Revista Interritórios - Temas e Dilemas da Pesquisa

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Reitor da Universidade Federal de `Pernambuco Anísio Brasileiro de Freitas Dourado Vice-reitora Florisbela de Arruda Câmara e Siqueira Campos Pró-reitor para Assuntos Acadêmicos Paulo Savio Angeiras de Goes Pró-reitora de Extensão e Cultura Maria Christina de Medeiros Nunes Pró-reitor para Assuntos de Pesquisa e Pós-Graduação Ernani Rodrigues de Carvalho Neto Pró-reitora para Assuntos Estudantis Ana Maria Santos Cabral Diretor do Centro Acadêmico do Agreste Manoel Guedes Alcoforado Neto Vice-diretora do Centro Acadêmico do Agreste Ana Paula Freitas da Silva Coordenador do Núcleo de Formação Docente Ernesto Arcenio Valdés Rodriguez Tutora do Programa de Educação Tutorial - PET Infoinclusão Anna Rita Sartore

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Editores Responsáveis Anna Rita Sartore (UFPE - Brasil) Everaldo Fernandes da Silva (UFPE - Brasil) Janssen Felipe da Silva (UFPE - Brasil) Saulo Ferreira Feitosa (UFPE - Brasil) Organizadores Edna do Prado Janssen Felipe da Silva Anna Rita Sartore Comissão Editorial Alyson Wegilles de Souza Campos Amanda Fabrícia Sobral Santos Daiane Keila Silva Eunice Pereira da Silva Graciene Morgana Portela S. de Oliveira Maria Karoline G. Alves Marta Cordeiro da Silva Gomes Renata Ribeiro da Silva Rodrigo de Moura Pereira Conselho Editorial Adrián Scribano (CIECS - Argentina) Alexandre Viana Araújo (UFPE - Brasil) Alexsandro da Silva (UFPE - Brasil) Ana Maria Pereira Aires (UFRN - Brasil) Ângela Maria M da Motta (UFPE - Brasil) Anna Rita Sartore (UFPE - Brasil) Carla Patrícia A. Lins Guaraná (UFPE - Brasil) Cinthya Lúcia M. T S de Melo (UFPE - Brasil) Claudemir Belintane (USP - Brasil) Conceição Gislane N. L. de Salles (UFPE - Brasil) Débora Maria do Nascimento (UERN - Brasil) Edilson Fernandes de Souza (UFPE - Brasil) Edlamar Oliveira dos Santos (IFPE - Brasil) Edmerson dos Santos Reis (UNEB - Brasil) Edna Cristina do Prado (UFAL- Brasil) Ernesto Arcênio Valdés Rodriguez (UFPE - Brasil) Everaldo Fernandes da Silva (UFPE-Brasil) Faustino Teatino Cavalcante Neto (UFCG - Brasil) Iranete Maria da Silva Lima (UFPE - Brasil) Jaqueline Barbosa da Silva (UFPE - Brasil) Janssen Felipe da Silva (UFPE - Brasil) José Batista Neto (UFPE - Brasil) Lucinalva Andrade Ataíde de Almeida (UFPE Brasil)

Marcelo Henrique G. de Miranda (UFPE - Brasil) Marcia Ângela da Silva Aguiar (UFPE - Brasil) Márcia Gurgel Ribeiro (UFRN - Brasil) Márcia Maria de Oliveira Melo (UFPE - Brasil) Maria de Fátima Garcia (UFRN - Brasil) Maria do Socorro Silva (UFCG - Brasil) Maria Eliete Santiago (UFPE - Brasil) Maria Margarete S. de C. Braga (UECE - Brasil) Maria Joselma do Nascimento Franco (UFPE Brasil) Maria Veronica Filardo Garcia (UDeLAR - Uruguai) Milton Vidal Rojas (UACh - Chile) Nadège Mézié (Université Paris Descartes França) Paulo Henrique N Martins de Albuquerque (UFPE - Brasil) Paulo Henrique Ribeiro Peixoto (UFPE - Brasil) Rita De Cassia Cavalcanti Porto (UFPB - Brasil) Roberto Araújo Sá (UFPE - Brasil) Sandro Guimarães de Salles (UFPE - Brasil) Saulo Ferreira Feitosa (UFPE - Brasil) Tatiane Rodrigues Cosentino (UFSCar - Brasil) Wallace Ferreira de Souza (UFCG - Brasil) Willy Soto Acosta (UNA- Costa Rica)

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Projeto Gráfico Amanda Fabricia Sobral Santos Maria Karoline Gomes Alves Graciene Morgana Portela Sousa de Oliveira Diagramação Alyson Wegilles de Souza Campos Revisão Aline Renata dos Santos Traduções Emanuelle de Souza Barbosa PET Infoinclusão Alyson Wegilles de Souza Campos Amanda Fabricia Sobral Santos Daiane Keila Silva Eunice Pereira da Silva Graciene Morgana P. S. de Oliveira Maria Karoline G. Alves Marta Cordeiro da Silva Renata Ribeiro da Silva Rodrigo de Moura Pereira

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 6 A PEDAGOGIA SOCIAL DE PAULO FREIRE COMO CONTRAPONTO DA PEDAGOGIA GLOBALIZADA 9 EDUCAÇÃO ESPECIAL: LIMITES E POTENCIALIDADES DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA 27 A EDUCAÇÃO SUPERIOR BRASILEIRA EM NOVAS CONFIGURAÇÕES 49 PENSAMENTO NEGRO E EDUCAÇÃO INTERCULTURAL NO BRASIL 73 CONCEPÇÕES E PRÁTICAS DE FORMAÇÃO CONTINUADA NA EDUCAÇÃO BÁSICA 93 NOTAS SOBRE EDUCAÇÃO POPULAR A PARTIR DA PESQUISA COM RECICLADORAS E RECICLADORES 109 PERCURSOS DAS TRANSFORMAÇÕES DA TEORIA E DA VALIDAÇÃO DO CONHECIMENTO NAS CIÊNCIAS HUMANAS: DO FALSIFICACIONISMO DE POPPER À TEORIA DE VALOR DE RICKERT 125 CIDADANIA E CRIANÇA 141

