ainda agravado pelo fato da maioria dos alunos muitas vezes só terem na sua formação contato com os manuais. Colocada a questão do manualismo, o que se quer definir por parecerismo? Na acepção desse ensaio, "parecerismo" é a prática que acha que pesquisa jurídica é buscar argumentos/fundamentos para defender uma posição sobre um tema. Tem-se, por exemplo, que
a
cobrança
de
certo
tributo
é
inconstitucional.
Então,
escreve-se
um
artigo/dissertação/tese que vai listar uma série de argumentos que validam a posição sobre essa inconstitucionalidade. Nessa prática de pesquisa, podem ser observadas duas variações: uma que poderia ser chamada de monológica, onde são apresentados somente argumentos a favor da tese, passando inclusive a impressão de que a realidade só possui elementos a favor da tese exposta; outra que poderia ser chamada de dialógica, pois apresenta argumentos a favor e contra a tese em defesa, triunfando no final a tese que no início já foi acatada.
de que não há realmente pesquisa se a conclusão, o ponto de chegada já está no início. Só há pesquisa no contexto da descoberta (se algo é conhecido para que pesquisar?). Em realidade, confunde-se pesquisar com argumentar, o que são atividades diferentes. Essa confusão entre pesquisar e argumentar (é obvio que um relato de pesquisa envolve o ato de argumentar, mas o inverso não é verdadeiro) está na raiz do segundo problema: o parecerismo acaba por ser a transposição acrítica das práticas profissionais para o meio acadêmico. Nessa transposição, como o profissional do Direito necessita defender teses, passou-se a enxergar na pesquisa função semelhante, pois essa está circunscrita na formação desse profissional. Entretanto, essa transposição gera o terceiro problema: elaborar a defesa de uma tese, por mais bem fundamentada e racionalmente exposta, não implica que ela vai ser adotada no mundo real, o que faz com que esse tipo de
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Essa prática de pesquisa possui três problemas fundamentais. O primeiro problema é
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FIDΣS pesquisa possa ser transformada em algo completamente inútil e fonte de frustração ("ah, na teoria é uma coisa, mas na prática..."). Na visão desse ensaio, os problemas do manualismo e do parecerismo na pesquisa jurídica resultam de uma assimilação acrítica das mudanças postas aos cursos de Direito no Brasil em seus vários níveis. Até bem pouco tempo o foco residia no ensino de formação para carreiras jurídicas. A pesquisa foi colocada como obrigação recente e por essa razão assimilada mais às práticas de ensino tendo em vista essa formação profissionalizante do que aquilo que significa pesquisa no meio acadêmico mais geral. Faltou nesse processo se perguntar o que seria a pesquisa no contexto jurídico. Essa reflexão é o maior desafio para o avanço do tema, a qual deve ser acompanhada pela reflexão acerca do próprio Direito. Isso acontece porque o Direito na formação como atualmente existente não é apenas um objeto empírico da realidade a ser estudado, mas, principalmente, uma atividade que é construída de forma intersubjetiva, devendo ser o futuro jurista preparado para nela atuar. Assim, o Direito na formação acadêmica, estando na dualidade de objeto constatado e ao mesmo tempo construído por uma atividade intersubjetiva, requer abordagem e pesquisa que leve em consideração essas dimensões que são, ao mesmo tempo, interdisciplinares, mas que possuem particularidades que não se adequam completamente às práticas realizadas em outras áreas do saber. Pensar sobre essas especificidades sem incorrer em alguns dos problemas aqui apontados é um trabalho a ser
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feito na direção de construir uma pesquisa jurídica significativa.
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DIREITO, DEMOCRACIA E CONSERVADORISMO Lauro Ericksen*
No atual contexto filosófico e jurídico que se convencionou chamar de “pósmodernidade”1 é impossível escapar do que desde Hannah Arendt (2003, p. 24) vem sendo denominado de pensamento plural, ou simplesmente, como doravante será denominado, pluralismo. Por pluralismo há de se definir, ainda que bastante sinteticamente, como a congregação de valores diversos advindos da premissa básica e para a mencionada filósofa, inarredável, que não existe um homem que possa existir sozinho. Há sempre mais de um homem, por isso, sempre há pluralidade. Nessa toada, o pluralismo é a tônica de qualquer discussão que se coloque a pensar o direito, seja ele posto como uma prática cultural, ou como uma ciência propriamente dita. Não é o escopo do breve texto em comento discorrer sobre nenhum desses espectros do direito, e
intento principal é colocar em questionamento se, dentro do contexto pluralista tão alardeado nos meandros do direito, é possível assumir uma perspectiva conservadora, ou seja, se é possível defender alguma sorte de conservadorismo. Por conservadorismo há de se entender qualquer posicionamento jurídico de matiz político, econômico ou cultural que não esteja em conformidade com os ideais tidos como “progressistas” usualmente postos em relevos, justamente por aqueles que advogam a supremacia do pós-modernismo, em síntese, a desconstrução filosófico-sistemática da
* Doutorando em Filosofia (UFRN), mestre em Filosofia (UFRN), especialista em Direito e Processo do Trabalho (UCAM-RJ), graduado em Direito (UFRN), Controle Ambiental (IFRN) e Filosofia (UFRN). Graduando em Psicologia (UFRN). Oficial de Justiça Avaliador Federal do Tribunal Regional do Trabalho da 21ª Região. Possui livros publicados na área jurídica e filosófica. lauroericksen@yahoo.com.br Lattes: http://lattes.cnpq.br/8447713849678899 1 O termo é tão controverso que até mesmo pensadores pós-modernos, a exemplo do que enuncia Jacques Rancière (2009, p. 37), o rejeitam.
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sim, apenas colocar que a discussão sobre o direito sempre tangencia elementos “plurais”. O
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FIDΣS institucionalização ideológica do direito posto. Na maior parte das vezes, os conservadores também são taxados de “reacionários”, para se utilizar um termo genérico ao qual eles são associados, não obstante existam outros mais depreciativos, quando se chega a temas especificamente caros aos progressistas2. Tenta-se aproximar o discurso conservador ao que se denominou chamar de “discurso de ódio” – ou hate speech (WALKER, 1994, p. 11), embora não haja uma clara conexão entre ambos, tendo em vista que se pode, igualmente, atribuir tal pecha aos próprios “progressistas” em termos de ações concretas em prol da pluralidade (ou do pensamento plural). Nos termos postos em discussão, muito claramente, percebe-se que há uma forte ligação entre valor (ou valores), moral e direito. O posicionamento conservador e o pensamento progressista são, em última instância, debates axiológicos sobre como o direito pode ser colocado como um vetor de regramento social. Nesse patamar igualitário de tratamento, exsurge a seguinte indagação: é possível defender posicionamentos conservadores no atual cenário do Estado Democrático de Direito? Não obstante o pensamento dominante dos promotores da ideologia progressista, fortemente atrelada ao marxismo cultural, a resposta à indagação anteriormente formulada só pode ser afirmativa. Por marxismo cultural pode-se definir a reformulação do marxismo após a fundação da escola de Frankfurt, um movimento filosófico, formado por pensadores marxistas, que se debruçaram a pensar questões sociais e culturais atinentes a esse tema. Em resumo, pode-se dizer que o marxismo cultural, pensado inicialmente por Antonio Gramsci como sendo a inversão da superestrutura econômica diante da superestrutura cultural, passa a
ao elemento cultural das sociedades (pós) modernas. Agregando conceitos da psicanálise de Sigmund Freud com a tradução do marxismo em termos culturais, Marcuse findou por propor a revolução cultural ao invés de uma revolução proletária: a libertação do homem se daria pela destruição da cultural ocidental, e não mais pela tomada do poder pelos trabalhadores (proletários). A alienação do homem não é mais econômica, o aprisionamento, como indica Marcuse, é de ordem psíquica, o homem é reprimido culturalmente pela ideologia dominante. É da ideia psicanalítica de “perversidade polimorfa”3 que Marcuse cria o regramento do 2
Dentre essas denominações, pode-se citar, exemplificativamente, o termo “homofóbico” quando se trata de direitos e liberdades dos homossexuais, “racistas” quando se fala de políticas públicas de promoção do sistema de cotas. 3 Esse termo técnico da psicanálise, cunhado por Sigmund Freud (1974, p. 128), representa a possibilidade de o ser humano não ter um único direcionamento do qual pode extrair prazer dos seus sentidos, existem vários
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ser com Herbert Marcuse a total submissão do pensamento marxista, inicialmente econômico,
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FIDΣS “politicamente correto”, algo semelhante a uma cartilha do que pode ou não ser dito dentro do contexto da liberdade de expressão no espaço público. O grande problema com o pensamento “politicamente correto”, que, não por acaso, é bastante similar ao pensamento progressista, consiste na sua intolerância a todos os pontos de vista intolerantes, exceto o seu próprio ponto de vista (ainda que deliberadamente ele assuma ter tal característica ominosa). Ao se pensar um direito verdadeiramente plural, a tolerância por todos os pontos de vista, inclusive o conservador, finda por ser algo repressivo, em termos de regramento politicamente correto, haja vista que se assume que o conservadorismo é intolerante e, por isso, não pode ser tolerado (algo que pode ser resumido como a “intolerância dos tolerantes”). O pensamento plural, fornecido com as bases marxistasculturais e progressistas, advoga um direito posto “democraticamente” sob a égide de uma “tolerância libertadora”. Essa espécie de tolerância consubstancia uma intolerância seletiva: rejeita-se qualquer ideia conservadora (em termos ideológicos, qualquer ideia e movimentos da direita) e se aceita (ou melhor, incentiva-se) toda e qualquer ideia ou movimento da esquerda. Dessa forma, há de se observar, reconhecer e pontuar que os progressistas, que tanto defendem um Estado Democrático de Direito, na verdade, estão, seletivamente, propondo uma forma de “tolerância” totalmente totalitária. E, nesse empreendimento discursivo, a repetição do radical evoca não apenas a cacofonia, bem como o direcionamento que do “pluralismo” ser apenas uma fachada quando acaba por rechaçar o conservadorismo apenas por seu conteúdo dissonante para com aquilo que se convencionou denominar de
quem o é tem o privilégio de poder (e, em certo sentido dever de ser) intolerante com quem não é politicamente correto. Interessante notar que esse argumento de Marcuse (1969, p. 123) é, precipuamente, uma licença dada aquele que se intitular “politicamente correto” para que ele possa negar a liberdade de expressão a qualquer um que dele discorde, usualmente, sob o manto de lhe imputar ser um apologista do “discurso de ódio”. Tolher o discurso do outro é mais importante do que agregar mais um valor ao tão alardeado pluralismo. Então, qual é a base concreta do pluralismo, senão apenas conjugar valores próximos de si mesmo, de regramentos “politicamente corretos” e “progressistas”?
campos sensoriais a partir dos quais o prazer pode ser obtido, algo que desemboca no entendimento que a heterossexualidade não é um direcionamento único, e. em certo sentido, é uma concepção repressora intrínseca da cultura ocidental.
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“politicamente correto”. Cria-se uma verdadeira supremacia do politicamente correto, pois,
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FIDΣS Não há nenhuma confluência democrática em tolher a liberdade de expressão por meio de um argumento insustentável de tolerância repressiva marcusiana, algo utilizado de maneira indiscriminada no atual cenário jurídico brasileiro, no qual a opinião é criminalizada, vide o Projeto de Lei Complementar 122 de 2006, que pune, em seu texto original, qualquer reprovação ideológica, filosófica ou cultural do homossexualismo4 (ERICKSEN, 2012, p. 141). Não se afigura necessário adentrar em um tema tão específico como este para que o conservadorismo seja atacado, de maneira que existem outros temas que o colocam como sendo uma posição jurídico-político-filosófica injustificável. Qualquer alusão defensória à propriedade privada (contida em passagens constitucionais, como no caput do artigo 5º ou no inciso II do artigo 170 da Constituição da República de 1988) já é suficiente para que a pecha de reacionário seja logo atrelada a quem assim se posiciona. A ojeriza institucionalizada ao pensamento conservador também ocorre em questões concebidas como “intermediárias” ao senso comum, ou seja, questões que dividem claramente o grande público, como, por exemplo, a questão da possibilidade de armamento para defesa pessoal. Esse tema em específico, por mais que seja algo que divida as opiniões comuns, em termos bastante similares, é algo tido por aberrante pelos progressistas, que acham inadmissível o porte de arma para o cidadão comum (ainda que seja efetivado por meio de treinamentos específicos e apenas para habilitados técnicos). Assim, o conservador finda por ser concebido como sendo um pária no cenário democrático do direito hodierno. Ser conservador é mais do que ser ultrapassado ou
qualquer ideia (que ele julgue defender correta e que não esteja em consonância com a disciplina do politicamente correto). A intolerância dos tolerantes, a seletividade dos pluralistas e a necessidade de se seguir os planos ideológicos do politicamente correto atingem um elemento filosófico há tempos conhecido no cenário mais básico de qualquer discussão que se pretenda filosófica: a lógica. Por lógica, em um sentido bastante amplo e quase que beirando o senso comum, devese compreender a coerência em defender algo e não negar aquilo que é defendido (o princípio básico da não-contradição aristotélico).
4
Pune-se, inclusive, certas condutas de jaez puramente subjetivo com penas mais severas que crimes graves, como a lesão corporal, intervindo, principalmente, nas relações laborais. Para uma melhor explanação e um ponto de vista conservador sobre o tema, recomenda-se a leitura do artigo completo publicado na Revista Jurídica das Faculdades Claretianas.
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desatualizado, acaba por ser um estigma social, algo que o impede de debater publicamente
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FIDΣS Esse (pré) requisito elementar de qualquer debate (pretensamente) filosófico e democrático é totalmente dispensado pelos progressistas, afinal, não é possível compatibilizar a tolerância repressiva (em suas restrições seletivas e totalmente pré-definidas) com o cenário de possibilidades existenciais (humanistas5, ressalte-se) descortinados pelo pós-modernismo jurídico. Ser seletivo e, ao mesmo tempo, não ser seletivo, com o que convém, única e exclusivamente, ao seu próprio talante, é o que confere incoerência e falta de lógica à “teoria crítica” progressista, a qual dá suporte ao marxismo cultural e fecha as portas para uma perspectiva conservadora de se entender o direito. Em suma, pode-se afirmar, com um grau de acurácia bastante elevado, que o problema atual em poder ser (ou não) conservador (ou assumir uma postura conservadora), no cenário democrático do direito, deriva, precipuamente, de uma perspectiva dominante nos meandros acadêmicos do direito em aceitar, passiva e avassaladoramente, a noção de tolerância herdada do marxismo cultural marcusiano. A agenda do politicamente correto ao exalar um totalitarismo (pseudo) intelectual apenas faz com que uma miríade de “pensadores” do direito rejeitem sumariamente qualquer ideia ou posicionamento compreendidos como sendo “conservadores”, em última instância, pensamentos “de direita”. O pensamento conservador, em uma sociedade e em um Estado Democrático de Direito, que seja, efetivamente, democrático e deveras plural, deve, como uma necessidade inarredável, abarcar, também, o pensamento conservador, sem segregá-lo como algo impensável e detestável (talvez esse seja, verdadeiramente, o discurso de ódio). Dar margem a que se pense o direito sob o viés conservador é engrandecer a
liberta das amarras de qualquer espécie de seletividade formal das possibilidades de se pensar o que quer que seja. Traduz-se na desarticulação do “politicamente correto” em seu âmago, rejeitando sua tolerância intolerante e seu caráter ilógico (e, por isso mesmo, contrário ao pluralismo em essência). Ter lógica para ser plural é o primeiro passo para que o direito, democraticamente pensado, abra espaço para ter, em suas fileiras, pensadores conservadores tão (ou até mais) reconhecidos quanto os pensadores progressistas altamente louvados e celebrados pela “normatividade” do politicamente correto. 5
Separe-se, nesse momento, o existencialismo primordial de Søren Kierkegaard (2011, p. 16) da leitura pósmoderna do existencialismo humanista de Jean-Paul Sartre, uma leitura totalmente atrelada aos pressupostos básicos do marxismo cultural. Em grande medida, extirpar o cristianismo da leitura Kierkegaardiana e colocar o humanismo em seu cerne interpretativo é um dos pilares para a ascensão “progressista” da argumentação satreana, uma das visões disseminadoras do “politicamente correto” na Europa continental.
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pluralidade do direito. Significa, nesse passo, concebê-lo de forma realmente democrática e
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REFERÊNCIAS
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 10 jan. 2014.
ERICKSEN, Lauro. As Consequências Discriminatórias do PLC 122/06 na Seara Laboral: Uma Aplicação Desarrazoada do Princípio da Igualdade. Revista Jurídica das Faculdades Integradas Claretianas, v. 1, p. 133-155, 2012.
FREUD, Sigmund. The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud. Trad. James Strachey. London: Hogarth, 1974. 2 v.
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WALKER, Samuel. Hate Speech: The History of an American Controversy. Lincoln: University of Nebraska Press, 1994.
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1969. p. 95-137.
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TRIBUNAL DO JÚRI E SUA COMPETÊNCIA: UMA ANÁLISE CONSTITUCIONAL Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave1
A função judiciária típica, de solução de conflitos, é realizada por diversos órgãos judiciários, em sua maioria, formados por juízes aprovados em concurso público de provas e títulos. Há órgãos judiciais, entretanto, que possuem composição diversa. Os Tribunais, por exemplo, são compostos em sua maioria por juízes de carreira, mas por determinação constitucional um quinto de seus membros são provenientes da advocacia ou do Ministério Público (art. 94, CF). Esta formação diferenciada do órgão julgador não retira a legitimidade de suas decisões, em especial porque são adotadas dentro de um procedimento que viabiliza o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório. O Tribunal do Júri também é uma exceção. Previsto no art. 5º., XXXVIII da
jurisdicionais do Poder Judiciário. Composto por jurados leigos, ao Tribunal do Júri é assegurada constitucionalmente a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos vereditos e a competência para os crimes dolosos contra a vida. A discussão que se coloca é justamente a respeito da competência deste órgão, no sentido de ser possível sua ampliação e, em caso positivo, qual instrumento legislativo seria adequado para fazê-lo: lei ordinária ou emenda constitucional. Pois bem. O julgamento “pelos pares” como “um direito” ou algo mais benéfico àquele que está sendo julgado fazia todo o sentido na Inglaterra do século XIII, já que inexistia qualquer relação entre o exercício do poder – em especial o poder de julgar - e o 1
Doutora em Direito Constitucional pela UFPE. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Graduada em Direito pela PUC-SP. Professora e Coordenadora do Curso de Direito da UFRN.
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Constituição Federal, o júri possui funcionamento bastante diferenciado dos demais órgãos
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FIDΣS povo. Assim, a previsão da Magna Charta acerca do julgamento pelos pares (art. 39), tem por escopo limitar o poder real e vinculá-lo também à “lei da terra”. Entretanto, em pleno século XXI, num Estado Constitucional de Direito em que as leis são estabelecidas por representantes do povo e em que o Poder Judiciário não representa uma ou outra classe social, não sendo os cargos resultado de favor, dinheiro ou herança, o julgamento realizado por pessoas leigas (“os pares”), em nosso sentir, não confere vantagem ao sistema jurídico ou ao jurisdicionado. Dentre todos os argumentos contrários à possibilidade de alargamento da competência do Tribunal do Júri no Brasil, entendemos que a ausência de fundamentação das suas decisões é o mais forte, e é sobre este ponto que discorreremos a seguir. O art. 93, IX da Constituição Federal prevê expressamente que a fundamentação é requisito essencial a todas as decisões judiciais, sob pena de nulidade. A justificativa colocada pelo julgador quando um posicionamento é adotado é verdadeiro direito fundamental do jurisdicionado, que lhe permite perceber exatamente as razões que levaram à decisão adotada naquele caso. Como este dispositivo foi colocado no Texto Constitucional pelo constituinte originário e se mostra verdadeiro direito fundamental do jurisdicionado, somente uma previsão constitucional originária poderia contrariar o texto do art. 93, IX, CF. Este é um argumento formal e que já poderia justificar a impossibilidade de alargamento das competências do Tribunal do Júri no caso brasileiro. Entretanto, há ainda outras razões de ordem material que tornam inviável a ampliação do rol de casos a serem A fundamentação da decisão jurisdicional revela ao jurisdicionado o “por quê” da conclusão adotada pelo julgador, facilitando não só a aceitação da mesma, mas viabilizando a própria recorribilidade do julgado. Sabendo os motivos que levaram o julgador a decidir por um ou outro desfecho ao processo, o recorrente dispõe de meios para atacar a decisão, permitindo-se até mesmo o manejo de recursos que objetivam evitar incoerências internas na própria decisão (como os Embargos de Declaração opostos em razão de contradição). A fundamentação também é o instrumento que permite verificar a coerência daquele determinado julgado com o restante do sistema jurídico, já que uma mesma decisão, dependendo das razões que determinaram a sua adoção, pode mostrar-se coerente ou incoerente com o que resulta da interpretação sistêmica do ordenamento jurídico e com os precedentes judiciais existentes a respeito do tema.
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levados a júri, também relacionadas à problemática da fundamentação das decisões.
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FIDΣS E também com relação à utilização dos precedentes judiciais, a fundamentação das decisões ganha um novo relevo. Em pouquíssimas palavras, a utilização do sistema precedentalista demanda a aplicação da ratio decidendi de caso anterior ao que se encontra em julgamento, na hipótese de ambos os casos possuírem as circunstâncias similares (stare decisis). Esta sistemática viabiliza a manutenção da isonomia no tratamento do jurisdicionado (casos semelhantes merecem decisões semelhantes), a segurança jurídica e a previsibilidade do sistema jurídico. Para a correta extração da ratio decidendi (ou holding para os americanos), é necessária a análise das circunstâncias existentes na decisão anterior, de sorte a se verificar em que circunstâncias aquele princípio jurídico que se abstrai daquele julgado pode ser aplicado em casos futuros. A ratio está na fundamentação, e não no dispositivo da decisão judicial. Assim, percebe-se que os julgamentos feitos pelo Tribunal do Júri, por padecerem de fundamentação tornam-se, sob este aspecto, prejudiciais ao réu, haja vista não permitirem que um juízo de coerência sistêmica seja realizado em face da decisão proferida. No Tribunal do Júri, a decisão não é fundamentada e o princípio vigente é o da soberania dos vereditos (art. 5º., XVIII, CF), pelo que a decisão proferida pelo corpo de jurados deverá prevalecer, não obstante as razões que os levaram a tomar esta medida jamais sejam conhecidas. Parece difícil acreditar que esta situação seja aceita como algo mais benéfico ao réu... do Júri se encontra no art. 5º da Constituição, como uma “garantia fundamental”, parece-nos mais razoável compreender que a previsão de competência exclusiva do Tribunal do Júri para os crimes dolosos contra a vida é que se mostra como garantia fundamental. Em outras palavras, a previsão constitucional de competência do Tribunal do Júri apenas para os crimes dolosos contra a vida é uma garantia ao jurisdicionado, no sentido de que somente neste caso haverá limitação ao seu direito de exercer sua ampla defesa em todos os graus de jurisdição de maneira completa, podendo fazer uso de recursos ordinários e extraordinários para o fim de recorrer de decisão que considere injusta, ilegal ou inconstitucional. Nesta linha, por considerar que o Tribunal do Júri é prejudicial ao jurisdicionado, já que a decisão adotada pelos jurados não é fundamentada, inviabilizando a exata compreensão das causas que levaram à condenação e restringindo, assim, a recorribilidade do decisum,
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E nesta linha de raciocínio, considerando que a previsão da competência do Tribunal
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FIDΣS entendemos que a garantia fundamental está exatamente na limitação constitucional da sua competência, prevista como cláusula pétrea. Assim, entendemos pela inviabilidade de ampliação da competência do Tribunal do Júri, seja por lei ordinária ou por emenda constitucional, haja vista ser uma garantia fundamental protegida por cláusula pétrea (art. 60, §4º., CF) a competência do júri
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exclusivamente para o julgamento de crimes doloso contra a vida.
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A RETÓRICA COMO ANTÍSTROFE DA DIALÉTICA EM ARISTÓTELES Paulo Afonso Linhares “Guerre à la rhétorique et paix à la gramatique”. (Victor Hugo) 1 “Arte infeliz, “Retórica” chamada,/ ensino tuas leis, mas não as creio; / ou nunca ergueste fogo em peito alheio, / ou tu já hoje estás degenerada”. (Nicolau Tolentino) 2 “... a verbiagem oca, inútil e vã, a retórica, ora técnica, ora pomposa...”. (Manoel Bomfim) 3 “…a lei moral é a primeira e a última de todas , aquela pela qual cada uma das outras se fortifica e completa. É por isso que, com razão, os antigos faziam da virtude a condição essencial da eloqüência, definindo o orador como um uir bonus dicendi peritus”.(Bourdaloue) 4
O escopo do presente estudo é fazer um paralelo entre duas das grandes categorias que compõem o sistema de pensamento de Aristóteles, tendo como pano de fundo a reflexão
Doutor em Direito (Área de Concentração em Direito Público - Linha de Pesquisa em Neoconstitucionalismo: Direitos fundamentais, justiça e processo constitucional) pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE (2010). Mestre em Direito (Direito e Desenvolvimento) pela Universidade Federal do Ceará (1998). Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (1978). Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Diretor adjunto e articulista do Jornal GAZETA DO OESTE. Diretor-Presidente - Rádio Difusora de Mossoró S.A. Advogado militante. 1 “Guerra à retórica e paz à gramática.” Victor HUGO (in Les contemplations. Paris : Societé Webnet.Fr, 1996/2004). 2 TOLENTINO, Nicolau (1740-1811). Sátiras. In Édition critique et traduction des sonnets de Nicolau Tolentino de Almeida. » Thèse de 3e cycle, Études Ibériques, dactylographiée, 2 vols, UPV, 1971. 441 pp. 3 BOMFIM, Manoel. A América Latina. Males de origem. Rio de Janeiro : Topbooks, 1993, pp. 170-171. 4 PROFILLET, A. La rétorique de Bourdaloue. Paris : Belin, 1864, apud Manuel Alexandre Júnior, Retórica, de Aristóteles, introdução e notas. 2 ed. Lisboa : Imprensa Nacional- Casa da Moeda , 2005.
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1 INTRODUÇÃO
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FIDΣS que o filósofo estagirita enceta na sua polêmica obra Retórica, que não chega a ser das mais importantes de sua produção intelectual, embora lhe caiba o destacado papel de ter sido ele o primeiro rhétor a estabelecer as bases doutrinárias da retórica, inclusive, para, do ponto de vista formal, transportar para o campo retórico da argumentação as teses, ademais de dar ênfase às dimensões heurística e política da retórica, com inequívoca redução no valor daprova ética e emocional. A maior contribuição de Aristóteles, com a Retórica, foi a inovação que introduziu no pensamento grego ao dar especial destaque ao argumento lógico como eixo da arte da persuasão. A Retórica é uma obra que impõe ao leitor uma enorme disciplina e redobrada atenção para sua leitura, dados nos tantos aspectos polêmicos que envolvem o tema, desde os sofistas, que foram os “inventores” da retórica, até os dias atuais, inclusive uma natureza imprecisa, várias definições e uma complexa relação com a dialética, a partir mesmo da própria visão de Aristóteles que, na Retórica,5 em um momento, apresenta ambas como correlativas (1354a), para em seguida dizer que se assemelham (1355b) e passos adiante, finalmente, para dizer que “a retórica é, de facto, uma parte da dialéctica e a ela se assemelha” (1356a). É uma leitura que opõe muitos desafios teóricos-exegéticos que se vinculam de um modo geral à feição diacrônica do pensamento aristotélico. Claro, Aristóteles, usando de parcimônia, deixa de utilizar formalmente as categorias de gênero e espécie, de modo que quando afirma que retórica e dialética se assemelham, quer demarcar bem que elas não podem ser uma mesma coisa, isto porque a primeira tem elementos sui generis, que não pertencem à dialética, como a emoção e o efeito persuasivo do caráter. 6
retórica, aos seus epígonos não é aconselhável fazer certas afirmações, a exemplo de Émile Boutroux (1845-1921), estudioso da obra aristotélica, maître de conférence na École Normale Supérieure e professor da Sorbonne, que numa pequena obra intitulada Aristote, publicada no século XIX e traduzida para o português na sua quarta edição, de 1925 (Boutroux, 2000, p. 127), afirma que a retórica é uma ciência, algo que o próprio Aristóteles não afirma, mesmo porque, em que pesem as objeções do seu mestre Platão, no repúdio (herdado de Sócrates) à retórica – que à logografia fulcrada no verossímil e na adulação, contrapôs uma psicagogia voltada à apreensão do verdadeiro método dialético – ele pretendia inseri-la mesmo no seio da
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A edição em língua portuguesa utilizada neste estudo é a referida na nota anterior. Nas citações textuais será mantida a grafia original utilizada em Portugal. O número citado entre parêntesis refere-se ao local em que se encontra o trecho da obra citado ou apenas mencionado. 6 Cf. nota 27.
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Ora, se o próprio Aristóteles evita precisar gênero e espécie, quando se refere à
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FIDΣS própria Filosofia, posição esta posteriormente esposada por Cícero, no mundo romano, ele que, também foi um grande orador (rhetorico) e um teórico (rhétor) da retórica. Com efeito, além de ser “a outra face” ou parte da dialética, a retórica é tida por alguns como ciência, por outros como arte e ainda como técnica (no sentido de “arte”, em grego antigo: techné = τέχνη), esta bem mais próxima da concepção do próprio Aristóteles, porquanto o nome original da obra aqui estudada é Techné retoriké (τέχνη ρητορική), isto sem falar na concepção de Chaïm Perelman, para quem a retórica nada mais é que “uma arma da dialética”, ou na do Grupo μ de Liége, que a tem como “um instrumento da poética”. Há ainda alguns contemporâneos, como é o caso de Roland Barthes, que concebe a retórica como uma máquina devoradora de fatos e raciocínios, para afinal transformá-los em discursos: “Na ‘máquina’ retórica o que se põe no início, emergindo apenas de uma afasia nativa são materiais brutos de raciocínio, fatos...,o que se forma no fim é um discurso estruturado completo...” (PLEBE/EMANUELE, 2002, p.1). Vista exclusivamente sob esse ângulo, decerto que a retórica se apequena para assumir aquela dimensão que lhe deram os sofistas, de ser apenas uma arte do engôdo, dos malabarismos verbais, dos discursos que não tinham a verdade como fim último, mas a simples ânsia de vencer a contenda verbal, que estão da raiz das ásperas objeções que Platão faz à retórica no diálogo Fedro. Claro, foram Sócrates e Platão que enfrentaram mais diretamente os embates com os sofistas, que ensinavam a retórica como parte da filosofia, sobretudo, lutaram contra a posição de Isócrates, o maior dos retóricos gregos, que via a retórica identificada com o pensamento, denominando-a como philosophia. Ressalte-se que
outras questões relativas à política ateniense. Não foi por acaso a enorme derrota de Sócrates e de seus discípulos, inclusive Platão, que o fez beber a cicuta. Na acusação formulada por três cidadãos atenienses, Meleto (poeta), Ânito (comerciante) e Lícon (advogado), representando as forças hostis e surdas que não toleravam mais os argumentos invencíveis e a fina ironia do filósofo Sócrates, havia dois crime: “corromper a juventude” e “introduzir novos deuses na cidade.” Ao que tudo indica, a retórica de seus desafetos decerto foi bem mais eficaz, quando lhe impôs condenação à pena capital. Ainda, no século IV a.C., acusada da prática dos mesmos crimes, hediondos para o mundo grego, a bela cortesã Frinéia teve mais sorte, absolvida que foi por artes do seu hábil advogado, Hiperides, que a despiu em pleno Areópago, para o espanto dos juízes-cidadãos, os Heliastes que, vencidos e
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esses embates contra os sofistas, especialmente partindo de Platão, eram condimentados com
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FIDΣS deslumbrados, alternativa não tiveram senão a de absolver a loira Mnezarete, aliás, episódio que inspirou conhecido poema do parnasiano Bilac, o Julgamento de Frinéia7 Por seu turno, Aristóteles, tipicamente um meteco – que era o estrangeiro domiciliado em cidade grega – em não sendo ateniense, não detinha as preocupações de Platão com os destinos da polis, nem com a reforma das instituições políticas nela existentes. Assim, por não participar das contendas políticas locais, em especial contra os sofistas, não apenas percebeu a importância da retórica como decerto colocou-a no merecido lugar: Nem no inferno que lhe reservaram Sócrates, Platão e muitos outros inimigos da retórica, alguns até nos dias atuais, nem no paraíso em que a colocaram Górgias, Isócrates, Pródaco, Hípias, Trasímaco, Eutidemo, Dionisodoro e outros sofistas menos cotados. Aristóteles dá um enorme salto quando trabalha com categorias que lhe permitem identificar a retórica com a tópica, ou a arte de inventar, tanto que no segundo livro da Retórica ele trata da invenção de conceitos, dos tópoi, enquanto no terceiro livro refere-se à invenção das expressões, da léxis, culminando por conceituar a retórica como sendo “a arte de descobrir os meios de persuasão possíveis relativamente qualquer argumento”. A “arte” (τέχνη) de que nos fala Aristóteles aparece hoje como algo diferente do conceito contemporâneo de arte, mais se aproximando, repita-se, da noção atual de “técnica”. Embora sendo quem mais profundamente refutou, mais do que seus mestres Platão e (indiretamente) Sócrates, refutação essa traduzida principalmente na obra Dos argumentos sofísticos (Σοφιστκοί ελέγχοι),8 Aristóteles não se rendeu ao preconceito quando resolveu criar a sua doutrina acerca da retórica, como já asseverado antes, uma criação por excelência do
cultural do mundo antigo que era Atenas com apenas dezessete anos, para completar seus estudos, viu diante de si dois caminhos: o da escola de Isócrates, cujo projeto de ensino era desenvolver no educando a aretê política, a virtude, que era a capacitação para viver na polis, a partir do aprendizado da arte de “emitir opiniões prováveis sobre coisas úteis”, que não passava do eficiente exercício da arte de persuadir, por oradores que detinham a habilidade de manipular as palavras utilizando técnicas retóricas; e o da Academia, do filósofo Platão que, contrariamente a Isócrates, ensinava que a ação política, como de resto qualquer outra ação, dependeria de uma base científica, geralmente de cunho matemático (no pórtico do edifício da Academia havia um dístico segundo o qual ali só entraria “quem soubesse geometria”), ou seja, para ser correta e responsavelmente cultivada, a ação humana deveria pautar-se pela 7 8
Cf. BILAC, Olavo. Poesias. Sarças de fogo. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 1996. Cf. ARISTÓTELES. Dos argumentos sofísticos. Vol. 1. Col. Os Pensadores. São Paulo : Abril Cultural, 1978.
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pensamento sofista. Vale lembrar que o jovem macedônio, Aristóteles, chegado ao centro
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FIDΣS ciência (episteme) baseada na realidade em que estava inserida. Não hesitou em fazer a segunda opção, embora não revelasse pendores para o matematismo tão arraigado da Academia, num momento em que o próprio Platão estava a viajar e a direção da escola ficou a cargo de Eudoxo de Cnido, matemático e astrônomo, que posteriormente apresentou o jovem aluno àquele. Narra Diógenes Laércio (V, 2), que diante do portento intelectual do jovem discípulo e se sua enorme sede de conhecimento, Platão teria dito: “Aristóteles me tem dado patadas como os potros na mãe que lhes deu à luz”. Todavia, a existência de uma influência platônica em parte da obra aristotélica, transformou-se num altar para exaltação do mestre, de modo que enquanto Aristóteles faz vigorosas refutações das categorias platônicas, revela por Platão um sentimento de gratidão, de fidelidade e de respeito, embora mantendo rigorosamente a sua posição de independência de crítica filosófica. Bem a propósito, na sua Ética a Nicômaco (I, 4, 1096 a, 11-6), o próprio Aristóteles demonstra quão penosa lhe é a tarefa de refutar a doutrina platônica das idéias, dada o seu respeito mestre, que a formulou, bem assim pela amizade àqueles que a defendem: “Entretanto, talvez seja melhor, inclusive um dever, para a salvação da verdade, prescindir dos assuntos privados, sobretudo se se é filósofo: a amizade e a verdade são ambas estimáveis, porém, é coisa santa honrar mais a verdade”. Com pouco mais de vinte anos, após ter sua genialidade reconhecida por Platão, ele passa a lecionar retórica na Academia, voltando a sua reflexão para ela, embora a sua obra Techné Retoriké somente venha a surgir no fim da vida. Paradoxalmente ele se torna um rhetor antes de ser um retórico, contrariando toda a história anterior, em especial a dos sofistas, que eram
retórica. A importância dos sistemas de pensamento desenvolvidos por Platão e por seu discípulo Aristóteles, que traduzem dois estilos diferentes de pensar a natureza, pode ser aferida na boutade de Arthur O. Lovejoy,9 em que afirma sem exagero que toda a história do 9
Arthur O. Lovejoy, historiador e filósofo germano-americano (nasceu em Berlim, 1873 – faleceu nos EUA, em 1962), professor da Johns Hopkins University (de 1910 a 1939), foi o fundador do “Movimento da História das Idéias”, depois elevada à condição de disciplina autônoma, hoje tão em evidência nos diversos ramos do conhecimento, além da revista Journal of the History of Ideas, criado por Lovejoy em 1940. Na sua obra mais famosa, The Great Chain of Being, publicada em 1936, ele examinou a idéia, derivada do filósofo neoplatônico Plotino, que parte de Aristóteles e Platão, de que toda criação forma uma cadeia. Essa cadeia inclui tudo aquilo que poderia existir, possivelmente começando com a idéia de Deus e desenrolando uma série infinita de formas, cada uma das quais compartilha um atributo, pelo menos com seu vizinho na cadeia. Lovejoy localiza essa idéia por cerca de dois mil anos da história intelectual e demonstra sua influência em pensamento ocidental. O livro e a revista podem ser considerados os marcos iniciais da criação da disciplina ou subárea de conhecimento chamada hoje de história das idéias ou história intelectual. (Ver José Murilo de Carvalho, História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura, em http://www.ifcs.ufrj.br/~ppghis/pdf/topoi1a3.pdf).).
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inicialmente grandes retóricos (oradores), para depois se tornarem retores, ou seja, teóricos da
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FIDΣS pensamento ocidental se resume a algumas notas de rodapé a Platão e Aristóteles. O primeiro foi o grande crítico da retórica, enquanto o segundo foi o seu maior sistematizador, situandose suas diferenças na justa distância que separa o mecanicismo clássico platônico do indeterminismo moderno aristotélicas.10 Embora não seja uma tarefa fácil, a fiel compreensão dessa obra de Aristóteles serve para resolver uma série de questões em vários campos do conhecimento, que vai da estilística, passando pela teoria da linguagem e chegando aos avançados estudos acerca da argumentação. Claro que a retórica é vista em muitos setores de forma pejorativa, como algo fronteiriço ao engodo, à malandragem, ao malabarismo vazio das palavras, à falsa afetação estilística, à substituição das idéias por medíocres expedientes lingüísticos, pechas que ganhou a partir da metade do século XVIII, projetando-se por duzentos anos à frente, até metade do século XX, quando se iniciou a reabilitação da retórica, sempre e a partir do caminho traçado por Aristóteles na sua emblemática e ainda muito incompreendida Techné Retorikê, que suscita muitas dúvidas e apaixonados debates, com a mesma força que mostrava nos séculos III e IV a.C. Nos duzentos anos de desprestígio que enfrentou na Europa, paradoxalmente nasceu a concepção moderna da retórica, a partir da edição dos tratados retóricos da Dumarsais e Fontanier (séculos XVIII e XIX), em que passa a ser fundamentalmente uma arte da expressão literária convencionada, enquanto que na França, Itália e Alemanha, ela gradativamente se transmuda em teoria da prosa literária e, finalmente, no Reino Unido a sua sobrevida se deu graças ao papel destacado que teve a psicologia no empirismo de Bacon, Locke e Hume, ademais da relevância que teve, também, a filosofia
distanciou do veio aristotélico, embora certamente tenha sido como táticas de sobrevivência no hostilíssimo ambiente da Idade Média européia, sob a hegemonia da Igreja Católica romana, em que o pensamento grego, sobretudo, de Platão e Aristóteles, passavam pelos filtros da filosofia patrística, cujo principal expoente foi Santo Agostinho (354-430) e a filosofia escolástica, liderada por Santo Tomás de Aquino. Muito de Platão chegou até nós graças Santo Agostinho que, aliás, foi oficialmente professor de retórica em Milão, antes de converter-se ao catolicismo e ser ordenado sacerdote (391) e consagrado bispo e Hipona; um tanto do legado enorme de Aristóteles chegou aos dias de hoje pelo gênio de Santo Tomás de Aquino, apesar de todas as objeções que se possa fazer à velha escolástica.
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escocesa do bom senso (PERELMAN, 1979, pp.3-4). Claro que nessas acepções em muito se
Ver CARVALHO, Olavo. Apologia de Émile Boutroux (Int.). BOUTROUX, Émile. Op. cit., p.8.
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FIDΣS No pensamento contemporâneo, além da retórica ser considerada “arma da dialética” (Perelman) ou “um instrumento da poética” (Grupo μ de Liége), fato é que cada vez mais os seus estudos de voltam para a fonte aristotélica: “E a ‘virada retórica’ nos dias atuais, que assume a retórica como um sistema de análise, tem muito a ver com seus resultados práticos, especialmente no que concerne ao direito e ao estudo das decisões judiciais” (Adeodato, 2002, pp.263-264 – grifos acrescentados), posição esta que estabelece um grau bem acentuado de aproximação das concepções de Aristóteles. Inegável que as investigações de Chaïm Perelman, sobrelevando a Teoria da Argumentação, por mais críticas que possa merecer o seu trabalho, deu um grande impulso à retomada contemporânea dos estudos da Retórica de Aristóteles. Doutra parte, na sua obra Retórica Antiga, o já citado Roland Barthes, a par de negar à retórica o status de ciência ou mesmo de arte, assevera ser ela uma “protociência”, que deve ser entendida apenas como sendo a retórica “uma ciência preliminar às ciências humanas”, ademais de ser, também, “preliminar da filosofia, porque lhe prepara o material de categorias; preliminar à lógica, porque estuda as formas mais gerais de raciocínio, de que as rigorosas formas da lógica constituem uma parte; preliminar à estética, porque lhe fornece as técnicas inventivas específicas da elocução” (PLEBE/EMANUELE, 1992, p. 7). Enfim, parece que a compreensão do pensamento hodierno é a de que a retórica é chave para abrir muitas portas, para o bem ou para o mal, embora a verdadeira retórica somente possa ser compreendida na dimensão ética da busca da verdade. Utiliza este estudo, como base maior, o texto da Retórica, de Aristóteles, edição em língua portuguesa do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa/Imprensa Nacional-Casa
contrapõem retórica-dialética ou retórica-filosofia, objeto das tantas discussões travadas entre Sócrates e Platão contra os sofistas Górgias e Isócrates, justo porque ainda são questões irresolvidas, dezessete séculos depois! Claro, excluindo-se o enorme legado do genial filósofo de Estagira. A presente abordagem parte da perspectiva de que a Retórica, de Aristóteles, deve ser lida sob a ótica da inventio, da invenção de conceitos, por nos parecer ser esta a mais autêntica e veraz para se retomar, nos dias atuais, o caminho traçado pelo genial filósofo e inigualável rhetor. Ao lado de algumas questões já levantadas nesta introdução, é de mister estabelecer os precisos contornos da retórica, para em seguida confrontá-la com a dialética, inclusive, com a aviventação da antiga rivalidade existente entre retórica, dialética e filosofia. Por fim, embora reconhecendo que técnicas retóricas ainda hoje são largamente utilizadas para ilaquear a boa-fé das pessoas, em muitas áreas da atividade humana, sendo as mais
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da Moeda, Lisboa, 2005, este estudo pretende lançar alguma luz na discussão em que se
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FIDΣS perniciosas as que encorpam certos discursos político-partidários – que fariam corar qualquer sofista empedernido -, de determinadas seitas religiosas que operam exclusivamente a partir da exploração da ignorância alheia e de publicidade de bens e serviços cujas qualidades são artificiosamente aumentadas, ainda assim há de se olhar a retórica a área do conhecimento que estuda os meios de persuasão que compõem o discurso consentâneo com a verdade e como sendo o modo útil e necessário à verbalização humana, que se conforma “ao pensamento na interpretação e na veiculação da mensagem” (ALEXANDRE JÚNIOR, 2005, p.27). Uma retórica como expressão da vida humana, que sirva ao desiderato do aprimorar o conhecimento sobre os meios de persuasão, conformados na verdade, tão imprescindíveis à convivência nas sociedades democráticas. Por fim, a construção do título deste estudo, em que a retórica é colocada como antístrofe da dialética, posto que expresse a discussão aqui travada, não chega a ser original, em vista ter sido utilizada pelo próprio Aristóteles – E retoriké estin antístrophos te dialektikê - (1354a, 1/2), quando utiliza essa expressão tirada da arte teatral, a antístrofe, para “significar senão a cumplicidade formal comum aos âmbitos retórico e dialético”, de modo que o “proceder retórico não se mescla propriamente ao processo metodológico de outras ciências, porém todas se constroem a partir de formas destacadas em discurso para a enunciação e o debate das idéias epistêmicas” (BITTAR, 2003, p. 1291).
2 AS DEFINIÇÕES DE RETÓRICA E SUAS DIFERENÇAS FACE À DIALÉTICA: O
O grande mérito da obra geral de Aristóteles é o seu rigoroso comportamento analítico, no qual transparecia um grande apego à definição das inúmeras categorias com que trabalha, isto certamente fruto do seu pendor pela observação e classificação dos seres biológicos, ele que descendia de uma família de esculápios (seu pai, Nicômaco, era médico do rei Felipe, da Macedônia), e contrário ao matematismo reinante na Academia de Platão, que o recebera ainda adolescente. A sua Retórica não foge à regra, embora, como á sabido, seja um texto difícil, vazado em linguagem densa e permeada de elipses, o que a torna muito difícil de interpretação e, sobretudo, de ser transmitida com clareza. No entanto, extrair uma definição de retórica é uma empreitada ingente, a começar pela circunstância de que jamais se pode falar numa “retórica clássica” porquanto jamais houve uma sistema uniforme que a congregasse num corpo de categorias comuns. Partindo da
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SILOGISMO E O ENTIMEMA.
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FIDΣS oratória, sobretudo a religiosa e a fúnebre, antecedente e berço da retórica, Córax e Tísias de Siracusa, no século IV a.C., escreveram o primeiro manual de retórica, marcantemente sintagmático, enfatizando as partições do discurso, em especial aquela que enfeixava uma conclusão (dispositio). Foram sucedidos por Górgias, para quem o orador seria um psicagogo, alguém que guiava as almas após encantá-las com as palavras, porém, numa perspectiva de discurso erudito, de rigoroso tratamento estético, com uma valorização do estilo e da composição como formadores da elocutio. Embora duramente atacado por Platão, Górgias de Lentini (Sicília), que viveu 109 anos, teve inúmeros seguidores de seu pensamento que se traduzia em três teses fundamentais, concatenadas entre si: 1) Nada existe; 2) Se algo existe não é cognoscível pelo homem; e, 3) Ainda que possa ser algo cognoscível, é incomunicável aos demais homens. Depois, aparece a Retórica de Aristóteles, como sistematização rigorosa e própria dessa “arte”, embora sem lograr o êxito de impor um só sistema retórico, apesar de que as obras que surgiram após, principalmente no mundo romano, elaboradas por Cícero (De inuentione; De oratore) e por Quintiliano (Institutio oratoria), porém, sendo o tratado de retórica mais antigo em língua latina o Rhetorica ad Herennium, obra anônima de 84/83 a.C., ora atribuída a Cícero ora a Cornifício. O ciclo da retórica clássica se fecha praticamente com Hermágoras de Temnos, que viveu no século II. Paradoxalmente, Platão e seu desafeto Górgias, na esteira de Córax e Tísias, têm uma mesma definição de retórica, como sendo “geradora de persuasão” (πειθοΰς ςημιουργός). Por seu turno, Aristóteles, não acreditava que a retórica fosse diretamente a geradora da
Temnos, seria a retórica apenas a capacidade de falar bem a respeito de assuntos públicos. Finalmente, o estóico Quintiliano, grande difusor da retórica no mundo latino, esta nada mais era que a ciência de bem falar (scientia bene dicendi). Essas diferenças são fortes indicativos de que são formulações que traduzem distintas preocupações, acerca da natureza e do objetivo da retórica e seu conteúdo ético. Claro, das definições de retórica do período clássico, se salva honrosamente a de Aristóteles, porquanto mesmo com as expansões com que chegou aos nossos dias, inclusive com seu prestígio restaurado, em grande parte graças ao trabalho de Perelman, repita-se, a sua definição não se tornou defasada. Os “meios de persuasão” são argumentos que, por seu turno, nada mais são do que
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persuasão, mas, segundo seu pensar, apenas parecia ser capaz de descobrir os meios de
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FIDΣS (...) tentativas de sustentar certos pontos de vista com razões. Neste sentido, os argumentos não são inúteis; na verdade, são essenciais (...) em primeiro lugar, porque constituem uma forma de tentarmos descobrir quais os melhores pontos de vista. Nem todos os pontos de vista são iguais. Algumas conclusões podem ser defendidas com boas razões e outras com razões menos boas (...) Os argumentos também são essenciais por outra razão. Uma vez chegados a uma conclusão baseada em boas razões, os argumentos são a forma pela qual a explicamos e defendemos. (WESTON, 2005, pp. 13/14).
A retórica clássica, teorizada pelos latinos, teria três partes: a inventio, a dispositio e a elocutio. A argumentação é identificada por Perelman com a antiga teoria da inventio, embora essa posição seja vigorosamente combatida pelo Grupo de Liége, que apenas vê utilidade na elocução (elocutio)11 que, na verdade, se confunde com a própria retórica, identificando-a com a noção de “texto”. Em suma, a retórica nada mais seria do que uma espécie de ciência do texto, cuja característica principal seria a diferenciação da linguagem ordinária (PLEBE/EMANUELE, op. cit., p. 3), embora a postura desse grupo de estudiosos da retórica não contorne alguns óbices importantes, sobretudo, porque ela não apenas serve ao propósito de ser um meio de diferenciação e alteração da linguagem ordinária. Se a elocução adapta palavras e expressões à necessidade da invenção, esta constitui o marco inicial e o objetivo maior da retórica. Esta “retórica da invenção”, defendida por Armando Plebe e Pietro Emanuele, se contraporia à “retórica da execução”, de Perelman e do Grupo de Liége, seja, no primeiro caso, a que cuide de realizar convencimentos, seja, no segundo, apenas a tentativa de
Aliás, críticas acerbas são feitas ao aristotelismo de Perelman, soi-disant um neoaristotélico, pela circunstância de que identifica de modo automático a retórica com a dialética, coisa que o próprio Aristóteles não fez, limitando-se apenas a mostrá-las como categorias. Aristóteles faz um engenhoso jogo de palavras quando afirma que a retórica é uma atividade paralela à dialética, o que não indica jamais que esta seria uma espécie daquela, ou vice-versa. Claro, não deixa Aristóteles de sobrelevar o papel da lógica e sua relação com a retórica, o que decerto serve para estabelecer uma diferença basilar entre a retórica e dialética: enquanto a primeira se ocupe de questões particulares, a segunda trata daquelas de cunho universal (KENNEDY, 1991, p. 39).
11
Na Rhetorica ad Herennium a elocução nada mais é que uma adaptação de palavras e expressões à necessidade da invenção (verborum et sententiarum ad inventionem accomodatio). Cf. Plebe/Emanuele, op. cit., p. 4.
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realizar figurações.
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FIDΣS Para Aristóteles, as pessoas comumente questionam e sustentam um argumento, como na dialética, defendem-se e acusam, como na retórica, embora essas práticas não sejam objetos de uma reflexão, quando muito traduzem meros hábitos. Entretanto, o ideal é que agissem de acordo com um método estruturado a partir do estudo de como são bem sucedidas tanto as pessoas que agem espontaneamente, quanto mesmo aquelas que agem por hábito. Esse estudo seria “tarefa de uma arte” (1354a), que se ocupa dos “argumentos retóricos”. A forma dedutiva de argumentação retórica, que tem no paradigma sua forma indutiva, é um silogismo retórico ou entimema. O entimema, que é uma espécie de silogismo – a dialética cuida dos silogismos em todas as suas variantes, o que explica a proximidade desta com a retórica – funciona com demonstração retórica, sendo “a mais decisiva de todas as provas por persuasão” (1355a). A prova por persuasão nada mais é que uma demonstração, porquanto há persuasão quando a pessoa entende que algo está demonstrado, demonstração esta que, em retórica, se faz através dos entimemas. Na verdade, muito séculos após Aristóteles, os estudiosos de sua Retórica passaram a entender o entimema como sendo um silogismo abreviado, no qual não está expressa uma das premissas, geralmente a maior, p. ex., “Sócrates é mortal porque é homem” ou, em ordem inversa, “Se Sócrates é homem é mortal”. Nestes casos, resta implícita a premissa maior “todos os homens são mortais”. Em suma, quando se enuncia um entimema, parte-se do pressuposto de que em já sendo conhecida e aceita uma premissa do silogismo, geralmente a maior, pode ser ela omitida. O objetivo, ensina Aristóteles, é que o entimema seja expresso com bem menos premissas que o silogismo primário, dialético, cuja expressão plena implica na existência de
suprimida. Isto dá uma pista importante para uma outra distinção entre retórica e dialética. Como a linha de raciocínio expressa em silogismo é mais extensa e de difícil compreensão pelas pessoas simples (segundo George Kennedy, na obra já citada, a prova da dialética deriva da opinião geral, da maioria ou dos sábios, de modo que para uma proposição ser tida como dialética, é de mister seja aceita pelos sábios e não pareça indigna de credibilidade às pessoas comuns), se
faz
imprescindível
um
instrumento mais
expedito, simplificado e
persuasivamente eficaz de expor argumentos, que é o entimema. Destarte, tendo os seus silogismos simplificados pela não enunciação de uma das premissas e, portanto, sendo de mais fácil compreensão por parte das pessoas em geral, a retórica não perde por isto o seu caráter verdadeiro e de ser digna dos próprios deuses, como quer Platão (FEDRO, 273e). E a dialética, como a retórica, também trata da persuasão a partir de demonstrações, porém, utiliza silogismos mais extensos que, embora não possam ser tido
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premissa maior, premissa menor e conclusão; no entimema, uma dessas premissas pode ser
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FIDΣS como incríveis pelas pessoas comuns, são mais próprios de acolhimento pelos sábios, ou seja, podem não ser tão eficazes para veicular um discurso político ou um discurso de defesa, acusação ou decisão do juiz, contrariamente do que acontece com a retórica é adequada a esses espaços, com seus silogismos tout court, os entimemas, e opera três tipos de discursos: o deliberativo, o judicial ou o epidítico. Embora não seja o foco de sua análise a questão ética que permeia a retórica aristotélica e passava ao largo nos tratados retóricos dos sofistas, é importante lembrar que após asseverar que os entimemas deveriam ser capazes de veicular argumentos persuasivos sobre coisas contrárias, a exemplo dos silogismos, diz que “não se deve persuadir o que é imoral” (1355a), tudo para que não o se perca a real estado da questão em discussão e para que habilite a pessoa a argumentar eficazmente em face de um discurso contra a justiça. Para Aristóteles, somente a dialética e a retórica se ocupam das contradições e são capazes de obter conclusões acerca de contrários através de silogismos, o que evidencia a semelhança que há entre ambas, sendo que a utilidade da retórica está no discernimento dos meios de persuasão que mais se adequam a cada caso, não sendo a sua função persuadir, como não é função da medicina dar saúde ao doente, mas descobrir os meios de sua cura, contrariamente do que pensavam o próprio Platão, Górgias e os seguidores deste. Por outro lado, do mesmo modo que na dialética há o silogismo verdadeiro e o silogismo aparente, ou falso, “o que faz a sofística não é a capacidade mas a intenção” e conclui que “um será retórico por conhecimento e outro por intenção, ao passo que, na dialéctica, um será sofista por intenção e outro dialéctico, não por intenção, mas por capacidade” (1355b).
referida anteriormente, no tocante ao uso tanto da dialética quanto da retórica. Para ele, na dialética que utiliza corretamente a faculdade é um “dialético”; quem faz dela um uso desviado da intenção é um “sofista”. Todavia, no domínio da retórica, os que dela fazem uso correto e incorreto têm um mesmo nome, que é rhétor, retórico, apesar da necessidade de distingui-los: um é rhétor por ciência (equivalente ao dialético) e o outro um rhétor por intenção (que equivale ao sofista), de modo que é na intenção moral do orador que reside o prejuízo da retórica e não apenas na faculdade oratória, como erroneamente defendia a crítica platônica, segundo elucida Quintín Racionero.12 Assim, em palavras mais simples, O objetivo, ensina Aristóteles, é que o entimema seja expresso com bem menos premissas que o
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Esta classificação de Aristóteles, embora hermética, tem a ver com a dimensão ética
Cf. Aristóteles, Retórica, Madrid : Gredos, 1990, p. 173.
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FIDΣS silogismo primário, dialético, cuja expressão plena implica na existência de premissa maior, premissa menor e conclusão; no entimema, uma dessas premissas pode ser suprimida.
3 A ANTIGA RIVALIDADE ENTRE RETÓRICA, DIALÉTICA E FILOSOFIA
Ao entender a retórica como apenas sendo capaz de descobrir os meios de persuasão acerca de determinado assunto ( ), delimitou o campo de atuação do rhétor e o seu objeto de estudo, de tal modo que “está-se a falar de uma teoria acerca do que seja adequado em cada caso para a tarefa do convencimento” (Bittar, 2003, p. 1297), ademais de o estudo da retórica não corresponder a qualquer dos gêneros científicos conhecidos. Permeia todas as ciências sem, contudo, operar com nenhum dos elementos inseridos em alguma dessas ciências (epistemái), embora tenha o seu próprio objeto (capacidade de descobrir os meios de persuasão acerca de determinado assunto) bem delimitado. Por isto é que talvez lhe caia bem a conceituação de Barthes, já citada, de que seja uma “protociência”. A retórica é teoricamente autônoma, na medida em que nenhuma ciência tem como objeto a descoberta dos meios persuasivos sobre determinados assuntos, ademais da especial circunstância de que o rhétor cuida com provas e não de conceitos, tendo o seu raciocínio como base o silogismo retórico, o entimema. Deste modo, o que mantém a retórica afastada das ciências, faz com que se aproxime tão perigosamente da dialética, que chega a induzir em erro até lúcidos
assemelhadas, como defende o próprio Aristóteles. Com efeito, em, que pese a semelhança com a dialética, a retórica em o seu espaço perfeitamente delimitado e certo em torno de um objeto que lhe dá autonomia, não como epistéme, mas com o tchné (BITTAR, 2003). Essa delimitação, aliás, começou antes de Aristóteles, na época em que se travou acirrado embate entre Sócrates, que defendia a dialética, Platão, que defendia a filosofia, e Górgias, que defendia a retórica. Os historiadores da idéias delimitam esses embates – além do aparecimento explícito, no pensamento ocidental, da filosofia, da dialética e da retórica - entre os anos 427 a.C. e 387 a.C. O ano 427 a.C. tanto teria marcado pelo nascimento de Platão (alguns autores traze o ano 428 a.C.), quanto pela chegada a Atenas do retórico Górgias, que já contava cinqüenta anos, enquanto Sócrates, nascido provavelmente em 469 ou 470 a.C., já contava mais de quarenta anos. O ápice desse embate, que iria conformar definitivamente o pensamento ocidental, se deu no ano
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pensadores, que vêem ambas como de mesma identidade, como quer Perelman, e não apenas
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FIDΣS 387 a.C., quando o filósofo Platão já estavam com quarenta anos, seu opositor Górgias já era um ancião, com a avançada idade de noventa anos e Sócrates já havia morrido há cerca de doze anos, com a publicação do seu diálogo denominado Górgias, em que atacava com muita dureza o retórico e, de um modo geral, a própria retórica, opondo a filosofia a esta. Aliás, nenhum dos escritos de Platão traz tanta agressividade quanto esse diálogo que, segundo Nietzsche, transpareceu a inveja suscitada pelo belíssimo e decantado Elogio de Helena, escrito vinte e sete anos antes por Górgias. Claro que as desavenças entre pensadores não devem servir de explicação para um problema que trespassou séculos, chegando aos diais atuais. Como se viu, ao invés dos cultores dessas áreas do conhecimento, naquele quarentenário em que elas ganharam autonomia, buscar uma fixação de suas identidades, procuraram o caminho do confronto, inclusive com uma “aliança” entre filósofos e dialéticos contra retóricos, que durou até a chegada de Aristóteles a Atenas. Toda essa refrega não conseguiu afastar uma verdade palmar, de que a filosofia, a dialética e a retórica atuam num mesmo campo e empregam categorias assemelhadas, resumindo-se nos seguintes os seus pontos comuns, aqui genericamente considerados: propõem problemas de caráter geral, que são sustentados através de teses e estas discutidas para que possa ser demonstrada a sua validade. As diferenças entre retórica e filosofia, todavia, foram mais fáceis de ser estabelecidas, a partir de um paradigma fácil de ser entendido: a retórica está para a filosofia, assim como um esporte competitivo (“agonístico”) está para um esporte meramente
exsurge o seu cunho de competitividade, ao passo em que a filosofia trabalha com critérios dissociados da idéia de competição, a exemplo das dicotomias falso-verdadeiro, bom-mau, bem-mal etc., embora a filosofia, ainda naquele período, se haja contaminado com a competitividade da retórica, refletindo essa agressividade inclusive nos embates entre escolas de diferentes pensamentos filosóficos, projetando-se aos dias atuais. O ponto em comum entre filosofia e retórica é que ambas é “o fato de ambas serem aventuras eminentemente individuais, infensas a qualquer colaboração de grupo”(PLEBE/EMANUELE, op.cit., p. 11), contrariamente da dialética que surge como atividade eminentemente coletiva, de colaboração, nem sempre voltada à competição, porém, quando isto ocorre, a competição se refere a todo grupo, de modo que a derrota é sempre compartilhada pelo derrotado e o grupo que o apoia.
