Giramundo #2

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R E V I STA D E G EOGRAFI A DO COLÉ G I O PEDR O I I

2014 #2

AS M AT R I ZE S C U R R I C U L A R E S D E G EO G RAFIA D A P RO VÍN CIA D E BUEN OS AIRES COM O T E M A P O L Í T I C O , C U LT U R A L E D E CID AD AN IA | U M E STU D O SO B R E O EN EM E O CU R R ÍCUL O D E G E O G R A F I A N O E NSINO MÉ D IO | IN VESTIG AN D O O CURRÍC ULO DA GE OG R A F I A E S C O L A R | D I S C U T I ND O SO B R E A R E LE VÂNCIA D A G E O G RA FI A DO RI O D E J AN E IR O N O C U R R Í C U L O DO E NSINO MÉ D IO | A CO N STR UÇÃO D A NAÇ ÃO NOS LIVR OS DI D ÁT I C O S D E G E O G R AFIA D A PRIM EIRA REPÚBLICA | PAR A AL ÉM DOS MUROS DA E SC O L A : A R E L A Ç Ã O C I D AD E -E D U CAÇÃO E M D E B ATE | P R Á T I C A S P E D A G Ó G I C A S _ F U N K E G EO G RAFIA | O Q U E O SKATE PO D E DI ZER SOBRE O E N SIN O D E G EO G R A F I A ? | LABO RATÓ RIO D E PRÁTICAS E RACIO N ALIDADES URBANA S – L A P R A R U A | M A R A C A NÃ: IMPR E SSÕ E S E PE R CE PÇÕ E S D O S A LUN OS COM D E F ICIÊ N C I A V I S U A L D O I N S TITU TO B E NJAMIN CO NSTANT | A FAVEL A SOB O OL HAR DE A L U N O S D E C L A S S E S P O P ULARES | AR MAZE NZINH O | E N T R E V I S T A C O M O P R O F E S S O R J O Ã O R U A | R E SE NH A_ G EO G RAFIA EM Q UAD RIN HO S

ISSN 2 3 5 8 - 7 0 6 7


REVISTA DO DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA DO COLÉGIO PEDRO II ISSN: 2358-7067 E-ISSN: 2358-4467 Colégio Pedro II Reitor: Oscar Halac Pró-Reitor de Ensino: Flavio Costa Balod Pró-Reitora de Pós-graduação, Pesquisa, Extensão e Cultura: Márcia Oliva Chefe do Departamento de Geografia: Arnaldo Barbosa de Melo Filho Editor Demian Garcia Castro Conselho Editorial Carolina Lima Vilela, Márcio Ferreira Nery Corrêa, Pedro Paulo Biazzo. Conselho Avaliador Ana Angelita Rocha (UFRJ) André Novaes (UERJ) Angela Nunes Damasceno Gomes (UFMS / Colégio Pedro II) Enio Serra (UFRJ) Glaucio Jose Marafon (UERJ) Isaac Gabriel Gayer Fialho da Rosa (Colégio Pedro II e FIC) João Luiz Figueiredo (PUC-Rio / ESPM-Rio) Marcio da Costa Berbat (UNIRIO) Yan Navarro da Fonseca Paixão (Colégio Pedro II) Projeto Gráfico André Mantelli Fotografias Demian Castro (entrevista com João Rua), Leandro Tartaglia (Capa e artigo Graffiti), Luciana Arruda (artigo alunos no Maracanã), Pedro Orelha (artigo Skate), André Mantelli (aberturas de artigos)

Publicação semestral do Departamento de Geografia do Colégio Pedro II. Campo de São Cristóvão, 177, Campus São Cristóvão III, 3º andar, Sala do Departamento de Geografia. São Cristóvão, Rio de Janeiro, RJ. CEP: 20921-903. Informações, envio de textos e versão eletrônica da revista: http://www.cp2.g12.br/ojs/index.php/GIRAMUNDO/index email: giramundo@cp2.g12.br X


GIRAMUNDO 2014 #2 APRESENTAÇÃO

D E M IA N G A R C IA CAST RO Editor d emia ncas tro@y ahoo.co m . b r

Após o lançamento da Revista GIRAMUNDO, tivemos respostas muito positivas de estudantes de graduação, professores da Educação Básica e pesquisadores interessados no debate sobre ensino de Geografia. Essas avaliações aumentaram nossa responsabilidade na composição deste segundo número. Gostaríamos de agradecer aos autores, que apostaram na revista como espaço para a divulgação dos seus trabalhos, e, aos avaliadores, que através de criteriosos pareceres contribuíram para estabelecer um padrão de qualidade aos trabalhos apresentados. A maioria dos artigos desta edição possui como tema o debate sobre currículo, que aparece de diferentes formas. São focalizados o recente processo de reformulação da matriz curricular da província de Buenos Aires, o ENEM como uma política de escala que visa uma organização curricular para todo país, as permanências e mudanças da abordagem regional no currículo de geografia escolar e a construção de uma ideia e imagem de Brasil nos livros didáticos de Geografia do ensino secundário na Primeira República. O último artigo da lista vai em outra direção: estabelece um diálogo entre a geografia urbana e o ensino de Geografia, discutindo o lugar da escola na cidade e as modalidades de educação que ocorrem “para além dos muros da escola”. As práticas pedagógicas desse número tiveram como tema a geografia urbana. Três professores do Colégio Pedro II, que atuam em diferentes campi, apresentaram possibilidades de tratamento de temas ainda marginais na geografia urbana e, mais ainda, na geografia escolar, porém, amplamente vinculados à juventude: funk, skate e grafite. Nesta seção, também, são apresentados as impressões que alunos com deficiência visual do Instituto Benjamin Constant tiveram ao visitar o Estádio do Maracanã, o relato de uma experiência que mostra os significados atribuídos à favela a partir de falas de alunos de classes populares e o portal Armazenzinho, elaborado pela prefeitura do Rio de Janeiro, com informações voltadas especialmente para alunos e professores da Edução Básica. A entrevista deste número é também uma homenagem ao professor João Rua, um referencial de professor e intelectual que influenciou gerações de ex-alunos com suas práticas e ensinamentos. Nela, podemos conhecer um pouco da sua trajetória, dos profissionais que influenciaram sua formação acadêmica e docente e de suas opiniões sobre as dificuldades encontradas pelos professores de Geografia, entre outros assuntos. Nesta edição, inauguramos a seção de resenhas, com uma apresentação crítica do livro Geografia em Quadrinhos. Esperamos que nos próximos números sejam submetidas outras resenhas de livros recém-lançados, vinculados diretamente ao debate sobre ensino de Geografia, e de filmes e álbuns musicais, relacionados à temática em tela. Desejamos uma boa leitura, esperamos que os textos aqui apresentados possam colaborar com os debates da área e convidamos a todos os interessados para se apropriarem desse espaço acessando, divulgando e debatendo seu conteúdo, bem como submetendo suas contribuições.

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2 0 1 4 #2 g ir am undo@cp2.g12.br

A S M AT R I Z E S C U R R IC U L AR E S DE GE O GR AF IA DA P ROVÍNCIA DE BUE NOS A IRE S C OM O T E M A P O L ÍT IC O, C U LT U R AL E DE C IDA DA NIA (2005- 2012) POR GABRIEL ÁLVAREZ_ 0 7 U M E S T U D O S O B RE O E NE M E O C U R R ÍC U LO DE GE OGRA FIA NO E NS INO M É DIO POR ANA ANGELITA ROCHA_ 2 1 INVE S T I G A N D O O C U R R ÍC U L O DA GE O GR AF IA E S COL A R: P E RM A NÊ NCIA S E MUDA N Ç A S N A A BO R DAGE M R E GIO NAL (1 970- 2010) POR TERESA CRISTINA JACCOUD ORLANDE_ 3 3 D IS CU T I N D O S O BR E A R E L E VÂNC IA DA GE OGRA FIA DO RIO DE JA NE IRO N O C U R R Í C U L O DO E NSINO M É DIO POR MARGARIDA AMBROGI DA SILVA CUNHA_ 4 5 A C O N S T R U Ç Ã O DA NAÇ ÃO NO S L IV R O S DID ÁT ICOS DE GE OGRA FIA DA P RIM E IRA RE P ÚBL ICA POR NAIEMER RIBEIRO DE CARVALHO_ 5 5 PA R A A L É M D O S MU R O S DA E SC O L A: A R E LA ÇÃ O CIDA DE - E DUCA ÇÃ O E M DE BAT E POR MARCUS VINICIUS GOMES_ 6 7 P RÁTI CAS P E DA G Ó G ICA S FUNK E G E O G R A FIA: B R E V E S R E F L E XÕ E S E RE L AT OS DE E X P E RIÊ NCIA S P E DA GÓGICA S POR LEONARDO DE CASTRO FERREIRA_ 8 1 O Q UE O S K AT E P O DE DIZE R SO B R E O E NSI NO DE GE OGRA FIA ? POR LUCIANO HERMES DA SILVA E NELSON DINIZ_ 9 1 LA BO R AT Ó R I O D E PR ÁT IC AS E R AC IO NAL IDA DE S URBA NA S – L A P RA RUA POR LEANDRO TARTAGLIA_ 9 9 MA RA C A N Ã : I M P RE SSÕ E S E PE R C E PÇ Õ E S DOS A L UNOS COM DE FICIÊ NCIA VIS UA L DO INS T IT UTO B ENJ A M I N C O N S TANT (IB C ) DU R ANT E V ISITA GUIA DA A O E S TÁ DIO POR LUCIANA MARIA SANTOS DE ARRUDA, FERNANDO DA COSTA FERREIRA E ROBSON LOPES DE FREITAS JUNIOR_ 109 A FAV E L A S O B O O L HAR DE AL U NO S DE C LA S S E S P OP UL A RE S POR VALÉRIA GRACE COSTA_ 1 1 4 A R M A Z E N Z I N H O : M Ó DU L O DO AR MAZÉ M DE DA DOS PA RA DIS S E M INA ÇÃ O DE INFORM A ÇÕE S H IS T Ó R I C A S E G E O GR ÁF IC AS SO B R E A C IDADE DO RIO DE JA NE IRO DIRE CIONA DO A E S T UDA NTES E P R OFE S S O R E S. POR LUIZ MURILLO NUNES TOBIAS, MARIA LUIZA FURTADO DE MENDONÇA E NEIDE CARVALHO MONTEIRO_ 118

E N TR EV I S TA C OM O PRO FE SSO R JOÃ O R UA _ 125 R E S ENH A _ G E O GR AF IA E M Q U ADR INHO S: IM A GINA NDO UM M UNDO E M S A L A DE A UL A . P ORTO A LEG R E : D E R I VA , 2 0 1 4 . POR MARCOS RODRIGUES ORNELAS DE LIMA_ 1 4 0 5


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AS MATRIZES CURRICULARES DE GEOGRAFIA DA PROVÍNCIA DE BUENOS AIRES COMO TEMA POLÍTICO, CULTURAL E DE CIDADANIA (2005-2012)1 2 CURRICULUM MATRICES OF GEOGRAPHY OF BUENOS AIRES PROVINCE AS A POLITICAL, CITIZENS AND CULTURAL SUBJECT (2005-2012)

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UNSAM, UNTreF y UNCPBA – UNICEN e ISFD Pcia. Bs.As. g ab rie l hal v arez@y ahoo.co m . a r

RESU M O: D E S D E O A N O D E 2 0 0 5 AT É O P R E S EN T E , O S IS T E M A E DUC AT IVO DA JURIS DIÇ ÃO IM P LE M E NT OU NA ESCOL A SECUND Á R IA U M A S É R I E D E M U D A N Ç A S C U R R I C U L A RE S E INS T IT UC IONAIS DE S T INADAS A P OR FIM À RE FORM A EDUCATI VA D OS A N OS 9 0 . N O Â M B I TO C U R R I C U L A R , E N O C A S O DA DIS C IP LINA DE GE OGRAFIA, S E P ROP ÔS UM A RE AVALIAÇ ÃO SOBRE O SEN TID O D E S E U E N S I N O , A S S I M C O M O D E S U A R E L EVÂNC IA E S IGNIFIC ADO NA FORM AÇ ÃO DO E S T UDANT E C OM O UM SUJEI TO POLÍT ICO. D E S T E M O D O , E S TE A RT I G O T E M P O R F I NALIDADE AP RE S E NTAR UM RE C ORT E DO P ROC E S S O DE M UDANÇA EM QUESTÃ O A PA RT IR DA E N U N C I A Ç Ã O D O S P R O P Ó S I T OS E INT E NC IONALIDADE S P OLÍT IC AS , DO PADRÃO INT E RP RE TAT I VO E DOS EIXO S D A S P R OB LE M ÁTI C A S G E O G R Á F I C A S S E L EC I O NADAS , E NT RE OUT ROS E LE M E NT OS C URRIC ULARE S . PALAVRA S-C HAV E: MUD A N Ç A C U R R IC U L A R ; E N SIN O D E G E O G R A F I A ; D I S C I P L I N A S ES C O L A R ES ; F O R M A Ç Ã O P O L Í TI C A E C I D A D Ã D O E STUDANTE.

ABST RAC T: IT HE J U R I S D I C T I O N A L ED U C ATI O N A L SY S T E M IS IM P LE M E NT ING FOR T H E M IDDLE S C H OOL A NUMBER OF CURR IC U LA R A N D IN S TI TU TI O N A L C H A N G E S A I M E D AT E NDING T H E E DUC AT IVE RE FORM OF T H E 9 0 S . FROM T H E C UR RI CUL UM, AND IN T HE CA S E OF T H E G E O G R A P H Y M ATT E R , H A S PROP OS E D A RE -E XAM INAT ION OF T H E M E ANING OF IT ´ S T H E IR TEACHI NG, AND R E LE VA N C E A N D S I G N I F I C A N C E I N T H E F O R M AT I O N OF T H E S T UDE NT AS A P OLIT IC AL S UBJE C T. T H US , T H IS P RE SENTATI ON IS IN T E N D E D T O C OM M U N I C ATE A C U T O F T H E C H A NGE P ROC E S S AT IS S UE FROM T H E S TAT E M E NT OF T H E P URP OSES AND POLIT ICA L IN T E N T IONS , TH E I N T E R P R ETATI V E F R A M E W ORK ADOP T E D AND T H E AXE S OF S E LE C T E D GE OGRAP H IC IS S UES, AMONG OTHER E LE M E N T S OF T H E C U R R I C U L U M . KEYWORDS : CURRI CUL U M C H A N G E ; G E OG R A PH Y T E A C H IN G; S C H O O L D I S C I P L I N ES ; P O L I TI C A L A N D C I VI C ED U C ATI O N O F S TU D EN T.

INTRODUÇÃO Desde o ano de 2005, a Direção Geral de Cultura e Educação da província de Buenos Aires implementou uma série de reformas curriculares e institucionais que tiveram como finalidade estabelecer o fim da Reforma Educativa dos G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 7 - 1 9 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

anos 90. Neste sentido, os aspectos curriculares das transformações educativas em questão se traduziram na busca de um novo enfoque de ensino que, no caso da Geografia, implicou na redefinição do seu sentido, baseado agora no reconhecimento da Geografia Social como referente disciplinar e em modelos de ensino que 7


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promovessem nos estudantes o desenvolvimento e o fortalecimento de preocupações políticas, cidadãs e culturais, favoráveis à formação de um sujeito político. O artigo apresenta uma ordem de exposição que propõe reconstruir as diferentes definições curriculares – definições políticas – que foram fundamentais para a delimitação do currículo da disciplina Geografia. Neste sentido, se apresentam em primeiro lugar alguns enunciados gerais do processo de reformulação da matriz curricular, as partes comuns à elaboração dos currículos de outras matérias; enquanto que na segunda parte, apresenta-se a problemática do ensino da Geografia e a enunciação das definições curriculares provenientes desta, que derivaram nos eixos de problemáticas geográficas tratadas em todos os anos da Escola Secundária4, alguns obstáculos detectados no ensino de Geografia, a fundamentação da adoção da Geografia Social como referente disciplinar e os modos de problematizar o ensino da matéria para a definição de conteúdos curriculares selecionados, entre outros tópicos. Assim, o artigo propõe conseguir uma visão panorâmica do processo em questão, antes que um detalhamento pormenorizado de cada um dos momentos de elaboração e dos elementos/componentes curriculares finalmente adotados. PRIMEIRA PARTE: ASPECTOS GERAIS DO PROCESSO DE REFORMULAÇÃO CURRICULAR O SENTIDO DO CURRÍCULO E O CURRÍCULO COMO UMA POLÍTICA PÚBLICA As definições conceituais sobre a natureza do currículo é uma das problemáticas mais frequentemente tratadas dentro do que se conhece como teoria curricular. A situação adquire maior complexidade política quando a adoção de um ponto de vista conceitual sobre o currículo é definida pelas modos de gestão dos sistemas educativos para que as mudanças efetivamente aconteçam nas escolas e possam se comprovar na escala micro - da sala de aula - em consonância 8

global com os objetivos pedagógicos das políticas curriculares. Neste sentido, a jurisdição adotou uma definição conceitual de currículo para todos os níveis educacionais, desde o Nível Inicial até a Educação Superior para a formação docente, apresentado no Marco Geral de Política Curricular (2007)5 por meio da definição de currículo apresentada por Alicia de Alba (1998), que o concebe como: uma síntese de elementos (conhecimentos, valores, costumes, crenças, hábitos) que configuram uma proposta político-educativa pensada e impulsionada por diversos grupos e setores sociais cujos interesses são diversos e contraditórios, ainda que alguns visem ser dominantes ou hegemônicos, e outros visem opor-se e resistir a tal dominação ou hegemonia. Síntese que se dá através de diversos mecanismos de negociação e imposição social (...). Sendo assim, estamos diante de uma série de fundamentos teóricos e políticos que atuaram como um quadro geral para guiar a construção curricular e, também, como uma ferramenta conceitual para a orientação das práticas de ensino e aprendizagem. Desse ponto de vista, entende-se o currículo como um documento político, sujeito a negociações e demandas políticas, que é produzido pelo Estado para um segmento da sociedade civil, e que tem como função legítima indicar, prescrever e fixar intenções (Terigi, 1999), que são particulares de um momento histórico e que deverão permear as políticas educativas e os enfoques de ensino que se consideram mais adequados para por em andamento um projeto cultural de transformação educativa. Da mesma forma que uma política pública implica definir o sentido que terá a ação estatal, uma política curricular requer a formulação de horizontes desejáveis, pelos quais o Estado deve gerar condições normativas e de prescrição que permitam a toda a população do sistema educativo G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 7 - 1 9 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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alcançar as experiências que se propõe através dos quê?, para quê? e como? se deveria ensinar. Em nossa perspectiva, denominaremos daqui em diante de sentido do ensino o conjunto de questionamentos que são definidos politicamente. Isto é, que contribui para que o ensino de Geografia seja concebido como um assunto político. Dentro desta perspectiva, a mudança curricular iniciada na Província de Buenos Aires por volta de 2005, e que perdura até o presente momento, expressa a vontade de considerar o currículo como uma ferramenta da política educativa que tem um valor estratégico e específico; a partir do momento em que apresenta o tipo de experiências educativas que deverão ser oferecidas nas escolas e onde o Estado tem a responsabilidade principal na melhoria da ação pedagógica e no acompanhamento da implementação da mudança.6 TRANSFORMAÇÕES EDUCATIVAS: AS ESCALAS ARTICULADAS ENTRE AS MUDANÇAS NACIONAIS E AS DA JURISDIÇÃO (PROVÍNCIA DE BUENOS AIRES) Para a compreensão de algumas definições em torno das mudanças curriculares da geografia escolar na jurisdição, é necessário estabelecer sua relação com outras transformações educativas que foram se desenvolvendo, desde então, tanto na província de Buenos Aires como em escala nacional.7 Essas mudanças não são compreensíveis se, em primeiro lugar, não se fizer menção à promulgação da Lei de Educação Nacional nº 26.206/2006 – substituição da Lei Federal de Educação nº 24.195/1993, implementada durante o período de propagação das políticas neoliberais na Argentina – e a Lei Provincial de Educação nº 13.688/2007; que, entre outras questões, destacam e reconhecem o direito à educação de todas as pessoas, assim como, o caráter obrigatório da escola secundária e a intenção da formação política, cidadã e cultural dos estudantes. A partir dali, o Estado assume pela primeira vez na história da Argentina a obrigatoriedade da educação secundária, o que implica no desafio de alcançar escolarização, G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 7 - 1 9 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

permanência com aprendizagem e término dos estudos de todos os adolescentes, jovens e adultos. Diante da nova Lei Provincial de Educação, se estabelece que a educação secundária, além de ser obrigatória, estende sua duração a seis anos, diluindo a estrutura anterior deste mesmo nível educativo que fragmentava – institucional e espacialmente – a trajetória dos estudantes em um ciclo básico de três anos (Educação Geral Básica) e em outro superior, denominado Educação Polimodal – não obrigatório -, de igual duração. A implementação da nova e atual estrutura, entre outras questões, implicou no fato que no interior de cada um desses ciclos fossem produzidas transformações significativas da grade curricular, a partir das quais, por exemplo, a matéria Ciências Sociais antes programada para os três primeiros anos, limitou sua inserção somente ao primeiro ano, enquanto as matérias de História e Geografia passaram a se configurar como espaços curriculares autônomos desde o segundo ano até o término do Ciclo Superior.8 Neste sentido, a partir da Equipe Técnica Curricular da matéria Geografia (ETCG), em articulação com outras instâncias da Direção de Gestão Curricular da Direção Provincial da Educação Secundária, foram definidas posições conceituais e epistemológicas em relação à matéria Geografia como disciplina escolar, que assumiu entre seus principais desafios a proposição de um enfoque e modelo de ensino a partir do qual pudessem derivar-se coerentemente propósitos e intencionalidades educativas, expectativas de realização e objetivos de aprendizagem e estratégias de ensino, entre outros elementos curriculares. DEFINIÇÕES CURRICULARES E DECISÕES POLÍTICAS: OS SABERES GEOGRÁFICOS E A DISCIPLINA ESCOLAR9 As novas matrizes curriculares da Geografia assumem, na jurisdição, a concepção de disciplina escolar para a definição de seu enfoque 9


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de ensino e a seleção de seus saberes. Conceber o ensino de Geografia a partir da perspectiva de uma disciplina escolar inclui um conjunto de definições conceituais que inevitavelmente estão vinculadas a seus atributos operacionais quando o horizonte é a mudança curricular. Assim, o questionamento sobre o modo como a adoção do significado e o sentido da noção de disciplina escolar impactam em uma definição curricular para o ensino de Geografia, é uma das perguntas que foram formuladas pela equipe curricular (ETCG) a fim de promover a reflexão e a discussão em torno das disciplinas escolares como algo construído, como um produto social e histórico, que põe em tensão a ideia de um saber escolar que seja somente o resultado da transposição didática. Neste sentido, as intencionalidades sociais, políticas e culturais que definiram os propósitos educativos para o ensino da Geografia na jurisdição, principalmente a partir da ideia da formação política e cidadã dos estudantes, atentam contra a ideia aplicacionista da fidelidade dos saberes acadêmicos levados para a sala de aula. A contestação deste tipo de aplicacionismo deve ser entendida como a invalidação da ideia da existência de “saberes em si”, ou o produto de UMA tradição – quer seja disciplinar ou escolar – que desconhece os cenários de conflitos existentes no interior de qualquer das tradições – acadêmicas e/ ou escolares – assim como a impossibilidade de assimilá-las a um único discurso geográfico e/ou reconhecê-las como se fossem uma “comunidade purificada” sem tensões e interesses. A introdução da ideia de conflito supõe tanto a diferenciação de grupos sociais no “interior” daquelas, como um estado de situação em que a disciplina escolar está implicada sempre na “articulação hegemônica” (Laclau, 2005; Rocha, 2012). Seguindo esta linha de pensamento, qualquer dos modelos e tradições disciplinares deverão ser concebidos como articulações sociais de discurso e práticas, demandas políticas de grupos sociais – interesses garantidos e interesses negados – que valorizam e condenam diferentes interpretações do mundo (Rocha, 2012). Nesse 10

caso, na matéria Geografia como configuradora política da experiência e dos sentidos de mundo que ela propicia a partir da escola. Desse modo, parte da tarefa no momento de definir os marcos interpretativos a partir dos quais se elaborou o currículo da disciplina para todos os anos da escola secundária, consistiu em reconhecer a o caráter conflituoso das múltiplas referências e articulações existentes na Geografia escolar. O pressuposto, de nossa parte, do caráter conflituoso do espaço social na Geografia escolar é uma hipótese que adotou, por sua vez, o caráter de princípio orientador na hora de definir a “natureza” e o sentido dos “eixos das problemáticas” que deveriam atravessar o sentido do ensino da Geografia e os “modos de problematizar o mundo” a partir do ensino (ver com detalhe os respectivos pontos mais a frente). Desta maneira, o sentido do ensino da Geografia foi definido levando em conta o potencial do Espaço como referência política para compreender e explicar a natureza conflituosa dos problemas territoriais e ambientais do mundo contemporâneo. É um convite a que o ensino da disciplina possa ser pensado, por sua vez, concebendo o espaço como um produto de inter-relações dos mais variados tipos (políticas, culturais, econômicas, entre outras), uma esfera da possibilidade de existência da multiplicidade e como um processo por vir, de abertura genuína frente ao futuro (MASSEY, 2005).

SEGUNDA PARTE: PROBLEMATIZAÇÃO DO ENSINO DE GEOGRAFIA E DEFINIÇÕES CURRICULARES A ABORDAGEM DE QUESTÕES NORTEADORAS PARA A DEFINIÇÃO CURRICULAR De acordo com as proposições e hipóteses expressadas a partir do ETCG (Nível Central) foram promovidas diferentes ações que perseguiram, a partir do Estado, a ideia de por em discussão o sentido do ensino da matéria. Algumas perguntas foram levantadas, tais como, Quê? / qual? / quais? Geografias são as mais G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 7 - 1 9 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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adequadas para a formação política e cidadã do estudante? A Geografia escolar deve formar “pequenos” cientistas, ou estudantes / sujeitos políticos interessados pelas questões territoriais, ambientais e da cultura? Que saberes políticos, cidadãos e culturais, a disciplina Geografia é capaz de proporcionar aos estudantes da escola secundária? Que sujeitos sociais se está disposto a incorporar na definição de protagonistas dos problemas em estudo?10 As perguntas, em alguns casos de importante carga retórica, foram propostas no interior do ETCG, e por extensão, aos grupos de professores que fizeram parte desde um primeiro momento no dispositivo de participação e consulta.11 Deste modo, os questionamentos levantados perseguiram os objetivos de difundir e por em discussão, a partir do Estado para a sociedade civil, as intenções pedagógicas, políticas e culturais definidas para o ensino da Geografia, além de dinamizar a deliberação dos professores da matéria nas escolas junto a seus colegas, estudantes e equipes de orientação de ensino (E.O.E). Tudo isso com o propósito de incorporar ao processo de elaboração do currículo as perguntas e propostas que ali se formulassem. Seguindo esta linha, a participação e a consulta dos professores de Geografia durante o processo de elaboração curricular, foi concebida a partir da gestão educativa como uma instância de encontro dos modos de comunicação entre os atores da gestão e os professores, que deve se darse no complexo contexto de uma negociação e renegociação de significados que são necessários para a construção progressiva de parcelas cada vez mais amplas de consensos no que concerne aos sentidos de ensino da matéria. OS “PROBLEMAS DIDÁTICOS” E A GEOGRAFIA SOCIAL COMO REFERENTE DISCIPLINAR DAS INTENCIONALIDADES EDUCATIVAS12 Se a Reforma Educativa dos anos 90 foi amplamente identificada, por variadas razões e provas suficientes, com as políticas educativas G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 7 - 1 9 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

de signo neoliberal, deve-se reconhecer que no caso do ensino da Geografia, paradoxalmente, conseguiu introduzir, a partir das diretrizes curriculares nacionais, significativas variações – de enfoque, conteúdos e propostas de estratégias de ensino – visando favorecer uma passagem de sentido, próximo ao do referente disciplinar da Geografia Social; perspectiva que no âmbito curricular da Reforma anterior e, no caso da província de Buenos Aires, finalmente diluiu seu sentido complexo e crítico, devido a ausência de clareza epistemológica em suas definições e a inexistência de uma construção de sentido didático de suas propostas pedagógico curriculares.13 Na jurisdição, e como forma de resposta às perguntas apresentadas no ponto anterior, definiu-se a Geografia Social como o âmbito de legitimação disciplinar mais adequado às finalidades críticas e intelectuais do ensino de Geografia. A Geografia Social, como referente disciplinar das intencionalidades educativas na jurisdição, é um dos campos de conhecimentos disciplinares que está nas melhores e maiores condições de agregar saberes que permitam reverter, a partir do ensino, alguns problemas didáticos – inocultavelmente políticos e cidadãos - atualmente existentes. Muito mais, quando seu horizonte é que os estudantes alcancem conhecimentos ricos, diversos, plurais e até emancipatórios.14 A seguir, é apresentada uma agenda, de modo algum definitiva, de “problemas didáticos” detectados nas aulas de Geografia da jurisdição, que pode ser considerada como um “estado da situação do ensino” sobre o qual se deseja incidir a partir da mudança curricular. Alguns dos problemas em questão são: A proeminência em sala de aula do tratamento de conteúdos de caráter físico-natural sobrepondo os de caráter social, ou ainda, seu desenvolvimento de modo fragmentado no início do ano letivo, postergando os conteúdos sociais, políticos e culturais para a segunda parte do ano. As concepções de sociedade – inclusive a ideia de sociedade como um “todo” indiferenciado, hierárquico – sem levar em conta necessidades, 11


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interesses e projetos de sociedade que podem ser contraditórios e/ou contrapostos. A frágil identificação do papel do Estado, tanto em sua função de articulador social como territorial, ou ainda, a ausência do reconhecimento de diferentes tipos de Estado (Neoliberal, de BemEstar, entre outros). A análise de espaços geográficos em uma única escala, sem considerar as relações entre os espaços próximos e os mais distantes, além de reduzir a mero “receptáculo” de fenômenos sujeitos a inventários ou listagens. A utilização dos mapas unicamente para efeito de localização ou como representação objetiva do espaço, sem compreendê-los como uma produção de sentidos ou um recurso da cultura visual com forte influência nos jovens e na sociedade em geral. A escassa presença de oportunidades de leitura e escrita que sejam reconhecidas como particulares do ensino e da natureza da matéria. A desvinculação, entre si, das dimensões políticas, econômicas, culturais, assim como dos aspectos ambientais e geopolíticos – em um sentido amplo , sempre presentes na natureza das problemáticas sociais e nas agendas territoriais e/ou ambientais atuais. A ausência de utilização de diversos tipos de fontes e da necessidade de considerar variados pontos de vista de diferentes sujeitos sociais. A ausência de reconhecimento da importância da sociedade civil na sociedade moderna (por exemplo, através dos movimentos sociais) tanto como fator de opinião, como em sua capacidade de intervenção na produção do espaço. As visões estereotipadas sobre aqueles que são socioculturalmente diferentes (questões de gênero, etnia, migrantes) ou desiguais em termos socioeconômicos (diferentes tipos de pobreza). A agenda precedente faz alusão a problemas induzidos a partir do ensino, mas que adquirem relevância e sentido, além de possibilidades de transformação no contexto do referente multiparadigmático da Geografia Social. A partir daí se faz alusão às questões e as 12

intenções pedagógicas que podem surgir com ajuda de alguns princípios e enfoques das correntes radicais, fenomenológicas, existencialistas e pós-modernas. Cada uma das quais está em condições de favorecer interrogações valiosas às aulas de Geografia. De caráter estrutural no que concerne à organização social, política e econômica das sociedades e dos territórios; de caráter fenomenológico e existencial, em relação aos sentidos de espaço, as identidades socioterritoriais, e o enraizamento / desenraizamento, entre muitos outros temas. Enquanto isso, de forma combinada ou em tensão com os modos anteriores, de acordo com as diferenças existentes no interior das geografias pós-modernas, é possível encontrar ali espaços de legitimação da palavra do professor e de animação dos interesses dos estudantes ao incorporar a análise cultural da cartografia, os estudos sobre as culturas juvenis e seus espaços, os imaginários geográficos e, sobretudo, suas contribuições de reconhecimento e valorização da diferença sociocultural. Cada um destes paradigmas e as perguntas particulares que estão em condições de contribuir para a função educativa devem fazê-lo a partir da ampliação de critérios e da pluralidade de pontos de vista da cultura letrada – neste caso a partir do referente disciplinar da Geografia – antes que a uma mera socialização, na medida que podem enriquecer, com maior profundidade e crítica, as vivências intelectuais dos estudantes em sua relação com diversos espaços. A adoção da perspectiva da Geografia Social e, a concepção de espaço geográfico a ela vinculada, é produto de decisões de caráter teórico e epistemológico que devem ser concebidas como o contexto a partir do qual adquirem sentido os enfoques do ensino e o tipo de aprendizado esperado. O determinante desta adoção não é a transmissão para a sala de aula da lógica da disciplina e seu funcionamento particular, mas sim a possibilidade de valorizar referentes legítimos à sala de aula, como a legitimidade da palavra do professor na ação pedagógica. Em síntese, um tipo G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 7 - 1 9 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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de ação que favoreça a relação significativa entre a cultura do cotidiano escolar e os conhecimentos e experiências das quais muitos estudantes provavelmente não terão outra oportunidade de fazê-lo após a escola secundária. OS MODOS DE PROBLEMATIZAR O MUNDO A PARTIR DA SALA DE AULA A intenção de “problematizar”, parafraseando Foucault (1999), sempre tem como finalidade conseguir que tudo aquilo que damos por certo, tudo aquilo que se apresenta como aproblemático, se torne de fato problemático, e necessite ser questionado, repensado, interrogado [...] Problematizar é conseguir que o não problemático se torne problemático (...) e, sobretudo, conseguir entender o como e o porquê de algo ter adquirido status de evidência inquestionável. (...) Dito de outra maneira, problematizar o ensino da matéria a partir da Geografia Social é fazer com que o invisível se torne visível a partir de um ponto de vista teórico e conceitual em particular. A Geografia Social está em condições de contribuir com uma série de pontos de vista fundamentais para a problematização do mundo narrado a partir das aulas de Geografia. Neste sentido, as negociações e renegociações sobre os significados que são propostas para a explicação do mundo consiste em promover diversas situações de ensino que fomentem o contraste de ideias e a discussão política e cultural entre os professores e os estudantes. Tudo isso com o propósito de que estes últimos possam alcançar, através do consenso, conhecimentos escolares legítimos e socialmente válidos. Como forma de resposta à agenda dos “problemas didáticos” anteriormente apresentados, deve-se resgatar algumas orientações gerais que permitam estabelecer parâmetros dentro dos quais as negociações e as renegociações de significados puderam tomar forma crítica durante o processo de elaboração curricular da matéria. Sem pretender esgotar as orientações possíveis para problematizar o mundo, são detalhadas, G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 7 - 1 9 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

abaixo, algumas definições. Entre elas: – A multicasualidade e a multidimensionalidade, derivadas da necessidade de reconhecer os diferentes fatores envolvidos em um problema geográfico, assim como os diferentes tipos de análise implicados (econômico, político, cultural, ambiental e/ou geopolítico). – A multiperspectividade paradigmática, considerando os diferentes pontos de vista e paradigmas sociais e/ou geográficos existentes. As diferenças socioculturais e as desigualdades sociais como traços constitutivos e conflituosos das sociedades contemporâneas. – A multiescalaridade espacial e temporal, considerando as relações entre os espaços (local, nacional, regional e mundial) e o alcance temporal (passado, presente e futuro) que intervém na produção de um fenômeno. – A ubiquidade e multipolaridade do poder, levando em conta o modo em que este se manifesta e se constrói a partir do Estado (níveis estatais de decisão local, regional, nacional ou outros) e a partir da sociedade civil (empresas e organizações sociais nucleadas em torno a movimentos sociais rurais e urbanos). – O caráter ambiental de qualquer modelo social de acumulação e o caráter social das problemáticas ambientais. – A diferenciação política e histórica entre diferentes tipos de Estado (Neoliberal, Bem-Estar, outros) e sua influência / intervenção na produção do espaço (infraestruturas urbanas e rurais, condições generais para a produção e para a reprodução social). OS EIXOS DE PROBLEMÁTICAS QUE ATRAVESSAM O ENSINO DA GEOGRAFIA A problematização proposta a partir da Geografia Social, junto aos “problemas didáticos” antes mencionados, criou as condições para a busca e a seleção daquelas problemáticas, que os professores deveriam ensinar e todos os estudantes deveriam aprender nas aulas de Geografia da jurisdição. Neste sentido, deve-se considerar que as mesmas condensam o nível 13


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mais geral e abstrato da proposta, ao mesmo tempo em que o nível mais global dos acordos resultantes das negociações de significados em torno ao sentido de ensino da matéria.15 Em suma, uma seleção definida conforme critérios de caráter territorial (urbanos e rurais), junto a outros eixos configurados de acordo com diferentes tipos de análise (econômicos, políticos, culturais, ambientais e geopolíticas), assim como a diferentes escalas geográficas (local, regional, nacional e/ou global). De algum modo, são a expressão e definição dos consensos alcançados durante o processo de construção em torno dos quais são os saberes mais representativos da Geografia escolar que devem ser ensinados na jurisdição. – Problemáticas urbanas e rurais. – Problemáticas econômicas e políticas da globalização neoliberal. – Problemáticas culturais. – Problemáticas ambientais. – Problemáticas geopolíticas mundiais e regionais. – Problemáticas sociodemográficas. Em resumo, decisões curriculares que dão resposta a: Quais são as problemáticas – forma de organização de problemas – que todos os estudantes deveriam estar em condições de conhecer a partir do ensino de Geografia? Em que contribui esta seleção para sua formação ética – política e cultural em geral?16, entre outros questionamentos. AS DEFINIÇÕES SOBRE OS ESPAÇOS, OS TERRITÓRIOS E OS AMBIENTES A SEREM ENSINADOS: ALTERNATIVAS À IMAGINAÇÃO GEOGRÁFICA A possibilidade de planejar, com critérios previamente definidos, a matéria Geografia, desde os primeiros anos da escola secundária e ao longo de todos os anos superiores, criou condições para que a “distribuição” dos conteúdos curriculares fosse organizada e sequenciada de acordo com as expectativas de êxito e/ou objetivos 14

de aprendizagem particulares para cada ano escolar, em função das definições curriculares do que se espera que os estudantes aprendam com relação a determinados ambientes e territórios em diferentes momentos da sua formação. Neste sentido, a Geografia como disciplina escolar, em consonância com o que antes foi definido aqui como tal, é uma construção sóciohistórica e de articulação hegemônica que definiu o ensino de determinados espaços, e modos de problematizá-los na fronteira de intencionalidades políticas e culturais particulares, que estão inevitavelmente ligadas a limites interpretativos das ciências sociais. Assim, qualquer recorte espacial, e os questionamentos que se pudessem propor sobre o mesmo, não podem ser concebidos como “evidentes”. Não se está, em nenhum caso, diante de “fatos puros”, senão diante de definições e configurações políticas sobre os sentidos de ensino, que implicam tanto nos espaços privilegiados a ensinar, os recortes e escalas geográficas possíveis, quanto à definição de fazê-lo a partir de um campo de conhecimentos em particular. O primeiro ano da matéria Geografia – o segundo ano da escola secundária na jurisdição – definiu seu recorte espacial em torno à América Latina em sua relação com o resto do mundo, a partir de uma perspectiva da Geografia Social que tende a conceber a região como uma construção social e histórica, que articula através de seus conteúdos curriculares, aspectos econômicos, políticos, culturais e ambientais do passado (período da conquista e da colonização) e do presente (globalização neoliberal).17 A partir desta perspectiva, os propósitos de ensino se encontram direcionados para a geração de possibilidades de ensino mediante as quais os estudantes possam estabelecer e aprender sobre semelhanças / diferenças, continuidades / descontinuidades ou rupturas entre as configurações sociais e territoriais – urbanas e rurais – de diferentes momentos históricos do espaço latino-americano. A partir do segundo, e ao longo de todos os anos subsequentes, a introdução no currículo de grupos socioculturais majoritariamente excluídos G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 7 - 1 9 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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pelo ensino da Geografia na jurisdição – como é o caso dos povos originários, entre outros – são politicamente reconhecidos na seleção dos conteúdos a ensinar e na explicação da produção do espaço regional latino-americano. A mesma coisa acontece com a inclusão de conteúdos que se referem a movimentos sociais e territoriais, a análise cultural dos mapas, as discussões sobre os bens comuns da terra, o comércio justo, a geopolítica dos recursos naturais e estratégicos, o intercâmbio desigual e as relações centro– periferia, os discursos territoriais do ocidente frente ao oriente, entre outros objetos a serem ensinados. Para o terceiro ano se propôs a organização da matéria a partir da Geografia argentina – de modo similar ao ano anterior – levando em conta as relações passado e presente, e com o resto do mundo, considerando para isso os modos em que distintas dimensões do social (do econômico, do político, entre outros) afetaram a organização do território nacional em diferentes períodos históricos até a atual globalização neoliberal.18 Considerando para isso, especialmente, a presença que teve o Estado-nacional, em diferentes períodos, no que corresponde ao impulso das economias regionais, o crescimento da Área Metropolitana de Buenos Aires, as migrações nacionais e internacionais, a colonização de terras e os deslocamentos forçados dos povos originários, os atuais debates sobre a soberania alimentar, entre outros conteúdos. Para o quarto e quinto ano de Geografia, planejou-se o ensino da matéria considerando a “globalização neoliberal” – denominação mais adequada ao invés de somente “globalização” como uma etapa sócio-histórica sem características particulares – “como um conceito e um fenômeno com amplas possibilidades de definição e construção de sentido sobre o estado atual do mundo”.19 Em suma, os conteúdos geográficos selecionados – Geografia mundial para o quarto ano e Geografia argentina para o quinto ano – propõe dar resposta a perguntas sobre as causas e consequências da atual radicalização da liberalização econômica, entendida como a condição necessária para restituir ao mercado as G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 7 - 1 9 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

funções reguladoras que em certa medida durante os períodos anteriores haviam sido limitadas pelo Estado. Ao mesmo tempo, para os mesmos anos, a seleção dos conteúdos e as expectativas de êxito adotadas criam condições para propor perguntas e traçar possíveis itinerários de ensino e de aprendizagem onde a atual relação entre Estado, mercado e organizações sociais possa ser analisada, fora de qualquer dogma, ainda que levando sempre em conta a centralidade das relações de poder existentes na hora de estudar o Espaço. O SEXTO ANO DE GEOGRAFIA E A ORIENTAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS20 A matriz curricular do sexto ano foi programada com a função de propor um modo de organização dos conteúdos e do seu ensino que adote metodologicamente o estudo de problemas geográficos e, respectivamente, a pesquisa escolar, tomando como base questões que se supõe de interesse para os estudantes, sob a denominação de Problemáticas Geográficas Contemporâneas, no contexto da globalização neoliberal. Os problemas que serão abordados dentro da geografia deste ano correspondem a fenômenos, questões, fato e/ou situações que alguns campos da geografia (urbana e rural, do turismo, entre muitos outros) funcionam como estímulo à curiosidade, mas ao mesmo tempo pode ser de interesse e significância para os alunos. Cabe destacar que um problema de pesquisa é produto de desconhecimento e de perguntas que são propostas para “saber mais”, e que o mesmo admite abordagens, teorias, conceitos e metodologia segundo o ponto de vista teórico paradigmático a partir do qual foi definido e analisado, assim como a tradição / tradições da disciplina envolvida. Por sua vez, diferentemente da programação curricular dos anos anteriores, a seleção dos espaços a serem estudados, o recorte espacial, é definida no contexto da sala de aula em função das propostas do professor e dos acordos alcançados no diálogo com os alunos e 15


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na busca de consensos necessários. Da mesma forma, o enfoque investigativo proposto para o sexto ano repousa no caráter escolar de sua definição. É, no entanto, o peso posto nas expressões “pesquisa”, “teorias”, “metodologia”, para a definição do sentido didático do currículo em questão, se está diante de uma concepção dos saberes geográficos em circulação que devem ser compreendidos sob o caráter de uma disciplina escolar. Como abordagens práticas sobre a dinâmica de sala de aula planejada se espera que: – Os temas de pesquisa sejam acordados com os estudantes. Isto não significa que sejam decididos por estes últimos, mas sim que se devam gerar os mecanismos de participação / negociação suficientes para que eles possam identificar-se com o tema de pesquisa selecionado. – O estudante, em qualquer momento do processo de pesquisa, deve reconhecer as finalidades da investigação em curso, deve ter clareza sobre o sentido das práticas nas quais está envolvido. – Os estudantes devem estar organizados em grupos e cada um deles deve ser conhecedor de suas tarefas, o que se espera dele e quais são as implicações que seu trabalho tem para o funcionamento do grupo. – Os estudantes, de acordo com o momento da pesquisa em que se encontre, possam explicar de forma simples o tema, sua relação com a bibliografia que se está utilizando e as fontes empregadas. – Cada um deles possua suas próprias pastas nas quais possam ser encontrados elementos típicos do processo de pesquisa na escola. (Perguntas de pesquisa, hipótese, objetivos, títulos de livros de consulta, recortes de jornais e revistas, sites de internet com informação adequada, etc). – O planejamento das atividades didáticas envolva o convite à especialistas no tema selecionado, ou seja, pessoas de referência que possam contribuir com informação sobre 16

determinados aspectos da pesquisa, entre muitas outras atividades a serem definidas no contexto da sala de aula. CONCLUSÕES – REFLEXÕES FINAIS Deixamos para outra oportunidade a descrição daquelas instâncias metodológicas que foram implementadas na negociação política entre os diferentes atores participantes (professores, estudantes e “grupos de opinião” da sociedade civil) em torno dos significados e sentidos de ensino da matéria que derivaram nos currículos definitivos. A centralização e o direcionamento estatal na elaboração das matrizes em questão devem ser compreendidas sob a concepção de que uma mudança curricular é uma ação do Estado que deve levar em conta as mudanças já existentes nas salas de aula e colocá-las em diálogo com as propostas e os objetivos de formação. Para isso foi determinante conceber conceitual e operativamente o momento da elaboração curricular vinculado ao da sua implementação. Neste sentido, a negociação política realizada desde o primeiro momento sobre os significados trazidos à baila, consistiu em um exercício de reconhecimento do outro e da possibilidade de seu empoderamento, que não só enriqueceu o processo de elaboração, como também gerou maiores e melhores condições para a recepção dos documentos finais por parte dos professores. Finalmente, uma matriz curricular é uma intenção pedagógica e cultural, um direcionamento para o docente, que muito mais do que ser “nada mais” – ainda que também “nada menos” – que um texto ou um “papel”, se propõe a incidir nas práticas de ensino e no funcionamento das instituições, na cultura institucional, para que o currículo aconteça na sala de aula. A expressão “nada mais que um papel”, deve complementar as múltiplas determinações (por exemplo, as relações de poder existentes no interior do Estado e deste com a sociedade civil) e as obrigações nas quais o Estado se compromete no âmbito de políticas docentes e de apoio a G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 7 - 1 9 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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formação continuada, que deverá acontecer para assegurar uma adequada implementação curricular. Enquanto que “o nada menos”, põe em evidência o caráter enunciativo, a força de todo discurso, pelo qual se instala na esfera pública o posicionamento do Estado em relação à mudança curricular e a instauração de sentidos sobre o ensino como uma questão política. Assim, um currículo não revela somente conteúdos, mas também propõe politicamente modos de fazer, ser e conviver no mundo. O processo de construção curricular posiciona e os sujeitos envolvidos em um lugar de enunciação e em um espaço estratégico que são determinantes para a mudança social.

NOTAS ¹ Traduzido do espanhol para o português por Daniele Gomes Cabral (professora do Departamento de Espanhol do Colégio Pedro II – Campus São Cristóvão III), com revisão de Carolina Vilela e Demian Garcia Castro. ² Este documento corresponde a uma nova versão da comunicação apresentada no Primeiro Encontro de Pesquisa em Didática das Ciências Sociais, que ocorreu entre os dias 5 a 7 de dezembro de 2012 na cidade de Medelin (Colômbia) e à conferencia de mesmo nome realizada pelo autor nas Segundas Jornadas Nacionais de Pesquisa e Docência em Geografia (2da. jonidga) e Oitava Jornada de Pesquisa e Extensão do Centro de Pesquisas Geográficas (8º JIECIG). Tandil (Argentina), 14 a 16 de novembro de 2012. As opiniões apresentadas neste documento são de elaboração do autor, sem vínculo com as instituições mencionadas. ³ Licenciado em Geografia (UBA) e Mestre em Sociologia da Cultura e Análise Cultural (IDAES – UNSAM) Ex – Assessor Docente da DGdeCyE da província de Buenos Aires (2005 – 2012). Ex -Diretor de Educação Superior da DGdeCyE da província de Buenos Aires (2011 – 2012). Docente Titular nas Universidades Nacionais de UNSAM, UNTreF y UNCPBA – UNICEN, ministra matérias relacionadas com o Ensino de Geografia, Teoria da Geografia e Geografia Urbana. Docente Titular em Institutos de Formação Docente da Província de Buenos Aires (ISFD Pcia. Bs.As.). Membro da direção e pesquisador do Centro de Estudos Geográficos (CEGeo – UNSAM – EHu). Pesquisador Categorizado no Sistema Universitário Nacional: Categoria 3. alvarezgabriel@speedy.com.ar; gabrielhalvarez@ yahoo.com.ar Educação / Escola Secundária é o nível de ensino em que se inserem, atualmente, estudantes entre 12/13 e 17/18 anos, em toda a Argentina. Também é chamado de escola / ensino médio. Durante os anos noventa, com o neoliberalismo educacional, “Escola / Educação Secundária” foi renomeada e “desapareceram” sob os nomes Escola Geral Básica (três primeiros anos do ciclo) e, em seguida, Escola Polimodal (últimos três anos do ciclo superior). Apenas o primeiro 4

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ciclo era obrigatório. Atualmente, desde 2006, a Escola Secundária tem uma duração de seis anos e é obrigatória para todos. É possível acessar ao Marco Geral de referência em: <http://abc. gov.ar/lainstitucion/organismos/consejogeneral/disenioscurriculares/ default.cfm> Acesso em: 02 dez. 2014. 5

Por razões de extensão não serão incluídas neste artigo o tratamento e comunicação das ações e mediações que foram desenvolvidas a partir do Estado a fim de obter consensos em diferentes espaços da sociedade civil para a mudança curricular da Escola Básica, em geral, e da matéria Geografia, em particular. Por sua vez, o processo de preparação da matriz (pré-matriz) e a matriz curricular final, foram apresentados entre 2005 e 2012, em suas diferentes etapas de elaboração, em numerosos encontros de professores de Geografia da Província de Buenos Aires (ISFD) e Universidades Nacionais (UNLP, UNTREF, UNSAM, UBA, UNLU, UNICEN, UNL, entre outras). Houve também apresentações perante representantes de partidos políticos, centros estudantis de escolas de ensino básico, sindicatos docentes, representantes de organizações sociais e territoriais, entre outros. 6

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A província de Buenos Aires corresponde a uma das maiores

jurisdições educativas da América Latina junto aos distritos de São Paulo (Brasil) e México D.F. Sua matrícula escolar total se aproxima dos 5 milhões de alunos, 280 mil docentes e mais de 20 mil escolas. Em seu território se expressam as maiores desigualdades sociais e territoriais do país, o maior desenvolvimento das forças produtivas e por volta de 40 % da população nacional, magnitude que coincide com sua participação no PIB da Argentina. Da mesma forma, foi uma das jurisdições educativas que primeiro implementou a Lei Federal de Educação dos anos 90 e também uma das primeiras a impulsionar seu término. Ao mesmo tempo, as desigualdades educacionais e a segregação escolar, principalmente na escola média/secundária, atuam potencializando o abandono escolar e os baixos rendimentos escolares na jurisdição. Deste modo, a matéria Geografia faz parte da grade curricular de todas as escolas secundárias da jurisdição entre o segundo e o quinto ano – salvo aquelas Orientações de tipo específico de escola em que se tenha definido outra disposição -, motivo pelo qual sua presença no sexto e último ano se encontra somente para a Orientação em Ciências Sociais. A matriz curricular para o ano em questão foi organizada, entre outras características, considerando o modelo didático da pesquisa escolar. 9 Neste ponto estamos fazendo referência às discussões existentes em torno da transposição didática de Chevallard (1991), e as contribuições de Chervel (1991) e Goodson (1995) no que concerne às disciplinas escolares. 8

Connell (1997) sustentou que se a neutralidade curricular não é possível, deve existir a obrigação de suscitar a necessidade da justiça curricular, considerando o atendimento dos interesses dos menos favorecidos, a participação e escolarização comum ou o princípio da cidadania, e a produção histórica da igualdade. Neste sentido, um dos desafios dentro do processo foi o fato de incorporar definições curriculares que ponham no centro da formação do estudante o reconhecimento das diferenças socioculturais como um valor positivo e de respeito ao outro, e às desigualdades sociais como uma peculiaridade estrutural da sociedade contemporânea e uma situação que merece ser revertida mediante a participação 10

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social e a ação redistributiva do Estado. Desde o início do processo de elaboração curricular a Direção de Gestão Curricular e a Direção de Capacitação da jurisdição, disponibilizou um dispositivo de participação e consulta de professores de Geografia, e do resto das matérias a se definir curricularmente, que teve a finalidade de construir instâncias de articulação e negociação de “demandas políticas” entre o que no sistema educativo da jurisdição se denomina o “território” (a escala média das escolas e a micro da sala de aula) e as equipes técnicas curriculares. O dispositivo contemplou a seleção de uma amostra de 75 professores de cada matéria, 3 para cada uma das jurisdições (provenientes de escolas públicas e privadas dos centros e periferias das localidades). Deste modo, geraram condições para que o professor não fosse o depositário das definições das equipes centrais, o último elo da cadeia, mas sim um participante ativo durante o processo.

referência direta aos conhecimentos classicamente estabelecidos como da Geografia Física, é outra definição...

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As matrizes curriculares finais do segundo ao sexto ano podem ser encontradas na página da Direção Geral de Cultura e Educação da província de Buenos Aires: <http://www.abc.gov.gba.edu.ar/> Seção escola secundária- Matrizes Curriculares – Geografia. Acesso em: 02 dez. 2014. 16

Pode-se acessar a currículo da disciplina em: <http://abc.gov. ar/lainstitucion/organismos/consejogeneral/disenioscurriculares/ documentosdescarga/secundaria2.pdf> Acesso em: 02 dez. 2014. 18 Pode-se acessar a o currículo do terceiro ano da matéria em: <http://abc.gov.ar/lainstitucion/organismos/consejogeneral/ disenioscurriculares/documentosdescarga/dc_ter1_08_web.pdf> Acesso em: 02 dez. 2014. 17

O currículo do Quarto Ano encontra-se disponível em : http://abc. gov.ar/lainstitucion/organismos/consejogeneral/disenioscurriculares/ secundaria/materias_comunes_a_todas_las_orientaciones_ de_4anio/geografia_4.pdf. Enquanto que a do Quinto Ano em: <http://abc.gov.ar/lainstitucion/organismos/consejogeneral/ disenioscurriculares/secundaria/quinto/materias_comunes/ 19

Entende-se aqui por Geografia Social, um extenso campo de conhecimentos que possui como matéria de estudos os aspectos econômicos, políticos, culturais e ambientais da espacialidade da vida social (SOJA, 1989). Neste sentido, para a elaboração do currículo foram adotados muitos dos temas e objetos de estudo que, desde os 12

anos 1970 até o momento, se promoveram principalmente a partir das geografias francesas, anglo-saxônica e latino-americanas. De forma ampliada, e em consonância com as intencionalidades educativas já enunciadas, a Geografia Social a que se alude é definida não só por suas preocupações relacionadas às configurações espaciais, territoriais e ambientais, mas também pelas relações sociais que estruturam as sociedades e os vínculos que estas mantêm com seus espaços. Isto envolve o modo em que os indivíduos, os grupos e as classes sociais produzem e constroem a sociedade e, com relação ao espaço, como o percebem, o representam, o produzem e para quê o fazem. A partir deste ponto de vista, os referentes disciplinares adotados no currículo da matéria, reconhecem nos sujeitos,os sujeitos sociais, a centralidade da explicação política, necessária para a compreensão da produção do espaço.

geograf%C3%Ada.pdf> Acesso em: 02 dez. 2014.