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APRESENTAÇÃO A revista Interritórios, em seu terceiro número, traz algumas questões que ao longo dos tempos demandaram respostas de inúmeros pesquisadores das Ciências Humanas. Com os temas, vieram, a reboque, os dilemas, as angústias e as delicias de pensar-se o sujeito. Como não poderia deixar de ser, o conhecimento é o epicentro e dele emana o desejo, insistente, que captura os cientistas desde sempre. No primeiro artigo intitulado A Pedagogia Social de Paulo Freire como Contraponto da Pedagogia Globalizada, Afonso Celso Scocuglia caracteriza as globalizações; algumas de suas influências sobre a educação e pensa os possíveis contrapontos aos determinismos da globalização hegemônica, por meio dos principais conceitos da Pedagogia Social de Paulo Freire. O artigo Educação Especial: limites e potencialidades da educação inclusiva, de Miguel Correia e Preciosa Fernandes, apresenta como objetivo compreender percepções de professores da educação especial e de professores do ensino regular sobre potencialidades e limites de a Educação Especial (EE) se constituir em uma via para a inclusão de alunos com Necessidades Educativas Especiais (NEE). Em nosso terceiro artigo, A Educação Superior Brasileira em Novas Configurações, as autoras Luiza Olivia Lacerda Ramos e Rosilda Arruda Ferreira analisam as novas configurações da educação superior brasileira, sobretudo, a partir da implantação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDB Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 Em Pensamento Negro e Educação Intercultural no Brasil, Claudilene Silva e Eliete Santiago tratam do fato de “A despeito de a população negra constituir a maioria da população brasileira, o desejo de branqueamento do Brasil ainda invisibilizar essa população em diversos campos da sociedade, inclusive na educação. Em Concepções e Práticas de Formação Continuada na Educação Básica, Edlamar Oliveira dos Santos e José Batista Neto discutem os resultados da pesquisa cujo objetivo foi analisar as concepções de formação continuada que orientaram a política de formação docente da Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife, bem como a organização e produção das práticas formativas com professores dos ciclos iniciais do Ensino Fundamental. Notas sobre a educação popular a partir da pesquisa com recicladoras e recicladores, Vinicius Lima Lousada apresenta-nos as aprendizagens efetivadas, como educador e pesquisador, na Associação de Reciclagem Ecológica Rubem Berta (Galpão), em Porto Alegre/RS. Percursos das Transformações da Teoria e da Validação do Conhecimento nas Ciências Humanas, Marcelo Miranda retrata aspectos do debate epistemológico sobre as condições de validade na produção do conhecimento científico para as ciências humanas, via questões que dizem respeito 6

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às ciências nomotéticas e sobre as ciências ideográficas. Essa edição se conclui com um ensaio de Claudemir Belintane que nos conduz por cima do traço poético do mineiro Chico do Bonecos, da experiência cotidiana da professora Henriqueta, e outros ilustres, convidando a “matutar” sobre a cidadania da criança; a cidadania do letramento. Que cidadania é essa? Será ela, de fato (como a língua batuca no dente), dada? Caruaru, 01 de dezembro de 2016 Organizadores: Anna Rita Sartore e Janssen Felipe da Silva

Daniel Lisboa Soares Daniel Lisboa Soares

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A PEDAGOGIA SOCIAL DE PAULO FREIRE COMO CONTRAPONTO DA PEDAGOGIA GLOBALIZADA SCOCUGLIA, AFONSO Celso¹

Resumo Este trabalho pretende caracterizar as globalizações, algumas das suas influências sobre a educação e, especialmente, pensar os possíveis contrapontos aos determinismos da globalização hegemônica por meio dos principais conceitos da pedagogia social de Paulo Freire. Os numerosos eventos, as publicações e as constantes referências à obra e ao legado prático-teórico de Freire demonstram a possibilidade concreta da sua pedagogia vir a ser um contraponto vigoroso à influência da globalização hegemônica na educação mundial. Paulo Freire. Educação. Cultura. Globalização. Resumen Este trabajo tiene como objetivo caracterizar las globalizaciones, algunas de sus influencias en la educación y, sobre todo, pensar en los posibles contrapuntos a los determinismos de la globalización hegemónica a través de los principales conceptos de la pedagogía social de Paulo Freire. Los numerosos eventos, publicaciones y las constantes referencias a la obra y el legado práctico-teórico de Freire demuestran la posibilidad real de que su pedagogía se convierta en un fuerte contrapunto a la influencia de la globalización hegemónica en la educación mundial. Paulo Freire. Educación. Cultura. Globalización.

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INTRODUÇÃO Para iniciar um debate sobre globalização e educação penso que devemos partir da contestação de algumas falsas ideias que, de tão repetidas, tendem a se consolidar como ideologias. A primeira dessas ideias é a de que a globalização é um processo histórico recente e que não encontra paralelo na história. Para isso argumenta-se, inclusive, que seria produto das novas tecnologias da informação. Ora, o mundo começou a se tornar global, no sentido que o conhecemos, a partir dos séculos XV/ XVI com as grandes navegações que invadiram as Américas. Certamente, o processo de desenvolvimento do capitalismo mundial mostra-se como uma continuidade histórica, como consequência dos tempos e contra-tempos históricos do mundo liderado pelas forças dominadoras do Ocidente. A globalização, assim, não é recente, não é novidade histórica, parecendo muito mais uma nova tentativa de sobrevida do capitalismo, fundada na exacerbação da sua expansibilidade econômico-financeira facilitada pelas redes info-comerciais maximizadas. Vários autores colocam que tal processo é resultado da atual crise econômica que, motivada pela superprodução, acelera a centralização e a globalização do capital. Neste sentido, a globalização econômica e o neoliberalismo comercial seriam respostas à crise do capitalismo e produtores da concentração de riquezas e da exclusão social. A segunda falsa ideia é a de que a globalização é irrevogável, irreversível e inexorável, ou seja, é a única saída da pós-guerra fria cuja bipolaridade marcou o mundo no século XX.

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Assenta-se na premissa de que o capitalismo é a única via mundial, que o Leste (Rússia etc.) e a Ásia (China etc.) aderiram, que não há outras opções, que a história acabou e o neoliberalismo é a solução. A terceira e, talvez, a mais perniciosa das ideias, é de que, diante da avalanche globalizante alicerçada pelas duas ideias anteriores, não há nada a fazer senão aderirmos aos vencedores, líderes de um mundo único, no qual o individualismo, as guerras militares e civis (das grandes cidades e do campo), entre outras, são práticas e ideias que convergem e desaguam na globalização hegemônica, definitiva e fatal. Com efeito, nos caminhos entrecruzados dessas ideias, também se desenvolvem argumentos de uma educação e de uma política educacional/ curricular cada vez mais padronizadas, globalizadas, supostamente marcadas e impostas por uma cultura educacional mundial comum, como defendem Meyer e seus colaboradores de Stanford (apud Dale, 2004). Segundo Dale, neste prisma, a globalização é frequentemente considerada como representando um inelutável progresso no sentido da homogeneidade cultural, como um conjunto de forças que estão a tornar os Estados-nação obsoletos e que pode resultar em algo parecido como uma política mundial, e como refletindo o crescimento irresistível da tecnologia da informação. (Idem, p. 424).