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recreativo. Na retórica é imprescindível o sucesso, o êxito, a vitória do argumento, donde
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FIDΣS O argumento de Platão na sua polêmica com Górgias, em defesa da filosofia e contra a retórica, situava-se na pressuposição de ser possível um pensamento verdadeiro, a despeito de não ser eficaz, justo por não ser a filosofia comprometida com o resultado, com o êxito do argumento, “agonística”. Numa posição intermediária se situava a dialética defendida por Sócrates, que tinha como hábito as discussões públicas, na qual envolvia seus discípulos igualmente contra seus opositores, o que demonstra o caráter coletivo da dialética, como dito anteriormente. A dialética, porém, a exemplo da filosofia, elege critérios objetivos que a afastam da idéia de competição, embora entenda, contrariamente à filosofia, que não é essencial à formulação de conceitos. Certo é que o divórcio entre a filosofia e a retórica, plasmado no agressivo texto de Platão no seu Górgias, teve conseqüências extremamente danosas para a retórica que, apesar dos esforços de Aristóteles transfigurados na sua inexcedível Teché Retorikê, foi e até os dias atuais alvo de muitos rancores e vítima da ignorância de tantos. Aliás, quando alguns aspectos do presente estudo eram objeto de pesquisa na Internet, pode-se colher na página inicial do site do provedor Uol (www.uol.com.br) a seguinte manchete: “Presidente quer mais ação e menos retórica”. Claro nessa frase, sente-se, que continuam bem vívida a polêmica Platão-Górgias, na qual, aliás, não apenas foi vítima apenas a retórica, mas, o próprio filósofo Górgias e os sofistas, seus seguidores, que, apesar da contribuição que deram ao pensamento ocidental, passam a ser vistos como verdadeiros vilões, tanto que Diógenes Laércio, que escreveu a célebre obra Vida dos filósofos, em que traça o perfil de oitenta e dois cultores da filosofia na antiguidade clássica, alguns até absolutamente insignificantes, praticamente “esqueceu” o velho Górgias.
movimentos que visem um resgate do legado dos sofistas, a exemplo da grande contribuição de Isócrates, hoje considerando por alguns estudiosos da retórica, como o maior dos retóricos gregos. Parece ser da natureza da retórica esse apego à competitividade, desde os primórdios aos dias atuais, o que marca indelevelmente o estilo retórico, merecendo destaque um asserto de Quintiliano, no oitavo livro de sua De institutione oratoria, quando, ao distinguir a retórica da história, diz que se a tarefa dos historiadores de fazer narrativas é importante que “nós, retóricos, estejamos sempre em pé de guerra” (nos rhetores armatos stare in acie), no que é secundado por seu discípulo, Plínio, o Jovem, que diz caracterizar a retórica um “stilus pugnax”, um “estilo combativo.” Na dialética o processo é bem diferente, na medida em que os opostos colaboram para superação do antagonismo, forjando uma situação nova em que concorram elementos de
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Nos séculos seguintes a história não foi diferente, embora nos últimos tempos haja
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FIDΣS todos os opositores. O “estilo combativo” da retórica, de Górgias ao dias atuais, sendo esta uma atividade solitária de cada indivíduo, tem explicação decerto na necessidade intrínseca de estimular à criatividade, na formulação dos conteúdos em cada situação, possibilitando, assim, a invenção de conceitos, a partir da problematização temática e da busca de suas soluções. Quando a retórica se afasta do azimute da inventio perde sua força criadora, fica como fogo que nada queima ou ácido que nada corrói. A construção de uma retórica renovada, com um maior alargamento do legado aristotélico passa pelo reconhecimento de sua autonomia e da sua capacidade de fugir dos vícios letais do formalismo, utilizado a arte de inventar – que há de ser prioritária nesse processo - como ferramenta imprescindível para conferir-lhe a mesma importância atual do estilo filosófico e do estilo dialético, pondo fim ao estigma que a persegue por mais de dois milênios.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS I – É absolutamente falsa e contrária à posição de Aristóteles, na Techné Retorikê, a afirmação de uma suposta identidade entre retórica e dialética; elas podem até ter enormes semelhanças, sobretudo pelo uso comum de argumentos em forma de silogismos, porém, o silogismo retórico, chamado entimema, é uma simplificação do silogismo primário, próprio da dialética, de modo que uma diferença basilar entre a retórica e dialética pode ser estabelecida:
universal, como sugere o pensador George Kennedy (op. cit., 1991, p. 39). II – A enunciação de um entimema tem como pressuposto de que, em sendo conhecida e aceita uma premissa do silogismo, geralmente a maior, pode ser ela omitida, sendo ele consectário dessa ablação de um dos elementos silogísticos, que permanece subentendida, porquanto o objetivo dessa operação, segundo o próprio Aristóteles, é de que o entimema seja expresso com menos premissas que o silogismo primário, dialético, cuja expressão plena implica na existência de premissa maior, premissa menor e conclusão; no entimema, uma dessas premissas pode ser suprimida. III - A retórica deve ser entendida como a área do conhecimento que estuda os meios de persuasão que compõem o discurso consentâneo com a verdade e como sendo o modo útil e necessário à verbalização humana, conformando-se ao pensamento na interpretação e na veiculação da mensagem, de modo que se construa uma retórica como expressão da vida
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enquanto a primeira se ocupe de questões particulares, a segunda trata daquelas de cunho
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FIDΣS humana, que sirva ao desiderato do aprimorar o conhecimento sobre os meios de persuasão, conformados na verdade, tão imprescindíveis à convivência nas sociedades democráticas. IV – Quando Aristóteles, contradizendo a própria posição de Platão e dos sofistas (que tinha a retórica como mera “geradora de persuasão”), acreditava que a retórica fosse a arte capaz de descobrir os meios de persuasão acerca de determinado assunto, demarcou definitivamente o campo de atuação do rhétor e o seu objeto de estudo. V - O estudo da retórica não corresponde a qualquer dos gêneros científicos conhecidos, de modo que, nada obstante permeie todas as ciências, não operar com nenhum dos elementos inseridos em alguma dessas ciências, ademais de ter o seu próprio objeto (capacidade de descobrir os meios de persuasão acerca de determinado assunto) perfeitamente delimitado. VI – Do ponto de vista teórico, a retórica é autônoma, mesmo porque nenhuma ciência tem como objeto a descoberta dos meios persuasivos sobre determinados assuntos, ademais da especial circunstância de caber ao rhétor cuidar de provas e não de conceitos, tendo o seu raciocínio como base o silogismo retórico, o entimema. VII – São mais simples as diferenças entre retórica e filosofia: a retórica está para a filosofia, assim como um esporte competitivo (“agonístico”) está para um esporte meramente recreativo, sendo imprescindível o sucesso, o êxito, a vitória do argumento, para a primeira, enquanto que a segunda utiliza critérios que não trazem uma idéia de competição (falsoverdadeiro, bom-mau, bem-mal etc.), sendo o traço de união entre filosofia e retórica o fato de ambas serem frutos de empreitadas individuais, sem qualquer apelo à idéia de coletividade,
colaboração mesmo entre contrários é imprescindível à superação das contradições e construção de uma nova perspectiva a partir dos elementos em confronto. VIII – É natural o apego à competitividade que caracteriza a retórica, o seu “stilus pugnax”, estilo combativo sendo esta uma atividade solitária de cada indivíduo, explica-se pela necessidade intrínseca de estimular à criatividade conteudística, nas mais diversas situações, abrindo-se a possibilidade da invenção de conceitos, a partir da problematização temática e da busca de suas soluções, sendo a inventio imprescindível para manutenção da força criadora da retórica.
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enquanto que a dialética já surgiu como atividade necessariamente coletiva, em que a
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Pensadores)
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FIDΣS Recebido 12 abr. 2014 Aceito 13 abr. 2014
REDEFININDO O PAPEL DOS JURADOS: UM DEBATE EM TORNO DO PROBLEMA DO CONCEITO DE ORDEM PÚBLICA E A NEGATIVA DO DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE NAS DECISÕES CONDENATÓRIAS DO TRIBUNAL DO JÚRI
Fábio Wellington Ataíde Alves* SUMÁRIO: 1. Compreendendo o presente e a interpretação retrospectiva: uma compreensão da teoria dos modelos de Miguel Reale. 2. Jurados e comunidade de intérpretes 3. A reestruturação do Tribunal do Júri. Participação do juiz nas decisões de fato e de direito 4. Quesito especial sobre a negativa do direito de recorrer em liberdade por motivo de ordem pública 5.Referências
1 COMPREENDENDO O PRESENTE E A INTERPRETAÇÃO RETROSPECTIVA:
Para a nova hermenêutica não existe um compreender melhor, mas um compreender diferente. “Cada época deve compreender, a seu modo, um texto transmitido”1. O gênero humano de uma época não é o mesmo gênero humano de outra, porque “nossas necessidades e nossos prazeres mudam de objeto com o decorrer dos tempos” 2. Neste mesmo rumo, preceitua Chaïm Perelman (1912–1989) que não há argumentos certos ou errados, mas fortes
* Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Juiz de Direito. 1 GADAMER, Hans-Georg. “Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica”. 7ª. ed., Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2005, p. 392. 2 ROUSSEAU, Jean-Jacques. “Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens; Discurso sobre as Ciências e as Artes”. V. 2, Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultura, 2000, p. 114.
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UMA COMPREENSÃO DA TEORIA DOS MODELOS DE MIGUEL REALE
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FIDΣS e fracos, relevantes ou irrelevantes3. O decurso do tempo permite a compreensão como atividade produtiva, em torno da qual não existe uma captação acabada, dado que o sentido do texto se renova infinitamente, porque o saber nunca se esgota4. Imbuído desse sentimento, vamos entender os modelos segundo a percepção de Miguel Reale (1910–2006), ou seja, como uma espécie do gênero estrutura, tratando de um conjunto de elementos que se correlacionam e se implicam, a ponto de entender o conjunto como um campo unitário de significações5. Para Reale, os modelos determinam os sentidos das leis. Cada ordenamento possui um numerus clausus de fontes6, sendo a lei a fonte por excelência, especialmente nos ordenamentos de tradição romano-germânica7. No entanto, as leis se sujeitam à mutação histórica, em razão de que a sua significação necessita continuamente de ajustes às supervenientes conjunturas8. Portanto, segundo entende o filósofo, a lei desprende-se da vontade do legislador quando promulgada9, dada a prevalência do caráter prospectivo das normas. Isto é, a norma se volta para o futuro e não deve voltar-se a interpretação para o passado (retrospecção). Como as fontes não se vinculam ao passado, mas ao futuro, fica fácil perceber o conteúdo das fontes em termo de modelos jurídicos10. Em resumo, os modelos jurídicos são "formas de compreensão e atualização do conteúdo das fontes do direito"; e, por isso, "são dotados da mesma força objetiva e positiva de obrigatoriedade já atribuída às fontes"11. O jurista conceitua modelo jurídico como uma social, prescrevendo a atualização racional e garantida dos valores que lhes são próprios"12. Assim sendo, o modelo jurídico pressupõe: (I) dados de atos e fatos; (II) uma ordenação
3
“Ética e Direito”. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 203. Cf. GADAMER, Hans-Georg. Op. cit. pp. 393, 395 e 399. 5 A relação entre fonte e modelo foi apresentada por Miguel Reale na obra Lições Preliminares de Direito em 1973. 6 REALE, Miguel. "Fontes e Modelos do Direito: para um novo paradigma hermenêutico". São Paulo: Saraiva, 2002, p. 16. 7 O séc. XIX é o chamado de benthaniano (em referência ao inglês defensor das codificações Jeremy Bentham), justamente porque nele se determinou na Inglaterra a prevalência da lei sobre o common law. Em todos os países ocidentais ocorreu a supremacia da lei sobre as demais fontes, até mesmo na Inglaterra, a despeito de não possuir um código (cf. BOBBIO, Norberto. "O Positivismo Jurídico: lições de Filosofia do Direito". Trad. Márcio Pugliesi; Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006, p. 120). 8 REALE, Miguel. Op. cit., p. 23. 9 Ibid p. 25. 10 Ibid, p. 28. 11 Ibid p. 38. 12 Ibid p. 48. 4
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"estrutura normativa de atos e fatos pertinentes unitariamente a dado campo da experiência
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FIDΣS racionalmente garantida; (III) o propósito de realizar valores ou impedir desvalores 13. Por tal razão, quando se trata de modelos, não se fala de modelos ideais, mas fundados em dados da realidade. Ao propor o termo modelo jurídico em complemento à teoria das fontes, Reale afasta a ideia de modelos (jurídicos) como mera criação da imaginação humana, sendo isto o que diferencia os modelos jurídicos dos modelos hermenêuticos. Desta maneira, o ordenamento não deve ser visto como um mero ajuntamento de leis desconexas. Muito pelo contrário, os seus elementos se articulam racionalmente, cabendo deles se retirarem as contradições14. Os modelos surgem no contexto da experiência, como objetos histórico-culturais15. As decisões judiciais, por conseguinte, permitem a sua perene atualização. Destacam-se, assim, os modelos jurisdicionais. A jurisdição é um poder constitucional de explicitar normas jurídicas e, entre elas, estão os modelos jurisdicionais16. O poder decisório desenvolve-se, de maneira normal, pelo simples ato de decidir e, de modo excepcional, quando o juiz precisa suprir uma lacuna. Destarte, como justifica Reale, daí advêm duas espécies de modelos jurisdicionais, a saber: (I) os de segunda ordem (inferiores), decorrentes da aplicação em concreto da hipótese legal em abstrato e (II) os de primeira ordem (superiores), decorrentes da lacuna, que representam a modalidade mais importante. Para haver fonte do direito é necessária a coexistência do poder de decisão. Assim, "a fonte do direito é uma estrutura normativa capacitada a instaurar normas jurídicas em função
uma fonte, às vezes, é formado de diretrizes normativas imutáveis (válidas para qualquer tempo, como a do Código Civil que estabelece a menoridade). Outras vezes, o conteúdo depende de eventos factuais ou, como ele próprio afirma: "[…] de exigências axiológicas mutáveis, importando em interpretação diversa daquela que estava inicialmente na intenção do legislador ou dos contratantes, projetando-se, desse modo, livremente, no plano da experiência jurídica concreta"18. Neste mesmo sentido, Couture já afirmara que o sentido original da lei adapta-se às necessidades do futuro. Eduardo Couture ainda lembra que a interpretação progressiva, que busca adaptar a lei ao futuro, já aparece na doutrina de Binding, 13
Ibid, ibdem. Ibid p. 41. 15 Ibid pp. 49-50. 16 Ibid p. 69. 17 Ibid, p. 15. 18 Ibid, p. 22. 14
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de fatos e valores, graças ao poder que lhe é inerente"17. Explica o autor que o conteúdo de
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FIDΣS Köhler, Hölder (1891) e Arturo Rocco (1906)19. Reale contrapõe a noção de modelos hermenêuticos a de modelos jurídicos, porque apenas os últimos possuem natureza prescritiva20. O próprio ordenamento como um todo é um macromodelo jurídico, que confere asilo a diversos outros submodelos. Portanto, a doutrina não será fonte do direito neste rigoroso sentido do termo. Com efeito, ela não gera modelos jurídicos, exceto modelos hermenêuticos (dogmáticos). Os modelos hermenêuticos, ocorrem no momento em que a dogmática elabora juízos a partir de um sistema de normas, mas nem tudo no plano hermenêutico implica um modelo hermenêutico, porque, para haver modelos, é preciso haver características estruturais. O intérprete cria modelos porque precisa atender às mutações e imprevistos da vida social, mas sem pôr em risco a segurança e a certeza21. O pensamento de Reale vai muito próximo ao que pensa Derrida. Para este filósofo, o direito está construído sob “camadas textuais interpretáveis e transformáveis”, que precisam ser desconstruídas, ou melhor, transformadas em justiça22. A compreensão das leis se submete às estruturas dos modelos. Assim, um juiz inclinado a compreender o conteúdo do ordenamento a partir de seu resquício autoritário dificilmente será capaz de adotar posições garantistas. Assim, será de grande utilidade resumir os requisitos fundamentais apontados por Reale acerca da interpretação: 1. toda interpretação é axiológica; 2. toda interpretação dá-se em um contexto; 3. nenhuma interpretação pode extrapolar a estrutura objetiva resultante da significação dos modelos jurídicos; 4. toda interpretação é condicionada pelas mutações históricas do sistema, implicando tanto a
supervenientes, numa compreensão, ao mesmo tempo, retrospectiva e prospectiva; 5. a interpretação tem como pressuposto a recepção dos modelos como entidades lógicas e axiológicas; 6. entre as várias interpretações possíveis, cabe optar pela que mais corresponda
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“Interpretação das Leis Processuais”. Trad. Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano. 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 7. 20 REALE, Miguel. "Fontes e Modelos do Direito: para um novo paradigma hermenêutico". São Paulo: Saraiva, 2002, p. 37. Chama-se de discurso prescritivo aquele cuja função não seja a de formular e transmitir informação de conhecimento, senão modificar, influenciar ou dirigir o comportamento dos homens. A linguagem prescritiva se contrapõe à linguagem descritiva (cognoscitiva, indicativa). Os enunciados prescritivos são imperativos ou deônticos (de dever, obrigação, proibição, permissão). Não se podem atribuir valores de verdade aos enunciados prescritivos, não podendo afirmar-se se são verdadeiros ou falsos, ao contrário do que ocorre com os enunciados descritivos (cf. GUASTINI, Riccardo. Distinguiendo. Estudios de Teoría y Metateoría del Derecho. Barcelona: Gedisa, 1999, pp. 88 a 95). 21 REALE, Miguel. Op. cit., p. 110. 22 Cf. "Força de Lei: o fundamento místico da autoridade". Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 26.
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intencionalidade originária do legislador quanto as exigências fáticas e axiológicas
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FIDΣS aos valores éticos da pessoa e da convivência social23. Sem dúvida, a contemporaneidade nos convida a adotar um determinado modelo hermenêutico, o qual se converte, pelas decisões judiciais, em modelo jurisdicional, alimentando e atualizando continuamente o macromodelo jurídico formado a partir do ápice constitucional24. Compreender, portanto, é fundir o passado ao presente, não cabendo à hermenêutica dissimular a permanente colisão entre texto (passado) e presente. Um texto legal precisa ser compreendido de uma nova maneira em cada situação concreta, sem se submeter, invariavelmente, às compreensões passadas25. Transportando esta concepção para o processo penal, o compreender não se resigna com as interpretações dadas a casos passados, mas precisa ser enfrentada individualmente, de maneira que se opera a permanente atualização da lei. Nenhuma lei é capaz de reproduzir as situações particulares dos casos individuais, em função de que compete ao intérprete produzir significados com vistas a este desiderato. A lei não resulta de um processo industrial de produção de significados. O seu sentido locomove-se livremente no tempo e espaço, formando, assim, um conteúdo histórico. No entanto, ao jurista não se admite o mero papel de aplicar os significados resultantes do desenvolver histórico. Diante de um caso concreto, o juiz, à custa da intervenção determinante das partes, deve produzir o seu próprio significado, tendo como ponto de partida – e não de chegada – todos aqueles que foram historicamente construídos, sem se denotar que a
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REALE, Miguel. "Fontes e Modelos do Direito: para um novo paradigma hermenêutico". São Paulo: Saraiva, 2002, pp. 111-112. 24 Compete advertir que, quando empregamos o termo modelo hermenêutico em relação ao padrão interpretativo da Corte Marshall, pode parecer que estamos dando-lhe um sentido muito mais abrangente daquele utilizado por Miguel Reale, mas não acreditamos assim, levando em consideração as particularidades do common law. 25 GADAMER, Hans-Georg. Op. cit. pp. 405 e 408. A interpretação progressiva, que busca adaptar a lei ao futuro, já aparece na doutrina de Binding, Köhler, Hölder (1891) e Arturo Rocco (1906). Cf. COUTURE, Eduardo J. “Interpretação das Leis Processuais”. Trad. Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano. 4ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 7. É exatamente isto o que afirma Jacques Derrida: "Para ser justa, a decisão de um juiz, por exemplo, deve não apenas seguir uma regra de direito ou uma lei geral, mas deve assumi-la, aprová-la, confirmar seu valor, por um ato de interpretação reinstaurador, como se a lei não existisse anteriormente, como se o juiz a inventasse ele mesmo em cada caso" ("Força de Lei: o fundamento místico da autoridade". Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 44).
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produção do sentido corra ao seu alvedrio.
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FIDΣS 2 JURADOS E COMUNIDADE DE INTÉRPRETES
Desde modo, inserido em uma comunidade, o juiz pode agir também como produtor de significados, podendo criar novos nomes ou ampliar o sentido dos nomes já existentes ou, até mesmo, excluir o sentido preconceituoso, v.g., inadequado ao princípio da autonomia cultural26. Mas isto não significa que ele produza decisões calcadas em suposições ideais irrefutáveis. Assim, os sujeitos do processo, em um primeiro momento, e a comunidade de intérprete poderão comunicar-se, recepcionando ou repelindo os sentidos produzidos por todos os seus membros. As palavras não se reduzem aos sentidos finitos. Pelo contrário, em uma comunidade, mesmo as velhas palavras se renovam por meio de significados inteiramente diferentes do que originalmente possuíam. As palavras são edifícios em constante construção; mesmo um sentido temerário hoje pode ser de uso corrente amanhã27. O sentido do texto jurídico não se reproduz em si mesmo, fora de sua aplicação real. A história se reinventa. Novos problemas requerem novas respostas; não basta reciclar as soluções então desgastadas pelo avanço do tempo. O presente solicita a presença do aplicador do direito de hoje, porque quem busca a vontade do legislador não tarda desvendar que sempre finda descobrindo a vontade variável no tempo. Diante da falibilidade de uma norma regressada para o passado, o magistrado ou o
juízos endurecidos pela jurisprudência. Efetivamente, os precedentes subsistem como verdades consensuais estabelecidas pela comunidade de juristas em um instante findo 28, mas não esgotam as infinitas possibilidade de se compreender a lei diante de um caso concreto, com a consequência de que casos semelhantes podem gerar decisões diversas, porque os
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Sobre princípio, cf. CERVINI, Raúl. "Os Processos de Descriminalização". Trad. Eliana Granja et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 143. 27 Cf. LOCKE, John.Ensaio acerca do Entendimento Humano”. Trad. Anoar Alex. São Paulo: Nova Cultura, 2000, p. 183. 28 Habermas estabelece o critério de verdade consensual, segundo o qual “o conhecimento de uma pessoa depende de outras pessoas que também conhecem” (ZILLES, Urbano. “Teoria do Conhecimento e Teoria da Ciência”. São Paulo: Paulus, 2005, p. 135).
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jurado que pertencem a uma comunidade de intérpretes não devem somente reproduzir os
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FIDΣS julgadores também são motivados por novas percepções subjetivas 29. O que é justo aqui – acresce Perelman – pode ser ali, hoje e não amanhã30. Sobre a importância da realidade, Konrad Hesse doutrina que a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Como afirma, a pretensão de eficácia da Constituição somente pode ser realizada se se levar em conta essa realidade. A Constituição jurídica logra conferir forma e modificação à realidade. Constatam-se os limites da força normativa da Constituição quando a ordenação constitucional não mais se baseia na natureza singular do presente. Não é em tempos tranquilos e felizes que a Constituição normativa vê-se submetida à sua prova de força. Em verdade, esta prova dá-se nas situações de emergência, nos tempos de necessidade. Conforme completa o professor da Universidade de Freiburg, em determinada medida, reside aqui a relativa verdade da conhecida tese de Carl Schmitt segundo a qual o estado de necessidade configura ponto essencial para a caracterização da força normativa da Constituição31. Não obstante o decurso do tempo, a interpretação retrospectiva ocorre quando se buscam os significados originados preteritamente, isto é, de acordo com a comunidade de intérpretes de determinada época passada. Esta metodologia interpretativa ignora o momento presente do caso concreto, assimilando significados desligados das circunstâncias atuais da vida variante.
NAS DECISÕES DE FATO E DE DIREITO
Diante deste quadro, como o sujeito pode defender-se, ou melhor, participar do processo de construção da decisão judicial? Como é possível a representação de algum papel no processo judicial? Na sociedade complexa, em que todos representam papéis, já não toma lugar uma posição simplista de separação hermética das pessoas. Luhmann explica que as
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PERELMAN, Chaïm. “Ética e Direito”. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 353. Este autor não negar ser o tribunal o auditório do juiz, mas também assenta que a personalidade deste agente cumpre papel decisivo no ato de decidir (op. cit., pp. 493 e ss). 30 Ibid p. 374. 31 HESSE, Konrad. “A Força Normativa da Constituição (Die Normative Der Verfassung)”. Trad. Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Sergio Antonio Sergio Antonio Fabris, 1992, p. 25.
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3 A REESTRUTURAÇÃO DO TRIBUNAL DO JÚRI: PARTICIPAÇÃO DO JUIZ
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FIDΣS partes e, até mesmo, o juiz representam papéis no processo32, assim como estão representando na sociedade. As partes não se apresentam tal como são, porquanto estão permanentemente representando. Não é a oportunidade de se defender, irrestritamente, o Júri. Porém, não obstante seus vícios, não podemos ignorar que esta instituição se trata de uma cláusula pétrea, contra a qual não se suportam as investidas teóricas pela sua completa abolição. Desde esta perspectiva, temos de deitar vista nas causas de sua crise, alimentada por um modelo legislativo anacrônico e totalmente incompatível com o Estado Constitucional de Direito. Por isso, entendemos que o Tribunal do Júri, deve ceder a uma repaginação drástica, adequada ao enfrentamento de sua crise de legitimidade como sistema produtor de decisões justas. Não podemos esquecer que os jurados devem ser selecionados desde os mais variados segmentos da sociedade. Mesmo assim, os jurados talvez ainda não sejam dotados de representatividade democrática substancial. É preciso não ignorar que os juízes de fato estão sujeitos às influências externas e aos valores de desigualdades de sua própria classe social, mais do que os juízes técnicos33, tornando perigoso o sistema de motivação íntima. Por outro lado, como aponta Aury Lopes Jr., os juízes leigos não distinguem a prova do processo da prova pré-processual, o que já seria suficiente para se advogar a exclusão física do inquérito dos autos do processo levado a julgamento popular34. Dentre tantas falhas, os fundamentos democráticos do Júri são justamente questionados pela doutrina crítica mais autorizada. Carrara (1805–1888) destaca que os juízos criminais somente podem ser exercidos por juízes cidadãos, tirados dentre representantes do povo (leigos), ou por juízes magistrados
crítico inflexível da instituição, e também reconhecesse existir entre os italianos uma antipatia para com os jurados, Carrara defendeu o tribunal popular como símbolo de liberdade36. Em sentido oposto, Carmignani criticava o Júri por causa do sistema de decisões imotivadas37, ou seja, suas decisões não se baseavam em juízos condenatórios de certeza, o que impediria o sistema penal de cumprir funções políticas – defesa dos membros sociais e
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LUHMANN, Niklas. “Legitimação pelo Procedimento”. Trad. Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília: Universidade de Brasília, 1980, p. 74. 33 LOPES JR, Aury. “Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)”. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 149. 34 Ibid p. 151. 35 "Programa do Curso de Direito Criminal". V. 2, Trad. Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN, 2002, p. 245. 36 Ibid p. 253. 37 Ibid p. 267.
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(técnicos), contratados pelo governo35. Muito embora fosse discípulo de Carmignani, um
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FIDΣS deveres de justiça, "ou seja, a tutela da inocência contra o ataque de acusações errôneas e contra condenações precipitadas"38. Todas estas críticas continuam pertinentes, notadamente sob a ótica de um sistema garantista. O Júri exprime um símbolo de liberdade, mas não de um lugar de decisões simbólicas. Como alternativa aos seus problemas, vem em boa hora a proposta de adoção de um regime escabinado, formados por juízes técnicos e leigos, como já vem sendo empregado na Alemanha, França, Itália e Portugal39. Enquanto o Júri segue em decadência, com exceção dos países do common law, o escabinado se consolida, tornando-se o modelo que mais avança entre os países civilizados40. No escabinado, como explica Aury Lopes Jr., "os juízes leigos e os profissionais forma um colegiado único, decidindo sobre o fato e o direito, de modo que os conhecimentos de um podem suprir as lacunas do outro"41. Mesmo no common law, o Júri teve o seu prestígio abalado. Por mais de vinte anos, desde 1973, funcionaram no Reino Unido as Cortes Diplock, como parte de uma legislação de emergência criada para garantir a sustentabilidade política da reação punitiva contra o avanço da violência terrorista na Irlanda do Norte. Formalmente, estas Cortes eram Júris constituídos não por juízes leigos, mas por um juiz técnico com poderes inquisitórios. A distorção dos aspectos acusatórios do Tribunal Popular somente foi estabelecida dessa maneira, depois que a chamada Comissão Diplock, criada para estudar o avanço terrorista do grupo separatista IRA, concluiu que o julgamento por juízes de fato levaria a tantas absolvições, que estariam comprometidas as bases políticas para uma reação punitiva eficaz42. Mesmo havendo inconvenientes, as desvantagens do escabinado são menores que as
reviravolta no conceito de soberania, onde as decisões do Estado se submetem aos valores humanos da jurisdição internacional, também devemos revisar o que se entende por soberania dos veredictos dentro de um quadro garantista ou, para melhor dizer, de forma que toda decisão sobre a culpabilidade de alguém seja assegurada, efetivamente, de garantias mínimas. Isto significa que já se deve pensar em um Conselho de Sentença também formado por juízes técnicos. 38
Apud CARRARA, Francesco. Op. cit. p. 272. LOPES JR, Aury. Op. cit. p. 158. Países de tradição socialista-marxista também já empregam com ênfase o esforço da justiça popular. 40 MARQUES, José Frederico “A Instituição do Júri”. Campinas: Bookseller, 1997, p. 35. 41 LOPES JR, Aury. Op. cit. p. 158. 42 cf. CHOUKE, Fauzi Hassan. "Processo Penal de Emergência ". Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2002, pp. 107, 108, 110 e 111. 43 LOPES JR, Aury. “Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)”. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 160. 39
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do Tribunal do Júri43. Digo mais. Em um sistema constitucional que se orienta para uma
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FIDΣS Dessa forma, seria possível confiar ao Tribunal do Júri não apenas o poder de decidir sobre a responsabilidade penal de alguém, mas até mesmo questões processuais, especialmente as que digam respeito ao direito de recorrer em liberdade. Pelo sistema vigente, a apreciação da prisão decorrente de sentença, ainda sem o trânsito em julgado, cabe, inteiramente, ao juiz presidente do Júri, sem que os membros deste órgão, possam interferir no ato. No Júri, também está em julgamento a noção que temos da democracia. Num tribunal misto, a decisão sobre a liberdade do réu possui um matiz político único em seu gênero. Assim, seria viável admitir que os jurados pudessem decidir sobre o direito de recorrer em liberdade, notadamente que com relação ao conceito de ordem pública para fins de decretação da prisão cautelar. Sem fugir do assunto, não é correto afirmar que o tribunal popular apenas decide questões de fato. Como afirma Frederico Marques, “o júri e o juiz possuem atribuições funcionais distintas, mas não é na separação do direito e do fato que se dividirão as competências de um e de outro”44. Ninguém pode duvidar de que seja necessário aprimorar o sistema de participação dos jurados, para que também respondam a outras questões de interesse social. A ordem pública, como fundamento para a decretação da prisão cautelar (art. 312, CPP), guarda em si um resquício autoritário, quando relegada à apreciação de magistrados togados, mas já não podemos afirmar o mesmo quanto aos jurados leigos. No âmbito estrito do tecnicismo judicial, são repelidos do conceito de ordem pública, v.g., a repercussão social demonstrados, explicitamente, no processo45. Dessa forma, os juízes togados, enquanto incapazes de sentir a realidade social além das folhas do processo, acabam ignorando muitos fatores concretos que poderiam determinar a noção de ordem pública, para fins de restrição ao direito de liberdade. Para restaurar o prestígio do Júri, o tribunal escabinado poderia conciliar o tecnicismo dos juízes togados com a representatividade dos leigos. Em larga escala, os problemas da instituição do Júri não são, de fato, sua exclusividade, mas decorrem em larga escala da sua relação com o Judiciário. Com efeito, o Júri, órgão que constitucionalmente não integra este Poder, tem recebido dos juízes técnicos um tratamento menos destacado do que em realidade mereceria. O Júri continua – e 44
MARQUES, José Frederico. “A Instituição do Júri”. Campinas: Bookseller, 1997, p. 72. Cf. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC n. 68.578/CE, 5ª T., Rel. Gilson Dipp, j. 05/12/06, DJ 05/02/07. 45
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e a periculosidade da agente, ao passo em que se valorizam os fatores concretos, que estejam
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FIDΣS continuará – sendo a expressão máxima de participação popular nos assuntos judiciais. Porém, somente havendo uma ampla reforma desta instituição, será possível torná-la a mais importante ação concreta de legitimação do Poder Judiciário perante a sociedade. O conceito de ordem pública pode perder-se nos labirintos da linguagem técnica, porém, isso não se dá entre os jurados populares. O fato é que o Júri, não obstante os inúmeros ataques sofridos ao longo da história, continua sendo a maneira pela qual a nossa sociedade escolheu para defender o seu bem jurídico mais valioso. E se, precisamente, a sua competência ainda não foi ampliada para outras infrações menores, isso ocorre por razões práticas, sobre as quais não nos cabe discorrer neste momento.
4 QUESITO ESPECIAL SOBRE A NEGATIVA DO DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE POR MOTIVO DE ORDEM PÚBLICA
A desintegração do conceito defesa social tem contribuído para uma crise no processo penal brasileiro, não tendo havido uma definição clara em conceitos abstratos que fazem parte do processo decisório, especialmente o conceito de ordem pública para fins de determinar a prisão cautelar. A decretação da prisão preventiva por motivo de ordem pública trata-se de um traço marcante do processo impositivo de política pública em nosso ordenamento. No modelo
ser enquadrados em uma nova perspectiva, de modo que os jurados possam indagados pelo juiz presidente para outras questões reais que envolvem o efeito da decisão e a necessidade de prisão para recorrer em liberdade. Entendo ser possível confiar ao Tribunal do Júri não apenas o poder de decidir sobre a materialidade e autoria de um fato, mas inclusive o de definir materiais concretas, mesmo as que digam respeito ao direito de recorrer em liberdade. Pelo sistema vigente, a apreciação da prisão decorrente de sentença cabe, inteiramente, ao juiz presidente do Júri, sem que os membros deste órgão, possam interferir no ato. No Júri, também está em julgamento a noção que temos da democracia e esse conceito não se restringe a definir a hipótese de condenação ou absolvição de alguém, mas inclusive podendo interferir nos efeitos imediatos dessa decisão.
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constitucional do Tribunal do Júri, entendo que os valores da soberania dos veredictos podem
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FIDΣS Em casos de reiteração delitiva, que justifiquem objetivamente a demonstração do requisito da ordem pública, entendo que poderia ser confiado aos jurados o poder de decidir pela negativa do direito de recorrer em liberdade. Apenas naqueles casos em que o réu vem a ser condenado por crime posterior, independentemente do trânsito em julgado, não vejo impedimentos, de acordo com o princípio democrático, de que o Juiz de Direito chame o corpo de jurados para decidir. Caberia ao juiz elaborar um quesito especial em que os jurados responderiam também sobre o direito de recorrer em liberdade, notadamente que com relação ao requisito de ordem pública para fins de decretação da prisão cautelar. Ninguém pode duvidar de que seja necessário aprimorar o sistema de participação dos jurados em uma perspectiva democrática, respondendo a questões diretamente relacionada à ordem pública. A ordem pública, como fundamento para a decretação da prisão cautelar (art. 312, CPP). Nos termos da Súmula nº 156, do STF, a falta de quesito obrigatório é nulidade absoluta que causa a nulidade do julgamento. Não há impedimento de o julgador apresentar ao Júri quesito não obrigatório, igualmente não havendo riscos de nulidade do julgamento. De fato, foi Liszt o responsável pela separação entre o Direito Penal e a política criminal e foi por isso que durante muito temo o juiz ignorou o caso concreto, tornando-se um autômato das fórmulas penais abstratas46. É assim que a velha abstração teórica que até então dominou o Direito Penal deixa
depender não apenas dos elementos sistêmicos distantes da realidade, mas principalmente das particularidades do caso concreto. Proclama assim Roxin que “só a variedade da vida, com todas as suas transformações, possibilita a concretização das medidas que permitem uma solução correta"47. Com efeito, os resultados da política criminal verdadeira são sentidos apenas no caso concreto. Por tudo, o juiz presidente do Júri pode assim submeter aos jurados quesitos especiais, não obrigatórios, a fim de que a solução de sua decisão seja a mais apropriada ao caso.
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ROXIN, Claus. "Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal". Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro, São Paulo: Renovar, 2000, p. 8. 47 Ibid p. 83.
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penetrar-se pela valoração político-criminal e, a partir daí, a solução penal justa passa a
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FIDΣS Não posso ignorar a realidade de desintegração social por que passa o Brasil. As soluções de vingança privada em ampla expansão são prova de uma desintegração social decorrente de um sistema jurídico que historicamente ignorou a sociedade e que agora está sendo ele próprio ignorada pela sociedade. Isso ocorre devido à construções teórica que ignoram aspectos da democracia na sociedade complexa. Há equação que explica essa desintegração social. Chama-se de trilema regulador
por
Günter
Teubner48.Como
explica
Balcarce,
o
“trilema
regulador”
(regulatorisches Trilemma) funda-se em três questões cruciais: “(a) a indiferença recíproca entre Direito e sociedade; (b) a desintegração social mediante o Direito e (c) a desintegração do Direito por meio de expectativas excessivas da sociedade”49. Ao juiz cabe, sempre que possível e diante do caso concreto, tomar a audiência do Tribunal do Júri para os efeitos práticos de sua decisão. Portanto, depois do quesito genérico da defesa, em sendo rejeitada a tese da Defesa, seria submetido aos jurados o seguinte quesito especial, que poderia ser assim redigido: Em tendo sido o réu condenado a crime de roubo depois do fato, o réu deve ter o direito de recorrer em liberdade negado por motivo de ordem pública?
REFERÊNCIAS
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Herzog, Félix. Límites al control penal de los riesgos sociales – Una perspectiva crítica ante el Derecho penal en peligro. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales. Trad. Elena Larrauri Pijoán y Fernando Pérez Álvarez, jan.-abr, 1993, p. 194-195, apud BALCARCE, Fabián I. Direito penal dos marginalizados linhas da política criminal argentina. Revista Liberdades. Revista nº 12: Janeiro - Abril de 2013. 49 BALCARCE, Fabián I. Direito penal dos marginalizados linhas da política criminal argentina. Revista Liberdades. Revista nº 12: Janeiro - Abril de 2013.
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FIDΣS
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FIDΣS Recebido 1 abr. 2014 Aceito 2 abr. 2014
PROGRAMA DE AGRESSORES COMO PARTE DA RESPOSTA COORDENADA DA COMUNIDADE - A EXPERIÊNCIA DO GRUPO REFLEXIVO DE HOMENS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO NORTE 1
Érica Verícia Canuto de Oliveira Veras* Jackeline Costa** Maria Ildérica Castro*** “Nunca um costume é indefensável, inferior e bastardo, para quem o segue.” (Luís da Câmara Cascudo)
A violência contra a mulher é um fenômeno que atinge mulheres de diferentes classes sociais, origens, religiões, estados civis, escolaridades ou raças, em todas as partes de nosso país. Essa diversidade de cortes raciais, étnicos, sociais, econômicos, culturais e geográficos, significa a adoção de políticas públicas que possuam um caráter universal, e que estejam acessíveis a todas as mulheres, enfrentando as diferentes modalidades pelas quais essa violência se expressa.
* Doutoranda em Direito. Mestre em Direito. Mestranda em Ciências Sociais. Professora da UFRN. Coordenadora do NAMVID. Promotora de Justiça. ** Psicóloga do NAMVID. ***Assistente Social do NAMVID. 1 Trabalho apresentado no I Seminário de Violência Doméstica contra a Mulher, promovido pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte, por meio do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional, realizado no dia 06 de dezembro de 2013, na sede da Procuradoria Geral de Justiça do Estado do RN.
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1 APRESENTAÇÃO
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FIDΣS A violência doméstica é um fenômeno que afeta particularmente mulheres, crianças, adolescentes e idosos, por serem estes os grupos mais suscetíveis às relações assimétricas e de poder coercitivo. As causas e os efeitos da violência são complexos e diversificados. A violência contra a mulher, tanto física, quanto psicológica, é motivada pelo desejo dos homens de dominá-las e exercer sobre elas o seu poder.
(...) violência quer dizer o uso da força física, psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não está com vontade; é constranger, é tolher a liberdade, é incomodar, é impedir a outra pessoa de manifestar seu desejo e sua vontade, sob pena de viver gravemente ameaçada ou até mesmo ser espancada, lesionada ou morta, enfim, é uma violação dos direitos essenciais do ser humano. (QUEIROZ, 2008, p. 20)
Um estudo recente Organização Mundial de Saúde – OMS, órgão ligado à Organização das Nações Unidas – ONU, divulgado no último dia 20 de junho de 2013, revelou que 35% (trinta e cinco por cento) das mulheres de todo o mundo sofrem violência doméstica, o que caracteriza um problema de saúde pública de proporções epidêmicas. O Instituto Sangari, baseado em dados obtidos de certidões de óbito e da Organização Mundial de Saúde, afirmou que o Brasil acumulou mais de 90 mil mortes de mulheres vítimas de agressão nos últimos 30 anos. Esse fato faz com o Brasil ocupe o 7º lugar no ranking dos países com mais mortes de mulheres vítimas de agressão. O Mapa da violência 2013, divulgado pelo CEBELA – Centro de Estudos Latino-
mulheres entre 2001 e 2011. Nesse quadro, o Rio Grande do Norte está na ponta da tabela com relação aos demais Estados da federação, ocupando a 3ª posição, atrás da Bahia e da Paraíba. Os números divulgados pelo Ligue 180 demonstram que em 2012, foram 88.685 relatos de violência. Dos relatos de violência, 88,9% o agressor é aquele com quem a vítima possui relação de afeto (marido, cônjuge, namorado ou ex). Em 59,1% a violência ocorre diariamente, em 85% dos registros a agressão é presenciada ou sofrida por filhos e filhas, e em 53,8% dos casos relatados de violência há risco de morte. O Instituto O VIVA do Ministério da Saúde relata que as mulheres são principais vítimas das violências doméstica e sexual, da infância à terceira idade. Em 93% dos casos em que as mulheres são assassinadas, os seus companheiros (cônjuges, maridos, etc) foram os autores do crime, enquanto 7% dos homens assassinados tiveram como autora as suas
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Americanos, revela que houve um aumento de 191,7% de homicídios praticados contra
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FIDΣS companheiras. Em 75% dos casos, são cometidos por armas de fogo ou objetos cortante/penetrante e, geralmente apresentam requintes de crueldade. É nesse contexto que se fez necessária uma Lei forte que tem a natureza plural, na medida em que traz a responsabilização criminal do agressor, a prevenção e o empoderamento. A Lei nº 11.340/2006, conhecida com Lei Maria da Penha traz esse grande desafio. É parte da política afirmativa dos direitos humanos das mulheres. Dentre as inovações da Lei Maria da Penha, há a possibilidade de prisão do agressor, seja preventivamente seja após uma condenação criminal. Entretanto, a punição não é suficiente para remover o comportamento violento. A própria Lei Maria da Penha aposta na reeducação do agressor como possibilidade de recuperação e prevenção de comportamentos futuros. A busca da igualdade e o enfrentamento das desigualdades de gênero fazem parte da história do Brasil, história construída em diferentes espaços, por diferentes mulheres, de diferentes maneiras. Nos espaços públicos e privados, as mulheres vêm questionando as rígidas divisões entre os sexos e estão alterando gradativamente as relações de poder entre homens e mulheres, historicamente desiguais em desfavor destas últimas. Acredita-se na necessidade de ampliar o atendimento para além da mulher agredida, sendo também importante estendê-lo ao agressor, às crianças e adolescentes envolvidas nesses conflitos, enfim, a toda a família. Afinal, não adianta só institucionalizar o indivíduo acusado, se não existir, no sistema prisional, ações ou políticas que promovam a conscientização do mesmo em prol de
fato de o indivíduo estar recluso não garantirá o rompimento do ciclo de violência, uma vez que toda a situação familiar e histórica permanecerá a mesma após o cumprimento de sua pena. Neste sentido, entende-se que se faz necessária uma intervenção no intuito de promover a ruptura da cultura da “desigualdade natural” entre homens e mulheres, além da responsabilização jurídica, observando a possibilidade de ações cumulativas pautadas nos direitos humanos que venham a contribuir para uma mudança de atitude englobando todos aqueles envolvidos na problemática. Levando em consideração essa discussão, é importante destacar que, de acordo com as visitas institucionais realizadas na rede de atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar (documentadas através de relatório) pelo NAMVID – Núcleo de Apoio à Mulher Vítima de Violência Doméstica e Familiar do Ministério Público do Estado do Rio
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uma mudança de atitude frente a suas vítimas e suas atitudes enquanto sujeito social. Logo, o
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FIDΣS Grande do Norte, constatou-se que não existe qualquer intervenção/ação que tenha foco nos seus agressores, principalmente no que se refere à homens em contextos de violência doméstica e familiar. Tomando por base essa necessidade, o NAMVID formulou proposta de funcionamento e iniciou as atividades do Grupo Reflexivo de Homens: por uma atitude de paz, como uma ação voltada a essa problemática e, consequentemente, a este público masculino envolvidos em episódios de violência, mas também carrega consigo parte de problemas que o fazem adotar tais atitudes.
2 UMA PALAVRA SOBRE PATRIARCALISMO, CONTRATO SEXUAL E DOMINAÇÃO MASCULINA
Patriarcalismo, contrato sexual e dominação masculina são temas que se entrelaçam, ao tempo em que fornecem fundamentação teórica para o tema do presente estudo, na justa medida em que não há como falar sobre violência doméstica contra a mulher, sua história e reconfigurações, sem que se mencione a questão de gênero. A história da família e das relações afetivas entre homem e mulher está umbilicalmente ligada à questão de gênero. Sobre o patriarcalismo, Saffioti (2004, p. 122), afirma que
O valor central da cultura gerada pela dominação-exploração patriarcal é o controle,
definições de gênero implique hierarquia entre as categorias de sexo, não visibiliza os perpetradores do controle/violência. Desconsiderando o patriarcado, entretanto, o feminismo liberal transforma o privilégio masculino numa questão individual apenas remotamente vinculada a esquemas de exploração-dominação mais amplos, que o promovem e o protegem.
Saffioti (2004) fala em “máquina do patriarcado” porque explica que ela funciona até mesmo sem a presença física do patriarca, dominador. O exemplo trazido pela autora vem a partir do filme Lanternas Vermelhas, de Zhang Yimou, em que a quarta esposa denuncia a terceira à segunda esposa, por estar com seu amante, e é feito um flagrante e se faz cumprir a lei e assassinam a traidora. São as mulheres que se voltam umas contra a outra e fazem acionar a máquina do patriarcado. No filme, a figura do patriarca não está presente, ele não aparece. Mas a lei
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valor que perpassa todas as áreas da convivência social. Ainda que a maioria das
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FIDΣS patriarcal é obedecida independente desse fato. O patriarcalismo é “esta máquina hierárquica, que confere aos homens o direito de dominar as mulheres, independentemente da figura humana investida de poder”. (SAFFIOTI, 2004, p. 102) O patriarcalismo é tão forte e dominador que “ninguém, nem mesmo homossexuais masculinos e femininos, travestis e transgêneros, ficam fora do esquema de gênero patriarcal” (SAFFIOTI, 2004, p. 102). Uma espécie de ideologia dá cobertura ao patriarcado, no momento que até “as mulheres desempenham, com maior ou menor frequência e com mais ou menos rudeza, as funções do patriarca, disciplinando os filhos e outras crianças ou adolescentes, segundo a lei do pai. Ainda que não sejam cúmplices deste regime, colaboram para alimentá-lo”. (SAFFIOTI, 2004, p. 102). Na sociedade, a presença dessa forma de organização de gênero é totalmente generalizada, podendo ser percebida nas diversas instituições e instâncias de poder, não somente na família, mas na religião, na escola, e nos demais espaços públicos. O patriarcado se fundamenta no controle do medo, atitude/sentimento que formam um círculo vicioso. Para Saffioti (2004), trata-se de uma disputa de poder que comporta, necessariamente, o controle do medo. Segundo Saffioti (2004), o patriarcalismo não se contrapõe ao contrato, figura típica do individualismo e voluntarismo moderno. Ao contrário, ele é a base do patriarcado moderno. A autora pondera quanto à divisão entre público e privado, quanto ao
Integra a ideologia de gênero, especificamente patriarcal, a ideia, defendida por muitos, de que o contrato social é distinto do contrato sexual, restringindo-se este último à esfera privada. Segundo este raciocínio, o patriarcado não diz respeito ao mundo público ou pelo menos, não tem para ele nenhuma relevância. Do mesmo modo como as relações patriarcais, suas hierarquias, sua estrutura de poder contaminam toda a sociedade, o direito patriarcal perpassa não apenas a sociedade civil, mas impregna também o Estado. Ainda que não se possa negar o predomínio de atividades privadas ou íntimas na esfera da família e a prevalência de atividades públicas no espaço do trabalho, do Estado, do lazer coletivo, e, portanto, as diferenças entre o público e o privado, estão estes espaços profundamente ligados e parcialmente mesclados. Para fins analíticos, trata-se de esferas distintas; são, contudo, inseparáveis para a compreensão do todo social. A liberdade civil deriva do direito patriarcal e é por ele delimitada. (SAFFIOTI, 2004, p. 127)
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patriarcalismo, anunciando o contrato sexual como sendo também da ordem da esfera pública.
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FIDΣS Este regime, chamado de ordem patriarcal, é sustentado por uma economia doméstica. “Neste regime, as mulheres são objetos de satisfação sexual dos homens, reprodutora de herdeiros, de força de trabalho e de novas reprodutoras. Diferentemente dos homens como categoria social, a sujeição das mulheres, também como grupo, envolve a prestação de serviços sexuais a seus dominadores”. (SAFFIOTI, 2004, p. 105) O conceito de patriarcado, analisado através da história do contrato sexual, conduz à visualização da própria estrutura patriarcal do capitalismo, como também de toda sociedade civil. Pateman (1993) afirma que há um grande fascínio pela ideia de contrato original e pela ideia de contrato, por representar uma liberdade e autonomia dos indivíduos na sociedade. Mas a autora denuncia que quando se conta a história do contrato, somente metade da história é contada.
O contrato original é um pacto sexual-social, tem sido sufocada. As versões tradicionais da teoria do contrato social não examinam toda história e os teóricos contemporâneos do contrato social não dão nenhuma indicação de que metade da história estão falando. A história do contrato sexual também trata do direito político e explica por que o exercício desse direito é legitimado; porém, essa história trata o direito político enquanto direito patriarcal ou instância do sexual – o poder que os homens exercem sobre as mulheres, a metade perdida da história conta como uma forma caracteristicamente moderna de patriarcado se estabelece. A nova sociedade civil criada através do contrato original é uma ordem social patriarcal. (SAFFIOTI,
Para a autora, o motivo pelo qual os teóricos políticos tão raramente reconhecem de que outra metade da história se está falando é porque a sociedade é patriarcal. Na versão que se conta da história, a sociedade civil é criada pelo contrato original após a destruição do patriarcado. Entretanto, segundo Pateman (1993), o contrato está longe de se contrapor ao patriarcado. O contrato é o meio pelo qual se constitui o patriarcado moderno.
Essas leituras das histórias familiais clássicas não mencionam que há coisas em jogo além da liberdade. A dominação dos homens sobre as mulheres e o direito masculino de acesso sexual regular a elas estão em questão na formulação do pacto original. O contrato social é uma história de liberdade; o contrato sexual é uma história de sujeição. O contrato original cria ambas, a liberdade e a dominação. A liberdade do homem e a sujeição da mulher derivam do contrato original e o sentido
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2004, p. 16)
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FIDΣS da liberdade civil não pode ser compreendido sem a metade perdida da história, que revela como o direito patriarcal dos homens sobre as mulheres é criado pelo contrato. A liberdade civil não é universal – é um atributo masculino e depende do direito patriarcal. Os filhos subvertem o regime paterno não apenas para conquistar sua liberdade, mas também para assegurar as mulheres para si próprios. Seu sucesso nesse empreendimento é narrado na história do contrato sexual. O pacto original é tanto um contrato sexual quanto social: é sexual no sentido de patriarcal – isto é, o contrato cria o direito político dos homens sobre as mulheres -, e também no sexual no sentido de estabelecimento de um acesso sistemático dos homens aos corpos das mulheres. (PATEMAN, 1993, p. 16)
Saffioti (2004), ao analisar a teoria do contrato sexual de Pateman, afirma o caráter masculino do contrato original, ou seja, um contrato entre homens, cujo objeto são as mulheres. Nesse contexto, a diferença sexual é convertida em diferença política, passando a se exprimir ou em liberdade ou sem sujeição, e sendo o patriarcado uma forma de expressão do poder político, então o pessoal seria o político. Pateman (1993, p. 31) denuncia que “os homens ainda pressionam muito para que a lei do direito sexual masculino seja cumprida, além de reivindicarem que os corpos das mulheres estejam publicamente disponíveis, enquanto carne e representação”. Por isso Saffioti (2004) anuncia que situar o contrato sexual, colocando em relevo a figura do marido, permite mostrar o caráter desigual deste pacto, no qual se troca obediência por proteção. E por proteção compreenda-se, por óbvio, exploração/dominação. Dentro dessa estrutura, dificilmente as mulheres alcançam a categoria de indivíduos,
sociedade burguesa, na qual o individualismo é levado ao extremo. Acrescente-se a isso o fato que o conceito de cidadão constitui-se a partir do indivíduo. Nessa ótica, o casamento, enquanto contrato capaz de estabelecer relações igualitárias, ter-se-á que dar entre os indivíduos. “Não é isto que ocorre, pois ele une um indivíduo a uma subordinada”. (SAFFIOTI, 2004, p. 128) Bourdieu (2003) defende que a força masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação, na medida em que a visão androcêntrica impõe-se de uma maneira que tornam-se desnecessários discursos para legitimá-la. Para ele, ordem social é análoga a uma máquina simbólica que serve para justificar a dominação masculina, que se fundamenta na divisão sexual do trabalho e nas diferenças naturais anatômicas entre os sexos. Bourdieu (2004, p. 18) assegura que essa ordem social
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com poder de contratar de igual para igual, categoria essa se fundamental importância para a
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FIDΣS “constrói o corpo como realidade sexuada e como depositário de princípios de visão e de visão sexualizantes”.
A dominação masculina encontra, assim reunidas todas as condições para o seu exercício. A primazia universalmente concedida aos homens se afirma na objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em uma divisão sexual do trabalho de produção e reprodução biológica e social, que confere aos homens a melhor parte (...) (BOURDIEU, 2003, p. 45)
Bourdieu (2003) fala de há uma representação androcêntrica da reprodução biológica e da reprodução social, da qual Saffioti (2004) discorda, por defender o regime do patriarcado, mas os autores convergem no sentido de que há um senso comum, um senso prático, sobre o sentido das práticas, que são reiteradas por homens e mulheres, sem maiores questionamentos. E as próprias mulheres aplicam a toda a toda realidade e, particularmente, às relações de poder em que se veem envolvidas esquemas de pensamento que são produto da incorporação dessas relações de poder e que se expressam nas oposições fundantes da ordem simbólica. Por conseguinte, seus atos de conhecimento são, exatamente por isso, atos de reconhecimento prático, de adesão dóxica, crença que não tem que se pensar e se afirmar como tal e que “faz”, de certo modo, a violência simbólica que sofre. (BOURDIEU, 2003, p. 45)
Com efeito, a teoria da dominação masculina de Bourdieu (2003), o regime do
como importantes fundamentos teóricos na compreensão do fenômeno global da violência de gênero contra a mulher. No Brasil, até bem pouco tempo, a mulher casada era considerada pela lei como relativamente incapaz, ao lado dos pródigos, os silvícolas e os menores de 16 anos, com a consciência e capacidade de discernimento consideradas relativa. Somente a partir da Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962, o Brasil reconheceu a capacidade civil das mulheres, outorgando-lhe o direito de trabalhar fora e contratar. Durante muito tempo, os tribunais brasileiros absolviam os maridos que estupravam suas esposas, sob o argumento de que agiam no estrito cumprimento de um dever legal. Ou os absolviam de agressões contra as esposas, fundamentando-se no fato de que ao marido ela deve respeito e obediência e, se foi necessário o uso da força, foi para fins didáticopedagógicos.
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patriarcado de Saffioti (2004) e a teoria do contrato sexual de Pateman (1993) se apresentam
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FIDΣS Obviamente, de acordo com as teorias que explicam a dominação masculina, o patriarcalismo e o contrato sexual, há uma ordem social que se reproduz e se retroalimenta. Somente uma educação não sexista, baseada nos direitos humanos e igualdade de gênero é que se poderá para contribuir para abrir fissuras de possibilidade de abertura dessa ordem estabelecida.
3 PRISÃO É A ÚNICA SOLUÇÃO?
Na opinião de juristas e estudiosos do assunto, como Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini (2013), a prisão é um fator ainda mais criminógeno, pois o agressor sairia da prisão ainda mais bruto e vingativo. 2 Em 2008, foram 1.834 prisões em razão da aplicação da Lei Maria da Penha, e 3.074 presos no ano de 2011, com um acréscimo de 68% no período de quatro anos, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (dezembro de 2011) e, apesar disso, os números da violência não param de crescer (GOMES, 2013). Com o intuito de avaliar a eficácia desse tipo de intervenção, o Departamento de Polícia de Minneapolis realizou um experimento de campo em que foram designados três tipos de procedimentos: a) conselhos curtos; b) pediram ao agressor que se mantivesse afastado da vítima por, pelo menos, oito horas; c) prenderam o marido. Os relatórios da polícia foram monitorados rigorosamente durante seis meses. Os resultados indicaram que
apenas 10% dos que haviam sido presos (por uma a duas noites), voltaram a agredir. Infelizmente, pesquisa posterior divulgada por Langer (1986) e Sherman (1992) sugere que os efeitos dissuasórios desse tipo de procedimento tendem a diminuir com o tempo. Nesse mesmo sentido, Bahls e Navolar (2004, p. 6, apud PAULO; PARO, 2009) acreditam que as situações aversivas também produzem determinados comportamentos, e um deles é a punição.
Situações ditas aversivas também produzem determinados tipos de comportamentos. A punição, por exemplo, é uma delas: a punição caracteriza-se pela retirada de um 2
Essa também foi a conclusão a que chegaram três conferencistas (Maria Acale, da Espanha; Mariana Maret, do Uruguay e Luiz Flávio Gomes, do Brasil), em 13.10.12, no 12º Congresso Nacional de Derecho Penal e Criminologia, em Punta del Este (Uruguay).
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19% dos que foram aconselhados; 24% dos que foram solicitados a deixar o local, contra
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FIDΣS estímulo reforçador diante de determinada resposta ou pela apresentação de um estímulo aversivo. De acordo com Skinner (1953) a punição somente produz diminuição de um dado comportamento temporariamente e nas situações em que o agente punitivo estiver presente. Assim a punição não é eficiente para a remoção de um comportamento, podendo gerar outros comportamentos indesejados tais como a agressividade. A utilização do reforço positivo é mais adequada quando se quer promover uma mudança prolongada e eficaz do repertório comportamental do indivíduo.