O currículo correspondente ao Sexto Ano da disciplina Geografia para a Orientação em Ciências Sociais pode-se baixar em: <abc. gov.ar/lainstitucion/organismos/consejogeneral /disenioscurriculares /secundaria/sexto/orientadas/sociales/geografia.pdf> Acesso em: 02 dez. 2014. 20

Durante a vigência da Reforma, e nas jurisdições em que se implementou com força – como o caso da província de Buenos Aires – a matéria Geografia ocupava dois anos na escola secundária – só a Nível Polimodal – e seus conteúdos foram definidos a partir dos Conteúdos Básicos Comuns (CBC) – elaborados pelo Ministério nacional. Coube às editoras de livro didáticos planejar com maior precisão e abrangência, de acordo com suas linhas políticoideológicas, o que o Estado havia abandonado parcialmente como uma de suas funções legítimas no plano educativo. 13

Por “problemas didáticos” entende-se aqui aqueles problemas, obstáculos ou erros “induzidos pelo ensino” (Pruzzo, Nosei, 2008). No entanto, cabe afirmar que o caráter incerto e histórico do conhecimento científico, e das Ciências Sociais e Humanas em particular, e sua “natural” vinculação com o poder e o político, faz pensar muito mais firmemente que se está diante de “obstáculos epistemológicos”, no sentido proposto por Bachelard (1988), e de condicionantes ideológicos, ao invés de meros “erros”. 14

Neste sentido, a cristalização dos acordos territoriais e sua tradução em eixos problemáticos, como os que se expressam neste mesmo ponto, definem exclusões e inclusões. A inclusão de maior escala é a geografia social, enquanto que a ausência de um eixo que faça 15

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UM ESTUDO SOBRE O ENEM E O CURRÍCULO DE GEOGRAFIA NO ENSINO MÉDIO A STUDY ON THE ENEM AND THE GEOGRAPHY CURRICULUM IN HIGH SCHOOL

A N A A NG E L ITA ROCHA

Licenciada em Geografia (UERJ) e Doutora em Educação (UFRJ) Professora da Faculdade de Educação da UFRJ Pesquisadora do Núcleo de Estudos do Currículo (NEC/UFRJ) an a_angel i ta@ufrj .br

RESU M O: O P R E S E N T E E S TU D O É R ES U LTA D O D E P E S QUIS A DE DOUT ORAM E NT O C UJA QUE S TÃO C E NT RAL P ROBL EMATI ZA OS SE N T ID OS D E G E O G R A F I A D EM A N D A D O S P E L O ENE M ( E XAM E NAC IONAL DO E NS INO M É DIO) . NE S T E ART IGO, O NOSSO OBJ ETIV O É D E FE N D E R O A R G U M EN T O D E Q U E, C O M O INS T R UM E NT O DE DIFUS ÃO C URRIC ULAR PARA O E NS INO M É DIO, O ENEM É UMA P OLÍT ICA D E E S C A L A PA R A G A R A N TI R A U N I V E RS ALIZAÇ ÃO DE UM A ORGANIZAÇ ÃO C URRIC ULAR, P OR E LE GER CERTOS CON TE Ú D OS PA R A T O D O O T E R R I TÓ R I O N A C I O N A L . TAL IDE IA S E FUNDAM E NTA NAS RE FLE XÕE S DE E S T UDIOS OS SOBRE O EN EM E A P OLÍT ICA D E C U R R Í C U L O ( L I M A , 2 0 0 5 ; L O P E S , 2 0 0 8 E LOP E S & LÓP E Z, 2 0 1 0 ) , S OM ADAS À DIS C US S ÃO DE POL Í TI CA D E ES CA LA (M OOR E , 2 0 0 8 ) . PA R A AT E N D E R A O O B JE T IVO P ROP OS T O, E S T E ART IGO AP RE S E NTA ANÁLIS E S DOS DOCUMENTOS QUE N OR MAT IZ A M O E N EM E D E Q U E S TÕ E S D A S R E C ENT E S E DIÇ ÕE S DO E XAM E . DE S TA FORM A, A P E RT INÊ NC IA DE S TE ARTI GO ESTÁ E M P E R M A N E CE R C O M O D E B AT E S O B R E A P O L ÍT IC A DE C URRÍC ULO E M E S P E C IAL S OBRE A S E LE Ç ÃO E DIS T RIBUI ÇÃO DE CON TE Ú D OS N OS D OC U M EN T O S Q U E O R I EN TA M O ENE M , O QUE VE M A S E R UM A P OS S ÍVE L ANÁLIS E DE C OM O E LE IMPACTA A ELEIÇ Ã O D OS S A B E R ES G EO G R Á F I C O S A S ER EM E N S I NADOS NA E TAPA DE C ONC LUS ÃO DA E DUC AÇ ÃO BÁS IC A. PALAVRA S-C HAV E: ENSIN O D E G E OG R A F IA ; E N E M ; C U R R ÍC U L O .

ABST RAC T: T H E P R E S EN T S T U D Y I S TH E R E S U LT O F A DOC T ORAL RE S E ARC H W H IC H C E NT E RS IN T H E IS S UE OF T H E SENSES OF G EOG R A P HY D E M A N D E D B Y EN E M ( N ATI O N A L E X A M O F S E C ONDARY E DUC AT ION) . IN T H IS ART IC LE , OUR GOAL IS T O DEF END THE ARG U M E N T T H AT, A S A T O O L F O R C U R R I C U L A R P R O PAGAT ION FOR H IGH S C H OOL, T H E E NE M IS A S C ALE P OLIC Y T O E NSURE THE UNIVE R S A LIT Y OF T H E C U R R I C U L U M O R G A N I Z ATI O N , BY C H OOS ING C E RTAIN C ONT E NT FOR T H E E NT IRE NAT IONAL T ERRI TORY. THIS ID E A IS B A S E D O N TH E R EF L E C TI O N S O F S C H OLARS OF E NE M P OLIC Y AND C URRIC ULUM ( LIM A, 2 0 0 5 ; LOP E S, 2008 E LO PES & LÓP E Z , 2 0 1 0 ) , A D D E D TO TH E D I S C U S S I O N OF P OLIC Y OF S C ALE ( M OORE , 2 0 0 8 ) . T O AT TAIN T H E GOAL, T H I S ARTI CL E PRESE N T S A N A LY S IS O F TH E D O C U M EN T S TH AT R E GULAT E T H E E NE M AND QUE S T IONS OF RE C E NT E DIT IONS OF THE EXAM. THUS, T HE R E LE VA N C E O F T H I S A RT I C L E I S TO S U P P O RT W IT H T H E DE BAT E OF T H E C URRIC ULUM P OLIC Y, IN PART IC ULA R ON THE SELEC T ION A N D D IS T R I B U TI O N O F C O N TE N T I N T H E DOC UM E NT S T H AT GUIDE T H E E NE M , W H IC H T URNS OUT T O BE A POSSI BL E LO OK AT HOW IT IM PA C T S TH E C H O O S I N G O F K N O W LE DGE T O BE TA UGH T IN T H E FINAL S TAGE S OF BAS IC E DUCATI ON. KEYWORDS : TEACHI NG G E OG R A PH Y; E N E M ; C U R R IC U L U M .

INTRODUÇÃO O presente estudo apresenta resultados de investigação de doutorado que trata do G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 2 1 - 3 2 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

currículo de Geografia, a partir do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), percebido na mesma pesquisa como decisiva política curricular, neste segmento de conclusão da educação básica. 21


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Dessa maneira, o argumento aqui defendido percebe este exame como um dos aspectos do cenário mais amplo de intervenção do Estado no âmbito da educação. Portanto, convém entendêlo como reforma curricular em curso e que vem sendo uma importante ação das últimas gestões federais (Fernando Henrique Cardoso 1994-2002, Lula 2003-2010 e Dilma Rousseff desde 2011). Neste estudo, logo, o nosso interesse é defender o argumento de que, como instrumento de difusão da organização curricular do Ensino Médio, o ENEM é mais que uma política de avaliação. O ENEM é uma política de escala para garantir a universalização de um modelo de organização curricular, por prestigiar certos conteúdos em detrimento de outros. Com esta ideia que se fundamenta nas reflexões de outros estudiosos sobre ENEM e política de currículo (Lima, 2005; Lopes, 2008 e LOPES & LÓPEZ, 2010), este artigo foca no que é chamado de Geografia ou de sentidos de Geografia demandados pelo exame. Assim, seguimos com a problemática sobre a seleção de conteúdos nos documentos que orientam esta política e como ela sustenta discursos sobre a organização curricular. Desta forma, e concorrendo com esta questão, trabalhamos a favor da hipótese de que o ENEM pode ser percebido como vigorosa política curricular porque legitima saberes e fixa sentidos sobre que Geografia é válida a ensinar. Para tal argumentação, dialogamos com estudos de Lopes (2008) cujas análises sobre os documentos de orientação curricular para o Ensino Médio vêm apontando a complexidade das agendas políticas envolvidas com a reforma curricular e com a expansão deste segmento de ensino. Trabalharemos esta hipótese em dois movimentos. Na primeira seção, recuperamos as análises de Lima (2005) e Lopes (2008) sobre o ENEM como mecanismo de reforma educacional e sobre a complexidade de agendas políticas para a defesa de distintas propostas oficiais curriculares da etapa final da Educação Básica. Neste movimento, apresentamos certos fragmentos de documentos oficiais, de falas de atores sociais envolvidos e da mídia eletrônica (portal do ENEM) 22

onde há clara intencionalidade de difusão das propostas curriculares. Nesta argumentação, reconhecemos a política de avaliação como uma variável importante para este projeto. No segundo movimento do texto, consideramos, particularmente, os documentos oficiais “Matriz de referência do ENEM”, questões de recentes edições do exame e as Portarias do Ministério da Educação, com o fim de problematizar os sentidos de Geografia legitimados nesta política curricular. Devemos destacar ainda, que tais documentos são aqui tratados como textos curriculares, pois, são objetos de validação sobre que Geografia (ou conteúdos geográficos escolares) deve se tornar “ensinável” no Ensino Médio. Além disso, é possível considerar também que as propostas curriculares oficiais são ressignificadas continuamente nestes documentos. Isto porque a política de avaliação pode ser percebida como uma política de escala por ser um poderoso difusor de qual conhecimento é autorizado nos espaços escolares. UMA POSSIBILIDADE PARA CARACTERIZAR O ENEM COMO POLÍTICA CURRICULAR DE ESCALA Todos os processos de avaliação têm fortíssimo poder de induzir mudanças. Isso é histórico: aconteceu na França, na Inglaterra e está acontecendo na Alemanha. No Brasil, a reforma do Ensino Médio é base referencial e teórica para a elaboração do ENEM. A prova é como é porque tem como ponto de partida a proposta da interdisciplinaridade. À medida que o ENEM tem como ponto de partida a reforma, acaba sendo para o professor que está em sala de aula, já trabalhando na reforma, um instrumento concreto, que lhe permite ver como fazer para trabalhar a interdisciplinaridade: se a prova está organizada deste jeito, então, eu devo desenvolver os conteúdos de determinada maneira para que o aluno possa se habilitar a essa aprendizagem que aquela prova se afere. (Maria Helena Guimarães de Castro apud LIMA, 2005, grifo nosso) G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 2 1 - 3 2 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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A fala da ex-presidenta do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) durante a gestão Cardoso (1998-2002), Maria Helena Guimarães de Castro, traz alguns flagrantes discursivos bastante interessantes para ilustramos aqui a ideia do ENEM como política de escala e como política curricular. É possível notar, a correspondência direta entre a política de avaliação e a intencionalidade da promoção da mudança de uma variável educacional. Esta correlação contribui para evidenciarmos a centralidade da avaliação no projeto de reforma curricular do Ensino Médio, implementada no final da primeira gestão de Cardoso, como a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o Ensino Médio (MEC, 2000), dentre outras ações de governos voltadas para educação básica. Criado em 1998, o ENEM pode ser identificado como uma das propostas curriculares que, assim como os PCN do Ensino Médio, favorece a organização curricular integrada, marcadamente na perspectiva do currículo por competências. Dessa maneira, identificamos, no texto político que define o ENEM (PORTARIA MEC nº 438/1998) o discurso da responsabilidade de apresentar uma proposta de ensinar e aprender, em escala nacional, consonante com o Relatório Delors, que influenciou internacionalmente as propostas curriculares oficiais a partir dos anos noventa (DIAS & LOPES, 2003). Esse flagrante discursivo é riquíssimo porque nos permite indagar sobre que sentidos de currículo são fixados, a partir do mecanismo de avaliação. Por sua vez, aquela afirmativa (dita pela gestora de instância governamental) também anuncia a intencional correlação entre o sentido de reforma curricular como reforma educacional. Convergindo com análises suportadas pela teoria do discurso (como nos apresenta os estudos de GABRIEL, 2010, por exemplo), podemos perceber a imediata correlação entre reforma educacional e curricular com o discurso hegemônico do ENEM como política curricular, constituído pelos sentidos de mudança e qualidade do Ensino Médio, no Brasil. Esta questão já fora tratada G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 2 1 - 3 2 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

por Lopes (2008) nos estudos dedicados aos discursos da mudança curricular que, no seu entender, requerem sentidos de uma negação ou oposição a uma ordem discursiva anterior, para autorizarem o que venha a ser o novo no processo de ensino e aprendizagem. Esta ideia pode ser ainda aproximada à argumentação da tese de Ferreira (2007), por exemplo, quando analisa que a mudança curricular nem sempre significa estritamente a ruptura, já que ela pode significar uma estratégia política de conservação de poder. Coincidimos com Lopes (2008), Gabriel (2008, 2010) e Macedo (2006) para quem os arranjos curriculares como políticas culturais são movimentos enunciativos mais complexos, reconhecendo a dimensão contingencial nas relações de poder. Tal compreensão do cultural como político interfere, portanto, em outros entendimentos sobre a lógica da política de avaliação como política curricular na regulação da validade dos saberes a serem ensinados e aprendidos. Nesta direção, seguimos explorando as nossas interpretações da fala da ex-presidente do INEP e da nota da Assessoria de Imprensa da mesma instituição, com o fim de ilustrar e valorizar a percepção da função do ENEM como um dos instrumentos curriculares dentro do cenário mais amplo de política de regulação educacional (análise esta que coincide com as conclusões da investigação de LIMA, 2005). (…) É um processo lento. Levará no mínimo dez anos para a reforma estar totalmente absorvida. Ainda são poucas as escolas que implementaram os novos parâmetros curriculares. E ainda nós não aprovamos a nossa proposta de mudança curricular nos cursos de formação inicial de professores, que é um problema. (Idem, grifo nosso) O número de inscritos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) supera, este ano, a expectativa do Ministério da Educação. Os 8.721.946 participantes confirmados representam crescimento de 21,6% em relação ao ano passado – 7,17 milhões de candidatos. (<www.portal.inep. 23


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gov.br/web/enem/perguntas-frequentes>. Acesso em: 10 jul. 2012.) Dentre as muitas questões passíveis de discussão a partir de tais fragmentos e do terreno teórico que sustenta nossas reflexões, queremos focar na ideia de que a “mudançareforma-inovação” trata-se, pois, de um referente importante no discurso de legitimidade da seleção dos conteúdos, protagonizado pelo ENEM. Além disso, é significativo o número de participantes do exame, inscritos para a edição 2014, o que confere não só a autoridade de tal política, bem como, o impacto dela na regulação do que pode ser selecionado pelo ou pela Docente como Geografia no Ensino Médio. Com esta argumentação ilustrada nas análises acima, estamos apresentando uma possibilidade de explorar o ENEM também como política de escala. Adam Moore (2008) nos ajuda a perceber que as intencionalidades das políticas públicas servem para a regulação socioespacial que funciona de acordo com a eleição das escalas de impacto. Portanto, se estamos de acordo com a afirmativa de que as políticas se constituem discursivamente, o ENEM – como política curricular – age conforme as escalas eleitas a serem impactadas. Nos fragmentos aqui selecionados, podemos observar que há diferentes escalas anunciadas na legitimação desta política para “mudança-reforma-inovação” do Ensino Médio. O trabalho do professor e o sistema nacional de avaliação seriam, assim, um movimento de escalas de ação política presente desde o ensino do saberes selecionados pela Matriz de Referência do Exame até o acesso ao ensino superior permitido pelo resultado da avaliação. Portanto, o ENEM, como política de escala, recontextualiza discursos sobre a “eficiência do aprendizado”, quando classifica quem é o estudante egresso da Educação Básica. Estamos de acordo com Lopes (2008), para quem os textos das propostas curriculares oficiais como ENEM - carregam múltiplas concepções sobre o que é integração curricular, por exemplo. Mas, tais textos curriculares de distintas escalas socioespaciais são construídos também a partir 24

de disputas entre diferentes grupos de interesse a fim de autorizar quais saberes seriam válidos a serem objetos do exame. A nossa análise dos documentos (acerca das atribuições e da implementação do ENEM) permite a hipótese de que há “convivência” de diferentes discursos sobre a organização curricular, justamente porque é um texto de escala nacional que responderá a distintos grupos e interesses sobre o que é importante ser ensinado e aprendido na conclusão da educação básica. Um exemplo da complexidade do texto curricular para executar o ENEM seria o próprio documento de criação do Exame, a Portaria MEC nº 438 (28/05/ 1998), que, entre outros aspectos, caracteriza e enumera os atores sociais eleitos para legitimarem o exame. Artigo 4º - O planejamento e a operacionalização do ENEM são de competência do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais – INEP, que deverá, também, coordenar os trabalhos de normatização, supervisionar as ações de implementação, assim como promover a avaliação contínua do processo, mediante articulação permanente com especialistas em avaliação educacional, com as instituições de ensino superior e com as secretarias estaduais de educação. (MEC, 1998, grifo nosso) Revogada pela Portaria MEC nº 807 (18/06/2010), a primeira Portaria que instituiu o ENEM, na Gestão de Paulo Renato Souza em 1998, já afirmava a centralidade do currículo por competências e habilidades para distribuir os conteúdos escolares do Ensino Médio, como é possível evidenciar na redação do artigo 2º: O ENEM, que se constituirá de uma prova de múltipla escolha e uma redação, avaliará as competências e as habilidades desenvolvidas pelos examinandos ao longo do ensino fundamental e médio, imprescindíveis à vida acadêmica, ao mundo do trabalho e ao exercício da cidadania, tendo como base G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 2 1 - 3 2 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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a matriz de competências especialmente definida para o exame. (MEC, 1998, grifo nosso) Em documentos como a Portaria MEC nº 807/2010 e nos recentes editais do Exame (especialmente a partir de 2009), é possível identificar que o discurso do currículo por competências “convive” com o discurso do currículo organizado por disciplinas. Esta “convivência” ou ambivalência de sentidos pode ser percebida como estratégia de legitimidade desta política educacional. Da mesma forma, tal ambivalência anuncia o quanto os textos políticos são objetos de disputas e de negociações, repercutindo as reivindicações de diferentes grupos sociais, como as comunidades disciplinares ligadas às agendas de expansão do Ensino Médio. Estes flagrantes discursivos nos permitem pensar também a respeito dos discursos oficiais voltados para demandas populares como a democratização e a qualidade do Ensino Médio. Criado no final da década de 1990, com o objetivo de difundir a proposta curricular e de servir como indicador de “qualidade” deste nível escolar, o ENEM não só foi objeto de continuidade na gestão Lula, como também tem sido revisto e fortalecido, na gestão Dilma Rousseff, com a intencionalidade de substituir paulatinamente o vestibular e servir como exame de certificação, para maiores de 18 anos. A grande vantagem que o MEC está buscando com o novo ENEM é a reformulação do currículo do ensino médio. O vestibular nos moldes de hoje produz efeitos insalubres sobre o currículo do ensino médio, que está cada vez mais voltado para o acúmulo excessivo de conteúdos. (<www. enem.inep.gov.br/faq.php>. Acesso em: 30 abr. 2010, grifo nosso) Extraído da resposta para a pergunta “Por que o ENEM mudou?”, este fragmento também nos permite pensar a respeito da “mudançareforma-inovação”. O ENEM na gestão Lula seguiu sendo pensado como instrumento de G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 2 1 - 3 2 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

“reformulação do currículo do Ensino Médio” e foi apresentado como alternativa ao vestibular, uma vez que este representa um modelo falido ou “insalubre” (segundo o fragmento aqui destacado), porque seria “voltado ao acúmulo excessivo de conteúdos”. A citação acima permite uma leitura da condenação do vestibular como sistema de acesso ao ensino superior e que seria responsável pela permanência do modelo de organização disciplinar do conhecimento. A finalidade primordial do Enem é a avaliação do desempenho escolar e acadêmico ao fim do ensino médio. As informações obtidas a partir dos resultados do Enem são utilizadas para acompanhamento da qualidade do ensino médio no País, na implementação de políticas públicas, criação de referência nacional para o aperfeiçoamento dos currículos do ensino médio, desenvolvimento de estudos e indicadores sobre a educação brasileira e estabelecimento de critérios de acesso do participante a programas governamentais. O Enem serve também para a constituição de parâmetros para a autoavaliação do participante, com vistas à continuidade de sua formação e à sua inserção no mercado de trabalho. (<www. portal.inep.gov.br/web/enem/perguntasfrequentes> Acesso em: 10 jul. 2012.) O ENEM, difundido pelas diferentes mídias como “novo ENEM em 2009”, foi re-estruturado para atender as atribuições já previstas em 1998. No nosso entender, as Portarias INEP e MEC, respectivamente, nº 109 (27/05/2009) e a de nº 807 (18/06/ 2010) dão continuidade aos discursos ligados ao projeto de reforma curricular, já instalada pela gestão Cardoso. Portanto, “o novo do novo” ENEM nos sinaliza como especialmente as políticas educacionais investem na inovação para serem legitimadas. Sendo política de escala com a intencionalidade de universalizar a proposta da organização curricular via concepções híbridas da interdisciplinaridade, seguimos com a hipótese 25


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de que o ENEM tende a ser um hegemônico instrumento de orientação curricular por ser política de seleção para o ingresso do ensino superior e para a certificação do Ensino Médio. Tal afirmativa nos dirige a certas interrogações: em que medida o ENEM reproduz ou inova os sentidos de Geografia, presentes na Escola Básica? Como os sentidos de Geografia estão sendo “acionados” na prova? Sem a pretensão de esgotar as respostas destas perguntas neste texto, iremos, no próximo movimento, explorar fragmentos de documentos acerca do exame, como a Matriz de Referência do ENEM, documento curricular que lista os conteúdos a serem objetos de avaliação. as necessárias modificações e alterações. SENTIDOS DE GEOGRAFIA E ALGUMAS NOTAS SOBRE A SELEÇÃO DE SENTIDOS PELO ENEM O ENEM apresenta questões regionais na prova? Não. Nenhum exame do Inep/ MEC contempla questões regionais. Todas as avaliações, como a Prova Brasil / Saeb, ENEM etc., têm caráter nacional e devem garantir iguais condições de participação entre estudantes de qualquer lugar do País. Conteúdos regionais poderiam prejudicar estudantes entre as regiões diversas. (<www. enem.inep.gov.br/faq.php> Acesso em: 30 abr. 2010, grifo nosso) Iniciamos esta seção do artigo com este fragmento extraído da página eletrônica de comunicação do ENEM porque há sentidos fixados na afirmação a favor do não regionalismo. O discurso hegemônico que constrói o ENEM como um exame de escala nacional anuncia, também, uma questão polêmica, no âmbito do ensino de Geografia e que implica diretamente na função política desta disciplina acerca dos debates sobre a produção da diferença e da multiterritorialidade (HAESBAERT, 2007). Isto significa que no exame com estas características (nacional, organizado por questões de múltipla escolha), a propriedade escalar do conhecimento geográfico fica prejudicada. A eleição dos 26

conhecimentos geográficos para esta prova deve incorrer necessariamente na determinação da eleição de escalas para análise de processos espaciais. Segundo Haesbaert (2007), a interpretação do espaço deriva da compreensão de lógicas escalares do poder, ou seja, da multiterritorialidade. A organização da interpretação espacial, portanto, depende da dinâmica das escalas. Por esta razão, entendemos que este debate da ciência geográfica pode influenciar e favorecer a discussão de estratégias democráticas para validar os saberes geográficos de jovens egressos da Educação Básica. O que permite o debate sobre os sentidos espaciais omitidos/negados, quando estamos diante de um evento avaliativo que tem a proposta da “não regionalidade” e do não particularismo. Ou seja, nesta compreensão, os sentidos geográficos a serem exigidos prescindem da interpretação ordenada pelo local e pelo regional. É, pois, eleita uma interpretação universal do espaço, quando há a hegemonia da escala nacional. O que, na verdade, torna-se um dilema para a Geografia escolar: como fazer do Exame uma interpretação do espaço que não incorpore a experiência do espaço vivido e favoreça exclusivamente a escala nacional e global? “Conteúdos regionais poderiam prejudicar estudantes entre as regiões diversas”, esta afirmativa, no nosso ver, se insere no contexto de aperfeiçoamento do sistema de avaliação em escala nacional. Contudo, é uma proposta que prejudica a elaboração de questões/itens a partir dos sentidos de Geografia do ENEM o que certamente levaria à omissão de lógicas escalares próximas ao aluno que organizam conteúdos a serem aprendidos. A articulação discursiva presente naquela afirmativa baseada na omissão ou no impedimento de dadas lógicas escalares se constitui na hegemonização da compreensão da experiência espacial em escala nacional. Esta argumentação indica que pensar geograficamente na prova do ENEM exclui escalas espaciais importantíssimas para o pensamento geográfico escolar, contrariando, inclusive, outros documentos oficiais como as Orientações G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 2 1 - 3 2 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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Curriculares Para o Ensino Médio (MEC, 2006) que, por sua vez, favorecem a leitura e análise de escalas cotidianas para o aprendizado geográfico. Como exemplo da valorização da escala cotidiana para favorecer o aprendizado de conteúdos geográficos, temos a seguinte observação retirada do citado documento: “Podemos citar como exemplo a discussão da geografia urbana na escola, a qual se atém em grande parte a conceitos teóricos, não havendo consciência de que para estudá-la é importante compreendê-la como o locus de vivência da população” (MEC, 2006, p. 50, grifo nosso). Tal fato flagra uma contradição entre políticas curriculares em escala nacional, no que diz respeito à Geografia Escolar. Até este momento do presente artigo, estivemos atentos ao fortalecimento do ENEM como política de escala e como política curricular para providenciar a Reforma curricular do Ensino Médio. Nesta direção, iremos explorar inicialmente fragmentos do documento “Matriz de referência do ENEM”, em particular, as passagens dedicadas à apresentação dos conteúdos a serem cobrados na prova. Em seguida, propomos uma análise de duas questões (edição de 2009 e 2011, respectivamente) para explorar qual sentido geográfico é dominante, garantindo (ou não) a mobilização de lógicas escalares mais homogeneizantes para interpretar a experiência espacial. A Matriz de Referência do ENEM (INEP, 2009) é um documento voltado para a divulgação do ENEM. Por esta razão, reconhecemos neste texto a evidente sofisticação da proposta curricular oficial para o Ensino Médio, uma vez que estão apresentados ali os conteúdos, objetos da avaliação. É interessante observar que a atual distribuição dos conteúdos por área do conhecimento (linguagens, matemáticas, ciências da natureza e humanas) ressignifica o formato do currículo por competência, consagrado na primeira edição da prova, em 1998. Isto porque na atual Matriz de Referência há a hibridação da perspectiva do currículo por competências com a organização dos conteúdos por disciplina, como modalidade de organização e distribuição do G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 2 1 - 3 2 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

conhecimento para o ensino médio. Com o fim de ilustrarmos tal argumento, apresentamos abaixo marcas textuais politicamente ambivalentes, uma característica predominante desta Matriz de Referência. Competência de área 2 - Compreender as transformações dos espaços geográficos como produto das relações socioeconômicas e culturais de poder. Habilidade 6 - Interpretar diferentes representações gráficas e cartográficas dos espaços geográficos. Habilidade 7 - Identificar os significados histórico-geográficos das relações de poder entre as nações. (INEP, 2009, p. 12, grifo nosso) Neste fragmento, podemos interpretar que a “competência 2” organiza outros sentidos curriculares e que as habilidades podem ser percebidas como objetivos da escolarização de saberes na conclusão da Educação Básica, dentre eles, o geográfico. O que significa uma evidência do modo como o discurso da competência fixa a seleção dos conteúdos escolares a serem objetos de exame, envolvendo distintos mecanismos de regulação de sentido, como por exemplo, o controle do vocabulário. No trecho acima, destacamos alguns significantes do domínio das comunidades disciplinares (estabilizados nos textos diversos da História e da Geografia, por exemplo) e que são recontextualizados nesse documento, uma vez que há a intenção de anunciar as habilidades exigidas pelo processo de aprendizagem. Notem que a hegemonização destas palavras como um vocabulário específico de uma ou de outra disciplina se deve fortemente a trajetória escolar dos conteúdos, sua estabilidade na tradição escolar da Geografia, por exemplo. Assim, reconhecemos, nos termos destacados, a disputa pelo poder na escrita deste documento que exige do produtor do texto uma atenção à especificidade da organização social do conhecimento. De acordo com Lopes (2008, p. 112), a 27


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inovação encarnada no sentido de integração curricular é uma fixação precária permitida pelas demandas de comunidades disciplinares e de outras agências convocadas para autorizar a respeito do que é legítimo no ENEM. No nosso ver, isto fica claro na correspondência entre habilidades e conteúdos disciplinares, particularmente na disputa para determinar que conteúdo pode ser “integrado” como condição de classificação e definição das competências. Nesta argumentação, é possível perceber também os conteúdos que aparecem no texto da Matriz já “naturalizados”, como reflexo direto da tradição escolar da Geografia. Isto porque seriam “inquestionáveis” no saber de referência (neste caso, na ciência geográfica) e são selecionados naquele texto curricular, como é o caso da habilidade 6: “Interpretar diferentes representações gráficas e cartográficas dos espaços geográficos” (idem). Esta afirmativa se remete à discussão da configuração hegemônica que estabiliza determinados conteúdos em textos curriculares (GABRIEL, 2010) quando aqui analisamos que a “linguagem cartográfica” é tratada como sinônimo de representação espacial, considerada como código exclusivo para definir o espaço. Esta percepção eleita pela Matriz de 2009 acontece a despeito do debate trazido por muitos autores (dentre tais estudos, podemos citar os de MASSEY, 2008) que vêm a questionar a relação entre “representação” e o “espaço”, sendo a primeira tomada como uma propriedade para a organização da leitura espacial e habilitada também por outros códigos e linguagens. Com isso, é possível inferir, portanto, que no ENEM há redução do significado de espaço à representação. Até este momento do artigo, sinalizamos certos sentidos geográficos hegemônicos no ENEM. Passemos agora a explorar, ainda nestes mesmos textos curriculares, sentidos de espacialidade. Estamos de acordo com Massey (2008), para quem a espacialidade se refere à experiência espacial, o que leva em conta que essa experiência é um objeto de significação e, logo, de relação de poder. Significar o espaço é, pois, fixar operações 28

da geometria do poder para ordenar interpretações sobre o controle espacial. Acreditamos que esta acepção de espacialidade nos ajuda a empreender análises sobre quais sentidos geográficos são privilegiados no ENEM que é uma política de escala. Com esta argumentação, é possível tecer a seguinte interrogação: que experiências espaciais são eleitas para garantir uma geografia não local? Para tensionar a interrogação, convém (mesmo que brevemente) discutir certos itens do Exame. Na edição de 2009 (caderno azul), no nosso ver, é possível reconhecer o projeto “híbrido” de currículo integrado sendo negociado com a especificidade do disciplinar. Haja vista que em todas as edições do ENEM, há itens onde predomina o vocabulário da disciplina, denunciando a hegemonia da organização disciplinar, o que coincide, de certa forma, com outra apreciação de Lopes (2008): a integração curricular é um discurso cujos sentidos são negociados também com as comunidades disciplinares. Em uma análise que envolve a correlação entre as determinações da Matriz de Referência do ENEM (INEP, 2009) e as Orientações Curriculares (MEC, 2006), vemos nesta questão (ENEM, edição 2009) de domínio geográfico, os seguintes conteúdos: fluxos migratórios, urbanização. À luz do debate sobre currículo como política cultural, podemos perceber neste item que ao assinalar a resposta certa, o aluno “escolhe” uma interpretação da experiência espacial, já que essa eleição é uma fixação (provisória) de sentidos sobre espaço. O “Gabarito” do ENEM é a opção “c”: “o processo de migração para o Sudeste contribui para o fenômeno conhecido como inchaço urbano” (idem). O “Gabarito” pode ser percebido como uma escolha política para uma abordagem da discussão acerca do conteúdo “fluxos migratórios”, por classificá-lo como um “problema” urbano, através do emprego do significante “inchaço”. O reducionismo desta questão está em omitir o debate sobre a mobilidade espacial na sociedade capitalista e por privilegiar o foco na lógica de causalidade nesta discussão, sem considerar o efeito de escalas, necessário G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 2 1 - 3 2 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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F i g u ra 2 | I t e m e x t ra íd o d o E NE M (E d i ção 2011) . F o n t e : I N EP, 2011.

Fi gura 1 | Item extr aí d o do EN E M (E d i ç ã o 20 0 9 ). Font e: INE P, 2 0 0 9 .

para interpretar a dinâmica dos fluxos no espaço. Além disso e apesar da especificidade da Geografia, a questão poderia ser menos frágil, caso procurasse desenvolver mais diálogos com outras áreas de conhecimento e explorasse as escalas de análise do local com a finalidade de produzir efeitos de sentidos espaciais. Ao reduzir este tema à lógica causa-efeito, produzindo generalizações, o item não só reduz o debate da produção do espaço urbano, como impede de inferir interpretações outras sobre o mesmo fenômeno espacial. Concorrendo com o mesmo tema, a edição de 2011 (caderno rosa) apresentou o item abaixo que será objeto de uma rápida análise comparativa, para ilustrarmos a função da escala nos conteúdos geográficos autorizados pelo exame. G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 2 1 - 3 2 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

Como é possível notar, mesmo permanecendo a relação de causa-efeito na construção da pergunta ou do comando do item, todavia, há o que chamamos de estratégias para impedir efeitos de sentidos que omitem a dinâmica espacial e provoquem a “violência epistêmica”, presente nos reducionismos de leitura sobre o espaço. O texto (Música que introduz o tema) e principalmente a redação do comando (que organiza os sentidos das possíveis repostas) são elementos do item que favorecem a produção da interpretação do espaço, valorizando a compreensão da mobilidade a partir da dinâmica regional. Dito isto, ao viabilizar a análise regional, o mesmo item impede afirmações que reduzam a compreensão dos movimentos migratórios às afirmativas preconceituosas presentes na questão 29


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anteriormente citada, que, por sua vez, repercutem no sentido de condenação da mobilidade espacial. Diante do que brevemente exploramos neste artigo sobre a Geografia no ENEM, nos parece que a afirmação do ENEM como política curricular de escala - homogeneizando a escala nacional e impedindo as demais escalas particulares - pode incorrer em outro grande problema. O problema do estreitamento curricular, entendido aqui como prescrição do conhecimento geográfico a ser ensinado. Ou seja, ao invés de uma interpretação do espaço, pode haver o predomínio de uma interpretação homogênea do espaço. Ao homogeneizar o espaço para ressignificar certos saberes em objetos de avaliação para todo o país, estar-se-ia incorrendo na possibilidade de autorizar interpretações como esta: migração correlata ao “inchaço urbano”. Por outro lado, a mesma temática, quando consideradas outras escalas e apresentada a localização, impede afirmações generalizantes, como aquela que criminaliza o deslocamento espacial no texto curricular e pedagógico que é o item do ENEM. Este é no nosso entender a grande fragilidade do exame como política de currículo e de escala: permitir a leitura do espaço homogêneo ao impedir sentidos outros da espacialidade, por omitir escalas para interpretação do fenômeno espacial. Este “risco” assumido pelo sistema de avaliação nacional - por ser nacional - ao favorecer a expansão da reforma curricular é tomado aqui, ainda como uma afirmativa prematura sobre os sentidos de geografia no ENEM. Ao reconhecermos esta incompletude do presente exercício, queremos chamar atenção para a complexidade de tratar da integração dos conhecimentos que vem a ser um discurso hegemônico nas políticas educacionais que carrega o sentido da inovação. Tal fato amplia as possibilidades para análise de que sentidos são eleitos para garantir esta condição de “inovação” quando se refere à qualidade do ensino. Vemos este arranjo argumentativo como uma possibilidade de investigação da epistemologia escolar a favor de uma construção mais horizontal do pensamento 30

geográfico. Afinal, não devemos desconsiderar que a sistematização desta disciplina dependeu da reconfiguração dos diálogos com outras áreas do conhecimento e igualmente de política de currículo que a garantisse na escola. Em outras palavras, esta análise do ENEM aponta os desafios para tornar textos pedagógicos ou tradições disciplinares em objetos de avaliação para todo um país. Isto significa que esta tarefa pode ser tomada como um exercício político: seja o de violência epistêmica, quando impede interpretações outras de mundo, ou por outro lado, seja o da estratégia política de grupos menos favorecidos, na medida em que são garantidos o ensino e aprendizado de certos saberes em escala nacional. No caso da Geografia, caberia seguir com esta argumentação, visto que determinadas questões da prova imobilizam o jogo de escalas, impedindo a lógica multiescalar e, assim, uma interpretação multiterritorial (HAESBAERT, 2007) para favorecer uma análise mais democrática sobre o uso do espaço. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os resultados do ENEM possibilitam: (...) III - a criação de referência nacional para o aperfeiçoamento dos currículos do ensino médio (...) (MEC, 2010, grifo nosso) A associação entre a política educacional e a mudança já fora objeto de reflexão de autores como Lopes (2008) e Popkewitz (1998). Eles mostram, cada qual a partir de sua análise teóricoempírica, que o consenso em volta de uma política educacional depende do sentido de mudança, ruptura, reforma, inovação. Esta relação política para manutenção ou subversão da geometria de poder demanda, pois, por jogos de significações, marcados por disputas. Neste artigo, trazemos algumas apreciações de Lopes (2008) que vem reconhecendo no discurso da integração curricular como estratégia política para legitimar o sentido do inovar. A reforma do Ensino Médio envolve precários consensos, resultantes da G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 2 1 - 3 2 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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recontextualização de discursos conservadores e/ ou críticos de diferentes campos do conhecimento. Em outras palavras, diversos documentos oficiais apresentam uma superfície textual híbrida, em que no mesmo sentido da integração estão envolvidas diferentes perspectivas da interdisciplinaridade, por exemplo. A partir desta argumentação, resolvemos explorar fragmentos que falam sobre o ENEM: entrevistas retiradas da tese de Lima (2005), trechos da página eletrônica, do documento onde estão listados os conteúdos a serem avaliados e das Portarias de INEP e MEC. Entendemos que estas distintas fontes são superfícies textuais que falam do que é válido a ser ensinado, a partir da plataforma política curricular. Nós tínhamos aqui um foco: discutir sentidos de Geografia, entendendo o ENEM como política educacional, mais especialmente como política curricular de escala. Esta argumentação participa do nosso problema de investigação de doutoramento: em que medida a proposta curricular no ENEM como modelo de organização do conhecimento interfere nos sentidos de Geografia a serem ensinados nos anos finais da Educação Básica? Neste exercício, operamos com esta argumentação com o fim de perceber que o ENEM

é uma avaliação com características que colocam certas fragilidades para o ensino de conteúdos geográficos. Aqui vimos algumas delas, como por exemplo, os limites de considerar a experiência espacial do aluno para construir a interpretação espacial, num exame nacional de múltipla escolha. Além disso, o modelo de avaliação pautado por questões “objetivas”, isto é, reduzido à escolha de opções/afirmativas também impede que estas (múltiplas) interpretações sejam manifestadas. Em suma, o projeto de currículo vigente no ENEM envolve ambivalências e paradoxos nas fixações de sentidos sobre a organização do conhecimento, dirigida por um modelo híbrido de integração curricular e de classificação disciplinar. Este argumento não está afirmando a negligência do Estado ou dos grupos ligados ou responsáveis pelo ENEM, mas procura interpretar como textos políticos se caracterizam pela precariedade justamente por atender a diferentes interesses de distintos grupos políticos e escalas de ação. O conflito se dá porque agendas políticas diversas estão envolvidas para determinar o que é valido ser objeto de avaliação, tendo em vista que o ENEM encarna um projeto de inovação que nunca será completo, uma característica própria de todo jogo político.

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INVESTIGANDO O CURRÍCULO DA GEOGRAFIA ESCOLAR: PERMANÊNCIAS E MUDANÇAS NA ABORDAGEM REGIONAL (1970-2010)¹ INVESTIGATING THE CURRICULUM OF SCHOOL GEOGRAPHY: PERMANENCIES AND CHANGES IN THE REGIONAL APPROACH (1970-2010)1

T E RE S A C R IS TI NA JACCOUD ORL A NDE Professora de Geografia Especialista em Ensino de Geografia (UFRJ) Master of Forestry (North Carolina State University) Mestranda em Educação (UFRJ) t er esaorl ande@gmai l .co m

RESU M O: O P R E S E N T E T R A B A L H O T E M C O M O O B JE T IVO P E RC E BE R C OM O A DIS C IP LINA E S C OLAR GE OGRAFIA, NAS ÚLTI MAS D ÉCA D A S , V E M A RT IC U L A N D O N O VA S N O Ç Õ ES S EM , C ONT UDO P E RDE R S UAS T RADIÇ ÕE S . AS P E RGUNTAS QUE INSTI GARAM ESSA P E S QU IS A FOR A M B A S I C A M E N T E : C O M O S E D Á E S S E P ROC E S S O DE ART IC ULAÇ ÃO? C OM O A DIS P UTA E NT RE O “NOVO” E O T R A D ICION A L S E M ATE R I A L I Z A M N A ES C O L A ? FOI P OR M E IO DO E S T UDO DA H IS T ÓRIA DO C URRÍC ULO QUE SE PÔDE PERCE B E R COM O OC O R R ER A M TR A N S F O R M A Ç Õ ES NO C ONH E C IM E NT O E S C OLAR, BUS C ANDO A RE FLE XÃO S OBRE OS SEUS EMBAT E S T R AVA D OS , N Ã O S Ó C O M A S P R O D U Ç Õ E S A C ADÊ M IC AS , M AS TAM BÉ M C OM AS DE M ANDAS DA P RÓP RIA S O CI EDADE. UMA D A S MA N E IR A S D E S E ES TU D A R A H I S T Ó R I A E S COLAR É P OR M E IO DO LIVRO DIDÁT IC O, C ONS IDE RADO UM A RI CA F ONTE D E PE S QU IS A , J Á QU E N ES S E M AT E R I A L É P O S S Í V EL P E RC E BE R C OM O O C URRÍC ULO DA DIS C IP LINA FOI S E M AT E RIAL I ZANDO. EM LI V R OS D O Ú LT IM O A N O D O E N S I N O F U N D A M E N TAL ( DÉ C ADAS DE 1 9 7 0 E 2 0 1 0 ) BUS QUE I C OM P RE E NDE R C OM O AS F ORMAS TRAD ICION A IS D E OR G A N I Z A Ç Ã O D E S TE C O N H EC I M E NT O ( M ARC ADAS P E LA ABORDAGE M RE GIONAL) FORAM S E ARTI CUL ANDO COM OU T R OS D IS CU R S O S E P R O D U Z I N D O M U D A N Ç A S NO C URRÍC ULO. PALAVRA S-C HAV E: ENSI NO DA GE OGRAF I A; CURRÍ CUL O ; C U R R Í C U L O D A G E O G R A FI A ; A B O R D A G E M R E G I O N A L ; L I V R O DIDÁTIC O.

ABST RAC T: T HIS WOR K A I M S AT A D D R E S S I N G H O W TH E S C H OOL C OURS E OF GE OGRAP H Y RE LAT E S T H E NOT IONS PRODUCED BY DIFFE R E N T C ON T E X TS W I T H I T S T R A D I TI O N A L O N ES , IN T H E LAS T DE C ADE S . T H E QUE S T IONS T H AT M OT IVAT E D THI S WORK WERE B A S IC A LLY: H O W TH I S P R O C ES S TA K E S P L A CE ? H OW NE W AND T RADIT IONAL C ONC E P T S INT E RAC T IN S C HOOL S? I T WAS T H R OU G H A N A N A LY S I S O F TH E H I S T O RY O F T H E GE OGRAP H Y C OURS E C ONT E NT S T H AT T H E T RANS FORM AT IONS I N THE SCHOOL K N OWLE D G E C O U L D B E U N D E R S T O O D , I N TH E S E ARC H FOR T H E DIS C US S IONS ABOUT T H E C H ALLE NGE S IMPOSED BY THE A CA D E MIC P R ODU C TI O N A N D T H E S O C I A L D EM ANDS . ONE OF T H E P OS S IBILIT IE S IS T H E S T UDY OF T H E S C H OOL HI STORY THRO U G H T E X T B OOK S , C O N S I D ER ED I N T H I S W O R K A S A RIC H S OURC E OF INFORM AT ION, S INC E T H E Y ALLOW UNDE RSTANDI NG HOW T H E C ON T E N T S O F TH E G EO G R A P H Y C O U R S E EVOLVE D. T E XT BOOK S OF T H E LAS T Y E AR OF M IDDLE S C H OOL ( PUBL I SHED IN 19 7 0 A N D 2 0 1 0 ) W E R E U S ED I N T H I S S TU D Y T O ADDRE S S H OW T H E T RADIT IONAL ORGANIZAT ION OF T H E K NOWL EDGE OF G EOG R A P HY (M A R K E D B Y T H E R E G I O N A L A P P R O A C H ) I NT E RAC T E D W IT H OT H E R P OINT S OF VIE W AND RE S ULT E D IN M ODIF I CATI ONS OF TH E C OU R S E CON T E N T S . KEYWORDS : TEAC HING OF GE OGRAPHY; CURRI CUL UM; C U R R I C U L U M O F G E O G R A P H Y; R E G I O N A L A P P R O A C H ; T E X T B O OK .

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INTRODUÇÃO O interesse central deste trabalho é a compreensão da construção do currículo da disciplina escolar Geografia, considerando a especificidade do conhecimento escolar e sua relação com as produções acadêmicas. Especificamente, procuro compreender como as mudanças ocorridas na referida disciplina podem ser percebidas, a despeito da ideia de que suas práticas curriculares são ultrapassadas. Para tanto, inicialmente apresento uma discussão sobre os processos de estabilidade e mudança nos currículos, com base em Goodson (1997), Ferreira (2007) e Vilela (2013). Em seguida, explico como é possível perceber esses processos em meio à produção da cultura escolar, apoiada nas ideias de Forquin (1993), Chervel (1990) e Julia (2001). Com base nas análises produzidas sobre os textos de livros didáticos de dois diferentes períodos temporais, desenvolvo as observações sobre o material empírico. GEOGRAFIA ESCOLAR E CURRÍCULO A disciplina escolar Geografia já constava no ensino básico do Brasil ainda no século XIX, mas a Geografia acadêmica só começa a se desenvolver e ser institucionalizada em 1930. Segundo Martins (2011, p. 61), entre 1930 e 1950, (...) há um predomínio da geografia clássica com estudos regionais fundamentado nos conceitos de região utilizados por La Blache, (...) que, por meio de estudos limitados a pequenos espaços, investiga a inter-relação dos fenômenos naturais e humanos. Após a Segunda Guerra Mundial, devido às mudanças políticas e econômicas mundiais, a Geografia de base regional, então praticada na academia e nas escolas, sofreu críticas que apontavam para a necessidade de se desenvolver estudos mais comprometidos com as questões sociais. Nesse movimento, o trabalho de Yves Lacoste (1988) é uma importante referência, 34

trazendo uma nova proposta de análise geográfica mais crítica sobre as relações humanas, colocando em questão a geografia que se ensina nas escolas. É importante ressaltar que o embate entre uma visão regional e a visão crítica da geografia fez com que a geografia tradicional, representada pela regional, fosse relegada, naquele momento, ao limbo da própria ciência geográfica. Essa realidade pode ser comprovada no trabalho de Vesentini (2004, p. 222-223), quando o autor afirma que: (...) a geografia regional seria descritiva e mnemônica, alicerçada no paradigma a “Terra e o homem”. Já a geografia crítica seria entendida (...) como uma leitura real - isto é, do espaço geográfico - que não omita as suas relações e contradições, tal como fazia e faz a geografia tradicional, que ajude a esclarecer a espacialidade das relações de poder e de dominação. Porém, apesar das disputas internas dentro da academia, a disciplina escolar continua a apresentar traços muito marcantes referenciados na abordagem regional. A permanência da regionalização pode ser compreendida pela noção de que existe uma tensão permanente entre os processos de estabilidade e mudança nos currículos (GOODSON, 2001; FERREIRA, 2007). Vilela (2013, p. 24) afirma que a abordagem regional é: “(...) um ponto de estabilidade do currículo escolar da Geografia”. A autora (VILELA, 2013, p. 24), ao analisar um processo de mudança curricular de uma escola em que a abordagem regional foi colocada em questão, afirma ter percebido que, na visão dos professores, (...) abrir mão de tal enfoque seria como trocar o conhecido pelo incerto; seria abrir um espaço que poderia ser ocupado por outros campos disciplinares, outras disciplinas escolares. Afinal, a cultura escolar, não se pode negar, também é marcada por disputas territoriais de poder. G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 1 , P. 3 3 - 4 3 , J A N . / J U N . 2 0 1 4 .


TERES A CRIS TIN A JACCOUD ORL ANDE

Nesse momento, é fundamental destacar que, dentro da manutenção das tradições, as inovações são edificadas num processo de diálogo intenso entre o “novo” e o “antigo”, de uma maneira que ao mesmo tempo se tenha uma transformação e a manutenção do espaço, que foi conseguido pela disciplina dentro da escola. Vilela (2013, p. 21) corrobora isto ao dizer que: (...) as inovações impulsionadas pela renovação do ensino da Geografia estão presentes nos currículos escolares atuais, porém, não sem terem sido ‘negociadas’ com as tradições existentes. Mais do que isto, com base em Ferreira (2005), permitome arriscar a dizer que tais inovações só se tornam possíveis a partir de certas estruturas aparentemente estáveis. Em outras palavras, a ‘negociação’ com o tradicional – a abordagem regional, por exemplo – é o que vai garantir a existência de um currículo de Geografia mais crítico. É importante ressaltar que minha leitura sobre o currículo escolar é construída com base na ideia de que os conhecimentos acadêmicos e escolares são distintos. Considero, ainda, que o que difere o conhecimento escolar do acadêmico passa, também, pelo tempo. Percebo que o tempo escolar não é cronologicamente o tempo da academia. Isso ocorre porque tanto a realidade da escola como o da universidade é formada por distintos grupos de atores, com diferentes interesses. Na escola, as relações entre os diferentes atores criam a chamada cultura escolar que se difere entre as próprias escolas, mas que atuam da mesma maneira no momento de lidar com as mudanças geradas fora dos limites da escola. Porém, considerar essa realidade não significa que não vai haver um diálogo entre a academia e a escola. Na verdade, vejo que as transformações acadêmicas vão se moldando nas tradições escolares de uma maneira tão gradativa que esse “novo” passa a ser visto como algo natural e inerente ao currículo. É justamente G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 3 3 - 4 3 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

analisando esse currículo por meio do livro didático, aqui considerado uma manifestação do próprio currículo, que pretendo perceber como o “novo” foi se integrando ao estudo regional nos últimos anos do Ensino Fundamental. O que pretendo é justamente identificar as mudanças que existem dentro das estruturas aparentemente estáveis do currículo. Por estabilidade curricular tenho o mesmo entendimento que Ferreira (2007), quando esta afirma que sua existência não significa que mudanças não ocorrem dentro das disciplinas. Segundo a autora (FERREIRA, 2007, p. 141), (...) a estabilidade que usualmente observamos nas diferentes disciplinas escolares pode ser muito menos uma ausência de transformações, e sim o resultado de uma série de conflitos tanto no interior das comunidades disciplinares quanto destas com os vários grupos externos. A referida autora destaca, assim, que nem sempre estruturas estáveis são isentas de mudanças. Ao contrário, muitas vezes as mudanças produzem conflitos de interesses que aparentemente estabilizam os currículos. Além disso, é comum que disputas no campo do conhecimento envolvam o estabelecimento de fronteiras com outras disciplinas. É possível, assim, entender, com base em Goodson (2001) e Ferreira (2007), que o conflito entre disciplinas é caracterizado pela luta da manutenção do status da disciplina nas políticas educacionais para garantir o seu território dentro da escola. Segundo Macedo (2008, p. 147), as disciplinas representam “interesses substantivos de diferentes grupos e se tornam hegemônicas de modo a fazer prevalecer tais interesses”. Assim, esses distintos interesses acabam por gerar uma estabilidade disciplinar que promove a manutenção de tradições que se caracterizam por ter um distinto processo de transformação ao longo da história da disciplina. Chervel (1990) e Goodson (2001) discutem as tradições e as mudanças que ocorrem dentro da disciplina escolar. Chervel (1990, p. 198) 35


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vai mostrar que: “(...) o funcionamento de uma disciplina se caracteriza por uma preocupação, por sua lentidão e por sua segurança, mas que não devemos ver a disciplina como uma massa amorfa e inerte”. Goodson (2001, p. 101) confirma que mudanças ocorrem dentro das disciplinas, já que estas “(...) não são entidades monolíticas, mas antes, amálgamas fluentes de subgrupos e de tradições que, através da constatação e do compromisso, influenciam o rumo das mudanças”. CURRÍCULO E CULTURA ESCOLAR A especificidade da cultura e do conhecimento escolar é bastante explorada pelo campo da História das Disciplinas Escolares, que pode ser considerado relativamente novo dentro da área da Educação, mas que vem crescendo de uma forma expressiva (Chervel, 1990). Ele se desenvolve a partir da produção de autores que estiveram interessados em compreender o currículo escolar considerando suas especificidades. Este investimento tornou possível lançar outro olhar para as disciplinas escolares. Para Chervel (1990, p. 180) disciplina é “(...) um modo de disciplinar o espírito, quer dizer de lhe dar os métodos e as regras para abordar os diferentes domínios do pensamento, do conhecimento e da arte”. Goodson (2001, p.180) afirma que disciplina escolar “(...) é o ponto de referência da escola na qual seleciona e organiza as informações e os conhecimentos que serão transmitidos”. Já Julia (2001, p. 33) aborda as disciplinas escolares da seguinte forma: (...) não são nem uma vulgarização nem adaptação das ciências de referências, mas um produto específico da escola, que põe em evidência o caráter eminentemente criativo do sistema escolar. Como notou muito bem André Chervel, “as disciplinas escolares são inseparáveis das finalidades educativas, no sentindo amplo do termo “escola”, e constituem” um conjunto complexo que não se reduz aos ensinos explícitos e programados. 36

Se por um lado existem autores que restringem a noção de currículo ao que foi estabelecido nos planejamentos dos conteúdos das disciplinas, por outro lado, Forquin (1993) mostra autores como Lawrence Stenhouse (1975, apud FORQUIN, 1993, p. 23), que vão discutir currículo como algo que não acontece somente no campo cognitivo, mas também no plano afetivo e social, devido à relação estabelecida entre o ensinamento que eles recebem e suas próprias experiências de escolarização. Ao seguir essa linha de pensamento, o autor dialoga com a noção de Dale (1977, apud FORQUIN, 1993, p. 23), que utiliza a ideia de currículo oculto para distinguir do currículo oficial. Para o autor (FORQUIN, 1993, p. 23), o currículo oficial é o que “perseguido pela escola”, já o oculto é o que “é efetivamente realizado pela escolarização enquanto desenvolvimento das capacidades ou modificações dos comportamentos dos alunos”. Considero, assim, a importância da ideia de que cultura escolar não está prevista em nenhum planejamento de qualquer disciplina, mas ela é produzida nos diferentes processos envolvidos nas atividades escolares. Afinal, a cultura escolar pode ser vista como: (...) um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e culturas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente socialização). (JULIA, 2001, p. 1) LIVROS DIDÁTICOS COMO FONTES DE PESQUISA Para o desenvolvimento de pesquisas em história do currículo é fundamental a analise dos documentos gerados no período estudado. Segundo Macedo (2008), existem três tipos de documentos que são: os relatos orais gerados pela própria pesquisa, os documentos produzidos posteriormente ao tempo analisado e os G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 1 , P. 3 3 - 4 3 , J A N . / J U N . 2 0 1 4 .