AS GLOBALIZAÇÕES CONTINGENTES E INDETERMINADAS DA CONTEMPORANEIDADE Mundializações ou globalizações? Qual seria a melhor nomenclatura? Os que defendem, como nós, a ideia da historicidade dos conceitos tenderia a chamar de mundializações os fenômenos sociais, econômicos e culturais vivenciados atualmente. Ocorre que, até para contestar as falsas ideias da unicidade e da inexorabilidade do processo, precisamos criticar uma literatura que já consagrou o termo globalização como definição do processo. Em outras palavras, o jogo hegemônico é tão denso que, até mesmo para contestar o conceito, a padronização proposital da linguagem nos obriga a usá-lo. Podemos perceber que até mesmo o termo a globalização faz parte do seu processo de convencimento, isto é, da construção da sua hegemonia. Mesmo assim, usando globalização como a nomenclatura corrente quer, temos que começar afirmando: não existe a globalização e, sim, globalizações hegemônicas e contra-hegemônicas. Boaventura de Souza Santos (2004) contrapõe e interliga as duas possibilidades históricas: a globalização contra-hegemônica, de que os movimentos e organizações congregadas no Fórum Social Mundial são um eloquente exemplo, é feita de uma enorme diversidade de ações de resistência contra a injustiça social em suas múltiplas dimensões. Contra a banalização e a instrumentalização da indignação moral procuram manter viva a ideia de que o capitalismo global (agora chamado de globalização neoliberal) é injusto, é hoje mais injusto do que há vinte anos e que,

se nada fizermos, será ainda mais insuportavelmente injusto daqui a vinte anos. (...) O que será a globalização contra-hegemônica depende do que será a globalização hegemônica e vice-versa (p. 1-2). Neste sentido, torna-se importante destacar com Santos que o objetivo da globalização alternativa é tornar o mundo cada vez menos confortável para o capitalismo. Este só pode ser declarado irreversível depois de esgotadas todas as alternativas, o que provavelmente nunca ocorrerá. Ou seja, o capitalismo global não é menos contingente e indeterminado do que as lutas contra ele. (Ibidem, p. 2). Os desenvolvimentos interdependentes das globalizações antagônicas evidenciam um campo de luta que rechaça a ideia de fatalidade histórica. Por seu turno, os argumentos da contingência e da indeterminação alicerçam e tornam ainda mais incisivas as críticas sobre as falsas ideias do fim da história e da inexorabilidade da globalização como fenômeno único contra o qual não há nada a fazer. Ao contrário, para Santos (2002) o que é chamado de globalização é um “conjunto de arenas de lutas transfronteiriças” (p. 6). As globalizações “de-cima-para-baixo” (hegemônicas) e “de-baixo-para-cima” (contra hegemônicas) comportam quatro formas de globalização: o localismo globalizado e o globalismo localizado seriam parte da primeira e o cosmopolitismo e o patrimônio comum da humanidade, da segunda.

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O localismo globalizado é o “processo pelo qual determinado fenômeno local é globalizado com sucesso”. (Ibidem, p. 5). Cita como exemplos, entre outros, os casos das ações das multinacionais, a expansão mundial da língua inglesa e a globalização do fast food e da música popular norte-americanas. O globalismo localizado é mostrado pelo “impacto específico de práticas e imperativos transnacionais nas condições locais, as quais são, por essa via, desestruturadas e reestruturadas de modo a responder a esses imperativos transnacionais”. (Ibidem, p. 5). Fazem parte dele os nossos conhecidos fenômenos como as zonas francas de comércio, “uso turístico de tesouros históricos, lugares ou cerimônias religiosas, artesanato e vida selvagem”, “conversão da agricultura de subsistência em agricultura para exportação” (agrobusiness). Essas formas de globalizações hegemônicas teriam duas vias na divisão internacional da produção: “os países centrais especializam-se em localismos globalizados, enquanto aos países periféricos cabe tão-somente a escolha dos globalismos localizados”. (Ibidem, p. 5). No entanto, o cosmopolitismo e o patrimônio comum da humanidade não se caracterizam nem como globalismo localizado, nem como localismo globalizado. São formas antagônicas identificadas pelo autor como globalizações de-baixo-para-cima, ou seja, globalizações contra-hegemônicas. O cosmopolitismo constitui uma antítese das formas predominantes de hegemonia enquanto oportunidades de organizações transnacionais de Estados-nação, de regiões, de classes ou grupos sociais que explorariam as contradições do sistema mundial imposto, interagindo na defesa de seus interesses comuns.

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Incluem desde as redes feministas às ecológicas, das ONGs às organizações Sul-Sul, das organizações de trabalhadores aos Fóruns Mundiais, passando pelos movimentos literários, científicos e artísticos. O patrimônio comum da humanidade, por sua vez, inclui temas de sentido global como o desenvolvimento sustentável da Terra, a proteção da camada de ozônio, a preservação da floresta amazônica, dos oceanos e da Antártida (Santos, ibidem, p. 5-6). Fácil observar que, concomitante à expansão contra-hegemônica, tem ocorrido fortes resistências que vão do combate às organizações como o Greenpeace à não assinatura pelos Estados Unidos do Tratado de Kyoto, passando inclusive pelas ações do Vaticano e do Governo Busch contra liberdade sexual, os avanços científicos no campo das células-tronco, entre outros.

GLOBALIZAÇÃO DA CULTURA E DA EDUCAÇÃO HEGEMONIA E CULTURA EDUCACIONAL MUNDIAL COMUM Certamente não se admite que os processos hegemônicos de globalização estejam circunscritos aos campos econômicos e às suas relações mais próximas. As interferências desses processos nos campos da cultura e da educação têm sido objeto de vários estudos. Um dos mais significativos, a meu ver, é o trabalho desenvolvido por Roger Dale (2004), disseminado e traduzido em vários países, inclusive no Brasil² . Dale compara duas abordagens da relação globalização-educação: uma oriunda das teses de John Meyer (e da sua equipe da Universidade de Stanford, EUA) que conside-


ra a propagação de uma “cultura educacional mundial comum” (CEMC) e, outra, a sua própria abordagem, que denomina “agenda globalmente estruturada para a educação” (AGEE). Segundo Dale, os que propõem a primeira abordagem “defendem que o desenvolvimento dos sistemas educativos nacionais e as categorias curriculares se explicam através de modelos universais de educação, de estado e de sociedade, mais do que através de fatores nacionais distintivos” (2004, p. 425). Por sua vez, Dale “baseia-se em trabalhos recentes sobre economia política internacional (...) que encaram a mudança de natureza da economia capitalista mundial como a força diretora da globalização e procuram estabelecer os seus efeitos, ainda que intensamente mediados pelo local, sobre os sistemas educativos”. (Ibidem, p. 426). A argumentação principal de Meyer e seus colaboradores é a de os estados estão modelados por uma ideologia dominante, cada vez teriam menos autonomia, e se submeteriam a normas e cultura homogeneizadoras. Segundo Dale, as pesquisas do grupo em foco constatam que a demonstração mais cabal dessa abordagem se encontra na área educacional “tanto na massiva e rápida expansão dos sistemas de educação nacionais como no inesperado isoformismo global das categorias curriculares em todo o mundo”. (Ibidem, p. 427). E esse isoformismo aconteceria sem levar em conta as distinções políticas, econômicas e culturais de cada nação. Para Meyer, as estruturas formais da sociedade, desde a definição e pro-

priedades do individual até a forma e o conteúdo de organizações como as escolas, as empresas, os movimentos sociais e os estados, derivam ou são ajustadas para se adequarem às regras muito gerais que possuem pelo mundo afora significado e poder”.(MEYER, apud DALE, op.cit. p. 428). Estes autores, que Dale denomina “institucionalistas mundiais”, pensam as instituições como “instâncias culturais” fundadas na racionalidade, no progresso, no individualismo e na justiça. Atuariam “no sentido da racionalização do mundo social e da expansão das competências e direitos do indivíduo”. Ainda segundo essa abordagem, as políticas nacionais de educação “são em essência pouco mais que interpretações de versões ou guiões que são informados por, e recebem a sua legitimação de, ideologias, valores e culturas de nível mundial”. A maior demonstração dessa tese centra-se na “surpreendente homogeneidade das categorias curriculares” disseminadas em todo o mundo. (DALE, op. cit., p. 429). De acordo com essa perspectiva, a educação de massas e os currículos da escola de massas estão estritamente ligados aos modelos emergentes de sociedade e de educação que se tornam relativamente padronizados em nível mundial. Estes modelos padronizados criaram efeitos culturais homogeneizantes que minam o impacto de fatores nacionais e locais ao determinarem a composição do currículo. Esta visão implica que as diferenças nacionais relativamente às prioridades curriculares – por exemplo, a prioridade dada à