Gomes (2013) aposta numa educação não sexista (nem machista nem feminista) e que o caminho é ensinar as crianças a resolverem seus conflitos de forma conciliatória. Sustenta que não há como esperar diminuição nos índices de violência sem ensinar ética para as crianças. Continua com sua argumentação no sentido de que a educação é o caminho para a resolução do problema. Enquanto não mergulharmos fundo na questão da educação (não sexista), pouco ou nada faremos para mudar o trágico (e patético) cenário de violência machista no Brasil, que a cada duas horas vitimiza uma mulher. São 11 assassinatos diários, sendo que 7 são cometidos por namorado ou ex-namorado, noivo ou ex-noivo, marido ou ex-marido. O que fazer? (GOMES, 2013)
No entanto, é necessário reconhecer que os frutos colhidos pela educação e pela mudança milenar da mentalidade machista, patriarcal, hierarquizante só serão colhidos a
estatísticos que estampam as páginas policiais. Segundo Gruen (1995), o abrandamento da agressividade tão esperada do masculino contribuirá, decisivamente, para o processo de cura da violência relacional (apud CUNHA, 2000, p. 279) 3.
3
GRUEN, ARNO. A Cura da Normalidade, apud CUNHA, DJASON BARBOSA DA. Adultério, Crime e Castigo – O Discurso do Judiciário na Mediação Ideológica do Discurso do Criminoso Passional. Na tese de Dotouramento pela Universidade Federal de Pernambuco, Recife-PE, 2000, p. 279 afirma que: “Se a dor, a preocupação e a impotência são negadas por serem consideradas fraquezas, por exemplo como expressão pouco masculina dum sentimentalismo considerado feminino, como pouco apropriadas à força masculina (o que também é válido para mulheres que reclamam a força para si dentro dos padrões masculinos), o interior é neutralizado e desligado da engrenagem da vida diária, e, assim, o mundo interior afunda-se cada vez mais no inconsciente. Mas ele continua a ser o motor, mesmo que incógnito, do nosso modo de agir, pensar e sentir”.
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longuíssimo prazo. Enquanto isso, algo terá que ser feito a fim de mudar os atuais quadros
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FIDΣS Também não se pode deixar de observar que, quando os representantes da lei mostram que estão levando a sério o crime e levam preso o criminoso, a violência doméstica é reduzida, a exemplo do que aconteceu nos dois primeiros anos de aplicação da Lei Maria da Penha. Com o passar do tempo e o abrandamento na aplicação da lei, a possibilidade de renúncia à representação, aliados a todas as questões controvertidas que giraram em torno da interpretação da lei, levaram à sensação, por parte dos agressores, das vítimas e da sociedade, que a lei havia fracassado. Obviamente, não se está a defender a não prisão do homem em contexto de violência doméstica, mas sim abrindo o leque da discussão, para afirmar que o problema é bem mais amplo, e merece uma atenção diferenciada, especialmente no que respeita a programas de educação do agressor. O investimento em ações preventivas e também pedagógicas, educativas, que tem como alvo homens em contexto de violência tem se mostrado um instrumento eficaz no enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. Por isso, a importância do “Grupo Reflexivo para Homens: por uma atitude de paz”.
4 A IMPORTÂNCIA DOS GRUPOS DE EDUCAÇÃO DE HOMENS E AS
A necessidade da criação de um programa de reeducação de agressores surgiu a partir das falas das próprias vítimas, que afirmavam que queriam viver com aqueles maridos ou companheiros, mas queriam que eles tivessem uma atitude diferente em casa. O que a vítima busca com o processo criminal não é, necessariamente, a punição ou vingança. Elas querem não ser mais vítima. A Comissão sobre o Status da Mulher - CSW, da Organização das Nações Unidas – ONU, no dia 06 de novembro de 2013 emitiu a seguinte recomendação:
(ggg) Create, develop and implement a set of policies, and support the establishment of rehabilitative services, in order to encourage and bring changes in the attitudes and behaviours of perpetrators of violence against women and girls and to reduce
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RECOMENDAÇÕES DE ORGANISMOS INTERNACIONAIS
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FIDΣS the likelihood of reoffending, including in cases of domestic violence, rape and harassment, as well as monitor and assess their impact and effect; (ONU, E/2013/27 - E/CN.6/2013/11, item ggg) 4
De igual modo, a Resolução do Conselho de Ministros da Europa também recomenda grupos de educação de agressores como forma de enfrentamento à violência de gênero contra a mulher.
5 O PROGRAMA DE EDUCAÇÃO DE AGRESSORES DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE
Grupo reflexivo para homens: por uma atitude de paz
5.1 Objetivos
5.1.1 Objetivo geral
Constituir um grupo com homens em processo judicial, que estejam envolvidos em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, a fim de despertar neles uma reflexão sobre suas atitudes.
Proporcionar a reflexão sobre o papel masculino e feminino na sociedade
contemporânea;
Promover um espaço de escuta compartilhada, através de troca de experiências;
Discutir a Lei Maria da Penha no contexto de violência doméstica e familiar na
promoção de igualdade de gênero, considerando as realidades vivenciadas; e
Promover alternativas para um comportamento assertivo diante de situações de
estresse.
4
Em tradução livre: Criar, desenvolver e implementar um conjunto de condições e apoiar o estabelecimento de serviços de reabilitação, a fim de incentivar e trazer mudanças nas atitudes e comportamentos dos perpetradores de violência contra mulheres e meninas e para reduzir a probabilidade de reincidência, inclusive em casos de violência doméstica, estupro e assédio, bem como monitor e avaliar o seu impacto e o efeito.
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5.1.2 Objetivos específicos
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FIDΣS
5.2 Resultados esperados
Romper com o ciclo da violência doméstica e familiar contra a mulher, através
da promoção da conscientização dos homens envolvidos neste contexto, evitando assim a reincidência em casos de violência contra a mulher.
Diminuição da ocorrência de atos violentos por parte dos participantes dos
grupos em pelo menos 50% dos homens, mediante acompanhamento sistemático durante o período de 06 (seis) meses após concluída sua concluída sia participação no grupo.
5.3 Metodologia
Foi firmado um Termo de Cooperação Técnica com o Poder Judiciário, com o objetivo de formalizar o interesse comum das partes de cooperar entre si, visando ações conjuntas para consolidar a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos e de respeito à dignidade humana, nos termos da Constituição Federal e Lei nº 11.340/06, com a criação e delimitação das ações do Projeto “Grupo Reflexivo de Homens: por uma Atitude de Paz”, visando à promoção de discussões pautadas na igualdade de gênero, respeito aos Direitos Humanos e prevenção e combate à violência doméstica e familiar contra
Os homens foram encaminhados ao grupo por meio das seguintes portas:
medidas protetivas previstas na Lei n.º 11.340/2006, como complemento às
referidas medidas.
como aplicação de outras medidas cautelares diversas da prisão preventiva.
em decorrência de aplicação da suspensão condicional do processo, prevista no
artigo 89 da Lei nº 9.099/95.
decorrente do sursis penal previsto no art. 77 do Código Penal, como condição
imposta por ocasião da suspensão condicional da pena aplicada em sentença penal condenatória.
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a mulher, conforme previsto no art. 30 da Lei 11.340/06.
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FIDΣS
como pena acessória prevista no artigo 45 da Lei Maria da Penha, que
modificou o artigo 152 da Lei de Execução Penal. 5
Em seguida o denunciado comparece ao Núcleo de Apoio à Mulher Vítima de Violência Doméstica - NAMVID para orientação de como será executado o grupo reflexivo. Pra tanto, é realizado um atendimento psicossocial, bem como atendimento psicológico. Neste primeiro atendimento são verificadas as necessidades socioassistenciais e no que se refere ao atendimento psicológico, é realizada uma anamnese, que através desta será possível identificar dificuldades, motivação e demais fatores que possam interferir na participação no grupo. Os atendimentos individuais acontecem na sede do NAMVID, assim como os encontros em grupo. Cada grupo é composto por no máximo 10 homens que participam de 10 encontros, em grupo fechado. Os encontros ocorrem uma vez por semana, por aproximadamente duas horas e se desdobram nas atividades descritas na dinâmica a seguir relatada.
1º encontro: Apresentação pessoal através de dinâmica de grupo.
Esclarecimento de dúvidas e estabelecimento de regras de convivência. A importância do sigilo. Saber da expectativa do grupo e da importância dos encontros. Apresentação e discussão do filme Acorda Raimundo, Acorda! Reflexão sobre papéis familiares e conflitos de convivência. 2º encontro: Introdução as discussões de gênero. Dinâmica sobre o que é ser
homem e mulher. Questões biológicas/sociais/históricas e culturais. Reflexões sobre violência.
3º encontro: O papel da comunicação e a solução de conflitos a partir do
diálogo. Trabalho motivacional.
4º encontro: identificação do comportamento agressivo – Prevenindo a
violência e como ter o controle da raiva. :
5º encontro: Considerações sobre Direitos humanos. O conceito de direito e
suas interfaces. 5
Art. 45. O art. 152 da Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 152. ................................................... Parágrafo único. Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação.” (NR)
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FIDΣS
6º encontro: História da Lei Maria da Penha e a sua execução. Momento de
tirar dúvidas sobre questões jurídicas e legais.
7º encontro: Uso abusivo de álcool e outras drogas. Conceito de dependência
química. Conhecendo as drogas no organismo: como prevenir, identificar e tratar. Convivência familiar: Como é percebida a dinâmica familiar e a importância da comunicação.
8º
encontro:
Saúde
do
homem:
sexualidade,
doenças
sexualmente
transmissíveis e comportamentos de risco. Identificação da violência sexual.
9º encontro: Avaliação geral da equipe e participantes. Verificação da situação
familiar e expectativas pós-grupo.
10º encontro: encerramento com momento motivacional.
5.4 Mecanismos de monitoramento, controle e avaliação
A avaliação sistemática é mensal (desde o início até 6 meses do término), conjuntamente com homem e sua família. São adotadas como técnicas a aplicação de questionário e entrevistas com caráter avaliativo/qualitativo, no intuito de verificar a aceitação e impacto do grupo em seu cotidiano. A avaliação sistemática com a equipe técnica é semanal. São realizadas avaliações técnicas através de relatórios encaminhados à coordenação do NAMVID. A elaboração dos relatórios ocorre a partir dos dados extraídos dos
através de observações realizadas pela equipe que está a frente do projeto.
5.5 Resultados parciais obtidos
Depois de 5 turmas do Grupo Reflexivo finalizadas, com número aproximado de 50 homens, e em consulta semanal ao site do TJ/RN, constatou-se o índice de reincidência ZERO. Registra-se que não existe qualquer programa de recuperação de apenado que tenha um índice de reincidência sequer aproximado.
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questionários e entrevistas aplicadas aos participantes do grupo e seus familiares e ainda
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FIDΣS 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O projeto tem como norteador a Política de Direitos Humanos, bem como a Política Nacional de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, que estabelece diretrizes para o combate, através de atuações pautadas na igualdade de gênero. A identidade de gênero, fruto do processo de socialização, determina lugares simbolicamente diferenciados a homens e mulheres. As marcas que diferenciam estes espaços dizem respeito à auto percepção de si mesmo e ao gerenciamento das formas de sentirmos, pensarmos e de sentir e pensar o mundo em que vivemos que, por sua vez, determina nosso comportamento. Percebemos então, que a construção da identidade dá-se através de um sistema relacional, por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos através dos quais estas são representadas. A concepção de homem que norteia este serviço tem seu referencial nas ciências humanas e sociais que compreendem o ser humano em permanente desenvolvimento, que transforma a si e ao meio social, a partir das vivências compartilhadas com seus grupos de convívio e rede de relações. Entende-se que o homem autor de violência doméstica e familiar precisa ser compreendido em seu contexto e em suas particularidades, não sendo visto apenas como único e principal foco de atenção, a intervenção jurídica. É necessário abordar a questão da violência em suas múltiplas relações com a vida do homem, possibilitando transformações pessoais e no seio familiar, resgatando a capacidade criativa e despertando aspectos positivos Para tanto, o homem necessita de intervenções ampliadas que propiciem a desconstrução de conceitos impostos socialmente e historicamente. Sendo imprescindível a responsabilização por atos agressivos possivelmente cometidos. A inserção desse homem num grupo focal que o permita explorar suas emoções e falar sobre seu modo de conceber a realidade e repensar seu papel no âmbito familiar, desmistificando alguns papéis impostos a ele, enquanto homem, no sentido de problematizar e desnaturalizar a violência. Neste sentido, a intervenção grupal tem o caráter psicosocioeducativo, visando estimular a participação dos homens no processo de responsabilização de suas atitudes, bem como na compreensão de fatores históricos e culturais que contribuem para a sua ação violenta. Ai reside a importância deste projeto, o qual propõe a constituição de um grupo que
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destes sujeitos, incluindo sua autoestima.
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FIDΣS promova a reflexão para superação do contexto de violência, por parte desses homens envolvidos em episódios de agressão contra suas companheiras e famílias, ratificando inclusive o estabelecido na lei 11.340: “Art. 35: A União, o Distrito Federal, os estados e os Municípios poderão criar e promover, no limite das respectivas competências, alínea V – centros de educação e reabilitação para os agressores”.
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FIDΣS Recebido 12 fev. 2014 Aceito 11 abr. 2014
AFETIVIDADE EM QUESTÃO: A DISTINÇÃO JURÍDICA ENTRE O NAMORO E A UNIÃO ESTÁVEL Fernanda Holanda Fernandes
RESUMO Discute a diferença entre a união estável e o namoro, aborda a consagração daquela como entidade familiar; sua evolução ao longo do tempo; a inexatidão dos seus requisitos jurídicos e a sua natureza de ato-fato jurídico. A partir disso, traça um paralelo com o namoro, desprovido de efeitos legais, cuja transição para união consensual é tênue e, muitas vezes, imperceptível. Elabora-se a hipótese de que somente pelo comportamento objetivo do par seja possível evidenciar a distinção entre esses modos de relacionamento. Por fim, apresenta o contrato de namoro como tentativa para evitar o reconhecimento da
Palavras-chave: União estável. Namoro. Contrato de namoro. “Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. (...) Ah, a flor do amor tem muitos nomes.” (Graciliano Ramos)
1 INTRODUÇÃO A distinção entre o namoro e a união estável é uma questão bastante presente na contemporaneidade, visto que, com as novas tecnologias, os espaços cibernéticos se
Bacharela em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
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união estável e explicita as razões pelas quais ele é nulo.
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FIDΣS transformaram em ambientes propícios para a intensificação das relações. Em poucos minutos, sabe-se tudo sobre a vida de uma pessoa. Assim, essa “aparente intimidade” é transposta para a vida real, pois, em pouco tempo, namorados passam a morar juntos, dividir obrigações e viver “como se casados fossem”. Nesse contexto, é comum se escutar a expressão “namorido”, termo que significa uma mistura de namorado com marido e traduz bem a confusão existente entre esses dois padrões de relacionamento. Isso demonstra que a língua portuguesa se adequa com rapidez às necessidades sociais, através dos neologismos. Porém, as normas evoluem de forma mais lenta e gradual, já que a dinamicidade do Direito precisa ser contrabalanceada com a segurança jurídica. Em face disso, namoro e união estável, na esfera jurídica, são institutos distintos e precisam ser conceitualmente diferenciados. Muito embora já existam os “Contratos de namoro” que buscam evitar o reconhecimento da situação fática da união estável, pretendendo que ela permaneça com um status de namoro. Sob esse prisma, sublinha-se que o Direito deve acompanhar os fenômenos sociais, inovando o ordenamento jurídico para corresponder à realidade. No que diz respeito às relações afetivas, a matéria tem características peculiares, pois como impor normas e regras às diferentes modalidades de trocas afetivas? Considera-se mais importante reconhecer as diversas formas de interação e concederlhes os efeitos legais que delas derivam do que tentar adequá-las a formas pré-definidas. A partir dessa premissa, surge a problemática da conceituação e identificação de uma entidade
afetivos, como delimitar a existência de uma família? Nesse âmbito, apresenta-se a questão específica: Como distinguir a união estável, unidade familiar, do simples namoro, relação sem qualquer efeito legal? Elabora-se como hipótese a ideia de que a distinção entre os dois institutos só é possível através da observação do comportamento objetivo do casal que, quando está vivendo em união estável, se traduz numa “aparência de casados”. Assim, objetiva-se traçar um breve esboço acerca das possíveis respostas para essas indagações através da delimitação do problema conceitual da união estável; explicitação dos direitos e deveres inerentes a essa relação; a necessidade de diferenciá-la do casamento e a dificuldade de identificar o ponto de transição entre a união estável e o namoro. Por fim, procura-se esclarecer se nessa seara de conceitos subjetivos, é possível um contrato que estabeleça, a priori, a inexistência de uma união estável, o denominado “contrato de namoro”.
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familiar. Se não existem modelos capazes de abranger os diferentes formatos de vínculos
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FIDΣS A importância do tema encontra-se traduzida nas mudanças no padrão de nupcialidade brasileiro. Visto que as estatísticas revelam um aumento expressivo das uniões consensuais que passou de 28,6% para 36,4% do total, e uma consequente redução dos casamentos oficiais que caiu de 49,4% em 2000 para 42,9% em 20101. Ademais, a modernidade tem provocado profundas alterações no modo de interação entre as pessoas, tornando-se cada vez mais comum namorados viverem em conjugalidade. Embora, muitas vezes, não atentem para as consequências jurídicas disso e, inadvertidamente, pretendam continuar apenas como “enamorados”. Espera-se que o presente trabalho possa contribuir para o esclarecimento acerca dessa questão relevante e delicada.
2 A UNIÃO ESTÁVEL COMO ENTIDADE FAMILIAR Pode-se considerar que o namoro e a união estável são espécies de um mesmo gênero: o das relações afetivas. Porém, o primeiro sempre existiu como uma etapa preliminar ao casamento, enquanto a união estável surgiu como relação extraconjugal, desprovida de qualquer reconhecimento e evoluiu para uma forma de unidade familiar. O código civil de 1916 regulamentava as relações matrimoniais e atribuía unicamente a estas a qualidade de entidade familiar. Contudo, mesmo existindo a condenação das relações extramatrimoniais, a tipificação do adultério como crime e o não reconhecimento jurídico desses relacionamentos, a afetividade humana não se sujeitava a regras. E a própria
denominadas de concubinato. Destas surgiram demandas patrimoniais que necessitavam ser resolvidas pelo judiciário. As soluções encontradas se restringiam ao âmbito econômico, considerando-as como sociedade de fato e concedendo à mulher indenização por serviços domésticos prestados, conforme a súmula 380 do Superior Tribunal Federal. Com a Lei do Divórcio (1977), permite-se aos divorciados contrair novas núpcias, e o concubinato deixa de ser uma imposição, para aqueles que não podiam se divorciar, e passa a ser uma escolha para os que, mesmo desimpedidos de oficializar a relação, preferiam não fazê-lo. Assim, esse tipo de vínculo foi ganhando relevância e aceitação social, de tal modo que, de fenômeno excluído do ordenamento pátrio, se transformou em opção, necessitando de
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lei, ao impedir a dissolução do casamento, ensejou a formação de relações fora do casamento,
Dados preliminares do Censo do IBGE, 2010.
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FIDΣS reconhecimento legal. Visando atender a esse imperativo, a Constituição Federal de 1988 apresentou uma nova concepção de família, traduzida no termo generalizante “entidade familiar”. Passou, assim, a proteger outras formas de vínculo familiar além do casamento, como a união estável e a unidade monoparental, formada por um dos pais e os filhos. Vale ressaltar que a Constituição Federal, ao apresentar, no art. 226, um rol exemplificativo das entidades familiares, sem apontar as características comuns a esse tipo de instituição, admitiu a sua diversidade. Cabendo à doutrina e à jurisprudência definir os seus elementos fundamentais. Nesse sentido, Dias (2007) defende que, á luz dos princípios constitucionais da igualdade, dignidade da pessoa humana e liberdade, o conceito de família foi reformulado. E passou a abranger qualquer tipo de ligação afetiva capaz de unir pessoas com identidade de projetos de vida e propósitos comuns, gerando comprometimento mútuo. Sob esse prisma, todos os critérios anteriores para definição da família foram abolidos, como a celebração do casamento, casal formado por pessoas de sexo oposto, presença de filhos etc. A autora salienta que essa pluralidade de configurações familiares é produto da ideologia pós-moderna, assentada nos valores do individualismo e eudemonismo, na qual a satisfação individual predomina sob os interesses sociais e patrimoniais. E, nesse âmbito, o único elemento presente em todas as espécies de família é a afetividade. Contudo, essa conceituação evidencia o problema da transformação da afetividade, termo de significado eminentemente psicológico, em um conceito jurídico, passível de ser
interpretação sistemática do texto constitucional, aponta os fundamentos para a consagração da afetividade como princípio implícito. Segundo o jurista, a igualdade entre os filhos, independentemente da sua origem biológica ou adotiva (art.227, § 6°), evidencia como único fundamento da relação entre pai e filho o interesse afetivo; por outro lado, o advento do divórcio (e a livre dissolução da união estável), indica que o vínculo entre os indivíduos se mantem apenas pela afetividade e não devido a imposições legais; ademais, a extensão da proteção constitucional a unidade monoparental e a união estável, modelos totalmente distintos, ressalta que o afeto é o elemento comum entre eles. Sobre o papel essencial dos afetos nas interações interpessoais não restam dúvidas. Porém, a afetividade não pode ser o único requisito a definir uma família, uma vez que ele está presente tanto na união estável como no namoro e estes possuem naturezas distintas.
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inserido no contexto normativo. Nesse diapasão, Lôbo (2001), baseando-se numa
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FIDΣS Nessa direção, Lôbo (2001) apresenta como elementos da unidade familiar além da afetividade, a ostensibilidade, o caráter público da união, e a estabilidade, ou seja, exclui da espécie família os relacionamentos eventuais episódicos e sem comprometimento e comunhão de vida. Em face disso, indaga-se em que medida a afetividade se traduz num grau de comprometimento e comunhão capaz de indicar a existência de um núcleo familiar.
3 O PROBLEMA CONCEITUAL DA UNIÃO ESTÁVEL Entre as entidades familiares elencadas pela Constituição Federal, a união estável parece ser aquela que apresenta maiores dificuldades para sua conceituação. Uma vez que devido a sua natureza informal, distancia-se do casamento, sem assemelhar-se ao namoro. Até mesmo a legislação, ao tentar delinear os parâmetros da união consensual, esbarra em conceitos pouco claros à luz da ciência jurídica. Pois o Código Civil (2002), no art. 1723, dispõe como atributos característicos dessa relação: a convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituir família. Mas qual o significado desses requisitos? Em que consiste a “convivência pública, contínua e duradoura?” Em que se traduz o “objetivo de constituir família”? A princípio, tentou-se estabelecer um lapso temporal que definisse “a convivência pública, contínua e duradoura”, nesse sentido, a Lei n. 8971/94 estabeleceu o requisito mínimo de 5 anos, salvo se houvesse prole. Entretanto, Diniz (2011) observa a incongruência
certas situações que a ela fariam jus, como a do companheiro que morre pouco antes de completar o prazo legal, deixando sua companheira desprotegida. Ademais, ressalta a autora que esse limite temporal poderia ensejar fraudes, como a interrupção forçada da convivência às vésperas da consumação do referido período. Destarte, a Lei n. 9278/96 estabeleceu o enunciado genérico de convivência duradoura, pública e contínua, eliminando a referência a qualquer período de tempo. Sublinha-se que tal medida vai ao encontro da ideia de que tempo cronológico difere da dimensão temporal psicológica, pois a intensidade das interações entre duas pessoas nem sempre é diretamente proporcional ao período de convivência. [...] há um componente da experiência psicológica do tempo que também deve ser considerado: frequentemente, os acontecimentos externos e internos parecem ocorrer
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de tal determinação, pois o estabelecimento de qualquer prazo poderia afastar da tutela legal
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FIDΣS de maneira mais ou menos veloz, a nossa percepção dessa duração (...) depende da relação que estabelecemos com estes fenômenos em função de nossos interesses da vida prática. (COELHO, 2004, p.245)
Como evidenciado, a maneira como cada sujeito percebe o grau de envolvimento em um relacionamento pode ser diferente, visto que a percepção humana é guiada não apenas pelos estímulos externos, mas também pelos sentimentos, pensamentos e expectativas. Por outro viés, tempo e estabilidade nem sempre podem ser considerados sinônimos. Lôbo (2001) explica que na união estável, ao contrário do casamento, no qual a estabilidade é presumida, o caráter estável decorre da conduta fática dos companheiros. Dessa forma, só é presumida quando conviverem sob o mesmo teto ou tiverem filhos, admitindo tais presunções prova em contrário. Vale destacar que a doutrina e a jurisprudência indicam que a convivência sob o mesmo teto não é requisito para união estável, conforme súmula 382 do Supremo Tribunal Federal: “A vida em comum sob o mesmo teto more uxorio, não é indispensável à caracterização do concubinato”. Acrescente-se que os fundamentos para a inexigibilidade de coabitação encontram-se no fato de que na realidade social hodierna a aproximação afetiva entre as pessoas se intensifica com mais facilidade, através dos meios de comunicação cada vez mais rápidos e acessíveis. Desse modo, a estabilidade da relação não pode mais ser avaliada apenas quantitativamente pela convivência, mas sim qualitativamente pela intensidade do vínculo, que independe dos encontros físicos.
publicidade, mas sim de notoriedade. Já que tudo aquilo que é público é notório, mas o inverso não é verdadeiro. Segundo a autora, a notoriedade restringe-se às relações no meio social frequentado pelos companheiros, afastando da definição de entidade familiar as relações menos compromissadas, nas quais os envolvidos não assumem perante a sociedade a condição de “como casados fossem”. Conforme a jurista, essa condição transparece quando o envolvimento mútuo transborda o limite do privado, possibilitando a identificação social de duas pessoas como um par, uma unicidade. Assim, é a visibilidade do vínculo que o transforma em ente autônomo merecedor de tutela jurídica como uma entidade. Por fim, apresenta-se o elemento característico mais importante: o objetivo de constituir família. Visto que este é o fator de distinção entre a unidade familiar e outros
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Em relação ao elemento “união pública”, Dias (2007) evidencia não se tratar de
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FIDΣS compromissos afetivos, de acordo com Lôbo (2011), tal componente deve ser analisado objetivamente a partir do comportamento do casal e não através da intenção de cada um. Observa-se que a declaração de vontade, por mais das vezes, é incompatível com a conduta apresentada. E como a primeira é de caráter subjetivo, impossível de se auferir a sua veracidade, somente o comportamento pode ser observado e servir como parâmetro para a constatação da existência ou não do objetivo de constituir uma família. Após a enumeração dos componentes do conceito de entidade familiar, é imprescindível ressaltar as considerações de Cunha (2001). Segundo estas, os elementos essenciais da união estável são aqueles que vão delinear a definição de família, mas não é a ausência de um deles responsável pela sua descaracterização. Para o autor, o importante é, ao analisar cada caso, saber se ali na somatória dos elementos está presente um núcleo familiar merecedor da proteção do Estado e da ordem jurídica. Dias (2007) vai ao encontro dessas ideias, ao destacar ser a unicidade do enlace afetivo detectado através do sopesamento de todos os requisitos legais, de forma conjunta e ao mesmo tempo maleável, sob pena de engessamento do instituto. Dessa maneira, é imperioso destacar que embora a lei institua os requisitos para a união estável, a identificação de uma união estável, enquanto unidade familiar, não ocorre através da simples subsunção dos fatos à norma. Tal análise requer sensibilidade para extrair, das experiências de duas pessoas que tiveram suas vidas entrelaçadas, circunstâncias capazes
4 OS EFEITOS JURÍDICOS DA UNIÃO ESTÁVEL Acrescente-se que apesar de toda a dificuldade para definir a união estável, as tentativas são necessárias em razão da existência dos efeitos jurídicos decorrentes do seu reconhecimento, uma vez que, enquanto unidade familiar, merece a proteção do Estado e assistência a cada um dos seus integrantes. Dentre tais efeitos, destacam-se os direitos e deveres entre os companheiros e o regime patrimonial dos bens. Conforme o art. 1724 do Código Civil brasileiro (2002), os companheiros assumem um para com o outro os deveres de lealdade, respeito e assistência material e moral. No art. 1725, se estabelece o regime de comunhão parcial de bens, salvo contrato escrito, o qual a doutrina denomina de contrato de convivência. Em face desses dispositivos, a doutrina tece algumas considerações que os tornam
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de provar a convivência marital de forma cristalina perante a sociedade.
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FIDΣS mais maleáveis. Já que a união estável, ao contrário do casamento, não surge pela vontade de contrair direitos e obrigações, mas sim a partir da realidade construída paulatinamente. Nesse âmbito, Monteiro (1978) adverte que o regime de bens da união estável é dotado de presunção relativa, ou seja, admite prova em contrário. Além disso, o legislador não se limitou a assegurar apenas o amparo econômico entre os companheiros, mas também a assistência moral, como o apoio em relação às questões existenciais. Tal fato reflete a ideia de que a união estável não é um mero acordo tácito de direitos e deveres, mas sim uma unidade fundamentada no afeto. Em relação aos deveres de lealdade e respeito, Lôbo (2001) os flexibiliza, ao considerá-los como obrigações naturais, já que ambos são juridicamente inexigíveis, e não são causa de dissolução. O autor destaca, ainda, a diferença entre lealdade (dever da união estável) e fidelidade (dever do casamento): O conceito de lealdade não se confunde com o de fidelidade. A lealdade é respeito aos compromissos assumidos, radicado nos deveres morais de conduta. Fidelidade, no âmbito do direito de família tem sentido strito: é o impedimento de ter ou manter outra união familiar, em virtude do principio da monogamia matrimonial. Controverte a doutrina e a jurisprudência a respeito da aplicação do princípio da monogamia a União Estável. Entendemos não ser possível essa extensão, não só por se tratar de restrição de direitos – que não admite a interpretação extensiva, mas também porque não se pode submeter a União Estável as características próprias do casamento. (LÔBO, 2001, p. 178)
relevante aspecto na polêmica conceitual da união estável. A ideia de que, embora ela proteja os companheiros da mesma forma que o matrimônio, ela não pode ser equiparada a este. Pois, constituindo-se a união consensual como uma escolha, em face da inexistência de impedimento para o casamento, pode-se concluir que os sujeitos dessa relação não desejam se sujeitar ao regime matrimonial. Dessa forma, fica claro que a união consensual permanece no campo do não institucionalizado, visto que o casal prefere não oficializar sua relação através do casamento, sendo com ele inconfundível. Entretanto, em relação ao namoro a linha divisória parece ser mais tênue, pois a transição entre eles, muitas vezes, é imperceptível até mesmo para o próprio casal.
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É importante destacar que Lôbo (2001), ao fazer essa distinção, introduz um
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5 A DISTINÇÃO ENTRE O NAMORO E A UNIÃO ESTÁVEL Como demonstrado, a caracterização da união estável é uma problemática na qual a doutrina e a jurisprudência ainda encontram muitos obstáculos. E nessa esteira, a celeuma se agrava com o entendimento jurisprudencial de que a convivência sob o mesmo teto não é condição necessária para o seu reconhecimento. Com isso, ocorre a dissolução das fronteiras entre o namoro e a união consensual. Em ambos os vínculos pode estar presente a convivência pública, contínua e duradoura e o objetivo de constituir família. Além disso, para a parcela mais conservadora da sociedade o namoro é considerado uma etapa anterior ao casamento, existindo planos futuros de uma vida em comum e estabilidade. Segundo Coutinho e Duarte (2011), a estabilidade de uma relação amorosa está condicionada a alguma garantia de que ela irá se manter e se consolidar com o tempo. E essa segurança não é mais obtida com uma garantia externa, mas sim pelo comprometimento pessoal dos parceiros. Ademais, é o compromisso entre eles que fornece o apoio emocional para suportar as possíveis dificuldades. Nessa esteira, Bertoldo e Barbará (2006, p. 229) definem o namoro nos seguintes termos: O namoro é caracterizado, sobretudo, pela estabilidade da associação entre duas pessoas, que é inversamente relacionado à probabilidade que uma pessoa vai deixar
quando fatores ambientais se interpõem contra a associação (Rodrigues, Assmar & Jablonski, 2002). Segundo Gonzaga, Kelner Londahl e Smith (2001), a presença momentânea e expressa de amor tem um papel crítico na aproximação entre parceiros ao assinalar e fortalecer compromisso e, consequentemente, promover comportamentos comprometidos e a percepção destes pelos parceiros.
Como evidenciado, os autores apresentam a estabilidade como um componente também do namoro. Em face disso, cabe a indagação: O que diferencia a estabilidade da união estável daquela presente no namoro? Elabora-se a hipótese de que a estabilidade do namoro é produto da percepção, que se fortalece com o passar do tempo, de que o outro parceiro não deixará a relação. Essa estabilidade pode, sem dúvidas, se projetar no futuro traduzindo-se em planos para constituir
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a relação. Refere-se à adesão de uma pessoa a uma relação específica mesmo
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FIDΣS uma família, mas permanece como hipótese futura, a ser confirmada a cada momento. Enquanto na união estável, a estabilidade não é mais produto de percepções constantes, mas sim de um projeto de vida em comum que já está efetivamente se concretizando. Nessa direção, destaca-se a jurisprudência: UNIÃO
ESTÁVEL.
PRESSUPOSTOS.
AFFECTIO
MARITALIS.
COABITAÇÃO. PUBLICIDADE DA RELAÇÃO. PROVA. 1. Não constitui união estável o relacionamento entretido sem a intenção clara de constituir um núcleo familiar, ficando comprovado que eram namorados e que pretendiam futuramente constituir uma família, tanto que chegaram a noivar, pouco antes de romperem a relação entretida. 2. A união estável assemelha-se a um casamento de fato e indica uma comunhão de vida e de interesses, reclamando não apenas publicidade e estabilidade, mas, sobretudo, um nítido caráter familiar, evidenciado pela affectio maritalis. 3. Não comprovada a entidade familiar, nem que a autora tenha concorrido para aquisição do imóvel, a improcedência da ação se impõe. Recurso desprovido.2
Pode-se concluir que o elemento “com o objetivo de constituir família” no namoro é pensado numa perspectiva de futuro distante, enquanto na união consensual é interpretado como uma experiência que já está acontecendo. Assim, deve-se ter em mente que a perspectiva de futuro sempre estará presente nos relacionamentos amorosos, variando o grau em que o este pode estar se tornando realidade.
desenvolvem teorias sobre as relações de intimidade com o objetivo de as explicar, prever e controlar. O autor destaca as teorias gerais sobre a concepção de amor, as crenças e as expectativas para as relações íntimas em geral, e teorias locais, que começam a desenvolverse desde o momento em que se conhece o parceiro, a partir das quais as pessoas começam a construir um modelo do outro e da relação. Assim, Fletcher (2002) ressalta que o relacionamento é acompanhado de uma atividade cognitiva constante de avaliar a personalidade do companheiro e prever o futuro da relação, numa tentativa de compreender os motivos do seu sucesso ou fracasso. São tais teorias que estão, silenciosa e constantemente, influenciando e orientando o processo de decisão pelo parceiro e pelo casamento.
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Em consonância com esse pensamento, Fletcher (2002) afirma que os indivíduos
TJRS. AC 70029276110. Sétima Câmara Cível. Rel. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. j. 30/09/2009
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FIDΣS Contudo, nem sempre essa decisão é expressamente tomada, por vezes, a união estável vai se delineando sem que o casal perceba. E paulatinamente o compromisso com um futuro distante vai se aproximando e se transformando em presente, sem que nenhum papel seja assinado, ou direitos e deveres estabelecidos. Nesse âmbito, Lôbo (2011) afirma que o namoro se transforma em união estável quando o par começa a adotar deveres próprios da entidade familiar, como lealdade, respeito, assistência material e moral. Visto que, o namoro, por não ser uma relação jurídica e sim um fato da vida, não cria direitos e deveres exigíveis juridicamente. Nesse ponto, é importante assinalar que essas obrigações não são impostas pela lei, mas nascem da própria relação e se tornam exigíveis a partir do momento em que esta é reconhecida. Desse modo, é exatamente quando ocorre uma mudança comportamental dos namorados que se reflete numa “aparência de casados” que o namoro se transforma em união estável. Porém, não é difícil perceber que aí reside toda a problemática, pois as mudanças comportamentais são lentas e graduais e não tem como delimitá-las de modo exato no tempo. Nesse diapasão, Dias (2007) ressalta que enquanto o casamento tem seu início marcado por uma celebração solene, a união estável não tem termo inicial estabelecido, pois nasce da consolidação do vínculo de convivência, do comprometimento mútuo, do entrelaçamento de vidas e do embaralhamento de patrimônios. Contudo, Lôbo (2011) ressalta que mesmo em face de toda a dificuldade para identificá-lo, não se pode olvidar a importância do termo inicial para qualquer relação jurídica. Visto que ele delimita o momento a partir do qual os direitos e deveres podem ser
companheiros ingresse com uma ação de declaração de existência e dissolução da união estável, a fim de satisfazer seus direitos em face do término da relação. Cumpre observar que a dificuldade para identificar o termo inicial é reduzida quando se pode provar o começo da convivência sob o mesmo teto através da prova de aquisição ou contrato de aluguel de imóvel para moradia, testemunho de vizinhos, pagamento de contas do casal etc. Destaca-se que a jurisprudência tem admitido a prova exclusivamente testemunhal, desde que coerente e precisa, capaz de servir de elemento de convicção para o juiz, como evidenciado no julgado colacionado: Pensão por morte. União estável (declaração). Prova exclusivamente testemunhal (possibilidade). Arts. 131 e 332 do Cód. de Pr. Civil (aplicação) 1. No nosso sistema processual, coexistem e devem ser observados o princípio do
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exigidos. Na união consensual, esse início poderá ser aferido a posteriori, caso um dos
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FIDΣS livre convencimento motivado do juiz e o princípio da liberdade objetiva na demonstração dos fatos a serem comprovados (arts. 131 e 332 do Cód. de Pr. Civil). 2. Se a lei não impõe a necessidade de prova material para a comprovação tanto da convivência em união estável como da dependência econômica para fins previdenciários, não há por que vedar à companheira a possibilidade de provar sua condição mediante testemunhas, exclusivamente. 3. Ao magistrado não é dado fazer distinção nas situações em que a lei não faz. 4. Recurso especial do qual se conheceu, porém ao qual se negou improvimento. 3
Em face do exposto, cabe salientar que o reconhecimento dessa estrutura de convivência requer apurado cuidado, devendo o magistrado investigar as experiências cotidianas do casal com sensibilidade. Lôbo (2011) acrescenta que a convivência sob o mesmo teto não é requisito para a união estável, porém, é elemento de presunção que admite prova em contrário. Assim, quando os supostos namorados passaram a conviver sob o mesmo teto, com o compartilhamento de moradia, já houve a transição do namoro para a união estável, porque a estabilidade aí é presumida. Em contrapartida, ausente a convivência “more uxória”, o autor ressalta que será importante identificar o tempo em que o casal passou a se apresentar “como se casados fossem”. E para isso são utilizadas as provas documentais do início da convivência, como correspondências, fotos e documentos de viagem, a assunção por um dos companheiros das despesas do outro, etc.
estável, as provas de sua existência vão sendo construídas com o tempo e a convivência. Se por um lado tais provas são formadas lentamente, por outro, são indubitáveis, pois o relacionamento, por mais descompromissado que seja, produz reflexos no meio social. Pois, um casal não vive isolado, ele compartilha suas experiências com o entorno social mais próximo, amigos, familiares, etc. Em razão dessa facilidade probatória para constatar a existência de um vínculo afetivo com importantes efeitos jurídicos como o compartilhamento de patrimônio, deveres de assistência material e moral, muitas pessoas não desejam correr o risco de ter seus interesses econômicos afetados por uma relação amorosa. Para evitar que isso aconteça, surge a necessidade de garantir que o namoro não se transforme em união estável, através de um contrato que assegure a ausência de qualquer expectativa de constituir família. 3
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Como explicitado, não existe um evento específico que represente o início da união
STJ. REsp 783697- GO. Rel. Min. Nilson Naves. j. 18/04/2006. DJU 09.10.2006
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5.1 O Contrato de Namoro A partir das diferenças traçadas até aqui entre a união estável e o namoro, fica evidente que o limite entre ambos é muito tênue, o que despertou em algumas pessoas o receio de que de um simples namoro pudesse advir obrigações patrimoniais. Dessa preocupação surgiu o denominado “contrato de namoro”. Este é definido por Gagliano (2012) como um documento por meio do qual se reconhece que determinada união é apenas um namoro, sem compromisso de constituição de família. Tal acordo, segundo Dias (2007), visa assegurar a ausência de comprometimento recíproco e a incomunicabilidade de patrimônio presente e futuro. É preciso esclarecer que, embora seja usado o termo “contrato”, sua real natureza é de declaração. Pois, conforme Silva (2003), o contrato é negócio jurídico que cria, modifica ou extingue direitos e obrigações (arts. 421 e seguintes do novo Código Civil) e estes inexistem numa relação de namoro. Assim, o ato pelo qual duas pessoas afirmam que namoram e ainda não constituíram família é mera declaração. Nesse ponto, cabe a reflexão acerca da possibilidade das pessoas possuírem capacidade de determinar, a priori, o grau de envolvimento que determinada relação pode atingir. Uma vez que a união estável não surge de uma hora para outra, a partir de uma decisão, ela é construída paulatinamente, até se delinear como um fato social e transforma-se em relação jurídica.
vontade está em sua gênese, mas o direito a desconsidera e apenas atribui juridicidade ao fato resultante. Entretanto, deve-se enfatizar que não se trata da inexistência de vontade, pois ela está presente em qualquer ação humana. Apenas ela não é exigida pela lei como requisito para a produção dos efeitos jurídicos dela decorrentes. Por ser ato-fato jurídico (ou ato real) a união estável não necessita de qualquer manifestação de vontade para que produza seus efeitos jurídicos. Basta a sua configuração fática, para que haja incidência das normas constitucionais e legais, cogentes e supletivas e a relação fática converta-se em relação jurídica. Pode até ocorrer que a vontade manifesta ou intima de ambas as pessoas – ou de uma delasseja a de jamais constituir União Estável; de terem apenas um relacionamento afetivo sem repercussão jurídica e, ainda assim, decidir o judiciário que a União Estável existe. (LÔBO, 2011, p. 172)
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Conforme Lôbo (2011), a natureza da união estável é de ato-fato jurídico, no qual a
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Nesse âmbito, destaca-se a diferença primordial entre “vontade” e “declaração de vontade”: esta é objetiva e para o direito contratual é válida independente da sua correspondência à vontade íntima da pessoa. Esta última, por sua vez, é um ato que envolve diversos fatores psicológicos de difícil demonstração, pois é influenciada inclusive por fatores inconscientes, dos quais nem mesmo o sujeito tem um claro conhecimento. Ademais, nem sempre a vontade é traduzível, pois pode encontrar-se camuflada por resistências e desejos ocultos. Muitas vezes queremos algo e caminhamos na direção contrária. O ato volitivo (ato de vontade) é traduzido pelas expressões típicas do “eu quero” ou “eu não quero”, que caracterizam a vontade humana sensu strictu. Distinguem-se também os motivos ou razões intelectuais que influem sobre o ato volitivo, dos móveis,
ou
influências
afetivas
(...)
(MELO,
1979,
citado
por
DALGALARRONDO, 2008, p. 175)
Dessa forma, no campo da afetividade o legislador, ao instituir a união estável, se baseou na realidade e não na vontade dos sujeitos ou na sua declaração. Os efeitos jurídicos dessa situação fática poderão ser aferidos a posteriori, na hipótese de um dos companheiros ingressar com uma Ação de Reconhecimento e Dissolução de União Estável. Nesta, as partes poderão reunir os meios de prova existentes para o convencimento do juiz acerca da existência ou inexistência da relação. De acordo com Dias (2007), a força da “vida em comum” é tão grande para o direito,
vem a jurisprudência reconhecendo a comunicabilidade dos bens adquiridos durante o período da vida em comum, a fim de evitar o enriquecimento ilícito de uma das partes. Nessa esteira, Dias (2007) adverte que nem mesmo os impedimentos que a lei estabelece para o casamento e estende para a união estável, podem ser aplicados a esta. Pois, devido a sua natureza de ato-fato jurídico, uma vez constatada a sua existência não tem como negá-la, invalidando-a, sendo apenas cabível a declaração de inexistência, ao contrário do casamento que pode ser anulado (art. 1550 do CC 2002). Em face do exposto, apresenta-se a problemática: Como considerar válido uma declaração de vontade que tenha por escopo assegurar que um relacionamento amoroso não irá se transformar em uma unidade estável e real? Gagliano (2000) afirma tratar-se de um contrato nulo, em razão da impossibilidade
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que, até mesmo quando as partes escolhem o regime de separação total de bens no casamento,
jurídica do objeto. Contudo, defende ser possível a celebração de um contrato que regule 97
FIDΣS aspectos patrimoniais da união estável, “contrato de convivência”, como o direito aos alimentos ou à partilha de bens. Mas, para o autor, não é lícita a declaração que simplesmente descaracterize a relação concubinária, em detrimento da realidade, como pretende o “contrato de namoro”. Dias (2007), por sua vez, pondera sobre a impossibilidade de se afirmar previamente a incomunicabilidade do patrimônio, quando, por exemplo, segue-se longo período de vida em comum, no qual são amealhados bens pelo esforço compartilhado. Nessa circunstancia, emprestar eficácia a contrato firmado no início do relacionamento pode ser fonte de enriquecimento ilícito. Acrescente-se que a
vedação
ao enriquecimento
sem
causa
encontra-se
expressamente prevista no Código Civil 2002, art. 964, de forma genérica, aplicável a qualquer situação em que a pessoa recebeu o que não lhe era devido. Com mais razão ainda, se deve inserir nessa regra o “contrato de namoro” que permite a parte se aproveitar economicamente da dedicação e esforço do parceiro em prol de um relacionamento que se constitui uma unidade familiar, protegida constitucionalmente pelo ordenamento jurídico. Silva (2003) diverge da doutrina majoritária, admitindo que a declaração de namoro é válida se retratar a realidade de um simples namoro, sem constituição de família. Se assim for, não configura ato ilícito, desde que não viole direito e não cause dano a outrem (art. 186 do novo Código Civil). Contudo, observe-se que se a declaração de namoro traduz tão somente a realidade, ela é desnecessária, pois a relação de namoro é um fato social, sem qualquer repercussão no
presente de vínculo duradouro com objetivo de constituir família, mas também assegurar a impossibilidade de tal configuração no futuro. E nesse aspecto reside sua ilicitude, porque é impossível prever o futuro, principalmente no campo da afetividade humana. Sublinhe-se que, além da discussão jurídica em face dessa “negociação dos vínculos amorosos”, é imprescindível a reflexão crítica acerca desse tipo de fenômeno moderno que traduz a centralidade dos interesses econômicos e a atmosfera de desconfiança presente na atualidade. Como construir uma estrutura de convivência pautada no companheirismo e mútua apoio se desde o princípio ela foi alicerçada na desconfiança, sendo necessário um pacto para garantir que não haverá partilha de bens, declarando a inexistência de um projeto de vida comum.
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mundo jurídico. Ademais, o referido contrato não objetiva tão somente declarar a inexistência
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FIDΣS 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Considerara-se que o legislador ao atribuir à união estável o status de entidade familiar foi muito cauteloso na sua definição e em detrimento da segurança jurídica- do uso de conceitos rígidos que determinem o que é esta relação- preferiu enfatizar a dignidade da pessoa humana que deve ser respeitada inclusive na sua singularidade. Dignidade esta que também se traduz na possibilidade de escolher o modo de entidade familiar que deseja construir. Vale destacar que esse tipo de vínculo se originou da realidade fática, fora do campo de incidência legal. Eram as relações extramatrimoniais, não legalizadas, sem regras que ditavam seu modo de funcionamento. E se, por um lado, a união estável nasceu como uma imposição por força do impedimento à dissolução do casamento, não permaneceu como tal, pois com a lei do divórcio se transformou em uma escolha. O par, então, opta por não oficializar a relação, mantendo-se longe da intervenção estatal. Dessa forma, o legislador, ao estabelecer requisitos vagos para o reconhecimento da união estável, buscou harmonizar a preservação, minimamente, da sua natureza informal. Sem, contudo, deixar de proteger os indivíduos nela envolvidos, evitando o enriquecimento ilícito e garantindo os direitos patrimoniais que nascem da vida em comum. O namoro, por sua vez, não é resguardado pelo ordenamento jurídico, porque não representa uma entidade familiar. Embora possa apresentar alguns aspectos da união estável como convivência pública, contínua e duradoura, bem como apresentar o objetivo de
obrigações que os companheiros assumem um para com o outro. Em face das dificuldades para delimitar a diferença entre essas duas formas de vínculo afetivo, surge o “contrato de namoro” visando evitar a atribuição da qualidade de união estável ao namoro. Entretanto, como evidenciado, não é possível determinar, a princípio, os rumos que uma relação afetiva irá tomar. Se as pessoas não desejam integrar uma união estável, possuem autonomia para terminar a relação antes que isso aconteça. Mas, não podem prever e determinar que a construção da união estável jamais acontecerá. As relações humanas são imprevisíveis e não existe outra alternativa a não ser lidar com esse fato.
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constituir família, o casal não possui a “aparência de casados”. Esta se traduz, nos direitos e
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em: 11 fev. 2014
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AFFECTIVITY IN QUESTION: THE DISTINCTION BETWEEN DATING AND RELATIONSHIP OF STABLE UNION
ABSTRACT This article discusses the difference between Stable Union and dating, as well as addressing the consecration of that first one as a family entity; its evolution over time; the inaccuracy of their legal requirements and its nature of Act-fact legal. From there, draws a parallel with the dating’s institute whose transition to the Stable Union is tenuous and often unnoticeable by the couple. It presents the dating
explicits the reasons why it is null. Keywords: stable Union. Dating. Dating contract.
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contract as an attempt to avoid the Stable Union recognition and
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FIDΣS Recebido 30 jan. 2014 Aceito 22 mar. 2014
A (IN)COMPATIBILIDADE ENTRE O TRIBUNAL DO JÚRI BRASILEIRO E O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS: UMA ANÁLISE À LUZ DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA Moadenildo Freire Domingos Junior
RESUMO Fruto da evolução da ordem jurídica, o Direito apresenta a inserção dos tratados internacionais como forma de proteger os direitos humanos e as necessidades sociais.
O presente artigo expõe que
eventuais incompatibilidades entre a ordem supranacional e o direito interno não se resumem apenas às situações em que há tratamentos diametralmente opostos, mas decorre também de omissão do Estado signatário. Para tanto, analisa-se a proteção do acusado no tribunal do
agentes alheios ao caso concreto na construção de uma decisão livre de máculas à proteção dos direitos fundamentais. Palavras-chave: Direito penal. Direito processual penal. Tribunal do júri. Convenção americana de direitos humanos. Presunção de inocência.
1 INTRODUÇÃO
Inicialmente, cumpre destacar que o paradigma da soberania nacional frente às demais Nações é suscetível de choque com a insurgência e reafirmação dos instrumentos
Graduando do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Estagiário do Ministério Público do Rio Grande do Norte.
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júri à luz da sua presunção de inocência, questionando o papel de
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FIDΣS característicos ao Direito Internacional Público. Neste pórtico, os Estados avençam por meio de tratados internacionais a observância a determinados regulamentos e padrões de comportamento, tanto entre si ou para com seus próprios cidadãos. Contudo, por força da cultura jurídica consolidada internamente, deixam de observar o cumprimento dos pactos acordados. O direito à vida, à dignidade humana e demais bens jurídicos, seguindo a tendência moderna de valorização em sede constitucional – notadamente nos países latino-americanos –, muito embora elevados à alçada de garantias fundamentais, são protegidos de formas distintas entre os países, bem como o tratamento dado aos indivíduos que atentem contra tais direitos. Dentre as demais nuanças e vicissitudes, pode-se analisar, nesse contexto, as formas de proteção ao acusado no ordenamento jurídico pátrio à luz do cenário supranacional em função dos tratados internacionais, estabelecendo pontos tangíveis e ímpares entre a proteção do acusado no ordenamento brasileiro em relação ao Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos. O objetivo primordial da pesquisa em comento é analisar o ordenamento jurídico pátrio à luz das garantias aos direitos extrapratrimoniais consolidados na Constituição Federal de 1988, de maneira a verificar seus reflexos na proteção do acusado no processo penal brasileiro, com caráter específico na presunção de inocência no instituto do tribunal do júri. Para tanto, almeja-se trazer uma visão do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos com o fito de aduzir o progresso da inserção pátria no contexto internacional de proteção às garantias fundamentais por meio de exemplificações práticas que
2 A EVOLUÇÃO DAS GARANTIAS FUNDAMENTAIS NO DIREITO BRASILEIRO
A formação de um Estado Constitucional assenta-se, primordialmente, na observância das garantias fundamentais. No Brasil, o direito constitucional aderiu a certa ordem de valores e princípios, que, por sua vez, não se encontra necessariamente na dependência do constituinte, mas que também encontra respaldo na ideia dominante de Constituição e no senso jurídico coletivo (SARLET, 2012, p. 270). A própria relevância do direito material, consubstanciado pelos métodos hermenêuticos, serve de arcabouço propício à abrangência de sua aplicação. Esse ideal nem sempre foi observado pelo ordenamento jurídico pátrio, de modo que
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ressaltam a necessidade de uma reformulação jurídica.
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FIDΣS a Constituição Imperial de 1824 guardava clara ressonância do autoritarismo do Imperador D. Pedro I. Nas preciosas lições de Luís Roberto Barroso (citado por SARLET, 2012, p. 284), verifica-se que uma das marcas do constitucionalismo imperial é o abismo entre a abstração normativa e a realidade social e institucional de então, já que apesar de positivar um extenso elenco de direitos civis e políticos, dentre os quais, a garantia da isonomia, a Constituição do Império do Brasil vigeu por mais de setenta anos admitindo os privilégios da nobreza, o voto censitário e o regime escravocrata. De certo modo, ao mesmo passo de discrepância com a situação fática, a Constituição de 24 de fevereiro de 1891, à luz do liberalismo, instaurou suas primeiras bases republicanas em contraposição ao Poder Moderador e ao paradigma imperial então vigente. Neste ínterim, ressalvam Paulo Bonavides e Paes de Andrade (1991, p. 249):
A Constituição da Primeira República foi inexcedível: a finalidade consistia em neutralizar teoricamente o poder pessoal dos governantes e distanciar, tanto quanto possível, o Estado da Sociedade, como era axioma do liberalismo. Mas a fidelidade do texto a essa técnica fundamental, assentada em princípios e valores ideológicos incansavelmente proclamados por publicistas cujas lições educaram os autores da Constituição,
sobretudo
seu
artífice
principal,
não
guardavam
porém
correspondência com a realidade, conforme o fato histórico veio soberanamente comprovar.
Vencidos os esclarecimentos concernentes aos entraves da Primeira República, é de
da abolição da pena de morte e a criação do habeas corpus, bem como da incorporação de garantias já existentes na Constituição anterior, como a isonomia, livre manifestação de pensamento, liberdade de associação, direito de reunião e inviolabilidade da casa como asilo do indivíduo. O avanço na axiologia do ordenamento jurídico é patente: surge, no ponto de vista ideológico, os alicerces essenciais à proteção do indivíduo, que, muito embora distantes da realidade à época, guardam ressonância na construção e aplicação das normas no direito moderno. Ademais, a evolução das garantias fundamentais inspiraram o art. 28 da Constituição de 1891, cuja premissa era de que não se iria excluir "outras garantias e direitos não enumerados, mas resultantes da forma de governo que ela estabelecia e dos princípios que consigna" (ANDRADE; BONAVIDES, 1991, p. 251).
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evidente relevância para a temática em pauta a constatação, no texto da Constituição de 1891,
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FIDΣS Tal se coaduna com a classificação constitucional dada por Robert Alexy (2011, p. 522) no tocante a sua disposição acerca dos direitos fundamentais, qual seja a da natureza mista material-procedimental. Dentre seus componentes materiais estão, ao lado das normas de direito fundamentais, os dispositivos sobre os objetivos do Estado. Nesse sentido, a criação do Supremo Tribunal Federal permitiu a instauração de uma Corte Constitucional destinada a implementar, em conjunto com juízes e tribunais, o paradigma norte-americano do poder de revisão atribuído ao Poder Judiciário (judicial review), cuja ideologia seria voltada ao crivo de não-aplicabilidade de lei ou ato normativo contrário à Constituição (SARLET, 2012, p. 229) podendo exercer, portanto, um juízo de valor consoante ao arcabouço material da Constituição. No entanto, a evolução de um ordenamento jurídico pode passar por entraves. O Brasil, no período da República Velha (1889 a 1930), ainda era maculado pela forte dominação das oligarquias — representadas, fundamentalmente, pela política do café com leite —, o que obstaculizava a concretização da democracia nacional. Pode-se mencionar, ainda, que a teoria ampliativa do remédio constitucional denominado habeas corpus foi afastada em reforma ao texto constitucional em 1926, imprimindo verdadeiro retrocesso à proteção de direitos líquidos e certos do cidadão. Todavia, foi com a Constituição de 1934, na chamada Era Vargas (1930-1945), que surgiu o Estado social brasileiro. Pela primeira vez na história constitucional brasileira, considerações sobre a ordem econômica social estiveram presentes (ANDRADE; BONAVIDES, 1991, p. 319). O Brasil foi um dos pioneiros no voto feminino, houve a
de representatividade e respeito à tal classe, e criou-se um capítulo referente à educação. Ora, em contraposição ao passado imperial e oligárquico, nota-se que a ordem jurídica restou influenciada pelo Estado de bem-estar social (“Welfare State”), pautada, sobremaneira, no ideal de dignidade da pessoa humana, acentuada posteriormente ao término da Segunda Guerra Mundial, mas como bem assevera Luís Roberto Barroso (1996, p. 18), não se consumou. No tocante à concretização das garantias fundamentais pelo Estado, inclusive pela concepção – atualmente basilar – de instituição em uma Constituição democrática, cumpre destacar fundamental juízo valorativo: mesmo após reiteradas tentativas de quebra de paradigma, todo o processo de evolução fora deveras importante para a construção do Estado Democrático de direito que o Brasil é hoje. Atualmente ainda é possível encontrar obstáculos à sua plena concretização, mas eles não fogem à regra de uma jovem democracia, e cabe ao
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incorporação da proteção familiar à Constituição, direitos trabalhistas conferiram condições
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FIDΣS seu amadurecimento perante os valores axiológicos contemporâneos permitir a sua constante evolução. Com efeito, todas as nuanças e vicissitudes na sedimentação do ordenamento jurídico hodierno, instaurado com a Constituição de 1988, contribuíram para a consolidação dos direitos fundamentais sob a égide de suas diversas dimensões 1. Atualmente se protege não apenas a liberdade do indivíduo perante o Estado, mas exige deste uma prestação positiva pautado no bem-estar social. É possível destacar, nesse sentido, o acesso à justiça2, não somente em seu caráter formal, mas com vistas à efetiva satisfação de direitos sob a perspectiva de quem o tem ou parece ter. Nesse cenário, é imperiosa a colocação do filósofo Noberto Bobbio (2004, p. 38):
O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc. Direitos que foram declarados absolutos no final do século XVIII, como a propriedade sacre et inviolable, foram submetidos a radicais limitações nas declarações contemporâneas; direitos que as declarações do século XVIII nem sequer mencionavam, como os direitos sociais, são agora proclamados com grande ostentação nas recentes declarações.
Noutro pórtico, é possível vislumbrar a instauração de um novo paradigma no ordenamento jurídico ao passo que há uma crescente observância de garantias estabelecidas no âmbito do direito extravagante. Consoante às lições de Valério de Oliveira Mazzuoli
cujas repercussões vão além da relação entre Estados para assumir um papel de regulamentação e solução de questões relativas de direito interno3. Nesta conjuntura, na aplicação do direito contemporâneo, é necessário que se faça a relação não somente entre as normas constitucionais e infraconstitucionais, mas também observar a relação entre o direito internacional público e o direito interno.
1
Quanto ao número de dimensões existentes, é cediço na doutrina a existência de três dimensões: a de abstenção do Estado, dos direitos sociais, e os de direitos transindividuais. Fala-se atualmente em direitos fundamentais de quarta e quinta dimensões, sejam eles os de democracia, direito à informação e direito ao pluralismo como sendo os de quarta dimensão e o direito à paz como de quinta. 2 Art. 5º, XXXV, CF/1988. 3 Mazzuoli (2012, p. 61), fundamentado nas ideias de Jorge Miranda, propõe que pode-se agrupar as tendências evolutivas do Direito Internacional Público em oito momentos distintos: a universalização, a regionalização, a institucionalização, a funcionalização, a humanização, a objetivação, a codificação e a jurisdicionalização.