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documentos produzidos no momento histórico estudado. A autora (MACEDO, 2008, p. 154-155) afirma que “(...) com essas fontes, contamos com materiais que nos permitem acessar os contextos macrossociais e culturais, outros que nos aproximam da instituição estudada e outros ainda mais especificadamente relacionados ao currículo ou aos atores curriculares”. A autora defende, assim, que a diversificação de documentos analisados permite a articulação de informações em diferentes escalas de análise. Diversos autores, como Choppin (2004), chamam a atenção para as diferentes funções dos livros e destacam que uma delas é a função referencial, quando o livro é:

conteúdos explícitos constituem o eixo central da disciplina ensinada, o exercício é a contrapartida quase indispensável”. O autor continua afirmando que os conteúdos e os exercícios são o “núcleo da disciplina” e

(...) apenas a fiel tradução do programa ou, quando se exerce o livre jogo da concorrência, uma de suas possíveis interpretações. Mas, em todo caso, ele constitui o suporte privilegiado dos conteúdos educativos, o depositário dos conhecimentos, técnicas ou habilidades que um grupo social acredita que seja necessário transmitir às novas gerações. (CHOPPIN, 2004, p. 553)

Segundo Choppin (2004, p. 554), existem duas categorias de pesquisa sobre o livro didático. A primeira é aquela em que se procura a história de um tema/conteúdo e não a do próprio livro didático. A segunda maneira é que não privilegia o conteúdo, mas sim a própria história da concepção do livro em uma determinada época. Apesar da distinção das formas de pesquisar os livros, é importante que o historiador dos livros didáticos entenda que essas duas categorias de analise se completam. O autor (CHOPPIN, 2004, p. 554) afirma que “(...) essa distinção é seguramente esquemática, uma vez que uma pesquisa geralmente participa - ainda que em proporções variáveis - das duas categorias”. É justamente esta articulação que pretendo realizar ao olhar para livros didáticos de diferentes períodos temporais para buscar identificar mudanças no interior daquilo que se considera estável.

Choppin reconhece também sua função instrumental: (...) o livro didático põe em prática métodos de aprendizagem, propõem exercícios ou atividades que, segundo o contexto, visam a facilitar a memorização dos conhecimentos, favorecer a aquisição de competências disciplinares ou transversais, a apropriação de habilidades, de métodos de análise ou resolução de problemas. (CHOPPIN, 2004, p. 553) Com esses exemplos, é possível perceber que nos livros estão contidos uma série de embates característicos do espaço escolar. Para além dos conteúdos a serem ensinados, sua linguagem se refere a uma diversidade de práticas escolares que estão ligadas às formas didáticas. Chervel (1990, p. 203) destaca que “(...) se os G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 3 3 - 4 3 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

(...) todas as disciplinas, ou quase todas, apresentam-se sobre esse plano como corpus do conhecimento provido de uma lógica interna, organizados em planos sucessivos claramente distintos e desembocando em algumas ideias mais simples e claras, ou em todo caso encarregadas de esclarecer a solução de problemas mais complexos. (CHERVEL, 1990, p. 203)

EXPLICANDO A METODOLOGIA Para o desenvolvimento do trabalho foram analisados dois livros de Geografia, ambos do 9º Ano do Ensino Fundamental, sendo um deles publicado na década de 1970, que é identificado como livro A, e o outro publicado em 2009, que é identificado como livro B. Cabe esclarecer que a autoria dos livros não foi um critério de escolha destes; na perspectiva aqui adotada, os livros são 37


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considerados como parte da materialidade do conhecimento, que estaria presente em qualquer um dos livros editados que entram em circulação. A escolha por analisar especificamente o 9º ano se justifica pelo fato de seus conteúdos serem tradicionalmente tratados sob o enfoque regional. Assim, esta abordagem é vista aqui como uma marca de estabilidade curricular desta disciplina, e, portanto, é interessante para os objetivos desta pesquisa. As duas décadas selecionadas se justificam por ser a primeira (1970) um momento em que o movimento de renovação crítica começou a impactar a escola. Assim, justamente produções como esta foram alvos de críticas feitas por aqueles que “cobravam” da escola formas mais dinâmicas e “modernas” de ensinar Geografia. O objetivo de compreender as mudanças presentes nas estruturas estáveis dos currículos de Geografia foi o que motivou a escolha de analisar também um livro produzido na atualidade. Numa primeira análise procurei comparar as formas de organização dos livros por meio da leitura do sumário de cada um. Após esta etapa, busquei na leitura dos textos a presença de mapas identificando, não só os tipos de mapas utilizados, como também as escalas e a lógica da disposição desses mapas. Além disso, observei os tipos de imagens utilizadas e a disposição dessas imagens nos capítulos. Procurei comparar os tipos de gráficos e a tabelas empregadas e sua localização nos capítulos. Após essas observações mais gerais sobre a organização de cada livro, parti para uma leitura mais aprofundada dos textos. Neste artigo, especificamente, dou destaque às observações relacionadas ao continente europeu. MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS NO CURRÍCULO DA DISCIPLINA ESCOLAR GEOGRAFIA Em uma primeira aproximação, pude perceber que a geografia física é trabalhada quase da mesma maneira nos dois livros; aparece sempre antes da chamada geografia humana. É mais descritiva no livro A, onde pude observar que as características naturais são sempre usadas 38

com uma forma de delimitar as regiões, mesmo quando se é sabido que na natureza não existem fronteiras rígidas. É possível perceber isso ao ler o texto sobre os climas (LIVRO A, p. 99): (...) O domínio oceânico: a Europa Ocidental (...) Mais para o interior, a influência oceânica é fraca (...) assim, o inverno rigoroso e o verão quente e chuvoso são estações bem definidas no centro do continente (...) O domínio mediterrâneo: ao sul do arco montanhoso dos Pirineus-Alpes-Cárpatos (...). Comparando a regionalização nos dois livros, é possível destacar que, no caso do livro B, o estudo da Europa situa-se dentro da unidade chamada: Globalização e Regionalização. A primeira forma de regionalização da Europa, assim como no livro A, é feita com base física e é denominada da seguinte forma: Europa norteoriental e Centro-oriental, Extremo-norte, Centroocidental e Europa Mediterrânea. Para cada região é dedicado um texto descritivo das características dos climas e vegetação, porém estabelecendo relações entre a existência da vegetação a partir do tipo climático de cada região. Vejo aqui uma mudança uma vez que ao relacionar a existência de determinado tipo de vegetação com um determinado tipo de clima permite uma melhor compreensão do espaço físico a partir de uma lógica da natureza. Percebo outra interessante mudança de abordagem quando o texto faz relações entre a presença da vegetação com o tipo de clima correspondente, como é possível ver na figura 1. Ela mostra uma alteração significativa na forma de se trabalhar a geografia física, sempre tão presente na geografia escolar, de uma forma descritiva e sem nenhuma conexão entre as características do espaço físico, levando o aluno a apenas decorar os dados específicos de cada região. Pude observar esta característica no livro A, em que os elementos físicos são descritos separadamente, isto é, de forma compartimentada. G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 1 , P. 3 3 - 4 3 , J A N . / J U N . 2 0 1 4 .


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No livro B, é clara a organização dos conteúdos da Geografia Física de forma integrada, buscando associar características como clima e vegetação. Ao relacionar elementos físicos para explicar suas existências e características dentro de uma análise regional, fica clara uma mudança sutil, mas significativa, porque é possível desconsiderar a ideia que um estudo regional leva, necessariamente, a uma descrição pura e simples do espaço geográfico. Essa nova forma de analisar o espaço físico, no caso, da Europa permite afirmar que as mudanças são possíveis dentro de uma estabilidade da disciplina escolar.

desenvolvimento econômico como algo positivo nas descrições regionais. Uma evidência disso pode ser vista no livro A, onde, antes da análise das regiões europeias e seus países, há uma primeira regionalização do continente, mais geral, em que o critério utilizado é o grau de desenvolvimento econômico dos países quando usa as expressões/ definições em destaque (LIVRO A, p. 103): (i) Europa próspera - um nível elevado de vida (...) que gozam do bem-estar material proporcionado pela civilização industrial (...); (ii) Europa atrasada - Fachada meridional da Europa (...) tem nível de vida próximo da dos povos subdesenvolvidos (...) a maior parte da população vive da agricultura; e uma (iii) Europa em transformação - a adequada exploração das riquezas minerais sustenta o desenvolvimento industrial. Logo em seguida é destacado, no item denominado Organização Política e Econômica, o fator econômico. Esta pode ser vista como uma maneira de não só fazer uma maior integração entre os países de uma Europa, que é considerada fragmentada, como, também, a busca de um maior desenvolvimento da região (LIVRO A, p. 103): Nos últimos vinte anos, os países da Europa têm procurado uma aproximação mútua: uma Europa totalmente unida corresponderia melhor às dimensões das grandes potências atuais. Uniões econômicas, tais como o Mercado Comum Europeu, promovem essa aproximação.

Fi gura 1 | Clim as e ve ge t a ç ã o da Eu ro p a . Font e: L ivr o B , p . 9 0

Além da lógica da delimitação de regiões naturais, posso perceber que, em ambos os documentos, há uma forte presença da ideia de G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 3 3 - 4 3 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

Em outro subtítulo, na mesma página, denominado Regimes Políticos Diversos, a questão econômica é mais destacada do que a ideológica para explicar a regionalização da Europa pela Guerra Fria como podemos ver na definição dada (LIVRO A, p. 105): Uma economia liberal é um sistema econômico baseado na iniciativa privada e na existência de empresas e propriedades 39


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particulares. Uma economia socialista é um sistema onde todos os setores de atividades são controlados pelo Estado. Ainda no livro A, após essa analise geral da Europa humana, são apresentadas descrições das regiões e alguns países da seguinte forma: A Europa Ocidental, O Reino Unido, A França, Do Mar do Norte ao Báltico, A Europa Central, A Alemanha Central, Alemanha Oriental e Polônia, Países dos Alpes e Danúbio, Europa Meridional, Países Ibéricos, Itália, Os Balcãs, URSS: Os Quadros Naturais, URSS: População e Organização, Vida Econômica. Para cada região é feito um resumo da geografia física e uma análise da geografia econômica. A questão física fica resumida a uma página e a questão econômica fica dividida em subitens havendo algumas variações para cada país, mas, basicamente seguindo o padrão: Indústria, Agricultura, Comércio, População, Vida nas Cidades. É importante ressaltar que o Mercado Comum Europeu só volta a ser destacado, uma vez, quando se fala na França (LIVRO A, p. 125): “A França reforça, cada fez mais, sua posição no comércio de gêneros agrícolas, procurando vantagens sobre seus vizinhos do Mercado Comum Europeu”. Aqui, vale a pena ressaltar que, quando o texto faz algumas pequenas considerações mais voltadas para a dinâmica das relações econômicas e, também, ao fazer referência ao Mercado Comum Europeu, mostra uma tímida tentativa de se fazer um estudo enfocando as relações econômicas entre os países como uma forma “nova” de se perceber o espaço geográfico. O mais interessante é que o autor do livro, Nilo Bernardes, é citado por Vesentini (2004, p. 227) como um dos autores, que já nos anos de 1970 “(...) valorizavam mais a explicação e combatiam veementemente a descrição e a memorização”. Assim, é possível destacar que a obra analisada se situa no contexto em que havia intenção de mudanças no ensino, de forma que o ensino “moderno” fosse aquele que negasse as formas mais descritivas de apresentar 40

os conteúdos. A valorização dos aspectos econômicos, que é vista por Vilela (2013) como uma das formas de afirmação do discurso crítico no conhecimento escolar em Geografia, já pode ser evidenciado neste conhecimento na década de 1970. Um bom exemplo dessas “pequenas” mudanças pode ser constatado nos dados e mapas usados (ver figuras 2 e 3), não só para destacar a importância econômica do Reino Unido como, também para explicar, por meio de um pequeno esquema, como se formou a riqueza da chamada Europa Ocidental.

F i g u ra 2 | O c i c l o da r iquez a. F o n t e : L i v ro A, p. 109

Sendo assim, é possível constatar que, ainda que os textos do livro A tenham, em sua maioria, uma forma mais descritiva seguindo a geografia escolar denominada tradicional, as G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 1 , P. 3 3 - 4 3 , J A N . / J U N . 2 0 1 4 .


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países e para o comércio internacional. Neste capítulo, os tipos de bloco são apresentados e caracterizados conforme suas organizações. Para a União Europeia é destinada uma página onde, por meio de dos mapas, é possível perceber o aumento de número de países integrantes ao bloco, ao longo da segunda metade do século passado. Na figura 4 é possível perceber que o destaque não é só para o aumento de número de países, mas também, para o Euro, como uma característica marcante do bloco, ou seja, novamente o fator econômico aparece, porém com uma mudança sutil, onde a força do Euro é usada como um elemento de regionalização do espaço mundial. Ressalto que, diferentemente de outras formas de regionalizar, não é mais a pujança da produção ou do comércio que é considerado,

Fi gura 3 | Á r eas in d u s t ri a i s d a G rã -B re t a nh a . Font e: L ivr o A , p . 1 1 2

mudanças podem ser percebidas de uma forma sutil, mostrando que é possível, dentro das permanências, as mudanças ocorrerem ao longo de todo um processo de acomodação do “novo”, para que este seja incorporado lentamente, para não provocar rupturas que possam gerar perdas da própria disciplina dentro da escola. O que se pode perceber claramente no texto desse livro é que as descrições regionais são fortemente marcadas pela ideia de que o desenvolvimento industrial é algo positivo e que a questão do nível de desenvolvimento econômico é um critério importante para as diferenciações das áreas. No livro B, o estudo da Europa é antecedido por um capítulo denominado Os Blocos Econômicos Supranacionais, no qual são apresentadas explicações sobre o processo econômico de formação de cada bloco, suas diferenças e importância para a economia dos G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 3 3 - 4 3 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

F i g u ra 4 | Z o n a do Eur o. F o n t e : L i v ro B, p. 70

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mas, sim a força da moeda, mostrando agora a força especulativa da economia mundial. Vale ressaltar, ainda, que em ambos os livros, após a análise física, há um breve estudo sobre os povos e suas culturas na região, porém de formas diferentes. No livro A, o texto explica em um parágrafo as características dos povos europeus com o subtítulo Variedade de Tipos Humanos e de Línguas, desenvolvido da seguinte forma (Livro A, p. 101): “Quase todos os europeus são da chamada raça branca, mas pertencem a vários tipos étnicos: o tipo nórdico, o tipo eslavo, o tipo mediterrânico. Há também povos de origem asiática (...) Também é grande o número de línguas e dialetos falado na Europa (...)”. Já no livro B, esse conteúdo é destacado com um subtítulo denominado Bases Culturais Europeias onde, em quatro páginas, se analisa os primeiros habitantes, as diversidades linguística e religiosa e o processo de formação histórica. Percebo nesse aumento da valorização multicultural em relação ao livro A, uma mudança em que a questão cultural passa a ser também valorizada e, ainda que de uma forma discreta, usada como um fator para uma melhor compreensão do espaço. Além disso, a linguagem no livro A, mencionando claramente tipos humanos e raças, mostra uma falta de preocupação presente na época com as questões ligadas às posturas valorizadas na pauta de muitos movimentos sociais contemporâneos. No livro B, a análise do continente é apresentada por meio da formação do bloco econômico da União Europeia. Nesse capítulo, alguns países europeus são citados conforme o processo de entrada no bloco e é dividido em seis tópicos; Benelux, Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, O MCE e a CEE, As Primeiras Ampliações, Tratado de Maastricht e Tratado de Nice. Ressalto aqui que nenhum país é destacado ou analisado individualmente, mostrando que o organismo econômico supranacional é agora um fator mais significativo de regionalização, comprovado pelo próprio nome do capítulo: A Geografia da União Europeia. Vejo nessa forma nova de denominar o espaço 42

europeu, novamente, uma sutil mudança, mostrando a Europa não mais dividida pelas ideologias ou pelas diferenças econômicas, mas unida, pela ideia de um continente que não mais, teoricamente, será dividido e, portanto não deve ser estudado como tal. CONSIDERAÇÕES FINAIS Mesmo com 40 anos de distancia entre a produção do livro A e a do livro B, percebo algumas características marcantes, que me permitem afirmar que a geografia escolar possui suas marcas, que fazem dela uma disciplina distinta das demais. Concordo com Vilela (2013), quando afirma que a regionalização é sem dúvida uma dessas marcas. Considero que a regionalização, antes de ser importante por dar uma distinção para a disciplina, é, indiscutivelmente, um caminho facilitador para uma melhor compreensão por parte dos alunos. Se a regionalização se manteve, mesmo após quarenta anos, é indiscutível que as formas de separar as regiões do globo se modificaram, refletindo não só as mudanças dentro da academia, mas, principalmente, as transformações políticas e econômicas que ocorreram no mundo nas últimas décadas do século XX. Não devemos esquecer que, outra marca da geografia escolar é sua necessidade de uma constante atualização das transformações das fronteiras políticas que, na verdade, refletem as mudanças das sociedades e que são fundamentais para o estudo da disciplina na escola, o que, aliás, é um fator atração para o estudo entre os alunos. Pude aqui ressaltar que os aspectos físicos dos países vêm sendo apresentados de forma mais integrada no livro mais recente, o que aponta para a valorização da ideia da conexão entre conteúdos. Se o discurso econômico é fortemente presente nos dois períodos, suas configurações se modificaram quanto à organização dos temas e ao agrupamento dos países, revelando também a tendência à integração. O aumento da valorização das informações sobre a pluralidade cultural pode também ser percebida como uma mudança G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 1 , P. 3 3 - 4 3 , J A N . / J U N . 2 0 1 4 .


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expressiva. Essas observações me permitem notar como é complexo e descontínuo o jogo de negociações de significados que constituem este conhecimento. As mudanças podem ser vistas por dentro daquilo que parece o mesmo. Assim, para finalizar, vejo a regionalização, tão criticada por mim no início da minha vida profissional, como um elemento aparentemente ‘fixo’ dentro da cultura escolar.

NOTAS Este texto é parte da Monografia defendida em dezembro de 2013 para a integralização do curso de especialização em Educação Básica do CESPEB-FE-UFRJ. 1

REFERÊNCIAS CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, n. 2, p. 177-229, 1990. CHOPPIN, A. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 30, n. 3, p. 549-566, set./dez. 2004. FERREIRA, M. S. Investigando os rumos da disciplina escolar Ciências no Colégio Pedro II (19060-1970). Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 45, p.127-144, jun. 2007. FORQUIN, C. Escola e Cultura: As bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. GOODSON, I. A construção social do currículo. Lisboa: Educa, 1997. ________. O Currículo em Mudança. Porto: Porto Editora, 2001. JULIA, D. A. Cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n. 1, p. 9-44, 2001. LACOSTE, Y. A Geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas: Papirus, 1988. MACEDO, E. Aspectos metodológicos em História do Currículo. In: OLIVEIRA, Inês Barbosa de & ALVES, Nilda Alves (Org.). Pesquisa no/dos com os cotidianos das escolas: sobre redes e saberes. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p. 131-148 MARTINS, R. E. M. W. Trajetória da Geografia e o seu ensino no século XXI. In: TONINI, I. M.; CASTROGIOVANNI, A. C.; GOULART, L. B.; KAERCHER, N.; MARTINS, R. E. M. W. (Org.). O ensino da geografia e suas composições curriculares. Porto Alegre: EdUFRGS, 2011. p. 61-75 VESENTINI, J. W. Realidades e perspectivas do ensino de geografia no Brasil. In: VESENTINI, J. W. (Org.). O ensino de Geografia no século XXI. Campinas: Papirus, 2004. p. 219-248 VILELA, Carolina Lima. Currículo de Geografia: analisando o conhecimento escolar como discurso. 201 f. Tese (Doutorado em Educação)–Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

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DISCUTINDO SOBRE A RELEVÂNCIA DA GEOGRAFIA DO RIO DE JANEIRO NO CURRÍCULO DO ENSINO MÉDIO DISCUSIÓN SOBRE LA RELEVANCIA DE LA GEOGRAFÍA DE RIO DE JANEIRO EN CURRÍCULO DE EDUCACIÓN SECUNDARIA

MA R G A R IDA AM BROGI DA SI LVA C UNH A Pós-graduada em Geografia (UFRJ) Professora do Colégio Pedro II – Campus São Cristóvão III marg ari da.geo2008@gma il. c o m

RESU M O: E S T E A RT IGO TE M C O M O P R O P O S TA A P R E S E NTAR PART E DA M ONOGRAFIA INT IT ULADA P E NS ANDO A GE OGRAF I A DO RIO D E J A N E IR O N O E N S I N O M ÉD I O Q U E TE V E C O M O OBJE T IVO GE RAL INVE S T IGAR JUNT O AOS P ROFE S S ORE S E ALUNOS DO COLÉGIO P E D R O II, A P E RT I N ÊN C I A O U N Ã O D A I N C L U S ÃO DO T E M A RIO DE JANE IRO - E S TADO E M E T RÓP OLE - C OM O UM I TEM ESPEC ÍFICO N O CON T E Ú D O P R O G R A M ÁTI C O D E G E OGRAFIA, NO E NS INO M É DIO. E S TA P E S QUIS A ADOT OU UM A AB ORDAGEM QUALI TAT IVA P OR E NF O C A R U M A Q U ES TÃ O S O C I A L , O C URRÍC ULO NO ÂM BIT O E S C OLAR. A AM OS T RA DE S S E E STUDO F OI CON S T IT U ÍD A P OR U M G R U P O D E 0 6 ( S E I S ) P R O F ES S ORE S E DE 5 7 ( C INQUE NTA E S E T E ) ALUNOS , QUE RE S P ONDERAM OS QUEST ION Á R IOS . N E S TA M O N O G R A F I A , O P T E I P EL A A NÁLIS E DE C ONT E ÚDO, S E GUNDO BARDIN ( 1 9 7 7 ) , DE VIDO À P OS SI BI L I DADE D E INFE R Ê N CIA S E C AT E G O R I Z A Ç Ã O D A S R E S P O S TAS . NE S T E ART IGO LANÇ O M E U OLH AR S OBRE AS RE S P OSTAS DOS PRO FES S OR E S , QU E M O S TR A R A M A R EL EVÂ N C I A D A INC LUS ÃO DE S T E C ONT E ÚDO NO C URRÍC ULO, BE M C OM O RE S S A LTARAM À CARÊN C IA D E MAT E R I A L D I D ÁTI C O -P ED A G Ó G I C O S O BRE O E S TADO DO RIO DE JANE IRO. PALAVRA S-C HAV E: RIO DE J ANE I RO; E NSI NO M É DI O; C U R R Í C U L O ; P R O FE S S O R E S .

RESU M E N : E S T E A RTÍ C U L O TI EN E C O M O O B JE T I V O PRE S E NTAR PART E DE LA M ONOGRAFÍA T IT ULADA P E NS AR LA GEOGRAF Í A D E RIO D E J A N E IR O EN ES C U EL A S E C U N D A R I A Q U E T E NÍA C OM O P RINC IPAL OBJE T IVO INVE S T IGAR C ON LOS P RO F ESORES Y ALU MN OS D E L COL E G I O P E D R O I I , L A P ERT I N EN C IA O NO DE LA INC LUS IÓN DE L T E M A DE RÍO DE JANE IRO - ESTADO Y METR OP OLIS - C OMO U N EL EM E N T O ES P E C Í F I C O E N E L P LAN DE E S T UDIOS DE GE OGRAFÍA E N LA E DUC AC IÓN S E CUNDARI A. ESTA IN V E S T IG A CIÓN A D O P T Ó U N EN F O Q U E C U A L I TATIVO, C E NT RÁNDOS E E N UN T E M A S OC IAL, E L P LAN DE E S T UDIOS EN L AS ESCUE LA S . LA MU E S TR A D E ES TE ES TU D I O C O N S I S TIÓ E N UN GR UP O DE S E IS ( 0 6 ) P ROFE S ORE S Y 5 7 ( C INC UE NTA Y SI ETE) D E LO S E S T U D IA N T E S Q U E R E S P O N D I ER O N A L O S C U E S T IONARIOS . E N E S TA M ONOGRAFÍA, H E OP TADO P OR E L ANÁL I SI S DE CON TE N ID O, S E G Ú N B A R D I N ( 1 9 7 7 ) , D E B I D O A L A S P OS IBLE S INFE RE NC IAS Y C AT E GORIZAC IÓN DE LAS RE S P UE S TAS. EN ESTE ARTÍC U LO ME AT E N G O A L A S R E S P U ES TA S D E L O S P R OFE S ORE S , LAS C UALE S DE M UE S T RAN LA IM P ORTANC IA DE LA INCL USI ÓN D E ES T OS C ON T E N ID O S E N E L P L A N D E E S TU D I O S , A S Í C OM O S E DE S TAC A LA FALTA DE M AT E RIAL DE E NS E ÑANZA-AP RENDI ZAJE EN EL E S TA D O D E R ÍO D E JA N EI R O . PALABRAS -CLAVE: RÍO DE J ANE I RO; E DUCACI ÓN SE CU N D A R I A ; P L A N D E E S T U D I O S ; P R O FE S O R E S .

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INTRODUÇÃO A educação está entre as atividades mais elementares e necessárias da sociedade humana, que jamais permanecerá tal como é, porém se renova continuamente (…) (ARENDT, 1972). Este artigo tem como objetivo apresentar minha monografia intitulada “Pensando a Geografia do Rio de Janeiro no Ensino Médio” defendida em julho de 2011, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação, no Curso de Especialização Saberes e Práticas na Educação Básica – CESPEB, quando investiguei junto aos professores e alunos do Colégio Pedro II, onde exerço as funções de professora e coordenadora pedagógica da equipe de Geografia, a pertinência ou não da inclusão do tema Rio de Janeiro Estado e Metrópole - como um item específico no conteúdo programático de Geografia, no Ensino Médio. A referida monografia, além de discutir o currículo e os documentos curriculares relativos à geografia, também apresentou o universo representacional de seis professores de Geografia do Ensino Médio e de alunos de duas turmas da 3ª série do Ensino Médio (Curso Regular e Técnico Integrado em Informática) que se dispuseram a participar da pesquisa e analisou, através da aplicação de questionário, as concepções desses professores e alunos, sobre a relevância da geografia do Rio de Janeiro no currículo do Ensino Médio, tendo em vista que a Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ ainda mantém em seu vestibular, prova discursiva de Geografia. Neste artigo me disponho a apresentar a discussão feita a partir das respostas dos questionários aplicados aos professores sobre o assunto supracitado. ANALISANDO AS RESPOSTAS DOS PROFESSORES... Esta seção tem como finalidade a apresentação, a análise e a discussão dos dados colhidos nos questionários respondidos pelos seis 46

professores que participaram desta pesquisa. Os professores foram identificados pelos números de 1 a 6, a fim de preservar as suas identidades. Neste momento, relato as questões propostas, as respostas dos professores e as análises feitas a cada uma das três perguntas do questionário, a saber: 1) Qual a pertinência do ensino de Geografia do Estado do Rio de Janeiro, no Ensino Médio?; 2) Em sua prática docente, o desenvolvimento do conteúdo programático sobre o Estado do Rio de Janeiro apresenta dificuldades? ( ) Sim ( ) Não; 3) Em caso afirmativo, quais as dificuldades encontradas, no que diz respeito ao conteúdo programático sobre o Estado do Rio de Janeiro em relação: a) ao meio ambiente; b) às questões socioeconômicas; c) ao material disponível e d) ao conhecimento prévio dos alunos. A primeira questão indagava sobre a pertinência do ensino da geografia do Estado do Rio de Janeiro no Ensino Médio e a resposta do professor 1 foi a seguinte: Fundamental. A importância reside no fato das avaliações pelas universidades públicas estarem abordando a cada ano, com mais frequência a realidade de nosso estado. E, também porque existe um desconhecimento por parte dos alunos (...), de outras regiões de nosso estado, além da região metropolitana do Rio de Janeiro. Ao analisar as duas primeiras frases da resposta do professor 1, fui levada a pensar que até bem pouco tempo era comum que as universidades fluminenses abordassem a temática Rio de Janeiro em suas provas de vestibular. Hoje, no entanto, com a utilização do Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM, que tem caráter nacional, esse conteúdo passou a ter G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 4 5 - 5 3 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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menor destaque, conforme o exame 2010, que não teve nenhuma questão específica sobre o Rio de Janeiro. Porém, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ não utiliza apenas o ENEM em seu processo de seleção. A UERJ realiza provas de qualificação com questões objetivas, num primeiro momento, e provas discursivas num segundo momento. A Geografia é disciplina específica para alguns cursos (Ciências Sociais, Filosofia,

História, Pedagogia, Jornalismo, Relações Públicas e Serviço Social), e com isto, o conteúdo sobre o Estado e a Metrópole carioca são temas propostos em questões, nas duas fases, conforme exemplos a seguir, que fizeram parte da prova discursiva de 2010 (Figura 1) e na 1ª qualificação de 2011 (Figura 2). Na continuidade de sua resposta, quando o professor se referiu ao desconhecimento dos alunos, considero relevante este destaque, uma vez que tanto em conversas informais quanto em

F i g u ra 2 | Qu e s t ã o o b j e t i v a d o v e s t i b u l a r d a UE RJ de 2011 REGIÃO METROPOLITANA DO RIO DE JANEI RO: PERCENTUAL DE PESSOAS QUE TRABALHAM OU ESTUDAM EM OUTROS MUNICÍPIOS (2005)

Fi gura 1 | Qu estão d iscu r s i v a do v e s t i bu l a r d a U ER J 2 0 1 0

Ada pta do de SANTANA, F a bi o Ta de u e DUARTE , Ronaldo Goul a rt. Rio de J aneiro: Es tado e Metrópole. Sã o Pa ul o: Edi tora do Bra s i l , 2009.

DESLIZAM E N T O SO BR E O T Ú N E L R E B O U Ç A S A l i beraç ã o d o t ú n e l R eb o u ça s , n o R i o d e J a n ei r o, in terdi tad o d e s d e a n oi te d e s ta terç a -fe i ra (2 3 ), p ode demorar u m a s e m a n a . Gra n d e s v o l u mes d e te rra - n u m t otal de c e rc a d e 6 0 0 0 to n e l ad as - d es l i z a ra m n o l o c a l , segundo a Se c r e t a r ia M u n i c i p a l d e O b ra s

A di nâ mi c a i nte rna de uma re gi ã o me tr opolit ana é e x tre ma me nte c ompl e x a , da da a v a ri e dade das i nte ra ç õe s que s e e s ta be l e c e m e ntre os a gl om er ados que a c ompõe m. Na ta be l a a c i ma , e v i de nc i a -se o t ipo de i nte ra ç ã o de nomi na do de :

C om bas e n a n o t íc ia a c i ma, ap res e n te d u a s c a u sa s para a o c o r r ê n c ia d e d e s l i z a me n to s d e e n co sta s e duas me d id a s p r e v e n t iva s p a ra i mp ed i r o u a te n u a r a s consequên c ia s d e s s e f e n ô me n o .

(A) (B) (C) (D)

Font e: Cad er n o d e P r o va de G e og ra f i a . E x a m e d i s c urs i v o/2 ª fase - Q uestão 0 6 . Vestib ul a r U E R J , 20 1 0 .

F o n t e : 1 º E x a m e d e q u a l i f i c a ç ã o UE RJ /2 0 1 1 – Ci ê ncias Hu m a n a s e s u a s Te c n o l o g i a s , p a rt e 2 , q u e s t ã o 5 1 .

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re pul s ã o urba na mi gra ç ã o de re torno mov i me nto pe ndul a r fl ux o de tra ns umâ nc i a

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suas respostas ao questionário aplicado para esta pesquisa, os alunos expressaram o desejo de um estudo específico sobre o Rio de Janeiro. Vale ressaltar que o Estado do Rio de Janeiro, seja por apresentar características que o diferenciam no cenário nacional, seja pelos contrastes ambientais e socioeconômicos, a meu ver merece um estudo específico. Nesse mesmo sentido, o professor 2 considerou necessária a inclusão desta temática para Possibilitar ao aluno perceber e analisar a evolução do espaço geográfico de sua própria cidade, desenvolvendo um ponto de vista crítico sobre as transformações no passado e no presente e, seus respectivos agentes transformadores. Esta resposta poderia ser relacionada com uma das finalidades da Geografia Escolar que é estimular o pensamento crítico de seus alunos, a fim de que possam perceber que são partes integrantes do espaço em que vivem e que são sujeitos partícipes na produção/transformação/ destruição deste espaço. Este meu pensar é ratificado por Carlos (1996) quando menciona que O lugar é a base da reprodução da vida e pode ser analisado pela tríade habitanteidentidade-lugar. (...) As relações que os indivíduos mantêm com os espaços habitados se exprimem todos os dias nos modos de usos, nas condições mais banais, no secundário, no acidental. É o espaço passível de ser sentido, pensado, apropriado e vivido através do corpo. (CARLOS, 1996, p. 19-20) Suponho que, na medida em que se desenvolve nos alunos essa forma de pensar criticamente a apropriação do espaço, sua participação como agente transformador deste espaço se tornaria mais consciente. O professor 3, em consonância com os anteriores, considerou que: “Estudar a geografia do Estado do Rio de Janeiro é fundamental, pois o aluno completa o ciclo da Educação Básica sem ter tido a 48

oportunidade de pensar o seu espaço imediato criticamente.” Ao iniciar a análise das respostas do professor 3 verifiquei aproximação de suas ideias com as do professor 2, em relação à primeira questão, pois ambos se preocupam com o pensar crítico do aluno em relação ao espaço em que vivem. O professor 4 considerou o tema pertinente ao Ensino Médio em dois aspectos: 1º) Porque a inserção de uma escala de análise intermediária entre a (meso) local (a Região Metropolitana do Rio de Janeiro) e a regional tipicamente enfocada (Sudeste) ajuda a complexificar a leitura da espacialidade de forma geral. 2º) Por estar ligado à própria inserção da metrópole carioca nas mais variadas redes geográficas. A complexidade destacada no depoimento do professor 4 reportou-me ao fato de que a Geografia ao realizar a leitura crítica do espaço, em busca de explicar diferentes realidades, ou seja, o dinamismo do espaço geográfico, emprega como referência diferentes escalas: a local, a regional, a nacional e a global. Tal dinamismo é ratificado por Pontuschka (2004), quando considera que Nesse vaivém ativo e permanente entre presente, passado, presente com projeções para o futuro, próximo e distante, o aluno vai abrindo a mente para compreender e explicar as diferenças entre os papéis dos homens na organização e na produção do espaço. (PONTUSCHKA, 2004, p. 262) Na continuidade de sua resposta este professor fez referência às redes geográficas. Estas redes podem ser identificadas tanto no trânsito de pessoas entre a metrópole carioca e outras cidades do Estado do Rio de Janeiro, como também, no grande fluxo de pessoas e produtos entre a capital fluminense e a capital paulista, diferenciando assim, o papel econômico G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 4 5 - 5 3 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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do Estado do Rio de Janeiro em relação a outros estados de nosso país. O professor 5, na questão 1, ressaltou a importância de “ampliar a compreensão das dinâmicas socioespaciais do Estado do Rio de Janeiro, possibilitando uma intervenção mais consciente e cidadã no espaço.” Estas palavras me conduziram a pensar nas mudanças pelas quais passou a Geografia - que atingiram os alunos da Escola Básica nos anos 1980 – que recomendavam o fim do ensino, meramente, conteudista. Trata-se da geografia escolar crítica que segundo Vesentini (2004) (...) preocupa-se basicamente com o desenvolvimento da autonomia, da criatividade e da criticidade do educando, com a cidadania, afinal, que é ao mesmo tempo o resultado e a condição da existência de cidadãos ativos e participantes, isto é, que questionam a realidade e (re)constroem os direitos democráticos ou direitos do homem (inclusive os direitos das minorias e o direito de ser diferente (…). (VESENTINI, 2004, p. 227) O Professor 6 respondeu que é pertinente para “ajudá-los a perceber como muito dos processos que se manifestam nas escalas Brasil e Mundo se materializam no entorno próximo ao(s) seu(s) lugar(es).” Esta resposta se destaca em importância tendo em vista que permite a contextualização dos fenômenos geográficos nacionais e globais na realidade mais próxima do aluno – o Estado do Rio de Janeiro. Na questão 2, do tipo fechada, quando os professores foram questionados se tinham dificuldades em sua prática docente em relação ao desenvolvimento do conteúdo programático sobre o Estado do Rio de Janeiro, todos responderam que sim. A questão 3, do tipo aberta, buscava saber quais seriam as dificuldades em relação ao meio ambiente, às questões socioeconômicas, ao material disponível e ao conhecimento prévio dos G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 4 5 - 5 3 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

alunos, sempre em relação ao Estado do Rio de Janeiro. O professor 1 enfatizou a falta de material didático adequado para o ensino da geografia do Rio de Janeiro no Ensino Médio, com as seguintes palavras: “(...) a bibliografia publicada para ser usada pelo Ensino Médio é escassa e na maioria das vezes carece de atualizações.” Ao ler esta resposta, penso que este foi um dos motivos que me levaram a propor um projeto que consistia na construção de um material para aprofundamento do processo ensinoaprendizagem dos alunos da 3ª série do Ensino Médio no que se refere ao conteúdo programático sobre o Estado do Rio de Janeiro. Em relação às questões ambientais, este professor afirmou que “(...) quando se trata das questões ambientais, ainda estão muito voltadas para os municípios da região metropolitana, ignorando muitas vezes desafios ambientais que ocorrem em outros municípios.” No tocante às questões socioeconômicas considerou que “(...) a abordagem destas questões quando feitas por jornais e periódicos acabam por carecer de um enfoque espacial (geográfico).” A respeito do material disponível ponderou que “(...) toda produção acadêmica que existe no acervo das universidades públicas e privadas ainda não foi utilizada para a elaboração de um bom livro didático sobre a geografia do Rio de Janeiro.” Quanto ao conhecimento prévio dos alunos mencionou que “(...) geralmente é muito restrito.” Ao refletir sobre os trechos das respostas, acima destacados me perguntava até que ponto somente nos momentos de catástrofes ambientais os olhares dos especialistas e do público em geral se voltam para os municípios com menos visibilidade? Como pretender que a mídia apresente informações que tenham como referência um embasamento científico, e não apenas notícias impactantes? Será que o professor não poderia se valer de suas pesquisas individuais para enriquecer suas aulas e não se deter apenas ao livro didático? O que poderia ser feito a fim de 49


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minimizar a carência de conhecimentos sobre a realidade fluminense na Educação Básica? Estas indagações não tiveram por objetivo encontrar uma única resposta, mas propiciar momentos de reflexões, com a finalidade de repensar o processo ensino-aprendizagem. O professor de nº2, em relação ao meio ambiente e às questões socioeconômicas destacou sentir dificuldades quanto à “delimitação cartográfica das áreas relativas a unidades de conservação no Estado (…); delimitação cartográfica das principais atividades relativas aos setores da economia e sua relação com a região metropolitana (...).” Diante destas respostas, lembreime que ao organizar um plano de aula para aprofundamento e revisão destinados aos alunos da 3ª série do Ensino Médio, tive a oportunidade de localizar nos livros “Revisitando o Território Fluminense” (MARAFON & RIBEIRO, 2003) e “A Metrópole e o Interior Fluminense: simetrias e assimetrias geográficas” (RIBEIRO & MARAFON, 2009) capítulos específicos que trataram destes assuntos. Quanto às atividades relativas aos setores econômicos, pude identificar em Seabra (2009) e em Biazzo (2009) uma delimitação espacial nos seguintes trechos: O processo de modernização verificado em várias esferas produtivas atingiu a distribuição de gêneros agrícolas no Estado do Rio de Janeiro, reestruturando a configuração espacial e o papel dos agentes na produção, transporte e varejo de produtos agrícolas produzidos e vendidos no território fluminense, alterando a intensidade e o controle dos fluxos na rede de comercialização no Estado. (SEABRA, 2009, p. 183). A participação do petróleo na economia dos municípios do Norte Fluminense foi fato novo para uma região em que uma formação socioespacial pretérita esteve atrelada quase unicamente à economia canavieira. (BIAZZO, 50

2009, p. 270). Já em relação a unidades de conservação no Estado do Rio de Janeiro, Souza & Costa (2009) afirmam que O Parque Ecológico do Mendanha, situado na Zona Oeste do município do Rio de Janeiro exemplifica os problemas de grande parte de unidade de conservação do Estado do Rio de Janeiro. Trata-se de uma unidade de conservação cujos limites são vizinhos a conjuntos habitacionais para população de baixa renda. (SOUZA & COSTA, 2009, p. 240). É importante ressaltar que estes exemplos não esgotam o que existe em relação às delimitações das unidades de conservação e atividades relativas aos setores da economia. Quando o professor mencionou as dificuldades relativas ao material disponível referiu-se principalmente ao livro didático que não faz referência ao processo de evolução da configuração territorial do Estado do Rio de Janeiro e no tocante ao conhecimento prévio dos alunos, destacou que deveria haver “material didático que pudesse auxiliar no diagnóstico do nível de conhecimento do aluno sobre as especificidades geográficas da cidade do Rio de Janeiro”. Será que este professor estaria sugerindo a aplicação de um teste sobre o conhecimento do Rio de Janeiro a seus alunos? Penso que um debate acerca deste tema seria mais instigante, pois propiciaria a participação do alunado e daria ao professor possibilidade de identificar (ou não) os seus conhecimentos. O professor 3, no tocante às dificuldades afirmou que em relação ao meio ambiente, “os alunos muitas vezes dominam aspectos do meio ambiente global e ignoram questões locais e regionais”. Quanto ao material disponível, “a defasagem já foi maior (...)”. E, sobre o conhecimento prévio dos alunos afirmou que “estes conhecem muito pouco a G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 4 5 - 5 3 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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geografia do interior do Estado e têm dificuldades em diferenciar as escalas municipal, metropolitana e estadual”. Ao ler as declarações acima, e a partir da vivência como professora de Geografia, compartilho do pensar do professor 3, quando além de perceber que os alunos, em geral, têm dificuldades em diferenciar as escalas espaciais, penso que nos dias de hoje estas podem ser minimizadas em face de já existirem materiais didáticos específicos sobre o Estado do Rio de Janeiro e sua capital. O professor 4, no tocante às dificuldades encontradas, no que diz respeito ao conteúdo programático sobre o meio ambiente considerou que existe a necessidade de superar as limitações do próprio discurso ambiental preservacionista “estéril” e superficial quanto à politização dos conflitos socioambientais, aprofundandoos sem cerrar os olhos para os aspectos econômicos a eles vinculados. E que, em relação às questões socioeconômicas seria preciso “conseguir fixar com clareza a perspectiva de processos em constante transformação através da dinâmica dos próprios conflitos socioeconômicos baseados nas disparidades socioespaciais”. Neste sentido, penso que, na atualidade, as transformações socioespaciais ocorrem muito rapidamente e as discussões sobre as questões ambientais estão potencializadas. No entanto, há um desafio a ser enfrentado: não cair em estereótipos. O estudo do meio poderia ser um método de ensino-aprendizagem com a finalidade de contribuir para o entendimento dos conflitos e disparidades socioespaciais mencionados pelo professor. Quanto ao material disponível alertou que os livros didáticos adotados têm abrangência nacional e, por isso, são debilitados no que envolve os processos particulares de G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 4 5 - 5 3 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

cada estado brasileiro. Dessa maneira, a responsabilidade de produção do material recai inteiramente sobre o professor. Isso não é necessariamente negativo, uma vez que traz a possibilidade da produção de materiais mais direcionados ao enfoque selecionado pelo docente. E, quanto ao conhecimento prévio dos alunos enfatiza que “as dificuldades vinculadas a esse aspecto surgem não do conhecimento prévio ou não dos alunos, mas sim nas barreiras encontradas no momento de relacionar o conteúdo abordado ao cotidiano discente”. Em ambas as respostas, este professor considera que a responsabilidade seria do docente, tanto no que diz respeito à elaboração de um material didático adequado e eficiente quanto em sua contextualização junto aos alunos. A meu ver, a precarização do trabalho do professor pode dificultar que parte dessas metas sejam atingidas, principalmente, na produção de material, tendo em vista a extensa carga horária de trabalho de alguns docentes. O professor 5, deixou de responder aos itens sobre o meio ambiente e sobre as questões socioeconômicas, mas, no que tange às dificuldades ao material disponível, fez referência a “escassez do material voltado para o público do Ensino Médio”; e quanto às dificuldades no tocante ao conhecimento prévio dos alunos afirmou que estas surgem “principalmente quando sobre a história das atividades econômicas estaduais”. Em relação à escassez do material didático apontado pela resposta do professor em análise, admito que não exista um amplo acervo sobre a geografia do Estado do Rio de Janeiro para o Ensino Médio, porém, conforme mencionei na análise do professor 3 essa falta de material já esta sendo suprida por alguns autores dedicados a essa temática, dentre eles os livros “Rio de Janeiro: Estado e Metrópole/Geografia: Ensino Médio” (SANTANA & DUARTE, 2009); “Regiões do Governo do Estado do Rio de Janeiro: uma contribuição geográfica” (MARAFON et al., 2009) e “Revisitando o Território Fluminense” 51


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(MARAFON & RIBEIRO, 2003). Alguns sites (www.armazemdedados.rio.rj.gov.br, www. sosmatatlantica.org.br e www.rio.rj.gov.br/ ipp) com informações e mapas também podem contribuir para o enriquecimento da prática docente de Geografia. Ao dizer que os alunos têm dificuldades quanto à história das atividades econômicas estaduais, penso que este professor deixou em segundo plano tanto a questão da espacialidade quanto as das escalas municipal, metropolitana e estadual na abordagem das atividades econômicas. E, por último, a análise das respostas do professor 6. Quanto às dificuldades encontradas este professor respondeu apenas aos itens c e d, que tratam do material disponível e do conhecimento prévio dos alunos. Em relação ao material disponível ressaltou que há “dificuldades quanto ao acesso a documentários que tratam dos processos e fenômenos de interesse da Geografia no estado, metrópole ou município do Rio de Janeiro”. E, também que “os livros didáticos disponíveis, evidentemente em função de estarem voltados para o mercado em nível nacional, não oferecem muitos instrumentos de análise da Geografia Fluminense.” Quanto às dificuldades de acesso a documentários citadas pelo professor, em relação ao Estado do Rio de Janeiro, reconheço que não há extenso material nem impresso, nem em forma de vídeo, porém como já sinalizei em análises anteriores o material disponível tem aumentado e já existe na web (www.rio.rj.gov.br/ipp) um link chamado “Memória da Cidade e Sua Ocupação Urbana”, no qual podem ser encontradas imagens e animações sobre a geo-história carioca. Ao analisar as coleções do livro didático (Programa Nacional do Livro Didático - PNLD/2012) para indicação pelo Departamento de Geografia do qual faço parte, para a vigência 2012/2014, pude constatar que, em consonância com o professor 6, nenhuma das coleções abordam, de maneira específica, a Geografia Fluminense. 52

Em relação ao conhecimento prévio dos alunos, afirma que estes chegam ao Ensino Médio “com precária familiaridade com o espaço fluminense, em suas diferentes dimensões”. Este fato poderia ser parcialmente explicado pelo fato de os alunos terem acesso a esse conteúdo de forma sistemática, apenas nas séries iniciais do Ensino Fundamental, momento em que o currículo de Geografia privilegia estudos sobre o bairro, a cidade e o Estado do Rio de Janeiro. Porém, não haveria outras formas de obter conhecimento sobre a Geografia Fluminense ao longo de seu percurso até a chegada no Ensino Médio? Penso que o capital cultural que o aluno adquire através dos espaços midiáticos deva ser considerado.

CONSIDERAÇÕES MOMENTÂNEAS... Este artigo pretendeu mostrar o pensamento de alguns professores de Geografia sobre a pertinência ou não da inclusão do ensino da geografia do Estado do Rio de Janeiro no Ensino Médio. Assim sendo, retorno às indagações feitas nos questionários, a fim de registrar minhas impressões sobre os conteúdos das respostas obtidas. Em relação à 1ª questão, que indagava sobre a relevância do estudo do Estado do Rio de Janeiro no Ensino Médio, tive como resultado a predominância pela inclusão desta temática. Esse resultado ratificou o meu pensar, no sentido de manter esta discussão com meus pares e continuar a produzir materiais para suprir tal demanda. No tocante à 2ª questão, houve unanimidade quando responderam que sentiam dificuldades para desenvolver o conteúdo programático do Estado do Rio de Janeiro. Estas respostas confirmam a necessidade de discussão ampla sobre a Geografia Escolar e as possíveis mudanças do currículo atual. Passo para a 3ª pergunta que versava G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 4 5 - 5 3 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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sobre os obstáculos presentes na prática docente em relação ao Estado do Rio de Janeiro. Embora as respostas tenham sido diversificadas, ressalto o grifo dado pelos professores quanto ao esquecimento das regiões do interior de nosso Estado e à valorização mais acentuada da Metrópole, e também à precarização do trabalho docente, fator que por vezes, inviabiliza a produção de materiais didático-pedagógicos.

Diante desses resultados, este artigo espera contribuir como base para novas discussões. Acredito que, a partir do que foi aqui apresentado e discutido, poder-se-á, na área da Geografia, levantar novas questões para futuros estudos, como por exemplo: De que maneira, nós, educadores, podemos compartilhar conhecimentos e trocar experiências, a fim de minimizar as dificuldades dos alunos, quando o alvo for a Geografia Fluminense

REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. A crise na educação. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. BIAZZO, Pedro Paulo. Relações campo-cidade na região Norte-Fluminense: ruralidades e urbanidades em transformação. In: RIBEIRO, Miguel Ângelo & MARAFON, Gláucio José (Org.). A metrópole e o interior fluminense: simetrias e assimetrias geográficas. Rio de Janeiro: Gramma, 2009. p. 265-284 CARLOS, Ana Fani Alessandri. O lugar no/do mundo. São Paulo: Hucitec, 1996. MARAFON, G. J.; RIBEIRO, Miguel Angelo; SILVA, Claudia Arantes; SILVA, Eduardo Sol Oliveira da; LIMA, Marcos Rodrigues Ornelas de. Regiões de governo do estado do Rio de Janeiro: uma contribuição geográfica. Rio de Janeiro: Gramma, 2005. PONTUSCHKA, Nídia Nacib. O conceito de estudo do meio transforma-se... em tempos diferentes, em escolas diferentes, com professores diferentes. In: VESENTINI, José William (Org.). O Ensino de Geografia no século XXI. Campinas: Papirus, 2004. p. 249-288 SANTANA, Fabio Tadeu & DUARTE, Ronaldo Goulart. Rio de Janeiro: Estado e Metrópole. São Paulo: Editora do Brasil, 2009. SEABRA, Rogério dos Santos. A dimensão da rede geográfica no estudo da comercialização agrícola no Estado do Rio de Janeiro. In: RIBEIRO, Miguel Ângelo & MARAFON, Gláucio José (Org.). A metrópole e o interior fluminense: simetrias e assimetrias geográficas. Rio de Janeiro: Gramma, 2009. p. 183-207 SOUZA, Anderson Barbosa de & COSTA, Luiz Flávio de Carvalho. A agricultura familiar em unidade de conservação: Um estudo de caso do Parque Ecológico do Mendanha. In: MARAFON, Glaucio José & RIBEIRO, Miguel Ângelo (Org.). Revisitando o Território Fluminense. Rio de Janeiro: NEGEF, 2003. 252p. p. 237-251 VESENTINI, José William. Realidades e perspectivas do ensino de geografia no Brasil. In: VESENTINI, José William (Org.). O ensino de Geografia no século XXI. Campinas: Papirus, 2004. p. 219-248 Sites http://www.armazemdedados.rio.rj.gov.br Acesso em: 30 mar. 2011. http://www.sosmatatlantica.org.br Acesso em: 30 mar. 2011. http://www.rio.rj.gov.br/ipp Acesso em: 30 mar. 2011.

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A CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO NOS LIVROS DIDÁTICOS DE GEOGRAFIA DA PRIMEIRA REPÚBLICA LA CONSTRUCTION DE LA NATION DANS LES MANUELS DIDACTIQUES DE GÉOGRAPHIE DE LA PREMIÈRE RÉPUBLIQUE

N A IE ME R R IB EI RO DE CARVALHO Graduada e Mestre em Geografia (UFMG) Técnica em Assuntos Educacionais da UFMG n aiem er@y ahoo.com.br

RESU M O: E S S E A RT IG O A N A L I S A A P R E S EN Ç A D E U M A IDE OLOGIA NAC IONAL E A C OM P RE E NS ÃO DE C OM O S E F ORMOU E SE CR IOU U M A ID E IA E I M A G EM D E B R A S I L N O S L I VROS DIDÁT IC OS DE GE OGRAFIA DO E NS INO S E C UNDÁRIO NA PRI MEI RA REPÚB LIC A (1 8 8 9 - 1 9 3 0 ) . E S S E P ER Í O D O D E C I S I V O À AFIRM AÇ ÃO E DE FINIÇ ÃO DA NAC IONALIDADE BRAS ILE IRA RE P R ESENTOU A TRA N S IÇÃ O D A ID E O L O G I A I M P ER I A L , A I N D A L I G A D A À P ORT UGAL, PARA UM A IDE OLOGIA NAC IONAL C OM UM E S TADO- NAÇÃO FO RTE , CIV IL E R E P UB L I C A N O . A U N I C I D A D E E A C ENT RALIZAÇ ÃO DO T E RRIT ÓRIO E RAM VALORE S IM P RE S C INDÍVE IS. PARA O PEN SA M E N T O G E OG R Á F I C O , S U A C O N S O L I D A Ç Ã O E SIS T E M AT IZAÇ ÃO NO BRAS IL INC LUIU-S E A PART IC IPAÇ ÃO DA DI SCI PL I NA ESCOLA R . O C A B E D AL T E Ó R I C O -M ET O D O L Ó G I C O M O BILIZADO PARA A C OM P RE E NS ÃO DO E S PAÇ O E DA RE ALIDADE VI VI DA À ÉPOCA E R E G IS T R A D A N O S L I V R O S D I D ÁTI C O S D E G EOGRAFIA S E AP OIOU NA ANÁLIS E H IS T ÓRIC A DO P E RÍODO, DA GEOGRAF I A ESCOLA R E D O P E N S A M EN T O G EO G R Á F I C O . D ES TA C ONJUNÇ ÃO FORAM E XT RAÍDAS AS C AT E GORIAS DE ANÁLIS E : NATUREZA E TER R IT ÓR IO; E CIV I L I Z A Ç Ã O E M O D ER N I D A D E. E LAS NOS A UXILIARAM A P E RC E BE R AS T RANS FORM AÇ ÕE S M ATERI AI S E CON C E IT U A IS AT U A N T E S N O I M A G I N Á R I O PA S S A D O SOBRE O T E RRIT ÓRIO NAC IONAL, P RE S E NT E S NOS LIVROS DIDÁTI COS DE G EOG R A FIA E C ON S T I TU I N T E S D A Q U E L E P EN S A M E N T O GE OGRÁFIC O. PALAVRA S-C HAV E: GE OGRAF I A; I DE OL OGI A; DI SCURSO ; N A C I O N A L ; E S C O L A R .