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matemática ou às ciências – são relativamente pequenas e acabarão por se diluir ao longo do tempo. (KAMENS & BENAVOT, apud Dale, op. cit. p. 432). Em suma, a tese da cultural educacional mundial comum, ao vincular a globalização e os processos educacionais mediatizados pelos currículos, procura mostrar as ações das forças supranacionais, as causas determinantes da incorporação de um modelo ocidental (e pretensamente único) de mundo e as consequentes absorções educacionais e curriculares advindas dessa modelação. Como se pode imaginar desde logo, substanciam essa visão as interferências das agências financiadoras como o Banco Mundial, o BIRD, o BID, ou reguladoras como a OMC.

POSSIBILIDADES CONTRA- HEGEMÔNICAS DE UMA AGENDA GLOBALMENTE ESTRUTURADA DA EDUCAÇÃO Uma outra da visão da problemática globalização-educação é construída por Roger Dale (2004). Segundo o próprio autor, sua tese compartilha pontos importantes com a abordagem antes exposta, mas apresenta algumas diferenças fundamentais. Ambas argumentam sobre a influência das forças supranacionais sobre as políticas educacionais dos Estados-nação, reconhecendo que “os quadros interpretativos nacionais são moldados quer supranacionalmente, quer nacionalmente”. As diferenças fundamentais residiriam nas compreensões da globalização e da educação e nas relações entre elas (p. 436).

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Conforme Dale, a diferença fundamental entre as duas abordagens reside na compreensão da natureza do fenômeno global. Para a CEMC, trata-se de um reflexo da cultura ocidental, baseada cognitivamente em torno de um conjunto particular de valores que penetram em todas as regiões da vida moderna. Para a AGEE, a globalização é um conjunto de dispositivos político-econômicos para a organização da economia global, conduzido pela necessidade de manter o sistema capitalista, mais do que qualquer outro conjunto de valores. A adesão aos seus princípios é veiculada através da pressão econômica e da percepção do interesse nacional próprio. (Ibidem, p. 436) Na abordagem defendida por Dale, a globalização seria “um conjunto de relações econômicas, políticas e culturais caracterizado por um hiper-liberalismo, por uma governação sem governo e mercadorização e consumismo”. (Ibidem, p. 436). Esse conjunto (no qual se incluem as políticas educacionais nacionais) e essas características seriam a base da expansão contínua e da legitimação do sistema capitalista. Por outro lado, a agenda globalmente estruturada da educação preocupa-se em ampliar e detalhar a importância da política educacional e de suas implicações, mesmo a reconhecendo como variável dependente do processo. Dale quer saber: a quem é ensinado o quê, como, por quem e em que circunstâncias?; como, por quem e através de que estruturas, instituições e processos são definidas essas coisas, como é que são gover-


nadas, organizadas e geridas?; quais são as consequências sociais e individuais destas estruturas e processos? (Ibidem, p. 439). Diferente da CEMC, na qual o caráter político da educação está estritamente subordinado ao econômico, na abordagem de Dale, além do econômico ser parte de um tripé (em conjunto com a política e a cultura), a educação não é seu mero reflexo ou somente sua consequência. A segunda abordagem também se mostra distinta quanto às questões curriculares. Já havíamos entendido que Meyer e seus colaboradores defendem a ideia da padronização curricular a partir de uma matriz mundial homogeneizadora. Dale contesta. Além de criticar, por exemplo, a ausência de análise que contemplem as relações da educação com a desigualdade social, tanto em nível global como nacional, chama atenção para uma construção teórica que se limita à sala-de-aula, como se advogasse a neutralidade da prática curricular. Para Dale, o padrão de governação educacional permanece em grande parte sob o controle do Estado, contudo novas e cada vez mais visíveis formas de desresponsabilização estão a prefigurar-se. A educação permanece um assunto intensamente político no nível nacional, e moldado por muito mais do que debates acerca do conteúdo desejável para a educação. As agendas nacionais para a educação são formadas mais no nível do regime do que no nível estrutural; as políticas educativas, o processo de determinar o con-

teúdo e o processo da educação são poderosamente moldados e limitados pelas políticas educativas, pelo processo de determinação das funções a serem desempenhadas, pela importância do consequente provimento dos seus recursos, pelo sistema educativo como parte de um quadro nacional regulador mais amplo. (Ibidem, p. 440-441) E, arremata: De uma forma muito crítica, neste contexto, todos os quadros regulatórios nacionais são agora, em maior ou menor medida, moldados e determinados por forças supranacionais, assim como por forças político-econômica nacionais. E é por estas vias indiretas, através da influência sobre o Estado e sobre o modo de regulação, que a globalização tem seus mais óbvios e importantes efeitos sobre os sistemas educativos nacionais. (Ibidem, p. 441) Neste caminho é importante enfatizar, ainda com Dale, que “as variações nacionais continuam fortes, que a cultura mundial está longe de ser homogênea e que a incorporação do modelo pode acontecer a um nível meramente ritual”. (Ibidem, p. 443). Entretanto, apesar das oposições patrocinadas pela abordagem da agenda globalmente estruturada da educação contra a teorização da cultura mundial educacional comum, o próprio Dale reconhece que uma tem propostas a oferecer à outra, ou seja, podem ser complementares. Esse autor defende a necessidade, contudo, da demonstração da existência de conteúdos programáticos comuns a todos os Estados-nação, isto é, de um currículo mundial comum. Isso implicaria o avanço de pesquisas empíricas neste sentido, mas, a meu ver, a principal diferenciação

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entre ambas está na crítica ao caráter cognitivista e politicamente neutro embutido nas defesas das teses da CEMC. Essas diferenças não são tópicas, ao contrário, revestem-se de grande importância. Tanto no entendimento das políticas nacionais de adesão aos modelos hegemônicos internacionais disseminados e/ ou impostos, quanto nas tentativas de reversão desse quadro em busca de maior autonomia dos Estados–nação e das iniciativas contra-hegemônicas ao “localismo globalizado” e ao “globalismo localizado”, antes apontadas por Boaventura de Sousa Santos.

no mundo. Sabemos que obra de Paulo Freire é traduzida, utilizada e debatida em vários idiomas e em muitos países. Em um sentido completamente diverso da globalização hegemônica do capitalismo, podemos dizer que Freire é um dos pensadores da educação e da pedagogia mais “globalizados”. Os numerosos eventos, as publicações e as constantes referências à sua obra e ao seu legado prático-teórico demonstram a possibilidade concreta da sua pedagogia vir a ser um contraponto vigoroso à influência da globalização hegemônica na educação mundial.