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(2012, p. 59-61), o Direito Internacional contemporâneo reveste-se de tendências evolutivas
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3 AS GARANTIAS PROCESSUAIS PENAIS DO ACUSADO NO TRIBUNAL DO JÚRI BRASILEIRO
De forma a estabelecer a devida relação entre ambos os instrumentos normativos, é necessário, em um primeiro momento, abordar a temática das garantias processuais previstas no ordenamento jurídico brasileiro sob o foco específico do tribunal do júri, para então buscar uma instrumentalização mais abrangente com vistas a traçar as devidas análises, feitas em momento oportuno. Assim, será iniciado um estudo acerca das garantias processuais conferidas ao acusado cuja conduta dolosa se voltou contra um dos bens mais protegidos na maioria dos ordenamentos jurídicos: a vida. Para tanto, serão traçados os principais aspectos de forma a sedimentar arcabouço dogmático suficiente para a verificação de compatibilidade com as proteções do direito extravagante.
3.1 Do advento à constitucionalização do tribunal do júri
É cediço no direito moderno a vedação da autodefesa, de forma que o poder punitivo reserva-se ao domínio estatal. Parte desta justificativa reside na expectativa de efetividade da jurisdição, que não poderia deixar de dar tratamento diferenciado contra crimes dolosos contra harmonização da ordem social4. No que atine às origem do tribunal do júri, faço uso das lições de Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar (2012, p. 834): A origem do tribunal do júri é visualizada tanto na Grécia como em Roma, havendo quem veja um fundamento divino para a legitimidade desse órgão. Sob essa inspiração, o julgamento de Jesus Cristo, malgrado desprovido das garantias mínimas de defesa, é lembrado como um processo com características que se assemelham ao júri. De lado as controvérsias sobre a origem, a maior parte da doutrina indica como raiz do tribunal do júri a Carta Magna da Inglaterra, de 1215, bem como seu antecedente mais recente, a Revolução Francesa de 1789.
4
Outras formas de harmonização social envolvem prestações de caráter preventivo, como a instituição da polícia ostensiva e melhoria da realidade sócio-econômica.
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a vida. Nesse ínterim, passa-se a falar do tribunal do júri como uma das formas de
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No direito brasileiro, o tribunal do júri teve sua primeira aparição com a Lei de 18 de junho de 1822. Sua principal premissa é a de efetivar a soberania popular mediante a quebra com o absolutismo penal decorrente do influxo de ideias iluministas. Atualmente, o tribunal do júri é previsto na Constituição Federal de 1988 como forma de garantia individual, e, portanto, cláusula pétrea5, como bem assevera Gladston Fernandes de Araújo (2004, p. 24):
Ao nosso pensar o Tribunal do Júri constitui direito do indivíduo; direito individual de acesso ao judiciário em face do princípio da inafastabilidade. Nessa perspectiva, reconhece-se um direito subjetivo público à tutela jurisdicional do tribunal do júri para o julgamento de infrações penais de sua competência; noutra, pelo reconhecimento ao acusado de ser julgado, acima de normas inflexíveis e rígidas da lei, a quem um juiz togado está adstrito.
Sendo o tribunal do júri um instituto de direito processual penal de previsão constitucional, devem ser observados determinados preceitos e regras mínimas (DE ARAÚJO, 2004, p. 48) para a seu pleno funcionamento, os quais serão tratados a seguir.
3.2 Direitos e garantias do acusado no tribunal do júri
O tribunal do júri se destina a lidar com a quebra dolosa de uma garantia
protegido de forma isonômica mesmo quando há tamanha ruptura com um bem jurídico de inegável grandiosidade? Primeiro, não há de se negar a existência do devido processo legal. A Constituição Federal, em seu art. 5º, LVII, preconiza que "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória". Ademais, a evolução das garantias fundamentais, conforme retratado anteriormente, apontam esta acertada tendência. Nessa esteira de raciocínio, reconheceu o constituinte originário, diante da magnitude do direito em comento e pautado na soberania popular6, a instituição do júri como instrumento constitucional, cujo escopo primordial seria o julgamento dos crimes dolosos contra a vida,
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Art. 60, §4º, IV, CF/1988. Art 1º, parágrafo único, CF/1988.
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fundamental a todo o ser humano: o direito à vida. Teria o acusado a possibilidade de ser
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FIDΣS assegurados a plenitude de defesa, o sigilo das votações e a soberania dos vereditos7. Sobre a plenitude de defesa, esclarecem Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar (2012, p. 835):
A plenitude de defesa revela uma dupla faceta, afinal, a defesa está dividida entre técnica e autodefesa. A primeira, de natureza obrigatória, é exercida por profissional habilitado, ao passo que a última é uma faculdade do imputado, que pode efetivamente trazer a sua versão dos fatos, ou valer-se do direito ao silêncio. Prevalece no júri a possibilidade não só da utilização de argumentos técnicos, mas também de natureza sentimental, social e até mesmo de política criminal, no intuito de convencer o corpo de jurados.
Além da defesa técnica e autodefesa, um dos aspectos basilares para assegurar a plenitude de defesa e justificar a soberania dos vereditos é a garantia de imparcialidade dos jurados, os quais, para tanto, são protegidos pelo sigilo das votações, as quais ocorrem em sala especial. Porém, de nada adianta que o acusado tenha exercido seu direito de defesa se não possuir direito à votação que lhe confira idoneidade contra qualquer forma de alteração dos votos dos jurados por agentes externos. Ademais, é oportuno mencionar novamente, que por força de norma constitucional, as garantias conferidas ao acusado não se restringem às elencadas em texto normativo pátrio, englobando também "outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte"8. No tocante a este
Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos.
4 O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS E AS GARANTIAS PROCESSUAIS DO ACUSADO
É salutar ressaltar a tendência de humanização do Direito Internacional. Desde o período pós-Segunda Guerra Mundial e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), tornou-se imperiosa a proteção das garantias fundamentais dos indivíduos. Em se tratando da concretização dessas diretrizes do Direito Internacional Público, 7
Art 5º, XXXVIII, CF/1988.
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Art. 5º, § 2º, CF/1988.
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último grupo, passa-se a abordar especificamente as garantias processuais à luz do Sistema
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FIDΣS denota-se a criação de sistemas regionais que buscam aplicá-las a âmbitos regionais específicos, ou seja, em virtude de um componente geográfico-espacial (PIOVESAN, 2012, p. 317). Pode-se destacar, dentre essa divisão regional de proteção aos direitos humanos, três sistemas principais: o europeu, o interamericano e o africano, muito embora se fale na incipiência do sistema árabe e possibilidade de criação de um sistema regional asiático (STEINER, 1990 citado por PIOVESAN, 2012, p. 319). Com efeito, o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos insurge no cenário latino-americano como forma de busca pela sedimentação dos direitos fundamentais da pessoa humana, ampliando a efetividade do arcabouço jurídico da Carta da Organização dos Estados Americanos — OEA.
4.1 Breves aspectos do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos
Conforme já ventilado anteriormente, é de fundamental importância o estudo do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos em razão de sua aplicação direta ao ordenamento jurídico brasileiro (PIOVESAN, 2012, p. 323), cujas repercussões diretas no âmbito interno pátrio serão tratadas em momento oportuno. Para tanto, é imperioso destacar que o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos assenta-se na materialização de dois instrumentos, sejam eles o sistema da Organização dos Estados Americanos e o sistema da Convenção Americana de Direitos
(2011, p. 1153) é possível aferir que: (…) o primeiro sistema, sistema da Organização dos Estados Americanos, é criado na 9ª Conferência Interamericana entre Estados, realizada em Bogotá, na Colômbia, entre março e maio de 1948. A partir daí, haverá um lento e gradual caminhar rumo à criação de um órgão responsável pela verificação de violação dos Estados a direitos humanos Desta forma, na 5ª Reunião de Consultas dos Ministros de Relações Exteriores, realizada em Santiago do Chile, em 1959, aprovou-se moção para a criação de órgão voltado, dentro da estrutura da OEA, à proteção de direitos humanos. Surgia a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que funcionaria de maneira provisória até a criação da Convenção Americana de Direitos Humanos.
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Humanos (DEZEM, 2011, p. 1150). Nesse contexto, ressalta Guilherme Madeira Dezem
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FIDΣS Com efeito, celebrada em 22 de novembro de 1969 em San José da Costa Rica, a Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos culminou na aprovação da Convenção Americana de Direitos Humanos, cuja vigência seria concretizada em julho de 1978 em razão da décima primeira ratificação, nos moldes do art. 74, 2, do tratado internacional em tela. Segundo Dezem (2012, p. 1151), a Corte Interamericana possui dupla função, exercendo atribuições consultivas e contenciosas. O magistrado sugere que a função consultiva é a tradicional das cortes internacionais: cabe-a fornecer interpretação acerca da Convenção Americana de Direitos Humanos ou de outros tratados que versem sobre a proteção de direitos humanos nos Estados americanos bem como emitir pareceres com a finalidade de analisar eventuais incompatibilidades entre o direito interno dos países membros com os instrumentos internacionais. Já no âmbito da função contenciosa, o mesmo autor (DEZEM, 2012) elucida que será ela desencadeada para averiguar possível inobservância do dever de respeitar os direitos humanos pelo Estado demandado, nos termos dos artigos 61 e 62 da Convenção. A partir dessa contextualização, passa-se ao estudo propriamente dito das garantias processuais à luz do direito extravagante.
4.2 Garantias processuais penais do acusado
Preliminarmente, ao se debruçar à análise da Convenção Americana de Direitos Humanos, é mister ressaltar sua natureza de tratado internacional, o que, por si só, implica que
Direito dos Tratados de 1969. Com efeito, tal convenção supracitada elenca regra geral de interpretação dos tratados, cuja redação determina que "um tratado deve ser interpretado de boa fé segundo o sentido comum atribuível aos termos do tratado em seu contexto e à luz de seu objetivo e finalidade" (Artigo 31.1), ou seja, a proteção dos direitos humanos deve ser o elemento norteador das garantias individuais em detrimento ao apego a eventuais formalismos exacerbados. Desta feita, é o que corrobora o artigo primeiro da Convenção Americana de Direitos Humanos, ao preconizar o respeito a direitos e liberdades nela reconhecidos, bem como ao livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminações. O dispositivo normativo em relevo demonstra, portanto, uma primeira garantia ao processo. Através de um cláusula geral, instaura-se a aplicação de um paradigma munido de
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sua interpretação deve ser feita em observância às regras da Convenção de Viena sobre o
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FIDΣS idoneidade concernente à satisfação da pretensão não somente da vítima, mas também do acusado, que poderá dispor de meios adequados para exercer seu direito de defesa. É importante destacar que tal conceito será de suma relevância para aferição da compatibilidade entre o ordenamento jurídico pátrio e supranacional. Ademais, de forma não menos protetiva, o texto normativo da Convenção Americana de Direitos Humanos consagra, em seu capítulo II, direito civis e políticos que devem ser observados pelos Estados membros, passando pelo direito à vida, integridade pessoal, proibição da escravidão e da servidão, liberdade pessoal, indenização, proteção da honra e da dignidade, liberdade de consciência e de religião, de pensamento e de expressão, entre outros. Para fins do desenvolvimento da presente pesquisa, cumpre destacar o artigo 8 do tratado, o qual versa sobre as garantias judiciais conferidas ao indivíduo, onde evidencia o direito que todo acusado tem de ser ouvido por tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, bem como que tenha sua inocência presumida enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Tal resulta de regra primordialmente consubstanciada em favor da devida satisfação do exercício jurisdicional proveniente de evolução alcançada pelo direito moderno. Aduz uma preocupação não somente com o mero provimento do Estado-juiz, mas também com o respeito a diversas perspectivas de um mesmo litígio, tenha o ilícito ocorrido ou não. Buscase, portanto, a igualdade de tratamento do acusado, respeitada a equidade. Nessa trilha, depreende-se a necessidade de se traçar um paralelo com o ordenamento
5 ANÁLISE DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA SOB A PERSPECTIVA DO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO E EXTRAVAGANTE
Em um primeiro momento, há de se constatar os ensinamentos de Jorge Miranda (MAZZUOLI, 2012 citado por MIRANDA, 2001, p. 16) no tocante à superação do dogma voluntarista como fundamento único da existência do Direito Internacional Público. Para tanto, toma-se emprestadas as palavras de Valério de Oliveira Mazzuoli (2012, p. 62):
Neste momento histórico pelo qual passa a humanidade, presencia-se cada vez mais a formação de regras internacionais livres e independentes da vontade dos Estados – desde a positivação da pactua sunt servanda pela Convenção de Viena sobre o
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jurídico pátrio sob o crivo dos elementos axiológicos até então retratados.
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FIDΣS Direito dos Tratados de 1969 –, justificando e fortalecendo a existência e validade de inúmeros tratados internacionais de proteção dos direitos humanos presentes na atualidade.
Dessarte, é patente a notoriedade dos instrumentos concernentes ao funcionamento do Direito Internacional Público, a exemplo dos sistemas regionais de proteção. O âmbito de influência das decisões à nível supraestatal resta evidentemente alargado diante da modernização do direito, acarretando sua maior exigibilidade de seu cumprimento. Resta saber se há de se falar na compatibilidade entre o direito o direito extravagante e o pátrio ao tratar das garantias processuais do acusado. Como já foi retratado, a presunção de inocência, fruto de uma evolução dogmática da técnica legislativa com vistas à satisfação das garantias individuais, é notória em ambos, devendo ser aplicada efetivamente pelos Estados. Entretanto, como toda aplicação normativa, a técnica hermenêutica a ser empregada diante dos conflitos sociais deve ser cuidadosa e voltada à efetivação no meio material. Acontece que até certo ponto, o ordenamento jurídico pátrio lança suas diretrizes em consonância com a Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Surge, então, a problemática inerente à modernização dos meios de comunicação e formação de opinião. Com a massificação do acesso à informação, casos de maior repercussão sofrem juízo de valor antecipadamente, afetando quase que diretamente o resultado da votação do corpo de júri. Aduz-se, portanto, um confronto material direto ao que estabelece o arcabouço formal. Não se pode deixar de exemplificar a temática com os julgamentos ocorridos
anos de idade, que teve sua vida ceifada no distrito da Vila Guilherme, em São Paulo, na noite do dia 29 de março de 2008. Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, seu pai e madastra, respectivamente, foram condenados por homicídio doloso triplamente qualificado, cuja pena no caso foi calculada em 31 anos, 1 mês e 10 dias. Também pode-se elencar, a título exemplificativo, o julgamento do caso envolvendo a morte de Eliza Samudio, onde Luiz Henrique Ferreira Romão (também conhecido como "Macarrão") e Fernanda Gomes de Castro foram condenados a 15 anos e 5 anos de prisão, respectivamente, por homicídio, sequestro e cárcere privado, e Fernanda pelos crimes de sequestro e cárcere privado. O que os supracitados casos possuem em comum, e que servem apenas de exemplo em meio a outros, é que a mídia teve papel decisivo na construção de um juízo prévio de
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recentemente no âmbito brasileiro, como o caso de Isabella de Oliveira Nardoni, de cinco
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FIDΣS valor, e o fato mais alarmante reside no fato de muitos formadores de opiniões carecerem de conhecimento técnico tanto a respeito do ordenamento jurídico quanto sobre o caso em específico. Devida ressalva há de ser feita: tais consequências decorrem naturalmente de um Estado Democrático de Direito, onde é conferido aos indivíduos a liberdade de expressão, vedado o anonimato9. Seria, no mínimo, um retrocesso restringir essa garantia sedimentada há tanto tempo em nossa cultura jurídica. Em momento algum defende-se alguma forma de controle da mídia e sob qualquer medida cuja implicação seria traduzida em um Estado autoritário. Não são somente os casos de repercussão (inter)nacional que sofrem desta mácula. Desde que haja, de forma proporcional, evidente juízo de valor considerado decisivo (é natural que haja divergência sobre o que seria decisivo) que possa viciar imparcialidade dos jurados, qualquer que seja sua esfera influência, há de se abordar o mesmo problema. Nessa trilha, a pressão da mídia acaba sendo um elemento de grande peso para as decisões, sendo pouco provável entendimento em contrário, sob pena de descrédito no Poder Judiciário. É uma concepção levianamente errônea, mas infelizmente incutida no seio social, e sendo este o julgador, a consequência é uma evidente mitigação – senão violação – material de um direito garantido não somente no ordenamento jurídico pátrio, mas no direito extravagante. Ora, o primeiro artigo da Convenção Americana de Direitos Humanos preconiza, interpretado em conjunto com a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969,
imprimindo maior credibilidade aos pactos internacionais. É de se esperar, no caso, uma proatividade da evolução do ordenamento jurídico brasileiro com vistas a solucionar uma lacuna decorrente de transformação social superveniente ao texto constitucional. Sua omissão poderá acarretar flagrantes violações ao direito de ser considerado inocente antes que possa exercer seu direito de defesa. E por falar em defesa, qual seria a efetividade do convencimento desta? Haveria paridade de armas entre defesa e acusação? Acredita-se que não, haja vista a mácula que reside na crescente massificação no repasse de informações. Trata-se, portanto, de situação fática que não decorre necessariamente de imperfeição normativa no sentido de que a norma é diretamente conflitante com o tratado. Entretanto, as
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que a proteção dos direitos humanos deve ser o elemento norteador das garantias individuais.,
Art. 5º, IV, CF/1988.
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FIDΣS normas jurídicas devem se adequar à realidade social, e os tratados internacionais lançam perspectivas de modernização do direito interno, cujas interpretações devem ser lançadas para a construção de uma sociedade cada vez mais equilibrada e garantidora dos direitos fundamentais de cada cidadão, indistintamente de prévio julgamento.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A temática, de fato, leva em conta determinada álea – a existência de repercussão precária por parte da mídia –, mas nem por isso deve-se deixar de ser considerada a violação às garantias fundamentais. O aperfeiçoamento da proteção aos direitos fundamentais sempre passou pela existência de óbices à amplitude de sua proteção. No entanto, pelo que foi retratado na presente pesquisa, desde a evolução das garantias fundamentais até o crescimento da importância do Direito Internacional Público, é de fácil constatação que o proteção dos direitos ainda não atingiu o seu ápice. No entanto, a base comum para a aplicação das normas jurídicas há de ser a preservação de um Estado democrático de direito. A aplicação dos tratados internacionais no direito brasileiro nem sempre é aferida de imediato, onde apenas na irresignação de determinadas situações fáticas, há de se buscar a correta interpretação de institutos jurídicos então consolidados no ordenamento jurídico. Não pretende-se extirpar da ordem jurídica garantia do acusado de ser julgado por
juntamente com a soberania popular e possibilidade de atuação direta na solução dos conflitos. Almeja-se, portanto, a instauração de um ordenamento jurídica cujos valores axiológicos não permitam que a liberdade não se confunda com a libertinagem, na temática abordada, que a busca pela repercussão do tema não seja diametralmente oposta às garantias individuais do acusado, devendo ser resguardada sua presunção de inocência e demais direitos. Para tanto, é imperioso que haja a instituição de um sistema de votação cujo resultado ocorra levando também em consideração o juiz togado, mas não porque ele se distancia do povo, mas sim em decorrência do seu vasto conhecimento técnico, propiciador de decisões fruto do balanceamento dos valores axiológicos incutidos nas incansáveis pesquisas nas quais o magistrado se debruçou durante sua carreira.
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tribunal competente, de modo a ferir igualmente a força normativa da Constituição,
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FIDΣS Ademais, não se pode enxergar a figura do juiz togado como alguém distante da realidade, como sendo apenas concretização da vontade do Estado. E é em decorrência dessa principiologia que deve-se nortear a alteração de paradigma no instituto do tribunal do júri. Não se vive atualmente em um momento histórico em que o Estado é inimigo dos direitos extrapatrimoniais. O receio de suas decisões frente a um bem jurídico supremo não mais se justifica. Pelo contrário, fornece uma garantia a mais contra lamentável realidade que os tribunais do júri se revestem, maculados pela sua transformação em um verdadeiro teatro, forjado para o convencimento lastreado em cunho puramente emocional, deixando de lado a apreciação de elementos jurídicos tão fundamentais para a observância das garantias humanas.
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BARROSO, Luís Roberto. Direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. 3. ed. atualizada e ampliada. Rio de Janeiro: Renovar, 1996.
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FIDÎŁS ed. revista, ampliada e atualizada. Bahia: Juspodivm, 2012.
THE (IN)COMPATIBILITY BETWEEN THE BRAZILIAN JURY AND THE INTERAMERICAN SYSTEM OF PROTECTION TO HUMAN RIGHTS: A STUDY ABOUT THE PRESUMPTION OF INNOCENCE
ABSTRACT As a result of evolution in the way how to manage the juridic system, the law now presents international treaties as a manner to guarantee human rights and the social will. This article shows the existing mismatch between the procedural guarantees in the Brazilian criminal law and the Latin American system of human rights protection. In order to do this, it analyzes the preservation of legal guarantees, under the Court Jury, such as the presumption of innocence by questioning the role of external agents in the real case to create a flawless decision. Keywords: Criminal law. Jury. Procedural law. Inter-American
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convention of human rights. Presumption of innocence.
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FIDΣS Recebido 27 jan. 2014 Aceito 26 fev. 2014
A VEDAÇÃO À CAPACIDADE ELEITORAL PASSIVA DO ANALFABETO E A CONTRADIÇÃO
CONSTITUCIONAL
DIANTE
DOS
PRINCÍPIOS
FUNDAMENTAIS DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Lucas Bezerra Vieira Didier Pironi Evaristo Almeida
RESUMO O analfabeto, no Brasil, possui a capacidade eleitoral ativa, entretanto, não possui a capacidade eleitoral passiva. Essa questão leva à existência de uma contradição entre os princípios basilares do Estado Democrático de Direito e a realidade existente no País, uma vez que dados técnicos demonstram que o número de analfabetos é expressivo e estes, por consequência, são alijados do processo democrático
doutrinário e jurisprudencial, entender os motivos da não inclusão desses brasileiros no cenário político de forma plena. Palavras-chave:
Analfabetismo.
Cidadania.
Inclusão.
Direito.
Educação. “Descobri que o Analfabetismo era uma castração dos homens e das mulheres, uma proibição que a sociedade organizada impunha às classes populares.” (Paulo Freire)
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Estagiário na Procuradoria Geral de Justiça do Rio Grande do Norte – PGJ/RN. Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Estagiário na Procuradoria Geral de Justiça do Rio Grande do Norte – PGJ/RN.
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nacional. Este artigo busca, portanto, por intermédio de estudo
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FIDΣS 1 INTRODUÇÃO
O Brasil é um país que ainda caminha para consolidar o regime democrático adotado. É uma democracia recente, que, como tudo que se inicia, precisa considerar a necessidade de ajustes para um crescente aperfeiçoamento, a fim de galgar elevados patamares, atingindo, assim, uma democracia plena. Em um Estado Democrático de Direito, a exclusão de parcela ou setores da sociedade do processo de escolha dos representantes do povo deve ser estudada com cautela, analisando-se, sobretudo, o peso que esse fator pode acarretar para o reconhecimento do regime perante a população. Nesse sentido, o Brasil, país com população de duzentos milhões de habitantes e com aproximadamente vinte e oito milhões de analfabetos funcionais 1, traz em sua Constituição Federal a faculdade para a capacidade eleitoral ativa e a exclusão da capacidade eleitoral passiva para aqueles que não possuem alfabetização. Desta feita, é nesse ponto que este artigo busca a sua base. Através de uma análise social crítica e de um estudo doutrinário e jurisprudencial do Direito, examinam-se quais os motivos que fundamentam a ausência da capacidade eleitoral passiva do analfabeto e os aspectos negativos que essa exclusão eleitoral passiva de parte da população do Estado brasileiro institui na solidificação da democracia plena no país.
ANALFABETO
E
CAPACIDADE
ELEITORAL
PASSIVA:
ORIGEM
E
SIGNIFICADO
O termo analfabeto possui sua origem na Grécia Antiga. Palavra derivada do termo alfabeto (alphabetos), cujo prefixo “a” exprime uma ideia de oposição, recebeu como função definir o indivíduo que não detém conhecimento para ler e escrever; ou seja, expressar suas ideias em uma linguagem escrita ou entender a mensagem transcrita por palavras. Teles (2002, p. 58) define analfabetos como aqueles que “não sabem compreender as comunicações escritas, nem se expressarem, por escrito, na língua pátria, ainda que rudimentarmente”. Rollo (2008, p. 86), por sua vez, em sua obra “Elegibilidade e 1
ANDRADE, Hanrrikson de. Taxa de analfabetismo para de cair no Brasil após 15 anos, diz Pnad. Uol educação, Rio de Janeiro, 27 set. 2013. Disponível em: <http://educacao.uol.com.br/noticias/2013/09/27/analfabetismo-volta-a-crescer-no-brasil-apos-mais-de-15-anosde-queda.htm#fotoNav=14>. Acesso em: 10 jan. 2014.
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FIDΣS Inelegibilidade”, define o analfabetismo como “a incapacidade absoluta de ler e escrever, que não se confunde com o semianalfabetismo, que é a extrema dificuldade – mas não total incapacidade – para compreender e reproduzir os símbolos gráficos”. Diante das concepções anteriormente explicitadas, mostra-se mais adequada a definição elaborada por Ney Moura Teles, uma vez que este fornece os elementos básicos para a classificação de um indivíduo como analfabeto – a incompreensão da comunicação, em língua pátria, de modo escrito. Alberto Rollo, por sua vez, não se utiliza do elemento da língua pátria em sua definição. Esse componente interfere na acepção estudada, uma vez que insere no elenco de alfabetizados os estrangeiros (com domínio em sua língua materna) que porventura venham a habitar em nossa nação, mesmo que esses indivíduos não tenham nenhuma capacidade de comunicação, seja escrita ou oral, em português. Não obstante, para uma melhor compreensão do tema, devemos entender a capacidade eleitoral passiva. Castro (2012) define essa capacidade eleitoral ao afirmar que a aptidão para ser votado e eleito consiste na admissão que o ordenamento jurídico pátrio fornece aos que preencherem determinadas exigências estabelecidas em Lei, de postular e exercer cargo eletivo. Desse modo, conclui-se que capacidade eleitoral passiva é habilitação dada a determinado cidadão para exercer cargo eletivo, após cumprir certos requisitos legais.
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QUESTIONAMENTOS
SOBRE
A
CAPACIDADE
ELEITORAL
DO
O Brasil é um país que ainda contabiliza um elevado número de analfabetos. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), no ano de 2012, o Brasil apresentava treze milhões e duzentas mil pessoas que não sabiam ler ou escrever, o que compreende 8,7% da população brasileira acima de quinze anos2. Essa realidade, por vezes, faz com que alguns doutrinadores – tais como José Carlos Brandi Aleixo (1982), Daisy Moreira Cunha3 e até, indiretamente, Paulo Freire4 (2011) –
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CIRILO JUNIOR. IBGE: analfabetismo cresce pela primeira vez desde 1998. Notícias Terra, Rio de Janeiro, 27 set. 2013. Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/educacao/ibge-analfabetismo-cresce-pela-primeiravez-desde-1998,e5e1e55448c51410VgnVCM3000009acceb0aRCRD.html>. Acesso em: 20 jan. 2014. 3 A educadora, apesar de não possuir como foco principal de seus estudos a elegibilidade do analfabeto, apresenta como objeto de seus trabalhos acadêmicos a educação brasileira. Não obstante, a autora produziu um trabalho sobre o percurso na elegibilidade do gestor municipal. Desse modo, fez-se mais prudente inserir a respectiva publicação da autora na revista Superinteressante – para possível consulta – uma vez que nessa matéria ela apresenta a sua opinião pontual sobre o tópico abordado por esse estudo. CUNHA, Daisy Moreira.
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ANALFABETO
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FIDΣS coloquem em dúvida a efetividade do modelo democrático estabelecido, posto que as pessoas cujo acesso à escola lhes foi negado possuem o direito, facultativo em verdade, de votar. É o que se conhece como capacidade eleitoral ativa. Contudo, o analfabeto não possui a capacidade eleitoral passiva justamente por essa condição inexistente de escolaridade, tornando-se, desse modo, fruto da ineficiência estatal em fornecer educação básica para a sociedade. Essa questão, de fato, divide opiniões. Os estudiosos que apresentam opinião antagônica ao direito de ser votado pelo analfabeto dizem que isso evidencia certa fragilidade democrática, no tocante às possibilidades de manipulação desses eleitores analfabetos por candidatos pouco conscientes dos seus deveres com a democracia. Sobre o direito de sufrágio para os analfabetos, Thales Tácito Cerqueira e Camila Albuquerque Cerqueira (2012, p. 93) doutrinam que a regra quase absoluta é a de que “o analfabeto se torne, infelizmente, um instrumento nas mãos dos demagogos sequiosos de votos, aliás, os grandes beneficiários dessa infortunada ampliação do sufrágio”. A opinião desses autores traz à baila uma pertinente discussão sobre o tema. Isso porque a fragilidade está contida, principalmente, na ideia de que os analfabetos são os “alvos” e “presas” principais para o cometimento de captação ilícita de sufrágio e das condutas vedadas elencadas no artigo 41-A5 da Lei Federal número 9.504/1997, conhecida como “Lei das Eleições”. Diante dessas possíveis condutas, não obstante a falta de conhecimento, educação precária e nível de pobreza elevado, é possível que alguns eleitores, inclusive os analfabetos, “comprar” um mandato eletivo. Contudo, frisa-se claro que a fragilidade não está somente na
Em defesa da eleição dos analfabetos. Superinteressante, São Paulo, 01 out. 2011. Disponível em: <http://super.abril.com.br/cotidiano/defesa-eleicao-analfabetos-641267.shtml>. Acesso em: 13 fev. 2014. 4 Paulo Reglus Neves Freire, através da sua “Pedagogia Crítica”, defendia a ideia de que o analfabetismo não é sinônimo de falta de cultura ou educação do indivíduo, uma vez que acreditava na capacidade de formação de um pensamento político crítico até mesmo nos indivíduos com menor grau de alfabetização. 5 “Ressalvado o disposto no art. 26 e seus incisos, constitui captação de sufrágio, vedada por esta Lei, o candidato doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive, sob pena de multa de mil a cinqüenta mil Ufir, e cassação do registro ou do diploma, observado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990. § 1o Para a caracterização da conduta ilícita, é desnecessário o pedido explícito de votos, bastando a evidência do dolo, consistente no especial fim de agir. § 2o As sanções previstas no caput aplicam-se contra quem praticar atos de violência ou grave ameaça a pessoa, com o fim de obter-lhe o voto. § 3o A representação contra as condutas vedadas no caput poderá ser ajuizada até a data da diplomação. § 4o O prazo de recurso contra decisões proferidas com base neste artigo será de 3 (três) dias, a contar da data da publicação do julgamento no Diário Oficial.”
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sejam vítimas do comportamento desviante de alguns candidatos que tentam burlar a lei e
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FIDΣS condição de ser um cidadão não alfabetizado, mas, sobretudo, em um comportamento desviante dos candidatos cujas práticas ilícitas são o principal recurso eleitoral. Como exemplo de que o analfabetismo não é um fator determinante no exercício de um mandato eleitoral exemplar, temos o caso do deputado federal Francisco Everardo Oliveira Silva, popularmente conhecido como “Tiririca”. Francisco Everardo foi o segundo deputado federal mais votado da história de nossa nação, com pouco mais de um milhão e trezentos mil votos, pelo Partido da República/SP. Ocorre que anteriormente à sua eleição, sua alfabetização foi questionada – pelo seu baixo grau de escolaridade, sendo considerado inapto a exercer o cargo eletivo, tornando-se, por esse motivo, voto de protesto de boa parte da população. Ocorre que no exercício do seu mandato, este candidato demonstrou que sua capacidade de exercer política é inversamente proporcional ao seu grau de escolaridade, sendo, inclusive, eleito um dos melhores deputados do ano, pelo prêmio Congresso em foco6. Nesse sentido, delegar as distorções, a falta de representatividade e o fracasso democrático ao analfabeto, em uma espécie de moldura pronta e acabada, é estabelecer, de fato, que deve haver uma democracia restritiva na qual serão participantes as classes que, no mínimo, sejam afeitas à intelectualidade. A escolha daqueles que terão direito ao sufrágio, de forma ativa e passiva, será conferida apenas àqueles indivíduos que possuam uma capacidade intelectual específica. Dessa forma, estarão criando uma democracia elitizada e restritiva cujos analfabetos não estarão aptos a escolher seus próprios governantes.
para a consolidação de um Estado no qual o povo figure cada vez mais de forma direta nas decisões democráticas, limitar uma parcela dessa população, pelo fato de não ter acesso à educação, significa voltar atrás nos conceitos de democracia plena.
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PREVIDELLI, Amanda. Tiririca é eleito um dos melhores deputados do ano. Exame Abril, São Paulo, 18 set. 2012. Disponível em: <http://exame.abril.com.br/brasil/noticias/tiririca-e-eleito-um-dos-melhores-deputados-doano>. Acesso em: 20 jan. 2014.
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Diante disso, há que se constatar um retrocesso, porque, na medida em que se avança
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FIDΣS 4 A VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL À CAPACIDADE ELEITORAL PASSIVA DO ANALFABETO
A discussão em tela, que visa deixar o analfabeto fora do processo eleitoral, por si própria coloca em dúvida a plena afirmação democrática, por ferir os pressupostos da dignidade da pessoa humana e excluir do processo eleitoral democrático grande parte da população. Dessa forma, os hipossuficientes intelectuais também não terão o direito, como se deseja, à participação direta nas decisões a serem tomadas pelos governantes, já que a própria Constituição Federal veda, de forma incisiva, em seu artigo 14, a participação do analfabeto no processo político de escolha dos representantes7. Nesse cenário, o Senador Magno Malta, do Espírito Santo, na proposta de Emenda à Constituição de número 27/2010, propôs a modificação do parágrafo 4° do artigo 14 da Constituição Federal para permitir ao analfabeto o direito de ser votado. Ou seja, visa liberar a elegibilidade para os analfabetos8. É claro que se o analfabeto não for instruído seguindo o modelo formal da educação brasileira ainda poderá ser candidato a cargo eletivo, desde que comprove de próprio punho que sabe ler e escrever. É o que diz a Resolução-TSE n.º 22.717 /20089, no seu artigo 29, parágrafo 2º, o qual dispõe que a exigência de alfabetização do candidato pode ser aferida por outros meios, desde que individual e reservadamente. Diante desse entendimento, o candidato terá que redigir, perante o Juiz Eleitoral, um texto para comprovar que é alfabetizado. Nesse caso, comprovando ser alfabetizado pela
proferidas pelos Tribunais Regionais Eleitorais pelo Brasil. A decisão a seguir demonstra, nitidamente, que a vedação ao registro de candidatura é o fato de o referido candidato ser analfabeto, ou seja, não saber, de forma alguma, redigir ou ler determinado trecho em língua pátria. Sendo minimamente alfabetizado, mesmo que essa alfabetização não seja formal, o candidato estará apto a concorrer nas eleições, conforme se observa no teor da decisão:
“A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular. § 1º - O alistamento eleitoral e o voto são: I - obrigatórios para os maiores de dezoito anos; [...] § 4º - São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos”. 8 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Emenda Constitucional n. 27, de 18 nov. 2010. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=98358>. Acesso em: 15 jan. 2014. 9 TSE. Resolução n. 22.717. Pleno. Rel. Min. Ari Pargendler. j. 30.09.1997. 7
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escrita e pela leitura, o registro de candidatura será deferido. Assim é o teor de várias decisões
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FIDΣS RECURSO ELEITORAL EM REGISTRO DE CANDIDATURA. [...] RECURSO PROVIDO. REGISTRO DEFERIDO. O que impede a candidatura é o analfabetismo, conceito extremo que não abrange os semi-alfabetizados
10
.
O Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso, assim como a maioria dos Tribunais Eleitorais do Brasil, entende que a vedação à candidatura é exclusiva do analfabeto e não do analfabeto funcional, que aqui é entendido como semi-alfabetizado. RECURSO ELEITORAL
- INELEGIBILIDADE
-
ALFABETIZAÇÃO
-
DILAÇÃO DE PROVA - SEMI-ALFABETIZAÇÃO - PROVIMENTO CANDIDATURA DEFERIDA. O semi-alfabetizado não é impedido de se candidatar, a teor do próprio ordenamento constitucional11.
Como em outras decisões, o semi-alfabetizado consegue obter uma flexibilização interpretativa da legislação para obter o registro da candidatura.
RECURSO.
REGISTRO
DE
CANDIDATURA. CANDIDATO SEMI-
ALFABETIZADO. DEFERIMENTO. 1. O § 4º do art. 14 da Constituição Federal dispõe serem inelegíveis os analfabetos. 2. Verificado, no caso concreto, que o candidato é considerado semi-alfabetizado é de ser provido o recurso12.
Nessa outra decisão, mais uma vez, ainda que precariamente, o candidato comprovou ementa que a alfabetização comprovada é “rude”.
RECURSO - REGISTRO DE CANDIDATURA - ALFABETIZAÇÃO AVALIAÇÃO - CÓPIA DE TEXTO EM LETRA CURSIVA QUE, EMBORA RUDIMENTAR, INDICA ENTENDIMENTO E MANEJO DA LINGUAGEM ESCRITA - CONDIÇÃO DE SEMI-ALFABETIZADO - AUSÊNCIA DE INELEGIBILIDADE - PROVIMENTO. O candidato que em teste de avaliação consegue copiar texto com letra cursiva, demonstrando entendimento e manejo da linguagem
10
escrita,
embora
de
forma
rudimentar,
TRE. Recurso Eleitoral nº 910 (5795)-MS. Pleno. Rel. André Luiz Borges Netto. j. 27.08.2008. TRE. Recurso de Decisão dos Juízes Eleitorais nº 1062 (14895)-MT. Rel. João Celestino Corrêa da Costa Neto. j. 27.08.2004. 12 TRE. Processo nº 3150 (2236)-PB. Rel. Juiz Helena Delgado Ramos Fialho Moreira. j. 03.08.2004. 11
não
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estar de acordo com as formalidades exigidas pela legislação, mesmo denotando pela própria
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FIDΣS deve ser considerado analfabeto, para os fins do art. 14, § 4º, da Constituição Federal13.
Na próxima situação a decisão inicial seguiu os parâmetros da legislação que regula o tema. Porém, como o importante é a avaliação no caso concreto de que o candidato possa simplesmente assinar o nome e, por via de consequência, consiga ler um pequeno trecho escrito, a decisão foi reformada e a candidatura homologada.
REGISTRO
DE CANDIDATO -
INELEGIBILIDADE
-
VEREADOR
ANALFABETISMO
-
(ART.
INDEFERIMENTO 14,
§
4º,
CF)
-
INADMISSIBILIDADE - ELEITOR QUE DEMONSTRA CONHECIMENTOS RUDIMENTARES DE LINGUAGEM ESCRITA - CONDIÇÃO DE SEMIALFABETIZADO QUE NÃO SE CONFUNDE COM A DO ANALFABETO SENTENÇA REFORMADA - RECURSO PROVIDO. Erros e falta de desenvoltura na escrita, desde que demonstrado um mínimo razoável, revelam insuficiência de conhecimento própria de quem é semi-alfabetizado; mas não a inexistência, a carência total de informação própria do analfabeto. Esse o sentido da inelegibilidade prevista no art. 14, § 4º, da CF14.
Nesses casos, apesar de serem considerados formalmente analfabetos, os candidatos comprovaram ser alfabetizados e, diante disso, conseguem excluir a vedação feita pela Constituição Federal. Percebe-se também que o texto constitucional é sempre, nesse caso específico da capacidade eleitoral passiva do analfabeto, interpretado estritamente de forma
frio, excluindo de qualquer análise o caso concreto. Essa interpretação gramatical empirista acontece justamente pelo fato de haver uma restrição ao cidadão analfabeto em exercer a sua capacidade eleitoral passiva, baseado apenas na sua capacidade de ler e escrever. Os legisladores, ao realizarem essa limitação ligada apenas à alfabetização, excluíram fatores mais importantes para o exercício de um mandato eletivo, tais como a competência para tratar de assuntos políticos e a erudição em conhecimentos gerais.
13
TRE. Recurso contra Decisões de Juízes Eleitorais nº 291 (22534)-SC. Rel. Volnei Celso Tomazini. j. 25.08.2008. 14 TRE. Recurso Cível nº 20271 (148827)-SP. Rel. Décio de Moura Notarangeli. j. 19.08.2004.
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gramatical, um lampejo de empirismo exegético, em que o mais importante é o texto escrito e
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FIDΣS 5 A INGERÊNCIA DO ESTADO NA SOLUÇÃO DO ANALFABETISMO E A CONTRADIÇÃO DA CAPACIDADE ELEITORAL PASSIVA FRENTE ÀS NORMAS CONSTITUCIONAIS
Atualmente, com o veloz desenvolvimento dos veículos de comunicação, através da internet e suas redes sociais, e com a própria verificação da realidade no dia-a-dia e à luz da nossa história, podemos constatar que grande parcela da população foi e ainda é excluída do simples acesso aos estabelecimentos formais de ensino15. Inúmeros projetos já foram criados e abandonados no intuito de melhorar essa situação historicamente desoladora, tais como o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL) e o projeto de alfabetização elaborado por Djalma Maranhão, que apresentava como slogan “De pés no chão também se aprende a ler”. Mas o fato é que dados do MEC (Ministério da Educação e Cultura) evidenciam um quadro indiscutivelmente alarmante. No Brasil existem, hoje, 16,295 milhões de pessoas que não sabem sequer escrever um simples bilhete16. Essa realidade ainda é mais absurda se for considerado o conceito de “analfabetismo funcional”, que inclui as pessoas com menos de quatro séries de estudos concluídas. Somando os completamente analfabetos com os “analfabetos funcionais”, o número de 16 milhões salta para incríveis 33 milhões. Acrescente-se a isso que o Brasil ocupa a 88° colocação no ranking de educação da UNESCO, revelando o fraco investimento e qualidade da Educação17. Diante disso, filiando-se ao conceito sociológico de Ferdinand Lassalle (2004), cujos
política de um país, sob pena de não ter efetividade (tornando-se, assim, uma mera folha de papel), é possível fazer uma análise crítica e chegar à conclusão de que os motivos da exclusão da capacidade eleitoral passiva dos analfabetos no processo eleitoral são discutíveis. Esse questionamento ocorre, sobretudo, porque não se pode ignorar que em um país de orientação democrática, cujo número de analfabetos ultrapassa os 10% da população
15
LEAL, Luciana Nunes. Acesso das crianças à escola chega a 98,2% no Brasil. O Estado de São Paulo, São Paulo, 27 set. 2013. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,acesso-das-criancas-a-escolachega-a-98-2-no-brasil,1079466,0.htm>. Acesso em: 15 jan. 2014. 16 TERRA. Brasil tem 16 milhões de analfabetos. Terra, São Paulo, 04 jun. 2003. Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI110852-EI994,00-Brasil+tem+milhoes+de+analfabetos.html>. Acesso em: 15 jan. 2014. 17 PINHO, Ângela. Brasil fica no 88º lugar em ranking de educação da UNESCO. Folha de São Paulo, São Paulo, 01 jan. 2011. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/saber/882676-brasil-fica-no-88-lugar-emranking-de-educacao-da-unesco.shtml>. Acesso em: 08 jan. 2014.
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pressupostos de uma Constituição Federal devem estar rigorosamente ligados à realidade
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FIDΣS (considerando os analfabetos funcionais), e longe das metas estipuladas para uma educação adequadamente mínima, os analfabetos não possam exercer cargos políticos eletivos. Dessa forma, a legislação pátria deveria prever mecanismos de integração social e não meios de retirá-los da principal forma de exercício e afirmação democrática. Isso evidencia uma contradição. Ademais, a própria Constituição Federal brasileira tem como princípio basilar em seu artigo 1°, inciso III, a Dignidade da Pessoa Humana18. O não exercício de um direito democrático por um cidadão, por vedação expressa de uma norma, enfraquece o principio base da Dignidade da Pessoa Humana e, consequentemente, limita o regime democrático porque o número de pessoas excluídas da sua capacidade eleitoral passiva é extremamente elevado. A própria Constituição Federal afirma em um de seus artigos iniciais como um direito social o acesso à educação. Verificamos que o seu artigo 6º afirma que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Essa previsão de acesso à educação, enquanto direito constitucional do cidadão, reforça a visão distorcida das normas constitucionais sobre a capacidade eleitoral passiva do analfabeto. Para reforçar os números do Ministério da Educação e a ideia de exclusão à qual fica submetido o analfabeto, há ainda uma afirmação de cunho negativo para quem não possui a capacidade eleitoral passiva. Não ter o direito de ser votado, de acordo com a Constituição
sanção pelo cometimento de uma infração ou mesmo de um crime, conforme assegura o artigo 15 da Constituição Federal de 198819. Por fim, face à realidade de políticas educacionais insuficientes para solucionar o problema do analfabetismo, de outro norte, há inúmeras possibilidades, que de fato existem, no sentido de suprir a incapacidade eleitoral passiva do analfabeto por não dominar a escrita e a leitura. Como exemplo dessas possibilidades existe, no caso do poder legislativo, as vultosas 18
“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” 19 “É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: I - cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado; II - incapacidade civil absoluta; III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos; IV - recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII; V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.”
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Federal de 1988, significa que o cidadão está sendo submetido a alguma restrição como
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FIDΣS verbas de gabinete para contratar assessores e, no poder executivo, a facilidade em nomear secretários e assessores da mais estrita intimidade. Essas duas possibilidades, à luz da constatação que o Brasil é um país composto de grande número de analfabetos, não podem ser descartadas de forma sumária. Precisam ser analisadas frente a uma visão sistêmica não somente do ordenamento jurídico vigente, mas também a partir de uma ideia sociológica de representatividade desses que, no momento, estão excluídos do processo eleitoral.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do estudo analisado, observa-se que retirar a capacidade eleitoral passiva do analfabeto é retirar o direito de exercitar, de forma plena e sem restrições, a sua cidadania e, dessa forma, fere, de forma evidente, os princípios basilares que norteiam um Estado Democrático de Direito. Isso acontece, principalmente, se esse Estado prevê direitos em sua Constituição Federal, como o acesso à educação, e não é capaz de executá-los, como é o caso do Brasil, que elege como direito social tutelado pela Constituição Federal a educação e não é capaz de democratizar seu acesso a todos os cidadãos. O Brasil, caso queira garantir uma educação de qualidade e altos índices de alfabetização, deve seguir determinados parâmetros, tais quais investimentos públicos na qualificação dos docentes e criação de instituições de ensino com estrutura adequadas, incentivo aos alunos na sua permanência na rede escolar, dentre outros.
própria Constituição Federal, optou por vedar o direito de ser representante popular dos cidadãos que não tiveram oportunidade de estudar o mínimo exigido pela legislação. Esses indivíduos, como se já não bastasse serem flagelos da ausência do fornecimento dos direitos básicos pelo Estado, respondem, com seus próprios direitos, por essa incapacidade estatal. Desse modo, diante de tantas controvérsias, pode-se dizer que essa questão envolvendo a capacidade eleitoral passiva dos analfabetos no Brasil trata-se mais de uma questão dogmática do direito posto por uma política legislativa do que propriamente de uma questão sociológica calcada em estudos contundentes e convincentes.
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Assim sendo, não sendo eficaz em socializar a educação, o Brasil, por meio da sua
128
FIDΣS
REFERÊNCIAS
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CASTRO, Edson de Resende. Curso de direito eleitoral. 6. ed. São Paulo: Del Rey, 2012.
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FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 34. ed. São Paulo: Paz e terra, 2011.
LASSALLE, Ferdinand. O que é uma constituição?. Belo Horizonte: Líder, 2004.
ROLLO, Alberto et al. Elegibilidade e inelegibilidade: visão doutrinária e jurisprudencial atualizada. Caxias do Sul: Plenum, 2008.
THE SEAL TO THE PASSIVE ELECTORAL CAPACITY OF THE ILLITERATE AND
THE
CONSTITUTIONAL
CONTRADICTION
IN
FRONT
OF
FUNDAMENTAL PRINCIPLES OF THE DEMOCRATIC STATE OF LAW
ABSTRACT The illiterates, in Brazil, has the active electoral capacity, however, doesn’t have the passive capacity. This issue takes to the existence of a contradiction between the basic principles of the Democratic State of Law and the reality in the country, as technical data shows that the number of illiterate is expressive and these, in consequence, are jettisoned of the democratic process. It’s pursued, then, to understand
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TELES, Ney Moura. Novo direito eleitoral: teoria e prática. Brasília: LGE, 2002.
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FIDÎŁS the reasons of the non-inclusion of these Brazilians in the political scene in full form. Keywords: Analphabetism. Citizenship. Political inclusion. Law.
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Education.
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FIDΣS Recebido 14 fev. 2014 Aceito 11 abr. 2014
DIREITO
À
CONVIVÊNCIA
E
SEPARAÇÃO
DOS
GENITORES:
CONCRETIZAÇÃO COMO PRIORIDADE Luiz Afonso Rangel Serrano
RESUMO O direito à convivência é garantido pela Constituição Federal. Ocorre que, diante da separação dos genitores, são inúmeras as dificuldades que surgem para sua preservação. Intenta este trabalho demonstrar a importância de se superar esses óbices e priorizar a concretização desse direito. Procura, ainda, apresentar como deve ocorrer tal efetivação.
1 INTRODUÇÃO
A Constituição Federal, em seu art. 227, garante o direito à convivência familiar e atribui à própria família, à sociedade e ao Estado o dever de concretizá-lo. A expressão “familiar” indica que é assegurado aos pais (e a quem tenha vínculo de afetividade importante) e também aos filhos, em relação a ambos. Quando os genitores permanecem juntos, não há grandes complicações na efetivação desse direito, mercê de, em regra, viverem sob o mesmo teto, e ambos participarem do cotidiano do filho. As dificuldade e discussões surgem da separação deles, desde o momento de definição da guarda.
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Estagiário da Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Norte.
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Palavras-chave: Direito à convivência. Concretização. Separação.
131
FIDΣS O rompimento da relação conjugal quase sempre é traumático, visto que resulta de um conflito dos ex-cônjuges ou ex-companheiros, o qual acaba se prolongando mesmo depois de separados há considerável tempo. E os filhos são quem mais sofre, pois perdem a estrutura familiar – símbolo de estabilidade e segurança – que lhes assegura melhor desenvolvimento. Sentem-se impotentes e rejeitados, nutrindo um sentimento de solidão, como se os pais estivessem violando as obrigações da parentalidade. Criam o medo, e, até mesmo, a sensação de perda de um ou ambos os pais. Diante disso, deve-se buscar ao máximo atenuar os traumas e prejuízos, evitando-se a ruptura de ligação ou o afastamento com os pais. Mister lembrar que a dissolução da relação conjugal não implica na extinção da relação com o filho, nem na cisão quanto aos direito e deveres relativos a ele. As decisões tomadas devem se basear na proteção integral e no melhor interesse dos menores, em virtude de imposição constitucional (art. 227 da Constituição Federal). O presente trabalho tem por escopo demonstrar a importância da preservação e concretização prioritária do direito à convivência como forma de se minimizar os impactos da separação, primeiramente, no momento de escolha do modelo de guarda, e, em seguida, na forma como será ela exercida, apresentando também meios de efetivá-lo na prática. Visa, outrossim, apontar a necessidade da implementação de medidas, sugerindo como devem ser estabelecidas.
CONVIVÊNCIA
Ocorrendo a separação dos pais, uma das decisões mais importantes a ser tomada diz respeito à guarda do filho, isto é, à escolha da residência na qual o infante morará (DIAS, 2013). Por intermédio de um acordo ou por determinação judicial, é estabelecida a maneira como os genitores irão conviver com o filho, dividindo os períodos de convívio. São duas as modalidades de guarda elencadas e posteriormente conceituadas pelo Código Civil em seu art. 1.583: a unilateral e a compartilhada.1
1
Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada. § 1 o Compreende-se por guarda unilateral a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua (art. 1.584, § 5 o) e, por guarda compartilhada a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns.
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2 A PREFERÊNCIA PELA GUARDA COMPARTILHADA E O DIREITO À
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FIDΣS A partir das alterações no Código Civil, levadas a efeito pela Lei 11.689/08, a guarda compartilhada foi estabelecida como a preferencial. O legislador, inclusive, recomenda ao juiz que mostre as vantagens desse modelo (art. 1.584, § 1o) 2. Nesse tipo de guarda, o filho passa a ter dois lares, duas residências. Além da companhia, os pais terão os mesmos poderes sobre ele, e deverão tomar decisões em conjunto, considerando sempre o interesse do menor, ou seja, o que melhor contribuirá para o seu desenvolvimento. Acertada foi essa preferência, visto que privilegia o direito à convivência, mitigando os efeitos negativos da ruptura dos genitores e favorecendo maior participação de ambos no desenvolvimento do filho. E, destarte, de forma reflexa, atende à proteção integral e ao melhor interesse do menor. A restrição ao direito de conviver é inerente ao processo de dissolução da relação parental. Na guarda compartilhada, no entanto, a restrição é mínima e igualitária para os pais. Ambos terão a companhia dos filhos em suas residências, promovendo a permanência de uma vinculação mais próxima. Além disso, os dois são corresponsáveis diretos pelo filho, devendo tomar as decisões sobre sua formação em conjunto. E, mesmo que assim não determinassem as normas legais, por terem ambos a guarda e conviverem com o filho, inconscientemente, constroem maior zelo pela sua formação e cuidado para com suas necessidades, tanto materiais como afetivas. Essa linha de pensamento é evidente na doutrina majoritária (BAPTISTA, 2008; BRUNO, 2006; DIAS, 2013; LEITE, 2003; LÔBO, 2011). Aplaudindo o legislador, Paulo Lôbo (2011) adverte que o modo compartilhado só deve ser afastado quando o melhor por sua vez, afirma: “O maior conhecimento do dinamismo das relações familiares fez vingar a guarda conjunta ou compartilhada, que assegura maior aproximação física e imediata dos filhos com ambos, mesmo quando cessado o vinculo de conjugalidade.”. Finalmente, importante lembrar que a definição da guarda compartilhada é apenas o primeiro passo da efetivação da garantia constitucional de convivência familiar. Imprescindível é que seja ela exercida de modo a assegurar aos filhos, na prática, a convivência e o acesso livre aos pais.
2
Art. 1.584. (...) § 1o Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e à mãe o significado da guarda compartilhada, a sua importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas.
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interesse dos filhos recomendar a guarda unilateral. MOTTA (citado por DIAS, 2013, p. 454),
133
FIDΣS 3 A APLICAÇÃO EM CASO DE GUARDA UNILATERAL
Apesar da preferência pela guarda compartilhada, é possível que o juiz atribua a guarda unilateral ou exclusiva a apenas um dos pais quando não chegarem a acordo e se tornar inviável aquela (LÔBO, 2011). Se isso ocorrer, mais do que nunca, se devem empreender esforços para que, também nessa situação, seja o direito à convivência concretizado prioritariamente, não podendo se aceitar o mero exercício restringido das visitações. Como retro mencionado, a separação dos pais não importa na ruptura do laço deles com o filho, afinal, “o estado de família é indisponível” (FERREIRA; OLIVEIRA citados por DIAS, 2013, p. 451). O poder familiar não deixa de existir, mantendo-se também todos os direitos e encargos dele decorrentes. Quem não tem o filho sob sua guarda tem o direito e dever de supervisionar os interesses do mesmo (art. 1583, § 3o do Código Civil) 3, e de visitálo, tê-lo em sua companhia e fiscalizar sua manutenção e educação (art. 1589 do Código Civil)4. Além desses, tem-se também o direito à convivência. Ocorre que o direito de visitas, garantido ao não guardião, é, por si só, mais restrito quando em face do de conviver. O direito do pai não guardião e do filho não se resume às visitas na residência do guardião ou no local designado por este. Abrange ter o infante em sua companhia, estar presente no seu caminhar existencial, e fiscalizar sua manutenção e educação. Visita e convivência são coisas distintas (LÔBO, 2011). Não bastasse isso, não raro, é o regime de visitas aplicado de forma a inviabilizar o direito ao convívio.
horários preestabelecidos rigidamente e sob firme fiscalização, implicar em uma mecanização da relação entre filho e genitor não guardião, como se fosse uma tarefa a ser executada (DIAS, 2013). Retira algo essencial aos relacionamentos afetivos: a espontaneidade e a naturalidade de seu desenvolvimento. Essa visitação em datas predeterminadas acaba, pois, por criar um distanciamento entre ambos. Consoante os dizeres de Maria Berenice (2013, p. 459), “a imposição de períodos de afastamento leva ao estremecimento dos laços afetivos pela não participação do pai no cotidiano do filho, além de gerar certo descompromisso com o seu
3
Art. 1.583. (...) § 3o A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos. 4 Art. 1.589. O pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua manutenção e educação.
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Isso em virtude de essa aplicação limitada, caracterizada por encontros em datas e
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FIDΣS desenvolvimento”. E o pior: esse afastamento não é apenas no seu sentido físico, mas no de presença nas decisões e no de comunicação mesmo que não presencial. O poder familiar e o direito à convivência não se limitam a assegurar ao genitor o direito de ter o filho em sua companhia em determinados períodos de tempo. Vão além, garantindo e impondo a participação nas decisões, no cotidiano dos filhos, como meio de preservar sua proteção integral e seu melhor interesse5. “Consagrado o princípio da proteção integral, em vez de regulamentar as visitas, é necessário estabelecer formas de convivência, pois não há proteção possível com a exclusão do outro genitor” (BRUNO, citado por DIAS, 2013, p. 459). Visando à efetivação dessas garantias, de modo direto da de convivência, e indiretamente da de proteção integral e do melhor interesse, quando da guarda unipessoal, é vital flexibilizar o regime de visitas6, permitindo e oportunizando ao não detentor da guarda ter contato com seu filho além dos períodos de companhias previamente fixados, incluindo a comunicação telefônica e a realizada através dos novos meios eletrônicos. Nesse sentido, correto está Paulo Lôbo (2011), ao defender que o direito à convivência impõe o dever de informação aos pais. Toda mudança de residência ou dos meios de comunicação de um dos pais ou do filho deve ser informada prévia e utilmente ao outro, com vistas a conservar a comunicação, o contato, entre o responsável e o menor e, desse modo, a participação direta daquele na vida deste. O guardião tem o dever de permitir o exercício desse direito, e, caso assuma uma postura de tentar impedir, restará configurada a alienação parental (DIAS, 2013). A negativa
guardião, por danos materiais e morais (LÔBO, 2011). Deve-se salientar que não está se defendendo a concessão de discricionariedade ao não guardião de ter o filho em sua companhia na hora e em duração que bem entender, mas sim, que a primazia do direito de conviver deve orientar os pais e o juiz a possibilitarem o contato de forma mais espontânea e, em algumas situações, não determinadas previamente, desde que em interesse do melhor para prole. 5
Proteger integralmente o menor e satisfazer seu melhor interesse constituem deveres de cunho constitucional, expressos no art. 227 da Constituição Federal, nestes termos: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 6 O art. 1.121, em seu § 2o, conceitua o regime de visitas como sendo a forma pela qual os cônjuges ajustarão a permanência dos filhos em companhia daquele que não ficar com sua guarda, compreendendo encontros periódicos regularmente estabelecidos, repartição das férias escolares e dias festivos.
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ao direito de visita, inclusive, pode ensejar a pretensão indenizatória pelo preterido contra o
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FIDΣS Não se pode olvidar, ainda, que a realização do direito de convivência, através da ampliação e flexibilização do direito de visitas e a própria permissão destas, só poderá ser viabilizada se não for contrária ao melhor interesse e à proteção integral do menor. Há casos nos quais a convivência e até mesmo as visitas são prejudiciais ao filho, seja por motivos referentes à conduta e personalidade do genitor não detentor da guarda ou pela ocorrência de determinados eventos traumáticos ligados a ele. Nesse diapasão, segue o Acórdão nº 99058/TJDF7:
O pai tem o direito de visitar o filho e, por sua vez, o menor, já adolescente, tem o direito de aceitar ou não essas visitações, máxime, havendo fundadas razões de fato para a repulsa. Conseqüentemente, o Estado-Juiz não pode compelir que esse adolescente, em determinado dia e horário, compareça em determinado edifício, na presença de funcionário público, para receber a incômoda visita. Seria um constrangimento, o que o direito repudia. Embargos infringentes conhecidos e providos. Maioria.
Ainda assim, a regra é a de priorizar a efetuação da garantia à convivência, justamente por, em quase a totalidade dos casos, configurar-se como o melhor para os filhos, protegendo-os integralmente quando da separação dos pais e do deferimento da guarda unipessoal.
O posicionamento no sentido de defender a aplicação prioritária do direito de convivência não pode ser firmado sem que se aborde a questão da sua extensão e das possíveis medidas concretizadoras. Conforme expressa Paulo Lôbo (2011), esse direito não se limita aos pais e filhos. Os parentes de ambos os pais, sobretudo os do não guardião, não podem ter seu contato com a criança ou o adolescente negado. Nesse sentido, o Enunciado 333 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal8: “O direito de visita pode ser estendido aos avós e
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TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL. Acórdão n. 99058, EIC 3811997. 1ª Câmara Cível. Rel. Min. Romão C. Oliveira. j. 20.08.1997. DJU 29.10.1997. 8 Jornadas de direito civil I, III, IV e V: enunciados aprovados. Coordenador científico: Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior. Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2012.