RÉSU M É : CE T T E R E C H ER C H E A N A LY S E L A P R É S EN C E D’UNE IDÉ OLOGIE NAT IONALE DANS LE S M ANUE LS DIDAC TI QUES DE G ÉOG R A P HIE A U C OLL È G E , C H ER C H A N T À C O M P R EN D RE C OM M E NT L’IDÉ E E T L’IM AGE DU BRÉ S IL S E S ONT FORM É E S A U COURS DE LA PR E MIÈ R E R É P U B L I Q U E ( 1 8 8 9 -1 9 3 0 ) . C E T T E P ÉR I ODE DÉ C IS IVE DE L’AFFIRM AT ION E T DE LA DÉ FINIT ION DE LA NATI ONAL I TÉ BRÉSILIE N N E E S T R E P R É S EN T É E PA R L A T R A N S I T I O N DE L’IDÉ OLOGIE IM P É RIALE , E NC ORE LIÉ A U P ORT UGAL, À UNE I DÉOL OGI E N ATION A LE , R E CON N U E P O U R S O N ÉTAT-N ATI O N F O RTE , C IVIL E T RÉ P UBLIC AIN. LE C ARAC T È RE UNIQUE E T LA C E NT RA L I SATI ON D U TE R R IT OIR E É TA IEN T D ES VA L E U R S E S S E N T I EL L E S . A U BRÉ S IL, LA C ONS OLIDAT ION E T LA S Y S T É M AT IS AT ION DE LA PENSÉE G ÉOG R A P HIQU E IN CLU A I E N T L A PA RTI C I PAT I O N D E LA DIS C IP LINE S C OLAIRE . LE S M ANUE LS DIDAC T IQUE S DE GÉOGRAPHI E PRÉSE N T E N T U N C A D R E TH ÉO R I Q U E E T M É T H O D O L OGIQUE S E RVANT À LA C OM P RÉ H E NS ION DE L’E S PAC E E T À DÉCRI RE L A RÉALI T É V É C U E D E L’ É P O Q U E , Q U I ES T F O N D É S U R U NE ANALY S E H IS T ORIQUE DE LA P É RIODE , LA GÉ OGRAP H IE S C OLAI RE ET L A PEN SÉ E G É OG R A P H IQ U E. À PA RT I R D E L A C O N JO N C T ION, IL A É T É P OS S IBLE D’E XT RAIRE LE S C AT É GORIE S D’ANALY S E: NATURE ET TER R IT OIR E E T CIV I L I S ATI O N E T M O D ER N I T É . C EL L E S -C I S ONT P RÉ S E NT E S A UX M ANUE LS DIDAC T IQUE S DE GÉ OGR APHI E ET CON S T IT U E N T LA P E NS ÉE G É O G R A P H I Q U E , EN P L U S DE NOUS AIDE R À C OM P RE NDRE LE S T RANS FORM AT IONS M ATÉRI EL L ES. MO TS CLÉS : GÉOGRA PHI E ; I DÉ OL OGI E ; DI SCOURS; NAT I O N A L ; S C O L A I R E .

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INTRODUÇÃO A construção da ideologia1 nacional – assim como os sentidos e significados que a nação2 adquire na história do Brasil – e a forma como ela produz sentidos a partir do discurso3 nacionalista nos livros didáticos de geografia da Primeira República (1889-1930) é o que se buscou compreender na pesquisa que orienta este artigo. Pretendeu-se ainda compreender qual foi sua relação com a consolidação da geografia enquanto campo científico e escolar a partir de então. No Brasil, a construção do Estado-Nação necessitou de um período de quase um século: o século XIX. Após a Independência é que se iniciam os processos de formação da identidade nacional e de consolidação do Estado. Durante o Império, o que se viu foram estratégias que buscavam, desde a manutenção da unidade do território, da língua até a implementação da escola pública. As tentativas de construção da nacionalidade, até então, concentravam-se nas mãos de poucos letrados, muitas vezes, ainda no nível da literatura nacional. A consolidação destas e de outras estratégias de afirmação da nacionalidade ocorreu somente com o advento da República em 1889. Esta consolidação não significou, no entanto, a finalização desse processo. Ao contrário, permanece até os dias atuais. A hipótese com que trabalhamos é que o início do processo de construção da nacionalidade deu-se no período colonial, mas sua formulação foi sendo explicitada durante o período imperial, quando se rompe com a dependência da metrópole; e sua consolidação, na Primeira República4. Na Primeira República, o próprio Estado se empenha na construção de um projeto de nação e coloca a educação como um dos principais pilares para a circulação destas novas ideias. Assim, a escola passa a ter um papel fundamental na formação destes ‘brasileiros’. E as disciplinas escolares, como é o caso da geografia, da história e da língua portuguesa, estiveram intimamente 56

envolvidas com esse processo. É um momento em que se pode perceber em riqueza de detalhes, nos debates da época e nos registros de tempos sobrepostos, o processo de produção de sentidos. Os livros didáticos, não somente enquanto textos, mas enquanto acesso a esse discurso, registraram esta sobreposição de tempos em que convivem elementos residuais e progressistas, ainda sem hegemonia social. E por estes motivos, era um discurso aberto e ao mesmo tempo fechado: polissêmico e incompleto; e também portador de elementos de permanência e da memória. Desde então a ideia de civilização passa a fazer parte deste processo, como um ideal, fortemente demandado de fora, a ser alcançado. Para chegar à civilização, no entanto, havia alguns impedimentos, a nação ainda não estava plenamente constituída e a existência da escravidão era uma sombra neste processo. Como disseminar essas discussões para além dos debates intelectuais? Uma das respostas dadas pelo Estado foi através da escolarização. A unidade do território ainda era cultuada, mas também passou a ser questionada e valorizada, a diversidade desse território e sua integração. A unidade do território deveria contemplar também a unidade moral e social do país e a integração econômica. Nesse sentido, a escolarização ganha um papel de destaque no período, pois ainda se colocava em questão a padronização da língua, a literatura nacional, a caracterização do povo, ou seja, uma integração nacional também simbólica (DUTRA, 2005). Dentro deste debate, a civilização e a modernização da economia apareciam como um ideal a ser atingido pelo país, algo que só poderia ser feito tendo se estabelecido a unidade moral e a integração do território. Este talvez fosse o único consenso. Estes elementos, debatidos pela elite letrada, apareceram também nos livros didáticos de geografia do período. Pretendia-se uma educação cívico-patriótica, que ensinasse aos cidadãos o que era ser brasileiro, os valores e símbolos do novo regime (GOMES, 2009). A história da geografia enquanto disciplina escolar G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 5 5 - 6 5 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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também nos auxiliou neste processo. Pudemos constatar uma relação entre a sua constituição enquanto disciplina escolar oficial e o período em que se começa a ser discutida a nação no Brasil. Inicialmente com a criação do Colégio Pedro II esta relação ainda não se demonstrava diretamente nos conteúdos, apenas em sua própria oficialização. A partir de da década de 1850, esta relação se estabelece também com o currículo e o conteúdo, instituindo oficialmente a geografia e a história do Brasil. O objetivo da escola não era somente a disseminação da nação, mas também o aperfeiçoamento do individuo5. No entanto, é no período republicano que podemos observar uma intenção direta do Estado e dos autores em transformar a educação num veículo da ideologia nacional e dos valores da civilização. A formação do que deveria ser o povo brasileiro e a criação de um sentimento nacional estava presente nos livros didáticos de geografia, e também se percebia um apelo à padronização definitiva da língua e à integração do território. A geografia enquanto disciplina acadêmica ainda não era institucionalizada no país, mas já possuía por mais de um século uma participação direta no cotidiano da nação, seja através dos institutos e sociedades, como o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), seja como disciplina escolar oficial com o currículo regulamentado e centralizado desde a criação do Colégio Pedro II. Por isso podemos afirmar que tanto os conhecimentos produzidos nos institutos quanto os produzidos na disciplinar escolar, participaram da consolidação e sistematização do conhecimento geográfico no Brasil, culminando em sua institucionalização na década de 19306. Os livros didáticos, que seguiam o currículo oficial, foram um importante instrumento da padronização do ensino7. Com eles, os professores e alunos de qualquer parte do país tinham acesso ao currículo oficial. Os autores buscaram enquadrá-los às influências externas de cada um dos campos científicos e à realidade brasileira, buscando com isso a formação dos cidadãos brasileiros. Além disso, os livros didáticos eram portadores de outros discursos, como o da G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 5 5 - 6 5 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

civilização, do progresso, e da modernização, todos inerentes a construção de um futuro ideal para o país. Com a expansão do ensino neste período, as editoras possuíam um grande número de livros didáticos em seus catálogos permitindo ampla circulação no território. E a imagem de Brasil elaborada por eles, poderia assim, formar as novas gerações em várias regiões do país. Os livros que fazem parte desta pesquisa foram fruto de uma longa busca por acesso a um material tão raro. Raro, não por sua escassez, poucas edições ou distribuição limitada. Alguns permaneceram nos bancos das escolas por décadas. Sua raridade advém justamente desta especificidade, serem livros didáticos, materiais descartáveis, pouco valorizados. Mesmo nas grandes bibliotecas de referência em nosso país, uma pesquisa pelos acervos indica a pouca quantidade destes materiais e que se encontram espalhados. Alguns deles são encontrados repetidamente, o que talvez indique sua dispersão no território, outros, encontramos quase que por acaso, como se não houvesse registro sobre eles. Apesar das dificuldades de acesso, buscamos por autores considerados importantes para o período, como Delgado de Carvalho, Horacio Scrosoppi e outros. Outro ponto importante notado nestes livros é a referência ao currículo adotado pelo Colégio Pedro II que tornou-se referência para todo o ensino secundário do país durante quase um século. Seus professores eram intelectuais e escritores renomados e tornaram-se também autores de livros didáticos. Na capa de vários desses livros pode-se ler “Livro adoptado no Collegio Pedro II” (CARVALHO, 1927) ou “Conforme o programa do Collegio Pedro II onde são adoptadas de preferencia a qualquer outro compendio” (SCROSOPPI, 1922). Os livros analisados foram: • Curso Methodico de Geographia Physica, Política e Astronômica: Composto para uso das Escolas Brasileiras, de Joaquim Maria de Lacerda, 1895, 6ª Ed;

• Noções de Geografia do Rio grande 57


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do Sul, Brazil e Globo Terrestre, de Affonso Guerreiro Lima, 1911; • Noções de Geografia: Curso complementar – I Parte, também de Affonso Guerreiro Lima, porém do ano de 1935; • Geographia especial ou Chorographia do Brazil, de Carlos de Novaes, 1912; • Geographia do Brasil, de Carlos Miguel Delgado de Carvalho, 1927, 3ª Ed. (sendo a primeira edição de 1913). • Lições de Chorographia do Brasil, de Horacio Scrosoppi, 1922, 4ª Ed. A análise dos conteúdos dos livros também possuiu um foco específico. O objetivo da pesquisa foi identificar a ideologia nacional nos livros didáticos de geografia deste período. Sendo assim, o que se buscou analisar foi o discurso nacionalista, que no período, tinha como base um discurso sobre a civilização e sobre o progresso. Nesse sentido, desconsiderou-se os trechos que não coadunam com esta perspectiva, muitos deles da chamada geografia física ou trechos puramente descritivos8. COMENTÁRIOS GERAIS SOBRE OS LIVROS ANALISADOS Dos livros analisados pudemos perceber uma dificuldade em absorver as inovações do conhecimento científico e pedagógico produzidas no exterior e, em parte, aqui. Nesse sentido, o livro de Delgado de Carvalho (1927) se destaca do restante, pois embora alguns autores tentassem incluir algum tipo de renovação, os conteúdos de seus livros em muito ainda se baseava no arranjo discursivo mnemônico9. A sistematização do conhecimento geográfico também estava em curso, pois na estrutura dos conteúdos utilizada pela maioria dos autores analisados, o recorte eram os estados brasileiros, e não temas geográficos. Capítulos continham definições geográficas 58

superficiais seguidas da divisão por localização. Esta divisão também indica a importância que as divisões jurídico-administrativas foram tomando na sociedade moderna, ou seja, do próprio EstadoNação, pois é a partir delas que se organizam as sociedades e se estabelecem acordos entre elas. Nesse período também, os livros passam a contar com maiores possibilidades gráficas de inclusão de imagens e mapas. O uso desses recursos disseminou-se desde então nos livros didáticos. Como essas imagens e mapas relacionam-se com o conteúdo será comentado durante a análise dos livros. Somente o livro de Delgado de Carvalho (1927) não possui imagens. O autor talvez tenha preferido dar um cunho mais científico ao trabalho utilizando-se apenas de mapas e tabelas. As imagens, fotografias e desenhos utilizados pelos outros autores podem ser divididos em duas categorias: aquelas que mostram a natureza exuberante e fornecedora de recursos para o progresso do país e garantidora de uma posição do país na divisão internacional do trabalho, e aquelas da conquista da modernidade e da modernização, em especial as cidades como monumentos da civilização e as atividades produtivas modernas, mostrando as possibilidades de o Brasil acertar o passo no atraso econômico e se tornar potência sem tardar. E foi deste contexto que retiramos nossas categorias de análise, tendo em vista a relação entre o conhecimento geográfico veiculado nos livros didáticos, o contexto republicano e a ideologia nacional e o discurso nacionalista: a Natureza e o Território; a Civilização e a Modernidade; e o Povo e a Cidadania. Abaixo faremos uma breve exposição de cada uma dessas categorias e algumas de suas ilustrações. A categoria Natureza e Território contem os discursos que recorrem em seus conteúdos à evocação das qualidades da natureza e à ocupação e povoamento do território a fim de compor as ideologias nacionais do período republicano. Por se tratar de um tema amplo, decidimos subdividilo em dois grandes grupos: 1. A exaltação da natureza: presente desde G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 5 5 - 6 5 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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o período colonial, permanecendo no período imperial e republicano como uma ressonância, uma memória persistente. Desde a descoberta e da carta de Pero Vaz de Caminha, a ideia da natureza como paraíso ou inferno terrestre esteve presente em vários registros, como nos relatos de viajantes. No livro de Lacerda (1895), a primeira imagem que aparece do Brasil é um desenho com a legenda Floresta das regiões tropicaes (Figura 1), uma imagem completamente preenchida de árvores e outras espécies vegetais, provocando uma sensação de sufocamento perante a quantidade e a variedade dos vegetais:

As gravuras escolhidas para comporem os livros indicam uma imagem que se pretende criar para o Brasil. Aquelas imagens pertencentes à categoria da natureza exuberante e fornecedora de recursos para o progresso do país acabam por reforçar o mito da exuberância. Também aparecem neste quesito o mito da fertilidade do solo, em alguns momentos exaltada, mas em outros rechaçada através da defesa da utilização correta das técnicas de agricultura. Outra forma de exaltação da natureza, agora sob o verniz da ciência, aparece nos trechos sobre a hidrografia. São enumeradas as bacias, seus principais rios, suas características de extensão e volume d’água, e uma lista de seus afluentes. Esses dados permitiam incutir a perspectiva de que o potencial hídrico apoiará no futuro o progresso do país pautando a matriz energética na força hidráulica. No livro de Lima (1935), a hidrografia é exaltada através da quantidade: o autor fornece uma extensa lista com os nomes dos afluentes dos rios principais das bacias. O potencial para a produção de energia hidráulica de cada rio é, inclusive, apresentado pelo autor na Figura 2:

Fi gura 1 | F lo r esta d a s re gi õe s t ro p i c a e s . Font e: L acer d a ( 1 8 9 5 , p . 3 2 7 )

F i g u ra 1 | A c a s c a t a He r v a l , n o m u n i c íp i o d e Sã o Leopoldo, c o m 1 0 5 m e t ro s d e a l t u ra . F o n t e : L i m a (1 935, p. 90)

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2. O território: as representações sobre o território foram sendo disseminadas no discurso nacionalista desse período e orientaram a sua produção. Moraes (1988) classificou esse conjunto de representações sobre o espaço como ideologias geográficas. Dentre essas representações, que carregam ainda muito da ideia de conquista, podemos perceber: a) A expansão do território, sua ocupação e a consolidação da ocupação das fronteiras: informações com o objetivo de afirmar os limites do país e despertar o ideário de segurança nacional. A evolução da ocupação e a história do povoamento, a origem das nomenclaturas dos locais aparecem também nos livros didáticos. O histórico dos itinerários das expedições, textos de geógrafos, naturalistas, narrativas de viajantes, engenheiros e técnicos eram registros utilizados pelos autores para a escrita do material escolar. Por isso, os livros contavam com descrições minuciosas, dados estatísticos, atlas, mapas, itinerários que vão mostrar o espaço geográfico como espaço nacional, buscando estabelecer um patrimônio geográfico, descobrindo o território pela história. b) A integração do território: com os obstáculos naturais e de ordem política, cultural e histórica entre as regiões, a integração do espaço nacional torna-se um desafio. Esse, talvez, seja o discurso diretamente relacionado ao seu contexto de produção mais enfático e presente em todos os livros analisados. A questão da integração do território torna-se urgente para o progresso da nação. O patrimônio cultural e natural das particularidades regionais estava sendo valorizado, mas os obstáculos naturais da integração demandavam uma solução. E essa integração tinha que se dar em dois níveis: a integração política, alinhando os governos estaduais ao governo federal; e a integração do território, através dos mais diversos recursos materiais de linhas de comunicação e transportes. Nesse sentido, incluiu-se também a solidariedade às áreas econômicas menos favorecidas, uma divisão territorial do trabalho, pois o ideal era o da homogeneização do progresso no território. 60

A integração entre as regiões também tinha um viés econômico de aumento da produção, seja agropecuária, mineral ou extrativista. Também intencionavam a diversificação da produção que nesse período centrava-se no café e na borracha. E foi em torno da integração econômica do território que convergiram os discursos de todos os autores. Os meios de transporte e de comunicação, com destaque para as estradas de ferro e telégrafos, são os principais focos dessa integração e aos poucos vão aumentando sua importância nos livros didáticos, pois representavam as grafias da modernidade e da modernização no território nacional. Percebe-se já nesses livros um Brasil novo cujo desenho se faz a partir da rede de fluxos de pessoas, mercadorias e informações, infraestrutura imprescindível a um arranjo mais articulado que conecta extremos e volta ao progresso. A Figura 3 demonstra que as linhas telegráficas eram um símbolo desta integração:

F i g u ra 3 | M a p a d a s l i n h a s t e l e g rá f i c a s n a c i o n ais e cabos s u b m a ri n o s e s t ra n g e i ro s . F o n t e : Sc ro s o p p i (1 9 22, p. 140)

c) O regionalismo: implica um jogo de escalas que mostra a diversidade, mas sem G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 5 5 - 6 5 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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pautar expressamente a diferença. Nesse período ainda não existia uma divisão regional política oficial. As regionalizações presentes nos livros didáticos estavam relacionadas, em sua grande maioria, às características naturais de relevo, vegetação e clima. No entanto, a valorização das particularidades regionais já aparece, não só com relação aos recursos, mas também, à população. A categoria Civilização e Modernidade foi subdividida em dois tópicos: 1. A civilização, a modernidade e seus símbolos: A modernidade, nesse período, era sinônimo de civilização. Mais que isso, as cidades, monumentos, praças, bibliotecas, museus, jardins botânicos, representavam grafias da civilização nos trópicos, especialmente no Brasil. Aliada ao progresso e à modernidade, alcançar a civilização era um dos destaques do discurso nacionalista republicano. Nesse sentido, se fazia necessário demonstrar, através de suas cidades, o alcance do par civilização/ciência no país. A cidade foi valorizada nos aspectos arquitetônicos, de transporte e circulação, os monumentos, as melhorias nas condições sanitárias e do controle de doenças e epidemias - nas cidades e na selva também -, as diversões e a sociabilidade urbana. A cidade aparece como uma representação, um símbolo, da modernidade da nação, medida da condição

Fi gura 4 | P lan ta d e P ort o A l e gre . Font e: L IMA ( 1 9 1 1 , p . 33 )

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social, da prosperidade econômica e do progresso brasileiros. Por isso grande parte das ilustrações dos livros são dedicadas a elas. As figuras 4 e 5 abaixo, demonstram a valorização destes dois aspectos da civilização: o aspecto arquitetônico e o ordenamento urbano. Se a nação é construída internamente, afirmando sua diferença com as outras nações através da língua, cultura, literatura, povo, natureza e território, ela também é construída externamente, mostrando fazer parte do concerto internacional das nações através da adoção dos ritos do progresso, pela pratica da ciência e das artes. É a elevação do particular ao universal, e as nações civilizadas deveriam participar desse universal. A República seria a patrocinadora dessa trajetória do país rumo ao concerto científico, moderno e progressista internacional. Esses elementos de destaque para a civilização, a modernidade e seus símbolos estão presentes em todos os livros analisados. 2. A modernização e a economia - a técnica e o progresso: Se a civilização era o objetivo a ser alcançado, a modernização do país indicaria o caminho a ser trilhado. A técnica adquiriu um lugar central nesse processo, e a necessidade de integração do território exigia que a modernização chegasse também ao interior. A riqueza ali produzida poderia levar o país a alçar lugar dentre os países capitalistas avançados, pois a agricultura era a principal atividade econômica

F i g u ra 5 | Ri o d e J a n e i ro – L a rg o da Car ioca. F o n t e : No v a e s (1 912, p. 61)

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desse período. O progresso industrial e agrícola eram concebidos como uma “vitrine do progresso” para o restante do mundo. Na figura 6 vemos a valorização da criação de gado selecionado sob princípios técnicos e científicos de produtividade:

Fi gura 6 | R o d eio d e ga d o ho l a nd ê s . Font e: L im a ( 1 9 3 5 , p . 1 0 1 )

Nesse período, além da valorização da ciência, havia também uma valorização da racionalidade instrumental que daria forma à modernização. Assim, as novas técnicas deveriam ser empregadas na agricultura, na indústria, no comércio, enfim em todas as áreas da economia nacional para gerar um maior aproveitamento e lucratividade. A categoria Povo e Cidadania foi subdividida em três tópicos: 1. O Povo - os elementos raciais da constituição do povo brasileiro: a questão da formação do que seria o povo brasileiro era de extrema importância para a definição da nacionalidade brasileira. Muitas foram as tentativas de unificar as particularidades históricas, regionais e ‘raciais’ em um único povo, que pudesse dar unidade ao sentimento de pertencimento. Estas tentativas passaram por um discurso culturalista que enfocava as particularidades de cada região e se omitia sobre a história, as teorias racialistas da 62

miscigenação e do branqueamento, promovendo uma solução que perpassava por dentro do discurso científico e positivista do período. Nos livros didáticos, viu-se que as soluções adotadas pelos autores foram a escolha de uma dessas

vertentes ou a proposição de um amálgama das teorias e discursos, bem ao estilo da miscigenação. Critérios como a língua e a religião, essenciais para a formação da nacionalidade, tornavam esse trabalho mais fácil aos autores, pois se assumia então, uma homogeneidade nesses dois critérios, mesmo sabendo-se não serem tão homogêneos assim. Hegemônicos, talvez sim. Ilustrações como a figura 7 eram comuns em muitos dos livros da época 2. As dificuldades para a formação do Povo: Nessas concepções, podem-se perceber as dificuldades existentes para a formação do povo brasileiro e da cidadania de todos os seus habitantes, agora sob o regime republicano. O indígena aparece romantizado, uma ascendência de um povo americano originário, mas poucas são suas influências naquele momento. Já o elemento negro impõe uma questão constrangedora, muitas vezes tratada superficialmente, ou mesmo negligenciada, a escravidão. A mestiçagem com o negro não poderia ser negada, mas a sua cidadania sim. O que se percebe na maioria dos livros G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 5 5 - 6 5 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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nacionalidade, e seria assegurado pela abertura de escolas e pelo compromisso com a instrução e com a difusão dos saberes científicos. Abaixo as figuras 8 e 9 demonstram a valorização das personagens da República, tanto regionalmente quanto nacionalmente. Retratos de Anita Garibaldi (da Revolução dos Farrapos), Prudente de Moraes (primeiro presidente civil da república, de 1894 a 1898), José Bonifacio, Rodrigues Alves (presidente de 1902 a 1906), Carlos Gomes, Campos Salles, Castro Alves, Marechal Deodoro (proclamador da república e seu primeiro presidente), Floriano Peixoto (presidente da república “num agitado período de revoluções”), José de Alencar, Gonçalves Dias, Santos Dumont, Affonso Pena, entre outros. O busto de Tiradentes é o da imagem de barba e túnica (Figura 9), uma revitalização do mito e da independência. Na nota de rodapé: “Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, um dos precursores da Independência. Tomou parte da Conjuração Mineira e foi martyrisado em 1790.” (LIMA, 1911, p. 86). Fi gura 7 | R aça B r an c a : u m G re g o ; R a ç a a m a re l l a : um Chi ne z ; R aça p r eta: n e gro d’ A f ri c a ; R a ç a a m e ri c a n a : I nd i o dos Es tad o s Un id o s. Fonte : L a c e r d a ( 1 8 9 5 , p . 2 0 -2 1 )

analisados é a presença das teorias racialistas da superioridade branca e da teoria da mestiçagem levando ao branqueamento. Esses dois ramos teóricos sobre a questão das raças desembocam, então, na superioridade do elemento branco, seja diretamente, ou indiretamente quando a mestiçagem aceita é a que leva ao branqueamento. 3. A cidadania republicana e o panteão dos heróis: a educação cívico-patriótica e cidadania republicana era muito valorizada pelo autores. Os livros didáticos deveriam transmitir às novas gerações a forma de funcionamento e os valores ligados a esse regime de governo, numa proposta de educação cidadã. A Instrução (sistema formal de ensino) é um desses valores e possui um tópico específico na maioria dos livros analisados. O progresso econômico deveria ser condição para o progresso intelectual, moral e cívico da G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 5 5 - 6 5 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

F i g u ra s 8 e 9 | Be n t o Go n ç a l v e s e Tir adentes. F o n t e : L i m a (1 9 1 1 , p p. 32 e 87)

CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao final da pesquisa, podemos então retornar à questão que a motivou: a ideologia nacional estaria presente nos livros didáticos de geografia e com eles estabeleceria uma relação 63


C O N S T R UÇÃ O DA NA ÇÃ O NO S LIVR O S DIDÁT IC O S D E GEOGRAFIA DA P RIMEIRA REP ÚBLICA

interna? Constatamos que sim, pois como vimos os elementos considerados constituintes de uma nação estão todos presentes nos livros do período: o território, o povo, a língua, o passado comum, a religião. Cada um desses elementos foi destacado de forma a criar uma imagem da nação que se pretendia naquele momento. A afirmação da nação frente às outras, em um movimento de alteridade, mas também de pertencimento à sociedade moderna, também foi contemplado nos livros, e seu suporte era o ideal de civilização e progresso. A formação da nação empreendida no período republicano em meio a debates delineou o que viria a ser o projeto de nação que se concretizaria no Estado Novo. Algumas destas proposições permanecem e ressoam até os dias atuais.

NOTAS Entendemos a ideologia enquanto um fenômeno social que estaria diretamente relacionado com o funcionamento das sociedades. A partir da crítica à ideologia como proposta por Eagleton (1997) conseguimos articular a dimensão da racionalidade e dos sistemas de crenças - relacionadas à questão epistemológica da verdade ou falsidade da ideologia - com sua dimensão afetiva, simbólica e inconsciente - relacionada às representações e aos sentidos presentes na vida cotidiana. Para isso consideramos a ideologia 1

como um fenômeno discursivo, ou seja, considerando sua materialidade como uma prática e ao mesmo tempo relacionando-a com a produção histórica de sentidos, significados. As referências teóricas sobre a questão nacional são encontradas em: Anderson (1989); Guibernau (1997); Hobsbawn & Ranger (2008); Hobsbawn (2008). 2

Neste artigo, consideramos o discurso o lugar em que as ideologias adquirem materialidade, embora esta se dê também através de símbolos, rituais e outras formas. O discurso é entendido não somente enquanto linguagem, mas como um conjunto de formulações que engloba não só a linguagem, lidando também com os processos de significação (BAKHTIN, 1990; ORLANDI, 2009). 3

Para a construção do contexto histórico da construção da nação e do Estado-Nação no período colonial, imperial e republicano brasileiros utilizamos como referencial teórico: Carvalho (1990; 2007); Chauí (2000); Dolhnikoff (2003); Dutra (2005); Gomes (2009); Jancsó & Pimenta (2000); Magnoli (1997); Moraes (1988; 2005). 4

5

Sobre a educação neste período ver: Haidar (2008); e Veiga (2007).

Sobre a geografia deste período: Ferraz (1994); Lourenço (1996); Pereira (1993); Rocha (1994; 2009). 7 Sobre a pesquisa em livros didáticos recomendamos a leitura de: Choppin (2004). Sobre os livros didáticos no Brasil: Bittencourt (2008). 6

Tais trechos possuem importância para a construção do conhecimento geográfico, mas devido à multiplicidade de possibilidades de análises desses conteúdos, a análise deteve-se ao objetivo da pesquisa. As partes que tratam de cosmographia, por exemplo, por se referirem à Terra e seus movimentos, foram desconsideradas nesta pesquisa. 8

9

Lourenço (1996).

OBRAS DIDÁTICAS DE REFERÊNCIA DA PESQUISA CARVALHO, Carlos Miguel Delgado de. Geographia do Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1927. LACERDA, J. M.. Curso Methodico de Geographia Physica, Política e Astronômica: Composto para uso das Escolas Brasileiras. 6ª ed. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1895. LIMA, Affonso Guerreiro. Noções de Geografia do Rio grande do Sul, Brazil e Globo Terrestre. Porto Alegre: Officinas Graphicas da Escola de Engenharia, 1911. LIMA, Affonso Guerreiro. Noções de Geografia: Curso complemetar – I Parte. 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1935. NOVAES, Carlos de. Geographia especial ou Chorographia do Brazil. Rio de Janeiro: Francisco Alves & Cia, Aillaud, Alves & Cia, 1912. SCROSOPPI, Horacio. Lições de Chorographia do Brasil. 4ª ed. São Paulo: Casa Duprat, 1922.

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N AIEMER RIBEIRO D E CARVAL HO

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PARA ALÉM DOS MUROS DA ESCOLA: A RELAÇÃO CIDADE-EDUCAÇÃO EM DEBATE¹ AU-DELA DES MURS DE L’ECOLE: LA RÉLATION VILLE–ÉDUCATION EN DÉBAT

MA R C U S V IN I CI US GOM ES Mestre, licenciado e bacharel em Geografia (UFRJ) Professor do Colégio Pedro II (Campus Realengo II) marcu s v i ni ci us _gomes @ ya h o o . c o m . b r

RESU M O: OS E S T U D O S E D U C A C I O N A I S N Ã O P O D E M S E LIM ITAR À E S C ALA DA S ALA DE A ULA OU M E S M O DA P RÓP RIA INSTI TUI ÇÃO ESCOLA R . PA R A QU E S E C O M P R EE N D A M O S M A I S DIFE RE NT E S FE NÔM E NOS QUE E NVOLVE M A E DUC AÇ ÃO É NECESSÁRI O AMPL IA R O U N IV E R S O D E C O M P R EE N S Ã O PA R A U M C A M P O M AIOR, UM RE C ORT E QUE VÁ “PARA ALÉ M DOS M UROS DA ESCOL A”. O OBJE T IV O C E N T R A L A Q U I C O N S I S TE EM D EB AT E R A S DIFE RE NT E S P E RS P E C T IVAS QUE T RAT E M DA DINÂM IC A DA EDUCAÇÃO SOB O P R IS M A D A C IDA D E. E N T E N D E R A R E L A Ç Ã O C IDADE -E DUC AÇ ÃO P E RM IT E -NOS AVALIAR NÃO S Ó OS RE FLE XOS DA URBE D EN TR O D A E S COLA , M A S TA M B É M N O S A B R E O O L H A R PARA AS OUT RAS FORM AS DE E DUC AÇ ÃO QUE AC ONT E C E M E XTRAMUROS ESCOLA R E S . N A P R IM E I R A PA RT E , T R ATA R E M O S D A R ELAÇ ÃO C IDADE -INS T IT UIÇ ÃO E S C OLAR. C OM P RE E NDE RE M OS AS L ÓGI CAS QUE O R IE N TA R A M A S D I F ER EN T E S L O C A L I Z A Ç Õ E S D A E S C OLA NO INT E RIOR DAS C IDADE S BRAS ILE IRAS AO LONGO DE TODO ÚLTIM O S É C U LO. E M C O N S E G U I N T E I R EM O S D I S C U T IR A M ANE IRA C OM A QUAL A S OC IOLOGIA E O P LANE JAM E NT O URBANO TÊM A B OR D A D O OS IM PA C TO S Q U E O E N T O R N O D A E S C OLA T RAZ PARA DE NT RO DO P RÓP RIO E S PAÇ O E S C OLAR. NA SEGUNDA PARTE N OS D E D IC A R EM O S À D I S C U S S Ã O S O B R E A S MODALIDADE S DE E DUC AÇ ÃO QUE S E RE ALIZAM E M DIVE RS OS E SPAÇOS DA CID ADE . E É C A MIN H A N D O N ES S A D I R E Ç Ã O Q U E A S ELUC IDAÇ ÕE S S OBRE A DIM E NS ÃO E DUC AT IVA DOS M OVIM E NT OS SOCI AI S E A C HA M A D A “P E D A G O G I A U R B A N A” A C A B A R Ã O P O R GUIAR O DE S FE C H O DO DE BAT E QUE A QUI P ROP OM OS . PALAVRAS-CHAVE: RELAÇÃO CIDADE-EDUCAÇÃO; ESCOLA E CIDADE; EFEITOS DO LUGAR; EDUCAÇÃO NÃO FORMAL; PEDAGOGIA URBANA.

RÉSU M É : LE S É T U D E S S U R L’ ÉD U C ATI O N N E P E U V ENT PAS S E LIM IT E R À L’É C H E LLE DE S S ALLE S DE C OURS OU E NC O RE DE L A PRO PR E IN S T IT U IT ION S C O L A I R E . P O U R Q U ’ O N C O M P RE NNE DE S P LUS DIFFÉ RE NT S P H É NOM È NE S QUI IM P LIQUE NT L’ÉDUCATI ON IL Y ES T N É CÉ S S A IR E D ’ É L A R G I R L’ U N I V ER S E D E I N C LUS ION P OUR UN C H AM P S P LUS GRAND, UNE É C H E LLE QUI C OMPRENNE « A U-DE LÀ D E S MU R S D E L ´ É C O L E ». L’ O B JEC TI F P R I N C I PAL IC I E S T DE DIS C UT E R DE S DIFFÉ RE NT E S P E RS P E C T IVE S QUI TRAI TENT D E LA D Y N A M IQU E D E L’ ÉD U C ATI O N S O U S L E P R I S M E DE LA VILLE . C OM P RE NDRE LA RÉ LAT ION VILLE – É DUC AT ION NE NOUS PERM E T PA S D ’ AVA LI E R S E U L E M E N T L ES R É F L E T S D E LA C IT É DANS L’INT É RIE UR DE L’É C OLE , M AIS A US S I C E LA NO US OUVRE LE RÉ G A R D P OU R D ’ A U TR ES F O R M E S D ’ É D U C ATI O N QUI S I PAS S E NT H ORS DE S M URS S C OLAIRE S . DANS LA P RE M IÈ RE PARTI E, N OUS T R A IT E R ON S D E L A R ÉL AT I O N D I A L O G I Q U E V I L LE – INS T IT UIT ION S C OLAIRE . NOUS C OM P RE NDRONS LE S LOGI QUES QUI ON T G U ID É LE S D IFF ER EN T S EM P L A C E M E N T S D E L’ É C OLE À L’INT E RIE UR DE S VILLE S BRÉ S ILIE NNE S A U FIL DE LE DERNI ER SIÈCLE E N T IÈ R E . E N S U I T E N O U S D I S C U T E R O N S L A FAÇ ON DONT LA S OC IOLOGIE E T LE P LANIFIC AT ION URBAINE ONT ABORDÉ LES IM PA C T S QU E L’ E N V I R O N D E L’ ÉC O L E EM M È N E N T P OUR L’INT É RIE UR DE L’E S PAC E S C OLAIRE . DANS LA DE UXIÈ ME PARTI E N OUS N OU S C ON S A C R ER O N S A U D É B AT D ES M O D A L I TÉ S D’É DUC AT ION QUI ONT LIE U DANS DE S DIVE RS PART IE S DE L A VI L L E. ET ES T E N PA RTA N T DA N S C ET T E D I R EC TI O N Q U E L E S É LUC IDAT IONS S UR LA DIM E NS ION É DUC AT IF DE S M OVIM E NT S SOCI A UX ET LA D IT E « P É D A G O G I E U R B A I N E » F I N I R O N T PA R G UIDE R LA C LÔT URE DU DE BRAT E QUE NOUS P ROP OS ONS IC I. MO TS C LÉS: RÉLATION VI L L E - É DUCAT I ON, É COL E E T L I E U , E FFE T S D U L I E U , É D U C AT I O N N O N FO R M E L L E , P É D A G O G I E URB A INE.

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PA R A A L ÉM DO S MU R O S DA E SC O LA : A R E LA ÇÃ O CIDAD E- ED UCAÇÃO EM D EBATE

INTRODUÇÃO: SOBRE GEOGRAFIA, ESPAÇO, EDUCAÇÃO E CIDADE O filme “Entre os muros da escola” (2008) trata de temas contemporâneos relacionados a uma França cada vez mais imigrante e, consequentemente, etnicamente segregada. A história se passa em uma escola do subúrbio parisiense onde um professor de origem étnica e social marcadamente dessemelhante da maior parte de seus discentes, vê, naquele cotidiano, transformações e conflitos emergirem numa sala de aula que, em sendo uma parte, espelha um todo francês atual. Se a opção do diretor esteve em demonstrar a problemática francesa “extramuros” tendo a sala de aula como palco privilegiado para torná-la inteligível, mesmo que inspirado no título do filme, o debate aqui proposto parte de outra perspectiva. Este trabalho não busca no cotidiano escolar elementos que elucidem a complexa questão social brasileira. Tampouco temos aqui a pretensão de adentrarmo-nos na discussão sobre a questão étnica do Brasil. A rigor, delimitaremos nossa problemática a um campo específico, o que, no entanto, não reduz a sua ampla riqueza interpretativa. Uma discussão que privilegie (e reconheça) a cidade enquanto importante universo de possibilidades analíticas é a prerrogativa básica que acabará por guiar as páginas que seguem. Partimos da hipótese que a cidade tem assumido um papel de destaque tanto na interpretação de certos fenômenos educacionais, quanto como lócus de diferentes práticas educadoras. Nesse sentido, a premissa aqui adotada consiste em compreender a educação “para além dos muros da escola”, isto é, lançando mão de uma série de olhares interpretativos que partam da própria cidade. Sabemos, contudo, que, a mudança do lugar de onde se olha implica estar diante de novas questões, novos sujeitos e novas práticas, e é aí que encontramos os maiores desafios para se realizar tal tipo de discussão. No que se refere aos estudos sobre as cidades, são recentes os trabalhos no âmbito 68

da ciência geográfica que destaquem a temática da educação em suas análises2. Aliás, dentre todas as ciências sociais, a geografia, mesmo que pioneira nos estudos citadinos, só há pouco tempo alcançou a pluralidade de orientações teórico-metodológicas que caracteriza a produção das demais áreas (ABREU, 2002). Já em se tratando da relação entre educação e espaço, verificamos, no campo da geografia, a existência de trabalhos que privilegiem direta ou indiretamente tal temática. De forma mais explícita, é possível observar desde pesquisas que tomam a escola em si como um espaço3, até outras que buscam compreender as interações dos sujeitos com os objetos inerentes aos espaços escolares4. Contudo, é no pensamento de Michel Foucault que encontramos algumas das primeiras contribuições nessa direção. Em um determinado momento de sua trajetória intelectual, o filósofo francês debruçou-se nos estudos sobre o surgimento e transformações das instituições modernas europeias na passagem do século XVIII para o XIX. Prisões, fábricas e quartéis fizeram parte de um plano investigativo que partia de um objetivo básico: desvelar o caráter disciplinador inerente a tais instituições. Entretanto, há que se indagar: onde está a relação entre espaço e educação nessa discussão, afinal? Como bem lembra o autor, a disciplina pressupõe, em primeiro lugar, a distribuição dos indivíduos no espaço. Técnicas foram, então, desenvolvidas para se alcançar tal intento. O resultado foi a difusão de locais protegidos por uma monotonia disciplinar em uma Europa que adentrava a modernidade sob a égide de uma sociedade igualmente disciplinar5 (FOUCAULT, 2009, p. 137). Não diferente das demais instituições, a escola não passou isenta pelos laços disciplinadores. Verificou-se que aí a disciplina facilitou a implementação generalizada da alfabetização a partir de estratégias que recriavam a lógica de distribuição dos corpos discentes no espaço. Desse modo, os procedimentos disciplinares passaram a funcionar, G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 6 7 - 8 0 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


MARCUS V IN ICIU S GOM E S

simultaneamente, como mecanismos para ajustar o aluno (em filas, carteiras e horários) e, também, como operadores pedagógicos (o que incluí testes, o treinamento de habilidades e a avaliação das capacidades). As escolas - que à época eram comumente concebidas no modelo de convento e de internato -, tornaram-se não só máquinas de aprender, mas, também, de vigiar, hierarquizar e premiar; uma máquina capaz de fazer dos corpos discentes objetos do poder disciplinar para, assim, deixá-los dóceis. De tal modo, passava a haver economia de tempo, obediência, a instalação de verdadeiros “quadros vivos”, o que evitava a indisciplina, a heterogeneidade, e tudo o que impedia o controle e, por tabela, o aprendizado (VEIGA-NETO, 2005, p. 70). Mesmo que tenhamos nos reportado às investigações de Michel Foucault remetendo-as a um recorte temporal específico (a passagem do século XVIII para o XIX), é importante sublinhar a permanência de diversos traços do modelo disciplinar supramencionado nos espaços escolares contemporâneos. Segundo Muniz Sodré (2012), isso fica claro ao passo que, ainda hoje, a escola continua a seguir dois pensamentos monológicos, o da prisão e o da igreja. Tanto a estrutura espacial da instituição escolar – vista através de sua arquitetura e da hierárquica organização espacial dos corpos -, quanto à disposição dos saberes em séries, configuram-se em marcas cristalizadas de um modelo de escola que historicamente tende a se manter. Porém, ainda que não fosse essa a preocupação de Foucault, é sabido que não só de permanências vive a instituição escolar. A escola deve ser vista como uma instituição resultada de uma desigual acumulação dos tempos, o que se manifesta através de suas práticas, de sua forma, e de sua organização, todas oriundas de diferentes contextos históricos. E se em distintos momentos ela foi se formando, não é de maneira rígida que temos de hoje enunciá-la. Transformações ocorrem à luz do dia e a escola, instituição antes “fechada” em si, vem se tornando, paulatinamente, aberta, G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 6 7 - 8 0 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

um lugar sensível às mudanças do seu tempo, e que reproduz, amiúde, lógicas e dinâmicas “extramuros” em seu cotidiano. Muda a escola, muda, também, a educação. No presente, torna-se premente olhar para educação com a mesma flexibilidade que se olha para a instituição escolar. Aliás, nem sempre juntas devemos hoje enxergá-las. Outrora concebida enquanto detentora do “monopólio” da educação, a escola assiste hoje à propagação de inúmeros outros espaços educativos, abalizados, por sua vez, em uma concepção ampliada de educação, isto é: uma educação relativa a todos os processos que envolvem a aprendizagem de novas informações acerca de novos hábitos, valores, atitudes e comportamentos, não se restringindo ao aprendizado de conteúdos específicos, de um currículo apriorístico. O que queremos dizer é que quando falamos de educação não a reduzimos à instituição escolar, mas, é necessário entendê-la tal como um processo complexo que se desenvolve em múltiplos outros espaços para além dos muros da escola. Entendemos que se de permanências e transformações a educação se desenvolveu (e se desenvolve), as vias para a compreensão dos fenômenos que a envolva tem de, igualmente, se ajustar a tais nuances. Estudar o processo educacional per si, não buscando relacioná-lo ao contexto na qual ele se insere, parece-nos levar ao encerramento de possibilidades interpretativas mais amplas, caminho com a qual não se pretende seguir aqui. Por outro lado, ao lançarmos mão da cidade como universo investigativo privilegiado nos estudos sobre a educação, acreditamos poder superar essa possível limitação, ressaltando, entretanto, outras questões caras aos geógrafos. Aliás, a elaboração de todo o debate aqui proposto se ancora justamente na premissa de que é hoje essencial a inserção de uma ampla discussão sobre educação na agenda dos estudos geográficos. O que se quer dizer é que uma abordagem geográfica sobre a educação não pode se limitar a questões pertinentes à geografia escolar. Por mais que em outros campos disciplinares a dimensão espacial tem se feito 69


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valer cada vez mais nas análises de fenômenos educacionais, entendemos que a geografia possa contribuir sobremaneira para o entendimento de uma espacialidade da educação, haja visto todo o seu manancial teórico. Sistematizamos, assim, o debate à maneira de vislumbrar didaticamente alguns caminhos possíveis a serem trilhados nas abordagens geográficas sobre a relação cidade-educação. Embora tal tarefa já tenha sido realizada por outros autores no âmbito da própria geografia, não utilizaremos aqui a forma interpretativa trilógica então comum nessas análises6. Partiremos, todavia, de um entendimento sobre tal relação estruturando o debate em dois grandes temas: 1) A escola e a cidade Aqui a discussão sobre a relação escola-cidade será feita partindo de um duplo viés. Iluminados por diferentes referenciais, discutiremos, em um primeiro momento, da escola sob um aspecto puramente localizacional. Ou seja, veremos como diferentes interesses orientaram a lógica de localização da instituição escolar no interior das cidades brasileiras em um recorte temporal que vai do final do século oitocentista até o início do atual. Já em um segundo momento, a preocupação não estará mais em discutir os lugares que a escola ocupou na história das cidades, mas sim entender quais são os “efeitos” que a atual localização trouxe para o interior das instituições escolares. Temática intensamente trabalhada ao longo da última década por sociólogos e planejadores urbanos, o “efeito do lugar” ou “efeito vizinhança”, diz respeito aos impactos da segregação sócio-espacial no universo escolar. 2) A educação além dos muros da escola Inicialmente levantaremos a discussão acerca dos múltiplos espaços e práticas educativas extramuros escolares. Ainda que sejam em maior parte concebidas no interior de movimentos sociais, tais práticas dizem respeito a toda e qualquer transmissão não formal de conhecimento que não seja atrelada à educação 70

formal escolar. Desfecharemos o artigo sob a ótica da “pedagogia urbana”, onde se tratará da construção de estratégias educadoras de base crítica para além dos muros da escola. Pretendemos a partir de agora tornar inteligíveis as diferentes perspectivas que tratem da dinâmica da educação sob o prisma da cidade. A ESCOLA E O SEU LUGAR NA CIDADE A relação entre a cidade e a escola pode (e deve) ser contextualizada temporal e espacialmente. Partindo dessa prerrogativa, é possível observar alguns dos lugares ocupados pela escola no contexto urbano brasileiro nos últimos 150 anos. À luz de distintas investigações, é possível concluir que diferentes ordens sociais orientaram novas ordens espaciais e, na esteira desse processo, localização e estrutura física das instituições escolares guardam consigo intenções simbólicas em tornos das quais essas foram erguidas. Realizando uma competente geografia retrospectiva, o autor Jader Janer Moreira Lopes (2007) mostra-nos, em quatro momentos, como a organização espacial da instituição escolar interagiu com a consolidação dos ideais democráticos no Brasil. O primeiro período identificado pelo autor tem início na segunda metade do século XIX e têm ressonâncias até as primeiras décadas dos anos novecentos. Sob a égide do pensamento de cunho higienista7, o autor elucida-nos - no que tange à organização espacial da instituição escolar -, que as preocupações concentravamse em torno de questões como os tipos de construções, organização interna e externa, etc. (LOPES, 2007, p. 81). Condições outras, como aquelas referentes à qualidade do sítio (espaço físico onde se construiriam as edificações), são vistas como elementos preponderantes na formação dos sujeitos. Nesse sentido, o saber médico à época orientava a construção de escolas em modelo de internatos, e que se localizassem para além da área urbana, isto é, locais arborizados que G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 6 7 - 8 0 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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tivessem espaço livre no entorno, em oposição ao insalubre ambiente citadino. Ainda nesse sentido, Carlos Augusto Cardoso (2007a, p. 126), em pesquisa sobre a Escola Normal da Cidade da Parahyba do início do século passado, complementa dizendo que a localização da escola e suas relações com o espaço urbano respondem à padrões culturais e pedagógicos que as crianças e os jovens internalizam e aprendem. E, assim, arquitetura e localização tornam-se elementos centrais para se alcançar os devidos fins, ou seja, uma instituição que exerça, simultaneamente, as funções educativa, higiênica e de embelezamento. E é justamente essa função de embelezamento que pareceu orientar o “lugar” da escola no segundo momento elucidado por Lopes (2007, p. 83). No período republicano, ou mais notadamente, na Primeira República, a localização ganhara status privilegiado no espaço urbano. Agora não mais só os médicos monopolizavam o porvir da instituição escolar no contexto citadino; engenheiros e arquitetos são novos profissionais que entram na cena educacional e a escola tornase um lugar de produção de identidade desses profissionais, que se projetam como detentores e construtores de um novo saber. Tornando-se cada vez mais rarefeita a preocupação de ordem iminentemente higienista, a instituição escolar “volta” para urbe, passando então a ocupar áreas valorizadas e de destaque na cidade. Entretanto, não é só em terras brasileiras que se verifica tal processo. Embora o contexto político fosse outro, Cardoso (2007b) nos mostra que tal como aqui na Espanha da virada do século XIX para o XX a localização da escola tinha um aspecto a ser considerado em um plano urbanístico, determinando a sua relação junto aos outros espaços citadinos (especialmente aqueles de uso público). Por outro lado, além da localização como marco privilegiado, as primeiras escolas desse período serão ricamente ornamentadas: jardins, estátuas e uma série de acabamentos constroem um conjunto arquitetônico que simbolizava o pensamento da época: ordem, progresso, G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 6 7 - 8 0 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

laicidade e disciplina. Os traços do saber médico revelavam-se associados à engenharia sanitária, ao passo em que se pressupunha que construções com ambientes amplos, ventilados com bastante luz e sol resultariam na formação de sujeitos fortes e sadios. Desta forma, a escola passa a ser pensada como espaço imaginado pela e para a burguesia local, asséptico, sem odores, limpo e organizado onde a racionalidade presente se opõe às condições reais da realidade das ruas das cidades brasileiras. Lócus de fuga para as classes abastadas, da realidade que elas mesmas produziram (LOPES, 2007, p. 83). Diante desse quadro, conclui-se que a escola, na virada do século oitocentista, passa a ser um dos elementos chave de reinvenção da cidade através do paradigma de moderno. As mudanças de natureza arquitetônica e de localização, por sua vez, propiciam as condições para que se realize uma leitura dela enquanto centro de ressonâncias e de amplificação da vontade de mudar, e, portanto, de romper com a antiga ordem colonial (CARDOSO, 2007b). Num terceiro momento, iniciado no período de getulista e balizado nas propostas do escolanovista Anísio Teixeira, no Rio de Janeiro, e de Almeida Junior, em São Paulo, novos caminhos para as edificações de escolas com custos mais baixos são desenhados. Estamos a falar dos anos 1930, e, nesse período, o intento de democratização do acesso à escola dissemina uma nova concepção de construções escolares, os antes suntuosos conjuntos arquitetônicos escolares dão lugar a prédios funcionalistas, pensados e projetados para uma educação mais rápida e mais eficiente (LOPES, 2007, p. 84). Em terras cariocas Anísio Teixeira preconizará tanto a escola em período integral quanto a ampliação da rede pública escolar. O rebatimento espacial de tais medidas configurase, de um lado, no surgimento de edificações que combinam o modelo de escola-classe com escola-parque, e, de outro, a difusão de escolas para diversas áreas da cidade, redimensionando a lógica do período anterior, na qual a escola restringia-se a espaços específicos e enobrecidos 71


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da urbe. Embora a historiografia da educação ensine-nos que nas décadas posteriores do século XX outros movimentos políticos-educacionais continuaram o processo de ampliação e consequente fixação de instituições escolares em diversos lugares da cidade, o que se quer ratificar aqui é o caráter pioneiro do movimento escolanovista. Contudo, como bem elucida Maria da Glória Gohn (2009, p. 7), mesmo não sendo um fato inédito as reformas educacionais ao longo do século passado, observa-se que tais acontecimentos são datados, pois, correspondem a períodos históricos específicos: crise econômica, redefinição do modelo de acumulação e/ou surgimento de novos atores na cena política educacional. O quarto momento não seria diferente. Iniciado em fins dos anos 1980, o movimento de abertura democrática parece, contraditoriamente, pouco inspirar o processo educacional que entrara em curso. Com a inserção do modelo neoliberal no Brasil no começo início dos anos noventa, observar-se-á um absoluto distanciamento entre os processos educacionais e os ideais democráticos, ao passo em que irão avançar uma série de elementos que evidenciarão verdadeira privatização do saber (LOPES, 2007). Escolas públicas em completo estado de precariedade, carentes nos seus mais diversos âmbitos (infraestrutura, força de trabalho em geral, incluindo docentes) tornam-se realidades comuns e que revelam, por sua vez, medidas políticas inerentes ao pensamento neoliberal, isto é, um progressivo aumento do corte de gastos nos mais diversos setores públicos. Junto ao latente cenário de precarização do ensino, Lopes (2007, p. 90) atenta-nos para outras medidas políticas que deixam claro as propostas educativas nesses tempos: subsídios estatais concedidos ao capital privado para manter suas instituições escolares, adoção de escolas públicas por empresas, escolas administradas e organizadas por ONGs e cooperativas locais, além da aparição de escolas comunitárias; enfim, todos apontam para uma retirada do “peso” da 72

educação por parte de um Estado cada vez mais mínimo de atribuições. E o lugar da escola na cidade? Como já dito, o processo de ampliação da rede de ensino iniciado nos anos 1930 tem continuidade nas décadas posteriores. Conjugado a este fato, há que se ressaltar a difusão de escolas angariadas pela iniciativa privada, localizadas nos mais diversos pontos da urbe (inclusive em espaços autossegregados como shoppings e/ ou condomínios fechados). Porém, tratando-se das escolas públicas, já não há mais orientações específicas a respeito de sua localização. Aliás, distanciando-se de bairros enobrecidas, vê-se cada vez mais a construção dessas em áreas periféricas negligenciadas pelo poder público, reafirmando-se, assim, a lógica da segregação espacial. E é justamente a dinâmica da segregação e a sua reprodução no contexto intraescolar a tônica da próxima discussão sobre a escola e o seu entorno na cidade. A ESCOLA E O SEU ENTORNO NA CIDADE Se hoje já é notável uma ampla fixação da escola em inúmeros lugares da cidade, é mediante o seu novo arranjo espacial que se passa a observar significativos impactos que emergem no interior dessas instituições. Lócus de incontáveis conflitos advindos da dinâmica “extramuro”, a instituição escolar passará a ser investigada sob a ótica dos chamados “efeitos do lugar” ou “efeitos da vizinhança”. Isso significa que se tornará central em muitas pesquisas a análise a respeito dos impactos que o entorno imediato trará para os diferentes âmbitos do cotidiano escolar. Sejam em áreas segregadas ou autossegregadas, um aspecto essencial para se investigar as vicissitudes dos efeitos da vizinhança refere-se ao desvelamento da sua composição social. E é na obra de Pierre Bourdieu (1997) que encontramos uma importante contribuição nessa direção. Segundo o autor, ambientes vicinais de natureza socialmente homogênea tendem a reproduzir constantemente as características do G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 6 7 - 8 0 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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próprio lugar, resultando, desse jeito, à formação de um habitus específico que aquele grupo ocupa. A homogeneidade referida pelo sociólogo francês relaciona-se diretamente aos grupos de indivíduos portadores de capital em quantidades e naturezas semelhantes. Relacionando a posse do capital (social, cultural e econômico) à vivência na cidade, Pierre Bourdieu nos diz que é a despossessão que torna cada vez mais finita a experiência urbana dos sujeitos despossuídos, condenando-os a estar ao lado daqueles outros igualmente sem capital (BOURDIEU, 1997, p. 166). Partindo dessa prerrogativa, o autor nos elucida que num lugar onde há a reunião de sujeitos unidos pela despossessão tem-se como efeito a reprodução da própria despossessão, especialmente no que se refere à matéria de cultura e de prática cultural. E é diante desse quadro que Pierre Bourdieu ensina-nos um efeito inerente aos lugares segregados: o efeito de atração “para baixo” (BOURDIEU, 1997, p. 168). Distantes de endereços desprestigiosos e definidos, fundamentalmente, por uma ausência, (especialmente a do Estado - e do que disso decorre), os espaços segregados estão, para Bourdieu, repletos de mecanismos que reforçam a desigualdade, atraindo-os, assim, “para baixo”. Portanto, mesmo que não haja menções no que se refere aos efeitos que o isolamento espacial possa gerar para a educação, foi sobretudo a partir do pensamento do autor supramencionado que uma rede de educadores, sociólogos e planejadores urbanos (de diversos lugares do Brasil e da América Latina) iniciou no final da última década uma série de investigações acerca dos impactos que a segregação sócioespacial provocaria sobre a instituição escolar. Sob as justificativas de integrar a educação na agenda de pesquisas sobre a cidade, e de se construir um campo de interlocução entre as políticas urbanas e educacionais, a rede em questão8 tem como principal objetivo geral examinar, a partir de muitos ângulos, a relação entre a segregação residencial e as desigualdades das chances de escolarização das crianças G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 6 7 - 8 0 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