CONTRAPONTOS FREIREANOS À GLOBALIZAÇÃO HEGEMÔNICA NA EDUCAÇÃO

Por que isso ocorre? A meu ver, porque suas categorias de análise, seus principais conceitos e a força da sua prática e das práticas educativas que utilizam seu legado em todo o mundo tem oferecido denúncias, respostas e propostas convincentes aos principais problemas que as políticas educacionais enfrentam nos últimos quarenta anos, entre os quais destacam-se: bilhões de analfabetos absolutos, funcionais, digitais, políticos; precária escolarização das camadas sociais subalternas; privilégio da educação das elites; educação bancária; reprodução dos processos opressivos nas salas de aula; necessidade de reeducação dos educadores e de oferta de condições de trabalho adequadas e qualitativas; importância das ações dialógicas na educação; impossibilidade da educação neutra e a ênfase da politicidade da educação; necessidade da conquista da educação crítica pelas vias/estágios da consciência; aparato educacional voltado para os interesses, valores e necessidades das camadas oprimidas; combate aos determinismos práticos e teóricos; busca da consciência da realidade nacional; a educação e a cultura como exercícios da liberdade; os direitos dos

Depois de tentarmos caracterizar, ainda que brevemente, as globalizações, as convergências e divergências nas influências da globalização hegemônica na educação, nosso intuito neste segmento é pensar os possíveis contrapontos aos determinismos da globalização hegemônica por meio dos principais conceitos do pensamento político-pedagógico de Paulo Freire. Como poderíamos pensar/ propor uma educação contribuinte de uma globalização contra-hegemônica utilizando alguns dos principais conceitos da pedagogia crítica de Paulo Freire? Como a pedagogia freireana denunciaria a globalização hegemônica? Como a pedagogia freireana pensaria uma educação para a globalização contra-hegemônica, por meio da complexidade dos seus conceitos e práticas? Parece-nos que o primeiro passo a considerar é a influência da pedagogia freireana 16

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oprimidos ao conhecimento; o trabalho como uma das matrizes do conhecimento político; a esperança e a ousadia que combatem o fatalismo e o medo; a construção da pedagogia da autonomia; as construções dos inéditos viáveis e da utopia da denúncia e do anúncio; enfim, a educação na história como possibilidade da mudança. Talvez a mais grave das denúncias do fracasso das políticas educacionais lastreadas na globalização atualmente hegemônica seja a verificação de que o analfabetismo de bilhões de pessoas no mundo todo continua a nos desafiar e nos envergonhar. Tal fato já era desastroso havia quatro/cinco décadas, quanto mais hoje na chamada “sociedade do conhecimento” e da comunicação letrada. Os fracassos aos combates ao analfabetismo continuam, tanto em nível local como mundial. E o problema continua a ser tratado como denunciou Freire em um artigo dos anos 1970 (Revista Educação e Sociedade, nº 1) denominado “Alfabetização de adultos: um quefazer neutro?”, ou seja, os encaminhamentos não conseguem descer às raízes sócio-políticas do problema ficando, no máximo, em seu nível cognitivo, agora em discussões circulares sobre letramento etc. Certamente, que as discussões sobre cognição, sobre as metodologias e outras questões do gênero são importantes. No entanto, não há discussão mais urgente do que as necessidades e as determinações sociais e políticas a serem enfrentadas neste campo. No Brasil, o ensaio desse encaminhamento no início do atual governo quando, mais uma vez, a alfabetização parecia ser encarada como problema número um, foi relegado a um plano inferior. A velha questão do desenvolvimento nacional, levan-

tada desde os anos 1930, permanece atual com agravantes: como desenvolver um país que tem mais de 100 milhões de analfabetos³ absolutos, funcionais, digitais, políticos etc.? E como não priorizar essa questão se ela tem reflexo direto no baixíssimo nível qualitativo da escolarização das camadas populares? Como decantar a importância da cidadania e da inserção no novo mundo do trabalho (competitivo e de competência) nos nossos Parâmetros Curriculares Nacionais, sem resolver essa problemática? Por outro lado, se a expansão quantitativa dos acessos aos vários níveis de escolaridade revelou-se uma positividade no período 1995-2002, como trabalhar com salas de aula repletas de dezenas alunos, sem investir no magistério e na docência? Se é verdade que o tempo médio de permanência na escola tem aumentado em todas camadas da população, o que dizer sobre a qualidade das nossas escolas? Mesmo sem analisar a capacidade de exclusão que a globalização hegemônica tem proporcionado – com seu crescente desemprego, com a brutal informalidade do mercado de trabalho e de outro lado, com as exigências de competência polivalente e tecnológica dos trabalhadores –, como fazer para que uma escolarização cada vez mais desqualificada seja parâmetro de inserção nesta mesma globalização? Em outras palavras, mesmo se aceitássemos (por mais absurdo que fosse) essa globalização, como faríamos para “adaptar e inserir” novos trabalhadores neste reinado mercadológico quando a qualidade da escolarização pública das camadas oprimidas desvanece? Como se pode notar com facilidade, se é notório que o âmbito correto da discussão passa pelo cognitivo, pelo “aprender a

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aprender, a fazer, a conviver e a ser” (Delors/ UNESCO, 2000), nem de longe neste campo se detém. As grandes questões matriciais são eminentemente sociais e políticas, como sempre defendeu Freire. A ênfase dada por ele à denúncia da pseudoneutralidade educacional e a necessidade de compreender a inseparabilidade educação/política (SCOCUGLIA, 2003), bem como suas respectivas especificidades, não pode ser emudecida ou desprezada, ao contrário. Em contrapartida, uma vez mais, a globalização hegemônica, de forma paradoxal para os seus próprios interesses do consumo e do lucro, parece mirar apenas a educação excludente. A disponibilidade dos meios da tecnologia da informação, por exemplo, ainda se dá em círculos mínimos. A Internet continua a ser acessada como instrumento de qualificação escolar e de trabalho por uma pequena parcela da sociedade. A velocidade de propagação do estilo consumista é intrinsecamente contraditória com os baixíssimos níveis de escolaridade já que, dentro da lógica perversa do sistema, os não escolarizados ou desqualificados na escolarização têm menos renda pessoal e familiar. A própria expansão do sistema privado de educação superior tem demonstrado, via de regra, a desqualificação do próprio sistema. Podemos pensar que uma das evidências dessa desqualificação reside na continuidade da educação bancária, pois os depósitos de saber são incompatíveis com o crescimento intelectual e da consciência crítica, especialmente dos jovens e dos adultos. Em outras palavras, um sistema cognitivo que não serve nem para os propósitos de adaptação aos de-