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4 EXTENSÃO E MEDIDAS CONCRETIZADORAS
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FIDΣS pessoas com as quais a criança ou o adolescente mantenha vínculo afetivo, atendendo ao seu melhor interesse”. Essa harmonia se deve à tendência de atribuir cada vez maior importância à afetividade nas relações. Quanto maior for o vínculo afetivo, mais se faz indispensável a sua preservação. Aduz Maria Berenice Dias (2013, p. 460):
Assim, avós, tios, padrastos, padrinhos, irmãos etc. podem buscar o direito de conviver, com crianças e adolescentes, quando os elos de afetividade existente merecem ser resguardados. Inclusive nas uniões homoafetivas, ainda que o filho seja do parceiro, impositivo assegurar o direito de visita.
No tocante às uniões homoafetivas, não poderia ser diferente. Configuram-se como verdadeiras famílias, reconhecidas legalmente. Os padrastos ou madrastas merecem o mesmo tratamento dos que estabelecem uniões heteroafetivas. Um exemplo de decisão judicial com esse entendimento foi a proferida pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina9:
Apelação cível. Ação declaratória de união estável homoafetiva c/c inventário. Demanda extinta sem exame do mérito, com fulcro no art. 267, VI, do CPC. Pedido juridicamente possível. Ausência de vedação legal à pretensão do autor. Constitucionalidade recentemente confirmada pelo STF. Clara ofensa aos princípios da igualdade e dignidade da pessoa humana. Sentença cassada. Retorno dos autos à origem para a devida instrução. Recurso provido. O Supremo Tribunal Federal. Apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva e invocando princípios essenciais
igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não discriminação e da busca da felicidade). Reconhece assistir, a qualquer pessoa, o direito fundamental à orientação sexual, havendo proclamado, por isso mesmo, a plena legitimidade ético-jurídica da união homoafetiva como entidade familiar, atribuindo-lhe, em conseqüência, verdadeiro estatuto de cidadania, em ordem a permitir que se extraiam, em favor de parceiros homossexuais, relevantes conseqüências no plano do direito, notadamente no campo previdenciário, e, também, na esfera das relações sociais e familiares. (...) a família resultante da união homoafetiva não pode sofrer discriminação, cabendolhe os mesmos direitos, prerrogativas, benefícios e obrigações que se mostrem acessíveis a parceiros de sexo distinto que integrem uniões heteroafetivas (ministro Celso de Mello, STF).
9
TJ-SC. APC 2008.029815-9. 2ª Câmara de Direito Civil. Rel. Des. Sérgio Izidoro Heil. j. 01.09.2011. DJ 23.09.2011.
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(como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da
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FIDΣS Por fim, superada a questão da abrangência, resta aspecto de grande relevo: como garantir a realização prioritária do direito à convivência. Tal questionamento se mostra imprescindível, dado que essa efetivação, não raro, sofre óbices. Dificilmente, os genitores se separam de modo pacífico. Geralmente, o rompimento da relação ocorre justamente por causa do elevado nível de conflitos e pela intensidade deles, os quais se prolongam mesmo após a separação. E, pior, os filhos acabam sendo envolvidos nessas disputas, esquecendo os cônjuges que o principal interesse não é o pessoal de cada um, mas, sim, o interesse do menor. Nesse estado de beligerância, os filhos, muitas vezes, são usados como instrumentos de vingança pelas mágoas acumuladas durante o período da vida em comum (DIAS, 2013). Destarte, os próprios genitores dificultam a realização do direito de conviver, fazendo-se imprescindível a execução de medidas no sentido de garanti-lo. Entre elas, as que merecem mais destaque são as de caráter educacional e psicológico. Seus principais sujeitos são os pais, os quais devem ser submetidos a sessões de terapia em conjunto, sempre dando ênfase à necessidade de se pensar no melhor para os filhos e de se separar o problema que há entre eles da direção da vida do menor. Essas sessões durariam períodos fixados pelo juiz de acordo com as necessidades de cada caso, e seriam realizadas por profissionais da área de Psicologia pertencentes ao quadro da Justiça. O dispêndio ficaria às custas dos genitores, proporcionalmente à condição financeira deles, ou gratuitamente, se demonstrado que não podem arcar com os custos. No caso de ser deferida a guarda unilateral, os genitores e o juiz, como dito
convivência com ambos e com os demais parentes com os quais o menor tenham afinidade considerável, flexibilizando o direito às visitas. Além dessas, outras medidas são possíveis, desde que viabilizem o direito à convivência e satisfaçam os requisitos da necessidade e razoabilidade. Um exemplo concreto encontra-se na seguinte decisão do TRF-510:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. TRANSFERÊNCIA DE ALUNO DE UNIDADE DO CEFET. MOTIVO DE FORÇA MAIOR. DOENÇA NA FAMÍLIA. PROTEÇÃO À FAMÍLIA E À EDUCAÇÃO. POSSIBILIDADE. - A transferência de aluno de unidade do CEFET, quando motivada por doença na família (motivo de força maior), é possível, sendo 10
TRF5. REOMS 91209 CE 2003.81.00.023948-0. Quarta Turma. Rel. Des. Federal Marcelo Navarro. j. 03.03.2008. DJ 02.04.2008.
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anteriormente, devem zelar para que sejam asseguradas não apenas visitações, mas a
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FIDΣS resguardado o direito à convivência familiar e à educação. - Sendo o pedido restrito à transferência e matrícula de aluno em outra unidade do CEFET, há de se considerar a perda de objeto do mandado de segurança, com a confirmação da liminar pela sentença. - Remessa oficial não provida.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todo o exposto, a outra conclusão não se pode chegar senão a de que a garantia constitucional correspondente ao direito à convivência – do qual são titulares tanto os pais quanto, e máxime, os filhos, e ainda parentes com os quais este tenha vínculo de afetividade – deve ser preservada e concretizada prioritariamente quando da separação dos genitores. Essa é a única forma de se atenuar os prejuízos imanentes à ruptura da relação conjugal, atendendo aos princípios da proteção integral e do melhor interesse do menor, a partir da definição do modelo de guarda e de como ela será exercida. O juiz é orientado a estabelecer preferencialmente a guarda compartilhada, salvo se os fatos apontarem que a unipessoal constitui a melhor decisão. Tal escolha se faz em virtude de, no compartilhamento, ser atribuída a corresponsabilidade direta de ambos os genitores pelo filho. A própria estrutura jurídica garante a presença, no sentido de participação, de ambos no cotidiano do menor. Diligências também devem ser tomadas quanto ao exercício da guarda, em especial
convivência seja afirmada na prática, sendo dever dos pais colaborarem para viabilizá-la. No caso da guarda unipessoal, o típico direito de visitas deve ser ampliado e flexibilizado, a fim de romper com a mecanização e rigidez que deterioram as relações afetivas. Mister lembrar, ainda, que a concretização do direito de conviver sofre com diversas dificuldades, provocadas, em sua grande maioria, pelos próprios genitores, os quais envolvem os filhos nos seus conflitos e mágoas. Por
conseguinte,
mostra-se
imprescindível
a
implementação
de
medidas
concretizadoras. Dentre elas, a principal é a realização de sessões de terapia psicológica com os pais, fixadas pelo magistrado, com duração determinada de acordo com as nuances da situação específica, e ministradas por psicólogos especialistas, pertencentes ao quadro do próprio Judiciário. É possível, no entanto, a adoção de outras providências por parte do juiz, a
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quando tratar-se da unilateral. O direito e os princípios supramencionados requerem que a
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FIDΣS fim de satisfazer o direito à convivência, sempre atentando para os critérios da necessidade e da proporcionalidade.
REFERÊNCIAS
BAPTISTA, Sílvio Neves. Guarda compartilhada. Recife: Bagaço, 2008.
BRUNO, Denise Duarte. Balizando sociologicamente a questão da ética nos litígios de família. In: PEREIRA, Tânia da Silva; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coords.). A ética da convivência familiar e a sua efetividade no cotidiano dos tribunais. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 9. ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias monoparentais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
RIGHT TO COMPANIONSHIP AND PARENT’S SEPARATION: ACHIEVEMENT AS A PRIORITY
ABSTRACT The right to family life is guaranteed by the Brazilian Constitution. However, in face of the parental separation, there are numerous dificulteis arise to preclude its warranty. This work intends to demonstrate the importance of overcoming these obstacles and prioritize the realization of this right. It also seeks to present how the implementation of this right should be performed. Keywords: Right to companionship. Accomplishment. Separation.
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LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
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FIDΣS Recebido 12 fev. 2014 Aceito 18 mar. 2014
DIREITO À INFORMAÇÃO NAS RELAÇÕES DE CONSUMO DE PRODUTOS ALIMENTÍFCIOS NO ATACADO E NO VAREJO: PARTICULARIDADES SOBRE COMPOSIÇÃO, CARACTERÍSTICAS, PREÇO E QUANTIDADE DO PRODUTO Joaquim de Assis Úrsula Júnior Rafael Heider Barros Feijó
RESUMO O presente artigo demonstra a precariedade das informações prestadas ao consumidor na relação de consumo alimentícia, a exemplo da composição, características, preço e quantidade dos produtos, trazendo exemplos de aplicação no Direito Estrangeiro nesse sentido. Relata situações nas quais os fornecedores fazem uso da má-fé para distorcer o sentido legal, lesando o consumidor. Demonstra a inércia do Poder
consumidor. Aponta, finalmente, que o manto protetivo estabelecido pela Constituição Federal e pelo Código de Defesa do Consumidor é, por vezes, insuficiente para que o consumidor seja preservado, necessitando de regulamentação mais precisa. Palavras-chave: Direito do consumidor. Relação de consumo. Alimentos. Direito à informação.
Graduando do curso de Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Graduando do curso de Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
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Público em produzir mecanismos que maximizem a proteção do
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FIDΣS 1 INTRODUÇÃO
Vive-se um momento da nossa história em que tudo ocorre de forma rápida, com transformações que raramente faz-se possível acompanhar. Isso faz com que o individuo busque otimizar o seu tempo realizando certas atividades secundárias, porém necessárias, de forma automática, priorizando as que dependem do resultado de sua competitividade. Um exemplo de atividade a qual se enquadra nesse tipo de situação é o consumo de gêneros alimentícios: atividade tida como secundária; porém, essencial à vida humana. Afinal, a alimentação é resultado da necessidade fisiológica humana por energia, tornando-a essencial à sobrevivência. Ao participar de tal relação de consumo, o cidadão espera que esta ocorra da forma mais breve possível, de modo a otimizar o tempo, que se mostra cada vez mais escasso em função da enormidade de atividades desenvolvidas pelo homem moderno. Para que a relação de consumo alimentícia ocorra de forma célere e confiável, os fornecedores do ramo devem oferecer mecanismos necessários para esse fim. Além disso, essa relação deve ser pautada nos mais diversos princípios do Direito Consumerista, de forma a proporcionar uma interação justa, e adequada, ao consumidor, o qual é considerado polo vulnerável. Destarte, os fornecedores devem evitar a ocorrência de “armadilhas” que passam despercebidas ao consumidor devido à velocidade com que estes realizam suas compras – devendo essas obrigações ser impostas aos mais diversos membros da cadeia de fornecedores, independentemente do poderio econômico e influência político-social que possam vir a
Percebe-se, então, a importância que a informação tem nas relações de consumo, estando, portanto, prevista no Código de Defesa do Consumidor (CDC) em diversos pontos: desde a concepção de informação como princípio o qual a Política Nacional das Relações de Consumo (PNRC) deve atender, educando e informando os consumidores quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo (art. 4°, IV do CDC); até a constatação de que a informação aparece como direito básico do consumidor (art. 6°, III do CDC), reforçando a grande relevância dada ao assunto. Nesse ínterim, o presente trabalho abordará temas relacionados ao direito de informação na relação de consumo estabelecida nos mercados. Analisar-se-á, em especial, a importância da informação em relação ao peso e volume de mercadorias; à presença de substâncias; às características específicas do produto, tais como a presença de defeitos ou
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possuir.
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FIDΣS proximidade de vencimento do prazo de validade; adentrando, inclusive, no direito à informação no momento da oferta (art. 31 do CDC). Reforça-se, assim, que todas essas informações devem ser apresentadas de forma clara e direta, para que os consumidores possam efetuar suas compras de maneira ágil e segura, sem a necessidade de maiores cálculos ou surpresas ao final.
2 PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR E DIREITO À INFORMAÇÃO NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
A perspectiva do Direito à informação no âmbito das relações consumeristas passa necessariamente pela apreciação da vulnerabilidade e da transparência. Conforme salienta Cavalieri Filho (2009, p. 83): “A rigor, o direito à informação é um reflexo ou conseqüência do princípio da transparência e encontra-se umbilicalmente ligado ao princípio da vulnerabilidade”. Com a leitura do art. 4°, I do CDC, denota-se a preocupação do legislador em relação à proteção ao consumidor, ao dotá-lo da prerrogativa de ser vulnerável. Depreende-se, assim, de acordo com o supracitado diploma legal, que a vulnerabilidade do consumidor é um princípio de forte repercussão na relação de consumo, ou seja, sendo a pessoa física ou jurídica, caracterizada como consumidora, automaticamente será considerada vulnerável. No referente à informação, nas relações de consumo de produtos alimentícios a
sem maiores atenções por parte do adquirente. Ademais, não raramente o consumidor será enquadrado enquanto hipervulnerável: situação como a de uma criança comprando doces e biscoitos, ou de um idoso realizando a feira semanal, casos esses que requerem uma atenção ainda maior do nosso sistema protetivo, impedindo que tal vulnerabilidade seja utilizada como forma de obtenção de vantagens por parte dos integrantes da cadeia de fornecedores. Ainda nesse sentido, reforçando a ideia de desproporção de forças, surge o conceito de hipossuficiência. Os conceitos de vulnerabilidade e hipossuficiência não se confundem, pois a vulnerabilidade, por se tratar de questão de Direito Material, é uma característica intrínseca do consumidor, já a hipossuficiência, enquadrada como questão de Direito Processual, não estará, necessariamente, sempre presente. Dessa forma, este deve ser analisado no caso concreto. De acordo com Tartuce (2012, p. 37) “todo consumidor é vulnerável, mas nem todo consumidor é hipossuficiente”.
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vulnerabilidade do consumidor se ressalta, pois a relação de consumo se dá de forma célere,
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FIDΣS Seguindo o mesmo raciocínio, Grinover (2001) afirma que “a vulnerabilidade é um traço inerente a todo consumidor, já a hipossuficiência é uma marca pessoal de cada consumidor que deve ser auferida pelo juiz no caso concreto”. Outro importante princípio é o da boa-fé objetiva. No caso em estudo, esse princípio está intimamente ligado ao direito à informação. Os fornecedores devem sempre manter informações claras e diretas a respeito dos seus produtos, evitando a utilização de artifícios que prejudiquem a percepção do consumidor a respeito das características do produto. Segundo Bolwerk (2009, p. 141), “a informação como um dever anexo da boa-fé gera a responsabilização por conta de sua ausência ou falta de adequação ou clareza”, o que leva à conclusão de que a obrigação de informar, por parte dos fornecedores, deve estar pautada na boa-fé objetiva, respeitando o equilíbrio negocial e a vulnerabilidade do consumidor. A transparência também se afigura como princípio norteador das relações de consumo e se acopla diretamente à questão informacional. Consoante Cláudia Lima Marques (2002, p. 286): “Transparência significa informação clara e correta sobre o produto a ser vendido, sobre o contrato a ser firmado, significa lealdade e respeito nas relações entre fornecedor e consumidor, mesmo na fase pré-contratual”. Essa busca por transparência inverte a lógica antiga das relações comerciais; o consumidor que necessitava atuar, questionar e buscar munir-se do maior arcabouço informacional para realizar um bom negócio, passou a uma posição de maior relevo, sendo resguardado seu direito subjetivo de informação (MARQUES, 2004, p. 246).
informação adequada e clara sobre os diferentes produtos, com especificação correta de quantidade e preço. Del Masso (2011, p. 81) registra que, no âmbito das tratativas negociais, “o fornecedor deve de maneira clara permitir ao pretenso consumidor conhecer a correta quantidade do que se adquire, todas as características do que se adquire como composição qualidade e sobretudo preço”. Já o art. 31 do mesmo diploma prescreve a respeito da informação adequada em relação à oferta. Como aponta Rizzato Nunes (2012, p. 185): “A informação passou a ser componente necessário do produto e do serviço, que não podem ser oferecidos no mercado sem ela”.
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Pela leitura do art. 6°, III do CDC, verifica-se que é direito básico do consumidor a
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FIDΣS Já existe decisão judicial no sentido de esclarecer a importância da informação no mercado de consumo, com o detalhamento de cada atributo da informação. Conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça1:
A informação deve ser correta (= verdadeira), clara (= de fácil entendimento), precisa (= não prolixa ou escassa), ostensiva (= de fácil constatação ou percepção) e, por óbvio, em língua portuguesa. A obrigação de informação é desdobrada pelo art. 31 do CDC, em quatro categorias principais, imbricadas entre si: a) informaçãoconteúdo (= características intrínsecas do produto e serviço), b) informaçãoutilização (= como se usa o produto ou serviço), c) informação-preço (= custo, formas e condições de pagamento), e d) informação-advertência (= riscos do produto ou serviço).
Nessa senda, o dever de informar só é atendido efetivamente pelo fornecedor quando os dados essenciais para o momento decisório são conhecidos plenamente pelo consumidor; assim “Não basta, portanto, dar a conhecer, disponibilizar, é preciso que o consumidor efetivamente compreenda o que está sendo informado” (CARPENA, 2007, p. 78). Outrossim, a compreensão do consumidor é elemento fundamental para o pleno gozo do direito à informação na perspectiva do CDC. Para deixar vincado o relevo do direito à informação, verifica-se que a proteção do mesmo ganhou guarida até no âmbito dos Crimes contra as relações de Consumo. Consoante se depreende do art. 66 do CDC, incorre em crime aquele que faz informação falsa ou
qualidade, quantidade, segurança, desempenho, durabilidade, preço ou garantia do produto ou serviço, sendo tal conduta punível com pena de três meses a um ano de detenção e multa. Face o exposto, resta evidente que a ideia central da codificação consumerista, quando trata do direito à informação, é dar ao contribuinte condições para que possa fazer a escolha mais adequada quando da efetivação da relação de consumo e para isto não basta que a informação lhe seja prestada pelo fornecedor, é preciso que ela esteja disponível de tal forma que possa ser compreendida sem maiores dificuldades pelo homem médio.
1
STJ. REsp 586.316-MG Rel. Min. Herman Benjamin. j. 17.4.2010
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enganosa, ou simplesmente omite informação relevante acerca da natureza, característica,
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FIDΣS 3 ASPECTOS PRÁTICOS ACERCA DO DIREITO À INFORMAÇÃO AO CONSUMIDOR
Passar-se-á a analisar, pois, casos concretos que ocorrem no mercado de consumo brasileiro, conscientes de que muitos desses casos existem devido a uma deficiência do Poder Público em fiscalizar e punir os responsáveis pelo desrespeito ao CDC. Isso se dá, principalmente, devido ao fato de os fornecedores, utilizando-se de má-fé, burlarem os mandamentos do CDC a respeito do direito à informação, prestando-a, assim de forma inadequada e obscura. Cabe ainda ressaltar-se que fator de importância em relação à precariedade das informações fornecidas aos consumidores é a lentidão do Estado em editar normas, muitas vezes apenas regulamentadoras, que acompanhem o desenvolvimento do mercado e as mudanças culturais da população, dificultando a concretização dos direitos presentes no CDC. Importante exemplo dessa deficiência normativa é o que se analisará a seguir.
3.1 Informações sobre preço e quantidade
No caso de compras alimentícias, a chamada hipossuficiência técnica, resultante, dentre outras, da necessidade de realização de cálculos por parte dos consumidores para a definição de qual item é o mais vantajoso, costuma se apresentar com frequência. O problema surge a partir do momento em que uma parcela da população sequer sabe realizar tais cálculos
los à quantidade adquirida. Tal situação tem como causa principal a fragilidade do sistema educacional pátrio, sendo potencializada pela ausência de políticas públicas voltadas para o estímulo ao consumo responsável a para a educação financeira, políticas estas que acaso existissem e fossem devidamente aplicadas poderiam contribuir em muito para relações de consumo mais justas. Além disso, frequentemente observa-se a presença de informativos minúsculos, dificultando a visualização de características essenciais. Os consumidores devem ser claramente informados a respeito do preço do produto que estão adquirindo, assim como de sua quantidade. Contudo, é importante perceber que não apenas a quantidade deve ser informada de forma adequada e clara, como também a sua mudança. Por vezes presencia-se a redução de peso ou volume de mercadorias das quais se está habituados a consumir (sem redução de preço), com leves alterações em seu formato,
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ou utilizar uma calculadora, restando apenas observar os preços dos produtos sem relaciona-
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FIDΣS entretanto sem maiores informações a respeito, a não ser por minúsculos dizeres no canto da embalagem. Essa prática dos fornecedores revela claramente suas intenções de burlar o direito à informação, pautados em explícita má-fé ao tentarem enganar os consumidores. Exemplo claro do que se relata é a recente redução promovida pelos fabricantes de papel higiênico na metragem dos rolos, de 40 (quarenta) metros para 30 (trinta) metros, sem a correspondente redução no preço e sem que constasse das embalagens tal informação com o destaque devido, restando ao consumidor atentar para os minúsculos avisos inseridos nas embalagens em locais de difícil visualização2. Digno de nota ainda a utilização dos códigos de barras. Com a evolução tecnológica, os fornecedores passaram a se utilizar de mecanismos que facilitaram e agilizaram suas atividades, desrespeitando, por outro lado, o direito à informação clara e adequada ao consumidor. Exemplo disso foi a utilização em massa dos códigos de barras principalmente pelos supermercados. A simples utilização do código de barras não indica um desrespeito ao direito à informação. A questão é que os fornecedores tentaram utilizar-se da tecnologia como forma única de indicação de preço, disponibilizando máquinas leitoras de código de barras a uma distância mínima dos produtos. Apesar da disponibilização das leitoras, o que se percebeu foi um aumento da dificuldade e atraso na realização de compras por parte dos consumidores. Na prática, poucos se dirigiam às leitoras, descobrindo os preços dos produtos apenas no momento do pagamento. Situação intermediária é a que, além das leitoras de código de barras, o supermercado
divergências entre o preço afixado nas prateleiras e o preço do produto presente no código de barras, descoberto apenas no momento do pagamento. Com isso, após muita discussão judiciária, firmou-se o entendimento inicial de que não bastava o preço presente no código de barras, nem mesmo se for acompanhado por preço afixado em prateleira, devendo o mesmo estar presente de forma adequada e clara em cada produto. É o que se percebe do Mandado de Segurança nº 5.986-DF, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça3:
CÓDIGO DE BARRAS. AFIXAÇÃO DO PREÇO NOS PRODUTOS. É direito do consumidor a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, 2
CALDAS, Cadu. Produtos com embalagens semelhantes e pesos diferentes confundem clientes na hora da compra. Zero Hora, São Paulo, 30 set. 2013. Folha Economia. 3 STJ. 5.986-DF. Rel. Min. Garcia Vieira. j. 13 out. 1999.
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também disponibiliza o preço dos produtos nas prateleiras. Mesmo dessa forma, ocorrem
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FIDΣS com especificação do preço. É muito comum nos supermercados o registro da mercadoria por preço superior ao que consta nas prateleiras ou gôndolas. Como se trata de várias mercadorias, o consumidor, ao passar no caixa, geralmente não se lembra do preço dos produtos. As irregularidades detectadas com o uso do sistema de código de barras levaram o administrador público a reconhecer a ineficácia no cumprimento da exigência contida na Lei n.º 8.078/90, arts. 6º, III, 30 e 31, passando a exigir a obrigatoriedade da afixação dos preços no produto. Assim, os donos de supermercados devem fornecer ao consumidor, além do código de barras e do preço nas prateleiras, a afixação do preço em cada produto. Só assim se estaria atendendo à determinação da citada lei. Com essas considerações, a Seção, prosseguindo no julgamento, denegou a segurança. Na sessão foram julgados vários processos sobre a mesma questão, todos com o mesmo resultado.
Apesar do entendimento judicial à época defender a melhor situação para o consumidor, eis que surge a Lei Federal n° 10.962/2004 dispondo sobre a oferta e as formas de afixação de preços de produtos e serviços para o consumidor. De acordo com o citado dispositivo, nos casos de utilização de código referencial ou de barras, o comerciante deverá expor, de forma clara e legível, junto aos itens expostos, informação relativa ao preço à vista do produto, suas características e código4. Além disso, na impossibilidade de afixação de preços é permitido o uso de relações de preços dos produtos expostos, desde que de forma escrita, clara e acessível ao consumidor5 (art. 3º). Compreende-se que, apesar de facilitar a logística do fornecedor e de a própria Lei prever mecanismos de minimização do impacto ao consumidor, tais como a obrigatoriedade
que o consumidor deverá pagar o menor preço no caso de divergência de preços entre o sistema de informação e os preços utilizados pelo estabelecimento (art. 5º)7, houve um retrocesso na busca pela clareza e precisão da informação, resultando, inclusive, em uma guinada jurisprudencial, conforme se verifica do cotejo do Recurso Especial 813.626, julgado em 2009, pontuando a desnecessidade de etiquetagem individual dos produtos8:
CÓDIGO. BARRAS. ETIQUETA. PREÇO. Com a entrada em vigor da Lei n. 10.962/2004, admitem-se várias maneiras de divulgar o preço e demais informações sobre os produtos postos à venda. Essa lei, apesar de superveniente, tem influência 4
art. 2º, parágrafo único da Lei Federal nº 10.962/2004 art. 3º da Lei Federal nº 10.962/2004 6 art. 4º da Lei Federal nº 10.962/2004 7 art. 5º da Lei Federal nº 10.962/2004 8 STJ. REsp 813.626-MG. Min. Rel. Eliana Calmon. j. 01/10/2009. 5
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de disponibilização de leitoras de código de barras em locais de fácil acesso6 e a previsão de
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FIDΣS no julgamento da causa e deve ser considerada, mesmo de ofício, pelo STJ. Dessa forma, no caso, o supermercado recorrente não é mais obrigado a colocar etiquetas individuais informativas do preço em todos os produtos que vende, visto que adota o sistema de código de barras (art. 2º, II, parágrafo único, da referida lei). Precedentes citados: REsp 663.969-RJ, DJ 2/6/2006; REsp 614.771-DF, DJ 1º/2/2006, e REsp 688.151-MG, DJ 8/8/2005.
Apesar de o CDC prever que as informações a respeito de quantidade e preço devem ser demonstradas de forma adequada e clara, a legislação pátria se omite a respeito de uma técnica bastante eficiente: a informação de preço por unidade de medida. É fácil perceber que, ao colocar à disposição do consumidor a possibilidade de comparar em números absolutos, por exemplo, o preço do litro de um produto A e de um produto B, ainda que vendidos em embalagens que comportem diferentes volumes, a decisão acerca de qual produto levar será tomada pelo cidadão com maior rapidez e tendo por base o melhor custo x benefício. Como uma melhor solução ao consumidor, podemos recorrer a legislações estrangeiras. A Lei n° 24.240, alterada pela Lei n° 26.361 é responsável por normatizar a defesa do consumidor na Argentina. Seu art. 4° é o equivalente ao nosso art. 6°, III, determinando a certeza, clareza e detalhamento da informação9. Regulamentando essa Lei, temos as Resoluções n° 55/2002 e 87/2003 da Secretaria da Competência, Regulação e Defesa do Consumidor do Ministério da Produção da Argentina. As normas argentinas descrevem com bastante clareza a forma de apresentação da informação referente à quantidade e preço do
O sistema de exibição de preços por unidade de medida é uma grande evolução no que diz respeito à homogeneidade e transparência da informação aos consumidores. As informações são dispostas de forma a não haver dúvida quanto a que produto é mais vantajoso na relação quantidade/preço, restando ao consumidor preocupar-se apenas em analisar as diferenças de qualidade. Através desse sistema consegue-se uma maior agilidade nas compras, 9
ARGENTINA. Ley nº 24.240. Artículo 4º — Información. El proveedor está obligado a suministrar al consumidor en forma cierta, clara y detallada todo lo relacionado con las características esenciales de los bienes y servicios que provee, y las condiciones de su comercialización. La información debe ser siempre gratuita para el consumidor y proporcionada com claridad necesaria que permita su comprensión. 10 ARGENTINA. Resolución 87/2003. Artículo 2º — A los efectos de dar cumplimiento a lo expresado en el Artículo 1º, se entenderá por "precio por unidad de medida", al precio final que efectivamente debiera pagar el consumidor por UN (1) kilogramo (Kg), UN (1) litro (I o L), UN (1) metro (m), UN (1) metro cuadrado (m2) ó UN (1) metro cúbico (m3) del producto o una sola unidad de la magnitud que se utilice en forma generalizada y habitual en la comercialización de productos específicos. En el caso de presentaciones cuyo contenido no supere los CINCUENTA (50) gramos (g) o mililitros (ml), la referencia al precio por unidad de medida deberá hacerse a los CIEN (100) gramos (g) o mililitros (ml).
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produto10.
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FIDΣS favorecendo inclusive os consumidores hipervulneráveis, por ser desnecessário a realização de cálculos elaborados ou a utilização de calculadoras. Esse sistema mostra sua grande importância e eficácia quando o aplicamos a casos concretos vivenciados no Brasil. Com frequência identificamos produtos que sofreram alterações a menor em sua quantidade, e mantiveram o preço, mas raramente percebemos tal modificação, pois os fornecedores modificam a embalagem e informam com enormes letras o que menos nos interessa: “Nova Embalagem”, deixando em letras minúsculas a informação mais importante: a diminuição de quantidade. Exemplos clássicos de tais casos é a diminuição de peso de pacotes de biscoito e de metragem de papel higiênico, sendo esse último caso diretamente tratado na resolução argentina11. Importante perceber que esse sistema já é adotado há anos, não apenas na Argentina, mas em outros países como Portugal12 e na própria União Europeia13. Não é compreensível a inércia normativa brasileira, com um Código de Defesa do Consumidor considerado evoluído, mas que não tem acompanhado com eficiência as novas formas de proteção. É de suma importância que a informação a respeito da quantidade do produto esteja diretamente ligada à informação do preço, resultando em uma informação padronizada de preço/quantidade. Infelizmente, atualmente em nosso país não existe uma norma que discipline especificamente tal matéria. Em verdade, assim como a legislação argentina, o Código brasileiro não precisaria ser alterado para se adaptar ao sistema de exibição de preços por unidade de medida, pois sua codificação já abarca tal sistema de forma abstrata14. Seria necessária apenas uma
de tão importante sistema para o consumidor.
3.2 Informação sobre composição
Outra informação que o CDC obriga a ser fornecida de forma clara e adequada é a relativa à composição dos produtos. Essa informação se mostra importante, em especial, quando se trata da saúde do consumidor. Afinal, muitos indivíduos sofrem de doenças que os 11
ARGENTINA. Resolución 87/2003. Artículo 3º — Quienes comercialicen papel higiénico en rollos, a los efectos de cumplimentar lo establecido en el Artículo 1º de la Resolución exS.C.D.y D.C. Nº 55/2002, cuyo texto se sustituye por el texto del Artículo 1º de la presente resolución, deberán utilizar como unidad de medida UN (1) metro cuadrado (m2). En el caso de los papeles higiénicos en rollos cuya presentación sea troquelado en hojas, deberá indicarse además la cantidad de hojas contenidas por unidad de producto. 12 PORTUGAL. Decreto-Lei 138/90; Decreto-Lei 162/99; Decreto Executivo 33/00. 13 UNIÃO EUROPÉIA. Directiva 98/6/CE do Parlamento Europeu. 14 arts. 31 e 6°, III do Código de Defesa do Consumidor
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regulamentação infralegal, por ato do Poder Executivo, para que se concretizasse a utilização
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FIDΣS impedem de ingerir determinadas substâncias, a exemplos dos diabéticos, portadores de doença celíaca, obesos, intolerantes à lactose, alérgicos etc. Certas substâncias são conhecidamente causadoras de alergia a uma expressiva parcela da população, tais como os corantes e crustáceos. Dessa forma, produtos que contenham substâncias como essas devem trazer informações claras a esse respeito, não se admitindo pequenas observações no canto da embalagem. Essa informação deve estar presente em local de destaque, mesmo que se trate de produto que, originalmente, não possua as citadas substâncias, mas que possa conter vestígios das mesmas. Não raro encontramos em pequenas letras, por exemplo, a observação de que um pacote de biscoito de chocolate “pode conter traços de amendoim”, devido à reutilização da máquina. Como forma de consolidação da falta de informação adequada aos consumidores, temos as informações relativas aos produtos light, diet e, mais recentemente, zero. Apesar de tais informações serem mostradas de forma clara e chamativa nas embalagens, até mesmo porque o mercado consumidor de tais produtos vem crescendo, e de serem criados até mesmo setores e lojas específicas, poucos sabem a real diferenciação entre os três tipos de produto. Para a maioria da população, os produtos lights são produtos que contém pouca ou nenhuma caloria. Já os produtos diets são tidos como aqueles que possuem menos ou nenhum açúcar. Os produtos tidos como zero seriam então aqueles em que não haveria a presença de açúcar ou caloria. De acordo com a Portaria n° 27/98 da Agência de Vigilância Sanitária Nacional, o termo “light” pode ser utilizado quando for cumprido o atributo “baixo”, não só para o caso
valores baixos podem ser de calorias, açúcares, gorduras totais, colesterol, sódio, proteínas, fibras alimentares e vitaminas e minerais. Ademais, tal Portaria também estabelece que o termo “zero” pode ser utilizado quando for cumprido o atributo “não contém”. Entretanto, ao se analisar os critérios para enquadramento do produto no atributo de “não contém”, percebemos que é admitida a presença de substâncias ou calorias em níveis bastante reduzidos. Como exemplo, no caso do valor energético podemos ter um máximo de 4 kcal / 100 g (sólidos)ou de 4 kcal / 100 mL (líquidos). Essas induções ao erro do consumidor, por parte de produtos que possuem expressões como “free”, “livre”, “sem”, “zero”, “não contém” ou “isento”, mesmo que regulamentada por portaria, já foram alvo de decisões do
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de calorias, como de algumas substâncias. Isso porque, segundo essa mesma portaria, os
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FIDΣS STJ que reconheceram o direito do consumidor mesmo que o fornecedor tenha se baseado na norma regulamentar15:
CONSUMIDOR. DIREITO À INFORMAÇÃO. A questão posta no REsp cinge-se em saber se, a despeito de existir regulamento classificando como "sem álcool" cervejas que possuem teor alcoólico inferior a meio por cento em volume, seria dado à sociedade empresária recorrente comercializar seu produto, possuidor de 0,30g/100g e 0,37g/100g de álcool em sua composição, fazendo constar do seu rótulo a expressão "sem álcool". A Turma negou provimento ao recurso, consignando que, independentemente do fato de existir norma regulamentar que classifique como sendo "sem álcool" bebidas cujo teor alcoólico seja inferior a 0,5% por volume, não se afigura plausível a pretensão da fornecedora de levar ao mercado cerveja rotulada com a expressão "sem álcool", quando essa substância encontra-se presente no produto. Ao assim proceder, estaria ela induzindo o consumidor a erro e, eventualmente, levando-o ao uso de substância que acreditava inexistente na composição do produto e pode revelar-se potencialmente lesiva à sua saúde. Destarte, entendeu-se correto o tribunal a quo, ao decidir que a comercialização de cerveja com teor alcoólico, ainda que inferior a 0,5% em cada volume, com informação ao consumidor, no rótulo do produto, de que se trata de bebida sem álcool vulnera o disposto nos arts. 6º e 9º do CDC ante o risco à saúde de pessoas impedidas do consumo.
A Portaria 29/98 da ANVISA trata dos alimentos para fins especiais, tidos como alimentos dietéticos. Assim como no caso dos produtos lights, os produtos diets não se
ser caracterizado como tal, nem sempre é necessário que inexista determinada substância, podendo estar presente uma quantidade mínima aceitável. Por exemplo, um máximo de 0,5g de gordura total por 100g ou 100mL do produto final a ser consumido. O que percebemos, portanto, é que nenhum dos três conceitos é claramente informado ao consumidor, podendo ocasionar sérios problemas, por exemplo, a um indivíduo diabético que adquire um produto diet acreditando que o mesmo está livre de açúcar, quando na verdade a substância que teve seu valor reduzido foi o sódio. O próprio CDC, em seu art. 31 prescreve que a oferta e apresentação devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre a composição e os riscos que os produtos apresentam à saúde e segurança dos consumidores.
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restringem a apenas uma substância, o açúcar como imaginado. Além disso, para um produto
STJ. REsp 1.181.066-RS, Rel. Min. Vasco Della Giustina j. 15.3.2001. DJe: 31.3.2011
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FIDΣS Entendemos, ainda, que a responsabilidade por tais esclarecimentos também cabe ao Poder Público, através da interpretação do art. 4°, IV do CDC. Por fim, informação bastante importante e discutida juridicamente é a relativa à indicação de presença de glúten nos alimentos. Essa informação se mostra vital para os indivíduos que sofrem de doença celíaca (A doença celíaca (DC) é autoimune, sendo causada pela intolerância permanente ao glúten, principal fração proteica presente no trigo, no centeio, na cevada e na aveia, e se expressa por enteropatia mediada por linfócitos T em indivíduos geneticamente predispostos), pois o glúten vira uma espécie de cola na parede do intestino, dificultando a absorção de alimentos. Assim como nos demais casos de agressões ao direito de informação abordadas nesse tópico, a informação a respeito da presença de glúten nos alimentos vem se mostrando inadequada, por estar presente apenas em locais de difícil visualização. Além disso, apesar de a própria Lei 10.674/2003, a Lei do Glúten, determinar apenas a obrigatoriedade da presença da expressão “contém glúten”16, a própria jurisprudência direciona-se no sentido de que a simples presença de tal expressão na embalagem dos alimentos se mostra insuficiente a informar aos consumidores acerca dos prejuízos que a substância pode causar aos portadores da doença, sendo necessária a advertência quanto aos eventuais malefícios do alimento17. Decisão interessante foi a tomada pelo Poder Legislativo do Estado de Santa Catarina, ao elaborar lei que determinou a aglomeração de produtos sem a presença de glúten em um mesmo local nos mercados18, facilitando a identificação dos mesmos. Citada Lei, após analisada em Ação Direta de Inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, por mesmo sendo de iniciativa do Legislativo19.
3.3 Informações sobre características
Continuando a análise das várias formas que a informação pode assumir em uma relação de consumo, chegamos à informação a respeito das características do produto. Aqui temos uma aproximação entre os arts. 31 e 6°, III do CDC.
16
Art. 1°. Todos os alimentos industrializados deverão conter em seu rótulo e bula, obrigatoriamente, as inscrições "contém Glúten" ou "não contém Glúten", conforme o caso. 17 STJ. REsp 722.940 – MG. Rel. Min. Castro Meira j. 24/11/2009. DJe 23/04/2010. 18 Lei 12.385/2002 - SC. Art. 6º. Os supermercados e hipermercados deverão expor aos consumidores, em um local ou gôndola, todos os produtos alimentícios especialmente elaborados sem a utilização de glúten. 19 STF. ADin 2730-SC. Rel.Min. Cármen Lúcia j. 05/05/2010. DJe 20/05/2010.
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discutir-se a competência para iniciativa legal, teve mantido tal artigo como constitucional,
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FIDΣS Por vezes nos deparamos com ofertas e promoções de produtos nos supermercados. Nesses casos, de acordo com o art. 31 do CDC, a oferta e apresentação devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características e prazo de validade do produto. Já o art. 6°, III do CDC prescreve como direito básico do consumidor a informação a respeito das características do produto. Podemos tomar como exemplo duas situações corriqueiras de promoções de produtos. A primeira diz respeito à venda de produtos com pequenos defeitos, os quais não poderiam ser alegados como vício do produto pelos consumidores. Para que o fornecedor possa se resguardar quanto a essa garantia e para que o consumidor não seja ludibriado, deve estar presente informação de forma clara e adequada acerca de todos os defeitos presentes no produto ofertado, pois apenas esses estarão vinculados à oferta, podendo o consumidor responsabilizar os fornecedores por vícios do produto nos demais casos20. O segundo exemplo é o caso de produtos ofertados em promoção devido à proximidade de expiração do prazo de validade. Nesses casos, frequentemente essa importante informação é omitida e os consumidores findam por adquirir grandes quantidades de mercadoria, realizando verdadeiros estoques para aproveitar o baixo preço, não se atentando de que os produtos estarão impróprios para consumo em pouco tempo. Apesar de o comerciante não estar previsto no rol do art. 12 do CDC, nos resta claro que o mesmo deverá ser objetivamente responsabilizado pela venda de produtos com informações insuficientes a respeito da oferta e das suas características, como no caso de venda de pescado exposto em gelo com data de validade próxima, impossibilitando o consumidores21. Ponto que também merece destaque é a questão dos produtos que apresentam mais de um prazo de validade: um relativo à conservação do produto fechado e outro após a abertura do mesmo. Via de regra, tal informação não é prestada ao consumidor na forma devida, constando somente das embalagens dos produtos em posição de pouco destaque, o que pode levar o adquirente de tais produtos a ingerir alimentos já impróprios para o consumo sem que tenha ciência do fato. Situação similar é a dos produtos que exigem um tipo diferente de conservação após a abertura da embalagem, em tais casos o pouco destaque dado a esta informação também pode ser notado e pode vir a prejudicar o adquirente quando do consumo do alimento. Em 20 21
art. 18 do Código de Defesa do Consumidor TJSP – Apelação 9157713-41.2007.8.26.0000 – Acórdão 4798366 – DJESP 11.01.2011.
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congelamento do mesmo, sem que isso tenha sido ostensivamente informado aos
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FIDΣS todas as situações relatadas, entendemos que as informações em questão devem estar presentes de forma clara e adequada, impossibilitando o que o consumidor se engane quanto à forma de conservação e o prazo de consumo.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O direito à informação é essencial para uma relação de consumo saudável e célere. Graças às diversas previsões no CDC conseguiu-se minimizar a omissão informativa que reinava no mercado de consumo anteriormente, onde os fornecedores disponibilizavam apenas as informações que lhe aprouvessem. Entretanto, percebemos que o direito à informação vem sendo burlado, utilizando-se, os fornecedores, de má-fé para a consecução de seus objetivos, como o aumento das vendas, sem preocuparem-se com os consumidores. Além disso, o próprio Poder Público peca em não normatizar situações que serviriam de égide aos consumidores, proporcionando-lhes uma maior defesa e segurança. Os fornecedores devem respeitar o ideal buscado pelo CDC, e não aproveitar-se de interpretações distorcidas e desfavoráveis ao consumidor, com fins de alçar benefícios próprios. Para que isso ocorra, o Poder Executivo deve aumentar a fiscalização exercida, regulando e regulamentando as situações mais corriqueiras, não apenas aguardando que os conflitos sejam pacificados pelo Poder Judiciário.
de uma maior participação da Administração Pública em valer-se de seu poder regulamentar, sem prejuízo de uma ampla e eficiente fiscalização do cumprimento de suas normas.
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Nesta senda, a efetiva defesa do consumidor só poderá ocorrer com a materialização
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FIDΣS CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Direito do Consumidor. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009.
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TARTUCE, Flávio. Manual de Direito do Consumidor: direito material e processual. São
THE RIGHT TO INFORMATION ON CONSUMER RELATIONS INVOLVING FOOD WHOLESALE AND RETAIL: CHARACTERISTICS OF COMPOSITION, FEATURES, PRICE AND QUANTITY OF PRODUCT
ABSTRACT This article demonstrates the precariousness of the information provided to the consumer in relation to food consumption, such as the composition, features, price and quantity of products, by bringing examples of applications in Comparative Law accordingly. Reports situations in which providers make use of dishonesty to distort the
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Paulo: Método, 2012.
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FIDÎŁS legal sense, harming consumers. Demonstrates the inertia of government in producing mechanisms that maximize consumer protection. Finally, it indicates that the protective mantle established by the Constitution and the Code of Consumer Protection is often insufficient to ensure that consumers are preserved, necessitating more precise regulation. Keywords: Consumer law. Relationship of consumption. Food. Right
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to information.
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FIDΣS Recebido 12 fev. 2014 Aceito 18 mar. 2014
O DIREITO ENTRE O ESTADO E O ESTADO DE DIREITO: REVISITANDO A TEORIA DO DIREITO E DO ESTADO DE LEÓN DUGUIT Ian Pimentel Gameiro
RESUMO O artigo objetiva oferecer uma leitura ampla e detalhada da pouco estudada obra de León Duguit. Inicia, pois, com a reconstituição dos antecedentes teóricos que sustentam o seu pensamento, a saber, as teorias de Herbert Spencer e Émile Durkheim, e segue, a partir daí, com a sua concepção do Estado, do Direito, e do Estado de Direito. A teoria de Duguit, no contexto atual em que se questiona o papel do Estado e do Direito a partir de fenômenos como o constitucionalismo multinível e o cosmopolitismo societal, pode oferecer respostas
Palavras-chave: Estado. Direito. Estado de Direito.
1 INTRODUÇÃO O Direito entre o Estado e o Estado de Direito propõe-se a revitalizar antiga, porém atualíssima, teoria do Estado, do Direito, e da relação que estes dois elementos da vida social mantém entre si.
Bacharel em Direito (2008-2013) pela Universidade da Amazônia - UNAMA. Mestrando em Ciências JurídicoPolíticas, menção em Direito Constitucional (2013-2015) pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal) - FDUC. Advogado.
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interessantes e daí a necessidade de revitalizá-la.
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FIDΣS O tema se justifica não só porque se ocupa do pensamento de León Duguit, mas, sobretudo, porque revigora no contexto específico do constitucionalismo multinível, interconstitucionalidade, multiculturalidade e cosmopolitismo a discussão em torno da concepção do Estado, do seu real papel social e da sua relação de subordinação com o Direito. Isso implica, pois, em se considerar necessário reconhecer o contexto jurídicopolítico e social em que está inserta a doutrina de Duguit: a França da segunda metade do século XIX até o primeiro quartel do século XX. Aliás, a boa leitura da sua obra, a sua compreensão
adequada,
implica
em
reconhecer
as
influências
dessa
específica
condicionalidade histórico-social sobre o seu pensamento. Isso porque Duguit acompanhou de perto uma França efervescente politicamente. Uma França que se afirmava republicana, como o Estado da coisa pública, pelo menos sob o ponto de vista espiritual, mas que não conseguia se sustentar politicamente como tal; um Estado que basicamente alternava entre curtas Repúblicas e longas monarquias. Duguit se afirmava republicano, e toda sua construção doutrinária do Estado e do Estado de Direito tinham como objetivos se opor às teorias autoritárias da Herrschaft que prosperavam na Alemanha e se prestavam, de certo modo, a sustentar o poder político como direito subjetivo dos que estavam à testa do ente estadual. É desse ponto de partida que se deve ler Duguit, e partindo dele, então, traçar-se-á as linhas da sua concepção do Estado e do Estado de Direito, a partir do Direito, permeando a exposição com a reconstrução dos diálogos que estabeleceu com Spencer e Durkheim, os teóricos que lhes forneceram as bases fundamentais sobre as quais se assenta seu pensamento.
da história, o Estado, assim entendido como produto cultural e político da humanidade, vai resistindo, e, portanto, buscar no passado as respostas para as dificuldades presentes, marcadamente as que revigoram os questionamentos em torno da sua real função social em um contexto político cada vez mais condicionado às exigências jurídicas do plano internacional se afigura alternativa viável. Não constitui objetivo desse artigo, no entanto, cumpre logo advertir, oferecer a partir de Duguit as respostas para as inquietudes e complexidades contemporâneas envolvendo a estatalidade. É seu objetivo, na verdade, instigar o leitor a refletir e encontrá-las considerando agora a proposta formulada por esse autor em tempo igualmente conturbado na história do Estado.
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A despeito das inúmeras “certidões de óbito” que lhe foram sendo passadas ao longo
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FIDΣS 2 ANTECEDENTES TEÓRICOS
A concepção de Estado e de Estado de Direito desempenha papel fundamental na Teoria do Direito proposta por León Duguit. Melhor dizendo: só se explica qual sua concepção de Estado e de Estado subordinado ao Direito perpassando, por imperiosa necessidade metodológica, pela sua compreensão acerca do Direito e de seu fundamento. Como Duguit é pouco estudado no contexto brasileiro, seja pela Filosofia do Direito no que concerne à sua concepção da normatividade, seja pela dogmática constitucional no que se refere à sua concepção de Estado e de Estado de Direito, quase nada se sabe sobre os precedentes teóricos que esteiam toda a sua doutrina, quer seja a do Estado quer seja a do Direito. Assim, em obséquio ao apego e rigor científico exigidos pela proposta do autor, é justo iniciar esse percurso de reconstrução a partir dos teóricos que forneceram a Duguit as bases sobre as quais sustenta o seu pensamento e com quem este dialogou intensamente. No entanto, uma nota preliminar é importante: a razão pela qual propositalmente excluiu-se Jean-Jacques Rousseau e o seu republicanismo liberal do objeto de análise, a despeito de sua influência sobre o autor, só se justifica porque tal concepção é adotada por Duguit na perspectiva da filosofia política. Isto é, o autor não dialoga diretamente com Rousseau; não utiliza suas ideias para fundamentar um dado pensamento. Duguit adota a ideia da república rousseauniana e a defende como um ideal político, como concepção politicamente adequada da vida em
Assim como poderia entender que a monarquia é a forma política adequada de Estado por favorecer tais ou quais benefícios à sociedade, e construir uma tese defendendo tal forma de constituição da unidade política, Duguit o faz em relação à República. Daí porque se diz que a ideia de república em Duguit é assumida na perspectiva da filosofia política, uma vez que dependente, por isso mesmo, da sua concepção da vida e da boa vida em sociedade.
2.1 O Organicismo Evolucionista de Herbert Spencer
Se os séculos XVI e XVII foram os séculos das ciências exatas, das transformações matemáticas, físicas e astronômicas, o século XVIII sem dúvida foi o das ciências biológicas (LARAIA, 2005, p. de internet). Os grandes descobrimentos sobre a natureza, a revelação
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sociedade e do Estado.
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FIDΣS científica de algumas de suas leis e o peso intelectual que detinham os seus investigadores ditaram os rumos da Ciência naquele período. As explicações sobre a vida antes dadas numa perspectiva algorítmica passaram a ser oferecidas na perspectiva naturalística/biológica. E a vida em sociedade não tardou em ser também analisada segundo esse ponto de vista. O marco teórico que sustentou o organicismo evolucionista enquanto teoria sociológica fora, inquestionavelmente, o estudo acerca da evolução biológica das espécies lançado por Charles Darwin, e vários foram aqueles que se serviram das bases teóricas lançadas por Darwin para explicar a vida em sociedade. Foi com Herbert Spencer, no entanto, que a escola orgânica se destacou. A ideia de Spencer (COSTA, 2005, p.70), representando aqui o núcleo em torno do qual girava o pensamento da escola orgânica evolucionista, consistia basicamente em reconhecer a sociedade como um organismo vivo dotado de sistemas e funções específicas, interdependentes e dispostas com vistas à manutenção do todo social, que teria evoluído do mais primitivo ao mais complexo “[...] através de um processo de diferenciação estrutural apoiado na superioridade de adaptação através da seleção natural.” (BUTTEL, 1992, p. de internet). Orgânica a sociedade porque estaticamente identificada suas funções pelos diversos, porém conexos, órgãos que a compõe; evoluída haja vista ser dotada de órgãos mais adaptados estruturalmente às suas funções em razão da seleção natural pela qual passaram e, consequentemente, porquanto mais integrados ao complexo social em razão da sua maior
Por ora é a noção que importa ter presente, mas ver-se-á adiante que a ideia vendida pela escola orgânica evolucionista fora fundamental para que Duguit desenvolvesse sua concepção do Estado.
2.2 A Sociologia Experimentalista de Émile Durkheim
Embora Durkheim fosse adepto com reservas do organicismo defendido por Spencer (BUTTEL, 1992, p. de internet), assim como Marx, Engels (SOARES, 2009, p. 65) e praticamente todos os teóricos clássicos, outras foram as suas contribuições para a ciência, particularmente para a sociologia: a noção de solidariedade e a concepção do fato social. Do organicismo e da sua ideia fundante de que a sociedade é segmentada em órgãos com funções específicas, porém interconexas, Durkheim assentou sua concepção de
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especialização.
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FIDΣS solidariedade como fundamento da lei social que impelia os homens a se acharem vinculados uns com os outros e com o todo. Da psicologia experimental de Wilhelm Wundt (ARAÚJO, 2009, p. de internet), de quem foi aluno, Durkheim se serviu do método da observação para constatar que o comportamento humano não era moldado somente por regras escritas ou prescrições explícitas; um tal regramento comportamental implícito também exercia sua influência sobre o homem (SABADELL, 2010, p. 47). A construção de Durkheim se inicia, pois, com essas duas constatações. A primeira consiste em perceber que o homem não se basta; está condenado a uma vida gregária, mais ou menos intensa conforme se ache em maior ou menor grau de relacionamento com os demais, vínculo ao qual se referiu como solidariedade social em seu célebre A divisão do trabalho social (DURKHEIM, 1999, p. 85-109). A segunda, pois, resulta da percepção de que essa inter-relação entre os homens é determinada por um conjunto de condições, de maneiras, de pensamentos, enfim, por um conjunto de normas, prescritas e não prescritas, que exercem certa influência sobre os seus comportamentos, circunstância que denominou de fato social (DURKHEIM, 2007, p. 1-14). Durkheim articula, então, essas duas constatações para afirmar que se uma dada sociedade se mantém vinculada, e os seus órgãos assim se relacionam, tendo como nota de coesão os fatos sociais dos costumes, da tradição, da religião ou da mera semelhança, o tipo de solidariedade que lhe é particular é o da solidariedade mecânica.
Tais sociedades impõem aos seus membros deveres particularmente rígidos. Todos
da tradição e da religião e o grupo organiza-se como uma verdadeira comunidade, fundamentada em relações de parentesco e na preservação da propriedade coletiva. (SABADELL, 2010, p. 48)
Se, por outro lado, essa mesma sociedade passa a se vincular, e os seus órgãos a se relacionar, a partir do fato social do trabalho, especializado e interdependente, estará presente em causa, então, a solidariedade orgânica.
A sociedade moderna caracteriza-se, ao contrário, pela solidariedade orgânica (ou por dessemelhança). Trata-se de uma sociedade complexa, fundamentada na divisão do trabalho, segundo o princípio da especialização. O indivíduo não se vincula diretamente a valores sociais, não está submetido a liames tradicionais, a obrigações religiosas ou comunitárias. A solidariedade cria-se através de redes de
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devem respeitar as regras estabelecidas pela autoridade. Os valores sociais decorrem
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FIDΣS relacionamento entre indivíduos e grupos, onde cada um deve respeitar as obrigações assumidas por contrato. (SABADELL, 2010, p. 49)
À maior interdependência entre os órgãos caracterizadora da sociedade mais complexa, Durkheim deu o nome de solidariedade orgânica; à menor interdependência típica da sociedade menos complexa o autor chama de solidariedade mecânica (DURKHEIM, 1999, p. 85-109). A ideia de solidariedade social e da sua dupla distinção, como originalmente pensada por Durkheim, será fundamental para Duguit desenvolver a sua teoria acerca do que constitui para si o fundamento do Direito, a sua concepção sobre a normatividade e como ela se constrói, e o porquê, ao fim e ao cabo, deve o Estado se submeter ao Direito.
3 EVOLUÇÃO, DIFERENCIAÇÃO SOCIAL E A FORMAÇÃO DO ESTADO
As bases teóricas fincadas em ensinamentos da sociologia de Durkheim, de Spencer e de todos os outros que de uma ou outra forma se perfilhavam à corrente do organicismo evolucionista e do experimentalismo sociológico dos séculos XVIII e XIX, forçosamente fizeram Duguit incluir-se, segundo classificação epistemológica do Direito e do pensamento jurídico, na escola sociológica e antiformalista do Direito. É sociológica porque nega, de um lado, a autonomia do Direito e do pensamento
predominantemente sob o prisma do fato social; antiformalista, de outro, porque repudiava a lei como forma e questionava “[...] o rigor conceitualista e o distanciamento entre a
teoria
jurídica da época e a dinâmica social” existente (DRI, 2010, p. de internet). Essa é a pedra de toque do modo de pensar do autor e nesse contexto é que se insere a sua teoria do Estado. A doutrina de Duguit rejeita de modo veemente a ideia de que o Estado constitui-se como entidade coletiva autônoma e soberana, que existe por si e para si sem considerar que “[...] a sociedade é formada de indivíduos e de que só estes possuem realidade concreta em razão de cujas exigências a coletividade se organiza.” (REALE, 2002, p. 440). Billier e Maryioli (2007, p. 270) afirmam que “O Estado, começa ele por observar, não existe sob a forma de poder público ou de soberania. Estes são conceitos vazios,
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jurídico e o explica a partir dos esquemas e métodos próprios da sociologia,
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FIDΣS desprovidos de qualquer referência semântica, por detrás dos quais está a diferenciação entre os governantes e governados.” Para construir sua teoria do Estado Duguit retoma, então, como se disse antes, a ideia básica do organicismo evolucionista, segundo a qual a sociedade se assemelharia a um organismo vivo dotado de sistemas e funções específicas e interdependentes que teria evoluído do mais primitivo ao mais complexo por meio da seleção natural pela qual foram selecionados os órgãos mais adaptados estruturalmente às suas funções. E afirma: não se trata o Estado de uma ficção jurídica; tampouco de pessoa coletiva e soberana. O Estado nada mais é do que o resultado de um processo diferencial, de natureza social e histórica, pelo qual distinguiram-se os fracos dos fortes. É, pois, uma diferenciação provocada pela própria sociedade, que se explica como produto da evolução social, e cujo produto (o Estado) necessita receber uma legitimação somente atribuível pela própria comunidade, por meio do Direito, tendo em conta a necessidade de reforço ou proteção da solidariedade social, da interdependência social (DUGUIT, 1903, p. 01). Isso é claro em seu pensamento, conforme exposto:
Para nos conformar com o hábito, e porque é cômodo, utilizaremos ordinariamente a palavra Estado; fica bem entendido, porém, que, no nosso modo de pensar, esta palavra não designa, em absoluto, essa pretensa pessoa coletiva e soberana, que não passa de um fantasma, mas os homens reais que de fato são os detentores da força.(DUGUIT, 1923, p. 31)
detentoras da maior força em virtude da natural evolução social dos indivíduos, julga ser necessário legitimar-se, pelo Direito, em benefício da solidariedade social e com o escopo de evitar a sua utilização arbitrária, a força maior e superior da qual esse específico corpo de indivíduos se vale. Daí se extrai, então, dois pontos capitais da Teoria do Estado de Duguit. O primeiro diz quanto à natureza do poder político, da força maior que faz o todo prestar obediência a alguns, e se traduz em palavras da seguinte forma:
O poder governamental existe, respondeu ele, não há dúvida, e não pode deixar de existir. Eu tão-somente nego que seja um direito. Afirmo que aqueles que detêm esse poder detêm um poder de fato e não um poder de direito. Dizendo que eles não têm o poder público, quero dizer que eles não têm o direito de formular ordens e que
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Isto corresponde a dizer que Duguit, considerando o Estado como o grupo de pessoas
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FIDΣS as manifestações de sua vontade não se impõem como tais aos governados. (DUGUIT apud REALE, 2000, p. 77)
A segunda, pois, diz quanto ao fato de o Estado somente legitimar-se quando utilizar sua maior força em benefício da sociedade, reforçando ou protegendo a solidariedade orgânica ou interdependência entre os indivíduos. Essa noção, aliás, é fundamental para que se compreenda sua Teoria do Direito.
4 REGRAS MORAIS, REGRAS ECONÔMICAS E A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO DIREITO
Como se viu, a noção de evolução social e diferenciação dos indivíduos em dada sociedade, própria do organicismo evolucionista, foi fundamental para que Duguit constatasse a verdadeira realidade que estava associada ao termo Estado: grupo de pessoas que detém a maior força ou poder no âmbito de certo contexto político. E dessa ideia de evolução e diferenciação social, temperada com a doutrina de Durkheim acerca da divisão do trabalho e da dicotomia essencial que estabelece em relação à solidariedade social é que Duguit parte para a elaboração da sua concepção do Direito, do que constitui seu fundamento e como a normatividade surge ou se forma na sociedade. O autor deixa, aliás, textualmente expressa sua vinculação ao pensamento de
É Durkheim, em seu belo livro “A divisão do trabalho social”, o primeiro a determinar a natureza íntima da solidariedade social e a mostrar suas formas essenciais: a solidariedade por similitudes e a solidariedade por divisão do trabalho; ele denomina a primeira, também, de solidariedade mecânica, e a segunda de solidariedade orgânica. (DUGUIT, 1923, p. 09) (tradução nossa).