(RIBEIRO & KAZTMAN, 2008). A preocupação que sustenta boa parte das pesquisas refere-se ao isolamento que os segmentos sociais espacialmente segregados possuem em relação aos circuitos sociais e econômicos da urbe – e que se agravam nas cidades que combinam distância social e distância espacial. Dessa forma, o referencial “distância” levaria a um empobrecimento da vida social da cidade ao passo em que classes e grupos sociais diferentes deixariam de realizar interações e trocas que são inerentes ao próprio fenômeno urbano (RIBEIRO & KAZTMAN, 2008, p. 17). A existência de bairros com composição social homogênea acabaria por gerar significativos impactos no interior das instituições escolares aí encontradas. Esses impactos, por sua vez, mesmo que se materializem de diferentes (e complexos) jeitos, teriam como consequência comum a invariável reprodução das desigualdades educativas. Diante de realidades tão diferentes, o referido conjunto de pesquisadores teve como primeiro desafio a criação de metodologias próprias que pudessem tornar inteligíveis partes dos efeitos que o lugar (ou a vizinhança), traria para a escola. Dessa forma, as investigações de caráter empírico partiram da hipótese de que os resultados escolares são afetados não só pelos capitais cultural e social baseados na família, mas também na escola e em circunscrições espaciais distintas, partindo da mais próxima (vizinhança) à mais ampla (município) (RIBEIRO et al., 2010, p. 15). Dentre alguns estudos empíricos realizados, aqueles que têm como eixo central a preocupação referente à proximidade escola– favela aparecem-nos com certa constância na bibliografia existente. Emblemática por historicamente simbolizar o caráter segregacional da estrutura urbana carioca, a favela, segundo Ribeiro et al. (2010), possui um aspecto agravante: nela parece haver uma exacerbação dos problemas da própria cidade que, conjugado aos seus, acaba por repercutir negativamente no processo de escolarização. 73


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Importante assinalar que mesmo que distante da matriz teórica e metodológica tratada pelos autores do Observatório das Metrópoles, a temática em tela já parece instigar outros pesquisadores de formações dessemelhantes. No campo da Educação, Torquato da Silva (2010), em um interessante estudo sobre os efeitos que a criminalidade violenta (particularmente impulsionada pelo comércio a varejo de drogas ilícitas) exerce no cotidiano de uma escola na Rocinha (maior favela da metrópole carioca), avalia que a relação favela–escola (e logo, lugar– instituição escolar) pode e deve ser vista de forma dialógica, havendo, então, uma interação espacial direta, o que coloca a instituição escolar numa posição sensível às mais diferentes dinâmicas urbanas existentes. A sua tese é a de que a favela ocupa um lugar dentro da escola, o que fica evidenciado pela reterritorialização (ou recriação) de territorialidades extramuros dentro do espaço escolar, ao passo em que algumas práticas em seu cotidiano passam a ser reguladas pelas lógicas de uma sociabilidade violenta, propagada pelo tráfico de drogas (TORQUATO DA SILVA, 2010). Em outra investigação sobre escolas em espaços favelados, Christóvão (2009), caminha num sentido oposto. A sua investigação se dá no Morro do Cantagalo, em Copacabana, na abastada zona sul do Rio de Janeiro. Lá a autora disserta partindo de dois matizes a respeito do papel da família na reprodução das desigualdades educativas: a primeira que considera que a herança cultural familiar9 define uma diferença inicial que iria, posteriormente, repercutir sobre as taxas de êxito do alunado; a segunda que destaca a relação entre o nível cultural global da família e o nível escolar da criança. Mesmo trabalhando num campo muito mais inclinado aos estudos do planejamento e da sociologia urbana, Christóvão com a sua conclusão de que a vizinhança sim “importaria” no processo de escolarização, acaba por evocar uma importante corrente da sociologia da educação. Também no pensamento de Pierre Bourdieu que encontramos a noção de reprodução articulada à 74

educação. “A Reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino” ([1978] 2012) se trata de uma obra seminal nos estudos da sociologia da educação. Aqui, o autor francês, em conjunto com Jean Cloude Passeron, revela que as relações estatísticas entre quantidade de capital (social, escolar, cultural e econômico) das famílias tende a alterar as possibilidades de sucesso escolar. Contudo, nessa formulação teórica a escola passa a ser vista também como reprodutora das desigualdades estruturais da sociedade, pois, verifica-se com muito mais frequência insucessos escolares nos discentes de estratos sociais inferiores. Se a família aparece como importante referencial nos estudos sobre a reprodução das desigualdades educativas, Soares (2009), por outro lado, aponta que o seu protagonismo está na criação de estratégias de escolarização que tomam como ponto de partida a escolha da unidade escolar aonde vão matricular seus filhos. Tem-se implícito na investigação de Soares (2009) o desvelamento de um claro raciocínio espacial por parte das famílias discentes, pois, à medida que são avaliadas as estratégias de escolarização, se percebe que uma leitura espacial da cidade acaba por orientar as suas escolhas (como, por exemplo, a de optar por matricular os seus filhos em outras áreas da cidade, distantes por vezes de seu próprio concreto vivido). Entretanto, não a excluindo, mas somada e ligada a essa, há que se considerar outra leitura onde se afirma que a vizinhança seja capaz de afetar a percepção dos indivíduos, o que redimensionaria as suas práticas. Com efeito, a temática que ressalta o caráter prestigioso, e logo a de atração exercida por certas unidades escolares frente a outras, tem assumido um papel central no campo da educação. Conceitos como o de escola eficaz10 e prestígio escolar11 permeiam diversas pesquisas que, por diferentes ângulos, buscam revelar como tais singularidades dessas instituições levam-nas a exercer maior poder atrativo frente às demais. O argumento de que a “escola importa”, perpassa também pela pesquisa de Brandão, G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 6 7 - 8 0 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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Manderlert e De Paula (2005). As autoras discorrem sobre a existência de uma “circularidade virtuosa”. Ao contrário da abordagem “negativa” sobre os efeitos do lugar comumente vista nos trabalhos acima citados, a hipótese das autoras caminha num sentido oposto ao passo em avaliam as estratégias educativas e escolares tomadas pelas elites (econômica, cultural e social). A opção daquela escola prestigiosa em detrimento às outras, manifesta, segundo as autoras, uma estratégia com a qual as famílias vinculam capital simbólico às credenciais escolares de seus filhos, lhes garantindo, então, uma aproximação social com os setores das elites, o que os leva a potencializar a aquisição de novas formas de capitais (BRANDÃO; MANDERLERT; DE PAULA, 2005). Quase sempre situadas em bairros enobrecidos, as escolas de prestígio são, quando possível, também eleitas pelas camadas médias, pois, ao garantir aos filhos a proximidade com elementos que compõe a tal “circularidade virtuosa”, tem-se aumentado a possibilidade futura de mobilidade social vertical, à medida em que haverá interações destas camadas, com as outras superiores. Partindo dessa lógica, observa-se que o lugar, ou o entorno imediato, tende a assumir um papel importante não só no que se refere aos efeitos que a vizinhança possa exercer sobre as unidades escolares, mas também por orientar escolhas familiares quanto às escolas que seus filhos irão estudar. O “onde” estudar, por sua vez, é também uma opção multifacetada, isto é: desde a escala do bairro na qual a escola se situa, até os elementos que compõe internamente a unidade escolar, observa-se como os critérios de escolha passam por percepções apriorísticas, seja aquela de cunho sociológico – ao passo em que a escolha se orienta pela proximidade com os “iguais” -, ou mesmo a outra dotada de uma leitura espacial, quando se entende que o lugar onde se situa a escola pode refletir no processo de escolarização do discente. É importante finalizar evocando o grande desafio segundo Ribeiro et al. (2010): evitar que o G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 6 7 - 8 0 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

endurecimento da pobreza mantenha um círculo vicioso onde a ampliação das desigualdades sociais tende a impactar diretamente a escolarização dos estratos segregados. Desvelar este fenômeno é, entretanto, um importante passo para a construção de estratégias de superação. Por isso entendemos que mesmo que parte das abordagens impulsionadas por outros campos do saber valham-se de uma clara dimensão espacial, cabe a geografia, também, levá-las a cabo. Pois é na própria ciência geográfica que encontramos um manancial teórico que possuí validade ímpar para tornar inteligíveis os fenômenos que relacionem cidade-educaçãosegregação. A EDUCAÇÃO PARA ALÉM DOS MUROS DA ESCOLA: MOVIMENTOS SOCIAIS E A EDUCAÇÃO NÃO FORMAL Há pelo menos trinta anos o fenômeno dos movimentos sociais tem a sua complexidade investigada à luz de diferentes matrizes teóricas e disciplinares não havendo, entretanto, uma perspectiva analítica que seja privilegiada. As suas respectivas estratégias de organização e de atuação se tornaram objetos de estudos diversos, da geografia à sociologia. E se a temática atraiu tamanha atenção dos mais distintos campos disciplinares, é no desvelamento da natureza dos movimentos sociais que se observa a complexidade que os conforma. Luta pelo direito à cidade, pelo acesso à educação, pelo direito à terra; dentre uma ampla gama de movimentos existentes, são as suas demandas, as suas questões alguns dos pontos que os diferenciam dentre si. No que concerne às lutas pela educação, Maria Antônia de Souza (2007, p. 225) nos indica de que o seu início remonta ao contexto dos movimentos populares urbanos. As demandas desses movimentos são constantemente redimensionadas ao longo do tempo, porém, ainda assim, quase sempre estão associadas à luta pelo acesso irrestrito às escolas, ou, em um período mais recente, à luta pela melhoria da qualidade do ensino. 75


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E, assim, corre a história de lutas no país, e na esteira dos acontecimentos mudam os conflitos, emergem novas questões, surgem novos atores, contudo, há uma permanência comum no bojo dos movimentos sociais pela educação12: a questão da cidadania (GOHN, 2009, p. 56). Sobre esse referencial (da cidadania), devemos lembrar-nos de uma importante crítica feita por Arroyo ([1987] 2010), em fins dos anos 1980. Segundo o autor - num exercício que intenta observar a educação sob a ótica dos “excluídos” -, a cidadania jamais será doação do Estado, ao passo que é, essencialmente, uma conquista dos excluídos, e que se dá a partir do exercício político e das lutas. Notadamente dirigida à educação escolar, a crítica de Arroyo ([1987] 2010) refere-se ao seu aspecto segregatório, ao advertir que ela não confere cidadania a alguém que esteja dela excluído13. Então quem conferiria uma educação cidadã a esses grupos? Em contraponto à tese da imaturidade que enuncia o despreparo das camadas populares para a participação e para a cidadania (e que é uma constante na história do pensamento e da prática política), o autor ensina-nos que são os próprios excluídos é que se educam, sobretudo, no bojo das lutas de resistência e de reivindicação (ARROYO, [1987] 2010, p. 37). Deste modo, tal reflexão de Miguel Arroyo acaba por evocar o aspecto educacional dos movimentos sociais. Seja nos movimentos de luta pela educação, sejam em outros que lutam pelo acesso à terra. A demanda não importa, em todo movimento social há um aprendizado que emerge da própria prática social. Ao se sublinhar o caráter educador implícito aos movimentos sociais, devemos, contudo, reconhecer duas importantes premissas: 1) O processo de ensino-aprendizagem é passível de ser realizado em múltiplos espaços educativos, o que não significa negar a significativa relevância histórica da instituição escolar (BRARDA & RÍOS, 2004, p. 34). 76

2) A existência de uma concepção de educação que não se restrinja ao aprendizado de conteúdos específicos (tais como aqueles transmitidos no processo pedagógico formal). Ou seja: o conceito de educação aqui deve ser visto de forma ampliada, sendo relativo a todos os processos que envolvem a aprendizagem de novas informações (acerca de novos hábitos, valores, atitudes e comportamentos), que após sistematizadas, codificadas e assimiladas, constituem elementos fundamentais para geração de novas materialidades e novas práticas sociais, fundamentais para a formação dos indivíduos enquanto cidadãos (GOHN, 2009, p. 56-57). Desse modo, o que queremos dizer é que quando falamos de educação não a reduzimos à instituição escolar, mas, é necessário entendê-la tal como um processo complexo que se desenvolve em múltiplos espaços, indo para “além dos muros da escola”. A tarefa educativa, portanto, não se centraliza em um só sujeito histórico, como o professor, mas institui outros atores. Desde os anos 1980, Maria da Glória Gohn trabalhava com o pressuposto de que os movimentos sociais (e outras práticas associativistas) levavam consigo um caráter educativo para e que expunham desde aos seus participantes e àqueles que eram alvo de seus protestos (GOHN, 2010, p. 9). E foi a própria autora quem construiu a categoria de educação não formal para exemplificar o processo de aprendizagens que se dá no bojo dos movimentos sociais. A categoria de educação não formal, entretanto, não se refere apenas àquela praticada no interior dos movimentos sociais, mas também a toda e qualquer prática onde haja transmissão de conhecimentos que não estejam vinculadas à educação formal, isto é, escolar14. Porém, segundo a autora, mesmo com o passar das décadas, os movimentos sociais continuam sendo um dos grandes “celeiros” dessa prática educativa, sobretudo aqueles que atuam no G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 6 7 - 8 0 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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campo da resistência social e que se preocupam com processos de autonomia e emancipação social (GOHN, 2010, p. 13). As lutas e as demandas dos movimentos sociais ancoram-se sempre em um substrato espacial específico. Em outras palavras, é notável lembrar que as questões de cada movimento emergem a partir do contexto na qual ele está inserido (as indagações e as insatisfações surgem a partir do “chão que se pisa”). Porém, não é só o estopim que gera a formação dos movimentos o fruto único deste concreto imediato; a construção das práticas (e dos saberes delas decorrentes) nascem e se fazem, também, na dimensão cotidiana do espaço. Portanto, se os saberes e práticas se constroem e se realizam no cotidiano, é a partir de sua investigação que se torna possível avaliar as suas engrenagens. Porém, somente o pesquisador ou um cidadão “letrado” detêm o “monopólio” de tal leitura? Na próxima parte a preocupação está em elucidar acerca do papel que uma “pedagogia urbana” pode oferecer na formação de um cidadão crítico, ciente da complexidade das relações que se materializam no cotidiano urbano, e, sobretudo, conhecedor da sua importância enquanto cidadão na tomada de decisões sobre a cidade. POR UMA EDUCAÇÃO PARA ALÉM DOS MUROS DA ESCOLA: A PEDAGOGIA URBANA A luta por uma educação popular na cidade é um importante horizonte presente nos imaginários educacionais utópicos. Um exemplo está no pensamento de Paulo Freire. Quando o educador nos diz da necessidade de uma educação popular, ele se refere à construção de saberes que reconheçam a presença das classes populares dentro das escolas públicas que se tornariam realmente progressistas à medida que fossem criadas novas práticas democráticas que atendessem a essas demandas (FREIRE, 2001, p. 39). E ao conjunto de saberes e práticas que são construídos à maneira de empoderar as G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 6 7 - 8 0 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

classes populares urbanas e auxiliar na formação humana crítica e autônoma podemos reconhecer a chamada pedagogia urbana. Ancorada na premissa de que a cidade (a exemplo do que ocorre na família e na escola) tem assumido um papel de extrema importância na educação dos indivíduos através da vivência e experiência urbana cotidiana, a ideia de pedagogia urbana pressupõe a construção de estratégias educadoras que ajudem a organizar e preparar a sociedade para uma participação lúcida e com conhecimento de causa, colaborando para a ampliação da consciência de direitos, das crianças e adolescentes aos adultos (SOUZA, 2006, p. 267). No texto “O papel da educação no combate a violência urbana no Brasil”, Souza (1997), traz algumas contribuições e questões que ajudam a refletir sobre a construção de uma pedagogia urbana. Dentre as questões, é listada tanto a preocupação operacional no que diz respeito do que seja a tal pedagogia quanto à funcionalidade e os agentes sociais que participam desta construção. Uma primeira questão a ser definida para a construção de uma pedagogia urbana é a superação de práticas e discursos alicerçados em restrições ideológicas e disciplinares, haja vista a complexidade que a sociedade possui. Logo, segundo o autor, a proposta é: (...) concretamente, refletir sobre a questão das potencialidades da educação sem esquecer as restrições impostas pelas condições materiais de reprodução da sociedade (recusando-se, portanto, um pedagogismo voluntarista e estreito), mas, ao mesmo tempo, reconhecendo que o comportamento individual e a psicologia social não são inteiramente controlados pela dinâmica das relações sociais de produção (distanciando-se, assim, de um materialismo economicista). (SOUZA, 1997, p. 97) Assim, no ensino fundamental e médio, são de grande relevância os trabalhos didáticos no 77


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ensino-aprendizagem de construção de valores e saberes sobre direitos humanos, cidadania e as práticas que a garantem em plenitude. Porém, é preciso saber contextualizar as práticas e os discursos que constituem estes saberes e valores para superar o contexto de desigualdade e injustiça social, visando não comprometer os objetivos de uma educação para a cidadania autônoma e não subserviente. Segundo o autor, “a acomodação dos indivíduos perante um status quo injusto não é, e que sobre isso não paire qualquer dúvida, o desejo do autor das presentes linhas, mas sim uma educação para a cidadania visando a uma mudança social construtiva” (SOUZA, 1997, p. 97). Diante deste contexto, o autor sugere que educar para a cidadania significa um despertar da consciência de direitos em ambos os meninos: no menino favelado, a consciência de que as diferenças que o fazem sofrer não são ‘fenômenos naturais’, mas problemas sociais, que podem ser solucionados, embora para isso a via verdadeiramente construtiva seja aquela que instrui, politiza, organiza e evita as reações ‘não-políticas’; no menino do asfalto, a mesma consciência da natureza histórica e social de problemas como a pobreza e a segregação, levando-o a substituir o preconceito contra o menino favelado pela solidariedade para com esse outro menino (SOUZA, 1997, p. 98). Refletindo sobre essa ideia, na Geografia, como nas outras disciplinas, é preciso desmistificar e desconstruir certos saberes, conteúdos e práticas cotidianas que tornam a formação humana rígida, conservadora e apolítica. Ou seja, é preciso desmistificar conhecimentos sobre favelização, periferização, as condições e os modos de vida das classes sociais, em especial as populares, entre os diferentes contextos sociais de educandos. A compreensão da alteridade e de valores sobre solidariedade e ajuda mútua são de extrema importância para a construção de saberes e práticas para a educação para a cidadania que buscamos ou projetamos. Porém, é necessário 78

deixar claro que educar para a cidadania não é instruir, politizar e construir saberes, unicamente, por e a partir das razões das classes oprimidas, mas sim uma relação dialética de educação, que visa influenciar positivamente e humanisticamente sobre as injustiças sociais e as suas possibilidades de superação tanto os oprimidos quanto os privilegiados. Um grande desafio a ser enfrentado na construção desta pedagogia urbana é como lidar com os problemas da estrutura educacional das classes populares, como por exemplo, as elevadas taxas de evasão escolar e repetência entre as crianças pobres. Para enfrentar essa situação, precisa-se decididamente acabar com a ideia de que a educação só é construída no âmbito escolar e sim valorizar e construir práticas de educação popular nas diferentes dimensões da vida cotidiana. Pois, assim, haveria possibilidades de superação dos problemas referentes a não universalização do ensino entre a população e a promoção de saberes para a construção de uma cidadania plena. CONSIDERAÇÕES FINAIS Afinal, como se estabelece a relação entre a cidade e a educação? A fim de responder a essa pergunta, o debate aqui travado partiu da proposição de que tal relação é, antes de tudo, dialógica. Uma relação que pressupunha diálogo, não havendo maior peso para um lado em detrimento ao outro, é o cerne da natureza da relação cidade-educação. Portanto, a pergunta sobre o papel que a cidade exerce sobre a educação deve ser respondida justamente à maneira de ressaltar o seu dialogismo: visto que não é agente, a cidade também não é um campo neutro, ela inspira e redimensiona práticas de educação, e, logo, incluí-la na agenda de investigações geográficas sobre a educação torna-se, hoje, essencial. Partindo de um olhar desde a cidade, buscamos compreender a natureza dos fenômenos educacionais de modo mais abrangente, reconhecendo, sobretudo, outros contextos nas G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 6 7 - 8 0 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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quais eles se realizam e, simultaneamente, podem ser investigados. Ancorado nessas premissas, a estruturação do trabalho foi feita na intenção de elucidar algumas perspectivas do debate que relaciona cidade-educação fazendo clarear um leque de trilhas a se percorrer em possíveis abordagens geográficas da temática. Mesmo que à título de nota, devemos lembrar que concebido no seio da Geografia e Ensino este trabalho foi construído amparado no pressuposto que uma investigação geográfica que aborde a temática da educação não precise se ater necessariamente às discussões pertinentes à educação geográfica. A pergunta que se faz ao fenômeno que define o percurso a se seguir, e não o fenômeno que tem de aprisionar o olhar que se quer ter. E aqui o nosso olhar se focou em tornar inteligíveis os caminhos para a compreensão da relação cidade-educação.

Bernett (1997, p.17). Para o autor as dimensões interpretativas possíveis para entender a relação cidade-educação se resumem à tríade na/da/com, isto é: aprender na cidade; aprender da cidade; e aprender (com) a cidade. Com origens ainda na antiguidade e sistematizado no século XVII, o pensamento higienista foi amplamente reforçado na Inglaterra durante a Revolução Industrial. O início do processo de urbanização e a consequente deterioração da qualidade de vida, traduzida pelas intensas epidemias que assolavam as grandes cidades, foram elementos centrais nos quais os médicos se balizaram para associar os diversos elementos do quadro circundante como sendo as principais razões para tais mazelas. Os “vilões” detectados pelo saber médico iam desde os “ameaçadores” miasmas (vapores oriundos de áreas onde se encontra grande volume de matéria orgânica em decomposição, tais como pântanos e mangues), até as “causas sociais” da insalubridade, evidenciadas por meio da superlotação e dos aspectos insalubres das habitações. E é em nome do saber médico que as cidades não só passam a serem vistas como privilegiados objetos de análise e reflexão, mas se tornam, também, palco onde se realizariam inúmeras intervenções nos mais diversos contextos urbanos (ABREU, 1996). 7

Com mais de cem pesquisadores e sob coordenação geral do IPPUR – UFRJ, o Observatório das Metrópoles realiza de forma sistemática diversos estudos concernentes às (distintas) temáticas da questão urbana brasileira num universo que engloba quatorze metrópoles. Por sua vez, a problemática referente à segregação sócio-espacial e os seus efeitos sobre a educação tem resultado numa vasta gama de trabalhos empíricos que são publicados sob a forma de teses, dissertações, artigos e livros. 8

Isto é, o capital cultural e um ethos (sistema de valores) que cada família transmite aos seus filhos. 9

É aquela que interessa aos profissionais de ensino e, mesmo se situada num ambiente não propício, é capaz devido a fatores inerentes a escola (FLETCHER, 1998). 10

De difícil mensuração, o “prestígio escolar” relaciona-se a uma boa reputação conquistada pela aquela unidade escolar detentora de diversos atributos, dentre os quais o desempenho do alunado em termos de aprendizado (COSTA, 2008). 11

NOTAS O artigo é derivado da dissertação “Para além dos muros da escola: caminhos para compreensão da educação na cidade” (GOMES, 2013). 1

Especialmente na Geografia Urbana o domínio da educação continua a ser um campo negligenciado (Mac FARLANE, 2011, p. 360). Contudo, o mesmo não se pode dizer da Geografia e Ensino que de maneira recente tem demonstrado um particular interesse pela dimensão educativa das cidades. 2

Roberto Marques (2007) traz uma investigação sobre a escola partindo de uma perspectiva espacial. O autor traça uma leitura de diversos elementos inerentes ao cotidiano escolar abalizando-se nas categorias de análise do espaço de Milton Santos. 3

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Preocupação latente nos trabalhos sobre a geografia da infância.

É válido lembrar, entretanto, que a disciplina é antiga, não foi inventada na modernidade, começou há muito tempo nos colégios medievais. Porém, a partir do século XVIII ela foi refinada, expandiuse para escola elementar, para o exército, para os hospitais e, no século XIX, para as fábricas (FOUCAULT, 2009). 5

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À maneira de melhor ilustrar, tomamos como exemplo o caso de

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Neste nosso século, as demandas educacionais que contribuem para a efetivação da cidadania (não apenas como direitos) podem ser passíveis de exemplificação quando nos lembramos das lutas por ações afirmativas, como as das cotas para negros e índios nas universidades; as lutas dos movimentos sociais rurais pela educação do campo; ou mesmo a luta pela inclusão de pessoas com necessidades específicas no espaço escolar (SOUZA, 2007, p. 228). 12

Lembremos, contudo, que tal fala do autor é datada, pois, este escreve em fins dos anos 1980, um ano antes da promulgação da Constituição, e uma década anterior àquela onde se viu um amplo processo de universalização do acesso à escola no Brasil. Feitas essas ressalvas, o que queremos aqui alertar, entretanto, é que quando o Arroyo se refere à exclusão dos “excluídos” da educação formal (escolar), quer dizer isso de forma prática, ao passo que naquele contexto era notável o contingente populacional que não tinha acesso à escola básica. 13

Há exemplos emblemáticos de saberes e práticas criadas no bojo de movimentos sociais, porém, dirigidas para um tipo de educação escolar, como é o caso do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), que se utiliza de materiais didáticos por eles mesmos desenvolvidos. 14

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PR ÁTI CA S PE D A G ÓG ICAS

FUNK E GEOGRAFIA: BREVES REFLEXÕES E RELATOS DE EXPERIÊNCIAS PEDAGÓGICAS FUNK Y GEOGRAFÍA: BREVE REFLEXIONES Y RELATOS DE EXPERIENCIAS PEDAGÓGICAS

L E O NA R D O D E CASTRO FERREI RA Licenciado e Mestre em Geografia (UFF) Professor do Colégio Pedro II – Campus Duque de Caxias leocastro_f@y ahoo.com. b r

RESU M O: O P R E S E N T E T R A B A L H O P O S S U I C A R ÁTE R RE FLE XIVO E RE LATA ALGUM AS E XP E RIÊ NC IAS RE LAC IONADAS À PRÁTI CA PED AGÓG ICA D O A U T O R . EL A B U S C A , S O B R ET U D O , U TILIZAR A ABORDAGE M DO FUNK , E NQUANT O E XP RE S S ÃO S OC IOCULTURAL , COMO U M D OS IN S T R U M E N T O S P O S S Í V E I S D E C O N S TR UÇ ÃO DO S ABE R GE OGRÁFIC O NO E S PAÇ O E S C OLAR. O T RABAL HO ESTÁ D IVIDID O E M T R Ê S PA RTE S . N A I N T R O D U Ç Ã O P R O C URA-S E AP RE S E NTAR DE M ANE IRA BRE VE E C RÍT IC A O FE NÔM ENO F UNK, APO N TA N D O S E U S P O N TO S D E TE N S Ã O . N U M S EG U N DO M OM E NT O, S ÃO RE ALIZADOS RE LAT OS DE T RÊ S E XP E RIÊ NC IAS: NO VI I CON G R E S S O B R A S ILE I R O D E G E Ó G R A F O S ( C B G ) , N U M A E S C OLA M UNIC IPAL E M VIGÁRIO GE RAL E NO C OLÉ GIO P E DRO I I . POR FIM, S Ã O FE ITA S A LG U M A S C O N S I D E R A Ç Õ ES A C ER C A DA AP ROP RIAÇ ÃO DO FUNK PARA A P RÁT IC A P E DAGÓGIC A E M GEOGRAF I A. PALAVRAS-CHAVE: FUNK; GEOGRAFIA; ENSINO; RELATOS.

RESU M E N : E S T E T R AB A JO TI EN E U N C A R Á C T E R R E F L E XIVO Y ALGUNOS INFORM E S RE LAC IONADOS C ON LAS E XP E RIENCI AS DE LA PR Á C T IC A D OCE N TE D EL A U T O R . EL L A S O B R E T O DO T RATA DE UT ILIZAR E L E NFOQUE DE FUNK , M IE NT RAS QUE EXPRESI ÓN SOCIOCU LT U R A L, COM O U N O D E L O S I N S T R U M EN T O S DE LA C ONS T R UC C IÓN DE L C ONOC IM IE NT O GE OGRÁFIC O E N LA ESCUEL A. EL TR A B A J O S E D IV IDE EN T R ES PA RTE S . EN L A I N TRODUC C IÓN S E INT E NTA P RE S E NTAR BRE VE M E NT E Y C RÍT IC A MENTE EL FENÓME N O FU N K , S E Ñ A L A N D O S U S P U N T O S D E TE N S I ÓN. UN S E GUNDO T IE M P O, S E RE ALIZAN INFORM E S DE T RE S E XP E RI MENTOS: EL CON G R E S O B R A S IL E Ñ O D E G EÓ G R A F O S ( C B G ) , U NA E S C UE LA M UNIC IPAL E N VIGÁRIO GE RAL Y E N C OLÉ GIO P E DRO I I . POR ÚLTIM O, A LG U N A S C O N S I D ER A C I O N E S S O B R E L A A P R OP IAC IÓN DE L FUNK PARA LA P RÁC T IC A P E DAGÓGIC A E N LA GEOGRAF Í A. PALABRAS C LAV E: FUNK; GE OGRAF Í A; L A E DUCACI ÓN; I N FO R M E S .

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P R ÁT I C A S PED AG Ó G ICAS | FU NK E G E O G R A FIA

INTRODUÇÃO O funk carioca, expressão sociocultural construída ao longo de décadas no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, através da re-tradução do funk estadunidense sob outras coordenadas espaço-temporais, fincou o seu centro de criatividade/produção na periferia e nas favelas. Até o início da década de 90 seu ritmo animava bailes em clubes na periferia, nos quais o perfil social dos frequentadores era relativamente homogêneo. Ao longo dos tempos, o funk, ora potencializou o seu alcance para outros espaços, ora sofreu retração, tornando-se recluso em seu centro de origem. Esses movimentos são reflexos de processos de espetacularização e de criminalização, levados a cabo por diferentes agentes, tais como: o Estado, a grande mídia, o monopólio das equipes de som, a indústria fonográfica, a sociedade civil e, evidentemente, o(s) “funkeiro(s)”1. Pode-se dizer que a história do funk carioca é, portanto, uma história de amor e ódio, que segue uma linha tênue entre esses dois sentimentos. O processo de espetacularização do funk, através da sua transformação em cultura mass media por grupos que enxergaram e aproveitaram o seu potencial de consumo e de acesso às camadas populares, acabou por ampliar as suas fronteiras para espaços antes estranhos a ele. Desse modo, é possível ver frequentemente suas representações caricatas em novelas, propagandas e programas de tevê, bem como a sua incorporação à programação de boates e casas de espetáculo mais elitizadas. Não raro é comum ver artistas de funk realizando apresentações em festas de casamento, de formatura ou em bailes de debutantes, além de shows no exterior, onde o funk goza do status de música eletrônica brasileira. Outra curiosidade é o aumento do seu uso como ferramenta de propaganda eleitoral por políticos, que veem em seus jingles investidos da irreverência e do som visceral, próprios do funk, uma oportunidade de arrebatar votos, sobretudo, da população mais carente. Esses recentes processos de cooptação 82

implicaram na sua explosão escalar, que, por sua vez, culminou com a sua heterogeneização. Portanto, aquele quadro estritamente segregado na década de 80, e que sofria idas e vindas na década de 90, não pode ser considerado, nos últimos anos, algo pleno. Na verdade, o funk se metamorfoseou numa expressão sociocultural extremamente complexa. Ele produziu uma grande multiplicidade territorial2, além de ter gerado uma respeitável diversidade de subgêneros3. Sua densidade espacial é assombrosa e dá margem a diferentes perspectivas de abordagem geográfica do fenômeno. Apesar da sua espetacularização, a estigmatização e a criminalização do funk é latente. Na verdade, o processo de criminalização do funk é o próprio processo de criminalização da pobreza. Em outras palavras, antes do preconceito ser contra o funk, ele existe sobre a população de pobres, negros e favelados. Ou seja, o preconceito é contra quem protagoniza o funk. Assim, a existência de um MC4 de classe média ou de um funk cantado por uma socialite, pode, de maneira geral, ser considerado grotesco pela sociedade (em especial pelas elites), mas não ameaçador, pois não gera um grande incômodo. Entretanto, um MC oriundo de uma favela ou uma menina pobre proferindo os mesmos versos que a socialite, em geral, causam um imenso desconforto entre as elites. Para ilustrar tal situação, apresento uma experiência relatada pela historiadora Adriana Facina, que ao contribuir para a mobilização política de um grupo de funkeiros antigos5, promoveu uma roda de funk no playground de um condomínio de classe média no qual residia. As músicas cantadas na roda nada lembravam os funks mais erotizados, tratavam-se, na realidade, de raps antigos, conscientizadores e que, em geral, narravam o cotidiano das favelas cariocas. Entretanto, Facina coloca que, mesmo o volume do som sendo considerado adequado, a sindica do prédio constantemente implicava com o volume do som na roda. Segundo ela, o que lhe causa estranhamento é que a mesma postura não era tomada nas demais festas realizadas no G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 8 1 - 8 9 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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espaço, inclusive infantis, que reproduziam funks erotizados em alto volume. Fica claro que existe uma conveniência na apropriação do funk. Embora pessoas de classe média ou de classes mais abastadas consumam o funk e lhe atribua os seus próprios significados, ao mesmo tempo o negam, na medida em que não constroem em torno dele uma identidade ou não o assumam como estilo de vida. Dificilmente veremos essas pessoas ouvindo funk em casa ou mesmo andando com um radinho ao pé do ouvido pelas ruas. Para elas o funk é uma territorialidade descartável, uma vez que elas possuem meios mais eficazes de ativar e desativar múltiplas territorialidades na cidade. Já a população das periferias e favelas constrói sobre o funk uma territorialidade mais elementar, menos descartável, pois o território do funk está sobreposto simultaneamente ao do seu espaço vivido. Para o funkeiro artista, o funk também se traduz numa territorialidade mais elementar, uma vez que é o seu meio de vida, e mesmo extraindo dele recursos que ampliem sua mobilidade e circulação na cidade, ela não pode ser simplesmente dissolvida, pois ele carrega consigo a sua denominação de MC ou de Bonde6. Pode-se dizer que sua identidade encontra-se em emulsão no funk. Talvez por essa razão, e para fugir dos estereótipos e para alcançar outros públicos e segmentos, alguns artistas adotam como estratégia a desvinculação da imagem do funk da sua identidade. De que modo? Retirando a denominação que o qualifica como funkeiro. Assim vemos a MC Anitta tornar-se apenas Anitta e o MC Naldo virar o pop Naldo Benny. O funk não existe ao acaso, seu processo de reinvenção se confunde e é fruto do próprio processo de construção do espaço da cidade. Assim como ela, ele é cheio de tensões e contradições. Ele, em si, é uma expressão sociocultural produzida e retroalimentada para agitar as existências das camadas mais empobrecidas. O funk se traduz numa forma de diversão acessível e democrática, numa válvula de escape do cotidiano e da cidade que mais segrega do que congrega, numa forma de ressignificar espaço. Devido a todos esses G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 8 1 - 8 9 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

atributos e a sua forte relação com a juventude, o funk se coloca como um importante instrumento para pautar os mais variados debates na escola, além de possibilitar um outro olhar sobre a cidade, ao espelhar as suas tensões e as suas contradições. EXPERIÊNCIAS PEDAGÓGICAS: PERSPECTIVAS DISTINTAS EXPERIÊNCIA NO CBG Nesse ano apresentei um trabalho no VII Congresso Brasileiro de Geógrafos. Tratava-se do meu projeto de dedicação exclusiva no Colégio Pedro II intitulado “Baile Funk Geográfico: Projeto e Metodologia de Ensino em Geografia”. Em resumo, o projeto tem como principais objetivos: o uso do “Funk” e seus variados elementos para auxiliar no estudo de diferentes conceitos e temáticas da geografia; a compreensão da produção do espaço metropolitano do Rio de Janeiro, através da dinâmica da (re)produção do funk carioca e da construção de seus múltiplos territórios; debater temas como preconceito, gênero, violência, política, criminalização da pobreza, o papel da grande mídia, a ação do Estado, colocando em relevo sujeitos e discursos invisibilizados na cidade. O trabalho foi alocado num espaço de diálogos sobre práticas pedagógicas, no qual a maior parte dos trabalhos apresentados tinha a música como instrumento pedagógico central. Por algumas questões técnicas apresentei o trabalho no último dia. Ao longo das apresentações uma situação me incomodou e chamou minha atenção: o discurso recorrente de que os estilos musicais que os professores e graduandos-estagiários de geografia se propunham a trabalhar tinham como justificativa combater o consumo do funk entre os alunos7. Em geral, essa alegação vinha acompanhada daquela velha estereotipagem do ritmo, enquanto uma música pobre, atrelada ao crime organizado, desbocada e com forte conotação sexual. Estamos falando de professores e universitários de geografia. Isso me 83


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preocupa e me assusta, na medida em que são pessoas que estão na sala de aula e que em tese deveriam ter a tarefa de estimular um pensamento crítico, e de quebrar estereótipos e preconceitos. Assusta-me também, porque com isso pode-se mensurar, ou melhor, perder a dimensão do nível que esses estereótipos e preconceitos encontramse disseminados e introjetados na sociedade em geral. Quando o monitor-coordenador do espaço de diálogos e práticas mencionou que ali haveria uma apresentação de trabalho sobre funk, nitidamente foi gerado um desconforto na sala. Então tomei a palavra, me apresentei e sem criar um clima de embate, comecei a fazer algumas considerações. A primeira questão colocada foi a de que os trabalhos apresentados (o rock, o maracatu, o reggae e o xaxado) eram entendidos meramente como um ritmo musical e que assim os colegas enxergavam o funk. Quando falo em trabalhar pedagogicamente o funk, proponho ultrapassar a sua condição de gênero musical e chegar a sua qualificação enquanto expressão sociocultural, mais especificamente, subalternizada na cidade. Isso é o que permite superar uma visão rasa e apreender o fenômeno em seu conjunto, não como uma parte descontextualizada. Isso, também, é o que permite não só considerar o que o funk é hoje, sob o risco de naturalizá-lo, mas compreender o seu processo de construção. Assim, muito mais do que interpretar uma música, os colegas foram provocados a contextualizar o processo de formação do funk carioca, assim como poderiam fazer com os ritmos que se propuseram a levar para a sala de aula. Deste modo, pode-se fazer uma leitura de espaço a partir da perspectiva do funk, que como afirmamos anteriormente é reflexo da atuação de diferentes agentes, processos, tensões e contradições na cidade. Identificá-los e contextualizá-los junto aos alunos é, além de ser um grande exercício geográfico, um exercício de cidadania e de fazer político. Na verdade, trabalhar com uma expressão sociocultural e o seu caráter pedagógico desafia a um esforço metodológico mais intenso. Assim, pode-se pensar, por exemplo, como o fenômeno 84

se espacializou ao longo do seu processo histórico, quem são os agentes que se imbricaram nesse processo, qual a relação deles e as suas intenções com o fenômeno, quais debates sobre a cidade e a sociedade é possível pautar a partir da sua perspectiva, etc. Minha intenção não é a de advogar a favor do funk e desqualificar a importância de outros gêneros musicais em sala de aula. Pelo contrário, acesso à cultura nunca é demais, em especial no ambiente escolar. Mas, essas coisas não se excluem. Não devemos criar polarizações e hierarquizações, pois elas são tão radicais quanto antipedagógicas. O que quero dizer é que não se pode simplesmente desconstruir uma territorialidade elementar. Não cabe ao professor, em geral, um estranho a realidade e ao espaço vivido do aluno, afirmar que o funk não presta e ele tem que ouvir isso ou aquilo. Isso só criaria um estresse nada profícuo à aprendizagem. Por que ao invés disso, perguntei aos colegas na sala, não consideramos e tomamos como ponto de partida a realidade do aluno, por exemplo, o próprio funk que ele ouve? Até mesmo o funk dito “proibidão”8 ou o mais erotizado. Por que ao invés de expurgálo para fora de sala, como se não existisse, não o trazemos para o debate e o problematizamos? Por exemplo: qual é a razão da existência deste ou daquele gênero de funk? E, qual a razão de ser tão consumido, não só pelo aluno que está ali, mas também pelo playboy que sobe os morros para frequentar um baile na favela? Por que não levamos o aluno a pesquisar e a refletir sobre isso? No dia do meu trabalho, após minha apresentação, diversas intervenções e perguntas foram colocadas. A maioria delas sinalizou no sentido de parabenizar o trabalho e também de apontar para uma inversão de opinião sobre o funk. Muitos colegas trocaram contatos e falaram em introduzir o debate sobre a temática na escola, outro perguntou sobre a possibilidade de fazer uma palestra para seus alunos. Enfim, considero que o debate foi bastante fecundo e serviu para arrefecer certos estigmas e preconceitos sobre o funk e sobre o próprio aluno. Da mesma forma, existiram G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 8 1 - 8 9 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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trabalhos interessantes e que abriram meus olhos para outras possibilidades de abordagens metodológicas, que, certamente, também me fizeram repensar a minha metodologia. EXPERIÊNCIA NUMA ESCOLA DE VIGÁRIO GERAL Em 2009, observando os alunos da Escola Municipal Jorge de Gouvêa, localizada em Vigário Geral, pude perceber como o funk estava direta ou indiretamente ligado ao cotidiano dos jovens, tanto na vida daqueles para quem o funk é parte fundamental das suas práticas ou mesmo dos que, embora não gostem de funk, são obrigados de alguma forma a conviver e a se relacionar com esta prática sociocultural, uma vez que ela permeia todo o seu espaço de vivência e é uma forma de socialização com os demais jovens, pelo menos no que tange à linguagem e aos códigos, a exemplo das “gírias”. Compreendi logo que o funk também poderia ser um instrumento para cativálos e tornar a escola mais atrativa, minimizando o efeito da escola enquanto “espaço estranhado” para os alunos. A primeira iniciativa foi a de promover uma festa jovem no dia das crianças, com música, dentre elas, o funk, é claro, dança, comida e algumas brincadeiras de recreação. A escola não dispunha de muitos recursos para isso, então pedi sugestões aos alunos. Fechamos a aparelhagem de som com eles, no qual um grupo conseguiu uma “miniequipe de som” da própria favela a um custo de R$ 100,00. Eles próprios também iriam discotecar na tal aparelhagem, que se resumia a quatro caixas de som, uma mesa de som, um microfone emprestado pela escola e um computador com músicas em formato MP3, além de um software de mixagem. Conversei com eles antes e fiz uma única exigência: não poderiam tocar nenhuma música que fizesse qualquer tipo de apologia ou tivesse conteúdo pornográfico. Ao chegar à escola no dia da festa, por volta das oito horas da manhã, para ajudar no término dos preparativos do evento que se iniciaria às dez horas, lá estava a “miniequipe de som”, terminando de montar o equipamento pelos alunos. Após a montagem, começam a tocar as primeiras G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 8 1 - 8 9 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

músicas. Era pagode que tocaria até a primeira hora de iniciada a festa, ainda com um público pequeno, pois poucos alunos haviam chegado. Passavam-se os minutos, o DJ continuava com o pagode e poucos alunos continuavam chegando. Pensávamos que a festa não passaria daquilo. Por volta das onze horas, os alunos continuavam a chegar e em pouco tempo a escola finalmente estava cheia. Foi então que o DJ, nosso aluno do 8° ano, corta o pagode e outro aluno, do 9° ano, com o domínio do microfone anuncia: “Alô Vigário, ta começando o baile! Cadê o gritinho da mulherada?... Solta o pancadão DJ!” Logo o DJ solta uma vinheta anunciando “os garotos da laje”, denominação da equipe formada pelos alunos. Na sequência colocou-se um funk, só batida, não havia letra. Tratava-se de uma montagem. Àquela altura eles haviam tomado a dianteira da festa, que já havia virado baile. Os alunos pareciam realmente saber o que queriam para celebração do dia das crianças e se assumiram como protagonistas do seu evento. Qualquer planejamento prévio que seria instituído pela direção e pelo corpo docente, como as tais atividades de recreação, havia ido por água abaixo. Deixamos acontecer, ou como disse um aluno no dia: “deixa rolar professor”. O aluno, com o microfone na mão, como um verdadeiro mestre de cerimônia (MC), apresentava o baile, interagia com o DJ, com o público (o restante dos alunos) e apresentava as atrações, que eram compostas pelos “bondes” de funk formados de alunos da própria escola. Aliás, embora soubesse que muitos alunos tinham seus grupos de funk, não imaginava que existissem tantos, o suficiente para animar todo o “baile” da escola. Soube que alguns deles já se apresentaram até mesmo em alguns bailes de pequena expressão nas proximidades de Vigário Geral. As meninas cumpriam um papel diferenciado no baile, postavam-se como expectadoras e, aos gritos, observavam, admiravam e deliravam com a performance de dança dos meninos. Impressionante observar como, naquele espaço, aqueles meninos eram famosos, pareciam ídolos locais. As meninas discutiam qual bonde era 85


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melhor: “os novatos”, “os avassaladores” ou “os violentos”? Notava-se também que elas tinham uma preocupação especial com a roupa, o baile para elas tinha um significado especial. Do lado dos meninos, os que tinham uma maior preocupação com o vestuário eram os que estavam envolvidos com as apresentações. Ali pude ter uma noção da real dimensão do funk na vida de muitos desses garotos. Nunca havia estado num baile funk com tantas atrações e diversão que tivesse um custo tão baixo. A escola apenas arcou com os R$ 100,00 da equipe e com o custo do lanche: cachorro quente, pipoca e refrigerante. De resto, o baile foi todo produzido pelos alunos que entraram com a equipe de som (aparelhagem) e material humano (DJ, MC e Bondes). Pode-se dizer que os alunos produziram aquilo que eles próprios consumiram. A cada bonde que se apresentava, o MC na chamada dizia: “mais uma vez, de Vigário para o mundo!”. Os meninos do bonde se apresentavam através da dança sobre a base do “tamborzão” que o DJ colocava. A música se resumia à batida eletrônica e os meninos não cantavam, apenas dançavam. A recorrência desse formato de apresentação me provocou estranhamento e me levou à seguinte indagação: Por que o funk destes meninos se resume à dança? Por que o funk que o DJ toca não tem letra? Não demorei a perceber que a resposta estava no tipo de funk que influenciava aqueles meninos, que é o mais corrente no alto circuito do funk, ou seja, aqueles com conotação sexual, além dos “proibidões”. Nessa vertente do funk, hoje hegemônica, ocorre um enfoque maior na batida e nas montagens em detrimento dos raps, das letras cantadas, que se resumem a poucos versos empobrecidos, porém irreverentes e exacerbadamente sensuais. Isso explica porque o DJ só tocava montagens. Como os alunos haviam se comprometido a fazer a “filtragem” das músicas que iriam tocar, apenas o que restou do seu acervo como músicas consideradas “apropriadas” naquela situação foram as montagens. Os alunos haviam cumprido a palavra à risca. Novamente pude perceber a importância que davam para aquele baile, pois 86

sabiam que a quebra do acordo poderia resultar no veto permanente pela direção daquele tipo de evento. A forma de representação do funk por esses jovens, observada na tríade roupa-músicadança, sinaliza para o reforço da valorização da estética estilizada, do predomínio de montagens, da formatação de bondes e na ênfase na dança, principalmente, nos chamados “passinhos”. Esses garotos nada mais são do que os novos artistas do funk que estão em gestação e que, possivelmente, alguns deles poderão daqui a algum tempo estar figurando no circuito dos bailes do Rio de Janeiro, do Brasil ou como queria “nosso” MC, sairão “de Vigário para o mundo”9. Na escola como, em geral, nos espaços populares, não raro podemos avistar meninos desde pequenos arriscando alguns “passinhos”. No baile, ao observar os garotos dançarem, constatava as habilidades corporais desenvolvidos por eles criativamente com a incorporação de acrobacias, rebolados, passos de frevo (muito comum hoje no funk) e até mesmo de movimentos inspirados em Michael Jackson, como o famoso passo “moon walker”. Destituídos de um aparato e de incentivos de políticas públicas e diante das suas restrições socioeconômicas, grande parte destes jovens exploram o único objeto do qual não podem ser destituídos, os seus corpos, seu maior patrimônio. Corpos que começam a conhecer desde cedo suas carências, quase que obrigam que suas brincadeiras partam de um relacionamento íntimo com o corpo e não da interatividade com objetos externos que o dinheiro possa comprar. O imediatismo, as necessidades e as carências, a sedução por serem reconhecidos para além dos limites da escola e o desenvolvimento de suas habilidades corporais são os ingredientes que impelem a estes jovens apostarem suas fichas no funk. Ontem, através do rap consciente, hoje, muito mais pela exploração da dança, do corpo e pela formação de bondes. Após o sucesso do “baile” dos alunos, elaborei com eles um projeto de funk na escola. Nele, junto aos alunos que mais gostam do estilo G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 8 1 - 8 9 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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musical, interpretamos letras de funk e discutimos o conteúdo delas. Os alunos foram incentivados a produzirem as suas próprias letras e ensaiarem suas coreografias. Nas festas da escola, eles tiveram a oportunidade de apresentar o seu trabalho para o seu público. Na verdade, o projeto só é um aprimoramento e a organização do que eles mesmos nos apresentaram no primeiro baile, demonstrando-nos suas potencialidades. Nesse sentido, eu era muito mais um incentivador e expectador. Não podia querer ensiná-los nada sobre funk, na verdade eu tinha muito mais a aprender. O máximo que podia fazer era apresentar o passado do funk que eles não conheciam e problematizar o seu presente. EXPERIÊNCIA NO COLÉGIO PEDRO II O Colégio Pedro II coloca outros desafios, devido o caráter mais heterogêneo do corpo discente. No campus Duque de Caxias pode-se perceber alunos com uma cultura musical mais eclética, outros mais polida, também uma forte influência gospel, devido a boa parte deles ser de evangélicos. Existem aqueles alunos que ouvem funk, geralmente por modismo e que se referem ao ritmo, na maior parte das vezes, com um ar de gozação, como se ouvissem por ser engraçado (“exótico”?) e ao mesmo tempo se distanciassem, negando-o. Evidentemente alguns podem se identificar mais, enquanto outros, não suportar a possibilidade de ouvi-lo. Essa diversidade é reflexo da própria diversidade quanto à origem socioeconômica dos alunos. Uma realidade diferente da qual experimentamos na escola de Vigário Geral, na qual existe um perfil social mais homogêneo do aluno. Enquanto em Vigário Geral ocorre a construção de uma determinada identidade em torno do funk, inclusive criando um estilo de vida, no Colégio Pedro II, observo um consumo do ritmo por conveniência (como algo descartável) ou, uma posição de repulsa quanto a esse estilo. Em ambos os casos, fica nítido o desconhecimento sobre o funk, enquanto expressão sociocultural, como, também, a presença do mesmo senso comum G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 8 1 - 8 9 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

disseminado, de uma maneira geral, no discurso da grande mídia e da sociedade conservadora. Dessa forma, os desafios colocados relacionam-se, principalmente, com o esforço de desconstruir estereótipos e preconceitos, pautando um debate sobre o processo de criminalização do funk e do seu centro de origem (favelas e periferias), logo, também, de criminalização da pobreza. Não se trata, portanto, de fazer os alunos gostarem de funk ou se tornarem “funkeiros”, mas de levá-los a refletir criticamente sobre ele, antes de reproduzirem clichês. Nesse sentido, aparecem como importantes recursos: a realização de palestras, a exibição de filmes, debates e o estímulo à pesquisa. Assim, busca-se evidenciar o processo de produção histórico-geográfico do fenômeno e a sua multiplicidade. Utilizar o funk como mecanismo para debater temáticas sociais10 de grande relevância para a geografia e enfatizar o seu fundamento espacial-territorial para analisar o espaço urbano e seus processos11, é outra via privilegiada de fazer pedagógico. CONSIDERAÇÕES FINAIS O uso do funk enquanto expressão sociocultural certamente se revela como um instrumento pedagógico eficaz no espaço escolar, na medida em que ele não só é revestido de um forte caráter espacial, por refletir processos importantes na produção do espaço da cidade, mas também por estar diretamente atrelado à juventude ou indiretamente aos valores da juventude, como a cultura estética dos corpos, a cultura imagética (visual) e sonora (musical). A intenção, sendo assim, não é a de se apoiar exclusivamente no funk no processo pedagógico, como se fosse um fio condutor, todavia, apresentar mais uma possibilidade, mais um instrumento de fazer pedagógico ao professor. Um instrumento complexo, é verdade, por vezes ignorado e estigmatizado. Um fenômeno controverso, investido de uma forte carga de preconceito, muitas vezes considerado assustador e, por isso mesmo, desafiador. Trazer o funk para o debate em sala de aula é também quebrar tabus e 87


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estereótipos. Afinal não seria esse um papel da escola? Existe no funk uma grande multiplicidade de atores, agentes, territórios, processos e também uma diversidade musical que o torna um fenômeno muito rico para ser apropriado pedagogicamente pela geografia. Numa próxima oportunidade, com o transcorrer do projeto de dedicação exclusiva, buscarei compartilhar atividades e resultados mais detalhados. Meu objetivo nesse texto foi o de apontar, de forma breve, algumas pistas do fundamento geográfico do funk, algumas temáticas passíveis de serem postas em pauta e alguns recursos pedagógicos. Vale ressaltar que não existe uma receita de bolo. Nesse sentido, o professor é desafiado a decifrar o seu aluno e as suas demandas, para traçar as estratégias de abordagem mais adequadas. É uma tarefa árdua, que exige sensibilidade, e naturalmente resulta em erros, mas também em acertos.