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sígnios da globalização, quanto mais à reversão deste quadro. Deste prisma, a criatividade, a consciência crítica, a reflexão... passam ao largo, produzindo realmente um cidadão mudo, útil, solitário. Ademais, nossas salas de aula continuam a fabricar apatia, desinteresse e desigualdade e uma das suas reações tem sido a violência na escola, ou seja, a opressão combatida/respondida pela força bruta. Continua válida a observação da Pedagogia do Oprimido (Freire, 1984a): “o grande problema está em como poderão os oprimidos, que hospedam o opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, da pedagogia da sua libertação” (p. 32). E, sabemos todos que parte significativa da opressão se assenta, hoje, no binômio globalização econômica e neoliberalismo comercial. Como se contrapor a tudo isso? Assim como a pedagogia freireana nos ajuda a denunciar estes fatos, ela pode contribuir para as respostas dessas problemáticas e para as propostas de formulação contra-hegemônica. Certamente, Freire não tem todas as respostas. Não podemos acreditar que um só pensador possua as respostas. Na literatura pertinente, cada vez mais, as teses freireanas são tecidas em conjunto com outras teses, outras propostas. Alguns pensadores agregaram as ideias de Freire com certas ideias de Gramsci. Outros o fizeram com Habermas. Outros ainda pensaram-nas com a contribuição de Amilcar Cabral, de Marx, de Freinet, ou mesmo de Morin. No nosso caso, até pela brevidade desta comunicação, não nos resta alternativas a não ser trabalhar as possíveis respostas e as propostas de Freire. Talvez possamos pensá-las com as ideias das globalizações contra hegemônicas (de-baixo-para-cima) do cos-


mopolitismo e do patrimônio comum da humanidade, indicados anteriormente por Boaventura de Souza Santos. Antes de mais nada, nossa busca de respostas e propostas inspiradas nos escritos de Freire deve estar alerta sobre a parte da cultura educacional que sofre completa redefinição e, por isso mesmo, o ataque mais incisivo por parte da globalização e do neoliberalismo: o currículo. Segundo Tomaz Tadeu da Silva (2001), “redefinir a educação como capitalista implica redefinir as próprias noções do que constitui conhecimento. O conhecimento deixa de ser um campo sujeito à interpretação e à controvérsia para ser simplesmente um campo de transmissão de habilidades e técnicas que sejam relevantes para o funcionamento do capital” (p. 8). Ainda segundo esse autor, “se a educação é o campo da batalha preferencial da luta social mais ampla em torno do significado, o currículo é, então, o ponto focal dessa luta”. (Ibidem, p. 9). Freire reconhece, desde os seus primeiros escritos das décadas de 1950 e 1960, o campo do currículo como área de disputa ferrenha de interesses políticos em torno dos processos educativos e, como núcleo central dessas disputas, as questões relativas ao conhecimento. Sua ênfase política recai principalmente sobre os direitos dos oprimidos ao conhecimento: (a) o direito de conhecerem melhor o que já conhecem da experiência feita; (b) o direito de conhecerem o que foi apropriado pelos opressores e lhes foi negado e (c) o direito de produzirem o seu próprio conhecimento (inerente aos seus próprios valores, interesses e necessidades sociais, culturais e políticas). Todos sabemos da sua forte defesa da educação problematizadora precisamente porque no

seu contexto os oprimidos teriam vez e voz para discutirem seus problemas e as saídas organizadas para eles. Por isso mesmo é que a noção política da ação dialógica é decisiva. Para Freire, o diálogo deve ser uma arma dos oprimidos para se organizarem contra seus opressores. Podemos dizer que a educação e o currículo, ao contrário da unicidade e do determinismo que a hegemonia tenta impor, são arenas políticas nas quais os conhecimentos convergentes, divergentes e antagônicos combatem e, nesse combate, os oprimidos só podem mostrar sua fortaleza na ação coletiva dialógica de enfrentamento de quem os oprime. Devemos ressaltar, também, a importância da reeducação dos educadores e o papel igualmente decisivo que jogam nessa disputa. Tem completa pertinência a crítica de Dale (2004) à teoria da disseminação avassaladora de uma cultura educacional mundial comum quando indagava: a quem é ensinado o quê, como, por quem e em que circunstâncias? Poderíamos, com Freire, completar: a favor de quê e de quem e, portanto, contra o quê e contra quem se educa? A favor de quê e de quem e, portanto, contra o quê e contra quem se constrói o currículo? Ao contrário do que propaga o determinismo hegemônico, o conhecimento e o currículo não são neutros, nunca. Representam, sempre, uma opção política, mesmo que esta seja francamente favorável à despolitização da sua discussão. E, por isso mesmo, continuam fundamentais as compreensões dos “estágios transitivos da consciência” mediados pela educação enquanto ação cultural da conquista do conhecimento crítico (FREIRE, 1984b).

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Neste caminho, os debates sobre as globalizações hegemônicas e contra-hegemônicas precisam ser tecidos em conjunto (complexus) e compostos pelos campos pedagógico, gnosiológico, cultural, político, dialógico, social, antropológico... além do campo econômico, como propõe Freire ao longo da sua obra. Sabemos que a priorização e a nuclearização em torno da economia já fazem parte da hegemonia, enquanto construção ideológica. Importante alertar com Reginaldo Moraes (2002) que “a narrativa neoliberal – produção de ideias, imagens, valores – descreve e pretende explicar os supostos despautérios do mundo social “regulado politicamente” (...). Não significa apenas nem principalmente definir respostas certas aos problemas, mas definir quais são os problemas certos e os termos em que devem ser equacionados. Seu alvo é modificar drasticamente os temas e os valores compartilhados, de modo que se enquadrem as eventuais alternativas no terreno pejorativo do impensável e se alterem em profundidade os espaços e os processos em que se fazem as escolhas sociais relevantes” (p.13). Por isso, uma educação contribuinte para a globalização contra-hegemônica precisa se nutrir, necessariamente, de uma pedagogia da esperança e da ousadia para combater a pedagogia do fatalismo e do medo. Precisa estar apta a garimpar e a escalar a autonomia para que seus protagonistas persigam a utopia, o inédito que é viável, enfim, a história como possibilidade do novo, da mudança. Para Freire (1993), A importância do papel interferente da subjetividade na história coloca, de modo especial, a importância do papel da educação. A

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prática política que se funda na compreensão mecanicista da história, redutora do futuro a algo inexorável, castra as mulheres e os homens na sua capacidade de decidir, de optar, mas não tem força suficiente para mudar a natureza mesma da história. Cedo ou tarde, por isso mesmo, prevalece a compreensão da história como possibilidade, em que não há lugar para explicações mecanicistas dos fatos nem tampouco para projetos políticos de esquerda que não apostam na capacidade crítica das classes populares. Como processo de conhecimento, formação política, capacitação científica e técnica, a educação é prática indispensável aos seres humanos e deles específica na História como movimento, como luta. A história como possibilidade não prescinde da controvérsia, dos conflitos que, em si mesmos, já engendrariam a necessidade da educação, (1993, p.14). Com efeito, como já escrevemos em outro trabalho, criticando o oportunismo de direita e, também, algumas raízes das teorias de esquerda que sustentam uma visão de mundo única e absoluta, Freire é incisivo ao rechaçar a pós-modernidade neoliberal e defender a pós-modernidade progressista e crítica. Para isso, aposta na possibilidade de concretização do que foi negado pela modernidade às camadas populares (aos oprimidos, aos subalternos, aos esfarrapados do mundo) e no rechaço do absolutismo da razão técnica-econômica-instrumental que atrofiou as possibilidades concretas da hominização. Mas aposta, também, nas tendências pós-modernas que investem no respeito às diferenças, à diversidade, às questões de gênero e de etnia, dos direitos responsáveis por uma cidadania plena, planetária e multicultural para os que