Duguit inicia sua tese, então, considerando como a verdadeira razão que aproxima os homens e os obriga a viver em comunidade, a sua incapacidade para dar conta da vida, sua insuficiência em dar respostas satisfatórias a todas as necessidades quotidianas. O homem, para ele, não é uma ilha, e não tem possibilidade de ser, sob o prisma particular da sua capacidade, autossuficiente; ao contrário, a limitação da força humana é uma
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Durkheim
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FIDΣS realidade irrecusável, e qualquer teoria ou pensamento social que escape dessa consideração está invariavelmente fadada ao insucesso. Dessa trágica e inelutável condição da existência humana, Duguit extrai duas verdades para si fundamentais. Uma, a de que o homem está condenado a viver, por sua própria natureza, uma vida de comunidade, uma vida de partilha. Diz ele:
Nosso ponto de partida é o fato incontestável de que o homem vive em sociedade, sempre viveu em sociedade e não pode viver mais que não em sociedade com seus semelhantes, e que a sociedade humana é um fato primário e natural, e em maneira alguma produto ou resultado da vontade humana. Todo homem, forma, pois, parte de um grupo humano; o tem formado e formará sempre, por sua própria natureza. (DUGUIT, 1923, p. 05) (tradução nossa).
Segunda, pois, a de que na vida em sociedade, vida comunal pensada nos termos do organicismo evolucionista, considera operar-se uma natural evolução e diferenciação social, afinal de contas os indivíduos possuem interesses e predisposições diferentes, carências distintas, e vocações indeterminadas para um campo igualmente múltiplo e indeterminado de ação (REALE, 2002, p. 442). Sua concepção mesmo do Estado se assenta, como foi mostrado em tópico precedente, nessa ideia. Diante dessas duas verdades, Duguit afirma: a solidariedade é um fato social. Um fato social porque, ante a incapacidade natural do homem, impele-o, condiciona-o a uma vida
sejam supridas pelas respostas e habilidades dos outros. A vida comunal só se justifica mesmo na medida em que, reconhecendo o indivíduo sua incapacidade diante da vida e da natureza, busca em seus semelhantes as respostas e soluções das quais precisa para continuar dando curso ao seu plano de vida. Com efeito, ainda que Duguit considere a existência de comunidades cuja coesão ainda se assente em elementos particularmente rígidos como os da religião, dos costumes e da tradição, ainda assim, nessas sociedades, um nível ínfimo de divisão do trabalho terá se operado, porque mais uma vez volta-se ao fato inescapável de que nem todos poderão solucionar a integralidade dos seus problemas privados, e a solução para questões singularmente insolvíveis será buscada no próximo.
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de sociedade, de permuta com seus semelhantes, a fim de que as suas necessidades singulares
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FIDΣS Os homens distribuem-se em campos múltiplos de ação. Cada qual realiza uma tarefa, que pode estar ou não de acordo com as suas tendências naturais, mas que ele deve realizar, momentânea ou definitivamente, para poder subsistir. A atividade particular de cada homem deve harmonizar-se com as atividades dos outros, daí resultando o estabelecimento de uma divisão geral do trabalho, que é o fato fundamental da sociedade, segundo Duguit. O que constitui a sociedade e lhe dá estrutura é a divisão do trabalho (REALE, 2002, p. 442).
Assim, para Duguit, importando nesse ponto o pensamento de Durkheim, uma sociedade será mais evoluída quanto mais se operar a divisão social do trabalho, com o consectário lógico de, quanto mais especializada, mais coesos e interdependentes estarão os indivíduos. À essa interdependência entre os indivíduos, originada pela divisão e especialização do trabalho, Durkheim chamou de solidariedade orgânica e Duguit, aproveitando integralmente essa noção, a tem para si como o fundamento do Direito. A propósito, Miguel Reale traduz em exemplos a dicotomia que Durkheim estabelece em relação à solidariedade:
Solidariedade mecânica é aquela que se estabelece quando duas ou mais pessoas, tendendo a um mesmo fim, praticam a mesma série de atos. Num exemplo elementar, podemos lembrar o esforço conjugado de cinco ou dez indivíduos para levantar um bloco de granito. Este é um caso de coordenação do trabalho, que tem como resultado a solidariedade mecânica. Quando, porém, os indivíduos, para
atos, mas atos distintos e complementares, temos a divisão de trabalho orgânica, que tem como resultado a solidariedade orgânica. (REALE, 2002, p. 441-442).
Duguit considera, pois, que o Direito é a um só tempo um fato social e uma necessidade da sociedade. Um fato posto que traduz-se em um conjunto de regras sociais expressas condicionantes da vida humana; e uma necessidade porque predispõe-se vocacionalmente a regular um modo predeterminado e organizado de reação da sociedade ante a violação do seu princípio fundante, a solidariedade orgânica. Em uma sociedade especializada, fragmentada de acordo com o trabalho, cada indivíduo detém uma função social específica, um trabalho a desenvolver. E é dever de cada membro desenvolver sua função da melhor maneira possível, entregar para a sociedade a
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realizar determinados fins, para alcançar determinada meta, não praticam os mesmos
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FIDΣS melhor prestação que puder dar consideradas as suas habilidades e limitações; ao fim e ao cabo, sua atuação deve aumentar e realizar ainda mais a solidariedade orgânica. Quando o indivíduo deixa de cumprir seu papel, a sociedade especializada deixa de receber certa prestação com a qual contava, e, consequentemente, uma reação em retaliação a essa conduta transgressora deve ocorrer. O fundamento do Direito, portanto, é este: o fato incontestável da interdependência social dos membros de certa comunidade; e o seu papel consiste exatamente em estabelecer regras preordenadas de reforço da solidariedade social, de um lado, e um modo predeterminado e organizado de reação ante a ofensa à solidariedade, de outro. O Estado mesmo, tido por Duguit como o conjunto de pessoas que historicamente se diferenciaram das demais pela força, só se legitima quando, por meio das regras jurídicas, fornece aos cidadãos os serviços públicos de que necessitam para reforçar a solidariedade, a um tempo, e quando oferece proteção à solidariedade, por meio do uso juridicamente autorizado da força, pelas punições que impõe àqueles que a aniquilam de certo modo. Bem, mas se o fundamento do Direito é o fato da solidariedade orgânica e a sua razão de existir repousa na necessidade de se estabelecer um modo predeterminado e organizado de reforço e proteção à incontestável interdependência humana, no que consistiria ao fim e ao cabo o próprio Direito? Duguit responde essa questão da seguinte forma: cada sociedade possui no seu interior um modo muito particular de agir, pensar e de sentir. Esse conjunto de pensamentos, de sentimentos e de atitudes coletivas constitui um verdadeiro regramento da vida em
seja para estimulá-los, tendo-se em conta o dever de reforço à solidariedade. Foi o que Durkheim chamou de fato social (DUGUIT, 1923, p. 45-53). Esse regramento da vida social, e nisso consiste o ineditismo de seu pensamento, está escalonado em três patamares distintos segundo a intensidade do risco que a violação das suas disposições implicam à solidariedade: o das regras morais, o das regras econômicas e o das regras jurídicas. As regras morais representam o regramento mais geral e particularmente mais rígido da vida social. Isso porque traduzem implicitamente a ideia de como os indivíduos devem se relacionar para que a solidariedade orgânica seja reforçada; de como devem eles agir para coletivamente viver bem. Usar determinada vestimenta em certa ocasião, manter conduta proba e urbana no trato com os demais, ser honesto, praticar caridade, dentre várias outras regras de essência
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sociedade, e inquestionavelmente exerce influência sobre os indivíduos, seja para reprimi-los
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FIDΣS eminentemente moral traduzem o que aquela determinada comunidade espera dos seus componentes na relação que são obrigados a manter. É a reprodução da velha máxima popular: se somos obrigados a nos relacionar, procuremos fazê-lo da melhor maneira possível. A violação de uma regra moral corresponde, então, ao fim e ao cabo, a uma ofensa dirigida a toda coletividade, e não a um indivíduo em específico. Uma tal conduta afrontosa, como andar desnudo pelas ruas, comporta um juízo crítico e uma tomada de postura por parte da coletividade, que sente ameaçada a sua unidade pela prática do ato violador em referência. E aí a sua repreensão será tanto mais intensa quanto mais ameaçador for o ato infrator à coesão social. Daí se explica o fato de Duguit entender que a moral social representa o regramento mais favorecedor da solidariedade orgânica, uma vez que sua violação sempre e em todo caso corresponderá a uma ofensa irrogada contra a própria sociedade (REALE, 2002, p. 445). Mas se as regras morais representam o regramento mais geral e particularmente mais rígido da vida social, o mesmo já não se pode dizer das regras econômicas. Isso porque o regramento econômico da sociedade traduz-se na ideia de como os recursos devem ser socialmente geridos pelos indivíduos para reforçarem a solidariedade orgânica; de como devem eles administrar os bens para que vivam bem. Fazer economias, utilizar somente o essencial e não consumir mais do que se possui traduzem-se em pequenas mensagens emitidas pela sociedade acerca do que espera dos indivíduos que a compõe em relação à gestão dos bens e recursos disponíveis. Diferentemente do que ocorre quando uma regra moral é violada, é perfeitamente
somente ao indivíduo que a violou, sendo ele mesmo o seu principal prejudicado (REALE, 2002, p. 445). A regra segundo a qual não se deve gastar mais do que possui-se interessa a toda coletividade, é verdade, haja vista não fosse assim os recursos disponíveis facilmente se esgotariam. Mas ao mesmo tempo em que interessa à integralidade social, interessa mais ainda ao próprio indivíduo, o primeiro e imediato prejudicado. Com efeito, a violação de uma regra moral sempre importa numa ofensa irrogada contra toda a sociedade, mas nem toda violação de ordem econômica importará assim num imediato desacato diferido contra a coletividade. E nisso é que se diferenciam as normas morais das normas econômicas segundo Duguit. Mas e o Direito? Bem, para Duguit, o Direito consiste, em suma, no regramento da vida social composto por normas morais e econômicas, as mais importantes, consideradas
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possível que a violação de uma regra econômica não atinja a sociedade, que diga respeito
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FIDΣS essenciais para o reforço e proteção da solidariedade orgânica, que a sociedade entende devam ser elas garantidas pela força do Estado. Isto é, o Direito se forma, e assim é concebido, como o conjunto de normas morais e econômicas garantidas pela força estatal por exigência da própria sociedade. Diz ele que “Uma regra econômica ou moral torna-se norma jurídica quando na consciência da massa dos indivíduos, que compõem um grupo social dado, penetra a ideia de que o grupo ou os detentores da maior força podem intervir para reprimir as violações dessa regra.” (DUGUIT, 1923, p. 53). Por isso o autor afirma categoricamente que o Estado, o grupo dos detentores da maior força, só se legitima quando, de um lado, usa sua potência para reforçar a solidariedade orgânica por meio da concessão aos indivíduos dos serviços públicos dos quais necessitam para desempenhar mais adequadamente suas funções, e, de outro, quando utiliza essa mesma força pelo Direito para punir aqueles que violem as regras jurídicas. Eis o Direito para León Duguit (DUGUIT, 1923, p. 52-54) Uma última curiosidade antes de encerrar o tópico presente. Duguit é conhecido, e assim foi chamado por Maurice Hariou (REALE, 2000, p. 76), um de seus contemporâneos, de anarquista de cátedra. E assim foi chamado não somente pela sua concepção do Estado e do Direito completamente revolucionária e avessa ao pensamento dominante no período, mas, sobretudo, pela introdução da ideia de função social no Direito. Para Duguit, aquilo que se concebe por direito subjetivo deve ser concebido, na verdade, como o dever jurídico de reforço da solidariedade. Isto é, as garantias jurídicas
interpretadas como um dever que obriga o indivíduo a agir em reforço da solidariedade; no caso, sendo livre o suficiente para desenvolver suas potencialidades (DUGUIT, 1912, p. 37). Assim, as concessões jurídicas grafadas sob a nomenclatura de direitos subjetivos que se fazem aos indivíduos têm uma função social, qual seja, a de propiciar a partir do seu âmbito normativo o reforço da solidariedade social.
5 O ESTADO DE DIREITO
A concepção de Duguit acerca do État Légal é tranquilamente dedutível da sua construção acerca do Estado e do Direito.
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postas em benefício do indivíduo, como o direito a liberdade, por exemplo, devem ser
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FIDΣS A ideia de que o Estado constitui o grupo das pessoas detentoras da maior força quando articulada com a ideia de que o Direito constitui o conjunto de regras morais e econômicas que a sociedade exige sejam garantidas pela força, deixa em evidência a concepção de Duguit acerca do tema: o Estado é de Direito, e só pode ser assim, porque somente a sociedade tem o poder de formá-lo e a autoridade de dizer quando o ente estadual pode, por meio das regras jurídicas, usar a força em seu benefício. Em outras palavras: a sociedade compreende que o Estado, à maneira como todos os outros indivíduos, está a serviço de uma função dentro do contexto social, ofício igualmente submetido à realização da solidariedade orgânica. E compreende também que a sua peculiaridade é justamente a de deter a maior força. O Estado é de Direito, é condicionado à normatividade, porque as regras jurídicas surgem a partir da criação social, no momento em que a sociedade exige do Estado, posto estruturalmente a serviço da solidariedade social, a garantia de determinada norma moral ou econômica pela força. O Direito se impõe ao indivíduo, então, da mesma forma que se impõe ao Estado. Daí porque somente se legitima o ente estadual quando usa sua força nos momentos predeterminados pela coletividade, através do Direito, e em benefício desta, para reforço da solidariedade social. Assim, portanto, o Estado que não presta respeito à regra de Direito não é um Estado legítimo, porque usa sua força e sua elevada potencialidade em momento não autorizado pela sociedade, em benefício de si próprio e dos seus interesses (BILLIER; MARYIOLI, 2007,
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Constituiu objetivo desta pesquisa reconstruir o percurso teórico trilhado por Duguit para sua construção doutrinária do Estado e do Estado de Direito pelo Direito. Por isso fez-se necessário investigar as bases fundamentais em que se assenta a sua doutrina, a saber, o organicismo evolucionista, cujo maior expoente foi Herbert Spencer e a sociologia experimentalista de Durkheim, para desvendar até que ponto foram decisivas para Duguit, e em que ponto o autor as utilizou. E viu-se que o diálogo com esses autores, aliada à influência recebida, foi intensa e decisiva para o desenvolvimento da sua obra.
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p.270).
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FIDΣS Essa consistiu, aliás, em uma das maiores preocupações da pesquisa: deixar claro, ante a malversação da sua teoria e das suas bases, em que sentindo Spencer e Durkheim influenciaram o pensamento de Duguit. De outro lado, buscou-se elaborar uma pesquisa que não apenas deixasse evidenciado o percurso decorrido pelo autor, mas, sobretudo, as suas ideias marcantes dentro da Teoria do Estado. A introdução da ideia de que o Estado está a serviço da sociedade para reforço e proteção do seu traço marcante, a solidariedade, recupera a noção do contrato social de Rousseau e a reaviva em tempos de transformações estruturais da sociedade, da economia e do Direito a discussão em torno da função social do Estado e da sua razão de existir. Aliás, a ideia de função social sempre muito viva na obra de Duguit introduziu importantes e necessárias transformações na concepção atual dos direitos subjetivos, isto é, implicou no reconhecimento de que os direitos individuais exercem determinada função social e cedem determinado perímetro espacial em benefício da sociedade. A restrição do objeto de pesquisa em torno da elucidação das suas ideias a partir da reconstrução histórica das influências teóricas que recebeu teve, por isso mesmo, somente uma motivação: oferecer um texto claro e “limpo” de juízos críticos ante a consideração de que León Duguit ainda é pouco estudado e mal compreendido. As considerações críticas da obra ficam para um próximo artigo que tenha tal propósito. Até lá, no entanto, ficam-se as reflexões, que agora tomam como ponto de partida,
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THE
LAW
BETWEEN
THE
STATE
AND
THE
RULE
OF
LAW:
AN
APPROACHING ABOUT LEON DUGUIT’S THEORY OF LAW AND STATE
ABSTRACT The article aims to provide a comprehensive and detailed reading on the study of Leon Duguit. So, it starts from the reconstitution of the theoretical framework that underpins his thought, namely the theories of Herbert Spencer and Emile Durkheim. Then, it continues by his
current context of questioning the role of the State and Law, from phenomena such as multilevel constitutionalism and societal cosmopolitanism, Duguit’s theory can offer interesting answers and hence the need to revitalize it. Keywords: State. Law. Rule of Law.
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conception of State, law, and the rule of law. It also prove that in the
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FIDΣS Recebido 10 fev. 2014 Aceito 12 abr. 2014
O INSTITUTO DA FIDELIDADE PARTIDÁRIA E A SUA APLICABILIDADE NO DIREITO
ELEITORAL
BRASILEIRO
QUANTO
À
TITULARIDADE
DO
MANDATO ELETIVO Kleber Fernandes da Silva Paulo Renato Bezerra** RESUMO O presente trabalho busca analisar a aplicabilidade do instituto da fidelidade partidária no direito eleitoral brasileiro, passando pela análise dos vários casos que vêm sendo submetidos à apreciação do judiciário desde a consolidação do mesmo através do posicionamento do STF. Objetiva, portanto, demonstrar a importância do estudo de tal instituto, sobretudo, no que tange à compreensão de conceitos desconhecidos por grande parte da parcela que compõe o eleitorado
Palavras-chave: Fidelidade Partidária. Titularidade do mandato eletivo. Partido Político.
1 INTRODUÇÃO
O Instituto da Fidelidade Partidária vem passando por uma discussão extremamente efusiva, sobretudo no que tange à titularidade do mandato eletivo. Desde que o Brasil passou pelo processo de redemocratização em seguida pelo estabelecimento do Estado Democrático
Discente do curso de Direito do Centro Universitário do Rio Grande do Norte – UNI/RN. ** Docente do curso de Direito do Centro Universitário do Rio Grande do Norte – UNI/RN. Professor orientador do artigo em contenda.
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brasileiro.
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FIDΣS de Direito através da Constituição Federal de 1988, era comum detentores de mandato eletivo trocarem de Partido Político para atender às suas conveniências pessoais. A legislação pátria prevê que para concorrer a um cargo eletivo, faz-se necessária a filiação a um partido político, a fim de obter legenda para a disputa do cargo pretendido. Por outro lado, desde a promulgação da nossa Constituição Federal de 1988, a jurisprudência vinha se posicionando no sentido de que mudança de partido político pelo detentor do mandato eletivo não acarretaria a perda do referido mandato, uma vez que este entendimento pautava-se pela titularidade do mandato eletivo do candidato em detrimento do partido político ao qual pertença. No ano 2007, respondendo a uma consulta do Partido Democratas, o Tribunal Superior Eleitoral se posicionou pela titularidade do mandato como sendo do Partido Político e não do candidato. Na mesma esteira, ainda no ano de 2007, o Supremo Tribunal Federal se posicionou pela consolidação do instituto da fidelidade partidária, passando o mesmo a ser norma no Brasil, após a referida decisão. Logo, a relevância do estudo do tema deste trabalho é altamente evidente, haja vista a grande quantidade de ações submetidas ao judiciário pelos partidos políticos e candidatos com o objetivo de obter a devida aplicação do instituto da fidelidade partidária e, consequentemente, garantir o fortalecimento do regime democrático e das legendas partidárias. Neste mesmo diapasão, há ainda várias interpretações e peculiaridades acerca da aplicação do instituto da fidelidade partidária no Brasil, o que demonstra a necessidade clara
Há alguns casos, de acordo com a Resolução-TSE nº 22.610, de 25.10.2007, em que há a possibilidade da troca ou desfiliação de partido político sem que se caracterize a infidelidade partidária, quais sejam, a incorporação ou fusão do partido, a criação de novo partido político, a mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário e a grave discriminação pessoal. Partindo desse pressuposto, justifica-se a importância desse trabalho no sentido de promover um estudo que traga à contenda a avaliação de cada particularidade da Resolução do TSE que versa sobre o tema. É válido ressaltar que o próprio Supremo Tribunal Federal não foi unânime quanto à
aplicabilidade
do
instituto
da
fidelidade
partidária,
assim
como
acerca
da
constitucionalidade do mesmo. Em seu posicionamento, o Ministro Eros Grau defendeu que a Constituição Federal não prevê a perda do mandato de parlamentar eleito por um partido e
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de um estudo e análise mais profunda acerca do tema aqui abordado.
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FIDΣS que solicita transferência para outro ou que ainda requer desfiliação partidária daquele partido político pelo qual foi eleito. O artigo 55 da CF, o qual disciplina acerca das hipóteses da perda do mandato, não prevê em seu rol taxativo a possibilidade da perda do mandato eletivo por infidelidade partidária. Resta justificada, portanto, diante de tantas discussões polêmicas em torno do tema abordado, a necessidade de estudos específicos sobre a aplicabilidade de tal instituto.
2 PARTIDOS POLÍTICOS
Para a efetiva consolidação da democracia representativa, é fundamental que a sociedade possa se organizar politicamente e compartilhar os seus ideais, anseios, perspectivas e mecanismos de atingir o poder. Tal organização carece de uma instituição capaz de aglutinar cidadãos que comunguem dos mesmos princípios ideológicos e doutrinários, quais sejam os Partidos Políticos. Por essa razão, nesta seção, far-se-á uma abordagem a respeito da origem de tal instituição, bem como de seu conceito, a fim de que melhor se compreenda a relevância desta análise.
2.1 Origem Foi na Inglaterra, considerada a “mãe” dos Partidos Políticos que se deu origem a forças do feudalismo agrário inglês e os “whigs”, representando, por sua vez, as forças urbanas e capitalistas, por volta do ano de 16801. A partir de então, a organização da sociedade através dos Partidos Políticos começou a se fortalecer na Europa, em países como a França, sob a influência da revolução em 1789 e Alemanha, em 1848, ambos seguindo os moldes originários da Inglaterra com a formação de blocos com pensamentos liberais e conservadores. A Origem dos Partidos Políticos no Brasil, também se deu através da formação das correntes liberais e conservadoras, a partir de 1838. Entretanto, o primeiro Partido Político Brasileiro surgiu em 1822, o chamado Partido da Independência (RODRIGUES, 2009, p. 21).
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MARTÍNEZ, Juan Carlos Barajas. La evolución de los Partidos Políticos. 2004. Disponível em: <http://sociologiadivertida.blogspot.com.es/2013/11/la-evolucion-de-los-partidos-politicos.html>. Acesso em: 20 abr 2012.
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formação de dois grupos ideologicamente antagônicos: os “Tories”, os quais representavam as
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FIDΣS Apenas no ano de 1870 é que efetivamente os Partidos Políticos no Brasil tiveram maior relevância, com o surgimento do Partido Republicano que teve influência na formação do Estado Democrático Brasileiro, tornando-o a exemplo dos Estados Unidos, Federativo e Republicano. As constituições federais de 1824 e 1891 ignoraram por completo a existência dos Partidos Políticos no Brasil, ainda que existissem Partidos Regionais os quais, apesar de se denominarem Liberais ou Conservadores, comungavam da mesma linha ideológica e eram representados pelas classes dominantes e oligárquicas. Pelo fato da Constituinte de 1934 pugnar pela supressão e extinção dos Partidos Políticos sob influência do “Tenentismo”, que defendiam a criação de conselhos de representantes, os Partidos perderam força, representatividade, legitimidade e chegaram ao início do Estado Novo totalmente aniquilados. A partir de então, somente após a total implantação do Estado Novo foi que Getúlio Vargas, através da edição do Código Eleitoral, deu início a estruturação dos Partidos Políticos no Brasil (RODRIGUES, 2009, p. 22). Com a Constituição Federal de 1988, de acordo com o seu artigo 17, foi que se regulamentou, de fato, o processo de organização e estruturação da vida partidária no Brasil. Tem-se, pois, em seu caput que: “É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos: I - caráter nacional; II - proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de subordinação a estes; III - prestação de contas à Justiça Eleitoral; IV -
2.2 Conceito
A doutrina mundial apresenta vários posicionamentos acerca do real conceito de Partido Político, como por exemplo define José Cretella Júnior (1994):
Entidades de livre criação, fusão, incorporação e extinção no Brasil, é a pessoa jurídica de direito privado, de âmbito nacional, registrada no registro de pessoas jurídicas, na forma da lei civil e com seus estatutos registrados no Tribunal Superior Eleitoral, ao qual também prestará contas, com funcionamento parlamentar de acordo com a lei, tendo autonomia para a definição de sua estrutura interna, vedada
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funcionamento parlamentar de acordo com a lei.”
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FIDΣS organização paramilitar e recebimento de recursos financeiros de governo ou entidade do exterior e subordinação a governo estrangeiro.
Ademais, é válido ressaltar que os Partidos Políticos são associações de direito privado e dotadas de personalidade jurídica conforme preceitua o artigo 44 do Código Civil Brasileiro. A Lei Federal 9096 de 19 de setembro de 1995, a qual dispõe sobre os Partidos Políticos, já em seu artigo 1º aduz que o Partido Político destina-se a assegurar no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defender os direitos fundamentais definidos na Constituição Federal.
3 MANDATO ELETIVO
A democracia representativa caracteriza-se pela possibilidade da sociedade escolher os seus representantes através do voto e outorgar a estes o direito de exercer o poder em seu nome, através do que chamamos de mandato eletivo. A CF de 1988 já, em seu artigo 1º, parágrafo único, prescreve que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. O exercício de tal poder, por sua vez, se instrumentaliza por meio do mandato eletivo.
sejam: A teoria do Mandato Imperativo, Teoria do Mandato Representativo e Teoria do Mandato Partidário. No mandato imperativo, o qual teve Rosseau como seu principal defensor, os atos do mandatário estão sujeitos à vontade do mandante. Nesse caso, os atos dos mandatários só têm valor se ratificados pelo povo que os outorgou o mandato. Na contramão dessa teoria, Montesquieu considera os eleitos para o mandato eletivo a própria expressão da soberania popular, portanto, não carecendo de ratificação as suas decisões. (FELIPE, BEZERRA; ANDRADE, 2012). Paulo Bonavides (2004), acerca do Mandato Imperativo, preleciona que: o mandato imperativo, ao ter ingresso numa determinada ordem constitucional, como a de certos regimes semi-representativos, se converte em mais um aspecto ilustrativo daquela tendência, já notada
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A Doutrina, no entanto, aborda a natureza do mandato eletivo sob três teorias, quais
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FIDΣS por eminentes juristas, segundo a qual certos institutos do direito público
têm
inversamente
caído
sob
o
efeito
de
uma
‘jurisprivatização’, observada pelo menos com vistas a algumas características formais.
A teoria do mandato imperativo, portanto, tem como base a soberania da vontade do povo, sendo os mandatários, por sua vez, simples procuradores, impossibilitados de agir por força de vontade própria. Por outro lado, a teoria do mandato representativo preconiza a liberdade e a autonomia do detentor do mandato eletivo para exercer suas funções que lhes foram delegadas através do voto, sem a necessidade de interferência do representado na sua forma de atuação na qualidade de mandatário. No modelo de mandato representativo, a vontade do representado deve ser respeitada e levada em consideração. Entretanto, não há obrigação de cumprimento de tal vontade por parte do representante. Por derradeiro, a teoria do mandato partidário está fundada na titularidade do mandato eletivo como sendo direito assegurado aos partidos políticos, trazendo à tona, a possibilidade da perda do mandato eletivo pelo representante político em benefício do Partido Político, considerado por tal teoria, o verdadeiro detentor da titularidade do mandato. (RODRIGUES, 2009) O conceito da teoria do mandato partidário foi inicialmente defendida por Hans Kelsen
um programa partidário, ou seja, em uma ideologia política e não em um representante. (RODRIGUES, 2009). Para Mezzaroba (2003), o verdadeiro candidato é o partido político com seus programas e não o indivíduo que postula o cargo eletivo.
4 SISTEMAS ELEITORAIS
Na democracia representativa, na qual o voto é o mecanismo de escolha dos representantes da população, faz-se necessária a definição de um conjunto de regras, estratégias e técnicas a serem utilizadas para computação desses votos e a sua transformação em mandatos eletivos. Tais mecanismos são considerados sistemas eleitorais.
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que considerava o partido político o centro do direito público. Para Kelsen, o eleitor vota em
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FIDΣS No entendimento do doutrinador Marcos Ramayana (2008, p. 162), podemos definir sistemas eleitorais como “O conjunto de técnicas legais que objetiva organizar a representação popular, com base nas circunscrições eleitorais (divisões territoriais entre estados, municípios, distritos, bairros, etc.)”. Na mesma linha de raciocínio, José Afonso Silva (2006, p. 368):
Um conjunto de técnicas que consistem no tratamento da divisão do território em distritos ou circunscrições eleitorais, a escolha de um método de emissão de voto, bem como os procedimentos de apresentação dos candidatos e de designação dos eleitos, de acordo com os votos emitidos pelos eleitores.
Evidente, portanto, que os sistemas eleitorais constituem o conjunto das normas que definem a maneira de contabilização dos votos e sua aplicação na definição do processo de escolha dos eleitos. É valido ainda complementar o raciocínio com a conceituação fornecida por José Antônio Giusti Tavares (1994, p.17):
Construtos
técnico-institucional-legais
instrumentalmente
subordinados, de um lado, à realização de uma concepção particular da representação política e, de outro, à consecução de propósitos estratégicos específicos, concernentes ao sistema partidário, à competição partidária pela representação parlamentar e pelo governo,
estabilidade, à continuidade e à alternância dos governos, ao consenso público e à integração do sistema político
No ordenamento jurídico brasileiro há três tipos ou espécie de sistemas eleitorais que podemos definir como Majoritário, Proporcional e Misto, os quais serão abordados nos tópicos subsequentes.
4.1 Sistema Majoritário
A garantia da eleição do candidato que obtém o maior número de votos válidos é princípio que norteia definição do sistema majoritário.
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à constituição, ao funcionamento, à coerência, à coesão, à
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FIDΣS Conforme preleciona Ramayana (2008, p. 152), no voto majoritário prioriza-se a pessoa do candidato. Trata-se de voto personalíssimo, sendo eleito o candidato que obtiver o maior número de votos em relação aos competidores. Na mesma linha de raciocínio,Francisco Dirceu Barros (2008, p. 219) afirma que:
Pelo sistema majoritário, considera-se eleito o candidato que obtenha a maior soma de sufrágios sobre os seus competidores. Os votos atribuídos aos demais candidatos são desprezados para que possa prevalecer, em termos completos, o pronunciamento emitido pela maioria.
A CF de 1988 e a lei 9.504 de 1997, definem que, para as eleições do Presidente e vice-presidente da República, Governador e Vice-Governador de Estado, Senador da República, Prefeitos e Vice-Prefeitos, adotarão o sistema majoritário, veja-se: O artigo 2 da lei 9.504/97 prevê que será considerado eleito o candidato a Presidente ou a Governador que obtiver a maioria absoluta de votos, não computados os em branco e os nulos. Da mesma forma, a lei supramencionada prevê a aplicação do sistema majoritário para a eleição de Prefeitos e Vice-Prefeitos em seu artigo 3, o qual receber a seguinte redação: “Será considerado eleito Prefeito o candidato que obtiver a maioria dos votos, não computados os em branco e os nulos.” sistema eleitoral a eleição para o Senado Federal com o seguinte texto: “O Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados e do Distrito Federal, eleitos segundo o princípio majoritário.”
4.2 Sistema Proporcional
O sistema de eleição proporcional tem como fundamento básico garantir a proporcionalidade de representação política no poder legislativo (Câmara Federal, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais). Conforme ensina o AMADO (1931, p. 77):
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No mesmo diapasão, artigo 77 da Constituição Federal prevê que segue o mesmo
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FIDΣS A representação proporcional é o sistema eleitoral que se destina a garantir a cada partido, que possua uma certa base numérica de membros, um mínimo de representantes correspondentes àquela base. Distingue-se do sistema de maioria, em que toda representação é atribuída à maioria dos sufrágios. Naquele, no proporcional, são representadas no parlamento tantas opiniões quantas existirem em número suficiente para formar uma base mínima constituída em partido.
No mesmo caminho, o doutrinador Francisco Dirceu Barros (2008, p.220) com relação ao sistema de eleição proporcional, leciona que “através dela se assegura a representação dos grandes partidos e, assim, a sua possibilidade de coexistência co as minorias partidárias.” Ainda nessa linha, RAMAYANA (2008, p.152) preconiza que o voto proporcional “objetiva contemplar as minorias na disputa eleitoral, bem como valorizar mais o quociente partidário e, por via direta, os próprios partidos políticos.” O Sistema proporcional é que garante a representatividade política dos partidos nas casas legislativas. Nesse tom, o mestre FERREIRA (1997, p. 169) afirma que o sistema de representação proporcional “assegura aos diferentes partidos políticos no parlamento uma representação correspondente à força numérica de cada um.” Consoante NICOLAU (2004, p. 37), o sistema proporcional refere-se à “garantia de
5 FIDELIDADE PARTIDÁRIA
A fidelidade partidária é uma norma embrionária no ordenamento jurídico brasileiro e carece de posicionamentos doutrinários mais variados para proporcionar uma amplitude maior na discussão do tema. A bibliografia acerca do tema é extramente escassa, o que justifica e respalda ainda mais a relevância deste trabalho, o que leva ao desenvolvimento deste tópico de forma mais detalhada.
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equidade matemática entre os votos e cadeiras dos partidos que disputaram uma eleição.”
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FIDΣS 5.1 Origem
O instituto da fidelidade partidária no Brasil, só passou a ter relevância e notoriedade a partir do ano de 2007, muito embora já tenha feito parte do nosso ordenamento jurídico, conforme ensina Karen Rodrigues Marinho (2009, p. 45) afirmando que: historicamente a primeira previsão legal desse princípio no ordenamento jurídico brasileiro ocorreu na época do regime militar com a edição da emenda constitucional nº 01 de 1969, que previu expressamente nos artigos 35, inciso V e artigo 152, parágrafo único desse diploma legal, a perda do mandato eletivo daquele que deixasse a legenda partidária pela qual foi eleito.
Entretanto, a emenda constitucional 35/85, revogou a previsão legal da perda do mandato por infidelidade partidária. Com a redemocratização, a CF de 1988, em seu artigo 17, parágrafo primeiro, passou a prever o princípio da fidelidade partidária quando previa que é de incumbência dos estatutos dos partidos políticos, estabelecer normas e disciplinar sanções para aqueles que atuarem em desacordo com os ideais partidários. Nessa linha, o artigo 25 da lei 9095/96 prevê que o estatuto do partido poderá estabelecer, além das medidas disciplinares básicas de caráter partidário, normas sobre penalidades impostas aos seus filiados, inclusive, no que tange ao desligamento temporário da bancada, suspensão do direito de voto nas reuniões internas ou perda de todas as
partidária, na respectiva Casa Legislativa. Dessa forma, antes da Constituição Federal de 1988, o Tribunal Superior Eleitoral vinha aplicando o princípio da fidelidade partidária, baseado nos artigos 35 e 152 da emenda constitucional 01/1969 conforme podemos constatar em consulta ao TSE de número 6319, a qual teve como relator o Ministro Décio Meireles de Miranda, que segue transcrita:
Os atuais senadores, deputados federais, deputados estaduais e vereadores, filiados ao PDS, PP, PDT, PTB, PT OU PDR, não podem deixar os seus respectivos partidos sem perderem o seu mandato, mesmo não tendo sido eleitos sob as referidas legendas. Isto, porque o princípio da fidelidade partidária, inscrito no artigo 152, parágrafo 5, da constituição federal não foi revogado.
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prerrogativas, cargos e funções que exerça em decorrência da representação e da proporção
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FIDΣS
6 POSICIONAMENTO DO TSE
Proveniente de uma consulta realizada ao TSE por parte do então Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas, nasceu no dia 29 de março de 2007, por maioria de 6 votos a 1, a decisão que definiu que os mandatos obtidos nas eleições pelo sistema proporcional (deputados estaduais, distritais, federais e vereadores), pertencem aos partidos políticos ou às coligações e não aos candidatos eleitos. A referida resposta à consulta 1398, transformou-se em resolução de número 22.526/20072. A partir de então, o candidato eleito que viesse a mudar de agremiação partidária, estaria sujeito à perda do mandato eletivo, mediante ação de reivindicação do mandato, sendo o partido político ou a coligação pela qual concorreu ás eleições, os legitimados para tal ajuizamento junto à justiça eleitoral, sendo para tanto garantido ao detentor do mandato, o direito à ampla defesa. É valido ressaltar, que uma eventual justificativa plausível e motivada apresentada pelo mandatário para a sua saída do partido político era uma exceção à perda do mandato. Uma nova consulta ao TSE, de número 1407/2007, a qual teve como relator o ministro Carlos Ayres Brito, fez surgir um novo entendimento, o qual passou a admitir a perda do mandato aos que disputaram as eleições para os cargos obtidos mediante o sistema majoritário.
objeto de vários mandados de segurança junto ao STF, o que fez com que em 25 de outubro de 2007, o TSE baixasse nova resolução, qual seja a resolução 22.610/2007, com o objetivo de disciplinar o processo de perda do mandato eletivo. A resolução supramencionada passou a considerar justa causa para desfiliação do partido político sem a conseqüente perda do mandato, consoante o parágrafo primeiro do seu artigo primeiro, as hipóteses de incorporação ou fusão do partido; criação de novo partido; mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário e grave discriminação pessoal. Outra alteração relevante proveniente da nova resolução do TSE, foi a possibilidade de requerimento do mandato daquele que injustificadamente trocou de legenda, por parte de
2
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O referido tema passou a ser protagonista no palco das discussões jurídicas, sendo
TSE. CONSULTA n. 1398, Resolução n 22526. Rel. Min. Francisco Cesar Asfor Rocha. DJE 08.05.2007.
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FIDΣS quem tenha interesse jurídico ou o ministério público eleitoral, quando o partido político não o fizer dentro do período de trinta dias. A resolução 22.610/2007 do TSE entrou em vigor na data de sua publicação, aplicando-se apenas as desfiliações consumadas após 27 de março de 2007, quanto aos mandatários eleitos pelo sistema proporcional, e, após 16 de outubro de 2007, quanto aos eleitos pelo sistema majoritário. Quanto à competência para julgar os processos de fidelidade partidária, a resolução em tela a fixou pela natureza do mandato e não pelo local onde o parlamentar se diploma. Ou seja, nos casos de mandatos municipais (vereadores e prefeitos) ou estaduais (governadores, deputados estaduais e distritais) a competência é do TRE, enquanto se o mandato for federal (deputados federais, senadores e presidente da república), a competência é do TSE.
7 POSICIONAMENTO DO STF
O Supremo Tribunal Federal, em sessão histórica realizada no dia 04 de outubro de 2007 que tinha por finalidade julgar os mandados de segurança 26606, 26603 e 26604 impetrados pelo PPS, PSDB e DEM respectivamente, pleiteando a volta dos mandatos de deputados que haviam abandonado tais legendas, decidiu por garantir os partidos políticos a titularidade dos mandatos. Em sua decisão, o STF definiu ainda, que além da infidelidade partidária gerar a
março de 2007, quando o TSE disse que o mandato pertence ao partido político, em resposta à consulta 1398. Ainda com relação à modulação dos efeitos da decisão, ou seja, a partir de quando a norma passará a valer, três correntes foram formadas, onde uma defendia que a norma vigorasse após o início da legislatura, após a decisão do TSE na consulta 1398 e uma última corrente defendendo que fosse a partir da decisão do STF em 04 de outubro de 2007. É valido ressaltar o voto do condutor da decisão, qual seja o Ministro Celso de Mello, no sentido de que a mudança de partido sem uma razão legítima viola o sistema proporcional das eleições, determinado no artigo 45 da constituição federal, desfalcando a representação dos partidos e fraudando a vontade do eleitor. Em seu voto o ministro destacou que “O ato de infidelidade, quer à agremiação partidária, quer, sobretudo aos eleitores, traduz um gesto de intolerável desrespeito à vontade soberana do povo.” Para finalizar a argumentação do seu
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possibilidade da perda do mandato eletivo, tal decisão passa a vigorar a partir do dia 27 de
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FIDΣS voto, o ministro afirmou que “a mudança imotivada de partido, mutila o direito das minorias e viola o exercício da oposição, garantindo desequilíbrio de forças no parlamento.” Já o Ministro Eros Grau, votou pelo indeferimento do Mandados de segurança, justificando que não havia direito líquido e certo para sustentá-los, já que não há previsão constitucional para perda de mandato por desfiliação de um partido ou pela filiação a outro. Sustentou ainda, que não cabe ao STF pronunciar-se, no referido caso, sobre a fidelidade partidária. Isto, no seu entender, somente seria possível se tivesse sido proposta uma ação direta de constitucionalidade. Segundo o Ministro:
Entre nós, nos termos da constituição vigente, a vinculação a um partido político é somente condição de elegibilidade (artigo 14, parágrafo 3º), não é condição para que o deputado permaneça no exercício do seu mandato. [Pugnando pela não extrapolação dos poderes, Eros Grau concluiu seu voto dizendo]: Essa ruptura da orem constitucional, decorrente de inconcebível criação de hipótese de perda de mandato parlamentar pelo judiciário, fere, no seu cerne, os valores fundamentais do estado de direito. [E ainda, para enfatizar sua preocupação com a manutenção da Independência dos poderes, concluiu]: Pois é certo que, admitir-se inovação como tal no plano da constituição, nada impediria que amanhã o poder judiciário, pela via da interpretação, viesse, por exemplo, a reescrever o texto constitucional, ao seu talante restringindo os direitos fundamentais.
Por sua vez, a ministra Cármen Lúcia, a qual votou pela manutenção dos mandatos de
voto da ministra foi elaborado traçando o histórico do partidos políticos no Brasil e destacando que a representação proporcional, acolhida no país desde 1934, e vigente até hoje com a constituição federal de 1988, pressupõe a exigência de filiação partidária para a elegibilidade, não se permitindo o registro avulso de candidatos. Assim, o partido político “é um corpo político formado pela adesão a princípios e programas, que deve ser observado por todos que nele se agreguem.” Seguindo o voto dos relatores, o Ministro Menezes Direito votou a favor da fidelidade partidária, dizendo entender que existe um vínculo, uma relação indissociável e necessária entre o eleitor e o candidato, passando necessariamente pelo partido político. Argumentou ainda, que a constituição federal concentra os direitos políticos na soberania popular, prevalecendo o modelo representativo, tendo como condição de elegibilidade a filiação partidária.
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parlamentares que mudaram de partido antes da resposta do TSE à consulta do então PFL. O
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FIDΣS Contrário à maioria dos ministros, o Ministro Joaquim Barbosa votou pelo indeferimento dos mandados de segurança sob a fundamentação de que a constituição não prevê a perda do mandato eletivo por infidelidade partidária. O voto do ministro foi o sentido de acolher posição do Procurador Geral da República, Antônio Figueiredo de Souza, o qual defendeu que a Constituição Federal em seu artigo 55, trata de um rol taxativo de hipóteses de perda do mandato, não estando a troca de partido incluída no mesmo, afirmando que: “A meu ver, o constituinte de 1988 disciplinou conscientemente a matéria, e fez a opção deliberada de abandonar o regime de fidelidade partidária que existia no sistema constitucional anterior, que previa a perda do mandato nesses casos. A garantia do cumprimento do devido processo legal também foi objeto de fundamentação do voto do ministro, que afirmou: “por mais que eu comungue dos anseios generalizados em prol de uma moralização da vida político-partidária do nosso país, não vejo como fazê-lo nos termos propostos na impetração dos mandados de segurança.” Finalizando o seu voto, o ministro salientou que os parlamentares trocavam de partido amparados na jurisprudência do STF, e se esse entendimento for alterado, a validade dessa nova decisão deve se dar a partir da data do julgamento. Assim como o ministro Eros Grau, o Ministro Ricardo Lewandowski votou pela denegação da ordem em razão da ausência de direito líquido e certo, defendendo que com base em jurisprudência pacífica do STF, o mandado de segurança não admite a instrução probatória (produção de provas), uma vez que o direito líquido e certo consiste em pressuposto constitucional do mesmo. Com relação à fidelidade partidária, o ministro analisou
se deve ter em mente não apenas a exigência de que os membros do partido sigam a ideologia e as diretrizes da agremiação, mas também que esta se mantenha fiel aos ideais explicitados nos respectivos estatutos, propiciando, ademais, aos seus filiados um tratamento equânime no que toca às oportunidades de participação nas disputas por espaços na própria estrutura de poder da entidade ou por cargos eletivos nas eleições proporcionais ou majoritárias.
Para concluir o seu voto o ministro denegou a segurança, explicando que:
ante as peculiaridades do caso, em homenagem não apenas aos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança bem como
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que:
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FIDΣS em atenção ao devido processo legal, ao direito á ampla defesa e ao contraditório, postulados sobre os quais se assentam o próprio Estado Democrático de Direito.
Votando pela fidelidade partidária desde o início da legislatura, o Ministro Carlos Ayres Britto, concedeu a segurança requerida pelo PPS, PSDB e DEM, nos termos dos pedidos por esses impetrados nos mandados de segurança. O Ministro observou que “a filiação partidária é um ato livre de vontade, conforme previsto no artigo 5º, inciso XX, da Constituição Federal. Portanto, o cancelamento da filiação de um sócio faz parte das regras constitucionais do jogo.” Para dar sustentação ao seu voto, o ministro Carlos Ayres Britto, afirmou que “esse direito líquido e certo está logicamente evidenciado nos três mandados de segurança impetrados pelos partidos com provas constituídas, não atacadas pelos litisconsortes passivos necessários, os chamados ‘trânsfugas’ e a autoridade coatora”. O Ministro Ayres Britto, defendeu que há um relacionamento “siamês” entre partidos e parlamentares, aí incluídos vereadores, deputados estaduais/distritais e federais e que a ação dos partidos dependem fundamentalmente de sua representatividade. Assim, o mandato parlamentar só pode ser exercido coletivamente, em estreita ligação com a respectiva agremiação partidária, existindo prerrogativas que os partidos somente podem exercer quando representados no congresso nacional. O Ministro Gilmar Mendes, optou por acompanhar os votos dos ministros Celso de
desvencilhar-se da legenda pela qual se elegeu, carregando o mandato obtido. Para fundamentar seu voto, o Ministro lembrou que “o sistema proporcional eleitoral no Brasil chama a atenção, no caso, por configurar uma verdadeira democracia partidária” defendendo que a permanência do parlamentar no partido pelo qual se elegeu é imprescindível para a manutenção da representatividade partidária e do próprio mandato. O Ministro Gilmar Mendes demonstrou ainda sua preocupação sobre o fato de que as migrações de partido ocorrem normalmente em direção à base governista, por um processo de cooptação, o que põe em risco a democracia, pela importância da existência da oposição e do papel das minorias. Da mesma forma, o Ministro Cezar Peluso acompanhou o posicionamento da Ministra Cármen Lúcia e do Ministro Celso de Mello, qual seja pela aplicação da fidelidade partidária e sua validade a partir da data da resposta do TSE à consulta 1398.
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Mello e Cármen Lúcia, defendendo que não era possível que um eventual eleito pudesse
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FIDΣS Em seu voto o Ministro defendeu que não se pode conceber que o mandato seja do parlamentar, já que “os partidos políticos têm duas funções primordiais: estabelecer um programa de governo com postulados ideológicos e agrupar as pessoas que se disponham a defender esse ideário político-partidário.” Assim, segundo o Ministro, os candidatos concorrem e se beneficiam dos recursos dos partidos, não só financeiros, mas também patrimoniais e ideológicos. A exemplo do Ministro Carlos Ayres Britto, o Ministro Marco Aurélio se pronunciou pela aplicação do princípio da fidelidade partidária a partir do início da atual legislatura, ou seja, em fevereiro de 2007. Para sustentar tal posição, o Ministro argumentou que aplicar a norma desde a posição do TSE significaria aplicar regras desiguais para os 22 deputados que trocaram de legenda antes do posicionamento do TSE e para a deputada Jusmari Oliveira, a qual trocou de legenda após tal posicionamento. Em apoio à sua argumentação o Ministro Marco Aurélio lembrou que:
a filiação partidária é condição de elegibilidade, tanto que não há possibilidade de candidaturas avulsas; os candidatos são escolhidos em convenção partidária; suas campanhas são financiadas em parte com recursos do fundo partidário; os horários de propaganda são distribuídos proporcionalmente entre os partidos, que os distribuem aos candidatos.
O Ministro afirmou ainda que na Câmara Federal, os parlamentares eleitos passam a integrar um sistema de proporcionalidade partidária que se altera quando eles trocam de
composição da mesa e das comissões técnicas, assim como nas reuniões de lideranças e em outras hipóteses. Para concluir sua argumentação de voto o Ministro Marco Aurélio lembrou que apenas 39, entre os 513 deputados federais à época, obtiveram votação suficiente para se eleger. Todos os demais precisaram dos votos de legenda para ocupar suas cadeiras. Por fim, sendo a última a votar, a Ministra Presidente do STF, Ellen Gracie, votou conforme o relator Celso de Mello, afirmando que a vinculação entre o candidato e partido prolonga-se após a eleição, sendo portanto, “inadequada a transmigração partidária que coincide, via de regra, com necessidades circunstanciais de formação de maiorias.” A Ministra Presidente, considerou válida a resposta do TSE à consulta 1398 e citou entendimento daquele tribunal de que o candidato não existe fora do partido e que nenhuma candidatura é possível fora de uma bandeira partidária.
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legenda. E essa proporcionalidade se manifesta em muitos sentidos, a começar pela
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FIDΣS Ellen Gracie afirmou ainda, em seu voto, que o exercício da democracia exige pluralidade partidária e que é preciso preservar o resultado das urnas. Entretanto, “nem por isso se fará do eleito um prisioneiro do partido pelo qual se elegeu” defendendo que ao eleito assegura-se o direito de se afastar do partido por mudança ideológica ou injustificada perseguição, fatos que devem ser analisados pela justiça eleitoral.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema fidelidade partidária ainda é muito controverso no meio jurídico e político. Ademais, a sociedade ainda não está preparada para o pleno exercício da democracia através do voto, uma vez que a sua grande maioria desconhece os princípios ideológicos, doutrinários e programáticos dos partidos políticos e terminam por votar na figura do candidato, sem perceber que, antes, está votando na legenda a qual o mesmo pertence. As decisões do TSE e do STF que culminaram com a aplicação do princípio da fidelidade partidária no Brasil, passa a ser o passo inicial e fundamental para o fortalecimento das agremiações partidárias as quais devem se sobrepor às pessoas dos candidatos. Ao passo que para ser eleito no Brasil, é condição de elegibilidade estar filiado a um partido político e que no sistema proporcional a grande maioria dos candidatos só são eleitos mediante a votação obtida pela legenda e pela soma dos demais candidatos a essa filiados, é justo afirmar que o detentor do mandato é o partido político. Cabendo ainda ressaltar que os
propaganda eleitoral gratuita de rádio e televisão pertencentes aos partidos políticos de acordo com sua representação na Câmara Federal. Apesar da não previsão constitucional da perda do mandato em virtude da troca de partido, o TSE e o STF agiram de forma coerente, fundamentada e justificada em suas posições, garantindo a titularidade do mandato ao partido político baseados, sobretudo, nos princípios da liberdade de filiação partidária, da proporcionalidade e filiação como requisito de elegibilidade. A aplicação do princípio da fidelidade partidária, passa a moralizar o processo eleitoral no Brasil, obrigando aos partidos políticos a se afirmarem enquanto legendas perante à sociedade e despersonifica a eleição, passando o voto de legenda a ter força perante o eleitor.
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candidatos, sobretudo, aos cargos eletivos do sistema majoritário, utilizam-se do tempo de
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FIDΣS Por fim, a tão esperada e necessária reforma política passa a figurar como prioridade no congresso nacional, impulsionada pela decisão dos tribunais, fazendo com a que a sociedade tenha uma resposta mais breve quanto aos seus anseios no que tange ao exercício da cidadania através do sufrágio. De sorte, o nascimento da fidelidade partidária, fez ainda com que o eleitor pudesse utilizar tal parâmetro como requisito para escolha dos seus candidatos, podendo diferenciar os que têm afinidade ideológica com o partido dos que buscam o mandato de forma independente e desconectada dos princípios ideológicos defendidos pelo partido ao qual estão filiados.
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ABSTRACT This study aims to examine the applicability of the Institute of party loyalty in Brazilian electoral law, through the analysis of several cases that have been submitted to the court since the consolidation of the same through the positioning of the STF. So, it aims to demonstrate the importance of studying that institute in order to make the unknown
understood. Keywords: Partisan Loyalty. Ownership of an elective office. political party.
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concepts by the marjority of Brazilian voters may be finally
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FIDΣS Recebido 13 set. 2013 Aceito 9 jan. 2014
O VÍNCULO ENTRE A REVOLUÇÃO E O PODER CONSTITUINTE Raquel Emanuele Albuquerque Galdino
RESUMO Este artigo trata da relação existente entre o poder constituinte, o qual promove a organização de um novo ordenamento jurídico, e a revolução social, movimento marcante nas relações entre Estado e população, observado em acontecimentos históricos, assim como na realidade hodierna. Objetiva-se, mediante tal entendimento, uma melhor compreensão acerca das mudanças no mundo jurídico que ensejam uma maior democracia no âmbito estatal. Em decorrência disso, surgem também reflexões sobre o que viria a ser uma Constituição democrática.
“O poder emana do povo”. (Jean-Jacques Rousseau)
1 INTRODUÇÃO
Através da célebre teoria do pacto social, pode-se dizer que os membros das diferentes sociedades vivem mediante acordos de convivência. Para a comunidade jurídica, nesse sentido, a Constituição ocupa o cerne dessa questão, visto que atualmente vivemos sob
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Palavras-chave: Constituição. Poder constituinte. Revolução.
Graduanda em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
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FIDΣS o contexto de um Estado Constitucional Democrático e, portanto, esse diploma normativo dita todo o ordenamento jurídico. Entretanto, os desejos da sociedade são instáveis, mudando de acordo com o tempo, de forma que chega um momento em que a comunidade não mais se identifica com o ordenamento posto. Tal situação, muitas vezes, ocasiona manifestações populares, podendo até mesmo ensejar uma revolução. Com base em tais acontecimentos, buscando adequar a ordem jurídica à sociedade, torna-se necessária a organização de uma nova Constituição, o que ocorre através de um poder: o Poder Constituinte. Assim sendo, identifica-se uma relação entre a revolução e o Poder Constituinte, a qual será o objeto do presente artigo, o qual trata, nesse viés, da seguinte problematização: podendo-se afirmar que o principal veículo do poder constituinte originário é a revolução, pode-se também considerar que toda revolução conduz ao exercício de um poder constituinte originário? A partir desta indagação, é sugerida a seguinte hipótese de trabalho: não se pode afirmar que, necessariamente, toda revolução conduz à manifestação de um poder constituinte originário. Pois, em primeira análise, não é todo grupo revolucionário que consegue se estabelecer ao ponto de organizar uma nova Constituição. Além disso, de acordo com experiências práticas, as quais serão abordadas posteriormente, mesmo havendo tal organização, não há garantias de que esta será, de fato, uma Constituição autêntica, real e efetiva ou que o processo de sua criação tenha obedecido aos parâmetros democráticos. Logo, é a partir do entendimento deste vínculo jusfilosófico que se busca
episódios atuais, a exemplo das revoluções ocorridas em vários países árabes, conhecidas sob o codinome Primavera Árabe, nas quais a população adentrou a um processo de luta pelo anseio de um governo mais democrático.
2 DEFINIÇÕES PROPEDÊUTICAS
Há, entre Constituição e Poder Constituinte, uma relação lógica, de forma que são noções inseparáveis, tornando-se necessário fazer algumas observações acerca do que é a Constituição. Destarte, no que concerne ao âmbito material existem diversas definições possíveis. Entretanto, para o desenvolvimento deste artigo, falar-se-á do conceito político
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compreender não somente acontecimentos históricos, como a Revolução Russa, mas também
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FIDΣS estabelecido pelo alemão Carl Schmitt (1928), o qual fala, em sua obra Verfassungslehre, que a Constituição é uma decisão política fundamental, emanada da vontade do povo. Nesta linha de raciocínio, faz-se igualmente interessante citar o pensamento de Konrad Hesse (1992), de acordo com o qual a Constituição se trata de uma ordem jurídica fundamental, material e aberta que atua na realidade histórica e que traça o procedimento com o qual se há de superar os conflitos surgidos dentro da comunidade. Além disso, Hesse (1992) também esclarece que a Constituição é um elemento de transformação, visto que ela não enuncia apenas um ser, mas também um dever ser. Logo, para que essa transformação possa lograr êxito, faz-se necessária a existência da designação denominada por Hesse de “Vontade da Constituição”1, que posteriormente pode dar lugar à Força Normativa, o que ocorre quando as normas constitucionais são efetivamente realizadas, indicando condutas de forma igualitária a todos os cidadãos. Ademais, cabe salientar que existem diversas definições sobre o Poder Constituinte; contudo, no caso em tela, destaca-se a visão fundacional-revolucionária do jurista e sociólogo francês Maurice Hauriou (1925), exposta em sua obra Théorie de l'institution et de la fondation, destacada nas palavras do argentino Jorge Reinaldo Vanossi (1975, p. 36):
En la visión historicista de Hauriou, hay un derecho nacido del Estado, es decir, lo social antes que lo estatal. En tiempos normales, predomina el derecho estatal, siendo su reforma competencia privativa del aparato gubernamental; pero en los tiempos de anormalidad, sobreviene um resurgimiento del derecho de la sociedad que se rebela contra el predominio estatal: las revoluciones implican el renacimiento
autores llaman poder constituyente originario y que nosotros distinguimos o detectamos em las instancias fundacionales del Estado y en los momentos de sus cambios revolucionarios. La revolución es, pues, la vuelta al constituyente originario, el recomienzo de la libertad del orden social para ordenar el Estado, el surgimiento de un nuevo derecho, que se traduce en una nueva constitución.
A partir desse texto, verifica-se que o Poder Constituinte se subdivide em poder constituinte originário e poder constituinte derivado, este sendo instituído pelo primeiro, atuando em momentos “de normalidade”, sob o escopo de realizar a manutenção do ordenamento já vigente, através de um processo de revisão, e, também, instituindo as Constituições dos demais entes federados. 1
O que em outras palavras pode ser expresso como a aspiração, da população, por mudanças; as quais se dão através da busca pela concretização das normas constitucionais postas em processo de legitimação.
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de la “liberdad primitiva”, que en el lenguaje de Hauriou es lo mismo que los
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FIDΣS Porém, o poder constituinte, alvo de apreciação neste trabalho, é o originário, e, em especial, o revolucionário, que Hauriou (1975, p. 36) chama de “liberdade primitiva” e que se manifestará em tempos “anormais”, de instabilidade, atuando através do renascimento da revolução. O constitucionalista José Gomes Canotilho (2003), por seu turno, também traz uma definição bastante interessante sobre o poder constituinte originário, definindo-o como uma força política que existe com a finalidade de, em situações concretas e específicas, estabelecer e garantir o vigor normativo de uma nova Constituição para a organização do Estado, mediante, segundo Canotilho (2003), Assembleia Constituinte, na qual os representantes da população é que possuem a responsabilidade de elaborar a constituição ou através do Procedimento Constituinte Direto, o qual é realizado de forma direta pelos cidadãos, e não por meio de representantes. José Afonso da Silva (2000, p. 68), também sintetizando essa definição, diz que o poder constituinte é “[...] a vontade política do povo capaz de constituir o Estado por meio de uma Constituição. Quando surge uma situação constituinte.” 2 Sobre a titularidade desse poder constituinte, no contexto da atualidade, quem a possui é o povo, exercendo-o mediante representantes, visto que a Constituição é produto da soberania popular. Nas palavras de Canotilho (2003, p.75):
Povo não é apenas a facção revolucionária capaz de levar a revolução até o fim como pensavam os jacobinos. Tão pouco é o conjunto de ‘cidadãos proprietários’ como pretendiam os liberais defensores do sufrágio censitário. Povo não é também a
dotada da missão histórica de transformação da sociedade numa sociedade de classes. O povo concebe-se como povo em sentido político, isto é, grupos de pessoas que agem segundo ideias, interesses e representações de natureza política.
Povo, no sentido exposto, seria o que o abade Joseph Sieyès (1789), em Qu’est-ce que le tiers état?, preferiu chamar de nação; esta seria a encarnação da comunidade em sua permanência, nos interesses mais estáveis, os quais não se confundem com os interesses dos indivíduos; havendo a conclusão de que a soberania do poder constituinte pertence à comunidade como um todo, não podendo ser fragmentada entre os indivíduos. É possível, e mais frequente, que, mesmo assim, apenas um segmento da nação atue diretamente no poder constituinte, agindo como representante do povo em geral. Assim, faz2
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‘classe do proletariado’, ou seja, a classe autoproclamada em maioria revolucionária
Situação que enseja a criação de uma nova Constituição.