Mestre de Cerimônia (master of ceremonies) – artista de funk ou hip hop que canta e improvisa versos na forma de raps (rhythm and poetry – ritmo e poesia). 4

Grupo que se encontra à margem do mercado monopolizado pelas grandes equipes de som por não aderirem a vertente hegemônica do funk. Os funkeiros que o compõe criaram a Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (APAFUNK) em defesa da pluralidade do movimento funk e dos interesses dos seus artistas. 5

O bonde é uma formação artística no funk composta por pelo menos três integrantes, na qual a maior ênfase é na dança coreografada e também em “passinhos” solos e acrobáticos. Esse tipo de composição passou a ganhar força nos anos 2000 com o “Bonde do Tigrão”. Seu surgimento possui forte influência das chamadas “boy bands” dos EUA, como os Backstreet Boys e o N Sync. 6

Vale destacar que os colegas que apresentaram os trabalhos em questão, apontaram que seus alunos eram oriundos de favelas e da periferia do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Recife. 7

Tipo de funk que transita entre a narrativa nua e crua dos problemas da favela e a apologia ao poder do crime organizado. 8

Um bonde de funk chamado “Os Avassaladores”, que fez um sucesso relâmpago com a música “Sou Foda” – regravada até por artistas de outros segmentos, como o sertanejo – é formado por jovens de Vigário Geral. Um dos seus integrantes foi nosso aluno. Este grupo servia de grande inspiração para os jovens de Vigário Geral. 9

São colocadas inúmeras possibilidades de debates, como: o uso político do funk, sua apropriação econômica, a questão da violência (suas diferentes formas – material, simbólica e a violência do Estado?), a influência da grande mídia, a questão do gênero (o papel da mulher; a grande receptividade do funk às minorias sociais, como no caso dos homossexuais), preconceito e intolerância, a ação do Estado, a ação do crime organizado, globalização e funk, segregação socioespacial, dentre muitas outras. 10

NOTAS Uma identidade, na verdade, indefinida. Não existe um consenso do que determina o “ser funkeiro”, além disso, existem disputas internas entre grupos que reivindicam para si tal identidade como sendo mais legítima. Daí a expressão “funkeiro” poder ser pensada no plural, para que não ocorra o risco de homogeneizar as diferenças implícitas no termo. 1

Em 2010 identifiquei e analisei alguns dos territórios produzidos pelos funk carioca, tais como: os dos bailes comuns, dos bailes espetacularizados, dos bailes de corredor, dos bailes de favela com e sem presença ostensiva de narcotraficantes e dos bailes de favela “pacificados” (aqueles autorizados pelo comando da UPP). Para maiores detalhes ver Ferreira (2010). 2

Acontece que muitas vertentes e territórios do funk acabam sendo invisibilizadas na cidade, em virtude do interesse de grupos hegemônicos que desejam auferir maiores lucros com determinado segmento, em geral, formatando o ritmo a partir da perspectiva do erotismo e do duplo sentido. Ou ainda, o interesse de despolitizar e desmobilizar o movimento funk, uma vez que não interessa as elites dar voz aos pobres e favelados. Essa constatação permite realizar uma problematização sobre o enfoque político do funk. Para aprofundamento ver Facina (2009) e Ferreira (2011). 3

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O funk também revela diversas dinâmicas territoriais e processos de produção espacial da cidade. Para não me estender, citarei apenas um caso: a ação inquisitiva do poder público com relação aos bailes funk, no contexto de implantação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) em favelas cariocas. Em geral, a postura do comando da polícia é a de proibir a realização de bailes funk nesses espaços, por considerarem estarem eles associados ao poder do tráfico de drogas. Evidentemente que o funk absorveria o poder do tráfico e vice-versa, pois se tratam de territórios sobrepostos num mesmo substrato material. Mas, não significa de modo algum que o funk é o tráfico, e vice-versa. Acontece que ao proibir especificamente o baile funk, e não outras manifestações festivas, muitos jovens que tem nele sua principal forma de diversão e sociabilidade acabam migrando para outras favelas sem UPP para terem acesso a ele. Isto é considerado um fator de risco pelos pais desses jovens, que não sabem onde os filhos se encontram e pelas consequências de frequentarem um território desconhecido. Com a migração de grupos criminosos para outras favelas, a dinâmica territorial da modalidade de baile funk de favela com presença ostensiva de narcotraficantes é reconfigurada, uma vez que esses grupos buscam repotencializar o seu poder em outros espaços e o baile se torna um mecanismo material, simbólico e econômico para realizá-lo. Parece-me que tal dinâmica espacial é de extrema relevância e poderia ser incorporada ao debate em sala de aula. 11

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REFERÊNCIAS FACINA, A. O funk no contexto da criminalização da pobreza. Disponível em: <http://www.observatoriodefavelas.org.br/ observatoriodefavelas/noticias/mostraNoticia.php?id_content=439>. Acesso em: 09 jan. 2009. FERREIRA, L. C. A multiterritorialidade no universo funk carioca: entre os circuitos espetacularizado e criminalizado. 259 f. Dissertação (Mestrado em Geografia)–PPGEO, UFF, 2010. ________. Movimento funk e política: uma busca pelo direito à cidade. In: XIV ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR. 14, 2011, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ANPUR, 2011. CD-ROM.

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PR ÁTI CA S PE D A G ÓG ICAS

O QUE O SKATE PODE DIZER SOBRE O ENSINO DE GEOGRAFIA? WHAT CAN SKATEBOARD SAY ABOUT TEACHING GEOGRAPHY?

L U C IA N O H E R M ES DA SI LVA Mestrando em Geografia (DGEO/FFP-UERJ) Professor de Geografia da SME/RJ lucianohermes @y ahoo.c o m . b r

N E LS O N D INI Z

Mestre em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ) Professor de Geografia do Colégio Pedro II – Campus Niterói n elsondi ni z@hotmai l .com

RESU M O: E S T E A RT IG O P R E T E N D E P R O B L EM ATI Z A R A P RÁT IC A DO S K AT E DE R UA C OM O OBJE T O DE RE FLE XÃO NO ÂMBI TO DO EN SIN O D E G E OG R A FIA . O B JE T I VA D E M O N S TR A R C O MO OS S K AT IS TAS P ROTAGONIZAM A RE S S IGNIFIC AÇ ÃO DA C IDADE ATRAVÉS D E US OS OR IG IN A IS DO M O B I L I Á R I O U R B A N O . T R ATA - S E DE RE FORÇ AR O M OVIM E NT O QUE ART IC ULA AS P RÁT IC AS ESPACI AI S D OS J OV E N S A OS C O N T E Ú D O S E TE M A S TR A D I C I O N A IS DA GE OGRAFIA. A PART IR DA RE FE RÊ NC IA AO C ONC E IT O DE ESPAÇO PÚBLI C O, B U S CA - S E D EM O N S TR A R Q U E O R EC U R S O ÀS P RÁT IC AS C OT IDIANAS DA JUVE NT UDE P E RM IT E P ROBLEMATI ZAR CON FLIT OS , R E LA Ç ÕES I D E N T I TÁ R I A S E P R O C ES S O S RE LAC IONADOS À P RODUÇ ÃO S OC IAL DO E S PAÇ O. PALAVRAS-CHAVE: FUNK; GEOGRAFIA; ENSINO; RELATOS.

ABST RAC T: T HIS PA P ER A I M S T O P R O B L E M ATI Z E TH E P RAC T IC E OF S T RE E T S K AT ING AS AN OBJE C T OF RE FLE C T ION IN TEACHI NG OF G E OG R A P HY. A IMS TO D E M O N S TR AT E H O W TH E S K AT E RS S TAR IN T H E RE FRAM ING OF T H E C IT Y T H ROUGH ORIGINAL USES OF URBAN FU R N IT U R E . IT I S S T R EN G T H EN I N G TH E M O V EM E NT T H AT ART IC ULAT E S T H E S PAT IAL P RAC T IC E S OF Y OUNG PEOPL E TO TRAD IT ION A L T HE ME S O F G E O G R A P H Y. F R O M TH E R E FE RE NC E T O T H E C ONC E P T OF P UBLIC S PAC E , W E S E E K T O DE M ONSTRATE THAT T HE U S E OF T H E EV E RY D AY P R A C TI C E S O F YOUT H LE T S DIS C US S C ONFLIC T S , IDE NT IT Y RE LAT IONS AND P ROCESSES RELAT E D T O S OCIA L P R O D U C T I O N O F S PA C E. KEYWORDS : SK ATEB OARD; COUNT E R USE ; SPAT I AL PR A C T I C E S ; Y O U T H ; T E A C H I N G G E O G R A P H Y.

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INTRODUÇÃO Em consonância com processos de ensino-aprendizagem que consideram a realidade e os interesses dos alunos, este artigo sugere a possibilidade de estimular reflexões em Geografia Urbana a partir de uma prática típica dos estudantes da Educação Básica, o skate de rua. Para Cavalcanti (2012): “Conhecer os jovens e suas práticas espaciais é fundamental para encaminhar as atividades de ensino, a fim de envolvê-los nos conteúdos geográficos apresentados” (p. 10). Trata-se de reforçar o movimento que articula as práticas espaciais dos jovens aos conteúdos e temas tradicionais da Geografia. Segundo pesquisa do Instituto Datafolha1, encomendada pela Confederação Brasileira de Skate (CBSK) e realizada em 2009, 5% dos domicílios brasileiros possuem algum praticante de skate – nas regiões metropolitanas esse número cresce para 7%. Ainda de acordo com a pesquisa, a maioria situa-se entre 11 e 20 anos de idade. Ou seja, o skate é difundido principalmente entre jovens em idade escolar. Neste artigo considera-se o skate de rua uma atividade associada à ressignificação material e simbólica da cidade, à subversão criativa de suas formas e à reapropriação dos espaços públicos. Ao contrário da maioria dos jogos, o skate de rua realiza-se nos espaços da vida cotidiana. Por conseguinte, sua característica fundamental é o uso compartilhado dos equipamentos urbanos. De acordo com Zarka (2011): O skate compartilha seu espaço de jogo com aqueles que não o praticam, isto é, com aqueles que não jogam. Essa é uma de suas características mais salientes. Isso não ocorre sem um impacto em nossa vida cotidiana e, frequentemente, o skate é reprovado justamente por essa permeabilidade. (p. 118, tradução nossa) A partir da referência ao conceito de espaço público – conceito negligenciado pela Geografia2 92

–, busca-se demonstrar que o recurso às práticas cotidianas da juventude permite problematizar conflitos, relações identitárias e processos relacionados à produção social do espaço. PRÁTICAS ESPACIAIS DA JUVENTUDE E O ENSINO DE GEOGRAFIA Apesar dos descompassos entre teorias e práticas pedagógicas, tornou-se comum reconhecer os alunos como sujeitos ativos dos processos de ensino/aprendizagem. Conforme Weiz (2001): O salto importante que se deu no conhecimento produzido sobre as questões do ensino e da aprendizagem já permite que o professor olhe para aquilo que o aluno produziu, enxergue aí o que ele já sabe e identifique que tipo de informação é necessária para que seu conhecimento avance. Isso se tornou possível porque, nas últimas décadas, muitas das pesquisas têm ajudado a consolidar uma concepção que considera o processo de aprendizagem como resultado da ação do aprendiz. (p. 22-23) Do ponto de vista do ensino de Geografia, mais precisamente de Geografia Urbana, essa tendência conduziu à valorização de práticas espaciais identificadas com o cotidiano da juventude.3 Frequentemente, considera-se, por exemplo, o grafite, o funk, o hip-hop, entre outros, como temas pertinentes à reflexão sobre os conceitos geográficos. Parte-se do pressuposto de que, ao fazê-lo, produzem-se situações de aprendizagem efetivas. Segundo Cavalcanti (2013, p. 76), a “análise da juventude e de sua cultura, como referência significativa dos alunos da educação básica” permite atribuir novos sentidos à Geografia que se ensina. Implica, do mesmo modo, numa concepção sobre a juventude em sua relação com a cidade. Para a autora: Os jovens são agentes do processo de G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 9 1 - 9 7 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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produção e reprodução do espaço urbano, pois em seu cotidiano fazem parte dos fluxos, dos deslocamentos, da construção de territórios; criam demandas; compõem paisagens; imprimem identidades e dão movimento aos lugares. Essa produção/ reprodução se articula a diferentes modos de inserção desses jovens, dependendo de sua condição socioeconômica, do gênero, etnia, raça, opção religiosa, condição sexual, e de sua vinculação aos diversos grupos. Por diferentes modos, buscam constituir seus lugares, em espaços públicos ou privados, na rua, no clube, na praça, nos bares, na escola, imprimindo neles suas marcas, construindo suas identidades. (CAVALCANTI, 2013, p. 80-81) No caso considerado, isto é, a prática do skate de rua, a apropriação de frações da cidade enseja a constituição de espaços de referência identitária4. Os skatistas protagonizam a ressignificação dos espaços públicos através de usos originais do mobiliário urbano. Ao mesmo tempo, tornam-se sujeitos ativos da afirmação de direitos e da produção social do espaço. CONTRA-USO5 SKATISTA Em sua forma contemporânea, o skate surgiu nos Estados Unidos, na década de 1960, em bairros populares de Los Angeles e ao redor da praia de Santa Mônica. O sidewalk surfing tornou-se a alternativa dos surfistas locais para “um dia sem ondas” (ZARKA, 2011). Segundo Machado (2011): Até meados da década de 50 do século passado, isso não passava de uma mera brincadeira, um entretenimento em que não havia tantos objetivos, como os de realizar manobras, vencer obstáculos, disputar competições ou muito menos de viver profissionalmente do mesmo. […] Somente a partir de 1960 que esse brinquedo improvisado adquiriu novos significados. G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 9 1 - 9 7 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

Com a irregularidade das ondas em praias californianas, vários surfistas norteamericanos apropriaram-se das tábuas com rodinhas e deram um outro sentido ao seu uso: após alterarem seus formatos, ficando semelhantes a uma pequena prancha, elas se tornaram uma espécie de surfe sobre rodas. Através das mesmas, os surfistas podiam, de certo modo, surfar a qualquer momento e em muitos lugares, transpondo alguns dos movimentos antes feitos dentro d’água para diversos equipamentos urbanos. (p. 14) A despeito de seu desdobramento em diversas modalidades, o street skate ou skate de rua é aquela que expressa melhor os fundamentos dessa prática. Para Zarka (2011): Apesar de existirem inúmeros espaços criados expressamente para a prática do skate (skateparks), trata-se acima de tudo de uma atividade urbana. Mais precisamente, é uma prática “do urbano”, no sentido de que o seu terreno é realmente a cidade, ou pelo menos uma reinterpretação da diversidade de materiais e formas da cidade. (p. 114, tradução nossa) Portanto, o skate de rua é uma forma de reapropriação dos espaços urbanos, mais precisamente dos espaços públicos. Reapropriação semelhante aos modos de operação, esquemas de ação ou maneiras de fazer, tal como definidos por Certeau (2013): “práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sociocultural” (p. 41). Para Certeau (2013), diante dos produtos impostos por uma ordem dominante (econômica, urbanística, etc.), os usuários elaboram criativamente suas próprias maneiras de empregar esses produtos. Ainda segundo o autor: Assimiláveis a modos de emprego, essas “maneiras de fazer” criam um jogo mediante a estratificação de funcionamentos diferentes 93


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e interferentes. Assim, as “maneiras” de habitar (uma casa ou uma língua) próprias de sua Kabília natal, o magrebino que mora em Paris ou Roubaix as insinua no sistema que lhe é imposto na construção de um conjunto residencial popular ou no francês. Ele os superimpõe e, por essa combinação, cria para si um espaço de jogo para maneiras de utilizar a ordem imposta do lugar ou da língua. Sem sair do lugar que lhe impõe uma lei, ele aí instaura pluralidade e criatividade. Por uma arte de intermediação ele tira daí efeitos imprevistos. (CERTEAU, 2013, p. 87) Exatamente o que fazem os skatistas, os sujeitos da prática que se pretende problematizar. De acordo com Machado (2011), no contexto do skate de rua: [...] um corrimão não serve somente para dar segurança a quem utiliza uma escada, mas também para ser deslizado com o skate. Uma escada não é apenas para se passar de um nível ao outro, mas para ser pulada. Uma escultura não é só para ser olhada e apreciada, mas, ao contrário, pode servir como uma inclinação propícia para manobras. Os exemplos se estendem aos bancos, às bordas, às placas de trânsito, etc. Portanto, ao circular pelos espaços urbanos e ao ressignificar as finalidades atribuídas aos seus respectivos equipamentos, a cidade ganha novos contornos. (p. 26) Ao servir-se da inclinação de uma escultura, pular uma escada ou deslizar sobre um corrimão, os skatistas afirmam sua criatividade, sua experiência singular das formas e dos equipamentos urbanos (Figura 1). Os usos que fazem do espaço geométrico dos arquitetos e urbanistas retira daí efeitos imprevistos. A essa subversão dos efeitos previsíveis da utilização das formas e dos equipamentos urbanos chamamos contra-uso skatista. Existem outros modos de operação ou esquemas de ação que expressam, igualmente, 94

as maneiras como os skatistas produzem a ressiginificação material e simbólica dos espaços públicos. Machado (2011) refere-se, por exemplo, à busca consciente dos espaços suscetíveis à prática do skate de rua. Segundo o autor: Outro elemento lúdico da prática do street skate é justamente a procura por picos. Logo, sempre que possível, é importante circular por vários desses espaços. Entretanto, a procura por lugares skatáveis não se dá somente ao acaso. Ciente de suas habilidades em cima do “carrinho”, os skatistas vão ao encontro daqueles obstáculos com os quais mais se identificam. (p. 117) Outro exemplo diz respeito às formas como os skatistas nomeiam esses espaços. Sobre a polissemia do termo nativo pico, Machado (2011) afirma que: Para a maioria dos paulistanos, o termo “pico” pode fazer referência a uma situação intensa e conturbada (por exemplo, o horário de “pico” no trânsito). Já para os skatistas, pico é um termo nativo que evoca espaços compostos por equipamentos urbanos, que se tornam obstáculos nos quais são realizadas as manobras. Também definido pelos skatistas como lugares skatáveis, para que um equipamento seja considerado um pico, ele deve estar associado a uma série de características que permitam a práticado skate. (p. 113-114) É comum entre skatistas nomear os lugares, as formas e os equipamentos urbanos a partir de um léxico próprio – em geral ignorado por não iniciados. Por exemplo, na Praça XV de Novembro, no centro do Rio de Janeiro, a Estátua Equestre do Rei Dom João VI é denominada simplesmente como “Cavalo” pelos skatistas locais. Nas imediações da praça, os mesmos reconhecem a fachada de um banco como “Mortal Kombat”6.

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Por último, destaca-se o modo como os skatistas apropriam-se dos espaços públicos modificando-os à sua maneira. Trata-se do Do it Yourself (DIY). Compreende-se o DIY como manifestação da criatividade característica do skate de rua e que extrapola a definição de contrauso skatista acima apresentada. De acordo com Charest (2014): A cultura DIY no skate, que surgiu em grande parte da intensificação da prática nas ruas, na década de 1990, é definida pela capacidade que os skatistas têm de identificar e criar espaços interessantes para a prática. Para o desconforto de proprietários e de administradores de espaços públicos, isso muitas vezes significa transformar, por exemplo, bordas e bancos em locais de frequentação regular de skatistas. A cultura G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 9 1 - 9 7 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

DIY skatista, desde então, evoluiu a partir da ideia de que skatistas devem sair e encontrar algo apropriado para a prática do skate (embora esta ainda seja uma de suas principais características) a um movimento global que é definido mais por um desejo de recuperar e remodelar espaços públicos através da autoconstrução de objetos que possibilitem a prática do skate, bem como a execução de manobras. Estes espaços são na maioria das vezes abandonados ou subutilizados. (Tradução nossa) O DIY diz respeito não apenas à subversão dos usos das formas e dos equipamentos urbanos, mas à inscrição, de maneira mais ou menos permanente, de novos elementos nos espaços apropriados – rampas, corrimãos, palcos, tablados, elevações, etc. Espaços públicos 95


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subutilizados transformam-se em lugares de encontro intensamente frequentados por skatistas, que lhes atribuem novos sentidos e qualidades materiais. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os modos como os skatistas apreendem as paisagens urbanas e, sobretudo, como as convertem em espaços de referências identitárias, podem transformar-se em objetos de reflexão no âmbito do ensino de Geografia. Os distintos esquemas de ação dos skatistas revelam formas originais de leitura, representação e apropriação da cidade. Ler e representar elementos do espaço geográfico; não é o que se espera como resultado dos processos de ensino/aprendizagem de que se ocupa a Geografia? Os jovens já o fazem, à sua maneira. Por que não valorizá-la? De acordo com Low e Smith (2006), os espaços públicos são definidos em termos de “regras de acesso, da fonte e da natureza do controle sobre a entrada em um espaço, de comportamentos individuais e coletivos permitidos em um espaço específico e de regras de uso” (p. 4, tradução nossa). Através de suas práticas cotidianas os skatistas estabelecem disputas em torno da apropriação dos espaços públicos, atribuem sentidos aos lugares, questionam formas de controle e usos previsíveis da cidade. Não se trata de reivindicar determinados direitos? De posicionar-se no debate sobre a natureza dos espaços públicos, sobre as regras de uso desses espaços? Uma vez mais, aquilo se espera da juventude, como produto dos processos institucionalizados de aprendizagem, ela já o possui, sob formas particulares. Para Cavalcanti (2013), reconhecer as práticas espaciais da juventude permite trabalhar concretamente o conteúdo cidade no ensino de Geografia. Segundo a autora: “A concepção que se tem é de que essa abordagem contribui para o desenvolvimento de habilidades necessárias para os deslocamentos e práticas do aluno, capacidades elementares para o usufruto pleno da cidade” (CAVALCANTI, 2013, p. 76). Considerar 96

o skate de rua, como tantos outros exemplos, expressa a possibilidade de valorização de referências espaciais significativas dos alunos da Educação Básica. Possibilidade que se pretendeu apenas problematizar. Retirar daí efeitos práticos é algo que permanece em construção.

NOTAS Disponível em: http://173.255.202.190/uploads/ckeditor/ attachments/8/Pesquisa_Datafolha_2009.pdf. Acesso em: 15 jan. 2014. 1

Segundo Serpa (2009): “A Geografia pouco se ocupou da discussão acerca do espaço público urbano. Com raras exceções, esse tem sido um tema pouco explorado pelos geógrafos” (p. 15). 2

Para Cavalcanti (2013), o conceito de juventude não corresponde apenas a critérios de idade ou desenvolvimento biológico. De acordo com a autora: “não se pode referir a essa categoria como uma unidade, cujas características classificadoras podem ser elencadas a priori e generalizadas. Pelo contrário, é necessário admitir sua diversidade, no que diz respeito às práticas, ao conteúdo de suas representações, à sua inserção/pertencimento social, ao gênero, a raças e etnias” (p. 79). 3

“[...] identidade territorial cuja manifestação empírica é a própria experiência de habitar este lugar” (NOGUEIRA, 2007, p. 33). 4

A ideia de contra-uso foi desenvolvida por Leite (2007). A expressão e o conceito contra-uso skatista foram originalmente elaborados por Luciano Hermes da Silva, Nelson Diniz e Maicon Gilvan Lima Campos. Foi exposta pela primeira vez ao debate acadêmico em Geografia por ocasião do XIV Encontro Latino Americano de Geógrafos, realizado em Lima, Peru, em 2013. 5

A apropriação da Praça XV de Novembro por skatistas é um dos objetos da pesquisa mais ampla sobre a prática do skate em espaços públicos da qual este artigo é apenas um produto parcial. 6

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REFERÊNCIAS CAVALCANTI, Lana de Souza. O ensino de Geografia na Escola. São Paulo: Papirus, 2012. ________. Jovens escolares e a cidade: concepções e práticas espaciais urbanas cotidianas. Caderno Prudentino de Geografia, Presidente Prudente, n. 35, Volume Especial, p. 74-86, 2013. CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2013. CHAREST, Brian. What can schools learn from de DIY skateboarding culture? Disponível em: <http://kickflippingatforty. wordpress.com/2014/02/13/what-can-schools-learn-from-the-diy-skateboarding-culture/>. Acesso em: 23 mai. 2014. LEITE, Rogério Proença. Contra-usos da cidade: lugares e espaços públicos na experiência urbana contemporânea. Campinas/ Sergipe: Editora da UNICAMP/Editora UFS, 2007. LOW, Setha; SMITH, Neil. The politics of public spaces. Londres/Nova York: Routledge, 2006. MACHADO, Giancarlo Marques Carraro. De carrinho pela cidade: a prática do street skate em São Paulo. 268 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)-Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, USP, 2011. NOGUEIRA, Ricardo José Batista. Fronteira: espaço de referência identitária? Ateliê Geográfico, Goiânia, v. 1, n. 2, p. 27-41, 2007. SERPA, Angelo. O espaço público na cidade contemporânea. São Paulo: Contexto, 2009. SILVA, L. H.; DINIZ, N.; CAMPOS, M. G. L. A apropriação do espaço público pelo skateboarding no centro do Rio de Janeiro: o coletivo I Love XV e a conquista do direito à cidade. In: XIV Encuentro de Geógrafos de América Latina. 14., 2013, Lima, Anales... Lima: CGP/UGI-Peru, 2013. WEIZ, Telma. O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. São Paulo: Ática, 2001. ZARKA, Raphaël. On a day with no waves: a chronicle of skateboarding 1779-2009. Paris: Éditions B42, 2011.

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PR ÁTI CA S PE D A G ÓG ICAS

LABORATÓRIO DE PRÁTICAS E RACIONALIDADES URBANAS – LAPRARUA LABORATORY OF URBAN PRACTICES AND RATIONALITIES

L E A ND R O TA RTAGLI A

Licenciado e Mestre em Geografia (UFF) Professor do Colégio Pedro II - Campus Tijuca II leand ro_rs t@hotmai l .com

RESU M O:O P R E S E N T E A RT I G O A P R E S EN TA O P R O JET O LAP RAR UA, QUE VE M DE S E NVOLVE NDO AT IVIDADE S NA UNIDA DE TI JUCA D O CO LÉ G IO P E D R O I I , E TE M P O R O B JET I V O EL A B O RAR A C ONS T R UÇ ÃO DE C ONH E C IM E NT OS S OBRE A C IDADE DO RI O DE J ANEIR O T E N D O C OMO F O C O A EX P ER I Ê N C I A C O T I D I A NA DOS ALUNOS E P ROFE S S ORE S PART IC IPANT E S . O GR UP O, C ONSTI TUÍ DO N O IN ÍC IO D E 2 0 1 4 , B U S C A U TI L I Z A R A A RTE P Ú B L I C A C OM O E LE M E NT O NORT E ADOR DAS P RÁT IC AS E C ONS T R UÇ ÕE S TEÓRI CAS D O LA B OR AT ÓR IO, V IS A N D O N O V O S O L H A R E S S O B R E A C ONFIGURAÇ ÃO DA PAIS AGE M URBANA, O US O C RIAT IVO DOS ESPAÇOS PÚBLI C OS E A S N OVA S TE R R I TO R I A L I D A D E S EM E R G ENT E S NA C IDADE . PALAVRAS-CHAVE: ARTE PÚBLICA; ESPAÇO PÚBLICO; PAISAGEM; USO POLITICO DO ESPAÇO; USO CULTURAL DO ESPAÇO.

ABST RAC T: T T HIS A RT I C L E P R E S EN T S T H E L A P R A R U A P ROJE C T T H AT H AS BE E N DE VE LOP ING AC T IVIT IE S IN T H E T IJUCA UNI TY OF COLE G IO P E D R O I I , A N D A I M S T O B U I L D K N O W L EDGE ABOUT T H E C IT Y OF RIO DE JANE IRO, FOC US ING ON T H E EVERYDAY EXPER IE N C E OF PA RT I C I PATI N G S TU D EN T S A N D T E A C H E RS . T H E GROUP WAS FORM E D IN T H E BE GINNING OF 2 0 1 4 AND SEEKS TO USE T H E P U B LIC A RT A S A G U I D I N G E L EM E N T O F P R A C T IC E S AND T H E ORE T IC AL C ONS T R UC T IONS OF T H E LABORAT ORY, SEEKI NG N EW P E R S P E C T IV E S O N T H E U R B A N L A N D S C A P E , T H E C RE AT IVE US E OF P UBLIC S PAC E S AND NE W E M E RGING T E RRIT O RI AL I TI ES IN TH E CIT Y. KEYWORDS : PUBLIC ART; PUBL I C SPACE ; L ANDSCAPE ; P O L I T I C A L U S E O F S PA C E ; C U LT U R A L U S E O F S PA C E .

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INTRODUÇÃO A vida nas cidades tem proporcionado uma série de desafios os quais intensifica e diversifica as maneiras de pensar esse espaço geográfico por parte de seus habitantes, administradores, estudantes, professores e cientistas. Os problemas não são poucos e vem se acumulando no passar das últimas décadas cujo adensamento populacional multiplicou nas metrópoles brasileiras. As questões são diversas como habitação, educação, saúde, mobilidade, segurança e lazer, e em muitos casos tencionase a relação do poder público e a população. O aumento do custo de vida é outro fator crucial dentro dessa pauta de questionamentos (MARICATO et al., 2013). A participação da sociedade civil de uma maneira geral nas tomadas de decisão é muito discreta, seja pela alienação ou pela imposição, ambas derivadas daquilo que podemos classificar como uma colonialidade do poder (QUIJANO, 2005). Mas em alguns casos é possível identificar ações promovidas por sujeitos e organizações sociais que buscam alternativas à essas condições desfavoráveis que o meio urbano, como parte de toda uma construção social, impõem. Desde a última década que a chamada arte pública de rua tem dado sinais de mobilização e ação que questionam essa ordem da vida urbana. Além de questionar, a arte pública pode ser um importante elemento de estimulo a reflexão, ocupação e uso criativo da cidade em seus espaços públicos, de mobilização e também voltados para projetos institucionais em escolas e centros culturais. Podemos incluir essas e outras formas de pensar e agir naquilo que Boaventura de Souza Santos salienta como a emergência de um novo paradigma; o conhecimento prudente para uma vida decente (SANTOS, 1988). O graffiti e a pichação são práticas que se consolidaram a partir do século XX no contexto das cidades capitalistas da era pós-industrial (HERSCHMAN, 1997; TARTAGLIA, 2007). Fazem parte desse processo a utilização da paisagem urbana como veiculo de comunicação, 100

apresentando outra maneira de entender a cidade. Quem são seus autores? Por que desenvolvem tais grafismos? São questionamentos necessários que aliados à sua localização na cidade revelam uma nova forma de uso político/cultural do espaço urbano. Portanto, uma outra maneira de agir e pensar as cidades. O graffiti, diferente da pichação, passa por um momento de valorização econômica nas metrópoles brasileiras. Da marginalização (o graffiti selvagem) à uma gradual institucionalização (o graffiti domesticado), o graffiti está hoje no centro de um debate sobre o uso da paisagem urbana na cidade do Rio de Janeiro (TARTAGLIA, 2013). Há uma nova normatização de uso dessa paisagem beneficiando seus praticantes, que adquiriu a condição de arte em contraposição a noção de vandalismo e deterioração do espaço urbano. A pichação, por outro lado, continua sendo a marca representativa de usos marginais da cidade (grupos de pichadores, facções criminosas, torcidas organizadas, manifestantes políticos) que também se faz presente na paisagem mesmo que ilegalmente. Com a normatização, que ordena as condições para intervenções nas cidades, e a mercantilização do graffiti, é possível identificar uma crescente institucionalização dessa prática. A institucionalização se encontra em diferentes níveis, com a comercialização da arte e de serviços correlatos estabelecendo valores mais precisos, além de projetos sociais e pedagógicos em centros culturais, ONGs e instituições de ensino. Isto estabelece uma nova maneira de se pensar as intervenções na cidade e sua localização, bem como quais são seus autores e o que eles querem. O graffiti vem sendo paulatinamente institucionalizado criando condições contraditórias entre a politização e a mercantilização, assim como o uso legal dessa prática. Já as práticas subversivas, como a pichação, continuam sendo criminalizadas e tratadas como atividades marginais sujeitas a penalidades e distintas restrições de uso nas cidades. Podemos afirmar que estudos geográficos mais recentes (OLIVEIRA, 2006; TARTAGLIA, G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 9 9 - 1 0 8 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


LEAN D RO TARTAGL IA

2010) vêm ampliando a compreensão do espaço urbano e as novas territorialidades daí originadas, os quais estabelecem outras maneiras de interpretar os usos da cidade e seus sujeitos. Esses estudos desenvolvidos e aplicados em diferentes instituições de ensino e pesquisa endossam novas racionalidades e meios de se pensar e propor a construção da vida nas cidades. Tais pesquisas ampliam as possibilidades de se desenvolver projetos pedagógicos de caráter mais prático que estabeleçam elos entre a escola e a cidade através de ações criativas e usos políticos/ culturais. A CONSTRUÇÃO DE UM LABORATÓRIO O projeto LAPRARUA caracteriza-se pela sua proposta de agregar o interesse de alunos e professores, além da comunidade escolar e outros possíveis participantes, em desenvolver atividades que estabelecem diálogo e interação com a cidade que vivem. A arte pública foi a linguagem encontrada para soldar esse interesse através de atividades práticas. No entanto, o laboratório busca ampliar essas atividades estabelecendo um elo conceitual com outras disciplinas produtoras do conhecimento científico, mais especificamente as humanidades. O termo laboratório, o qual intitula o projeto, é na verdade um conjunto de experiências adquiridas pelo grupo através dos encontros e produções que vem acontecendo regularmente no ano de 2014. Portanto, atribui-se a ele a noção de experimentação realizada por seus membros no qual o graffiti torna-se o elemento condutor. Os encontros assumem a forma de oficinas que além do incentivo a produção artística, permitem também momentos de reflexão sobre a cidade. A produção do conhecimento tem início já nesta etapa, e é nesse processo de trocas de experiências regulares que o grupo vem construindo sua própria interpretação sobre o urbano e aprimorando maneiras de intervir na realidade a qual está inserido. Alunos e professores assumem o papel ativo de sujeitos que pensam, discutem e intervêm (n)a cidade que G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 9 9 - 1 0 8 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

habitam. A produção de conhecimentos sobre a cidade, como objetiva o laboratório, é feita metodologicamente a partir do olhar conceitual multidisciplinar sobre as questões urbanas onde ocorre a colaboração decisiva dos professores do Colégio Pedro II. Para tanto, a proposta multidisciplinar do Laboratório tem como princípio teórico metodológico a aproximação da geografia com a arte, que dialoga com o que geógrafos como Rafael Costa (2014) chama de educação do olhar para uma leitura mais atenta das grafias espaciais. Os professores Leandro Tartaglia e Caio Pereira, respectivamente de geografia e artes do Campus Tijuca II, são os propositores dessa construção coletiva do conhecimento, que conta ainda com a participação efetiva de um grupo de aproximadamente 15 estudantes desta unidade. O foco central das discussões que o Laboratório vem realizando gira em torno das intervenções urbanas que caracterizam o graffiti, e que se atribui à noção de uso político/cultural do espaço. Autores como Diego González (2013) remete a mesma ideia ao conceito de espaços públicos criativos, onde as intervenções por meio da arte pública, a exemplo do graffiti, expressa seu papel de comunicação e reelabora a percepção dos espaços púbicos diante da sociedade atenta. A intervenção é o momento onde se expressa tanto a dimensão racional quanto subjetiva do artista, tornando pública uma mensagem através de suas marcas (grafias). A proposta da intervenção é substanciar o conhecimento do aluno enquanto cidadão e produtor de conhecimento sobre a cidade, consciente de seu papel enquanto parte de uma sociedade e toda sua estrutura, bem como do papel ativo que este mesmo cidadão pode exercer como sujeito na produção e uso político/ cultural do espaço urbano do qual faz parte. Estas oficinas intercalam os encontros dentro do Campus Tijuca II do colégio Pedro II, sua sede, bem como atividades nos arredores do espaço escolar, buscando essa interatividade prática com a cidade propriamente dita. Um dos objetivos desse projeto consiste 101


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na produção de conhecimento sobre experiências de diferentes usos político/culturais do espaço urbano. É preciso explicitar que essa produção de conhecimento procura ser expressa no plano técnico, científico e artístico, buscando a elaboração de diferentes resultados e alguns produtos específicos. Não há, a princípio, um limite de tempo definido para a busca de resultados, já que entendemos que a produção do graffiti se encontra em processo de expansão pela cidade, sendo, portanto, concomitante ao desenvolvimento desse projeto. Os objetivos podem ser sistematizados da seguinte forma:

tempo reunido, o LAPRARUA já apresenta alguns resultados significativos, como intervenções (apresentação de produções artísticas) com membros do grupo na interatividade com outros campi do próprio Colégio Pedro II (Centro e Realengo). A apresentação no VII Congresso Brasileiro de Geógrafos (2014) da proposta do trabalho, sendo discutida na forma de espaços de diálogo, bem como vem por meio desse tornarse artigo da revista digital Giramundo. Além disso, o grupo conquistou o direito junto à direção da unidade, de fazer algumas intervenções dentro do próprio espaço escolar.

A) Proposição de oficinas de graffitis periódicas, realizadas no interior e nas imediações da unidade escolar, com proposta de intervenção e elaboração de painéis grafitados;

O OUTRO OLHAR SOBRE A CIDADE: NOVAS RACIONALIDADES

B) Produção de vídeos relatando as experiências diversas de intervenção e uso político/cultural do espaço urbano; C) Produção de artigos escritos coletivamente pelos membros do grupo visando sua publicação em revistas e periódicos científicos, pedagógicos e culturais; D) Registro iconográfico com intuito de formar um banco de imagens relacionadas às atividades práticas realizadas na instituição e na cidade em geral. Possibilitando também a realização futura de uma exposição dessas imagens (fotografias) nas dependências do espaço escolar e outros; E) Realização de trabalhos de campo e encontros específicos que tenham a proposta de debater ou provocar momentos de reflexão relacionados à temática; F) Apresentação em congressos e a realização de palestras e debates com membros do grupo na própria instituição de ensino e outras. 102

É preciso destacar que apesar do pouco

A compreensão teórica que substancia o presente trabalho tem como uma de suas premissas o que Cosgrove fala de uma “inscrição geográfica”, ou seja, uma grafia sobre a superfície do planeta, mas que também, habitando as mentes, ganha, por vezes, forma em outros suportes físicos, tais como desenhos em uma folha de papel. No trabalho desse autor é dada grande importância para a discussão do que ele chama de “visões geográficas”, termo usado para se referir à imaginação humana a respeito do espaço geográfico, fazendo com que encontremos uma forte articulação entre paisagem, mapa, pictórico, imagem e visão (COSTA, 2014, p. 35).

A partir da citação, algumas questões se tornam relevantes tais como a produção de imagens e seus significados na configuração das paisagens urbanas, como pode ser visto através dos graffiti. Autores como Armando Silva (2001) vêm insistindo na interpretação do graffiti como inscrições ou marcas impressas sobre a epiderme da cidade, como tatuagens urbanas. Juan Nogué (2007) afirma que as paisagens são o resultado de toda uma construção social que se apresentam nas leituras de suas formas. A partir do graffiti G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 9 9 - 1 0 8 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


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é possível repensar a cidade, estabelecendo outros pontos de vista, o que implica, em termos geográficos, uma reeducação do olhar sobre a paisagem. Para tanto, quais leituras podem ser estabelecidas? Costa apresenta em seu livro “Geografia em quadrinhos” maneiras de desenvolver este outro olhar, a partir de um tipo específico de produção de imagens. O autor sugere a possibilidade de dinamizar a transmissão de conteúdos escolares através de produções artísticas, tornando-a mais atraente e criativa para o aluno. Ele cita ainda que: Perceber visões geográficas inscritas ou grafadas, manifestadas e/ou impostas ao mundo, seja da forma que for, sobre o suporte que for, é um passo importante na construção de um entendimento crítico próprio sobre o espaço e de como se insere a nossa participação nele. (COSTA, 2014, p. 39) O LAPRARUA propõe o estímulo de outros olhares geográficos, aos seus membros como pressuposto para a produção do conhecimento a partir de novas racionalidades (SANTOS, 1988), na perspectiva de interpretar as grafias que se apresentam na cidade e suas implicações. Simultaneamente, é feita a reflexão sobre o papel que cada um dos membros exerce nesse contexto e suas possibilidades de ação. Assim, se reinventam as leituras sobre a cidade a partir dos diferentes pontos de vista, o que permite repensar a rotina daqueles que circulam, trabalham, estudam e se divertem na cidade. É estimulada, paulatinamente, a criação de outras possibilidades de apropriação e interação na cidade cuja orientação teóricometodológica seria esse outro olhar geográfico. Corrobora o raciocínio em questão o que o filósofo Jean-Marc Besse afirma sobre a paisagem: Estamos aqui diante de uma outra relação com o visível, diante de uma outra noção do visível. O visível conta algo, uma história, ele é a manifestação de uma realidade da qual ele é, por assim dizer, a superfície. A paisagem é um signo, ou um G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 9 9 - 1 0 8 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

conjunto de signos, que se trata então de aprender a decifrar, a decriptar, num esforço de interpretação que é um esforço de conhecimento, e que vai, portanto, além da fruição e da emoção. A ideia é de que há de se ler a paisagem. (BESSE, 2006, p. 64) Ler a paisagem a partir de outros olhares permite repensar as marcas que refletem o modo como a sociedade vem sendo organizada e de que forma o arranjo espacial das cidades refletem essa normatização. De maneira complementar, o olhar precisa ser estimulado, e assim, não se contentar em apenas observar, mas também interagir. Nesse sentido González sugere a produção de espaços públicos criativos, onde: (...) el espacio público peude ser reiventado a traves de la creatividad, sin embargo, su diseño y desarrollo están condicionados por uma serie de factores políticos, sociales y culturales. Por ello, es necessário repensar los lugares de encuentro y socialización, com objeto de contribuir a diminuir la fractura social y de reivindicar los derechos de los ciudadanos y sus verdaderas posibilidades de controlar sus destinos y tomar sua decisiones. (GONZALÉZ, 2013, p. 138) O autor compreende a noção de espaço público pelo viés de sua construção coletiva onde transcorre a vida cotidiana, levando em consideração as relações de poder que estabelecem a concepção desses espaços atualmente em nossa sociedade. É preciso destacar que os momentos de socialização precisam ser estimulados e obtidos a partir do encontro entre as pessoas, proporcionando, assim, outros usos do espaço. Nota-se uma proposta interessante, quando o autor sugere: Definimos espacio público creativo como um entorno estimulante, dinâmico e integrador que favorece el dialogo y la inspiración de las manifestaciones sociales y culturales individuales y colectivas, así 103


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como el desarollo económico y social. Este espacio de socialización cotidiana (plaza, parque, mercado público), apropriado y reinventado por la colectividad, destaca por la posibilidad de contribuir a entrenar y desarollar la imaginación, associada al ócio reflexivo y cultural, como processo novedoso de descubrimiento de las personas com la realidade. (GONZALÉZ, 2013, p. 134) Concordamos com o autor citado e propomos o acréscimo da escola como mais um desses espaços público criativos de socialização cotidiana além de praças e parques. A geógrafa Lana S. Cavalcanti também compreende a escola como um desses espaços, que permitem exercer com autonomia a criatividade aliada a uma prática pedagógica de teor crítico, para o desenvolvimento de projetos e atividades que possibilitem meios de participação mais efetiva na sociedade. Logo: O desafio está em trabalhar esses temas do cotidiano e de suas demandas como tema da Geografia, efetivando a mediação entre os conhecimentos que os jovens têm sobre a cidade, suas práticas na cidade e os temas mais gerais e ligados à estruturação dos

espaços urbanos no mundo capitalista, que são explorados pela Geografia Urbana (…). (CAVALCANTI, 2011, p. 5) Para construção de um projeto cujo título evoca o entendimento das novas racionalidades, é preciso destacar o papel do sociólogo Boaventura de Souza Santos (1988) no debate sobre o discurso da ciência moderna, sua origem e seus paradigmas. O autor aponta o surgimento de paradigmas emergentes que tencionam o status do conhecimento científico, e que propõem novas epistemologias e metodologias para atingir, o que ele mesmo aponta como “um conhecimento prudente para uma vida decente”. Os paradigmas emergentes apontam para outras concepções de sociedade, e, portanto, de cidades e das práticas sociais de um modo geral, cada vez mais presente nas teorias e debates pós-coloniais (PORTOGONÇALVES, 2005; QUIJANO, 2005). O conhecimento do paradigma emergente tende assim a ser um conhecimento não dualista, um conhecimento que se funda na superação das distinções tão familiares e obvias que até pouco tempo considerávamos insubstituíveis, tais como natureza/cultura,

F i g u ra 1 | Al u n o s a p l i c a m o s t e n c i l s o b re a p a re d e d ur ante a re a l i za ç ã o d e o f i c i n a s d e ntr o do e s p a ç o e s c o l a r – Ca m p u s Tijuca II – Co l é g i o Pe d ro I I . F o n t e : O a u t o r (2 0 1 4 )

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natural/artificial, vivo/inanimado, mente/ matéria, observador/observado, subjetivo/ objetivo, coletivo/individual, animal/pessoa. (SANTOS, 1988, p. 64) ALGUMAS CONSIDERAÇÕES O presente texto vem, portanto, iluminar e esclarecer alguns pressupostos teóricos e metodológicos que norteiam um conjunto de atividades experimentais de caráter pedagógico as quais estamos chamando de Laboratório de Práticas e Racionalidades Urbanas (LAPRARUA), desenvolvidas no Colégio Pedro II (Campus Tijuca II). Este trabalho visa a aproximação com outras disciplinas na busca de uma interdisciplinaridade tanto no campo da prática quanto da teoria, considerando a interface entre a geografia e a arte o ponto de partida para tal proposta. O trabalho que vem sendo realizado na forma de oficinas procura desenvolver, prioritariamente, o aprimoramento de um olhar crítico e participativo na cidade do corpo discente que compõe o grupo. A produção de conhecimento a qual se busca realizar como fundamento do projeto faz parte de um conjunto de práticas de elaboração artística e formulação reflexiva, que,

paulatinamente vem auxiliando os membros do grupo a compreender seu papel na escola, na cidade e na sociedade. O LAPRARUA procura também estabelecer a participação e o diálogo com toda a comunidade escolar (professores, estudantes, responsáveis, funcionários e técnicos) vinculada à instituição na qual se realiza. O Campus Tijuca II do Colégio Pedro II cujo espaço escolar, suas formas e estrutura física, impõe aos alunos e demais a objetividade arquitetônica da verticalização, recrudescida pelas cores monocromáticas e a notória limitação de amplitude espacial, acaba sendo um reflexo da própria condição urbana. Isto permite, a partir da rotina escolar, estabelecer nexos com a realidade vivida nas cidades. Por meio dessa dimensão do vivido, o LAPRARUA vem estimulando a reflexão do cotidiano, ao passo, que busca ampliar sua atuação com intervenções a serem realizadas dentro desse mesmo espaço escolar e para além de seus muros e grades. A julgar, portanto, que o estímulo às práticas e racionalidades emergentes é, nesse sentido, dar vez à subjetividade simbólica que o graffiti produz no espaço urbano, educando o olhar e criando meios de socialização através do uso político/cultural da escola e da cidade.

Fig u r a 2 | P r o d u ç ã o c ol e t i v a d e um g r affiti tem ático s ob re a c o p a do m u n d o – A tivid a de re a l i za da durante a g r eve d e 2 0 1 4 no C a mp u s Tiju ca II – Co l é gi o P e d ro I I . F o n te: O a ut or (20 1 4 )

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Fi gura 3 | F aixa g r afi t a d a duran te r ealiz ação d e at i vi dad e n o esp aço p úb l i c o – Pró xim o ao Cam p u s Re al e n g o – Co lég io P e d ro I I . Font e : O au to r ( 2 0 1 4 )

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F i g u ra 4 | Tra b a l h o d e c a m p o e o b s e r v a ç ã o d a s g rafias na p a i s a g e m u rb a n a - I m e d i a ç õ e s d o Ca m p u s Ti j u c a II. F onte : O a utor (2014)

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PR ÁTI CA S PE D A G ÓG ICAS

MARACANÃ: IMPRESSÕES E PERCEPÇÕES DOS ALUNOS COM DEFICIÊNCIA VISUAL DO INSTITUTO BENJAMIN CONSTANT (IBC) DURANTE VISITA GUIADA AO ESTÁDIO MARACANÃ: IMPRESSION AND PERCEPTION OF VISUALLY IMPAIRED STUDENTS OF NSTITUTO BENJAMIN CONSTANT (IBC) DURING A GUIDED VISIT TO THE STADIUM

L U C IA N A MARI A SANTOS DE ARR UDA Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) Professora de Geografia do Instituto Benjamin Constant luciana.mari a.arruda@gm a il. c o m

F E R NA ND O DA COSTA FERREI RA

Doutorando em Geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Professor de Geografia do Instituto Benjamin Constant b f geo@uol .com.br

R O B S O N L O PES DE FREI TAS JUNI O R

Doutorando em Geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Professor de Geografia do Instituto Benjamin Constant rob sonl frj @y ahoo.com.b r

RESU M O: D OTA D O DE U M A F O RTE C E N T R A L I D A D E TANT O FÍS IC A QUANT O S IM BÓLIC A, O E S TÁDIO DE FUT E BOL CONSTI TUI SE N U M D OS P R IN CIPA I S Í C O N ES A R Q U I T E T Ô N I C O S PRE S E NT E S NO E S PAÇ O URBANO, FIXO P OR ONDE C IRC ULAM FL UXOS DE PESSOA S , C A P ITA IS E E M O Ç Õ ES . O P R E S EN T E R EL AT O DE E XP E RIÊ NC IA T E M C OM O OBJE T IVO P RINC IPAL C OLH E R, POR MEI O D E QU E S T ION Á R IOS A P L I C A D O S EM S A L A D E A U L A , AS IM P RE S S ÕE S E P E RC E P Ç ÕE S DOS ALUNOS C E GOS E C OM BAI XA VI SÃO D O IN S T IT U T O B E N J A M I N C O N S TA N T ( I B C ) , C O N S T R UÍDAS A PART IR DAS INFORM AÇ ÕE S A E LE S T RANS M IT IDAS DU RANTE AS VISITA S G U IA D A S A O E S TÁ D I O D O M A R A C A N Ã R E A L I Z ADAS DURANT E O M Ê S DE M ARÇ O DE 2 0 1 4 . A S URP RE E NDE NT E PROCURA POR PA RT E D OS N OS S O S E D U C A N D O S D EM O N S TR A O FAS C ÍNIO E XE RC IDO P E LA NOS S A P RINC IPAL P RAÇ A DE E S P ORT ES MESMO EN TRE A QU E LE S QU E N Ã O S E I N TE R ES S A M P E L O F U TE BOL. PALAVRAS-CHAVE: MARACANÃ; IMPRESSÕES; PERCEPÇÕES; DEFICIÊNCIA VISUAL; ESTÁDIO.

ABST RAC T: E N D OWE D W I TH A S T R O N G C E N T R A L I T Y BOT H P H Y S IC AL AND S Y M BOLIC , T H E S OC C E R S TADIUM IS I N ONE OF THE M A IN A R CHIT E C T U R A L I C O N S P R ES EN T I N F I X ED URBAN S PAC E W H E RE C IRC ULAT ING FLOW S OF P E OP LE , M O NEY AND EMOT ION S . T HIS E X P E R I E N C E R E P O RT A I M S S P O O N T H ROUGH QUE S T IONNAIRE S IN T H E C LAS S ROOM , IM P RE S SI ONS AND PERCE P T ION S OF T H E B L I N D A N D L O W V I S I O N S TU DE NT S FROM T H E INS T IT UT O BE NJAM IN C ONS TANT ( IBC ) , C ONSTR UCTED FROM T H E IN FOR MAT I O N S U P P L I E D TO TH EM D U R I N G VIS IT S GUIDE D T O M ARAC ANÃ S TADIUM H E LD DURING T H E MONTH OF MARC H 2 0 1 4 . T HE S U R P R I S I N G D E M A N D F R O M O U R S T UDE NT S DE M ONS T RAT E S T H E FAS C INAT ION E XE RT E D BY OUR MAI N SPORT S A R E N A E V E N A M O N G T H O S E W H O A R E N O T I NT E RE S T E D IN S OC C E R. KEYWORDS : MARAC AN Ã; I M PRE SSI ONS; PE RCE PT I ONS ; V I S U A L I M PA I R M E N T; S TA D I U M .

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O relato a seguir tem como objetivo principal colher, por meio de questionários aplicados em sala de aula, as impressões e percepções dos alunos cegos e com baixa visão do Instituto Benjamin Constant (IBC), construídas a partir das informações a eles transmitidas durante as visitas guiadas ao Estádio do Maracanã realizadas durante o mês de março de 2014. A escolha do Brasil como sede dos dois mais importantes megaeventos esportivos da atualidade: a Copa do Mundo de Futebol Masculino, em 2014, e os Jogos Olímpicos de Verão, na cidade do Rio de Janeiro, em 2016, reservou ao estádio do Maracanã a função de palco principal dos momentos de maior visibilidade destas competições: a partida final da Copa do Mundo e as cerimônias de abertura e encerramento das Olimpíadas. Para se adequar às exigências necessárias à realização de eventos de tamanha magnitude, o tradicional equipamento esportivo carioca passou por uma bilionária reforma com ares de reconstrução. Vale lembrar que o propósito inicial da construção do outrora maior estádio do mundo, remonta à sua utilização como principal ícone da Copa do Mundo de Futebol de 1950, início da sua relação com o torcedor. Dotado de uma forte centralidade tanto física quanto simbólica, o estádio de futebol constitui-se num dos principais ícones arquitetônicos presentes no espaço urbano, fixo por onde circulam fluxos de pessoas, capitais e emoções. Gilmar Mascarenhas (2014) procura defini-lo tanto de acordo com a sua presença física e a relação com o espaço urbano (configuração externa) quanto a partir das relações construídas entre o torcedor e estes equipamentos (apropriação interna). Para ele, o estádio apresenta-se como “uma centralidade constante, permanente na paisagem física e cultural” (p. 161). Cabe ressaltar que quando nos remetemos a torcedores que se identificam com o espetáculo futebolístico, é possível verificar a presença de indivíduos não só videntes (que não apresentam deficiência visual), mas também de pessoas cegas e com baixa visão. Quanto a esses dois últimos grupos, 110

pode-se mencionar a importância do rádio como principal equipamento tecnológico de percepção do evento, em virtude da descrição sensorial e motora por parte da interligação entre o locutor e o ouvinte deficiente visual. Nesse sentido, como pessoa vidente ou não, a ida ao estádio configura sentir a emoção in loco do que se ouve e imagina, participando de forma ativa do espetáculo. No que se refere ao trabalho com alunos cegos e de baixa visão, Ochaíta e Espinosa (2004) destacam que o planejamento das intervenções para o ensino dessas pessoas deve basear-se em suas necessidades específicas, que decorrem, principalmente, da falta ou da deterioração do canal visual de coleta de informações. Por isso, os profissionais encarregados da educação desses alunos devem conhecer as características mais importantes do desenvolvimento e da aprendizagem das crianças e dos adolescentes com deficiência visual, porque só poderão planejar e desenvolver suas ações de acordo com as demandas dos educandos. A inauguração do Instituto Benjamin Constant em 17 de setembro de 1854, representou a primeira experiência concreta tanto no Brasil quanto na América Latina relacionada à garantia ao cego do direito à cidadania. Sua finalidade é a de promover a inclusão do deficiente visual na sociedade através da realização de serviços no âmbito educacional e na área médica. O Instituto possui uma escola, capacita profissionais de apoio às necessidades educativas especiais na área da cegueira e da baixa visão, assessora escolas e instituições. Também realiza consultas oftalmológicas à população, reabilita, produz material especializado, impressos em Braille e publicações científicas (IBC, 2014). As atividades pedagógicas envolvem as mesmas disciplinas da grade curricular do ensino não especializado no que tange a 2ª fase do ensino fundamental (6º ao 9º ano, base do nosso trabalho). Todos os alunos do IBC, desde a Educação Infantil até o 9º ano, são atendidos em horário integral. O Instituto também possui alunos internos, com saída apenas nos finais de semana. Diante das especificidades listadas, uma

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LU C IA NA MA R IA SA N TOS D E ARR UDA / FERN AN D O DA COS TA FERREIRA / ROBS ON LOP ES D E FREITAS J U NIOR

equipe multidisciplinar de professores do IBC elaborou um projeto sobre a Copa do Mundo no Brasil, desenvolvido por meio de oficinas, em que os professores abordaram a temática do futebol através de suas disciplinas. O pontapé inicial proposto foi uma visita guiada ao Maracanã em razão do forte interesse que os alunos apresentam pelo assunto. Devido à grande procura no mês de março de 2014, os discentes foram divididos em dois grupos, sob a supervisão de professores e agentes educadores do IBC. Sendo assim, o presente trabalho visa analisar as impressões colhidas junto aos alunos ao longo da nossa ida a campo. Para tal, trabalhamos com a pesquisa quantitativa (aplicação de questionários) e qualitativa (realização de entrevistas com os educandos) relacionadas à atividade pedagógica desenvolvida pela equipe de Geografia da instituição. Em razão da grande, e surpreendente, procura por parte dos alunos (meninos e meninas) da instituição, as visitas guiadas ao estádio foram realizadas em duas datas: 10 e 17 de março de 2014. No total, compareceram 30 alunos, sendo 5 cegos e 25 com baixa visão, com idades que

variam entre 11 e 22 anos, todos eles matriculados do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental. Os deslocamentos IBC – Maracanã – IBC foram realizados em ônibus próprio, sempre contando com a presença de professores de diferentes disciplinas e assistentes de alunos. A equipe de guias do estádio fez uma espécie de “tour vertical”, uma vez que, após uma breve palestra no hall de entrada, acerca da história da praça de esportes, a visita seguiu via elevador até o último andar, próximo ao local destinado às cabines de rádio e televisão, descendo (também por elevador) em direção aos camarotes e assentos nos quais são cobrados os ingressos mais caros onde puderam, além de experimentar o mobiliário utilizado pelos torcedores “VIPs”, fotografar e contemplar a parte interna do estádio (Figura 1), até chegar aos vestiários e sala de aquecimento dos atletas, onde foi passado um pequeno filme sobre o estádio. Posteriormente, utilizamos o túnel de acesso ao campo para chegar à beira do gramado (havia uma fita que impedia o acesso ao campo de jogo). Por último, visitamos a Sala de Imprensa, onde são realizadas as entrevistas coletivas com técnicos e jogadores após as partidas.