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não tiveram (ou tiveram pouca) voz e vez e que continuam a se espalhar pelo mundo como sem-terra, sem-pão, sem-teto, sem-escola nenhuma ou sem-escola-de-qualidade, sem-emprego, sem-paz e, principalmente, sem-esperança, (SCOCUGLIA, 2004). E, deste prisma, podemos encampar as reflexões de Peter McLaren (2001), segundo as quais “a pedagogia crítica serve, num sentido mais amplo, como uma hermenêutica política que orienta a articulação do significado vivido no interior das contingências da história, de acordo com um compromisso ético de justiça social. A pedagogia crítica tem se constituído como uma forma de navegar através das tecnologias de poder, criadas no interior dos terrenos contestados das culturas pós-modernas. A força da pedagogia crítica reside na sua capacidade para fortalecer o princípio da justiça social e para levar esse princípio ao domínio da esperança”. Assim, a pedagogia crítica deve avançar [...] como um meio de libertar os indivíduos das suas vidas socialmente isoladas, de forma que eles possam se tornar disponíveis para a sua imaginação coletiva. Entretanto, a política da imaginação também exige que imprimamos nossa vontade coletiva no funcionamento da história. Isto acontecerá quando, nos termos de Bordieu, nós formos capazes de dar à utopia uma possibilidade razoável de concretização. (2001, 97).

portância da pedagogia crítica – que tem em Paulo Freire um dos seus principais construtores e um dos seus principais referenciais prático-teóricos –, enfatizar a utilização do legado freireano (evidente nas palavras do autor citado) como um alicerce político-pedagógico das possibilidades das globalizações contra-hegemônicas. Afinal, a ação dialógica, a conquista da consciência crítica, a problematização, a pedagogia da autonomia, da ética e da justiça social podem vir a ser antíteses da educação que hoje ajuda a sustentar a globalização hegemônica e o neoliberalismo.

Nossos destaques às proposições de McLaren pretendem, além de ratificar a im-

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REFERÊNCIAS BORDIEU, P. e CHAMPAGNE, P. (1999). Os excluídos do interior. IN: CATANI, A. e NOGUEIRA (org.). Pierre Bordieu – Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, p. 217-227. DALE, R. (2004). Globalização e educação: demonstrando a existência de uma “cultura educacional mundial comum” ou localizando uma “agenda globalmente estruturada para a educação”? IN: Revista Educação e Sociedade. Campinas, vol. 25, nº 87, p. 423-460, maio/agosto. DELORS, J. (2000). Educação – um tesouro a descobrir. São Paulo: Cortez/UNESCO. FREIRE, P. (1984a). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. ____. (1984b). Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra. ____. (1992). Pedagogia da esperança. São Paulo: Cortez. ____. (1993). Política e educação. São Paulo: Cortez. ____. (1996). Pedagogia da autonomia. São Paulo: Cortez. MCLAREN, P. (2001). Traumas do capital: pedagogia, política e práxis no mercado global. IN: SILVA, L. H. da (org.). A escola cidadã no contexto da globalização. Petrópolis: Vozes, p. 81-98. MORAES, Reginaldo C. Reformas neoliberais e políticas públicas: hegemonia ideológica e redefinição das relações Estado-sociedade. Educ. Soc. [online]. set. 2002, vol.23, no.80 [citado 11 Maio 2005], p.13-24. Disponível na World Wide Web: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext &pid=S0101- 73302002008000002&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0101-7330. MORIN, E. (1998). O Método – As ideias. Porto Alegre: Sulina. SANTOS, B. S. (2002). As tensões da modernidade IN: www.dhnet.org.br/direitos/militantes/ boaventura/boaventura4.html. SANTOS, B. S. (2004). Entrevista IN: www.ces.fe.uc.pt/BSS/documentos/JornalOGLOBNov2004. pdf. SCOCUGLIA, A. C. (2003). A história das ideias de Paulo Freire e a atual crise de paradigmas. João Pessoa: Editora Universitária – UFPB (4ª edição).

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SCOCUGLIA. A. C. (2004). Paulo Freire e a conscientização na transição pós-moderna. Trabalho apresentado no IV Congresso Internacional Fórum Paulo Freire. Porto/Portugal, setembro. SCOCUGLIA, A. C. (2005). As reflexões curriculares de Paulo Freire. IN: Revista Lusófona de Educação. Lisboa, nº 6, pp.81-92, dezembro. SILVA, T.T. (2001). A escola cidadã no contexto da globalização. IN: SILVA, L. H. da (org.). A escola cidadã no contexto da globalização. Petrópolis: Vozes, pp.7-10.

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¹Doutor em História, mestre em Educação, professor titular e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). e-mail:scocuglia@terra.com.br ²A tradução portuguesa publicada na Revista Educação, Sociedade & Culturas (Porto, nº16, 2001, p. 133169) foi reproduzida na Revista Educação e Sociedade (Campinas, vol.25, nº87, 2004, p. 423-460), considerada a principal revista brasileira na área educacional. Disponível em www.cedes.unicamp.br. ³Se somarmos os analfabetos absolutos e os funcionais (segundo a UNESCO aqueles que não completaram a 4ª série) já teremos, no Brasil, entre 60 e 70 milhões! Faltam os analfabetos digitais, políticos e outros. Ademais, o que dizer da constatação do SAEB/INEP de 74% dos alunos da 8ª série não dominam corretamente as quatro operações elementares da matemática? Ou a grande porcentagem que não consegue interpretar textos simples?

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EDUCAÇÃO ESPECIAL: LIMITES E POTENCIALIDADES DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA CORREIA, António Miguel¹ FERNANDES, Preciosa ²

Resumo O presente artigo estrutura-se com base numa pesquisa que tem como objetivo compreender percepções de professores da educação especial e de professores do ensino regular sobre potencialidades e limites de a Educação Especial (EE) se constituir em uma via para a inclusão de alunos com Necessidades Educativas Especiais (NEE). O estudo é de caráter qualitativo e os dados foram recolhidos num agrupamento escolar, situado no norte do Alentejo, em Portugal, no ano letivo de 2014/2015. Para tal, foram realizados focus group àqueles dois grupos de professores e realizadas notas de terreno em contexto de reunião de docentes. Genericamente, os resultados revelam convergências e divergências entre as percepções destes “atores de terreno”. As convergências situam-se mais ao nível da concepção de educação inclusiva; as divergências prendem-se, fundamentalmente, com potencialidades que uns e outros consideram que a EE pode ter na inclusão de alunos com NEE, revelando os professores do ensino regular um posicionamento menos positivo do que os professores de educação especial. Necessidades Educativas Especiais. Percepções de professores. Inclusão. Práticas de Inclusão. Resumen Este artículo está estructurado sobre la base de una investigación que tiene como objetivo comprender la percepción de los maestros de educación especial y de la educación regular sobre el potencial y los límites de Educación Especial (EE) y si constituyen un camino para la inclusión de los alumnos con NEE – necesidades educativas especiales. El estudio es de naturaleza cualitativa y se recogieron los datos en un grupo de la escuela, situada en el norte del Alentejo, en Portugal, en el año académico 2014/2015. A tal fin, se realizaron grupos focales aquellos grupos de profesores y notas de campo realizados en el contexto de reuniones de los profesores. En general, los resultados revelan similitudes y diferencias entre las percepciones de estos “actores del terreno.” Las convergencias se sitúan más en el nivel de diseño de la educación inclusiva; divergencias se refieren a fundamentalmente con la posibilidad de que unos y otros consideran que la EE puede tener en la inclusión de los alumnos con NEE, revelando los maestros de educación regular una actitud menos positiva que los maestros de educación especial. Necesidades educativas especiales. Percepciones de los profesores. Inclusión. Prácticas de inclusión. Educação Especial: limites e potencialidades da educação inclusiva