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FIDΣS se necessário ressaltar que o entendimento sobre os indivíduos que viriam a constituir “o povo” é ideológico, variando conforme o regime de cada Estado. No Brasil, por exemplo, povo inclui apenas os indivíduos que possuem o status de cidadão, que gozam de seus direitos políticos, de acordo com Alex Muniz (2013). De acordo com Sieyès (1789), o poder constituinte originário tem como principais características a de ser inicial, incondicionado, ilimitado e permanente. É inicial, pois se encontra no nascimento da nova Constituição, ou seja, da nova ordem jurídica; é incondicionado, pois não é regido por nenhuma norma preexistente e é ilimitado porque não é objeto de nenhuma ordem jurídica, visto que ele é o criador desta. Essa característica, precisa ser relativizada, pois à medida que o poder constituinte é a expressão da vontade da nação, ele não pode ir em oposição aos valores culturais, religiosos ou morais que essa nação adquire ao decorrer de sua existência. Nessa linha de raciocínio, segundo Pedro de Veja, citado por Silva (2000, p. 69), “[...] quando as constituições não atuam (como) um sistema de valores, convertem-se em meros instrumentos de falsificação da realidade política”. Pois, se uma nova Constituição for oposta a estes valores, ela dificilmente possuirá algum reconhecimento ou efetividade entre a população, certamente não atendendo aos anseios revolucionários. Da mesma forma, segundo Alex Muniz (2013), também pode haver limitação decorrente de relações diplomáticas. Quando um Estado possui relações com outros países, por exemplo, assinando um Tratado Internacional de Direitos Humanos, tal qual o de Pacto de San José da Costa Rica
não menospreze tal elemento normativo, visto que possivelmente haverá sanções diplomáticas caso contrário. Destarte, o poder constituinte originário, desde a superação dos Estados absolutistas, sempre atuará quando essa ação for objeto da vontade da nação. Todavia, a partir de observações da história mundial, faz-se necessário dizer que essa vontade do povo não é necessariamente explícita e ela se manifestará em situações especiais.
3 MANIFESTAÇÃO DO PODER CONSTITUINTE
De acordo com Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1999), uma dessas situações especiais em que o poder constituinte é convidado a se manifestar ocorre quando, como
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(1969) - ao propor uma nova Constituição para si, é interessante que este Estado em questão
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FIDΣS demostram alguns exemplos históricos sobre os Estados modernos, há, na monarquia, uma iniciativa pactual entre um rei e o povo para a criação de uma Constituição, transformando o que era um Estado de fato em um Estado de direito. Seguindo a linha de raciocínio do autor, também acontece quando um grupo reunido de pessoas (ou Estados) necessita da criação de uma Constituição, que viria a ser a primeira, para a organização de um novo modelo estatal. Realidade essa que ocorreu, por exemplo, com a Constituição norte-americana de 1887, decorrente da vontade das treze ex-colônias inglesas, que antes existiam naquele mesmo território, de se reunirem e estabelecerem leis para a estrutura do novo governo, independente de outro Estado. Essa hipótese de expressão do poder constituinte é, entretanto, bastante remota para o contexto atual, visto que a maior parte das colônias do período colonial já se encontra na situação de Estados politicamente organizados e independentes, assim como a maior parte da população mundial se encontra nesses Estados dotados de Constituição. Ademais, outra hipótese seria a que tem por base a reforma constitucional, que é o que ocorreu com a nossa atual Constituição, de 1988, feita a partir da emenda constitucional n. 26, de 27 de novembro de 1985, à Constituição Federal de 1967. Contudo, especialmente em Estados onde a democracia não se encontra plenamente estabelecida ou onde não há uma contínua adaptação das normas aos princípios básicos da realidade social, a forma que parece ser o veículo mais frequente de manifestação do poder constituinte é a revolução. Movimento esse, por seu turno, realizado em âmbito social, o qual gera uma revolução no próprio âmbito jurídico.
uma modificação ilegítima da Constituição, o que ocorre quando esta é modificada de forma imprevista por ela mesma, quando surge uma nova Constituição que tem oposição à Constituição anterior. Essa modificação jurídica pode decorrer mediante golpe de Estado ou da própria revolução social. No primeiro caso seria, de acordo com Paulo Bonavides (2000), a simples tomada do poder por meios ilegais e ilegítimos, por parte de um pequeno grupo pertencente a uma elite. Enquanto isso, a revolução acarretaria com a mudança no sistema político, com uma maior amplitude, em busca de atender aos anseios coletivos. Nessa linha de intelecção, o doutrinador Hans Kelsen (1934) trata sobre o tema na sua obra Reine Rechtslehre, na qual ele diz que, do ponto de vista jurídico, é indiferente se esta modificação é ocasionada por uma força dirigida contra o governo legítimo ou pelos próprios membros deste governo.
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Essa revolução jurídica, de acordo com Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1999), é
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FIDΣS Nas palavras de Kelsen (citado por FERREIRA FILHO, 1999, p. 38), “[...] decisivo é o fato de a Constituição vigente ser modificada ou completamente substituída por uma nova Constituição através de processos não previstos pela Constituição até ali vigente”. Ou seja, em âmbito jurídico não importa se a modificação decorre de uma revolução social ou de um golpe de Estado. Portanto, não é realmente necessária a eclosão de uma revolução popular para a manifestação do Poder Constituinte; entretanto, em um Estado Democrático, é essencial que este Poder Constituinte represente a população.
4 MOVIMENTO SOCIAL: A REVOLUÇÃO
O movimento revolucionário, em esfera social, busca sua legitimidade no direito de revolução, que é, basicamente, o direito que o povo possui de mudar sua organização. Essa forma de manifestação do poder constituinte originário possui uma abordagem bastante interessante, contraditoriamente, trazida no preâmbulo do Ato Institucional brasileiro nº1 de 19643: O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução. A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação. A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder
forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima [sic] por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular.
Esse preâmbulo ainda traz a ideia de que a revolução vitoriosa necessita se institucionalizar com urgência, sob a finalidade de limitar os plenos poderes de que 3
BRASIL. Ato Institucional n. 1, de 9 de abril de 1964. Casa Civil, Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaNormas.action?numero=1&tipo_norma=AIT&data=19640409&lin k=s>.Acesso em: 13 jan. 2013.
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Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a
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FIDΣS efetivamente dispõe. Ademais, o fato de a revolução jurídica não ser, necessariamente, consequência de uma revolução social, podendo advir apenas da ação de uma elite, não muda a realidade de que a validade de uma nova Constituição parte da vontade do povo. Logo, é possível que ocorra a organização de uma Constituição mediante um golpe de Estado, sem a participação ativa do povo - de forma que esta Constituição, talvez, não tenha efetividade, muito menos eficácia e, consequentemente, seja desprovida de real validade. Entretanto, a partir do momento em que o povo consente com a supremacia da nova Constituição, dar-se-á a entender que há uma vontade implícita da população de fazer uma modificação no ordenamento jurídico. Nesse ínterim, entende-se revolução social como sendo uma forma de contestação da ordem social por parte da população. Essa ideia se encontra, evidentemente, bastante relacionada à noção do “direito de revolução”, o qual, segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1999), é reconhecido desde a Constituição francesa de 1793; por seu turno, aceito pela doutrina clássica, destacando-se as ideias de Jean-Jacques Rousseau, Immanuel Kant, Norberto Bobbio, entre outros. Contudo, de acordo com Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1999), a revolução seria admissível apenas como um último recurso, isto é, como última ratio, quando todas as outras possibilidades de modificação da ordem social, jurídica e política estiverem esgotadas. Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1999), nesse sentido, faz uma abordagem sobre o que Jean Baechler (1970) discute na sua obra Les phenomènes révolutionnaires. Baechler (1970) identifica as formas de contestação da ordem social, as quais se dividem em três. O
fenômeno da marginalidade, quando alguns indivíduos abandonam e recusam as regras que regem a sociedade. Um exemplo seria o clochard, como são chamados os sem-teto na França. A segunda forma de contestar é caracterizada pela intenção de conquistar o poder, com intuito de transformar a ordem social, contudo, não há condições para que essa conquista seja efetivada. Exemplo disto seria os anarquistas, que propõem uma nova sociedade, mas não possuem meios suficientes ou apropriados para transformarem a ordem social. A terceira forma de contestação, por fim, é, justamente, o fenômeno revolucionário, caracterizado não só pelo desejo de conquistar o poder, mas também por ter condições de alcançar esse objetivo. Sendo, portanto, o movimento social que obtém êxito, o qual demanda utilização da força, para chegar ao poder. Ainda segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1999), Baechler (1970) também tratou sobre o desenvolvimento das revoluções. Em Les phenomènes révolutionnaires, ele fala
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primeiro tipo de contestação, por sua vez, não visaria a conquista do poder, apenas há o
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FIDΣS que este desenvolvimento ocorre em três etapas, as quais podem ser claramente identificadas na Revolução Francesa de 1789. A primeira etapa é na qual se tem o prevalecimento do grupo moderado, que anseia por algumas mudanças razoáveis na ordem social, que não abalam toda a estrutura política e social. Foi exatamente o que ocorreu inicialmente na Revolução Francesa, com a prevalência do grupo dos girondinos (alta burguesia). Em seguida, há o momento de radicalização da revolução, onde o grupo mais radical assume a liderança no movimento revolucionário. É um momento caracterizado pelo uso de extrema violência, que na Revolução Francesa é identificado como o período do Terror, onde há a prevalência do grupo dos jacobinos. A terceira e última etapa pode ocorrer sob três diferentes formas: uma opção seria a contrarrevolução, ou seja, a reconquista do poder pelo grupo que antes da revolução o detinha. Outra possibilidade seria o prosseguimento do radicalismo característico da segunda etapa, com o estabelecimento do grupo radical. Finalmente, poderia haver a detenção do poder pelas forças armadas, especialmente pelo Exército, que foi o que aconteceu na Revolução Francesa, quando Napoleão Bonaparte assume o poder e põe fim à Revolução. Por fim, é interessante dizer que a revolução social decorre, sempre, da iniciativa de uma minoria, pertencente ou não a uma elite, e, só após essa iniciativa, o movimento revolucionário se amplia à participação da nação em geral. Tal posicionamento é, segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1999), defendido por Karl Marx (1848), que diz, na obra Manifest der Kommunistischen Partei, que a revolução comunista é iniciativa do proletariado,
consciência necessária para conduzir a revolução.
5 AS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DECORRENTES DA REVOLUÇÃO
O vínculo existente entre a revolução social e poder constituinte originário é apreciado justamente neste ponto. Pois, a revolução é o principal veículo de manifestação desse poder e a atuação deste será concretizada como consequência da concretização daquela. Da mesma forma, pode-se dizer que a revolução só estará plenamente estabelecida, realizada ou efetivada, a partir da edição de uma nova Constituição, representação da vitória do grupo revolucionário, por sua vez, base jurídica, suprema e obrigatória da nova ordem estabelecida.
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e, mais especificamente, de um grupo pertencente ao proletariado, grupo o qual possuiria a
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FIDΣS A vontade do povo, expressa na revolução, é algo que possui verdadeira legitimidade; entretanto, essa vontade só passa a existir no mundo jurídico a partir da organização de normas constitucionais. Ou seja, para que os ideais propagados pela revolução tornem-se legais, além de legítimos, para que a pretensão se transforme em direito positivo, faz-se necessária a atuação do poder constituinte, sendo preciso que ocorra o ato constituinte da promulgação de uma nova Constituição. A promulgação da Constituição só poderá ser compreendida como ato constituinte, no entendimento de Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1999), à medida que a Constituição Federal seja constituída de efetividade. Pois, na verdade, o pensamento juspositivista entende que as normas provenientes da revolução só serão legítimas se obterem a eficácia. Sendo assim, a aceitação do povo com relação à promulgação da nova Constituição é essencial para que esta seja algo além de um “pedaço de papel” como diz Ferdinand Lassalle (1862), em Über Verfassungswesen e como também defende Kelsen (1934), em Reine Rechtslehre, a partir da ideia de que a eficácia é condição de validade da ordem jurídica. A
referida
aceitação
popular
é
facilmente
identificada
em
movimentos
revolucionários, desde que estes sejam consequência da vontade da nação. Portanto, seria contraditório uma Constituição, decorrente de um movimento em que há a expressão da vontade do povo, não obter efetividade e eficácia. Contudo, considerando tal possibilidade4, fica evidente que, dessa forma, a revolução somente participaria do plano jurídico mediante
6 O MOVIMENTO REVOLUCINÁRIO EM CONTEXTO HISTÓRICO
A doutrina jurídica não faz uma abordagem fútil quando trata sobre o vínculo existente entre o poder constituinte originário e a revolução social. Há, evidentemente, várias situações em que esse vínculo pode ser observado em situações concretas. Todas as revoluções ocorridas na história da humanidade, por exemplo, que foram bem sucedidas e tiveram seus respectivos objetivos conquistados, são, a partir das ideias de Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1999), caracterizadas por trazerem como consequência a edição de uma nova Constituição. Um modelo exemplar seria a Revolução Francesa de 1789, bem abordada na
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A revolução egípcia atual, a qual será tratada mais adiante, é um exemplo desta contraditória situação, visto que a mais recente Constituição egípcia, que advém de um movimento popular, não possui completa efetividade.
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uma nova Constituição, a qual possa atender os anseios revolucionários.
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FIDΣS obra “Qu’est-ce que le Tiers État?” de Sieyès (1789), e que ensejou a organização da Constituição da França, de 1791. Outro exemplo é a Revolução Russa de 1917, bastante influenciada pela Revolução Francesa, que ensejou uma verdadeira revolução jurídica e também representa um movimento social de grande amplitude, sendo um dos acontecimentos históricos mais importantes do século XX, possuindo bastante importância no quadro internacional, visto que se tornou fonte inspiradora de lutas e ações políticas posteriores. Desde 1613 a Rússia era submetida ao governo absolutista da dinastia Romanov, o governante era o czar, cuja imagem se confundia com a do próprio Estado. No início do século XX, a Rússia se encontrava com bastantes conflitos entre os valores do Antigo Regime e os valores do capitalismo que emergia. Sua população era composta por uma grande massa camponesa que vivia em situações precárias e a riqueza do Estado era bastante concentrada na nobreza. Nessa realidade, o que também se fazia frequente era a falta de satisfação dos burgueses com relação ao Estado. Tudo isso, aliado à participação russa na Primeira Guerra e ao autoritarismo exacerbado do czar, deu consequência a um movimento revolucionário em março de 1917, e, posteriormente, em novembro do mesmo ano. Antes de o processo revolucionário culminar, o czar Nicolau II, diante da pressão popular, tentou apaziguar os ânimos da população. Para esta finalidade, Nicolau II criou uma espécie de parlamento e instituiu a primeira Constituição russa, de 1906, entretanto, tais medidas não foram suficientes para evitar a Revolução.
bolcheviques. O primeiro, com ideias mais moderadas, sobrepôs-se numa primeira fase da revolução, entretanto, o segundo grupo foi o qual conseguiu levar a revolução mais adiante. Os bolcheviques eram dotados de ideais mais radicais, almejando o socialismo e possuindo Lênin como líder. Em 1917 o autoritarismo do governo russo teve a substituição da figura do czar pelos membros do grupo bolchevique: Lênin, Trótski e Stalin. O novo governo inicialmente criou o Apelo aos trabalhadores, documento que transferia o poder aos sovietes5, posteriormente foi organizado um poder constituinte, com a finalidade de consolidar a Revolução, o que levou a promulgação da Constituição de 1918, a qual acabou dando origem a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
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Esse movimento se desenvolveu através de dois grupos: mencheviques e
Membros da classe trabalhadora.
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FIDΣS Atualmente, sabe-se que os ideais econômicos6 trazidos pela Revolução Russa fracassaram com o decorrer do tempo. Entretanto, este acontecimento merece atenção no contexto do tema abordado, pois trouxe várias consequências importantes, sucederam na Rússia verdadeiras transformações jurídica, social e política. Sendo assim, o que ocorreu foi uma autêntica revolução social, concretizada por um novo ordenamento jurídico, o que ensejou profundas alterações na sociedade russa, as quais perduram até os dias contemporâneos.
7 AS REVOLUÇÕES NO MUNDO ÁRABE
O vínculo entre a revolução social e a base do ordenamento jurídico torna-se bastante pertinente de ser tratado, na medida em que recentemente esse vínculo está sendo vivenciado por países árabes, na chamada Primavera Árabe. Esses Estados, que se encontram em um verdadeiro momento histórico, foram marcados por anos de governos opressores, compostos por uma elite autoritária e corrupta, enquanto a maior parte da população sobrevivia em condições de pobreza, com elevado número de desemprego e crescente aumento nos preços dos alimentos. Sob esse contexto, o fenômeno revolucionário se alastra pelo mundo árabe, tendo se iniciado em 17 de dezembro de 2010, quando um vendedor de rua ateou fogo em seu próprio corpo, na Tunísia, como forma de protesto contra o comportamento opressor da polícia local7.
governo ditatorial de Zine al-Abidine Ben Ali, dando início a uma revolução, a qual derrubou o ditador do poder em 14 de janeiro de 2011. Constituiu-se, assim, um grande marco histórico, pois até então nenhum líder local havia sido destituído mediante força popular8.
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O principal ideal econômico almejado pela Revolução Russa seria o alcance ao comunismo. REDAÇÃO. Retrospectiva 2011: Primavera Árabe completa um ano. Estado de S. Paulo, São Paulo, 20. dez. 2011. Disponível em: < http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,retrospectiva-2011-primavera-arabecompleta-um-ano,813589,0.html>. Acesso em: 11. jan. 2013. 8 REDAÇÃO. Retrospectiva 2011: Ben Ali, presidente da Tunísia, deixa o poder. Estado de S. Paulo, São Paulo, 20 dez. 2011. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,retrospectiva-2011-benali-presidente-da-tunisia-deixa-o-poder,813503,0.html>. Acesso em: 11 jan. 2013. 7
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Tal ato se tornou o estopim diante da insatisfação dos jovens tunisianos com o
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FIDΣS Os acontecimentos na Tunísia tiveram uma influência instantânea em outros países árabes, como Líbia, Síria, Jordânia, Bahrein, Iêmen, Kuwait e Egito. Este último, assim como Iêmen, Tunísia e Líbia, já possui o inicial governo opressor derrubado9. A população egípcia derrubou o ditador Hosni Mubarak em 11 de fevereiro de 2011, a partir de diversas manifestações populares, com grande participação dos jovens, munidos das novas tecnologias de comunicação. Essa utilização de ferramentas tecnológicas no movimento é um grande diferencial entre a Primavera Árabe e as revoluções dos séculos passados, sendo o uso da tecnologia uma forte vantagem aos grupos revolucionários, por ampliar o poder de ação da revolução10. Torna-se mais interessante visualizar a revolução no Egito, o movimento neste país possivelmente constitui um valor mais significativo e de maior impacto na esfera internacional, visto que envolve a nação mais populosa e influente do mundo árabe. O Egito vinha sendo governado mediante ditadura desde que abandonou o posto de colônia britânica, em 1952. Mubarak, o ditador derrubado em 2011, teve seu governo caracterizado pelo combate ao radicalismo islâmico, com a utilização de uma contestável legislação11. Esta situação política necessitou apenas dos acontecimentos na Tunísia para ensejar uma revolução no Estado egípcio. Milhares de egípcios ocuparam a praça Tahrir e iniciaram os protestos de forma pacífica. No dia 11 de fevereiro de 2011 Mubarak anunciou sua renúncia12 e em junho de 2012 foi condenado à prisão perpétua, a qual atualmente encontra-se sendo repensada pelo Judiciário egípcio13.
conseguiu concretizar plenamente os objetivos da revolução; esta nação, na verdade, encontra-se bastante dividida, em um momento de grande instabilidade, de forma que os grupos opositores dificilmente parecem conseguir entrar em um consenso acerca do futuro 9
REDAÇÃO. Retrospectiva 2011: Primavera Árabe completa um ano. Estado de S. Paulo, São Paulo, 20. dez. 2011. Disponível em: < http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,retrospectiva-2011-primavera-arabecompleta-um-ano,813589,0.html>. Acesso em: 11. jan. 2013. 10 COELHO, Luciana. Redes sociais pegaram ditadores desprevenidos, diz especialista. Folha de S. Paulo, Washington, 21 set. 2011. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/tec/977486-redes-sociais-pegaramditadores-desprevenidos-diz-especialista.shtml>. Acesso em: 5 set. 2013. 11 A Lei de Emergência, a qual atribuía à polícia poderes para prender pessoas sem acusação prévia, seria um exemplo. 12 REDAÇÃO. Após 30 anos no poder, ditador Hosni Mubarak renuncia no Egito. Folha de S. Paulo, São Paulo, 11 fev. 2011. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/873730-apos-30-anos-no-poderditador-hosni-mubarak-renuncia-no-egito.shtml>. Acesso em: 11. jan. 2013. 13 REDAÇÃO. Dois anos após sua deposição no Egito, militares devem libertar Mubarak. Estado de S. Paulo, São Paulo, 19 ago. 2013. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,dois-anos-apossua-deposicao-no-egito-militares-devem-libertar-mubarak,1065589,0.html>. Acesso em: 2 set. 2013.
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Contudo, mesmo após mais de dois anos da queda de Mubarak, o Egito ainda não
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FIDΣS político do país. Tal situação vem ocasionando uma grande onda de conflitos violentos no local. Quando Hosni Mubarak renunciou, o poder foi assumido – de forma provisória – pelas Forças Armadas, o Conselho Militar dissolveu o Parlamento, suspendeu a Constituição de 1971 e anunciou a permanência no governo até as próximas eleições. Existe uma organização islâmica no Egito chamada Irmandade Mulçumana. Essa organização já foi bastante caracterizada pelo radicalismo religioso, tendo, inclusive, ligações com grupos terroristas. E, apesar de nos últimos anos ter conseguido desconstruir razoavelmente a imagem de organização terrorista, recentemente a Irmandade foi declarada como um grupo terrorista e suas atividades se encontram oficialmente banidas14. É pertinente falar desta organização, porque ela tornou-se uma forte candidata a eleger um governante assim que criou o partido “Libertação e Justiça” (PLJ), o qual levou, no dia 30 de junho de 2012, o civil Mohamed Morsi ao poder como o novo presidente eleito do Egito, afastando os militares do governo15. Morsi, entretanto, enfrentou bastantes dificuldades e forte oposição em seu governo. Dessa forma, o Egito encontra-se evidentemente longe de pôr fim à revolução, havendo bastante instabilidade, com diversos conflitos em todo o país. Aparentemente, Morsi, em todo o seu governo, preocupou-se mais em consolidar o seu poder, ao invés de governar, o que acabou deixando o povo egípcio insatisfeito. A nova Constituição do Egito foi posta em vigor em dezembro de 2012, no governo de Morsi, o que deveria significar a concretização da revolução, um momento de estabilidade,
egípcio possui verdadeiros conflitos ideológicos, políticos e religiosos entre si, tornando difícil o estabelecimento de uma Constituição que consiga agregar convivência ideológica de todos16. De fato, a Constituição foi aceita por 63,8% dos eleitores que foram às urnas, através de um referendo - todavia, é importante ressaltar que apenas 32,9% de todos os eleitores
14
REDAÇÃO. Irmandade Muçulmana foi declarada terrorista por ataque. Estado de S. Paulo, São Paulo, 25 dez. 2013. Disponível em: < http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,irmandade-muculmana-foideclarada-terrorista-por-ataque,1112352,0.html>. Acesso em: 10 jan. 2014. 15 LARA, Patrícia. Morsi vence a 1ª eleição livre da história do Egito. Estado de S. Paulo, São Paulo, 24 jun. 2012. Disponível em: < http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,morsi-vence-a-1-eleicao-livre-dahistoria-do-egito,890923,0.html>. Acesso em: 15 jan. 2013 16 REDAÇÃO. Com baixa participação, Constituição egípcia é aprovada com 64% dos votos. Opera Mundi, São Paulo, 25 dez. 2012. Disponível em: < http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/ 26242/com+baixa+participacao+constituicao+egipcia+e+aprovada+com++64%25+dos+votos.shtml>. Acesso em: 5 set. 2013.
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mas como visto não é o que está ocorrendo na realidade. Isso se deve ao fato de que o povo
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FIDΣS egípcios é que na verdade participaram da votação. Também devem ser mencionadas as diversas acusações de fraudes que, contudo, não foram suficientes para anular o referendo17. O conteúdo da nova Constituição é que traz um questionamento mais profundo acerca do desenvolvimento da democracia no Egito. Segundo Morsi, a Constituição assegura que “todos os cidadãos são iguais perante a lei” e que “marca uma época em que não há tirania nem discriminação”18. Não obstante, tal conteúdo vem sendo, convenientemente, alvo de várias críticas, não só entre a população egípcia, mas também entre os magistrados egípcios e até mesmo em âmbito internacional19. A Constituição egípcia, composta por 234 artigos, prevê o pluralismo político, alternância pacífica de poder, separação dos poderes do Estado, soberania da lei, liberdade religiosa, de opinião, de imprensa, de reunião e de associação. Todavia, traz alguns dispositivos contraditórios à democracia, como seu 2º artigo, que estabelece os princípios da sharia (lei islâmica) enquanto a principal fonte da legislação20. A Comissão Internacional de Juristas (ICJ), o ramo judicial principal das Nações Unidas, afirmou que o conteúdo desta Constituição não corresponde aos padrões internacionais, como os de responsabilidade do Exército, independência do Judiciário e reconhecimento dos direitos humanos. A Organização das Nações Unidas (ONU) também se manifestou através do Grupo de Trabalho sobre discriminação contra as mulheres, requisitando uma revisão da minuta, para que o Estado egípcio respeite as obrigações das leis de organizações em favor do direito das mulheres, visto que, contemporaneamente, uma
17
MATTAR, Marina. Egípcios aprovaram Constituição na primeira etapa do referendo, indicam pesquisas. Opera Mundi, São Paulo, 16 dez. 2012. Disponível em: <http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/26041/egipcios+aprovaram+constituicao+na+primeira+etapa+ do+referendo+indicam+pesquisas.shtml>. Acesso em: 15 jan. 2013. 18 REDAÇÃO. Mursi formaliza reabertura de Parlamento egípcio e defende nova Constituição. Opera Mundi, São Paulo, 01 dez. 2012. Disponível em: <http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/25735/presidente+do+egito+marca+referendo+constitucional+ para+15+de+dezembro.shtml>. Acesso em: 16 jan. 2013. 19 MARQUES, Ana Carolina. Organizações internacionais se opõem ao referendo constitucional egípcio. Opera Mundi, São Paulo, 14 dez. 2012. Disponível em: <http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/26006/organizacoes+internacionais+se+opoem+ao+referendo+ constitucional+egipcio.shtml>. Acesso em: 15 jan. 2013. 20 EGITO. Constituição Federal, de 25 de dezembro de 2012. Estabeleceu a estrutura, princípios e direitos fundamentais da República Árabe do Egito. Supremo Comitê Eleitoral [da República Árabe do Egito], Cairo, 25 dez. 2012. Disponível em: <http://www.egyptindependent.com/news/egypt-s-draft-constitutiontranslated>.Acesso em: 16 jan. 2013. 21 MARQUES, Ana Carolina. Organizações internacionais se opõem ao referendo constitucional egípcio. Opera Mundi, São Paulo, 14 dez. 2012. Disponível em: <http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/26006/organizacoes+internacionais+se+opoem+ao+referendo+ constitucional+egipcio.shtml>. Acesso em: 15 jan. 2013.
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legislação machista não parece possuir muito sentido21.
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FIDΣS Portanto, o que se observa é uma verdadeira falta de consenso não só entre o povo, mas também entre o Estado e o povo, que é o que diferencia essa Constituição, tornando-se difícil adequá-la aos conceitos mais democráticos. Para essa situação, torna-se pertinente a citação de Paulo Gustavo Gonet Branco (2011, p. 119): “Quem tenta romper a ordem constitucional para instaurar outra e não obtém a adesão dos cidadãos não exerce poder constituinte originário, mas age como rebelde criminoso”. Em outras palavras, visto que uma Constituição legítima é aquela que se funda na vontade soberana do povo, chega-se ao o entendimento de que esta Constituição egípcia de 2012, não seja, de fato, uma Constituição digna de um governo democrático, que é o que busca a revolução egípcia desde seu início. Diante de toda esta situação, no dia 3 de julho de 2013, o governo de Morsi sofreu um golpe de Estado. Atualmente o poder está, novamente, em mãos militares, segundo estes de forma provisória, e a Constituição de 2012 encontra-se suspensa. Esse Golpe de Estado teve apoio da maior parte da população do Egito, de forma que até a própria Irmandade Mulçumana encontra-se sendo rejeitada pela população em geral. Contudo, o atual governo egípcio, composto pelo presidente Adly Mansour, o vicepresidente Mohamed ElBaradei, o general/ministro da defesa Abdel-Fattah el-Sissi e o primeiro-ministro Hazem al-Beblawi, desrespeita, tanto quanto Morsi, os direitos humanos, pois reprime de forma bastante violenta todos os protestos que vêm acontecendo, ocasionando diversas mortes. Foi criado um comitê de especialistas jurídicos para auxiliar na elaboração de
emendas à Constituição. A partir de então um segundo comitê, com 50 figuras públicas, entre políticos, sindicalistas e religiosos, terá 60 dias para analisar as propostas. Após isso, a população deverá votar as emendas em um referendo, de acordo com um cronograma que será estabelecido pelos militares. Depois de todo esse processo, abre-se caminho para a realização de eleições parlamentares22. Por conseguinte, a Revolução no Egito encontra-se longe de terminar; e isto é o reflexo da Primavera Árabe em muitos dos países dessa região, como a Síria. Segundo o
22
REDAÇÃO. Egito cria comitê para reformar Constituição. Estado de S. Paulo, São Paulo, 20 jul. 2013. Disponível em <http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,egito-cria-comite-para-reformarconstituicao,1055567,0.html>. Acesso em: 2 set. 2013.
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emendas que devem ser feitas na Constituição do país. Eles terão 30 dias para sugerirem
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FIDΣS historiador Touraj Atabaki (2013)23, é necessário, para que haja um governo estável, basicamente: legitimidade, aceitação popular e eficiência. Aparentemente, o atual governo egípcio não possui nenhum desses requisitos básicos, de forma que a população fica incumbida a continuar as manifestações, buscando uma concordância entre si para que alguma estabilidade seja alcançada. Em outras palavras, é preciso que o povo egípcio consiga entrar em um consenso e se impor, instituindo um poder constituinte originário que faça jus à revolução, trazendo a estabilidade social através de um ordenamento jurídico capaz de estabelecer uma democracia pluralista, a qual alcançará um equilíbrio entre o desejo da maioria e os direitos das minorias, proporcionando uma convivência pacífica entre os egípcios.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir desse trabalho, é possível sintetizar algumas conclusões. Primeiramente, surge o entendimento de que o poder constituinte originário é uma das consequências de um movimento revolucionário que trilha o caminho para se tornar bem sucedido. Tem-se, também, a conclusão de que a organização de uma Constituição, quando decorre de uma revolução social, muito provavelmente ocasionará uma revolução no âmbito jurídico, visto que o ordenamento precisa acompanhar a ordem social. Somando-se a isso, há ideia de que uma Constituição não pode ser considerada democrática se não surgir mediante
Por fim, traz-se o entendimento de que vários países árabes estão vivenciando um momento de revolução, atualmente, onde há o desejo da população de alterações tanto na ordem social, como no governo e na legislação. É difícil apontar as consequências da Revolução Árabe para esses países, visto que esse movimento ainda está ocorrendo, contudo, ainda assim, são perceptíveis profundas mudanças nos ideais sociais. A população árabe não apenas anseia por uma Constituição democrática, mas também vem lutando por isso. Entretanto, parece não haver um consenso democrático na comunidade árabe, de forma que a revolução vem trazendo transformações constitucionais que não são bem aceitas
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LINS, Marcelo. Uma história em movimento. Milênio, São Paulo, 20 mar. 2013. Disponível em: < http://g1.globo.com/globo-news/milenio/platb/2013/03/20/uma-historia-em-movimento/>. Acesso em: 21 mar. 2013.
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expressão da vontade popular, sendo esta implícita ou explícita.
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FIDΣS e eficazes entre a sociedade, sendo necessário o alcance de um consenso entre essa população para a efetivação de uma Constituição democrática. A partir disso, torna-se mais evidente a noção de que, não necessariamente, toda Constituição proveniente de um movimento popular, como a revolução, pode ser considerada como uma verdadeira Constituição democrática. Existe a possibilidade de que a Constituição em questão esteja distante da realidade e dos anseios do povo, sem conseguir obter efetividade.
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Coimbra: Almedina, 2003. p. 65 – 82.
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FIDΣS
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. Trad. de João Baptista Machado. A constituinte burguesa. 5. ed. Rio de Janeiro: Liber Juris, 2009.
SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular: estudos sobre a Constituição. São Paulo: Malheiros, 2000.
THE LINK BETWEEN THE REVOLUTION AND THE CONSTITUENT POWER
ABSTRACT This article discusses about the relationship between the constituent power, which promotes the organization of a new legal system, and the social revolution, remarkable movement that exists in the relations between the State and the population, and which is clearly observed in historical events, as well as in current reality. The purpose of this article is to search for a better understanding about the changes in the legal system that lead further democracy at the state level. As a consequence of the logic, there are also reflections of what should mean a democratic Constitution.
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Keywords: Constitution. Constituent power. Revolution.
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FIDΣS Recebido 26 jan. 2014 Aceito 18 mar. 2014
TRABALHO INFANTIL PERIGOSO: VIOLAÇÃO À SAÚDE E CONSEQUÊNCIAS JURÍDICO-SOCIAIS Shade Dandara Monteiro de Melo Costa
RESUMO Objetivando contextualizar historicamente o tema do trabalho infantil, a partir de fundamentos jurídicos, pretende-se abordar a relação deste problema social com a saúde pública. Nessa trajetória, é ressaltada a modalidade do trabalho infantil perigoso, sua conceituação e desdobramentos, tais quais os oriundos do acidente de trabalho. Desse modo, conclui-se que o Princípio da Proteção Integral, apesar de ser um belo instituto, ainda carece de efetividade na realidade brasileira. Palavras-chave: Trabalho Infantil Perigoso. Princípio da Proteção
1 INTRODUÇÃO
No plano internacional, muitas convenções e declarações, assinadas pelo Brasil, afirmam que as crianças possuem necessidades especiais, tanto antes do seu nascimento, como durante seu desenvolvimento físico e mental, de modo que devem crescer em um ambiente familiar de carinho, proteção e compreensão, a fim de desenvolver sua maturidade e personalidade com qualidade de vida.
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Estagiária no escritório Eduardo Gurgel Advogados Associados.
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Integral. Direito à Saúde.
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FIDΣS Porém, a realidade do trabalho infantil representa um contexto de negligência e inversão de valores perante a proteção especial que crianças e adolescentes deveriam ter. Diversos documentários (como o denominado “A Liga”, exibido pelo canal de televisão Band em 2011) já foram elaborados no intuito de retratar a vida de crianças e adolescentes trabalhadoras, e o que se percebe é que pela má estruturação familiar, atrelada ao descaso governamental, os jovens acabam assimilando a situação socioeconômica na qual estão inseridos, de modo a ingressar, precocemente, no mundo do trabalho. Sendo assim, eles tendem a auxiliar no sustento da sua família ao invés de construir sua personalidade e seu futuro através da educação, cultura, esporte e lazer. A gravidade dessa violação aos direitos das crianças e dos adolescentes, bem como aos direito humanos, ensejou a elaboração do presente artigo, que é fruto de uma pesquisa bibliográfica obtida no grupo de pesquisa “O TRABALHO INFANTIL: uma análise sob a perspectiva do princípio da proteção integral”, do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, integrante do Projeto Jovens Talento para a Ciência (2012), financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Para tanto, abordar-se-á a evolução do trabalho infantil e do tratamento jurídico conferido a ele, com enfoque na modalidade do trabalho infantil perigoso, de modo a relacionar o Estatuto da Criança e do Adolescente com o Direito a Saúde conferido a esses cidadãos.
Como tentativa de solução mais eficaz, no intuito de reverter esse problema social, diversos programas governamentais vêm sendo criados nos últimos anos, tais como o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e o Bolsa Família. No entanto, apesar de ser urgente a fiscalização acerca de quais famílias precisam utilizar o trabalho infantil para a sua sobrevivência mensal, a fim de inseri-las em programas de oportunidades sociais (melhores empregos para os pais ou responsáveis, condições dignas de moradia, estudo para as crianças e adolescentes, acesso à prevenção de doenças), tal método vem se mostrando insuficiente para que o Brasil cumpra a meta de eliminar as piores formas de trabalho infantil
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2 BREVE ANÁLISE DE MOTIVOS
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FIDΣS até 2015, e erradicar a totalidade do mesmo até 2020, objetivos do Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador1. Segundo Maria de Fátima Pereira Alberto e Anísio José da Silva Araújo (2003, p. 74), o fato dessa problemática envolvendo crianças e adolescentes ser iniciada no âmbito familiar é decorrente de dois fatores: os microestruturais e os macroestruturais. Os primeiros são fatores oriundos da própria família, com destaque para “a tradição do grupo social, geralmente de origem camponesa ou operária, que concebe o trabalho infantil como um elemento formador do indivíduo social”, e para a situação familiar “que não consegue mais atender as necessidades materiais e subjetivas dos filhos, o que, por sua vez, acaba gerando conflitos que empurram as crianças e adolescentes para as ruas”. (ALBERTO; ARAÚJO, 2003, p. 74) Dentre as causas em nível macroestrutural, poder-se-ia citar:
Todos aqueles fatores sociais, políticos e econômicos que forjam a necessidade de a família enviar seus filhos ao mercado de trabalho: a) as inovações tecnológicas e a flexibilização do mercado de trabalho, que gera desemprego estrutural; b) o acirramento das forças produtivas, que gera a concentração de renda; c) a transformação e a precarização das relações e condições de trabalho; d) as políticas econômicas recessivas, que geram o fechamento de empresas e a desvalorização dos salários; e) os fatores climáticos (secas) e a mecanização da lavoura, que expulsam as famílias do campo para as cidades. Todos esses fatores geram pobreza, desemprego e/ou salário insuficiente para o sustento da família: os pais não conseguem mais atender às necessidades materiais e subjetivas dos filhos, o que, por
ruas (ALBERTO; ARAÚJO, 2003, p.74). Dentre os fatores em nível macro, incluem-se também os “crimes de colarinho branco”, a corrupção e a improbidade administrativa, cometidos na esfera da administração pública quando há o desvio de verbas que seriam alocadas em setores como saúde, educação, moradia, trabalho. Por mais distante que possa parecer a relação desses crimes com o trabalho infantil, ela existe, pois tais atos são a causa de muitas carências encontradas nos orçamentos municipal, estadual ou federal, que comprometem toda a estruturação de vida dos cidadãos. No momento em que faltam serviços públicos de qualidade no país, as famílias tendem a ter
1
BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Secretaria de Inspeção do Trabalho (Org.). Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente: Prevenção e erradicação do trabalho infantil e proteção ao trabalhador adolescente. Brasília, 2004. 82 p.
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sua vez, acaba gerando conflitos que empurram as crianças e adolescentes para as
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FIDΣS uma maior demanda de gastos financeiros, seja com saúde, educação, alimentação, infraestrutura, de modo que todos os seus membros (inclusive crianças e adolescentes) se empenham para garantir a sobrevivência do seu núcleo familiar.
3 ASPECTOS HISTÓRICOS DO TRABALHO INFANTIL E SUA LEGISLAÇÃO
O trabalho infantil escravo, como tantos outros fatos sociais da atualidade, tem raízes no passado histórico da humanidade, existindo desde a Civilização Mesopotâmica, Egípcia, Grega e Romana. A partir da Revolução Industrial, período em que começaram a se delinear as relações sociais que seriam os pressupostos para o surgimento do Direito do Trabalho, o volume do trabalho infantil foi intensificado, devido, não só ao caráter mais vantajoso para os empresários em pagar menos pela mão de obra infantil, como também à falta de mão de obra adulta em certas regiões, como afirma a obra “O principio da proteção integral e o trabalho da criança e do adolescente no Brasil”, de José Roberto Dantas Oliva. Porém, foi no começo do século XIX que o Estado passou a elaborar leis reguladoras da relação entre trabalhadores e empregadores. A primeira delas foi a Moral and Health Act2, de 1802, que, considerada a lei que demarcou o verdadeiro início do Direito do Trabalho no mundo, proibiu o trabalho noturno dos menores e estabeleceu que, no período diurno, o mesmo não poderia ter carga horária superior a doze horas. No entanto, a exploração do trabalho de menores só foi reduzida após a publicação do Ato de Educação Elementar, em
Ao final do século XIX, outras legislações contendo medidas protetoras dos direitos, do bem-estar, da saúde e do correto desenvolvimento das crianças e adolescente foram sendo criadas, mas, somente em 1917, tal matéria foi tratada em sede constitucional. Sendo a “primeira do mundo a dispor sobre direito do trabalho, a Constituição do México de 1917, no seu art. 123, dentre outras coisas, vedou o trabalho de menores de 12 anos e limitou a jornada dos menores de 16 a seis horas diárias.” (OLIVA, 2006, p. 53). No âmbito da proteção internacional, em 1919, durante a Conferência de Paz, foi formada a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o que foi um marco simbólico para a mudança da postura global perante a questão do labor infanto-juvenil, fortalecida também
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INGLATERRA. The Health And Morals Of Apprentices Act. Londres, GB, 1802. INGLATERRA. Elementary Education Act. Londres, GB, 1870. 4 Primeira evidência de que a redução do trabalho infantil está diretamente ligada às políticas educacionais. 3
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18703, que determinava a frequência obrigatória das crianças na escola.4
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FIDΣS pela exaltação da dignificação do trabalho. Foi nesse contexto que o art. 447 do Tratado de Versalhes estabeleceu a pretensão de “supressão do trabalho de crianças e a obrigação de impor aos trabalhos de menores de ambos os sexos as limitações necessárias para permitirlhes continuar sua instrução e assegurar seu desenvolvimento físico” (CINTRA, 2003, citado por OLIVA, 2006, p. 54). Quanto às normas estabelecidas pela OIT a respeito da proteção à saúde infantojuvenil, pode-se destacar a preocupação em evitar o perigo durante o manuseio de máquinas e o contato com produtos químicos (Convenções n. 5, n. 10, n. 13, n. 59, n. 124, n. 136), em proporcionar melhores condições do desenvolvimento do jovem (Convenções n. 6, n. 7, n. 90 e n. 79), bem como garantir o tratamento jurídico das questões relativas ao trabalho infantil (Convenções n. 24, n. 37, n. 39, n. 138 e n. 182)5. No que tange ao histórico brasileiro concernente ao trabalho infanto-juvenil, os primeiros relatos desse tipo de labor são atribuídos a 1530, ainda durante as viagens marítimas de Portugal ao Brasil, período no qual essa questão era tratada com naturalidade, pois que considerada mera consequência do trabalho escravo sofrido pelos seus pais. Posteriormente à edição da Lei do Ventre Livre, os filhos das escravas ficavam sob o poder dos senhores de terras de suas mães, que deveriam criá-los até os oito anos de idade, a partir de quando eles prestariam serviços para o fazendeiro até os vinte e um anos ou caberia ao governo providenciar seu desenvolvimento em associações, onde seriam realizados serviços gratuitos pelos jovens até a mesma idade. No século XVII, também havia a possibilidade dos adolescentes tornarem-se aprendizes, mediante a obrigação dos mestres em
De fato, a primeira lei brasileira sobre a temática veio em 1891, com o Decreto n. 1.313, que regulamentou o trabalho de crianças e adolescentes em fábricas, de modo que, somente a partir de doze anos, era permitido o trabalho nesse tipo estabelecimento, exceto para a aprendizagem em fábricas de tecido a partir dos oito anos de idade. Entretanto, igualmente ao que ocorreu com a grande maioria das leis que tratavam sobre a temática, inclusive em âmbito internacional, faltou-lhe execução prática. Atualmente, é notório que o Brasil possui uma das mais avançadas legislações sobre a proteção do adolescente trabalhador6, por mais que não haja plena eficácia social. Desde 5
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenções. Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/convention>. Acesso em: 17 jan. 2013. 6 Observação terminológica: não se fala de proteção ao trabalho infantil, pois o mesmo é considerado proibido, sendo um contrassenso o próprio ordenamento jurídico proteger algo que ele mesmo não permite. Entretanto, fala-se em proteção à criança.
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fornecer-lhes ensino (MORAES citado por OLIVA, 2006, p. 62).
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FIDΣS 1934 há a proteção constitucional à questão, passando pela Consolidação das Leis Trabalhistas de 1943 e chegando a Constituição Federal de 1988, que abarcou o sadio desenvolvimento das crianças e adolescentes fora do âmbito de trabalho nos arts. 7º, XXXIII; 227; 205 e 214, IV. Finalmente, em 1990, foi elaborado o Estatuto da Criança e do Adolescente, que definiu a criança como o ser de até doze anos de idade incompletos e o adolescente como o indivíduo entre doze anos completos e dezoito anos incompletos. Segundo dados fornecidos pela OIT em junho de 20117, no ano de 2008, 115 milhões de crianças no mundo estavam envolvidas com o trabalho infantil perigoso, o que representa quase metade dos trabalhadores infantis (215 milhões). No Brasil, em 2009, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)8, existiam 4,3 milhões de crianças e jovens de 5 a 17 anos trabalhando. Desse total, 11,7% se concentravam no Nordeste, 11,6% na região Sul, 10,2% no Centro-Oeste, 10,1% no Norte e no Sudeste 7,5%. O estudo mostrou ainda que entre 2007 e 2009 foram constatadas mais de 2,6 mil lesões de trabalho em crianças no país.
4 FUNDAMENTOS JURÍDICOS CONCEITUAIS Há uma pluralidade de entendimentos na delimitação conceitual do “ser criança” e do “ser adolescente” para o ordenamento jurídico, devido à variedade de convenções, tratados e estatutos que versam sobre a temática de proteção aos jovens. Porém, com base no Princípio
a terminologia trazida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Tal estatuto estabelece que é criança a pessoa natural com até doze anos de idade incompletos e, adolescente aquele entre doze anos completos e dezoito anos incompletos. É importante frisar que a proteção conferida a esses menores não é motivada pela questão da incapacidade civil ou pela sua inimputabilidade. Como afirma Erotilde Minharro (2003, citada por OLIVA, 2006, p. 82), o real motivo pelo qual crianças e adolescentes são protegidos da atividade laboral está na má influência que essa atividade pode causar na 7
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil 2011. Site do escritório da OIT no Brasil, Brasília. 10 jun 2011. Disponível em: < http://www.oitbrasil.org.br/content/diamundial-contra-o-trabalho-infantil-2011>. Acesso em: 27 mar. 2013. 8 CENPEC - Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Ed.). Trabalho infantil perigoso afeta 115 milhões de crianças no mundo. Site do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária, 2011. Disponível em: <http://cenpec.org.br/noticias/ler/Trabalho-infantil-perigosoafeta-115-milhões-de-crianças-no-mundo->. Acesso em: 15 mar. 2013.
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da Especialidade, o qual afirma que lei especial derroga lei geral, a ser mais correto considerar
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FIDΣS formação educacional, intelectual, cultural, social e psicofísica nos mesmos, bem como as consequências do trabalho infanto-juvenil para o país em seus aspectos socioeconômicos. O trabalho infantil define-se, segundo o Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente (BRASIL, 2004, p. 9), como:
Aquelas atividades econômicas e/ou atividades de sobrevivência, com ou sem finalidade de lucro, remuneradas ou não, realizadas por crianças ou adolescentes em idade inferior a 16 (dezesseis) anos, ressalvada a condição de aprendiz a partir dos 14 (quatorze) anos, independentemente da sua condição ocupacional.
Ou seja, a condição regular de aprendiz não é considerada trabalho infantil. Já o labor na adolescência, “para efeitos de proteção ao trabalhador adolescente, será considerado todo trabalho desempenhado por pessoa com idade entre 16 e 18 anos incompletos e, na condição de aprendiz, de 14 a 18 anos incompletos” (BRASIL, MTE, 2004, p. 9). Dessa forma, fica sendo permitido o trabalho, desde que atenda ao requisito de não comprometer o processo de formação e desenvolvimento moral, físico, social e psíquico, e de não prejudicar a frequência escolar. Entretanto, há de se considerar que os adolescentes e aprendizes que se encontrem em atividades laborais irregulares (tais quais trabalho perigoso, insalubre ou penoso) merecem a mesma proteção conferida ao trabalho infantil, visto que ambos estão em condições de ilegalidade. É importante frisar que há distinção entre os termos “child work” e “child labor”
(trabalho infantil) seria a atividade exercida por crianças e adolescentes com finalidades educativas, no intuito de repassar-lhes valores tidos como importantes para a formação dos menores, tais como o senso de responsabilidade e disciplina, sendo, dessa forma, tolerado socialmente. Em contrapartida, “child labor” refere-se à força laboral infantil, na qual se submete esses jovens a condições degradantes, tendo como consequências o prejuízo ao bemestar e ao desenvolvimento dos mesmos, sendo, portanto, atividade proibida pelo ordenamento (PALMEIRA SOBRINHO, 2012, p. 346).
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quanto à designação do caráter proibido das atividades. Segundo a OIT, o primeiro termo
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FIDΣS 5 TRABALHO INFANTIL PERIGOSO
Toda e qualquer forma de labor infantil traz potenciais riscos para a vida das crianças e adolescentes, seja nos aspectos psicológico e físico ou no futuro sócio educacional desses indivíduos. Considera-se trabalho perigoso aquele que, por sua natureza ou pelas condições nas quais é exercido, pode causar malefícios para a saúde, segurança e educação das crianças e adolescentes, segundo o art. 3º, alínea d, da Convenção 182 da OIT9. Inicialmente, é preciso compreender que a caracterização de “perigo” dada ao labor infantil é decorrente da noção do risco a que crianças e adolescentes estão vulneráveis, devido a sua condição peculiar de despreparo físico, diferente desempenho fisiológico e imaturidade psicológica frente às exigências laborais nas ruas, no trabalho doméstico, nas lavouras agrícolas etc. Esse "risco" é conceituado por diversas áreas do conhecimento científico, seja pela estatística, economia ou psicologia, sendo esses dois últimos vieses abordados no presente artigo, em caráter interdisciplinar. Dessa forma, segundo Nicolella (2006, p. 50), existem quatro dimensões do risco: a probabilidade do evento, a gravidade do dano, a exposição ao risco e a percepção do mesmo. Sendo ele a probabilidade previsível de perda ou ganho de algo em determinadas situações, segundo análise psicológica, “risco é uma característica do ambiente externo ao individuo” (BROWMAN, 1987, p. 1079), independentemente de o indivíduo estar consciente dele ou não. O parâmetro probabilidade do evento é mensurado pela consideração de que algumas
ao trabalhador, o que levaria a uma diminuição, da disponibilidade de saúde (incluindo a capacidade ou força física e mental, o que entre os economistas é chamado de “estoque de saúde”). Dentre os trabalhos desempenhados por crianças e adolescentes, com base na realidade vivida por jovens em João Câmara (RN) e em Tatuapé (SP) 10, pode-se considerar que as atividades de ralar mandioca, vender balas em semáforos e cortar vísceras de boi apresentam diferentes técnicas e manuseios perigosos, o que pode ocasionar cortes ou até mesmo amputação de um dos membros, atropelamento por automóvel e infecções.
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BRASIL, Decreto 3.597 de 12 de setembro de 2000. Convenção sobre proibição das piores formas de trabalho infantil e ação imediata para sua eliminação. Brasília, DF: Senado Federal, 2000. 10 FONSECA, Sezimar. Band mostra situação degradante do trabalho infantil em João Câmara. Prof. Sezimar, a notícia na hora certa, Rio Grande do Norte, 24 mar 2011. Disponível em: < http://profsezimar.com/noticia/band-mostra-situacao-degradante-do-trabalho-infantil/8323/>. Acesso em: 01 mar. 2013.
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atividades laborais, pelas suas exigências inerentes, são mais suscetíveis de causar prejuízos
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FIDΣS A gravidade do dano está relacionada com as consequências que uma possível amputação, atropelamento etc. trariam para o futuro da criança e seu desenvolvimento. Tais consequências incluem tanto as problemáticas de ordem social (oportunidades futuras de emprego que se adequem a uma condição de deficiência física), como os tratamentos que a ordem jurídica daria às questões trabalhistas e previdenciárias, em caso de tratamentos de saúde, indenizações e invalidez, por exemplo. Impactos na saúde, tidos como esperados nos adultos, são potencializados em crianças e adolescentes, no que diz respeito tanto ao ambiente laboral, quanto pelas condições em que o mesmo é realizado, segundo relatório do Comitê para Implicações na Saúde e Segurança do Trabalho Infantil de 1998 (NICOLELLA, 2006, p. 53). Em seguida, se analisa a exposição ao risco, que leva em conta a análise conjunta da estruturação do local de trabalho, das horas trabalhadas e dos potenciais efeitos inerentes a determinadas atividades. Considera-se também a falta de equipamentos de segurança e de instrumentos de trabalho apropriados, visto que os existentes são adaptados para os adultos, até mesmo porque seria um contrassenso existirem tais ferramentas específicas para crianças e adolescentes quando o exercício de atividades laborais perigosas é proibido para os mesmos. Já quanto ao último parâmetro, pode-se afirmar que, na psicologia, percepção é o processo de adquirir, interpretar, selecionar e organizar informações sensoriais, sendo que essas informações são subordinadas ao aprendizado e ao pensamento. À medida que novas informações são adquiridas, a percepção se altera (NICOLELLA, 2006, p. 52). No que tange à quarta dimensão do risco, a percepção, é possível afirmar, com base
capacidade de compreender a situação a qual está sendo vivenciada no trabalho perigoso, a ponto de que essa percepção seja suficiente para empreender mudanças na realidade, como poderia ocorrer se elas tomassem conhecimento das diversas consequências, a longo prazo, decorrentes da realização da atividade laboral. Entretanto, ainda que alguns tenham esse nível amplo de entendimento sobre a realização de trabalhos perigosos e suas consequências físicas, sociais e psicológicas, tal dimensão não é suficiente para romper com a pressão que as necessidades familiares exercem sobre eles. Da mesma forma ocorre com os pais, que, se chegam a atingir esse nível de interpretação do contexto laboral, acabam – em sua grande maioria – ignorando-o diante das necessidades financeiras familiares de sobrevivência. Por esse motivo, nota-se que existe a consideração de quão útil é o trabalho infantil para o núcleo familiar em que os jovens se inserem. É como se - consciente ou
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neste conceito psicológico, que crianças e adolescentes não têm plenamente desenvolvida essa
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FIDΣS inconscientemente – fosse feita uma ponderação dos prós e contras que o labor infanto-juvenil possui em termos de probabilidade de risco (de perda do potencial de saúde x utilidade da atividade). Assim, quando realizada análise comparativa em curto prazo, aparentemente há uma aceitação - seja dos pais, responsáveis, jovens e “empregadores” - da realização de exercícios laborais danosos. Apesar de não haver preço pela saúde, em muitas situações do dia a dia os indivíduos trocam esse bem por outras opções que lhe causam prazer ou utilidade, a exemplo do uso do álcool, do sedentarismo e do trabalho exaustivo. É nesse último caso que os pais e alguns filhos acabam aceitando “trocar” a saúde por um aumento na renda familiar, criando então uma valoração individual da saúde. É interessante, nesse ponto sobre a utilidade das atividades laborais infantis, ressaltar o porquê do “bem” saúde ser considerado em termos de viabilizar o trabalho. Segundo Muurinen, Case e Deaton (2004), citados por Nicolella (2006, p. 61), existem três formas de capital (no sentido de potencial) que podem ser empregados para o empenho de atividades: o capital saúde, o capital humano – intelecto – e o capital físico – ou riqueza –. A combinação desses, ou a disponibilidade de somente um deles, é que determinará como as pessoas podem se sustentar, como afirma Nicolella (2006, p. 62) em sua análise econômica do tema: Imaginemos agora um indivíduo que não possua riqueza, escolaridade formal e nenhum tipo de habilidade especial. Muito provavelmente seu provimento virá do capital saúde, ou seja, irá exercer atividades que demandem consideravelmente seu estoque de saúde (CASE; DEATON, 2004). Nota-se que as crianças que trabalham
que trabalha pertencer a uma família pobre - o que na grande maioria dos casos é verdade – ela vivencia uma restrição orçamentária ativa e uma depreciação do capital saúde mais rápida com a idade, gerando um estoque ótimo de capital saúde menor devido à dificuldade de alocar recursos no investimento em saúde. Dessa forma, o trabalho afeta a taxa de depreciação do estoque de capital saúde, e quanto maior a taxa de depreciação da saúde menor será o estoque de capital saúde durante sua vida.
Na medida em que há diminuição do potencial de saúde em troca do desempenho de certas atividades, diminui-se também o potencial intelectual, pois é tolhida parte da disponibilidade mental e temporal para o exercício de atividades educativas. É notável que pais com maior nível educacional possuem filhos mais saudáveis (sendo aqui desconsideradas as doenças de ordem genética), pois tem maior conhecimento
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aproximam-se mais da última forma de obtenção de recursos. Assim, se a criança
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FIDΣS sobre como prevenir, diagnosticar e tratar doenças. Além disso, ainda no prisma econômico, “pais mais educados possuem maior salário e maior renda, de forma que parte do efeito do aumento da educação sobre a saúde advém indiretamente do aumento da renda” (NICOLELLA, 2006, p. 64). Destarte, cria-se um ciclo vicioso em que crianças com saúde debilitada têm menor rendimento e status educacional, o que no futuro implica menor profissionalização, menores salários e menor poder informativo dentro da estruturação familiar. Isso reflete na prole, pois com menos conhecimento, há menor probabilidade de proteger a saúde das crianças e adolescentes, o que dá inicio ao ciclo novamente e, consequentemente, a sua perpetuação.
6 PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL
A Doutrina da Proteção Integral foi consagrada em 1989, durante a Convenção sobre os Direitos da Criança, que visava avaliar os avanços na efetivação de direitos dos jovens após trinta anos do advento da Declaração dos Direitos das Crianças pela ONU. Pela expressão “proteção integral” entende-se que crianças e adolescentes devem receber amparo total (da família, da sociedade e do Estado, como preleciona o art. 227 da Constituição Federal)11, desde a sua concepção até a idade em que assim elas deixam de caracterizar-se como crianças ou adolescentes. Tal proteção deve se dar, tanto do ponto de vista material, quanto psicofísico, devendo ser-lhes conferidos os mesmos direitos dos adultos (à vida, a
que devem ser cumpridos com absoluta prioridade (art. 3º da Constituição Federal). Enquanto na Doutrina da Situação Irregular tais jovens eram tidos como objeto de direito, na nova perspectiva, os mesmos são sujeitos de direitos, com garantias específicas que devem ser concretizadas com primazia. Considerando a condição de fragilidade, inocência e de fácil manipulação das crianças e dos adolescentes perante a “hierarquia adulta”, tal pensamento representa a aplicação da ideia de Aristóteles (2004), contida no Livro V de Ética a Nicômaco, de igualdade e do princípio da isonomia jurídica na relação entre menor e sociedade, tendo essa prioridade dos direitos elencados no Estatuto da Criança e do Adolescente a função de compensar os desfavorecimentos que a menor idade traz.
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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1998.
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educação, saúde, lazer, liberdade – de modo proporcional – e etc.), porém, com a ressalva de
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FIDΣS O Princípio da Proteção Integral está positivado de forma expressa na Constituição Federal, em seu art. 227, que designa às famílias, a sociedade e ao Estado a competência de zelar pelos diversos interesses dos jovens12 e, segundo Atienza e Manero (1991, citados por OLIVA, 2006, p. 101), tal texto não trata apenas de norma programática, pois:
É principio em sentido estrito e [...] exige concreção. Deve, necessariamente, pautar o exercício de poderes normativos, tanto na esfera de criação (e aí dirigir-se ao legislador) [...] como de aplicação (neste sentido, dirige-se ao Estado-juiz) [...]. No plano não normativo, o Principio da Proteção Integral deve guiar o comportamento de governantes e governados, em ações ou abstenções [...].
Quanto à questão do trabalho, se o trabalhador adulto, por ser considerado hipossuficiente social e economicamente, já possui instrumentos e mecanismos de proteção assegurados em nível constitucional, tal cuidado é potencializado quando trata-se de crianças e adolescente, visto que eles estão em maior posição de desigualdade frente aos empregadores. Devido então a sua condição peculiar, há absoluta prioridade na proteção contra o trabalho infanto-juvenil. Tal tratamento é justificado não só pela maior vulnerabilidade às investidas de empresários, que só visam o lucro e enxergam, assim, a atividade laboral infantil como fonte deste (OLIVA, 2006, p. 108), como também pela efetivação dos direitos sociais elencados no art. 6º da Constituição Federal e pela maior agressão à saúde que o trabalho perigoso proporciona aos jovens, se comparados com os efeitos causados nos adultos.