F i g u ra 1 | Al u n o s n a á re a e x t e rn a d o s c a m a ro t e s c o n t e m p l a m o i n t e ri o r d o M a ra c a n ã . F o n t e : Os a u t o re s (2 0 1 4 )

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Com o intuito de colher as impressões e percepções de nossos educandos, no mês de junho, a equipe de professores de Geografia aplicou um questionário com seis perguntas acerca da visita ao estádio a 28 alunos (dois alunos, por razões de saúde, deixaram de frequentar as aulas e não puderam responder os questionários). Os resultados serão analisados a seguir. Quando perguntados se gostaram da visita ao estádio, a opinião unânime foi positiva, o que comprova o fascínio exercido pelo principal equipamento esportivo da cidade mesmo entre aqueles que não gostam de futebol. A questão seguinte fazia referência ao que eles mais tinham gostado. Neste quesito, destacamos que dezesseis alunos citaram a ida ao vestiário (onde estavam expostos e podiam ser tocados os uniformes utilizados pelos jogadores da seleção brasileira durante a Copa das Confederações, realizada em 2013) e à beira do gramado; cinco alunos afirmaram que gostaram de tudo. A atenção da equipe de guias, a Tribuna de Imprensa e a Sala de Imprensa também foram lembradas. No outro extremo, quando questionados sobre o que menos gostaram, 10 alunos responderam que nada os tinha desagradado (além daqueles que deixaram a questão em branco); quatro reclamaram dos preços cobrados na cantina; a frustração por não poder entrar no campo de jogo foi citada por duas pessoas e, com uma resposta cada, tivemos: não ter ganhado nenhum brinde e não ter ido ao museu. A quarta pergunta tratava da percepção dos alunos sobre a existência ou não de acessibilidade para pessoas com deficiência visual no estádio. Dos vinte e oito entrevistados, dezenove responderam de modo afirmativo. Para eles, o fato de haver (em determinados pontos) piso tátil, além de algumas placas em braille configurariam o local como acessível. Por outro lado, vale salientar que os alunos perceberam que os guias do Maracanã embora muito atenciosos e prestativos, não tinham o preparo específico para atender a esse público-alvo. O item seguinte tratava sobre o que eles tinham aprendido com a visita ao Maracanã. A 112

história do estádio foi destacada por 10 alunos; seguida da cultura do futebol brasileiro (3); e que o Brasil é o país do futebol (2). Entre outras respostas, podemos citar: “dar valor aos monumentos históricos”; que “os deficientes visuais também podem ir ao Maracanã”; “respeitar as outras pessoas”; e que “nós deficientes somos importantes”. Por último, pedimos para que resumissem numa frase o que sentiram após a visita ao estádio. Destacamos as seguintes respostas: “Eu gostei pra caramba”; “Eu me senti um jogador de futebol”; “Eu achei muito legal”; “Foi muito emocionante ir num estádio onde muitos jogadores brilharam”; “O Maracanã será o mesmo hoje e sempre”; “Achei tudo muito lindo”; “Eu gostei muito”; “Eu me senti maravilhado”; “Eu senti muita alegria”; “Eu senti uma emoção, pois lá passaram grandes jogadores e sem contar que a nossa seleção foi campeã da Copa das Confederações”; “Foi uma emoção muito boa”. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo buscou apresentar uma breve discussão sobre as impressões e percepções apresentadas durante duas visitas guiadas ao Maracanã por parte do corpo discente, docentes e assistentes de alunos. Nesse sentido, pode-se salientar que as impressões e percepções dos alunos cegos e com baixa visão se caracterizam como sensações/ emoções “maravilhosas” (de acordo com os próprios educandos). Também vale ressaltar que as respostas dos alunos ao questionário foram muito satisfatórias e, ao mesmo tempo, evidenciam resultados sobre itens específicos a esse público-alvo tais como acessibilidade, uso do braile, piso tátil, dentre outros. Por fim, pode-se afirmar que as impressões e percepções colhidas junto aos alunos cegos e com baixa visão do Instituto Benjamin Constant (IBC), através da abordagem multissensorial, colaboraram positivamente para o advento das sensações de serem eles os verdadeiros “artistas do espetáculo”, durante visita ao mítico estádio do Maracanã.

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LU C IA NA MA R IA SA N TOS D E ARR UDA / FERN AN D O DA COS TA FERREIRA / ROBS ON LOP ES D E FREITAS J U NIOR

REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Benjamin Constant (IBC). Disponível em: <http://www.ibc.gov.br/>. Acesso em: 30 jun. 2014. MASCARENHAS, Gilmar. Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014. OCHAÍTA, Esperanza; ESPINOSA, Maria A.; Desenvolvimento e intervenção educativa nas crianças cegas ou deficientes visuais. In: COLL, César; MARCHESI, Álvaro; PALACIOS, Jesús (Org.). Desenvolvimento psicológico e educação: transtornos de desenvolvimento e necessidades educativas especiais. 2 ed. Porto Alegre: Artmed, 2004. v. 3, p. 151-170.

G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 1 0 9 - 1 1 3 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

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PR ÁTI CA S PE D A G Ó G ICAS

A FAVELA SOB O OLHAR DE ALUNOS DE CLASSES POPULARES THE FAVELA UNDER THE VISION OF STUDENTS FROM WORKING CLASS

VAL É R IA G R A CE COSTA

Bacharel em Geografia (UERJ) e Doutora em Arquitetura e Urbanismo (USP) Tecnologista em Informações Geográficas do IBGE valg racecos ta@y ahoo.co m . b r

RESU M O:O T E X T O A P R ES EN TA U M A EX P ER I Ê N C I A D I DÁT IC A RE ALIZADA E M 2 0 0 7 NA E S C OLA DE E S P E TÁC ULO: S P ETÁCUL US. TRATA - S E D E U M A E S C O L A Q U E TE M C O M O O B JE T I V O A C APAC ITAÇ ÃO P ROFIS S IONAL DE JOVE NS DE 1 7 A 2 1 ANOS , ORI UNDOS D A RE D E P Ú B LICA D E E N S I N O E M O R A D O R ES D E Á R EAS DE VULNE RABILIDADE S OC IAL NO GRANDE RIO. A “VIS ÃO DA FAVEL A” CON S T IT U ÍA O T E MA DA A U L A Q U E M I N I S TR EI C O M O P R OFE S S OR C ONVIDADO E FAZIA PART E DE UM P ROJE T O E M DE S E NVO LVI MENTO PELA E S COLA . A PA RTI R D A R E A L I Z A Ç Ã O D E U M A DINÂM IC A PARA AP RE S E NTAR O T E M A FOI P OS S ÍVE L S IS T E M ATI ZAR AS RESPO S TA S A C E R CA D O S I G N I F I C A D O D E FAV EL A S E DE S TAC AR OS E LE M E NT OS S IGNIFIC AT IVOS PARA A C OM P RE ENSÃO DA PERCE P Ç Ã O D E CA D A U M S O B R E E S TE TI P O D E A G R UPAM E NT O. E NT RE OS DIVE RS OS AS P E C T OS RE LE VANT E S M E NCI ONADOS N O PR E S E N T E A RT IG O , P O D EM O S D ES TA C A R Q U E O S R E S ULTADOS M OS T RAM QUE O E S PAÇ O VIVIDO S E S OBRE P ÕE S AO ESPAÇO CON S T R U ÍD O A O A N A L I S A R M O S O S D I V E R S O S EL EM E NT OS QUE C ONS T IT UE M A P E RC E P Ç ÃO DOS ALUNOS S OBRE A FAVEL A. PALAVRAS-CHAVE: FAVELA; PERCEPÇÃO; LUGAR; CULTURA; TERRITÓRIO.

ABST RAC T: T HE PA P E R P R E S EN T S A T E A C H I N G EX P ERIM E NT C ONDUC T E D IN 2 0 0 7 AT T H E S C H OOL OF S P E C TAC LE : S P ETÁCUL US. THIS IS A S CHOOL T H AT A I M S AT P R O F ES S I O N A L T R A INING OF Y OUNG P E OP LE -1 7 -2 1 Y E ARS - FROM P UBLIC S C H O OL S AND RESIDE N T S AT A R E A S O F S O C I A L V U L N E R A B I L I T Y I N M E T ROP OLITAN ARE A OF RIO DE JANE IRO. “VIS ION OF T H E FAV EL A” WAS THE TH E M E OF T HE L E S S O N I TA U G H T A S A V I S I TI N G T E AC H E R AND WAS PART OF S C H OOL’S ONGOING P ROJE C T. F ROM THE REALI Z AT ION OF A G R O U P D Y N A M I C T O P R E S EN T TH E T H E M E IT WAS P OS S IBLE T O S Y S T E M AT IZE T H E ANS W E RS ABOUT THE MEANIN G OF FAV E LA . I T WA S H I G H L I G H T T H E S I G N I F I C ANT E LE M E NT S FOR UNDE RS TANDING T H E P E RC E P T ION OF E A CH ABOUT THE FAV E LA . A MON G M A N Y R E L EVA N T P O I N TS M E N T IONE D IN T H IS ART IC LE , W E H IGH LIGH T T H E RE S ULT S S H OW THAT THE LIVED S PA C E OV E R LA P S TH E C O N S T R U C T E D O N E I N ANALY ZING T H E DIFFE RE NT E LE M E NT S T H AT C ONS T IT UT E T H E STUDENTS’ PERCE P T ION A B OU T T H E FAV EL A . KEYWORDS : FAV ELA; P E RCE PT I ON; PL ACE ; CULT URE ; T E R R I T O RY.

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VALÉRIA GRACE COSTA

OBJETIVO Pretende-se apresentar neste artigo uma experiência vivenciada em sala de aula com alunos de classes populares, visando trabalhar os significados de favelas a partir das perspectivas individuais como observadores e como sujeitos. No primeiro caso estariam, principalmente, aqueles alunos que não residem em favelas ou assemelhados e no outro caso aqueles que residindo nestes tipos de agrupamentos teriam uma visão mais de dentro para fora. CONDIÇÕES DE APLICAÇÃO A atividade foi realizada em 2007 na Escola de Espetáculo: Spetaculus, como professor convidado para participar do projeto que estava sendo desenvolvido, cuja temática estava associada à origem das favelas no município do Rio de Janeiro. A Spectaculu – Escola Fábrica de Espetáculos é uma organização civil sem fins lucrativos, localizada no bairro de Santo Cristo. Visa a capacitação profissional nas áreas de Arte e Tecnologia e Artes Cênicas de jovens de 17 a 21 anos, oriundos da rede pública de ensino e moradores de áreas de vulnerabilidade social do Grande Rio. DESCRIÇÃO DA ATIVIDADE A dinâmica, para motivar a discussão e introduzir o tema foi realizada a partir da pergunta “O que é favela?”. Cada aluno recebeu um papel com a pergunta para que registrassem as respostas individualmente. Os papéis foram recolhidos. Em seguida foi realizada a apresentação cujo objetivo foi o de apresentar a discussão a respeito do conceito de favelas por órgãos e fontes diversas, ou seja, o significado mais formal e operacional do termo. Ao final da aula os alunos receberam de volta suas respostas e foi perguntado se manteriam o conceito. Caso contrário poderiam escrever uma segunda definição. Os resultados foram utilizados para discussão e conclusão da aula. Neste artigo

trago alguns elementos que poderão ser úteis para enriquecer o debate a respeito dos olhares diversos sobre favelas. Tais elementos foram destacados após a sistematização dos resultados realizada por mim. Em um primeiro momento apresento uma classificação mais geral das respostas em três grupos, considerando que algumas respostas trazem embutidas as ideias mais próximas de cultura ou de elementos que carregam uma maior subjetividade (aspectos socioculturais, imaginário social, etc.) outras respostas se aproximam mais da noção de território ou de elementos que enfatizam a delimitação e características mais materiais deste espaço (lugar, espaço de poder, localização, chão, paisagem). No primeiro caso a ênfase seria na essência e no segundo na aparência1. Um terceiro grupo de definições carrega as duas noções em suas respostas. De um total de 37 alunos, foi possível identificar um peso maior na definição dos aspectos mais associados ao território (22 alunos), enquanto 7 enfatizaram aqueles aspectos mais associados à percepção sociocultural. Em apenas quatro casos identificamos as duas abordagens na concepção de favelas. No entanto, esta divisão apresentada acima não dá conta do universo de elementos que compõe, segundo estes alunos, o universo da favela. Nos deteremos a seguir na identificação de alguns outros elementos destacados nas definições dos alunos e que também podem ser úteis na discussão. A noção de “não lugar”, por exemplo, é bem explícita em algumas definições como:

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“Favela tem o sentido de esquecimento pelas pessoas que não considera favela um lugar para morar” (K. A.); “Conjunto de casas de pessoas que se ajudam: vivendo num misto de terror e solidariedade que nada mais é que um mundo a parte que está no topo da cidades, dos que pensam ser soberanos” (R. P.).

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P R ÁT I C A S PED AG Ó G ICAS | A FAVE LA SO B O O LH A R D E ALUN OS D E CLAS S ES P OP ULARES

Nesta passagem anterior também está clara a noção de bipolaridade, a contradição entre o mal e o bem, expressos respectivamente pelas palavras “ terror” e “solidariedade”. As características de pobreza, miséria, precariedade, carência, falta de condições de vida também estão presentes na maioria das definições: “Uma comunidade, na maioria das vezes vivendo em condições precárias, sem saneamento básico, acesso a cultura, etc.” (M. F.); “Favela é um conjunto de pessoas de baixa renda reunidas em determinado lugar” (L. A.). Contudo, há o contraponto, quando o aluno ao qualificar e valorizar o seu lugar busca a sua própria valorização como indivíduo, conforme pode ser observado nas descrições abaixo: “A favela é um lugar onde tem alegria, diversão, solidariedade e união acima de tudo” (J.);

O sentido de desigualdade social, assim como a relação entre as classes sociais (noção de luta de classes) também permeia alguns destes conceitos/preconceitos:

“Um conjunto de barracos com a divisão de classe social” ( M. B.) 116

“Favela é uma região onde costumam habitar pessoas menos favorecidas (não necessariamente nos subúrbios das cidades); sendo também de grande influência cultural, e é o foco do tráfico de drogas” (F. K.). A contradição da sociedade, ressaltando o caráter bipolar, também está contida neste imaginário, nestas percepções de favela por seus moradores ou por aqueles que embora não morem se identificam, de certa forma, com o lugar. Conforme a definição abaixo: “é o lugar onde pessoas pobres (sem poder de autoridade no mundo) se agrupam sendo dominadas por pessoas com auto grau de autoridade e boas condições de vida” (P. A. S.). CONSIDERAÇÕES FINAIS

“A favela, ou comunidade como queiram, não é um local de guerra, dor e sofrimento, é um local de pessoas humildes e ao contrário do que mostram os meios de comunicação (TV e jornais), a favela é também um palco de alegrias, culturas variadas, união e compaixão, com pessoas guerreiras” (G.P.).

“É o lugar onde pessoas pobres ( sem poder de autoridade no mundo) se agrupam sendo dominadas por pessoas com auto grau de autoridade e boas condições de vida” (P. A. S.);

Um outro elemento também recorrente em tais definições se refere à indicação do “tráfico de drogas” como um componente na caracterização das favelas:

Em geral, uma infinidade de elementos compõe, segundo estes alunos, o universo da favela. Ao contrário dos conceitos formalmente e operacionalmente construídos, o significado pessoal deles desconsidera muitas vezes os limites e suas demarcações mais objetivas. Desta maneira, o espaço como chão fica de certa forma negligenciado em função dos diversos outros sentidos identificados nos elementos que tais alunos utilizam para compor este universo, conforme vimos em algumas das respostas destacadas anteriormente. Em tais definições foram ressaltadas as noções de não lugar (sentido de não pertencimento), da supervalorização do lugar e da autoestima dos seus moradores, os aspectos dicotômicos entre o bem e o mal, e a incorporação do tráfico de drogas como um dos elementos materiais caracterizadores deste espaço.

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VALÉRIA GRACE COSTA

Para contrapor o aspecto negativo da favela há uma supervalorização de aspectos positivos, no sentido de transformar o “não lugar” em “lugar”. Esta supervalorização, pode, levar a uma idealização, a certo exagero, ufanismo e até uma certa utopia. Em alguns casos se observa um certo distanciamento da realidade. O tráfico, como elemento caracterizador de favela, acompanha, conforme observado na evolução do conceito, as transformações ocorridas nas favelas, sobretudo nas últimas décadas. De acordo com COSTA (2004) as transformações mais recentes ocorridas tanto nas favelas como nos seus conceitos, compreendem tanto as características físicas e socioeconômicas como outras mais subjetivas e próprias deste universo. O conjunto destas mudanças revela o caráter mais complexo que este espaço vem adquirindo com o aumento da urbanização. Tal complexidade

é refletida na dificuldade em se definir este espaço, tanto por parte de organismo oficiais e dos acadêmicos, como por parte daqueles que vivem na favela. De qualquer forma, cada uma das respostas e dos significados dados pelos alunos ressaltam mais fortemente o espaço vivido do que o espaço construído. Na avaliação final com a turma foi constatado que os conceitos trazidos por eles tiveram muito mais sentido e força do que aqueles trazidos por mim, mais formais, obtidos de organismos oficiais e da literatura, considerando que poucos alunos refizeram ou modificaram as suas respostas a partir da minha exposição. NOTA 1

Ver Santos (1996).

REFERÊNCIAS COSTA, Valéria Grace. Favelas e assemelhados. O conceito e o Estado da Arte. GeoUERJ, Rio de Janeiro, n. 15-16, p. 21-34, 2004. SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo - razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996. G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 1 1 4 - 1 1 7 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

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PR ÁTI CA S PE D A G Ó G ICAS

ARMAZENZINHO: MÓDULO DO ARMAZÉM DE DADOS PARA DISSEMINAÇÃO DE INFORMAÇÕES HISTÓRICAS E GEOGRÁFICAS SOBRE A CIDADE DO RIO DE JANEIRO DIRECIONADO A ESTUDANTES E PROFESSORES ARMAZENZINHO: ARMAZÉM DE DADOS’S MODULE FOR DISSEMINATION OF HISTORICAL AND GEOGRAPHICAL INFORMATIONS ABOUT THE CITY OF RIO DE JANEIRO DIRECTED TO STUDENTS AND TEACHERS

L U IZ MU R IL LO NUNES TOBI AS Instituto Pereira Passos Diretoria de Informações da Cidade

MA R IA L U IZ A FURTADO DE M ENDO NÇA Instituto Pereira Passos Diretoria de Informações da Cidader

N E I DE CA R VALHO M ONTEI RO Instituto Pereira Passos Diretoria de Informações da Cidade armazem@pcrj .rj .gov.br

RESU M O:E S T E A RT IG O A P R ES EN TA O A R M A Z EN Z I N H O, ÁRE A DO P ORTAL ARM AZÉ M DE DADOS – W W W.ARM AZE M DE DADOS.RI O. RJ . GOV. B R - P R IN CIPA L V EÍ C U L O D E P R O D U Ç Ã O E DIS S E M INAÇ ÃO DE INFORM AÇ ÕE S S OBRE A C IDADE DO RIO DE JANEI RO, G ERENCIA D O P E LO INS TI TU TO P E R EI R A PA S S O S ( I P P ) . O P ROJE T O “ARM AZE NZINH O” FOI DE S E NVOLVIDO P E LO IP P, C OM O APOI O D A SE C R E TA R IA MU N I C I PA L D E E D U C A Ç Ã O ( S M E) E E M P RE S A M UNIC IPAL DE M ULT IM E IOS LT DA ( M ULT IRIO) , VIS A DI SSEMI NAR IN FO R M A Ç ÕE S D A CID A D E PA R A C R I A N Ç A S E JO V E N S E M IDADE E S C OLAR. P OS S UI 5 ( C INC O) M ÓDULOS P RINC IPAIS - HI STÓRI AS D O RIO, D A D OS D O R I O , C O N H EC EN D O O R I O , C A RTO GRAFIA E C ONH E Ç A TAM BÉ M - E C ONTA C OM UM S IS T E M A GE RENCI ADOR D E BA N C O D E D A D O S Q U E P E R M I T E U M A AT U A L I Z AÇ ÃO DINÂM IC A DE INFORM AÇ ÕE S TABULARE S , FE IÇ ÕE S GE OGRÁF I CAS E HIS T ÓR ICA S , IMA GEN S P R O G R A M A D A S E ATI V I D ADE S LÚDIC AS DIDÁT IC O-P E DAGÓGIC AS . A P ROP OS TA É E S T I MUL AR O CON H E CIME N T O S OB R E A C I D A D E E TR A N S M I T I R I N F ORM AÇ ÕE S DE FORM A INT E RAT IVA, AM P LIANDO A RE DE DE US UÁRI OS QUE ACESS A M O A R MA Z É M D E D A D O S , C R I A D O EM O U TU B RO DE 2 0 0 1 . PALAVRAS-CHAVE: RIO DE JANEIRO; ATIVIDADES DIDÁTICO-PEDAGÓGICA; BANCO DE DADOS; MAPAS.

ABST RAC T: T HIS PA P ER P R E S EN T S A A R E A O F TH E ‘ARM AZÉ M DE DADOS ’ - W E BS IT E ( W W W.ARM AZE M DE DADOS .RIO.RJ.GOV. BR) - T H E MA IN V E HI C L E T O S P R E A D G E O G R A P H I C AND S TAT IS T IC AL DATA ABOUT T H E C IT Y OF RIO DE JANE IRO, MANAGED BY PER E IR A PA S S OS M U N I C I PA L I N S TI TU TE O F U R B ANIS M ( IP P ) . E LABORAT E D BY IP P, IN PART NE RS H IP W IT H T H E MUNI CI PAL ED UC AT ION S E CR E TA R I AT ( S M E ) A N D TH E M U N I C I PAL C OM PANY OF M ULT IM E DIA LT DA ( M ULT IRIO) , T H E ‘ARM AZENZI NHO’ PRO J E C T A IM S A N D S P R EA D T H E C I T Y I N F O R M AT I O N T O C H ILDRE N OF 6 FROM T O 1 2 Y E ARS OLD. T H E ‘ARM AZE NZI NHO’ HAD D IVIDE D IN 5 (FIV E ) M A I N M O D U L E S ( R I O H I S TO RY, RIO DATA, S PAC E VIS ION, C ART OGRAP H Y AND E NT E RTAINM E NT) AND I T HAVE A D ATA B A S E M A N A G EM E N T S Y S TE M W H I C H A LLOW S A DY NAM IC UP DAT E OF TABULAR INFORM AT ION, GE OGRAPHI C AND HISTOR ICA L FE AT U R E S , P R O G R A M M E D I M A G E S A N D DIDAC T IC -P E DAGOGIC AL LUDIC AC T IVIT IE S . T H E P ROP OS AL INCL UDES TO STIMU LAT E T H E C IT Y K N O W L E D G E , TO T R A N S M I T I N FORM AT ION IN A E AS Y AND INT E RAC T IVE WAY AND T O IM P ROVE THE NET USERS WH O A C C E S S T H E S I T E ‘ A R M A Z E M D E D A D O S ’, S INC E OC T OBE R 2 0 0 1 . KEYWORDS : RIO DE JANE I RO; DI DACT I C- PE DAGOGI CAL A C T I V I T I E S ; D ATA B A S E ; C I T Y M A P S R I O .

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LU IZ MU R ILLO N UN ES TOBIAS / MARIA LUIZA FURTAD O D E MEN D ON ÇA / N EID E CARVALHO M ONTE IRO

O Instituto Municipal Pereira Passos (IPP) tem como uma de suas missões, produzir, difundir e qualificar informações de apoio à gestão. Para isso, criou o sítio Armazém de Dados que faz parte do portal da Prefeitura do Rio de Janeiro para disseminação de informações sobre a Cidade. Para atender a uma demanda crescente por informações direcionadas a jovens estudantes e professores, o IPP/DIC desenvolveu uma nova área do site Armazém de Dados, denominado Armazenzinho - que visa disseminar informações da cidade para crianças e jovens em idade escolar. O projeto foi elaborado com o apoio da Secretaria Municipal de Educação (SME), que acompanhou, orientou e avaliou o conteúdo pedagógico, e a Empresa Municipal de Multimeios Ltda (Multirio), que deu apoio técnico na produção de mídia educativa. O Armazenzinho utiliza tecnologia de Banco de Dados que permite uma atualização dinâmica de informações tabulares, feições geográficas e históricas, imagens programadas, atividades lúdicas, didáticas e pedagógicas. Os dados tabulares associados às múltiplas feições geográficas e imagens da cidade fornecem diversas informações sobre o Rio de Janeiro. No Armazenzinho há mapas, imagens,

sons e animações, consolidados por aplicativos e jogos de entretenimento. Todo o conteúdo de dados é acessado e atualizado por um Sistema Gerenciador com 3 (três) níveis de hierarquia de acesso, para a administração de conteúdo (inclusão, alteração e exclusão) e atualização dinâmica de algumas telas. Os dados são de diferentes origens e estão armazenados nos bancos de dados SQL Server. São utilizadas tecnologias HTML e ASP, com aplicativos desenvolvidos em Java Script, Flash (Action Script), ARCIMS e acesso ao Banco de Dados Microsoft SQL e IIS 6, em Windows Server. Na página principal os cinco módulos podem se acessados pelos botões fixos à esquerda, permitindo a partir desta seleção, acesso a uma nova tela contendo as seções existentes de cada um deles. Na área central, os destaques podem ser dinamicamente alterados e a direita um acesso direto às seções internas de aplicativos e jogos do Armazenzinho. O site está dividido a partir de 5 (cinco) grandes módulos temáticos: ‘Histórias do Rio’, ‘Dados do Rio’, ‘Conhecendo o Rio’, ‘Cartografia’ e ‘Conheça Também’. Cada módulo é subdivido em seções e, eventualmente, subseções. A seguir, uma síntese descritiva dos módulos e das seções.

Fi gura 1 | Tela P r in cip a l e s e us M ó d u l os Font e : p o r talg eo .r io .rj . g o v. br/a rm a ze nzi nh o /w e b

G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 1 1 8 - 1 2 4 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

F i g u ra 2 | Te l a Se c u n d á ri a - Seções F o n t e : p o rt a l g e o . ri o . rj . g o v. b r/a rm a ze n zinho/ web

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P R ÁT I C A S PED AG Ó G ICAS | A R MA Z E NZ INH O : MÓ DU LO D O ARMAZÉM D E DAD OS

1. HISTÓRIAS DO RIO 1.1 Régua do Tempo: nesta área utilizouse o recurso temporal, por ano, para relatar os fatos que aconteceram no Mundo, no Brasil, no Rio e curiosidades científicas e culturais nos grupos Enquanto Isso e Além Disso. Todo esse material vem de pesquisas de livros de autores renomados, sites institucionais e pesquisadores. Na elaboração dos textos existe sempre um cuidado de esclarecer as palavras e termos aplicados através da área do Glossário, incluindo ilustrações para enriquecer o material citado. 1.2 Histórias dos Bairros: área do site que mostra o mapa do município do Rio com as divisões dos bairros através de um aplicativo em Flash. Na faixa lateral está a relação dos 161 bairros que ao ser escolhido um deles, acende no mapa o bairro correspondente, mostrando sua localização no município. Para elaboração dos textos dos 161 bairros foi feita uma extensa pesquisa em livros de história e sites institucionais. Esses textos sempre que possível, apresentam um breve histórico e a descrição da evolução do bairro até os dias de hoje, indicando os principais destaques. Foram utilizadas fotos representativas dos bairros e a ortofoto, recortada, no formato do bairro escolhido. Nos textos dos

bairros que possuem um conteúdo muito extenso, usamos o recurso complementar do texto com a ferramenta Saiba Mais. Na barra superior de ferramentas estão disponíveis postais, para serem enviados via email, com fotos dos bairros, além de jogos para fixar o conteúdo de forma lúdica. 1.3 Elementos Históricos: esta área é dividida em 4 grupos, onde as pesquisas textuais foram feitas em diferentes fontes, cruzando as informações com a área da Régua do Tempo. Fotos e imagens foram pesquisadas em diferentes acervos institucionais incluindo sites oficiais, como é o caso das cédulas e moedas. Duas das divisões desta área (Governantes e Moedas) possuem uma busca direcionada dentro do tema, facilitando assim, o resultado. Possui também uma área que disponibiliza Símbolos como hinos, bandeiras e brasões, além de Datas Importantes. 2. DADOS DO RIO 2.1 Conhecendo a Cidade: síntese de informações gerais sobre a Cidade. 2.2 Regiões Administrativas: dados quantitativos de temas relevantes como território e meio ambiente, população, domicílios, saúde e educação. O aplicativo desenvolvido em Flash possui um comparativo (ranking) dos dados entre as 33 regiões administrativas. 2.3 Conhecendo os Bairros: aplicativo de dados quantitativos dos temas território, meio ambiente, população, domicílios, saúde e educação. Também possui um comparativo (ranking) dos dados entre os 161 bairros.

Fi gura 3 | Mó d u lo Histó ri a s do R i o. Font e : p o r talg eo .r io .r j.g ov. br/a rm a ze nzi nh o /w e b

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As informações do módulo Dados do Rio de bairros e regiões administrativas são extraídas automaticamente do aplicativo Bairros Cariocas que fica no Armazém de Dados. Esse aplicativo mostra o mapa do município do Rio com as divisões dos bairros e/ou das regiões administrativas. Na faixa lateral direita está a relação dos 161 bairros ou das 33 regiões administrativas, que a partir da G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 1 1 8 - 1 2 4 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


LU IZ MU R ILLO N UN ES TOBIAS / MARIA LUIZA FURTAD O D E MEN D ON ÇA / N EID E CARVALHO M ONTE IRO

seleção de um deles, acende no mapa o bairro ou a RA escolhida, destacando a sua localização dentro do município.

3. CONHECENDO O RIO É uma área lúdica do Armazenzinho, onde as informações são passadas com uma linguagem simples, objetiva e com uma apresentação de dados textuais, imagéticos e também a localização espacial em mapas. 3.1 Lugares do Rio: nesta área está disponibilizado no mapa da cidade os principais locais ecológicos, esportivos, culturais e turísticos, com suas informações. Ao clicar em qualquer ponto, aparece um pequeno texto explicativo e uma foto do local para ilustrar a informação. 3.2 Passeio pelo Bairro: o usuário poderá montar o seu próprio mapa, usando como base o Mapa Digital do Rio, utilizando símbolos (ícones) que representam os locais que desejam ser mapeados. Esta área foi colocada no site para atender uma demanda da SME que necessita utilizar em atividades com os alunos para a representação de diferentes elementos (padaria, banca de jornal, escolas entre outros) que foram

observados ao fazer um passeio no entorno da escola ou no caminho casa/escola/casa. Esta atividade pedagógica tem o nome de Mapa Mental. 3.3 Observando o Espaço: percorrendo esta área, o usuário entende a noção do espaço onde vive e as suas transformações. Para isso, é importante entender as diferentes visões espaciais de algum elemento (lateral, frontal, oblíqua e de topo), introduz o conceito de direção cartográfica através da Rosa dos Ventos com os pontos cardiais, Norte, Sul, Leste e Oeste e a transformação de Paisagem Natural para uma Paisagem Transformada pela interferência do homem ou da própria natureza. Neste módulo, inicia-se a “alfabetização cartográfica”, estimulando a leitura e a interpretação de mapas com todos os seus elementos. 3.4 Roteiros no Rio: área que disponibiliza mapas com precisão cartográfica do município do Rio de Janeiro, utilizando diferentes rotas, através dos sistemas de transportes por metrô, trem, bicicleta e barcas. Neste módulo, identificase também todas as ilhas do município seus nomes, áreas, coordenadas, fotos e apresenta um pequeno texto explicativo. Mostra também os diversos túneis da cidade com suas extensões e localizações.

Fi gura 4 | Mó d u lo Da d o s do R i o Font e: p o r talg eo .r io .rj . go v. br/a rm a ze nzi nh o /w e b

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F i g u ra 5 | M ó d u l o Co n h e c endo o Rio F o n t e : p o rt a l g e o . ri o . rj . g o v. b r/a rm a ze nz inho/ web

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P R ÁT I C A S PED AG Ó G ICAS | A R MA Z E NZ INH O : MÓ DU LO D O ARMAZÉM D E DAD OS

4. CARTOGRAFIA 4.1 Descobrindo a Cartografia: esta área introduz noções aos usuários sobre convenções cartográficas como título, legenda, orientação, escala gráfica e/ou numérica com diferentes proporções, assim como, projeções cartográficas, curvas de nível, técnicas de levantamento cartográfico. Apresenta também a elaboração de mapas, seus usos e aplicações. 4.2 Usando Mapas Prontos: esta seção foi inserida no site, a pedido da SME devido à dificuldade de encontrar mapas básicos da Cidade do Rio de Janeiro para serem trabalhados em sala de aula. Estes Mapas Mudos só possuem o contorno das principais feições, para serem impressos e trabalhados. Já os Mapas Temáticos estão totalmente prontos e coloridos, para serem baixados como imagens ou impressos. 4.3 Montando Mapas: é uma área que possui um aplicativo de Sistema de Informações Geográficas (SIG ou GIS), onde o usuário pode interagir na montagem do seu próprio mapa em função do tema que for importante realçar. Através deste aplicativo o usuário é introduzido na cultura e tecnologia de Geoprocessamento. As informações georreferenciadas, representadas

Fi gura 6 | Mó d u lo Ca rt og ra f i a Font e : p o r talg eo .r io .rj . g o v. br/a rm a ze nzi nh o /w e b

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no mapa, possuem informações alfanuméricas associadas. 5. CONHEÇA TAMBÉM Área dividida em três grupos: uma para disponibilizar material em textos ou mapas, com temas específicos, outra área para trabalhos resultantes de concursos escolares, e alguns links importantes. APLICATIVOS E JOGOS Atividades lúdicas e pedagógicas para fixação do conteúdo com informações sobre temas cariocas. Podem ser acessadas pela página principal ou também, através de ícones na barra superior das diferentes seções e subseções. Como exemplo dos variados aplicativos citamos: Evolução e Ocupação Urbana do Rio, Evolução do Planeta, Evolução da Área Central do Rio, ET passeia pelo Rio, Transformação da Paisagem, Rosa dos Ventos, Coordenadas Geográficas, Caça-Palavra com temas diversos (rios, bairros, praias, ilhas oceânicas, ilhas das baias, maciços, estações e fauna), Quebra-cabeça de divisões administrativas (Áreas de Planejamento e Regiões Administrativas), Quebra-cabeça de fotos, Jogo de Percurso (Trem e Metrô), Pinte o Mapa, Jogo

F i g u ra 7 | M ó d u l o Co n h e ça Também F o n t e : p o rt a l g e o . ri o . rj . g o v. b r/a rm a ze nz inho/ web

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da Memória, Quebra-cabeça de fotos por temas (meio ambiente, transporte, cultura e pontos turísticos), Descubra os Bairros, Palavra Secreta (com temas de cultura, pontos turísticos, mundial de futebol e bairros), Palavra Cruzada (bairros e estações de metrô), Jogo de Trilhas, Perfil Topográfico, Rio em Mapas e Eventos Esportivos (Copa do Mundo, Jogos Olímpicos, Paralímpicos, Pan-americanos e Parapan-americano). FUNCIONALIDADES Botões especiais que estão habilitados de

acordo com o conteúdo disponível e distribuídos pelos diversos módulos. Há opção de: Vídeos/ Aplicativos; Som (opções de áudio como hinos e canções), Imagens (desenhos, figuras, fotos e mapas relacionados à seção selecionada), Impressão (é dada a possibilidade de imprimir o conteúdo da seção visitada), Atividades Sugeridas (são apresentados textos com sugestões de atividades externas para a seção selecionada), Saiba mais (são apresentados textos complementares ao entendimento da seção e a possibilidade de acesso à opção de

Fi gura 8 | E xem p lo d e A p l i c a t i v o – P e rf i l To p o g rá f i c o Font e : p o r talg eo .r io .r j . go v. br/a rm a ze nzi nh o /w e b

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F i g u ra 9 | E x e m p l o d e j o g o s – Qu e br a- cabeça F o n t e : p o rt a l g e o . ri o . rj . g o v. b r/a rm a ze n z inho/ web

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P R ÁT I C A S PED AG Ó G ICAS | A R MA Z E NZ INH O : MÓ DU LO D O ARMAZÉM D E DAD OS

Contato (canal de comunicação para dúvidas e sugestões).

Fi gura 1 0 | Íco n es d e f u n c i on a l i d a d e s di s t ri bu íd o s po r t o d o o si t e. F o n te: p o r talg eo . ri o . rj . go v. br/a rm a ze nzi nh o /w e b

VOCÊ SABIA? (DICAS TIO DÊNIS) O site possui um personagem que acompanha o usuário por toda a navegação, de nome de TIO DÊNIS, inspirado em um arquiteto do IPP, Dênis Gahyva, que conhece a Cidade como poucos cariocas. O personagem atua como um “Mestre de Cerimônia” apresentando informações curiosas sobre diferentes temas, tornando o site mais lúdico e dinâmico. Enquanto o usuário navega pelo site, diferentes informações são apresentadas quando o mouse é posicionado sobre a imagem do personagem, localizada na lateral direita da tela.

GLOSSÁRIO Esta área apresenta ao usuário o significado de palavras técnicas, utilizadas e cadastradas nos diversos textos dos módulos do Armazenzinho. CONTATO Canal para comunicação (dúvidas, reclamações e sugestões) com a equipe do IPP. Acessa uma tela de entrada de dados (nome, e-mail, assunto e conteúdo da solicitação) que são encaminhados, de forma estruturada (através de e-mail padrão: armazem@pcrj.rj.gov.br) para equipe de suporte do IPP. MAPA DO SITE Apresenta a estrutura geral do Armazenzinho com a descrição resumida do seu conteúdo e a organização dos diversos módulos e seções. CONCLUSÃO A partir de pesquisa com usuários, verificou-se que o Armazenzinho é muito utilizado pelo o público em geral, tanto na área pedagógica como na busca por informações da cidade do Rio de Janeiro. Principalmente, nas áreas de História e Geografia. Algumas instituições de ensino indicam o Armazenzinho como material de pesquisa, sugerem atividades utilizando o seu conteúdo, como o portal do professor do Ministério da Educação, o caderno de atividades de geografia da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, além de diversos outros colégios públicos e particulares. Há uma constante a troca de ideias com a comunidade acadêmica, através de palestras, participação em seminários e congressos. O site está disponível ao público desde setembro de 2008, com atualização constante de conteúdo temático e desenvolvimento de novos aplicativos.

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JOÃO RUA, PROFESSOR E PESQUISADOR Em um final de tarde na PUC-RJ, logo após mais uma de suas aulas de mestrado, o Prof. João Rua recebeu a equipe da Revista Giramundo para uma entrevista. Com experiência em diferentes segmentos de ensino no CAP-UFRJ, na UERJ e na própria PUC-RJ, entre outras instituições, João Rua igualmente diversificou muito sua produção como pesquisador, passando do Ensino de Geografia à Geografia Agrária e, depois, às questões ambientais, sem nunca deixar de lado uma visão política e reflexiva sobre os temas que abordou. Por essa versatilidade, pela personalidade extremamente comunicativa e por outras qualidades, Rua tornou-se um referencial como professor e intelectual para gerações de ex-alunos influenciados por suas práticas e ensinamentos. Registrar um pouco mais desse arcabouço teórico e prático foi um dos objetivos da entrevista, assim como o de prestar homenagem a esse professor muito querido por tantas pessoas de dentro e de fora de nosso campo de conhecimento.

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GIRAMUNDO: Quais foram os motivos que o levaram à escolha do magistério em Geografia? PROF. JOÃO RUA: Eu sempre quis ser professor de Geografia, desde que eu comecei a pensar em profissão. A Geografia veio quando fui aluno do professor Orlando Valverde, no que seria hoje o 7º ano, no Colégio Estadual Souza Aguiar. Eu tinha professores excelentes, o Orlando Valverde foi meu professor durante três anos do ensino fundamental: 7º, 8º e 9º anos de hoje. Chamava-se 2º, 3º e 4º ginasial. A forma como ele veio trabalhar a Geografia no 7º ano era tão antagônica em relação ao que eu tinha tido na série anterior, quando o professor dessa série só trabalhava com mapas, afluentes da margem direita, rios da Ásia... A gente fazia sambinha tentando memorizar eles todos... Estratégia de aluno, não é? Pra ir sobrevivendo naquela massa de informações... Eu já nem digo que é inútil, não. Depois, se vocês quiserem, a gente pode até falar um pouco mais sobre isso, acho que é importante a gente ter esse registro de coisas na memória. A gente nem fala mal da matemática pelo fato de decorar a tabuada. A tabuada para a Geografia representa alguns elementos. É impossível sair da escola básica sem ter alguns referenciais de países, capitais, estados brasileiros. Mas não pode ser só isso o ensino da Geografia, como foi pra mim no que corresponderia ao 6º ano. O professor Orlando Valverde veio, no 7º ano, questionando “qual era a lógica espacial da fundação de Brasília no Planalto Central”, isso um ano antes da inauguração de Brasília. Toda a sociedade só discutia isso. “Por que tirar a capital do Rio? Por que Brasília? Por que lá tão longe? Por que não mais próximo do litoral? Que história é essa de defesa?”... As coisas que se discutiam nos meios de comunicação da época eram muito relacionadas a essa mudança, particularmente aqui no Rio de Janeiro onde eu sempre vivi. Então, ali, ele trazendo aquele mapa e fazendo equipes na turma, cada equipe fazia levantamentos, planos do governo para demonstrar fatores locacionais melhores para que Brasília fosse construída como cidade naquele local e não em outros, mobilizou126

nos vários meses. E foi um registro que tenho até hoje desse exercício. Ali eu decidi que eu haveria de ser professor de Geografia, trabalhando com uma coisa que não fosse apenas fazer sambinha, decorando todos os rios da Ásia. GIRAMUNDO: Conte-nos um pouco sobre sua trajetória profissional, os lugares onde trabalhou e os profissionais que mais lhe influenciaram. PROF. JOÃO RUA: Eu entrei em 1965 na atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, na época chamava-se Faculdade Nacional de Filosofia, onde hoje funciona a Casa Itália, na Avenida Antônio Carlos. No final do primeiro ano, eu fui chamado para estagiar no IBGE. Tenho que dizer que eu tive duas trajetórias paralelas. A primeira foi um curso com professores excelentes: Maria do Carmo Galvão, Bertha Becker, Alfredo José Porto Domingues, Maria Therezinha de Segadas Soares, e outros mais; e no IBGE, o professor Roberto Lobato Corrêa, com quem eu fui estagiar no setor de Geografia Urbana. Fiquei lá seis anos. Me formei e continuei mais dois anos. Foi muito interessante porque, além da referência do Professor Orlando Valverde que eu tinha antes, como professor, eu passei a ter referência de professores de Ensino Superior, principalmente valorizando o trabalho de campo, não numa maneira empírica vazia, mas uma empiria pensada, um concreto pensado, como diria Kosik, que nos levava a campo, com muito preparo antes (e fazíamos longos trabalhos de campo na época). Por conta disso, Maria do Carmo Corrêa Galvão passou a ser para mim uma referência de Ensino Superior, juntando-se a Orlando Valverde. E a terceira referência foi o professor Roberto Lobato Corrêa como pesquisador do IBGE, com quem também fiz inúmeros trabalhos de campo pelo Brasil afora, e que me estimulou desde o primeiro ano a escrever. Os três referenciais me acompanham até hoje. “Como atuar como professor”, e eu lembro da Maria do Carmo e do Orlando. “A realização de trabalho de campo”, eu me lembro da Maria do Carmo. Eu sempre fui muito exigente no campo,

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com horários, com todo dia à noite fechando com os alunos o que foi visto ao longo do dia, discutindo as informações, construindo algumas ideias que ficassem daquela experiência, tal como ela havia me ensinado fazer. Acho que essas três referências foram minha base, e depois fui agregando outras. Me formei em final de 1968, em plena ditadura. Não pude ter formatura e, em março de 1969, eu comecei a trabalhar na UFRJ, no Colégio de Aplicação, como professor de Prática de Ensino de Geografia e de Estágio Supervisionado. Lá eu fiquei 26 anos, trabalhando com formação de professores, que acho que foi a coisa que mais me realizou nesse período de vida. Logo depois, em outubro de 1971, eu comecei na PUC. Em 1974, eu comecei no Estado, no supletivo à noite, onde fiquei dezoito anos. Então, em 1974, eu tinha três inserções, três experiências que foram também moldadoras da minha vida profissional. A de formação de professores, que me obrigava a ficar em diálogo permanente com o que se estava vendo em geografia, na UFRJ, com a Faculdade de Educação e com a experiência no CAP. A de professor do supletivo da rede pública do Estado à noite, um público onde eu tive de aprender, antes ainda de ter fundamentação teórica para isso, a trazer a experiência dos alunos para dentro da sala de aula. Foi pela prática que eu aprendi, depois é que eu fui encontrar Paulo Freire, Gadotti, mais um monte de gente. Mas em muitos momentos eu tentei chegar a eles com a Geografia que eu tinha aprendido e fui vendo: “não tem nada a ver com eles...”. “Ah, aí, isso eu vou levar, eu vou ser aplaudido, porque é o tema deles, todos são migrantes... Fazer um estudo de migrações com questionários...” Fracasso total! Um dia uma aluna me disse: “Professor, para de insistir com isso, a gente quer esquecer isso. Vou ficar lembrando?”. Como é que pode? Que falta de sensibilidade. A gente não tem... Como é que eu iria saber? E aí eu fui aprendendo a levar para dentro de sala de aula temas que tivessem a ver com a vida deles, mas que acontecem dentro de rótulos gerais do programa que eu era obrigado a seguir. Havia aquelas diretrizes e havia os programas. Então, o

segredo, digamos assim, o que eu fui encontrando para poder fazer face a essa dupla exigência, que era chegar ao mundo dos alunos, e que era também trazer o mundo deles pra dentro da escola (ao mesmo tempo dar conta da exigência formal do planejamento, sem sentir preso a ele), foi criar títulos mais gerais onde eu pudesse encaixar as minhas experiências do cotidiano na sala de aula, sem mascarar nada, sendo honesto comigo e com o planejamento. Em janeiro de 1993, eu me inscrevi no concurso para ser professor da UERJ. Eu saí do Colégio de Aplicação da UFRJ, onde fiquei 26 anos, lidando com professores. Metade do Departamento de Geografia tinha sido meu professor e a outra metade era meu aluno, ou tinha sido. Enfim, era uma simbiose muito boa. Mas eu, quando chegou esse final de 1993, comecei a fazer um balanço em cima dessa experiência, da qual resultou o livro “Para ensinar Geografia”. Montei o livro todo e pedi apoio a outros colegas que ajudaram muito – à Regina Petrus, na época, Petrus Tannuri, Fernando Waskiavicus e Helion Póvoa Neto. O livro estava basicamente montado, cada um deles tendo colaborado com algum capítulo que eu estava mais inseguro, ou que eles sugeriram que complementariam. Esse livro, para mim, fechou aquele ciclo de formação de professores. Achei eu, pelo menos. Na verdade, na minha vida inteira o que eu fiz foi isso, continuando a dar aula... Isso não para, mas eu achei. Naquele momento achei: “bom, chega!”. Formalmente encerrou, vamos botar a experiência no livro. Isso foi feito, tanto em escola supletivo quanto no Colégio de Aplicação, quanto na PUC. Mas quando eu fui para a UERJ, em março de 93, continuando na PUC, tendo saído do CAP e do Estado à noite, fiquei só na PUC e na UERJ. Em 2006 eu saí da UERJ e, desde então, tenho trabalhado só na PUC. GIRAMUNDO: Qual a sua opinião acerca da nossa formação? Você defende a formação do profissional de Geografia ou aposta em uma formação separada entre licenciatura e bacharelado?

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PROF. JOÃO RUA: Eu sempre tive a preocupação de ver a formação profissional professor/geógrafo como uma formação que eu vejo como integral, em que o professor nunca pode deixar de ser pesquisador. Tem de sempre pesquisar. Não é somente estudar pra caramba, mas fazer pesquisa mesmo, pesquisa didática, de técnicas de melhor dialogar com os alunos, e de conteúdos mais adequados a cada série com a qual vai lidar. E quem vai trabalhar no mercado como geógrafo, mostrar a ele que ele também vai ser professor nos lugares onde ele for trabalhar. Quando for expor ideias, for defender uma proposta, ele estará também usando não só as técnicas, mas o conteúdo que ele recebeu nas aulas de didática ou de formação de professor, caso ele tenha feito as duas formações integradas, o que eu sempre defendi e continuarei defendendo. Acho que é fundamental, sem querer me contrapor a propostas de MEC, que eu sei que está cada vez mais separando as formações em cursos autônomos. Acho que uma coisa é você ter dois cursos para quem deseje essa formação separada, outra coisa é você apostar que a formação separada é melhor. Eu acho que não é melhor. A minha posição é que a formação integral constituiria, e para mim ainda constitui, a base estruturante do trabalho, tanto daquele que vai ser geógrafoprofessor, quanto daquele que vai ser geógrafo profissional no mercado. A minha dissertação de mestrado, de 1992, trata sobre isso. Eu penso o seguinte: nós não podemos pensar a formação, do geógrafoprofessor ou do geógrafo profissional de pesquisa aplicada, independente das demandas da sociedade, mas não apenas restrita ao mercado. Quero ampliar mais esta discussão. O mercado pode induzir que eu deva ter uma formação focada para determinada linha, em que a trajetória já foi priorizando uma concepção de planejamento centralizado, já foi relações sociedade-natureza e agora é mais a análise ambiental. A gente estaria sempre correndo atrás do que o mercado diz e estaríamos sempre atrasados em relação a ele. Ao fazer um planejamento de um curso, 128

a gente tem que pensá-lo pelo menos em médio prazo. Até porque só pode ser mexido depois de vários anos de experiência, com alunos formados naquele currículo. Depois, quando a gente for chegar ao final daquela turma que se formou numa perspectiva de mercado em planejamento centralizado, ele já pode ter caído em desuso. Foi o que aconteceu com geógrafos nas décadas de 1980 e 1990. Se eu hoje for focar somente na análise e avaliação ambiental, o que me garante que, daqui a cinco anos ou dez anos, essa ainda seja a questão norteadora dos debates profissionais da nossa área? De repente pode ser outra coisa. Eu acho que “nem tanto ao mar e nem tanto à terra”. A gente deve pensar nos currículos o mais integradamente possível e fugir um pouco desse imediatismo. GIRAMUNDO: Entre outros temas específicos você abordou, em sua dissertação de mestrado, diversas dificuldades encontradas pelo professor de Geografia. Ao falar em vivências no ambiente escolar, da relação professor-aluno, é muito válido voltar a esse tema... PROF. JOÃO RUA: Também há uma coisa que em algum momento eu chamei de “legitimação social da Geografia”, uma disciplina escolar que ainda hoje tem pouca legitimidade social. Com esforços de vários geógrafos, principalmente o Milton Santos, a Geografia foi mais difundida como uma disciplina séria, necessária no âmbito da sociedade como um todo. Mas ainda falta muito, porque a força dessa legitimidade não se traduziu numa força política, não só nos currículos escolares, mas principalmente na demanda por conteúdos geográficos, até porque talvez nós geógrafos não tenhamos dado a devida atenção a essa dimensão, que eu já em 1992 trabalhei um pouco, num caminho meio tortuoso, digamos assim, quando eu falava da proletarização do professor. A proletarização percebida de várias maneiras. Percebida pela perda de status social, dos professores em geral e dos de Geografia em particular, depois que a Geografia passou pelo abatimento dos estudos sociais durante a

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ditadura. Uma desqualificação durante muito tempo... A gente pensa que marcou pouco, mas marcou muito mais do que a gente acha, analisa ou analisou. Não havia uma relação estreita entre professores de Geografia, de qualquer nível, e a sociedade, para mostrar “olha, o que a gente faz é legal”. A Geografia teria de ter sido percebida (e a gente negligenciou um pouco essa dimensão) como uma disciplina que, ao estudar o espaço, estuda uma condição para a reprodução humana e ao mesmo tempo uma resultante dessa reprodução. E essa espacialização da sociedade, do indivíduo e do coletivo da sociedade, não apenas um conjunto de indivíduos, mas também um conjunto de coletividades, tem espacializações diversas, espacializações que às vezes são desiguais na sua natureza dentro do capitalismo, mas que permitem espaços diferenciados da inserção de resistência, de consciência espacial, de percepção das subjetividades do espaço para cada um dos alunos da gente... Volto àquela minha fala inicial: trazer a vida para dentro da sala de aula, seja no Ensino Fundamental, seja no Médio, seja na universidade. A vida de cada um de nossos alunos é uma vida de espacialidades muito diferenciadas, espacialidades que têm suas vivências. O vivido daqueles alunos é muito particular. Alguns percebem contradições na sua vida, no seu modo de viver espacialmente a sociedade, e outros não percebem. Acho que o papel do professor na escola é despertar essa consciência. Eu sempre fui, antes de mais nada, gramsciano, no sentido de me sentir um intelectual orgânico capaz de trabalhar com os meus alunos a dimensão pedagógica mais integrada ao ato político de ensinar. Na escolha das temáticas, na forma de organizar o trabalho, na valorização do trabalho construído dentro da sala de aula, brigando muito em muitas mesas redondas para mostrar que a gente constrói conhecimento na escola sim, toda vez que foge do livro didático, toda vez que foge da memorização, toda vez que foge daquilo que está estabelecido. Para um menino do 6º ano, se eu chego e digo para ele assim: “latitude é... longitude é...”, não criei conhecimento nenhum.