Cidadania, o qual afirma o fato de crianças e adolescentes deixarem de ser objeto de direito para se tornarem sujeitos de direitos. O respeito a esses seres é o mesmo que o respeito à cidadania, pois esta se baseia no respeito à condição humana de cada um (em um dos sentidos dessa palavra). É, então, com base nesse princípio, que se pode interpretar, por exemplo, o caput do art. 53 do Estatuto da Criança e do Adolescente13, no sentido de assegurar oportunidades e facilidades que lhes facultem “o desenvolvimento físico mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade” (OLIVA, 2006, p. 115).
12
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1998. 13 BRASIL. Lei nº 8069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, DF.
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A partir do referido princípio, surgem alguns outros derivados, tal qual o Princípio da
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FIDΣS Outro princípio derivado é o do Bem Comum, a partir do qual é possível considerar que as exigências do bem comum não devem ser vistas num contexto em que, na perspectiva do Direito do Trabalho, as crianças tenham assegurado o direito de brincar, sem ter, por exemplo, que trocar brinquedos e bancos escolares por pesadas enxadas (OLIVA, 2006, p. 116). Dessa forma, o bem comum deve ser pensado não só no sentido de bem-estar financeiro familiar, mas, principalmente, a longo prazo, no sentido de construir jovens e trabalhadores mais preparados para a vida profissional, o que remete a não precocidade no início do trabalho de crianças e adolescentes. A partir do Estatuto da Criança e do Adolescente também se pode inferir outros quatro princípios que, em tese, protegem das atividades laborais os indivíduos de até 18 anos. O princípio da Municipalização garante que todos os entes são responsáveis pela aplicação das políticas voltadas às crianças e adolescentes, sendo o principal o Município, por meio do Conselho Tutelar. O Principio do Melhor Interesse, no qual se entende que não deve haver formulações genéricas e sim propostas sérias a partir da análise de cada caso concreto. Logo, depreende-se que, apesar de efetivação dos direitos das crianças e adolescentes ter que ser ampla e igual para todos, é necessário que cada Município atenda as necessidades específicas dos jovens de seu território, fazendo uma análise de como ocorre a efetivação dos direitos infantis para, então, partir para ações específicas que diminuam as situações de violação. Concomitantemente, não só a efetivação de políticas públicas deve ser proporcional a cada localidade, como também as medidas políticas ou judiciais tomadas para o âmbito familiar devem ser proporcionais a cada caso, para amenizar a desestabilidade social. Ou seja,
obrigam, violentamente, que ela exerça algum tipo de trabalho para subsidiar a família, talvez seja mais proporcional que ela seja retirada dessa convivência prejudicial do que apenas aplique-se alguma política pública de inserção em programas sociais. No entanto, já para uma família na qual ocorre o trabalho infantil somente como forma de subsistência secundária, apenas a integração em programas sociais, como o Bolsa Família, talvez seja a solução mais adequada, a fim de respeitar também a afetividade e convivência familiar do jovem. Assim, tem-se também a concretização do Princípio da Intervenção Mínima, visto que deve haver o mínimo de medidas sancionatórias que possam afetar psicologicamente o jovem.
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pelo Princípio da Proporcionalidade, se no caso de determinada criança são seus pais que
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FIDΣS A partir da aplicação desses princípios aos casos de trabalho infanto-juvenil há a concretização do art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro14 e do art. 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente15, que preveem como critérios interpretativos as exigências do bem comum e os fins sociais a que a lei dirige.
7 DIREITO, SAÚDE E VIOLAÇÕES
A Constituição Federal assegura, no art. 196, tanto um direito individual, quanto coletivo, de proteção à saúde. Segundo Gilmar Ferreira Mendes (2012, p. 698), há efetivação do direito a saúde “mediante ações específicas (dimensão individual) e mediante amplas políticas públicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos (dimensão coletiva)” 16. Quanto à primeira dimensão, quando relacionada à questão do trabalho infantil e do contexto no qual o mesmo se insere, é possível compreender que deve ser exercida uma ação em prol do cuidado da saúde dos indivíduos, principalmente das crianças e adolescentes por parte dos pais e empregadores. Tal cuidado poderia ser efetivado tanto na forma de fornecimento de meios e locais seguros para a atividade laboral (o que ainda seria um contrassenso, diante da proibição do trabalho para algumas faixas etárias) quanto no não emprego desses indivíduos em atividades que gerem renda, devido os riscos potenciais que apresentam.
relacionar-se com políticas eficazes contra o trabalho infantil perigoso, isso por meio de fiscalização, punição ou qualquer outra ação que diminuísse a probabilidade de desempenho de atividades de risco por menores de idade. Dessa forma, tanto se estaria atendendo às exigências da dignidade humana, cumprindo preceitos legais de proteção aos jovens, como diminuindo os encargos que a prestação de serviços de saúde e auxílios trabalhistas às pessoas acidentadas causam ao erário público.
14
BRASIL. Decreto-lei nº 4.657, de 04 de setembro de 1942. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Rio de Janeiro, RJ. 15 BRASIL. Lei nº 8069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília, DF. 16 Apesar do referido autor abordar o Direito à Saúde a partir de duas diferentes dimensões, é necessário esclarecer que elas não devem ser vistas como esferas estanques. Considerando a indivisibilidade deste direito social, a distinção das denominações visa somente facilitar a compreensão de como ações de cuidado e promoção à saúde podem ser realizadas, havendo uma relação de interdependência entre elas.
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A segunda dimensão é preventiva e, sendo exercida por parte do Estado, poderia
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FIDΣS Quanto ao direito à saúde, é interessante observar que, apesar da Lei n. 8.080/9017 trazer a previsão de que haverá “igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie” (art. 7º, IV), ao se analisar o contexto do Princípio da Proteção Integral, encontra-se como um de seus elementos o princípio da prioridade absoluta, prevista no art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente. Dessa forma, o legislador concedeu primazia no recebimento de socorro, precedência no atendimento dos serviços públicos ou de relevância pública, preferência nas formulações e execuções de políticas públicas e destinação privilegiada de recursos públicos quando se trata de crianças e adolescentes, evidenciando mais uma vez, a condição especial que os mesmos possuem frente à sociedade, o que ressalta o contexto de violação a esses direitos, por parte dos atos advindos do trabalho infantil perigoso. De acordo com a descrição dos riscos à saúde decorrentes da exposição precoce ao trabalho, realizada pelo Departamento de Segurança e Saúde no Trabalho – DSST/ SIT/TEM, na Nota Técnica à Portaria MTE/SIT/DSST nº 06/200018, há seis formas de prejuízo ao organismo de crianças e adolescentes, com danos ao sistema muscoesquelético, ao cardiorespiratório, à pele, ao sistema imunológico, digestivo e nervoso. Ainda, segundo trabalho realizado pelo Departamento de Segurança e Saúde no Trabalho – DSST/ SIT/TEM, na Nota Técnica à Portaria MTE/SIT/DSST nº 06/2000 (2000, p. 22/23), o sistema muscoesquelético é prejudicado quando:
O carregamento de peso e a permanência em posturas viciosas provocam
crescimento e levando ao aparecimento de dores crônicas e doenças como a cifose juvenil de Sceeüermann e a coxa vara do adolescente. Aliados à nutrição deficiente, os esforços excessivos também podem prejudicar a formação e o crescimento da musculatura, levando também a quadros de dor e a doenças em fibras musculares (tendinites, fasciites e outras).
Lesões ao sistema cardiorespiratório acontecem devido à intoxicação por vias respiratórias, que ocorrem mais rapidamente em crianças e adolescentes, devido a sua maior frequência respiratória, se comparadas com a de um adulto. Sendo sua frequência cardíaca maior, o esforço necessário para a execução de uma atividade também é maior.
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BRASIL. Lei nº 8080, de 19 de setembro de 1990. Legislação do SUS. Brasília, DF. Departamento de Segurança e Saúde no Trabalho – DSST/ SIT/MTE. Nota Técnica à Portaria MTE/SIT/DSST nº 06 de 18/02/2000. Brasília, 2000. 18
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deformações, principalmente nos ossos longos e coluna vertebral, prejudicando o
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FIDΣS Quanto à pele (DSST/ SIT/TEM, 2000, p. 26),
Na criança, a camada protetora da pele queratínica ainda não está suficientemente desenvolvida. Assim, o contato com ferramentas, superfícies ásperas, produtos cáusticos ou abrasivos, danifica-a mais e com maior facilidade. As pequenas lesões tornam-se excelentes portas de entrada para infecções por microorganismos. Também absorve com mais facilidade os produtos químicos presentes no ambiente.
Também há danos quando a imaturidade do sistema imunológico, associada ao estresse e à deficiências nutricionais, que reduzem a capacidade de defesa do organismo ante as agressões externas, de natureza química ou biológica. Já o sistema digestivo nos seres em desenvolvimento é preparado para a máxima absorção, pelas necessidades do crescimento. Estima-se que no adulto ocorra a absorção de cerca de 5% do chumbo ingerido. Na criança, esse índice é de 50%, segundo a supracitada nota técnica do DSST/ SIT/MTE (2000, p. 26). Por fim, quanto ao sistema nervoso, tem-se que:
Os jovens e o sexo feminino têm em sua constituição maior proporção de gorduras que os adultos do sexo masculino. O sistema nervoso tanto o central (cérebro) quanto o periférico (nervos), é constituído de um tecido gorduroso. Assim, os produtos químicos lipossolúveis (que se dissolvem em gorduras), muito comuns nos ambientes de trabalho (hidrocarbonetos aromáticos e alifáticos, por exemplo), serão mais absorvidos e causarão maiores danos pela imaturidade daqueles tecidos (DSST/
Logo, percebe-se que alguns sintomas e problemas são mais atuantes em crianças e adolescentes que em adultos trabalhadores e, além dos já relatados efeitos ao organismo, pode-se ainda relacionar alguns outros prejuízos à saúde dos jovens como decorrência de atividades específicas, que são os decorrentes de acidentes de trabalho.
8 ACIDENTES DE TRABALHO E O AMPARO JURÍDICO
Diante dos riscos expostos até então, é perceptível que os indivíduos de até 18 anos estão sujeitos a acidentes de trabalho durante a atividade laboral, principalmente naquelas em que, por sua natureza e modo de desempenho, já são propensas à acidentes.
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SIT/MTE, 2000, p. 25).
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FIDΣS Segundo o art. 19 da Lei nº 8.213/1991 acidente de trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda/ redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho. Tal dispositivo é complementado pelo art. 30, parágrafo único, do Regulamento da Previdência Social19, asseverador de que acidente é aquele de origem traumática e por exposição a agentes exógenos (físicos, químicos e biológicos), que acarrete lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte, a perda, ou a redução permanente ou temporária da capacidade laborativa. De acordo com a classificação apresentada por Zéu Palmeira Sobrinho (2012, p. 79), tendo em vista que o acidente de trabalho pode ser típico ou atípico, pode-se considerar que ambas tipologias são adequadas às situações de trabalho infantil. O primeiro representaria a “lesão corporal ou perturbação funcional que, além de caracterizada pela causa única, súbita e externa, é decorrência do exercício das atividades do trabalho que, em regra, é prestado em proveito de outrem”. Aqui poderiam ser incluídos aqueles danos à saúde que ocorrem durante a colheita da cana nas fazendas de terceiros, por exemplo. Já o acidente atípico, que é “aquele que se manifesta por meio das doenças ocupacionais” (PALMEIRA SOBRINHO, 2012, p. 79), poderia englobar as atividades que não necessariamente são realizadas em proveito de outrem, mas, sim, de si mesmo ou de sua própria família. posição de empregado – ou seja, uma pessoa física que presta serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário -, dentre os três tipos de classificação de trabalhadores prevista em lei. Sendo então o dano decorrente do acidente de trabalho um fenômeno pluridimensional, tais indivíduos estão sujeitos aos danos materiais (lesão corporal e perturbação funcional), positivos ou emergentes, estéticos, morais, existenciais e psíquicos. Material porque vai desde um corte no dedo até a perda de um membro, quando se trabalha com o corte de mandioca, por exemplo, ou quando a normalidade de um órgão ou sentido é comprometida; positivo, pois representa o prejuízo no patrimônio em caráter imediato, através de gastos com medicamentos, exames e etc.; estético, no momento em que
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Crianças e adolescentes seriam vítimas do trabalho no momento em que assumem o a
BRASIL. Regulamento nº 3048, de 06 de maio de 1999. Regulamento da Previdência Social. Brasília, DF.
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FIDΣS há comprometimento da harmonia dos movimentos físicos da vítima, pela má postura durante a atividade laboral (ilustrativamente) ou pela deformação da aparência natural dela. No momento em que provoca abalo e dor ao acidentado, e aos que com esse convivem, tem-se configurado o dano moral, visto que, por mais que o trabalho daquele jovem seja importante para a subsistência familiar, certamente seus pais ou responsáveis sabem que aquela situação não é a ideal para seus filhos e sofrem com isso sem, no entanto, vislumbrarem alternativa para substituí-lo. Já o dano existencial ocorre mediante a “imposição de uma reclusão injustificada, o exercício do trabalho forçado ou qualquer meio ilegal que represente um cerceamento ao direito de ir e vir” (PALMEIRA SOBRINHO, 2012, p. 90). Por vias óbvias, esse é o prejuízo mais evidente aos jovens envolvidos em atividades laborais, sejam elas perigosas ou não. Quanto ao dano psíquico, de acordo com Mariano Castex (1997, citado por PALMEIRA SOBRINHO, 2012, p. 91), ele se refere a “deterioração, disfuncionalidade, distúrbio, transtorno ou desenvolvimento psicogenético ou psico-orgânico que, ao afetar as suas esferas volitiva e afetiva, resulte na limitação da sua capacidade de gozo individual, familiar, social e/ou recreativo”. Devido, então, a essa ampla abrangência, pode-se afirmar que o trabalho infantil causa esta modalidade de dano, pois as crianças e adolescentes adaptam sua rotina a uma dinâmica que lhes restringirá a dedicação aos estudos, ao lazer a as relações afetivas no âmbito social e familiar. Levando em conta todas essas constatações, percebe-se que o acidente no trabalho infantil é fruto de “dupla culpa contra a legalidade”, expressão trazida por Palmeira Sobrinho violadora do preceito normativo – constitucional e infraconstitucional – que proíbe o trabalho de crianças e adolescentes. Segundo porque a Constituição Federal também dispõe a respeito das condições mínimas que deve ter o ambiente de trabalho, a fim de preservar a integridade física e psíquica do trabalhador, bem como a sua saúde e bem-estar. Desse modo, por mais que o labor infanto-juvenil fosse permitido, haveria a conduta culposa do sujeito passivo que não zelou pelos direitos dos trabalhadores e empregados. Concomitantemente, outra causa do acidente no trabalho infantil é a ausência de razoabilidade em empregar crianças e adolescentes, do empregador ou dos pais, quando deveriam agir com cautela, seja por culpa ou dolo do patrão, seja por negligencia e imprudência dos responsáveis (e não propriamente do jovem, pois esse não tem o dever –
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em sua já citada obra. Primeiro porque há a conduta (seja culposa ou dolosa) do empregador
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FIDΣS juridicamente falando – de cuidar de si próprio). Aplica-se então a ideia contida na Súmula nº 341 do STF20 quanto à culpa presumida do empregador em matéria acidentária. Diante de todo o exposto, depreende-se que, em se tratando de acidente associado ao trabalho infantil, sempre poderá ser cogitada a indenização acidentária, visto que ambos os requisitos para tanto estão presentes: a violação de um dever normativo e um dano juridicamente relevante.
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mediante análise conjunta do Título II (Da Ordem Econômica e Financeira), Capítulo I (Princípios gerais da atividade econômica) da Constituição Federal de 1988, e considerando-se a realidade social dos jovens no Brasil, é perceptível que, apesar da Constituição Federal determinar a ordem econômica como fundada na valorização do trabalho humano com fins de assegurar aos cidadãos existência digna, o trabalho infantil (principalmente em sua modalidade perigosa) é prova da não efetivação deste preceito constitucional, visto que tal labor contraria não só o art. 227 do supracitado diploma normativo, como também o Estatuto da Criança e do Adolescente. A violação aos direitos desses menores ocorre não só por ação de quem emprega seus serviços, mas também por omissão do Estado. A falta de fiscalização ampla acaba por prejudicar a eficácia de políticas públicas que podem ser alternativas para as crianças e suas
Um trabalho eficaz teria que servir, também, como mapeamento para a identificação de quais famílias “precisam” daquele trabalho infantil para a sua sobrevivência mensal, e, a partir desse mapeamento, inseri-las em programas de oportunidades sociais, tais quais aqueles que oferecem melhores empregos para os pais ou responsáveis, condições dignas de moradia, estudo para as crianças e adolescentes e acesso a melhores serviços de saúde. Diante dessa situação faz-se necessário repensar o modelo de controle deste problema social que é o trabalho infantil, visando proteger não só os riscos físicos que decorrem dessa atividade, como também suas implicações psicologias e sociais, de forma a dar maior efetividade à proteção integral a crianças e adolescentes.
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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Súmula Vinculante nº 341. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumula&pagina=sumula_301_400>. Acesso em: 14 ago. 2013.
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famílias, tais quais o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e o Bolsa Família.
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FIDΣS REFERÊNCIAS
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São Paulo: Ltr., 2006.
PALMEIRA SOBRINHO, Zéu. Acidente do Trabalho: Crítica e Tendências. São Paulo: Ltr., 2012.
HARMFUL CHILD LABOR: HEALTH VIOLATIONS AND LEGAL AND SOCIAL CONSEQUENCES
ABSTRACT “Harmful Child Labor: Health Violations And Legal And Social Consequences” objectifies contextualize historically the issue of child
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setembro de 2005, que ampliou o limite de idade nos contratos de aprendizagem para 24 anos.
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FIDÎŁS labor, from the legal and conceptual foundations of this social problem to the connection of it with the public health. Thereby, it brings up the concept of the harmful child labor and its developments, including those from accidents at work. Thus, it concludes that the Principle of Full Protection, despite being an advanced institute, still lacks effectiveness in Brazilian reality. Keywords: Harmful Child Labor. Health Law. Principle of Full
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Protection.
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FIDΣS Recebido 8 fev. 2014 Aceito 18 mar. 2014
UMA ANÁLISE CRÍTICA DA ESTRUTURA REGULATÓRIA DO SETOR NUCLEAR BRASILEIRO Wescley Bruno Lima dos Santos Mariana de Siqueira RESUMO O acidente em Fukushima, no Japão, evidenciou riscos do desenvolvimento da tecnologia nuclear, exigindo dos países posturas firmes no sentido de garantir o adequado funcionamento de suas instalações. Sendo uma indústria eminentemente técnica e perigosa, é exigível que o governo garanta um controle e fiscalização rígidos e eficientes. Nesse sentido, este trabalho objetiva demonstrar a importância da criação de um marco regulatório para a indústria nuclear, a partir da proposta de uma agência reguladora própria, em análise pela Casa Civil. Atualmente, destaca-se a incoerência de um
controle, licenciamento e fiscalização. Palavras-chave:
Comissão
Nacional
de
Energia
Nuclear.
Constituição Federal de 1988. Monopólio. Regulação.
1 INTRODUÇÃO
Prevendo um crescimento econômico contínuo, há planos concretos de expansão da matriz energética brasileira até 2030. Essa ampliação visa não só o aumento da geração de
Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Cursando especialização em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (URFN). Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professora orientadora do trabalho em contenda.
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mesmo órgão exercer monopólio sobre a atividade e promover seu
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FIDΣS energia, como a diversificação de fontes, visto que, com a atual estagnação do setor hidrelétrico, há planos de construção de quatro usinas nucleares, além de termelétricas e da maior participação das energias renováveis (solar, eólica, maremotriz) no abastecimento nacional. Tratando-se especificamente do setor nuclear, o Governo Federal tem interesse em manter o seu modelo de licenciamento e fiscalização em perfeitas condições de funcionamento, isento de qualquer parcialidade e buscando, prioritariamente, a manutenção da radioproteção e segurança nuclear da população brasileira. Dada importância do setor nuclear brasileiro, a matéria tem tratamento específico em nossa Constituição Federal de 1988. O constituinte afere, no art. 177, V, que é monopólio, ou seja, é atividade exclusiva da União “a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados”, excepcionado somente os radioisótopos, que podem ter sua produção, comercialização e utilização autorizadas sob regime de permissão. Há ainda diversos outros dispositivos constitucionais que norteiam o uso da energia nuclear no país, dentre eles, pode-se destacar: o art. 21, XXIII, que evidencia o princípio do uso pacífico da atividade nuclear; o art. 49, XIV, especificando que o controle é exercido pelo Congresso Nacional; o parágrafo 3º do art. 177, que discorre sobre o transporte e utilização de material nuclear, dentre outros. Mais especificamente sobre o controle da atividade, que deveria ser exercido, em regra, pelo Congresso Nacional, é importante salientar que, desde o Decreto 40.110 de 1956,
fiscalização da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), autarquia que será um dos focos desse estudo. Interessante, quanto ao ponto, é que a CNEN não é só responsável por fiscalizar o setor nuclear brasileiro, como também é “encarregada de propor medidas julgadas necessárias à orientação política geral da energia atômica em todas as suas fases e aspectos” (art. 1º do Decreto 40.110) e, juntamente com suas empresas subordinadas, de exercer o monopólio da atividade. Sendo assim, é objetivo primordial deste trabalho demonstrar a incoerência brasileira em ter o mesmo agente atuando no exercício da atividade nuclear e como responsável por licenciar e fiscalizar o setor, garantindo o seu seguro e adequado funcionamento. Situação que se torna ainda mais preocupante por tratar-se de um setor em que qualquer pequena falha pode
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alterado pelas Leis nº. 4.118/62, 6.189/74 e 7.781/89, as atividades nucleares são submetidas à
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FIDΣS causar enormes danos ambientais, prejuízos financeiros e afetar diretamente a saúde de toda uma população. Diante da preocupação crescente das esferas governamentais, há muito se fala na criação de uma agência reguladora própria para o setor, de modo a garantir que as atividades de promoção e regulação sejam funcionalmente independentes. A própria CNEN, recentemente, defendeu o projeto em análise pela Casa Civil, afirmando, contudo, que, mesmo hoje, a independência funcional já é alcançada dentro da própria Comissão, através de uma subdivisão em duas diretorias distintas1. Malgrado tal posicionamento, a Convenção sobre Segurança Nuclear, adotada no âmbito da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) em 1994 e promulgada pelo Decreto 2.648/98, exige a formalização de um órgão regulatório próprio para o setor, dotado de estrutura independente, autoridade e competência para controlá-lo. As conclusões deste trabalho serão construídas em análises críticas da legislação vigente, da doutrina pátria e do desenvolvimento da matéria em outros países de experiência consolidada em Direito Nuclear. Todavia, antes de tratar das inovações e do aparato necessário para a consecução de um órgão regulatório nuclear autônomo, é preciso tecer algumas considerações importantes. Inicialmente, será traçado um histórico da intervenção do estado brasileiro na economia, visto que duas matérias relacionadas ao tema serão discutidas neste trabalho: o monopólio e as agências reguladoras. Ademais, não há, obviamente, como se afastar do Direito Econômico, a ordem econômica brasileira será brevemente exposta, na medida em que muitos de seus objetos são
trabalho, maiores ponderações e questionamentos serão feitos acerca desse instituto.
2
BREVES
CONSIDERAÇÕES
SOBRE
A
ORDEM
ECONÔMICA
NA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O MONOPÓLIO ESTATAL DA ATIVIDADE NUCLEAR
A Constituição Federal de 1988 é comumente classificada como uma constituição analítica ou prolixa. Os duzentos e cinquenta artigos de seu corpo fixo conjuntamente com os
1
SENADO FEDERAL. Diretor da CNEN defende agência reguladora para área de energia nuclear. 2011. Disponível em: <http://senado.jusbrasil.com.br/politica/6764931/diretor-da-cnen-defende-agencia-reguladorapara-area-de-energia-nuclear>. Acesso em: 09 nov. 2013.
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diretamente afetos ao tema. Lembrando que, sendo a regulação o foco principal deste
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FIDΣS noventa e sete que estruturam o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias abrangem uma infinidade de temáticas, numa clara tentativa de “constitucionalizar” e reger os mais diversos aspectos da vida em sociedade. O título VII trata, exclusivamente, da ordem econômica e financeira. Nele, o art. 170, ao introduzir a matéria, enuncia os princípios basilares da ordem, demonstrando uma mudança histórica definitiva de paradigmas: o ordenamento constitucional deixa de se definir como liberal ou social, diferentemente do que ocorreu nas Constituições anteriores, e passa a ser construído em torno de uma ideologia intervencionista moderada. A economia, normatizada, quase que exclusivamente, pelas próprias leis de mercado, necessita da atuação estatal meramente como órgão regulador em situações específicas. Dessa forma, a Constituição ratifica uma certa “autorregulação econômica”, ao mesmo tempo em que evidencia a necessidade de o Estado regular a economia, afastando-se, ao máximo, de sua participação como agente propriamente dito; nesse sentido, afirma Eros Grau (2012, p. 71):
As Constituições liberais não necessitavam, no seu nível (delas, Constituições liberais), dispor, explicitamente, normas que compusessem uma ordem econômica constitucional. A ordem econômica existente no mundo do ser não merecia reparos. Assim, bastava o que definido, constitucionalmente, em relação à propriedade privada e à liberdade contratual, ao quanto, não obstante, acrescentava-se umas poucas outras disposições veiculadas no nível infraconstitucional, confirmadoras do capitalismo concorrencial, para que se tivesse composta a normatividade da ordem
Importante observar, ainda, que as referidas transformações na percepção da vida econômica não se deram unicamente com a inserção da matéria no seio constitucional, uma vez que a economia encontra-se presente no ordenamento jurídico desde as primeiras Constituições escritas, mesmo que de forma implícita. A nova ordem, entretanto, traz como alicerce a profusão de normas de caráter intervencionista e a concepção de uma Constituição dirigente ou programática (GRAU, 2012, p. 73-75). As Constituições dirigentes ultrapassam a concepção de carta “instrumento de governo”. Assim como enunciado pela ADI 1.950 SP, por ser programática, nossa Constituição tem como dever enunciar “diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global normativo (...)”2.
2
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econômica liberal.
STF. ADI 1.950-SP. Pleno. Rel. Min. Eros Grau. j. 03.11.2005. DJU 02.06.2006.
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FIDΣS Pressupõe, ainda, que o Estado aja em conformidade com suas finalidades e objetivos, inserindo-se, aqui, os princípios elencados no art. 170. A partir desse aspecto, o Estado, ao lidar com a economia e traçar suas metas de crescimento econômico, não pode deixar de orientar-se por preceitos como a valorização do trabalho humano, a livre iniciativa, a função social da propriedade, a redução das desigualdades regionais e sociais, a defesa do meio ambiente e do consumidor, dentre outros. Não é objetivo do presente trabalho definir e explicar cada um dos princípios gerais da atividade econômica. Mesmo assim, é preciso observar que eles são de extrema importância nas transformações do Estado a partir da Constituição Federal de 1988. Observe que, a partir do momento em que a Constituição relaciona aspectos econômicos e sociais – através, por exemplo, dos princípios da função social da propriedade e da redução das desigualdades regionais e sociais –, o Estado ressalta sua nova configuração intervencionista. Ao definir-se como intervencionista, afirma que excederá a esfera do público, mas evitará inserir-se no mercado como concorrente dos particulares, funcionando como limitador da livre iniciativa. Em sua atuação, ele pode realizar serviço público ou atividade econômica e, em que pese a importância de tal distinção (GRAU, 2012, p. 90-92), não é necessário tratar o tema profundamente. Questiona-se, unicamente, a real natureza da atividade nuclear, visto que, à luz dos preceitos constitucionais em vigor, a atividade é exercida em exclusividade pela União e é vedada a atuação da iniciativa privada, ao mesmo tempo em que se sabe ser uma atividade de interesse econômico por excelência. O fato de ser exercida somente pelo ente estatal pressupõe não só a noção de serviço
incluir em um rol restrito de atividades que não podem ser desenvolvidas pela iniciativa privada. Apesar do claro viés econômico da atividade nuclear, o Poder Público, mesmo diante da política de desestatização da década de 1990, jamais permitiu a sua livre exploração por agentes privados, seguindo o mandamento do texto constitucional de 1988. Conclui-se, anteriormente, que a Constituição tira do Estado a possibilidade de atuar diretamente na economia e que sua atuação restringe-se a de órgão regulador. O art. 173, contudo, ao vedar a exploração da atividade econômica pelo Estado, pondera que essa só deverá ser permitida em casos em que “necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”. A leitura do dispositivo demonstra a vontade do Estado de afastar seu potencial empresário, reforçando o livre mercado e excepcionando, unicamente, situações de salvaguarda dos interessses da República e da sociedade como um todo.
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público, como também a de existir uma atividade de risco a qual a Constituição preferiu
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FIDΣS Essas exceções inserem o Estado no seio da atividade econômica e demonstram um dos modelos de intervenção estatal, sendo ainda mais “gravosas” quando se referem aos monopólios. Pressupondo que somente o agente estatal exerça uma atividade que “deveria” estar disponível a qualquer outro, o instituto vai de encontro a um dos corolários da ordem econômica brasileira: a livre concorrência. Apesar da incompatibilidade, os monopólios estatais não são inconstitucionais, sendo garantidos pela própria Constituição Federal de 1988. O estudo dos monopólios abrange a evolução histórica da atuação estatal no domínio econômico e sua classificação em conformidade com o motivo de sua existência - monopólio natural, convencional ou legal. Todavia, não há necessidade de se prolongar sobre tais aspectos, excetuando-se os monopólios legais presentes em nossa Constituição, uma vez que a atividade nuclear, objeto deste trabalho, se enquadra no rol taxativo do art. 177.
2.1 O monopólio na Constituição Federal de 1988
Como já demonstrado anteriormente, o art. 173 dispõe que a atuação direta do Estado na economia é de caráter subsidiário e excepcional. Em regra, o Poder Público não é agente econômico, mas entidade reguladora, atuando, somente, em atividades que envolvam a segurança nacional ou o interesse coletivo. Na atuação do Estado no domínio econômico, destacam-se os monopólios legais constitucionalmente previstos. O art. 177, conjuntamente com o disposto no art. 21, XXIII, elenca, taxativamente, as
relativizados por emendas supervenientes, incidem sobre as três principais matrizes energéticas naturais: o petróleo, o gás natural e os minérios nucleares (FIGUEIREDO, 2009, p. de internet). É fácil observar que os monopólios consubstanciados no texto constitucional vão de encontro ao princípio da livre iniciativa trazido na Constituição como princípio geral da atividade econômica. Pode-se questionar, aqui, por exemplo, se a exploração restrita dessas atividades pelo Estado não é prejudicial ao crescimento econômico, um posicionamento defendido por parte da doutrina (FIGUEIREDO, 2009, p. de internet). O entendimento esposado nas linhas anteriores não coaduna com nosso texto constitucional vigente, haja vista a clara determinação quanto à excepcionalidade da atuação estatal direta no domínio econômico e a necessidade da leitura e interpretação conjunta dos princípios constitucionais, uma vez que nenhum deles é absoluto. Em que pese a importância
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atividades econômicas exercidas e monopolizadas pela União. Esses monopólios, mesmo
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FIDΣS da livre iniciativa, existem outros princípios elementares para o enfrentamento da questão, tais quais: a soberania nacional, a defesa do meio ambiente, entre outros que limitam o livre mercado. Importante observar que a monopolização das matrizes energéticas se dá, em essência, pelos riscos que essas podem oferecer a segurança nacional e a coletividade. No caso particular das atividades ligadas aos minérios nucleares, não existe sequer um ente regulador autônomo para garantir o correto e seguro desenvolvimento desse setor, inviabilizando, em absoluto, a possibilidade de sua abertura para iniciativa privada.
2.2 O exercício do monopólio constitucional nuclear pela CNEN
O art. 2º da Lei n.º 6.189/74 estabelece a competência da Comissão Nacional de Energia Nuclear. Uma rápida leitura em seus dezoito incisos demonstra a amplitude do rol de atribuições da CNEN no exercício do monopólio constitucional nuclear: a Comissão é responsável por ajudar no estabelecimento de diretrizes da política nuclear nacional, pela difusão da pesquisa, pela criação de normas relacionadas e por quaisquer outras atividades que envolvam o manuseio de material nuclear – o licenciamento e as autorizações, a produção e o comércio, a fiscalização, o depósito de rejeitos, dentre outras. Apesar da evidente predominância do setor nas mãos da União, em verdade, com o rápido desenvolvimento tecnológico nuclear e observando a multiplicidade de seus usos e aplicações, o legislativo federal notou a inconveniência de toda a atividade ser de manuseio
Assim, a partir da aprovação da Proposta de Emenda Constitucional n.º 199/03, em 18 de janeiro de 2006, não se pode mais falar em monopólio integral, uma vez que aos particulares foi possibilitada a produção, a compra e a utilização de radioisótopos no setor médico, na agricultura e na indústria. Hoje, o governo chega a admitir, inclusive, possibilidades de abertura do campo para iniciativa privada, o que aparenta revestir-se de inconstitucionalidade e ser inadequado com a atual estrutura do setor nuclear brasileiro3. Em que pesem tais considerações e excetuando-se a operação das usinas, de competência da Eletronuclear, é da CNEN e de suas empresas controladas – Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e Nuclebras Engenharia Pesada (NUCLEB) – o monopólio quase
3
BAHNEMANN, Wellington. Iniciativa privada pode atuar na geração térmica nuclear. Estadão, São Paulo, 07 out. 2013. Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/noticias/economia-geral,iniciativa-privada-podeatuar-na-geracao-termica-nuclear,166666,0.htm>. Acesso em: 20 nov. 2013.
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privativo da União.
240
FIDΣS que integral da atividade nuclear brasileira. A situação leva a alguns absurdos e a CNEN, hoje, “regulamenta, licencia, fiscaliza, participa ativamente da formulação da política nuclear e realiza atividades operacionais, diretamente ou por meio de instituições a ela subordinadas” (BRASIL, 2006, p. 78). Ao comparar a nossa estrutura com a de países com arranjos institucionais um pouco mais sólidos, como os Estados Unidos, a Austrália, a Alemanha, o Canadá, a Espanha, a França e a própria Argentina, evidencia-se, novamente, a necessidade de independência entre atividades de regulação, licenciamento e fiscalização de atividades operacionais e de formulação da política nuclear (BRASIL, 2006, p. 79)4. Tratando-se de uma atividade permeada de riscos, um monopólio que abrange funções de atuação e outras próprias de entidades reguladoras traz riscos consideráveis ao setor nuclear brasileiro. O país, como já dito anteriormente, desrespeita Convenções formalizadas internacionalmente na Agência Internacional de Energia Atômica e apresenta um arranjo estrutural muito atrasado em relação a outras nações com indústria nuclear ativa. Considerando, ainda, que agências reguladoras independentes não são novidades no Brasil, haja vista sua profusão na década de 1990, e no intuito de conferir maior segurança à população e estruturar melhor o setor nuclear brasileiro, a proposta de criação de agência reguladora própria, em análise há anos na Casa Civil, deve ser vista como prioridade para o Governo Federal. Um novo marco regulatório para o setor pode ser decisivo no crescimento
3
O
PAPEL
DAS
AGÊNCIAS
REGULADORAS
INDEPENDENTES
NO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
A ideia de um Estado que se afasta da atuação direta na economia e assume um posto de intervencionista advém de sua identificação com falta de eficiência, morosidade, burocracia e desvio de recursos. A população passa a encarcar com descrença o potencial de progresso do Estado em setores nos quais ele costumava deter protagonismo econômico, político e social. Nesse contexto, o Estado não retorna ao seu modelo liberal-mínimo, mas
4
O relatório, nesse ponto, baseia-se em dois estudos: “Atividades sujeitas ao monopólio da União no campo da energia nuclear – legislação brasileira e estudo comparado com arranjos institucionais de outros países” e outro de autoria da Associação dos Fiscais de Radioproteção e Segurança Nuclear (AFEN) (BRASIL, 2006, p. 78).
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da indústria e no aumento de sua eficiência e confiabilidade.
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FIDΣS deixa de atuar no campo empresarial e assume como agente planejador, fiscalizador e regulador da atividade econômica (BARROSO, 2005, p. 2-5). Essa intensa transformação se deu, principalmente, na década de 1990 e se estabeleceu em três diferentes pilares, conforme lição de Barroso (2005, p. 5): (a) a flexibilização dos monopólios estatais, (b) a extinção de restrições ao capital estrangeiro e (c) a política nacional de desestatizações, fruto da Lei n.º 8.031/90. O Estado abre o mercado e cria novas possibilidades, mas não pode eximir-se de sua obrigação de manter o adequado funcionamento de serviços essenciais. Ao privatizar, por exemplo, ele transfere a execução de um serviço público a um particular, mas mantém seus deveres de órgão fiscalizador, o que a Constituição garante, inclusive, em atividades econômicas propriamente ditas. É o que se depreende da leitura do art. 174: “como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”. A atividade reguladora não surgiu a partir da política de privatizações dos anos 90 ou com o advento da Constituição de 1988. As primeiras configurações do modelo remetem à década de 1930, ainda que inexistisse a denominação de “agência reguladora” – é o caso do Instituto do Açúcar e do Álcool (1933) e do Instituto Nacional do Sal (1940). Inobstante a existência dessas entidades, não é difícil concluir que é a partir da onda de desestatizações de serviços públicos que o Estado estabelece como prioridade a criação de estruturas independentes para fiscalizar a execução e garantir a adequada prestação de
Atualmente, é importante lembrar que não existe uma lei que discipline as agências reguladoras de maneira geral. Sabe-se, entretanto, que são entidades criadas como autarquias de regime especial, sujeitando-se às normas constitucionais e as suas respectivas leis instituidoras. São dotadas de diversas caracaterísticas peculiares, como a forma de escolha de seus dirigentes e o seu mandato, o regime jurídico a que se submetem seus servidores, dentre outras. As características mais relevantes, contudo, são aquelas necessárias para garantir a independência funcional do órgão. Inspirados no modelo norte-americano de regulação, a independência das agências brasileiras não é tão facilmente compreendida como a visualizada nos Estados Unidos. A doutrina deste país necessitou de algumas adaptações para ser incorporada de maneira adequada no Brasil e, por mais que ainda existam muitas controvérsias sobre o tema, a
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atividades de caráter essencial a população.
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FIDΣS necessidade de fortalecimento dessa independência é clamor uníssono da doutrina pátria. Sobre as agências americanas, Di Pietro (2011, p. 482) tece algumas considerações:
No direito norte-americano, as agências reguladoras gozam de certa margem de independência em relação aos três Poderes do Estado: (a) em relação ao Poder Legislativo, porque dispõem de função normativa, que justifica o nome de órgão regulador ou agência reguladora; (b) em relação ao Poder Executivo, porque suas normas e decisões não podem ser alteradas ou revistas por autoridades estranhas ao próprio órgão; (c) em relação ao Poder Judiciário, porque dispõem de função quasejurisdicional, no sentido de que resolvem, no âmbito das atividades controladas pela agência, litígios entre os vários delegatários que exercem serviço público mediante concessão, permissão ou autorização e entre estes e os usuários dos serviços públicos.
No Brasil, praticamente inexiste independência quanto ao Poder Legislativo e ao Poder Judiciário, ao passo que as agências só poderão dirimir conflitos em última instância administrativa e, como qualquer outro órgão integrante da Administração Pública, suas decisões são suscetíveis a controle judicial, além da impossibilidade de emitirem atos normativos conflitantes com a legislação vigente, por força do princípio da legalidade. No tocante ao Poder Executivo, entretanto, por serem autarquias de regime especial e seus dirigentes gozarem de certa estabilidade, são dotadas de maior independência e seus atos não podem ser revistos ou alterados (DI PIETRO, 2011, p. 482). Caso fossem subordinadas diretamente aos Ministérios do Executivo e suas decisões
de um Ministério, as agências não alcançariam seu objetivo proposto. A regulação seria formalmente exercida por um Ministro e acabaria delegada a um órgão de hierarquia inferior, o que resultaria na irresponsabilidade de ambos. Na situação particular do setor nuclear, tal fato conduziria a um absurdo que, infelizmente, ocorre nos dias atuais: o Ministério não só conduziria indiretamente a atividade econômica em si, como também regularia o seu desenvolvimento através de suas estruturas subordinadas. A atipicidade do modelo regulatório frente ao tradicional aparato administrativo, o seu afastamento das instâncias políticas e a independência conferida às agências reguladoras existentes alicerçam o poder regulador. O vocábulo “regulação” contempla um grande número de atribuições específicas, que abrangem atividades executivas, normativas e decisórias: em seu caráter executivo, as agências são responsáveis por sua autoadministração;
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passíveis de revisão, seguindo a estrutura regular estatal e traduzindo-se em mera ramificação
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FIDΣS em âmbito normativo, podem criar atos normativos próprios para a atividade que regulam, não deixando de observar, entretanto, o princípio da legalidade; quanto ao decisório, atuam em conflitos que envolvam os próprios regulados ou eles e os consumidores a que se destinam seus serviços. Demonstrado o conceito abrangente de “regulação”, é importante salientar que este trabalho não objetiva elaborar um estudo das funções das agências reguladoras no país, mas propõe uma análise suscinta da regulação da atividade nuclear. Assim, serão tecidas algumas considerações sobre a função normativa, relacionada à independência do órgão, uma vez que é de extrema importância para que se entenda a necessidade de uma estrutura regulatória própria para um setor tão técnico e específico quanto o nuclear. A função normativa, hodiernamente, é a que gera maior número de polêmicas e controvérsias em nosso ordenamento jurídico5. Mesmo que a ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações) e a ANP (Agência Nacional do Petróleo) encontrem previsão de sua atividade reguladora no texto constitucional (arts. 21, XI e 177, §2º, II), as demais só são revestidas de poder normativo a partir do advento de suas leis instituidoras. Deixando de adentrar em outras celeumas jurídicas, ao estudo, é importante considerar que os atos normativos baixados pelas agências possuem certa limitação, por encontrar como fundamento a legislação vigente e a própria Constituição: não podem exceder tais parâmetros. Conforme lição de Di Pietro (2011, p. 483):
As normas que podem baixar resumem-se ao seguinte: (a) regular a própria
interpretar e explicitar conceitos jurídicos indeterminados contidos em lei, sem inovar na ordem jurídica.
Por não inovar, a atividade reguladora se afasta da legislativa. Caso exceda seus limites, a agência violará não só o princípio da separação de poderes, como também direitos fundamentais insculpidos em nossa Constituição Federal. Seu poder normativo, contudo, é decorrência de sua independência funcional e é pressuposto básico ao bom exercício da atividade reguladora. É claro que a especialidade e o distanciamento do setor político conferem maior legitimidade à atuação da agência naquele setor e, conhecendo melhor aquele tema, é razoável que atos normativos mais específicos sejam de competência deste órgão.
5
Estudo completo e minucioso sobre o assunto pode ser encontrado em ARAGÃO, Alexandre Santos de (coord.). O poder normativo das Agências Reguladoras. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
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atividade da agência por meio de normas de efeitos internos; (b) conceituar,
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FIDΣS Como visto acima, a especialização é característica que afere maior legitimidade à atuação das agências reguladoras, nos dizeres de Alexandre Aragão (2011, p. 24): “quanto mais o Direito conhecer o campo a ser regulado, mais chances terá de propiciar uma regulação eficiente e dotada de maior efetividade”. Tendo o poder de ditar normas com a mesma força de lei a fim de regular a área em que atuam, as agências não se prendem a uma perspectiva jurídico-dogmática, mas comunicam-se com diversas outras áreas de conhecimento. Notadamente, uma agência que regule o setor nuclear, por exemplo, não poderá focar-se exclusivamente em normas que dão alicerce ao setor, mas necessitará de contribuições de pesquisadores das áreas afins, como a tecnologia, a saúde, o meio-ambiente, o trabalho, entre outros. A especialização setorial, sem dúvidas, é outro ponto que demonstra a necessidade de órgãos regulatórios em nosso ordenamento. Ora, sozinhos, o Poder Executivo e o Legislativo, jamais conseguiriam cuidar da infinidade de assuntos de domínio estatal e é sob esse esteio que a Administração se desconcentra e se descentraliza, com o fim precípuo de atender as demandas essenciais da população. O acúmulo de tarefas em um mesmo órgão e a abrangência de temáticas abordadas tornam sua atuação ineficiente e superficial. No mais, com a criação das agências reguladoras independentes, outro ponto que necessita ser entendido é que se coloca o consumidor, o cidadão, como beneficiário direto da regulação: o Estado, anteriormente regulado, deixa de se utilizar da atividade como meio para garantir a defesa de seus interesses e, a partir dali, usa o agente regulador como instrumento Como evidencia a lição de Floriano de Azevedo (2005, p. 5), “a separação entre o operador e o regulador, para os fins do que interesse nesse tópico, permite uma maior neutralidade do regulador em relação aos interesses do Estado ou da operadora da atividade”. Aqui, independentemente de essa atividade ser exercida por entidades públicas ou agentes privados, deve haver essa separação, de maneira que o operador não influencie no desenvolvimento da atividade reguladora, que pressupõe, como já demonstrado, uma independência de atuação. Apesar de o maior desafio para a consolidação das agências reguladoras no Brasil ser os limites do seu já citado poder normativo e a sua legitimidade democrática, no caso da reestruturação da regulação do setor nuclear, o ponto que necessitará de reformas mais gravosas é a atuação da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), que funciona como estrutura reguladora, elabora a política nacional e conduz as atividades operacionais do setor.
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eficiente para tutela dos interesses da própria sociedade.
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FIDΣS
4 O PROJETO DE CRIAÇÃO DE UMA AGÊNCIA REGULADORA PARA O SETOR NUCLEAR
BRASILEIRO:
REPENSANDO
AS
FUNÇÕES
DA
COMISSÃO
NACIONAL DE ENERGIA NUCLEAR
Atualmente, o governo estuda possibilidades de expandir o setor nuclear brasileiro. A provável construção de quatro novas usinas nos próximos anos pressupõe uma necessária segregação entre os órgãos que realizam as atividades operacionais, regulatórias e a construção política do setor. A criação de uma agência reguladora própria sustenta-se não só na independência que seria criada a partir de um órgão específico para realizar a regulação, como também no fato de estar lidando com uma indústria que envolve riscos à saúde da população e ao meio ambiente. Por mais que se afirme que a separação das atividades da CNEN envolveria elevados custos e que não há urgência pelo fato de o setor nuclear ser reduzido, não se trata aqui de mera exigência formal da atividade reguladora. Questiona-se a postura brasileira frente a convenções internacionais ratificadas pelo país, principalmente a Convenção Internacional de Segurança Nuclear, e a obrigação do Estado de “prover os meios físicos, financeiros e institucionais que garantam à população a segurança que ela tem direito” (BRASIL, 2006, p. 95). O atual arranjo institucional centralizador da CNEN vem sendo questionado há pelo
Relatório AFEN (2000), Relatório Tundisi (2002) e Relatório da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados (2006). Afirma-se que, estruturalmente, nosso país se assemelha com o Irã, o Paquistão e a Coreia do Norte, Estados que possuem uma política nuclear controversa e que têm sido alvos de fortes críticas no contexto internacional (BRASIL, 2006, p. 219). Ser comparado com países que são costumeiramente reconhecidos pela falta de transparência em seus programas nucleares, pela baixa confiabilidade de seus relatórios e por se negarem a receber representações internacionais em suas instalações é bastante preocupante. Com o desenvolvimento tecnológico-nuclear em nosso país, já não se pode mais sustentar uma indústria permeada em sigilo, uma indústria que funciona como fiscal de si mesma e desempenha, sozinha, atividades amplamente opostas: a operação, a formulação de
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Pública e da sociedade civil – Sociedade Brasileira de Física (1977), Relatório Vargas (1985),
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menos trinta e cinco anos, por uma série de relatórios emitidos por órgãos da Administração
FIDΣS políticas e a regulação. Em relatório apresentado pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados (BRASIL, 2006, p. 222):
A área nuclear brasileira, historicamente, converteu-se em uma verdadeira caixapreta, não existindo transparência das suas atividades para a sociedade. O Governo ainda trata a área nuclear com a visão miliciana de soberania e defesa nacional, onde tudo é sigiloso, quando poderia, ao contrário, adotar uma postura mais democrática e moderna, voltada para a segurança da população e do meio ambiente. Há necessidade de desenvolvimento de instrumentos que possibilitem a democratização do acesso às informações, assim como a adoção de um enfoque participativo da sociedade e o tratamento aberto das questões controversas. Espera-se que em algum momento o governo seja corajoso bastante para enfrentar este desafio e rompa com os procedimentos arcaicos adotados hoje.
O modelo atual nos remete à organização econômica de nosso país na metade do século passado, não só pela instrumentalização do monopólio estatal da atividade, que, como já exposto, é uma medida razoável frente à insegurança e à falta de confiabilidade trazida pela estrutura híbrida da CNEN, mas pelo fato de que o Estado toma aquela atividade econômica para si e não se preocupa sequer em criar uma estrutura responsável por sua fiscalização, regulação e divulgação de informações ao público. Outro ponto que seria bastante positivo na criação de uma agência reguladora é a formalização de parâmetros legais para a atividade. Como já visto anteriormente, a Constituição de 1988 só se refere à regulação ao tratar de duas agências: da ANP e da
que incorporaram o poder regulador à CNEN são omissas e não pormenorizam como se dará a atividade, a tipificação de infrações e as sanções cabíveis, além de não especificarem os servidores responsáveis por tal trabalho. Atualmente, a situação leva a conflitos de competência entre a CNEN e outros órgãos públicos, e não há lei que reconheça formalmente a carreira de auditor fiscal do setor nuclear, sendo os servidores enquadrados em Ciências e Tecnologia e atuando como meros “opinadores”, haja vista não terem qualquer garantia e seus trabalhos poderem ser facilmente desconsiderados pela CNEN. O projeto de criação de uma agência reguladora para o setor objetiva solucionar essas e tantas outras problemáticas que circundam a concentração de funções na CNEN. Com apoio, inclusive, da Agência Internacional de Energia Atômica, a construção de uma agência
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ANATEL. Todas as outras buscam seus limites de atuação em suas leis instituidoras. As leis
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FIDΣS é fundamental para garantir a segurança da população e do meio ambiente, com o efetivo exercício das funções envolvidas na atividade regulatória – compreendendo, aqui, o licenciamento, a regulamentação, o controle e a fiscalização. A CNEN, hoje, vinculada diretamente ao Ministério da Ciência e Tecnologia, necessita focar-se no exercício do monopólio estatal nuclear, sendo retiradas de si competências relativas às funções regulatórias. A garantia de independência funcional do órgão regulador é pressuposto básico na manutenção da segurança nuclear e não será alcançada se preservada a ampla competência da Comissão e a vinculação da atividade regulatória ao Ministério. Entende-se ser impossível alcançar a independência absoluta, uma vez que as agências, como autarquias de regime especial, vinculam-se à Presidência da República, modelo também seguido pelos Estados Unidos e Argentina. Malgrado tal fato, afastando-se dos Ministérios, podem se impor politicamente frente a todos os outros “que, de uma forma ou outra, tenham que requerer licenças ou autorizações para construir ou operar” (RABELLO, 2009, p. de internet)6. A independência também deve pressupor que os cargos de diretoria da agência jamais sejam ocupados por dirigentes de seus regulados, tais como a própria CNEN, suas empresas subordinadas e a Eletronuclear, de modo que não atue de acordo com a conveniência desses. Como prezará pela saúde da população, do meio ambiente envolto e dos trabalhadores do setor, a agência deverá ser composta por representantes dos três setores, fator que agregará maior legitimidade à atuação do órgão.
partirá de um marco zero: o desenvolvimento de órgãos regulatórios independentes para o setor nuclear dispõe de consolidada experiência internacional e amplo apoio da AIEA. A demora na análise do projeto denota que o Poder Executivo tem empreendido esforços na consecução de um modelo que atenda às necessidades do setor e acabe com as incongruências existentes nas funções da CNEN. Entretanto, trata-se aqui de matéria que envolve riscos e a situação caótica dos dias atuais não pode subsistir por muito tempo.
6
RABELLO, Sidney Luiz. 6. Legislação moderna para agência reguladora nuclear e a garantia da segurança das usinas nucleares no Brasil (contribuição para o debate). Parte 1. Jornal da Ciência, São Paulo, 13 fev. 2014. Disponível em: <http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=63251>. Acesso em: 11 nov. 2013.
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Felizmente, a instalação de um marco regulatório próprio não é utopia. O país não
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FIDΣS 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Somente no último século, influenciado por crises e outros fatos históricos relevantes, o mundo presenciou três diferentes formas de condução da política econômica, baseadas na intensidade de participação do Estado na economia. A quebra da bolsa de valores de Nova Iorque em 1929, por exemplo, destruiu o Estado puramente Liberal, alicerçado na ideia de afastamento absoluto do Estado da economia e tão louvado com a rápida ascensão estadunidense no início do século XX. A Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919, por sua vez, criaram a concepção de Estado Social, momento em que se observa a inserção do Estado no domínio econômico como agente empresário. Ainda no fim da década de 1980, com o esfacelamento da União Soviética e a queda do modelo socialista, a atuação do Estado como agente econômico passa a ser bastante questionada. Nos setores em que há forte atuação estatal, a população não visualiza perspectivas de progresso, seja pela burocracia, pela ineficiência, pela morosidade ou mesmo pela corrupção da estrutura. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 inaugura o Estado Democrático de Direito. O novo modelo pressupõe um amplo regramento constitucional da vida em sociedade e, quanto à economia, opta por um liberalismo cerceado por princípios sociais, o que se consubstanciaria em nosso modelo neoliberal. Na garantia de efetividade desses princípios insculpidos no texto constitucional, o Estado já não permite o livre mercado irrestrito e a autorregulação dos agentes econômicos, além de afastar seu potencial empresário, mas passa
Em que pesem tais considerações, alegando soberania nacional e questões atinentes à segurança de sua população, o Estado brasileiro formalizou monopólios constitucionais, reservando para si atividades econômicas em que julga inviável a atuação de agentes privados. É o que ocorre, por exemplo, com o manuseio de minerais nucleares e a produção de energética. Como se pode concluir, os monopólios não são uma afronta à política neoliberal do Estado, mas um sopesamento dos princípios gerais da atividade econômica, trazidos pelo art. 170 da Constituição de 1988. No caso das atividades nucleares, por mais que o Governo Federal considere a possibilidade de abertura do mercado para a iniciativa privada, a estrutura vigente inviabiliza em absoluto tal proposta, não observa convenções internacionalmente estabelecidas e não passa confiabilidade ou segurança à população.
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a intervir de modo indireto na economia, como agente regulador.
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FIDΣS A função híbrida da Comissão Nacional de Energia Nuclear como agente operacional, regulador e formulador de política é, provavelmente, um dos arranjos institucionais mais ilógicos existentes em nosso país. A regulação, que ganhou mais destaque com a política de privatizações da década de 1990, pressupõe a segregação entre os órgãos que executam essas três atividades e a formalização de uma agência independente, não contaminada com os interesses econômicos dos seus regulados. Infelizmente, o modelo brasileiro atual é comparado exclusivamente ao de países que tratam a política nuclear como segredo de Estado, cogitam seu uso para fins militares e impedem a visitação de organizações internacionais que inspecionam a atividade. A construção de uma estrutura responsável formalmente pela regulação e que garanta o bom e seguro desenvolvimento da indústria nuclear é de extrema importância para que o país corrija seu atual modelo irregular. No caso do setor nuclear, a função de uma agência reguladora própria se traduziria nos mais diversos significados do vocábulo “regulação”, abrangendo desde a criação de regulamentos específicos para a atividade até o adequado funcionamento do licenciamento e da fiscalização da extração e transporte de minérios, da operação de usinas, do tratamento e armazenamento de rejeitos radioativos etc. Subordinada ao Ministério de Ciências e Tecnologia e responsável por exercer o monopólio da atividade nuclear, a CNEN não guarda a independência necessária para atuar efetivamente na regulação. A criação de uma agência, vinculada diretamente à Presidência da República, é imprescindível para garantir a independência funcional e a emissão de decisões
A separação deve ser absoluta, impossibilitando-se, inclusive, que os dirigentes de uma venham a atuar na diretoria de outra. A falta de independência não é o único problema do setor, mas conduz a outros, tais como a inexistência de uma auditoria fiscal no órgão e a possibilidade dos servidores designados para a função fiscalizadora terem seus pareceres desconsiderados, haja vista não possuirem qualquer garantia no desempenho dessa função. Por fim, considerando o projeto de criação da agência reguladora de energia nuclear, em tramitação há anos na Casa Civil, ele jamais elucidará todas as controvérsias relativas ao estudo das agências reguladoras, uma vez que, dada a contemporaneidade da matéria, necessitará, ainda, de desenvolvimento jurisprudencial e doutrinário nos próximos anos, mas importa salientar que ele é determinante para que o Brasil se adeque ao modelo internacional vigente, corrija seu arranjo institucional irregular e aproxime-se da população, na medida em
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não viciadas por interesses econômicos da própria Comissão.
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FIDΣS que desmistifique a indústria nuclear e a torne mais transparente e suas informações mais acessíveis.
REFERÊNCIAS
ARAGÃO, Alexandre Santos de (coord.). O poder normativo das Agências Reguladoras. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
BARROSO, Luís Roberto. Constituição, Ordem Econômica e Agências Reguladoras. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, nº. 1, fev. 2005. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-1-FEVEREIRO-2005-ROBERTOBARROSO.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2013.
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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2011.
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GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988 (interpretação e crítica). 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
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FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. A questão do monopólio na Constituição da República
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FIDΣS
A
CRITICAL
ANALYSIS
OF
THE
BRAZILIAN
NUCLEAR
INDUSTRY
REGULATORY FRAMEWORK
ABSTRACT The accident in Fukushima, Japan, showed the risks of developing nuclear technology and demanded firm positions of countries to ensure the proper operation of its plants. As it’s a highly technical and dangerous industry, the government is required to ensure that their control and supervision are done strictly and efficiently. In this bias, this article intends to demonstrate the importance of establishing a regulatory framework for the nuclear industry, from the proposal of a specific regulatory body, presently under review by the Presidency. Currently, it’s seen the inconsistency of only one body exercising a monopoly over activities and promoting control, licensing and supervision. Keywords: National Commission of Nuclear Energy. Federal
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Constitution of 1988. Monopoly. Regulamentation.
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FIDΣS Recebido 16 abr. 2014 Aceito 17 abr. 2014
CANTO DO CÁRCERE, NUM ÚLTIMO ADEUS Aos camaradas e amigos, companheiros e companheiras, mortos e desaparecidos Juliano Homem de Siqueira
Como poderás inventar uma paz Que concorda sem se lembrar. Onde encontrarás a memória perdida, Entre o susto e um pobre começar, Para encontrar risada, sofrendo, Mirando, tão terrível, o último adeus. Querida, o céu não pode ajudar Para apagar o mal da verdade, E, embora minha terra esteja longe, Sua dor me bate num tom marcial E ocorre-me pensar que eu não posso chorar. Porque chorar só leva a lamentar E à calma nostalgia por aqueles que não são, nem estão. E com o tempo a memória torna tudo morto E, então, você vai perguntar:
Mestrado: Teoria Geral do Estado (UFPE-UFRN). Especialização: Ciência Política (FJA); Filosofia dos Valores (Política, Ética e Estética)-UFRN. Graduação: Ciência Sociais e Jurídicas - Direito (UFRN); Sociologia e Política (FJA-UFRN). Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
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Onde ficou o Rio de Janeiro Que Chico e Noel cantaram, Embora não chorando por você, Brasil. Não posso esquecer de centenas Que cantaram, amaram, sonharam, Olhando para o instante das últimas despedidas, Do último adeus.
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FIDΣS Onde estão os culpados letais, Olhando para o fantasma do último adeus. Quero juntar minha canção ao seu canto, Em uma história que ainda esta por vir, Onde aquele choro cubra-se Com seu manto de ferro e, em seguida, lembre-se Daqueles que amaram, cantaram, sonharam, Tendo vergonha de assistir o fantasma do último adeus. Ai Brasil, salva a minha fé Que canta com sua terra e sua voz. Eu não posso ajudar, mas me levantar Para o meu tempo, Com sua música, com o meu amor, Com a esperança, a força, a resistência, Que vivo em ti.
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E se outro tempo, sedento de ódio, Outra vez, volta a invadir o amor, Eu, que amo a retomada, anuncio: Nunca te esqueças de que existe no Caribe, E espero que você encontre, Um verde, uma justiça, a esperar Aqueles que amaram, cantaram, sonharam, Olhando para a beleza das últimas despedidas.
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