Mas se eu construo estratégias dentro da sala de aula em que ele vá também construir a sua percepção, a sua compreensão do que é latitude, do que é longitude, e que não é aquilo que eu processo como referência, posso até colocar no quadro, mas que não seja aquilo a única forma de compreender, ou que eu não vá cobrar dele o que o livro didático diz na página 21. Eu estou criando conhecimento, sempre. Isso eu acho que é uma máxima que a gente teria de ter para valorizar o trabalho da gente. Eu acho que é um dos caminhos para chegar à legitimação social. A gente fugir desse atrelamento aos meios que a gente tem para ensinar, usando-os, mas não nos submetendo a eles. Nos colocando como líderes de uma construção coletiva do conhecimento entre os alunos, que são os principais sujeitos. Mas nós somos um sujeito articulador daqueles conhecimentos múltiplos que vêm trazidos por eles para dentro da sala de aula... É bonito falar isso, mas é muito difícil de fazer... Eu tenho de dar uma aula sobre “nordeste brasileiro”, e o aluno vê no Jornal Nacional que ontem à noite teve um terremoto em Sumatra que atingiu mil pessoas... Ele quer saber do terremoto. Eu nem vi Jornal Nacional porque estava trabalhando na minha terceira matrícula. Eu estou sabendo por ele, no outro dia às sete da manhã, que teve terremoto em Sumatra. Eu vou tentar dar uma resposta pra ele... Só tenho duas alternativas: vou dizer pra ele “olha, eu não sei isso porque eu não vi o Jornal Nacional ontem, mas vou procurar saber e vou conversar contigo na próxima aula”; ou então enrolar o guri, o que eu acho um pecado mortal que infelizmente muita gente vem fazendo com medo de dizer simplesmente “eu não sei” ou “não vi”, “não estou com conhecimento disso ainda”. É muito difícil a gente falar isso. A gente tem de lutar contra essa insegurança, porque numa primeira vez o aluno vai ficar “hum, ele não sabe isso”, na segunda, ele já vai perguntar contando com aquela possibilidade de eu não lhe dar uma resposta pré-pronta”, na terceira, ele já vai confiar. “Então está bem, professor, não esquece não, hein?!”. O importante é estabelecer esse diálogo

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de confiança. E o diálogo de confiança parte, do meu ponto de vista, primordialmente por uma relação respeitosa entre professor e aluno, em que o professor perceba que ele tem sujeitos na frente dele que não são vazios de conhecimento. Trazer aquela experiência de conhecimento para dentro de sala de aula, em que o aluno perceba que ele não tem ali uma máquina que substitua o “google”. Você é desafiado permanentemente, como professor, pelos meios de comunicação, sejam os televisivos, sejam os da informática que estão narrando algo instantaneamente. Isso acontece comigo. Na dúvida de uma referência bibliográfica logo tem alguém mexendo no celular: “Ah, é fulano de tal...”. Eu nem li isso direito... O professor que eu fui eu sou, eu continuo a ser, falível, como todos nós somos. Então eu continuo a lidar com a dificuldade com que todos nós lidamos, com essa velocidade da difusão da informação contra o tempo necessário para a construção de um verdadeiro conhecimento. Acho que é essa a maior dificuldade do professor em sala de aula. A velocidade, quase que instantaneidade, da difusão da informação não admite esse tempo de maturidade, esse tempo de acumulação progressiva de conhecimento, em que eu possa chegar num menino do 6º ano e dizer para ele: “meu filho, olha, território pode ser isso”. O que eu não devo dizer para ele, que é o que o livro didático faz, “território é isto”. Eu digo, “olha, neste momento vamos ficar assim, mas olha, tem muito mais coisa para falar sobre território, hein?! Vai ter uns anos e a gente ainda estará falando de território. Mas agora, neste momento, vamos deixar assim”. Ou “lugar”, que é outro dos conceitos da Geografia que são apresentados cada vez mais cedo para as crianças. Dificilmente começar por “espaço” que é o conceito mais diverso, mais difícil de compreender, que só deve ir mais para as séries terminais do Ensino Fundamental e até do Ensino Médio. Não que, se o aluno perguntar o que é espaço, eu não diga para ele, mas eu tenho que respeitar o tempo dele. E não tem de ter medo do reducionismo momentâneo. Eu não posso é ser reducionista, memorizador de uma fórmula que dê por acabado aquele processo 130

de construção. GIRAMUNDO: A utilização das novas mídias na escola de fato tem sido muito discutida e está em meio a esses temas. Qual a sua opinião sobre o uso dessas mídias no Ensino de Geografia? PROF. JOÃO RUA: Eu não vou dizer que eu sou contra o uso de mídias. Ninguém pode ser, isso é quase óbvio. Agora, o professor é que é o elemento catalisador nessa construção, embora eu insista: o sujeito da construção é o aluno, mas o professor não é apenas o mediador, ele tem que assumir mais responsabilidades. Ele é um condutor. Ele não domina o processo, não é isso. Ele conduz. Ele tem de ter um planejamento, para onde está indo, que pode contar com as mídias. O que eu tenho de restrição às mídias é quando elas se transformam num novo livro didático. Uma coisa que eu critiquei no início dos anos 1990, quando o professor utilizava o livro didático como uma muleta. O aluno lia o livro didático, o professor dava aula pelo livro didático, os professores estudavam pelo livro didático para dar aula. Acho que infelizmente ainda é assim. E quando se incorpora a mídia na sala de aula... Por exemplo, eu vejo o data show sendo muito usado. Eu não suporto, mas também uso. Mas colocar o data show com um texto que está no livro, ou em algum livro, e que o aluno vai copiar, e que eu vou ficar quase que ditando ou repetindo ao aluno o que está ali disposto naquele slide do data show... Qual é a diferença? O quê que mudou? “Abra o livro na página 21 e vamos ler esses dois parágrafos”... Não mudou nada. Mudou a tecnologia, mas não mudou o método. Quando se fala em modernização do ensino, seria muito a modernização tecnológica, a escola equipada com computadores, projetores ou quadros inteligentes... Acho tudo ótimo, mas tem de haver uma mudança também na forma como os conteúdos são trabalhados. Não estou criticando o trabalho de ninguém, eu sei o quanto é difícil ser professor em três, quatro, às vezes até em cinco escolas. Porém, a gente não deve ficar nessa de contabilização. Isso é muito fácil

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de se fazer. É muito difícil estabelecer uma estratégia de sobrevivência econômica numa sociedade onde a legitimação social do professor é pouca. Falar disso não se traduz num salário digno. Eu não quero negligenciar essa questão. A gente tem de colocar essas coisas bem no lugar. A proletarização a que eu me referi há pouco, se traduziu numa perda de status econômico, por conta do salário, numa perda do status social por conta da desvalorização da profissão professor e num campo muito restrito dessa vivência política, já que ocorreu uma proletarização do professor que também incorporou o perfil do “proletário” na defesa de seus direitos. Mas coincidiu, essa desvalorização, também, com o desmonte do edifício fordista, keynesiano, do emprego, do trabalhador empregado, do proletário da fábrica. O desmonte de todo esse quadro referencial, que inclusive compunha um imaginário que durou até os anos 1970, pegou também o professor nesse momento de desvalorização, em que ele se “proletarizou” sem nunca ter sido efetivamente proletário, porque não era. Não era um trabalhador fabril. Não correspondia àquele imaginário do empregado de décadas anteriores, e ao mesmo tempo dificultou muito o “vestir” esse papel de educador político, agente político da educação, cientificamente falando isso. Porque eu não devo ser um panfletário, não devo fazer um discurso jornalístico. Eu tenho que trazer ciência para dentro de sala de aula. Ciência alicerçada em princípios. Princípios científicos que norteiam e devem nortear a prática da Geografia no Ensino Fundamental, Médio e Superior, como também na Geografia aplicada, nas empresas ou onde seja. Há princípios que a gente tem que seguir. Princípios que são da Geografia, e não que sejam apenas dela... “O que é o espaço?” Como trabalhar com o espaço?” Porque o espaço é importante?” “Quando é que o espaço se torna território?” “Como é que essa territorialização se dá?”. Traduzindo isso para linguagens acessíveis: “que sentido de lugar o aluno vivencia ou pode trazer para a sala de aula?”. Para mostrar aquele título já famoso, já quase que emblemático da Doreen Massey, “Sentido global de lugar”. É da

prática da vida das pessoas. Todos nós temos um sentido de lugar. Esse sentido é multiescalar. O lugar é multidimensional e o sentido de lugar é multiescalar. Então é global, é local, enfim, atravessa todas as escalas, dentro da sala de aula. GIRAMUNDO: Ao tratar de princípios da Ciência Geográfica e que não são exclusivamente dela, há uma questão a ser retomada. Durante a década de 1980, as ideias marxistas influenciaram fortemente a Geografia brasileira. Entretanto, nos anos 2000, muitos são os geógrafos que parecem negar o marxismo. Como esses processos de fortalecimento e enfraquecimento de influências marxistas influenciou os professores do ensino básico? PROF. JOÃO RUA: O marxismo na Geografia foi muito, muito, muito parcialmente empregado. Uma coisa é você pensar a Geografia pelo viés do materialismo histórico e dialético, com base em Marx, em ideias marxianas e de marxistas posteriores. Bom, isso aí aconteceu em algumas universidades nos anos 1980, mas não foi na maioria. Isso é um primeiro ponto. Foi muito limitado o alcance dessa chegada do marxismo à universidade. Foi parcial em termos de universidade e foi parcial dentro dessas universidades. Segunda coisa: a difusão das ideias do marxismo e do instrumental analítico que essas ideias possibilitaram se difundiu, sim, mais na década de 1990 do que na de 1980. Mas se difundiu já num momento de relativismo em que a gente não mergulhou tão cegamente nas ideias de Marx, do marxismo, em um pouco do pensamento marxista, como nos anos 80. Acho que faz parte do processo. Você chega, é novidade, vai, desiste, aí vai para o oposto, depois volta e começa a fazer um resgate. Tem sido isso os últimos trinta anos. E aí mistura muito com ideias mais relativistas, pós-estruturalistas, outros chamam de pós-marxistas, outros nãomarxistas. Eu acho que há lugar para tudo. Não no sentido de um ecletismo conciliador, mas num diálogo. Volto a Gramsci, marxista roxo, mas que

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dizia: eu só posso discutir com o outro, e só posso negar no discurso do outro, se eu ouvir o outro, se eu ouvir os argumentos desse outro. Para eu contestar o discurso do outro, é preciso conhecêlo, é preciso ouvir esse outro, os argumentos que ele tem, para depois eu introjetar esse argumento, esse discurso, eu separar aquilo que é chamado de “senso-comum” do bom senso, que às vezes pode existir naquele discurso e que cabe a mim não desperdiçar a priori. Eu acho que isso faz parte de uma composição, essa possibilidade de convívio das várias correntes analíticas. Sejam aquelas ligadas à Teoria Social Crítica, sejam aquelas mais ligadas ao Positivismo, Historicismo, mesmo com matizes variados: podem conduzir, muito bem, até um desdobramento do ensino da Geografia. Uma coisa é você criticar, e criticar a

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sociedade. Tudo bem, pode criticar de maneiras várias. Eu acho que um professor que não se filie a esse núcleo chamado de Teoria Social Crítica também pode ser crítico. Aliás, ele é. E eu vou dizer que ele é o quê? Se a crítica que ele faz é por mais poder no agronegócio, ou por mais poder para sujeitos sociais que são importantes no conjunto da economia brasileira? Eu acho que essa Teoria Social Crítica tem de ser, antes de mais nada, Teoria Crítica Social. Tentar reverter um pouco isso. Por que eu digo assim? Criticar aquilo que incomode. Mas vai incomodar tão diferentemente os meus alunos, que se eu quero trazer a vida para dentro da sala de aula, olha o risco que eu corro! De fazer a cabeça de uns, o que eu acho que é complicado, e matar a possibilidade criativa de visão crítica realmente construtora de outros... Qual é a

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minha saída como professor? Não sei, não tem receita. O bom senso diz se pensar: bom, eu não posso ser inodoro, incolor, insípido, como falava o Gadotti, quando os professores erram, mas também não quero ser um fazedor de cabeças. Como é que eu fico nesse jogo? Criando um clima, não de conflito, mas de debate de ideias na sala de aula. É muito difícil. Agora, se eu não abrir a possibilidade de quem pensa diferente de mim e pensa diferente do outro se expressar, eu estou matando a diferença que eu tenho dentro de sala de aula. E aí estou partindo para um risco muito maior do que a Teoria Social Crítica, que é a homogeneização. A homogeneização do aluno, do pensamento, como pensamento único na sala de aula. Eu acho esse risco tão grande ou maior até do que aquela “geografia da decoreba”. GIRAMUNDO: Depende também de qual será a condução que o professor escolher, não é? PROF. JOÃO RUA: Mas tem de assumir. Isso daí eu acho legal a gente registrar. Eu acho que o professor tem de fazer opções. E ele faz. Quando eu faço um planejamento, as escolhas temáticas, quando eu escolho autores, é de minha responsabilidade. E aí é que eu acho que é o papel da gente. Quando eu falo que sou gramsciano eu já estou me posicionando. A minha escolha é essa. O programa quem faz sou eu. Os autores quem escolhe sou eu. O curso é de minha responsabilidade. Seja no doutorado, mestrado, graduação, no Ensino Médio ou Fundamental. A responsabilidade é minha. Eu não tenho que fugir dessa responsabilidade. Mas isso não significa que eu não possa conviver com a diferença e não possa criar um ambiente de respeito à diferença, onde todas as diferenças caibam dentro da sala de aula. Sejam as políticas, ideológicas, as de gênero, de raça, de credo religioso, todas elas. “Não, filho, ele agora está falando, vamos ouvir. Vamos respeitar? Ele está falando, espera... Tá, tudo bem. Agora fala você. Em que você discorda dele? Vamos tentar... ”. É muito difícil segurar os hormônios dessa molecada desse jeito. Mas é preciso pelo menos tentar! Para que ele não

perceba a sala de aula como um lugar em que ele não se veja; que ele veja a sala como um ambiente de respeito à diversidade; e que ele veja a sala de aula como um ambiente de construção de ideias. Não precisa ser consensos, mas que sejam construções de ideias. “Olha, tem isso, mas também pode ser isso”. Cada um vai escolhendo, escolhendo de acordo com sua formação familiar, com a sua formação social. GIRAMUNDO: Você tem se dedicado à discussão sobre sustentabilidade, um tema que possui uma grande centralidade no debate político e econômico contemporâneo. A relevância do tema faz com que ele seja abordado pelas mais diversas ciências. Qual a especificidade da Geografia com relação a esse tema? Qual seria o papel do professor de Geografia nesse debate? PROF. JOÃO RUA: Sustentabilidade é um termo extremamente perigoso. Ele já nasceu perigoso, porque ele veio dar sobrevida a um conceito que já estava falecido, que é o conceito de desenvolvimento, a maneira como se via antes da década de 1990 como sinônimo de crescimento econômico. Quando se começou a falar de desenvolvimento sustentável, embora não tenha sido aí que se criou o termo “sustentabilidade”, deu-se uma sobrevida ao desenvolvimento, agora qualificado de sustentável, sem que a gente tenha ressignificado aquele desenvolvimento como sinônimo de crescimento. Questionando e mostrando que aquele conceito de “crescimento”, ligado ao progresso e à modernização, é um equívoco da sociedade ocidental moderna que vem se arrastando até hoje. Essa primeira ideia de que a sustentabilidade, atrelada à ideia de desenvolvimento, é sinônimo de crescimento, já é bastante criticável. A segunda ideia ligada a isso é que quando se fala em desenvolvimento – se falava e continua se falando – se fala de uma perda hegemônica do desenvolvimento, como crescimento econômico, mas à maneira dos países hoje chamados centrais. Esse modelo único de desenvolvimento que perpassa ainda

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hoje toda a discussão do desenvolvimento, de sustentabilidade, não admite variantes, então não admite “desenvolvimentos”. Quer dizer: cada sociedade – ou, para nós geógrafos, cada formação econômico-social – deveria ter o seu próprio modelo de desenvolvimento, dadas as suas condições históricas de construção do seu movimento – que é como eu chamo o desenvolvimento – do espaço e o movimento no espaço. Esse espaço desigual, em frações desiguais, cada uma de acordo com as suas subjetividades, de acordo com a ação dos seus sujeitos sociais heterogêneos no nível daquela parcela do espaço, vai dar àquela parcela velocidade determinada dentro desse movimento. É claro que isso implica em relações de poder das parcelas – quer dizer, sujeitos hegemônicos de cada parcela e os hegemonizados de cada parcela, e de uma parcela em relação à outra. Essas interações que o David Harvey tão bem trabalhou com a ideia de “desenvolvimentos” geograficamente desiguais na esteira dele mesmo quando começou a falar em desenvolvimento geograficamente desigual; do Edward Soja, de 1993; do Neil Smith no “desenvolvimento desigual”. Eu acho que quem melhor trabalhou isso foi o Harvey a partir de 1996 no livro “Justice, Nature and the Geography of Difference”, em que ele elabora pela primeira vez essa ideia dos desenvolvimentos geograficamente desiguais. E a partir daí está colocado para mim a ideia de desenvolvimentos, e não desenvolvimento como padrão único, um modelo único, em direção ao qual todo mundo tinha de ir. O sustentável também carrega em si uma crítica feroz que a gente tem de fazer. Por quê? A ideia de sustentabilidade veio atrelada à ideia de desenvolvimento, mas também à ideia de preservar nos moldes atuais para o futuro. Quer dizer, não se admite mudança, não se admite questionamento desse modelo atual. Ainda tem um terceiro caminho de crítica, a ideia de desenvolvimento sustentável, de sustentabilidade, que é o reducionismo com que tem sido tratado o ambiente, ou seja, o ambiente apenas como ambiente natural, e não o ambiente como totalidade, como sistema natural e como 134

sistema social, como diria Milton Santos. Esses dois sistemas integrados. E aí, o risco que eu vejo para a geografia e para a geografia na escola. O primeiro, na geografia ainda nas universidades, é que a gente não está atento para esses três reducionismos. O do desenvolvimento, o de sustentabilidade e o de ambiente. Se eu escolho trabalhar com “desenvolvimentos” criticando aquele modelo único de desenvolvimento, eu vou ter de trabalhar também com “sustentabilidades” para criticar aquela ideia de sustentabilidade atrelada ao desenvolvimento como modelo único. Nesse caso eu vou ter de criar uma alternativa – e aí já sou eu que tenho trabalhado nisso. Já tenho alguma coisa escrita sobre sustentabilidades geograficamente desiguais. O que seria sustentabilidade para um grupo de pescadores caiçaras de Paraty, na Costa Verde? O que seria sustentabilidade para um agricultor meeiro ao longo da Rodovia Friburgo-Teresópolis? O que seria sustentabilidade para um agricultor proprietário da terra, com capacidade maior de escolha, no Sul de Minas, por exemplo? O que seria sustentabilidade para um grupo de quilombolas? E o que seria sustentabilidade para um monocultor de soja ligado ao agronegócio? O que seria sustentabilidade para ribeirinhos no Amazonas? Para indígenas? E para humanóides em geral? E a gente, também não tem direito a sustentabilidade? Por que eu cuido do oiti que está apodrecendo ali na Gávea e não cuido do que está acontecendo embaixo do viaduto? Uma pessoa... Que concepção de sustentabilidade é essa, que protege o mico leão dourado, protege a árvore em extinção, e não protege pessoas que também estão em extinção – estão morrendo? Então isso é uma discussão que eu tenho levado, meio timidamente. Demorei a ter eco: uma meia dúzia de anos. Escrevi algumas coisas... Agora estou mais animado porque eu tive uns retornos bons de pessoas que entendem da coisa. E na escola, eu acho que essa saída é boa. Levar esse tipo de Geografia com a diversidade da ideia de sustentabilidades enraizadas nas distintas geografias de cada grupo social. Não sei o que vocês pensam disso... Isso é “viagem”

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minha... GIRAMUNDO: Você fundou e coordenou o Núcleo de Estudos de Geografia Fluminense, o NEGEF, tendo se dedicado durante anos ao estudo da Geografia do Estado do Rio de Janeiro. Qual a sua opinião acerca da atual situação do território fluminense? Como você analisa a inserção desse tema no currículo escolar? PROF. JOÃO RUA: Acho que é essencial o estado do Rio de Janeiro como temática fundante da Geografia na escola. Desde a mais tenra idade até o final da escola. Não seguindo aquela coisa dos círculos concêntricos – “primeiro a família, depois a cidade, depois o Estado...”. Porque a criança vive multiescalarmente, atravessa todas essas dimensões no viver cotidiano dela. Na escola elas só verão o Rio de Janeiro quando estiverem no 4º ano, 5º ano. Tem de estar desde sempre, Rio de Janeiro e mundo. “O que é a Europa?” “Meu filho, fica calmo porque eu estou estudando Rio de Janeiro contigo...”. Não pode ser assim. Essa vivência do estado do Rio de Janeiro para mim é crucial na construção da identidade no próprio indivíduo adulto, como foi para mim quando eu estudei, quando era Distrito Federal, depois passou a Estado da Guanabara – eu não sei por que passou a Estado da Guanabara, mas no mapa correspondia a uma coisa que eu não via. Depois, quando eu comecei a ser professor, eu ensinei geografia da Guanabara – Estado do Rio nem existia, eu nem sabia que do lado de lá do Rio Meriti era outra coisa. Eu tinha que dar a geografia da Guanabara: Maciço da Tijuca, Maciço da Pedra Branca, do Gericinó-Mendanha... Em 1975, com a fusão, nem eu tinha construído em mim essa identidade territorial do novo estado do Rio, imagina o trabalho que eu tive para facilitar a construção dessa nova identidade em meninos que tinham vindo do primário – chamava-se na época – estudando Guanabara e estudando o estado do Rio da mesma forma que o Amazonas, Pará, Pernambuco... Era tão distante quanto. E agora eu tinha que dizer para ele: “Não meu filho, juntou tudo, é a mesma coisa”. Ninguém se via

naquele desenho novo do mapa. E o mapa – gente, olha, não tem nada a ver com essa pergunta, mas... O mapa é um instrumento fundamental na construção da identidade territorial de alguém. No Brasil, não sei se vocês trabalham com isso ou trabalharam, eu nunca encontrei alunos meus que soubessem quais eram os símbolos nacionais. Sabiam o hino e a bandeira, mas o escudo ninguém conhecia. Agora o mapa, aquele mapa do jornaleiro, todas as crianças sabiam que aquele era o mapa do Brasil. Ele é muito mais forte como símbolo do que o escudo nacional que ninguém conhece. Para essa força, que a gente ainda não explorou, não nesse sentido xenófobo, como a Doreen Massey chama, de pertencimento – “Eu sou, você não é... Eu sou brasileiro, você não é”” – Não. Mas de identificação. “Eu pertenço a aqui”. “Isto me pertence”. Mas isto está interconectado. Pertencimento aberto e interconectado. Que é sempre diferente. Um haitiano que entra na minha sala de aula. Um africano, um angolano, como acontece muito na Maré, por exemplo.... É importante essa construção. No estado do Rio é a mesma coisa, e houve uma rejeição desde o início. Nem os cariocas se viam muito naquele desenho, e nem os fluminenses, do interior, se viam no novo desenho. Até hoje ainda há algumas resistências. Não é uma coisa fácil de lidar. Mas é interessante, se a gente partir da ideia de que a cidade do Rio de Janeiro – seja como Distrito Federal, como estado da Guanabara ou como município do Rio de Janeiro, capital do estado do Rio – sempre foi uma capital nacional muito voltada para o Brasil. Hoje em dia, o que restou dessa nacionalidade, digamos assim, dessa difusão nacional do Rio de Janeiro? E hoje é estado do Rio, e a gente tem muito mais ligações com Minas Gerais, com São Paulo do que com o interior do estado do Rio, com Campos, por exemplo, tirando Petrópolis, Teresópolis ou regiões de veraneio, como Cabo Frio. O resto está muito mais distante. A gente passava pelas estradas, via, mas aquilo era uma coisa longe. Era um próximo distante, não geograficamente, mas distante mentalmente, economicamente, politicamente.

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O que a gente pode dizer hoje do estado do Rio, e que costure, de alguma maneira, essa fusão que eu defendo? Eu escrevi um texto, até publicado na Alemanha (estou com vontade de publicar aqui também...), em que... a ideia era assim: “duas histórias distintas e um só coração” ou, como eu estou reescrevendo agora, “a geografia reunindo o que a história separou”. Eu acho que essa ideia é bem sintetizadora do que eu penso. A Geografia está unificando aquilo que a História separou. O que a Geografia está unificando? Primeiro, porque na lógica neoliberal do capitalismo predomina uma lógica descentralizadora, desconcentradora. Não mais aquela lógica concentradora das grandes cidades, megalópoles, grandes metrópoles como na Era do fordismo até vinte anos atrás. Mas essa desconcentração espacial, os economistas falam em deseconomias de aglomeração, outros falam em custos elevados de permanência na área metropolitana, outros falam de legislação mais restritiva nas áreas próximas à metrópole, em torno da metrópole. O fato é que tantos investimentos significam implantes geográficos – nos meus trabalhos eu chamo de “urbanidades”, no plural –, no âmbito do próprio deslocamento das pessoas, vão criando fusão espacial que a história ainda não acompanhou. Ainda não se escreveu essa história tecendo essa fusão, a fusão que a Geografia vem promovendo. Uma geografia que faz com que a cidade do Rio de Janeiro tenha se derramado para o interior fluminense, e sob a forma de eixos, que na maioria das vezes seguem até o modelado geomorfológico, se espraiem como influências diretas da metrópole no território fluminense. Mas eu não quero que isso passe como uma ideia otimista dessa interiorização e principalmente passe por uma ideia em que essa interiorização leva progresso da metrópole para o interior. A gente sabe também, primeiro, que isso é uma lógica de desconcentração que o capitalismo impõe e que independe da vontade dos cariocas e da cidade do Rio de Janeiro em busca de vantagens competitivas, praticando aquilo que o Henri Acselrad chama de “chantagem 136

locacional” – eu acho um termo felicíssimo – em que as coisas vão se localizando no interior com forças muito assimétricas entre o que chega e o que está. E o segundo motivo para frear essa visão otimista de que o Rio de Janeiro está com uma inflexão positiva é que grande parte disso, a maior parte do que se chama de interiorização do crescimento do estado do Rio de Janeiro é relacionado ao petróleo, que é do interior. Quem é que está pagando a conta dessa chamada inflexão positiva do Estado do Rio de Janeiro? Não é a cidade do Rio de Janeiro, a capital. É o petróleo da Região Norte. Vamos colocar isso bem claro. Eu acho que é necessário a gente levar essa discussão para a escola, que é fácil a criança entender, se o petróleo está lá, mas a concentração de riqueza, de população e de recursos está aqui, tem alguma coisa errada. Essa drenagem de recurso é uma linguagem facilmente entendida pelos alunos, quando a gente fala da deslocalização de empresas ou localização de novas empresas no interior. Que papel uma grande empresa transnacional vai ter diante de uma prefeitura num poder local muito frágil? Que tipo de barganha a localização dessa megaempresa vai impor àquela prefeitura? Que poderes assimétricos são esses que definem a logística de deslocalização, mas também definem as contradições espaciais? – Não vou falar socioespaciais porque é redundante. O espaço aí na sua multidimensionalidade e multiescalaridade – de cada uma dessas localizações. Eu vejo uma riqueza infinita. E aí é que eu vejo a Geografia como ciência importante, porque essas desigualdades são sempre produzidas cotidianamente, o que alimenta a geografia naquilo que talvez seja seu esqueleto ao longo da história do pensamento geográfico: essa diferenciação de áreas. “Porque é assim aqui, e ali é diferente?” Essa diferença espacial transformada em desigualdade pelo jogo de poder entre essas parcelas desiguais do espaço. GIRAMUNDO: E sobre os rumos da Geografia Brasileira, você identifica uma linha propriamente brasileira de ciência geográfica, ou ela teria se

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dissolvido antes mesmo de se consolidar em meio à complexidade e à crescente internacionalização dos saberes? PROF. JOÃO RUA: Há dois anos eu estava lá em Barcelona, num congresso organizado pelo Professor Horácio Capel, e nós estávamos conversando e, em parte, dizendo que a Geografia Brasileira é reconhecida como, senão a melhor do mundo, pelo menos uma das melhores. Aí eu perguntei para ele: “Horácio, o que é a Geografia Brasileira?” Em um país do tamanho do Brasil é possível falar em Geografia Brasileira? Pensando o quê? Padrão USP? E também qual é o padrão USP? De quando? Padrão UFRJ? Padrão UFF? Padrão UERJ? De quando? Então ele está se referindo a quê? Isso sem falar em termos regionais... Tem muita coisa que é produzida e a gente nem sabe... Não sei. Qual é a Geografia Brasileira? Os rumos da Geografia Brasileira?... Sinceramente, eu acho que é meio uma ilusão de ótica. Não sei se tem rumo, a Geografia. GIRAMUNDO: O IBGE não teria tido algum papel nisso? PROF. JOÃO RUA: Mas o IBGE não foi nacional. Ele foi nacional na Estatística, nos levantamentos que ele fazia. Na Geografia, se fizer um levantamento das publicações do IBGE, pouca coisa a gente tem o que falar. GIRAMUNDO: Talvez a USP... PROF. JOÃO RUA: Não. Era mais, assim, do Nordeste era Manoel Correia de Andrade... Em São Paulo tem alguma coisa do Aziz Ab’ Saber... Alguma coisa a mais... Era basicamente daqui. Eu não sei se eu falaria do IBGE como Geografia Brasileira. GIRAMUNDO: Mas uma referência não seria, por exemplo, o Orlando (Valverde)? PROF. JOÃO RUA: Sim, o Orlando. Se eu pensar em três, que fossem assim, três básicos da Geografia

Brasileira, eu pensaria Orlando, Manoel Correia de Andrade e Aziz. Seriam os três. Na sociologia é Weber, Durkheim e Marx para a gente seguir. O Orlando, Manoel Correia e o Aziz. Aí você já tem: Manoel Correia, Nordeste. Orlando, IBGE. Aziz, USP. Tá, e o resto? Não sei, não sei... Rumos? Acho difícil a gente falar. Internacionalização do conhecimento, acho fácil a gente falar. Mas tratar disso é bem trabalhoso. A gente tem essas bases da Geografia Brasileira, seriam esses três, por assim dizer, e muitos outros, nos quais esses três podem ser desdobrados, ou como contemporâneos, ou mesmo como seguidores. Há dezenas, centenas de grandes nomes da Geografia Brasileira. Que, se é isso, se a produção de geógrafos brasileiros pode ser chamada de Geografia Brasileira, aí eu acredito que sim, que há uma Geografia Brasileira, produto do trabalho dos geógrafos brasileiros, mas muito heterogênea nas suas bases teóricas, conceituais, epistemológicas... Eu penso que a Geografia Brasileira é muito permeável à internacionalização. Não, que eu defenda, num chauvinismo nacionalista, os geógrafos brasileiros... A gente redescobre a roda muitas vezes. Precisam ler franceses, anglo-saxões. Eles têm mais recursos que nós, eles escrevem muito mais que nós..., muito mais publicações do que nós, produzem muito mais que nós, mas dão muito menos aula do que nós, fisicamente trabalham muito menos do que nós, se desgastam menos... Não estou tirando o mérito deles nem nosso. São constatações de sociedades que valorizam mais ou menos a ciência geográfica. Ela é muito valorizada na Inglaterra, na Grã-Bretanha. É valorizada nos Estados Unidos e em alguns lugares da França. Bastante na Alemanha, ainda. Aqui no Brasil ela é valorizada nas universidades, no IBGE, e, por fora disso, praticamente nada. Bom, o que a gente pode dizer sobre essa internacionalização? Ela é salutar, eu acho. Acho absolutamente imprescindível a gente ter importado, via USP, fundamentalmente, o conhecimento da obra de Lefebvre. Absolutamente imprescindível termos importado, por exemplo, a obra do Harvey, do Soja e do Smith. E acho

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absolutamente indispensável a gente ter importado algumas coisas da obra do Capel, da Espanha, e, por exemplo, do Jacques Levy e do Paul Claval da França... Tem italianos, tem alemães, tem outros. A Doreen Massey mesmo, da Inglaterra, entrou pouco. Então acho que foi muito salutar isso. Mas eu acho que a gente tem sido bom “Macunaíma” na absorção dessa influência externa. A gente ainda não perdeu as raízes da brasilidade na geografia. O que seriam as raízes da brasilidade? A gente está preocupado com problemas que são nossos. Problemas sociais brasileiros, que os outros não têm mais, ou estão distante deles há muito tempo. Dou outro exemplo: é impossível a gente não levar em consideração aqui o conceito de território, por conta das lutas, da geração de poder, das lutas políticas, que ainda se fazem necessárias diante de tantas injustiças sociais materializadas no espaço dentro do Brasil. Isso não é tão importante na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos, dentro da Europa em geral. Talvez lá os conceitos de espaço e de lugar deem conta. E nós aqui ainda exigimos um conceito particular, ou seja, o território. Quem fala muito bem disso é o Rogério Haesbaert, que faz bem essa contextualização. Eu não sei se, por exemplo, o conceito de paisagem para nós tem o mesmo peso que para os países anglo-saxônicos ou para os franceses. Eles conseguiram construir um conceito de paisagem descolado da ideia de paisagem natural, que marcou a nossa concepção de paisagem aqui por muitas décadas. Eu acho que é mais pela discussão teórica do que a gente prioriza mais como conceitos, aqui e no exterior, em outras matrizes de literatura geográfica, que talvez a gente possa pensar nessa relação entre a internacionalização e a brasilidade mantida na produção dos geógrafos no Brasil. GIRAMUNDO: Gostaria de acrescentar algo para finalizar, especialmente para os jovens estudantes e professores? PROF. JOÃO RUA: Primeiro, que eu me considero um jovem professor. Não na idade, mas na aprendizagem. A gente sempre aprende, todo dia. É necessário que a gente rompa essas 138

barreiras da titulação, da capacitação docente. Que isso não nos impeça de sermos permeáveis a trocas com os alunos de Ensino Fundamental, Médio, superior ou pós-superior. Aluno é aluno. Ele sempre tem de ser considerado como aquele com quem eu estabeleço um diálogo. Esse “outro”, essa minha alteridade... Octavio Paz, que é um poeta mexicano fantástico, tinha uma poesia que dizia assim: “Para que pueda ser he de ser otro, salir de mí, buscarme entre los otros, los otros que no son si yo no existo, los otros que me dan plena existencia”. Eu tenho que ser de mim mesmo e ser para os alunos, que me legitimam, que me dão sentido à existência. Eu não sou professor para paredes. Sou professor para alunos. Esse jogo entre alteridades em diálogo é um desafio eterno para nós. A toda hora vêm coisas inesperadas, significando uma aposta permanente no escuro. Eu nunca sei como vou encontrar meus alunos. De qualquer nível! Mas será que eles sabem como vão me encontrar? Se eu dormi mal... Se eu vou descarregar neles tensões que eu tenho... Também, no caso de a gente perguntar a eles, será que eles têm alguma expectativa, da mesma maneira que a gente tem com relação a eles? Eu estou falando de aluno de mestrado e doutorado, que é a minha experiência mais recente, embora eu tenha também de graduação. De aluno de Ensino Fundamental e Médio há muito tempo que eu só ouço falar... Mas eu penso que a mensagem que eu deixaria é a gente ser permeável a esse jogo de permanente juventude, que nos renova, que é esse desafio, que eu não devo ver como combate. Eu não vou me preparar para uma sala de aula como um combate. Eu tenho de ter prazer nisso. Aí eu retorno à minha posição gramsciana: eu tenho de ter um projeto, que infelizmente, na atualidade, não pode ser econômico, porque os salários são sempre muito baixos. Político também não: está cada vez mais difícil a gente

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ter um projeto político pedagógico para pôr em prática. Era muito fácil durante a ditadura, pois você tinha um antagônico presente, onipresente. Hoje é muito mais difícil você sensibilizar alunos para questões políticas que principalmente vão envolver o consumo. E é por aí que eu posso ir. Se eu não consigo mais chegar a eles pela produção, pelo jogo da produção, que cada vez é mais distante, é menos producente nas famílias..., se eu não tiver mais emprego produtivo ligado à fábrica, ao fazer... Se essa realidade está cada vez mais longe, eu posso chegar ao aluno pelo consumo, porque essa máquina nos transforma, a todos, em consumidores, em vez de produtores (ou potenciais, ou efetivamente, como éramos tratados anteriormente). Talvez seja isso um “gancho” para a gente trabalhar. Como é que ele, o aluno, pode se ver como consumidor não manipulado? Eu acho que a Geografia pode fazer isso. A gente tem de fugir do discurso generalista, jornalístico, que tira a ciência geográfica da sala de aula. Eu tenho instrumentais analíticos com os quais eu devo trabalhar, e que me alicerçam cientificamente no meu trabalho de professor de Ensino Fundamental e Médio, para trabalhar temas que são da Geografia – não exclusivamente

dela, mas são da Geografia. Por que eu não posso trabalhar Geografia Física pelo viés do consumo da natureza e chegar até a Geomorfologia? Por que eu não posso trabalhar a Geografia Econômica, de Produção, Agrária, pelo consumo de produtos, como a gente fazia antigamente? Levar marcas... Era uma técnica didática muito usada, mas que hoje em dia não é tão mais naquele estilo. É mais no estilo de a gente ver o que consome, e não ver apenas de onde vem, ver o que está atrás daquela produção e ver quem está me induzindo àquele consumo. O que eu vou consumir? Laranja bahia americana, vendida na rede ”Hortifruti” e nos supermercados “Zona Sul”, enquanto a gente exporta laranja para os Estados Unidos? Qual é a lógica disso? Eu percebo que há um caminho interessante. A gente explorar mais o consumo da natureza, o consumo dos produtos, consumo da imagem, consumo da paisagem, consumo dos objetos geográficos. A refuncionalização dos objetos geográficos, dando a eles novas funções ligadas ao consumo.

REALIZAÇÃO DA ENTREVISTA: EQUIPE GIRAMUNDO Carolina Lima Vilela (Prof. do Colégio Pedro II – Campus Humaitá II) Demian Garcia Castro (Prof. do Colégio Pedro II – Campus Realengo II) Márcio Ferreira Nery Corrêa (Prof. do Colégio Pedro II – Campus Tijuca II) Pedro Paulo Biazzo (Prof. do Colégio Pedro II – Campus Centro) TRANSCRIÇÃO Márcio Ferreira Nery Corrêa (Prof. do Colégio Pedro II – Campus Tijuca II) G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 1 2 5 - 1 3 9 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

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R E SEN HA

COSTA, Rafael Martins da. Geografias em quadrinhos: imaginando um mundo em sala de aula. Porto Alegre: Deriva, 2014. M A R C O S R O DRI GUES ORNELAS DE L I M A Me. Geografia (UFRJ) e doutorando em Geografia (UERJ) Professor do Colégio Pedro II – Campus São Cristóvão II m arcos l i ma.geo@gmai l .co m

Yi-Fu Tuan já em 1976 defendia a tese de que “uma aula de Geografia sem imagem é como uma aula de anatomia sem um esqueleto”1. Tendo como ponto de partida a tradição da utilização de imagens na produção geográfica e em particular, na sua utilização como ferramenta didática, Rafael Martins da Costa produz um livro cheio de indicativos para se pensar essa tradição a partir das histórias em quadrinhos. Partindo da premissa de que os quadrinhos possibilitam pequenas resistências no interior da sociedade em confronto com políticas elaboradas em nível macro e disseminadas em um movimento de cima para baixo, o autor deixa claro que sua proposta de trabalho tendo os quadrinhos como foco não é a de criar uma prática mais atraente, como se fosse “uma espécie de isca para atrair a atenção dos alunos e alunas para conteúdos 140

escolares e ocupá-los para que permaneçam sentados e em obediente silêncio” (p.18). Na primeira parte da obra, intitulada criatividade em sala de aula, o autor traça um panorama de algumas práticas mais tradicionais observadas em sala de aula, questionando até que ponto essas favorecem a criatividade e a imaginação do aluno. Nesse sentido, embora as histórias em quadrinhos não representem uma novidade, o esforço empreendido na obra é o de lançar um novo olhar sobre elas. Como ressalta o autor, os quadrinhos enquanto meio de comunicação são transmissores de valores, formadores de identidades e produtores de significação. Ou seja, enquanto prática cultural, produz e faz circular significados a respeito de muitas coisas, inclusive do espaço. No segundo capítulo, apresentando G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 1 4 0 - 1 4 1 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .


MARCOS ROD RIGUES ORN ELAS DE L IM A

R E S E N H A | G E O G R A FIA S E M Q U A DR INH O S

os quadrinhos, são explicitados os elementos básicos dos quadrinhos para o leitor. O autor busca construir sua argumentação a partir da interação entre os elementos gráficos, gramaticais, estilísticos e subjetivos. Essa interação é responsável pela produção de metáforas visuais, compondo imagens associadas com uma ideia diferente de seu significado original, de acordo com uma leitura de mundo prévia do leitor. Ou nos termos do autor, “emprestando-lhes vida, damos significados a coisas que, grosso modo, no caso das HQs, não passam de tinta sobre o papel” (p.27). Justamente em função dessa dimensão subjetiva dos quadrinhos, existe uma possibilidade enorme de utilizar sua linguagem articulada a diversas disciplinas, tais como: Arte, Linguagem, História, Física, Sociologia, Literatura e Geografia (foco central de análise na obra). E embora o tema não seja novidade na produção acadêmica na área de ensino de Geografia, conforme revelam os diversos trabalhos citados pelo autor, sua grande contribuição é ampliar o debate colocando as HQs não como instrumento auxiliar de uma prática formadora de leitores como um gênero textual. Partindo da ideia de um hipergênero, que agrega diversos outros gêneros, Rafael Martins da Costa coloca o olhar nos quadrinhos a partir da possibilidade da construção de uma leitura de mundo instrumentalizada por eles. Dentro desse propósito, “é necessário que os quadrinhos deixem de ser encarados como apenas um instrumento didático ou um meio de distração, com o qual se engana o aluno para transmitir-lhe conteúdos escolares, sem a reflexão sobre estes” (p.30). O terceiro capítulo, Imagens e Geografia, o autor retoma o debate da emergência do campo dos estudos culturais, em particular na Geografia através da Geografia Cultural. Embora seja essa a matriz de reflexão do autor, é importante destacar que o campo dos estudos culturais na Geografia não foi monopólio dessa matriz conforme uma leitura do texto pode dar a entender. Dialogando com a noção de inscrições e visões geográficas de Denis Cosgrove, o autor aborda a importância do olhar na construção G I R A M U N D O , R I O D E J A N E I R O , V . 1 , N . 2 , P. 1 4 0 - 1 4 1 , J U L . / D E Z . 2 0 1 4 .

do saber geográfico e como ele foi produzido historicamente. Passeando pela Geometria de Platão; Cosmografia e Corografia de Ptolomeu, o autor ilustra a importância do elemento gráfico na construção de distintas visões de mundo. Como ressalta, “perceber as visões geográficas inscritas ou grafadas, manifestas e/ou impostas ao mundo, seja da forma que for, sobre o suporte que for, é um passo importante na construção de um entendimento crítico próprio sobre o espaço” (p.39). Nos dois capítulos seguintes, são apresentadas ao leitor algumas práticas de ensino adotadas pelo autor em escolas da rede pública no Rio Grande do Sul. A diversidade de HQs utilizadas merece ser destacada, evidenciando a preocupação em aproximar os alunos, com gostos e interesses distintos, do universo dos quadrinhos. Nesse sentido, Mônica e Cebolinha dialogam com Mickey, X-Men entre outros. A riqueza gráfica do livro nesses capítulos, com as atividades desenvolvidas pelos alunos ajudam a perceber não só o trabalho empreendido por Rafael Martins da Costa, como também a leitura espacial dos alunos em diferentes momentos do desenvolvimento da prática com os quadrinhos. Por fim, a obra Geografia em quadrinhos: imaginando um mundo em sala de aula evidencia que em um momento onde diversas outras linguagens passam a ganhar campo no ensino da Geografia – grafite, videogame, skate e outras – outras linguagens com amplo histórico na área de ensino devem ser revistas com novos olhares. E ainda que enquanto professores estejamos sujeitos a diretrizes educacionais que em alguns casos são distantes de nossa sala de aula, somos nós professores que estamos lá com nossos alunos, ninguém mais. E como percebe o autor, “de alguma forma, esse é o nosso trunfo” (p.106). Nesse sentido, o livro de Rafael Martins da Costa merece a leitura por empreender esse novo olhar de uma velha prática a partir desse trunfo. NOTA 1

TUAN, Y. F. Sight and pictures. Geographical Review, v. 69, p. 413-

422, 1979. 141


R E V I S TA DE G EO G R A FIA DO C OLÉ G IO PED RO II

NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ORIGINAIS ACESSE O SITE DA REV I S TA PARA M AI ORES I NFORM AÇ ÕE S : HT T P: //WWW.CP2.G 12. BR/OJS /I NDEX . P HP /GI RAM U NDO R EVISTA DE G EOGRAFIA DO COLÉGIO PEDRO II

A S M ATR I ZES C U R R IC U LA R ES DE GEOGR A FIA DA P R OV ÍNC IA DE B U ENOS AIRES COM O TEM A POLÍTIC O, C U LTU R A L E DE C IDA DA NIA | UM E S T UDO S OBRE O ENEM E O CURRÍCULO DE GE OGRA F I A NO E NS I NO M É DI O | INV ES TIGA NDO O C URRÍCUL O DA GEOGR A FI A ES C OLA R | DI S C UT I NDO S OBRE A RE LE VÂ NC I A DA GE OGRAF IA D O RIO D E JANEIR O NO C URRÍ C ULO DO E NS I NO M É DI O | A C ONS TR U Ç Ã O DA NAÇÃO NOS LI VR O S DI DÁTIC OS DE GEOGR A FIA DA P R IMEIR A R EP Ú B LIC A | PA RA ALÉM D O S MURO S DA E SCOLA : A RE LA Ç Ã O C I DA DE - E DUC A Ç Ã O E M DE BAT E | P R Á T I C A S P E D A G Ó G I C A S _ FU NK E GEOGR A FIA | O QUE O S K AT E P ODE D IZ ER SOBRE O E NSINO DE GE OGRA F I A ? | LA B OR ATÓR IO DE P R ÁTIC A S E R A C ION AL IDADES U R B A NA S – LA P R A R U A | M A RA C A NÃ : I M P RE S S ÕE S E P E RC E P Ç ÕE S DOS ALUNO S COM DE FICIÊNCI A V I S UA L DO I NS T I T UTO BE NJA M I N C ONS TA NT | A FAV ELA SO B O OLHA R DE A LU N OS DE C LA S S ES P OP U LA R ES | A RM A Z E NZ I NHO | E N T R E V I S T A C O M O P R O F E S S O R J O Ã O R U A | RE S E NHA_ GEOGR A FIA EM QU A DR INH OS

1 - FINALIDADE 1.1 - A finalidade da GIRAMUNDO: Revista de Geografia do Colégio Pedro II é divulgar artigos, resenhas, entrevistas e práticas pedagógicas relacionadas ao ensino de Geografia. 2 - TIPOS DE TRABALHOS 2.1 - Serão aceitos para publicação na GIRAMUNDO: Revista de Geografia do Colégio Pedro II os seguintes tipos de trabalhos: a) artigos relacionados à temática da Revista e apresentados sob a forma de revisão de literatura, ensaios ou resultados de pesquisa; b) relatos de experiências pedagógicas (seção com tema pré-definido a cada edição); c) resenhas: de livros, teses, dissertações, filmes e álbuns musicais diretamente relacionados ao Ensino de Geografia; 2.2 - Serão aceitos trabalhos em português, espanhol ou inglês, desde que correspondam ao idioma original do(s) autor(es). 3 - FORMATO DOS TRABALHOS 3.1 - Os trabalhos a serem publicados na Revista GIRAMUNDO devem ter quantidade de página de acordo com a seguinte relação: a) artigos: entre 10 e 20 páginas, incluindo as referências; b) relatos de experiência: 3 a 6 páginas; c) notas e resenhas: entre 3 a 6 páginas. 142


REV I S TA DE GE O G R A F IA D O C O L É G IO P E D R O II N O R M A S PA R A A P R E S E N TA ÇÃ O D E O R I G I N A I S

3.2 - Os trabalhos devem ser editados em MS Office 97-2003 (Word) ou equivalente. 3.2.1 - A configuração da página deve ser A4 (210 x 297 mm) com margens de 3,0 cm (superior, inferior, direita e esquerda). A paginação deve ser feita no alto, à direita. Não devem ser usados cabeçalho e notas de rodapé. 3.2.2 - O espaço entre linhas é de 1,5, a fonte padrão é Times New Roman, no tamanho 12. 3.2.3 - O título do trabalho (em português e um correspondente em língua estrangeira: inglês, francês ou espanhol) deve aparecer centralizado com fonte Times New Roman, tamanho 14, em negrito, letras maiúsculas e espaçamento 1,5. Se houver subtítulo, usar letras minúsculas. 3.2.4 - Após o título (e subtítulo), recuado à direita, devem estar o nome dos autores (fonte tamanho 12, negrito e espaçamento simples), a titulação e a identificação da instituição a que pertencem, bem como o(s) correio(s) eletrônico(s) (fonte tamanho 10 e espaçamento simples). 3.2.5 - A seção relatos de experiências pedagógicas é a única da Revista GIRAMUNDO que seguirá um tema previamente estabelecido. 3.2.5.1 - O tema da terceira edição será: USO DE NOVAS TECNOLOGIAS NAS AULAS DE GEOGRAFIA 3.2.5.2 - Os trabalhos enviados para esta seção devem seguir a seguinte estrutura:

Título: em português e o correspondente em língua estrangeira: inglês, francês ou espanhol Objetivo: (até 250 palavras) Condições de aplicação: Descrição das condições nas quais a atividade foi desenvolvida (Escola, série, faixa etária, etc.) Materiais Necessários: Descrição da atividade: até 1500 palavras (3 páginas) Considerações finais: (até 250 palavras) Anexos: materiais didáticos Referências: Filmes, livros, atlas, músicas, etc.

3.2.6 - Os artigos científicos e os relatos de práticas pedagógicas devem conter um resumo em português e o resumo correspondente em língua estrangeira: inglês, francês ou espanhol com, no máximo, 15 linhas (até 250 palavras) em espaço simples e uma relação de cinco palavras-chave, descritoras do conteúdo do trabalho e apresentadas em português e em língua estrangeira (inglês, francês ou espanhol). Recomenda-se que seja feita revisão por profissional especializado. 3.2.6.1 - A estrutura do texto deve ser dividida em partes não numeradas e com subtítulos (fonte tamanho 12, negrito e sem tabulação). É necessário conter, para os artigos, introdução e conclusão ou considerações finais. 3.2.6.2 - Tabelas e ilustrações (ABNT NBR 14724/abril/2011) devem ser referidas no texto e numeradas de acordo com a sequência. 3.2.6.2.1 - As tabelas devem ter título/legenda na parte superior (fonte tamanho 12 e espaçamento simples). 3.2.6.2.2 - As ilustrações (gráficos, mapas, fotografias, desenhos, esquemas, fluxogramas, organogramas, plantas, quadros e outros) devem ser enviados em formato GIF ou JPG, já inseridos no corpo do texto com título/legenda na parte superior (fonte tamanho 12 e espaçamento simples) e a fonte consultada na parte inferior (fonte tamanho 12 e espaçamento simples) mesmo que seja o próprio autor (O autor, 2013). 3.2.6.3 - As notas devem ser marcadas com números no alto à direita da palavra e colocadas no final do texto, antes da referência com fonte tamanho 10. 143


RE VIS TA DE G EOG RA FIA DO C OLÉGI O P EDRO I I NORM AS PA R A A P R E S E N TA ÇÃ O D E O R IG IN A IS

3.2.6.4 - As citações diretas e indiretas devem ser organizadas de acordo com a NBR-10520 da ABNT (agosto de 2002). As citações diretas, no texto, de até três linhas, devem estar contidas entre aspas duplas. As citações diretas, no texto, com mais de três linhas, devem ser destacadas com recuo de 4cm da margem esquerda, sem as aspas e com letra Time New Roman, corpo 10. 3.2.6.4.1 - A apresentação de citações ao longo do texto deve seguir as seguintes orientações: sobrenome do autor, data, página em letras maiúsculas e minúsculas: Biazzo (2012, p. 93) e, quando estiverem entre parênteses, devem ser em letras maiúsculas: (BIAZZO, 2012, p. 93). 3.2.6.5 - As referências devem ser organizadas de acordo com a NBR-6023 da ABNT (agosto de 2002) e devem seguir os modelos e exemplos abaixo: a) livros: AUTOR (ES). Título: subtítulo. Indicação de responsabilidade (organização,revisão crítica, tradução etc). Edição. Local de publicação (cidade): Editor, data (ano). Número de páginas ou volumes. RUA, João; WASZKIAVICUS, Fernando A.; TANURI, Maria R. Petrus; PÓVOA NETO, Hélion. Para ensinar Geografia: contribuição para o trabalho com 1o e 2o graus. Rio de Janeiro: Access, 1993. 311p. b) capítulos de livro AUTOR (ES) Título do capítulo. In: AUTOR (ES) DO LIVRO. Título do livro. Edição. Local de publicação (cidade): Editora, data (ano). Número de páginas. Páginas inicial e final do capítulo. QUIJANO, Aníbal. O que é essa tal de raça?. In: SANTOS, Renato Emerson dos. Diversidade, espaço e relações étnicoraciais: o negro na geografia do Brasil. Belo Horizonte: 2007, 208p. p. 43-5 c) monografias, dissertações e teses: AUTOR. Título: subtítulo. Número de folhas ou volumes. Tipo de trabalho (grau)-vinculação acadêmica, local e data de apresentação ou defesa, mencionada na folha de apresentação (se houver). VILELA, Carolina Lima. Currículo de Geografia: analisando o conhecimento escolar como discurso. 201 f. Tese (Doutorado em Educação)–Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013. d) trabalhos apresentados em congressos: AUTOR (ES) DO TRABALHO. Título do trabalho. In: NOME DO CONGRESSO, número do evento, data da realização, local de realização (cidade). Título... Local de publicação (cidade): Editora, data de publicação (ano). Páginas inicial e final do trabalho. CORRÊA, Márcio Ferreira Nery. Elementos de reflexão acerca da geografia ensinada no Imperial Collegio de Pedro II e de sua relação com a questão da formação territorial e do Estado nação brasileiros. In: XIII Encuentro de Geógrafos de América Latina. 13., 2011, San José. Anais... San José: Universidad de Costa Rica/Universidad Nacional, 2011. CD-ROM e) artigos de revistas AUTOR (ES) DO ARTIGO. Título do artigo. Título da revista, local de publicação (cidade), número do volume, número do fascículo, página inicial e final do artigo. Mês e ano do fascículo. ROCHA, Ana Angelita. QUAL A REFERÊNCIA DA MATRIZ?: notas para ensaiar uma reflexão sobre a disciplina escolar e a Geografia no ENEM. Revista Brasileira de Educação em Geografia, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 01-23, jan./jun., 2012.

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REV I S TA DE GE O G R A F IA D O C O L É G IO P E D R O II N O R M A S PA R A A P R E S E N TA ÇÃ O D E O R I G I N A I S

f) informação obtida via CD-ROM AUTOR. Título. Local de publicação (cidade): editora, data (ano). Tipo de suporte. Notas. CIDE. Anuário Estatístico do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nigraph, 1997. g) informação obtida pela WEB AUTOR (ES). Título. Disponível na Internet. Endereço. Data de acesso. CASTRO, Demian Garcia. Significados do conceito de paisagem: um debate através da epistemologia da geografia. Disponível em: http://www.pucsp.br/~diamantino/PAISAGEM.htm Acesso em: 28 fev. 2010. 4 - ENVIO E AVALIAÇÃO DE TRABALHOS

4.1 - Artigos, relatos de práticas pedagógicas ou resenhas, devem ser encaminhados para o Editor da Revista GIRAMUNDO, por meio eletrônico. O trabalho será submetido à avaliação de dois membros do Conselho Editorial.

4.2 - A avaliação dos trabalhos será pautada a partir da observação dos seguintes critérios: a) originalidade, b) relevância científica, c) correção, clareza e qualidade gráfica das ilustrações.

4.3- Os pareceres poderão ser de aceite para publicação, aceite para publicação com correção ou não aceite para publicação. 5- DIREITOS AUTORAIS

5.1 - O envio de qualquer trabalho caracterizará a concordância com as diretrizes editoriais da Revista GIRAMUNDO e as normas aqui estabelecidas.

5.2 - O(s) autor(es) autoriza(m) a divulgação de seus trabalhos sem receber qualquer valor monetário pela divulgação.

5.3 - O(s) autor(es) assume(m) a autoria de seu texto e a responsabilidade pelas ilustrações e tabelas.

6 - SUBMISSÕES ONLINE

6.1 - As submissões deverão ser feitas através do site: http://www.cp2.g12.br/ojs/index.php/GIRAMUNDO

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