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INTRODUÇÃO Desde a Declaração de Salamanca (1994) que, nos sistemas educativos europeus, a educação especial tem sido reconhecida como uma importante modalidade educativa na afirmação do princípio de uma educação inclusiva (FERNANDES, 2013). Em Portugal, o texto normativo que orienta o trabalho da Educação Especial – Decreto-lei n.º 3/2008 – filia-se na filosofia inclusiva expressa na Declaração de Salamanca (1994). Contudo, não deixa de ser um documento muito contestado desde a sua fase de discussão pública (LIMA; BENTO, 2009). Por exemplo, Bairrão (cit. JESUS at all, 2004) ainda em fase de discussão do documento argumentou, na ocasião, que as opções que levaram às medidas previstas neste documento não eram rigorosas nem consistentes, parecendo não haver nenhum modelo concetual que as sustentasse. Também Costa (2006) considerou este decreto um retrocesso em termos da educação inclusiva. Para esta investigadora não é benéfico a classificação de alunos com deficiência de carácter permanente e temporário, a distinção entre educação especial e apoios socioeducativos, a opção por escolas de referência para alunos com problemáticas específicas, afastando-os dos seus locais de residência, entre outros aspetos. Este conjunto de inquietações revelado por estes autores tem repercussões nas percepções e nas práticas de todos aqueles que trabalham nas escolas e, especificamente, no âmbito da educação especial, no quadro de uma Educação orientada por princípios de inclusão. Na verdade, cumprir este desígnio

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tem-se revelado um desafio complexo do ponto de vista quer de quem decide sobre as políticas e estruturas educacionais, quer dos “atores de terreno”, uma vez que educação inclusiva pressupõe ter em consideração diferentes variáveis, desde caraterísticas e clima do contexto; recursos, e condições para responder às especificidades dos alunos; interações entre os diferentes atores (adultos e crianças/jovens), etc. Como sublinha Marchesi, Coll e Palacios (2001) trata-se sempre de uma experiência situada, onde convergem diversas variáveis afetivas, sociais e comunicativas É no quadro destas ideias e inquietações sobre a “inclusão” em contexto específico de educação especial (EE) que formulamos a questão em torno da qual desenvolvemos a investigação que neste estudo se apresenta: A EE nas modalidades em que é “praticada” nas escolas portuguesas promove a inclusão de todos os alunos? Com esta pesquisa pretendeu-se compreender o ponto de vista de docentes da educação especial e de docentes do ensino regular que intervêm com alunos com NEE, sobre potencialidades, e limites, de a educação especial se constituir uma via para a inclusão daqueles alunos. O artigo inicia com uma reflexão teórica sobre conceitos de educação especial e de educação inclusiva (EI) e sobre possibilidades de ação que potenciam a concretização de uma EI. Esta abordagem teórica constitui a base para a interpretação da pesquisa empírica. Apresenta-se num segundo tópico a metodologia utilizada e os procedimentos segui-


dos na análise dos discursos dos professores. Esta assentou em três categorias: 1) conceito de escola inclusiva e possibilidades de sua concretização; 2) modalidades de educação especial e 3) Relações entre professores da EE e professores da ER. Tecem-se finalmente, algumas considerações onde se destacam os aspectos que ressaltam da análise relativos aos sentidos enunciados pelos docentes quanto a limites e a possibilidades de a Educação Especial se constituir numa via para a inclusão de alunos com NEE.

EDUCAÇÃO INCLUSIVA E EDUCAÇÃO ESPECIAL: CONCEITOS E POSSIBILIDADES DE AÇÃO Amplamente utilizado no discurso educacional, o conceito de inclusão assume um caráter polissémico e flexível (RODRIGUES, 2003; CORREIA, 1997, 2010) sendo, muitas vezes, confundido com “normalização” ou “integração”. (GONZÁLEZ, 2010). Trata-se, diríamos nós e utilizando uma expressão de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1992), de um “conceito gordo” ou um “conceito em potência”, ou seja, uma noção em constante reformulação, onde parecem caber uma multiplicidade de concepções teóricas, nomeadamente a noção de EE. Num olhar centrado sobre a intervenção com alunos com NEE, Correia (1997) sustenta a ideia de inclusão como um processo que implica, sempre que possível, a inserção desses alunos na classe regular, na qual devem receber todos os apoios adequados às suas es-

pecificidades. Estes apoios pressupõem um conjunto de recursos e de serviços especializados (de cariz educacional, terapêutico, psicológico, social e clínico) que a escola e a família devem oferecer de forma a responder às capacidades e necessidades dos alunos. É a esta estrutura que Correia (1997, 2013) define como Educação Especial. Tal como referido anteriormente, foi nosso intuito, pensar a “inclusão” em contexto específico de educação especial, questionando se esta, tal como é materializada nas escolas, é promotora de uma educação verdadeiramente inclusiva. Este nosso questionamento encontra eco na visão de Rodrigues (2013) ao considerar que a EE carece de reflexão epistemológica. A necessidade desta reflexão parece justificar-se pelo “terreno dilemático” em que a EE se tem situado e que a caracterizam: por um lado, o modo como está organizada e a procura de soluções de intervenção prática nos cotidianos escolares, quase sempre insuficiente, pode conduzir ao empobrecimento do seu estatuto científico; por outro lado, o fato de se mover num campo conceptual ambíguo, adotando frequentemente linguagens de outras áreas do conhecimento, designadamente da Psicologia, Sociologia, Filosofia ou até da Medicina, tem repercussões nos modos como são analisadas as situações e como são definidos os processos de intervenção educacional. A este propósito, o mesmo autor chama a atenção para o fato de que a maior parte do conhecimento produzido na área da EE continuar, em termos epistemológicos, a ter um cariz demasiado conservador, porquanto subsiste a preocupação pela categorização, que o autor apelida de “pensamento tipológico” (RODRIGUES, 2013). Isto é, persiste uma

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sobrevalorização dos diagnósticos clínicos e psicológicos, nem sempre muito claros quanto à problemática físico-psíquico-emocional, ou às funções do corpo da criança ou jovem, revelando um certo afã em atribuir um “rótulo” que pode condicionar a intervenção pedagógica. A reflexão introduzida pelo autor induz-nos para uma leitura teórica sobre as “práticas” e/ou modalidades da EE em curso nas escolas portuguesas e sobre as possibilidades de ação de natureza inclusiva que a elas podem ser associadas. Para Hegarty (1994), as modalidades da EE centralizam-se essencialmente na dimensão curricular, uma vez que o estudante com NEE se define como alguém que precisa de apoio para cumprir o programa letivo da turma. Por seu lado, Correia (1997) situando os alunos com NEE nas categorias: NEE de caráter perante e NEE caráter temporário defende, por um lado, a importância de adaptações curriculares específicas para cada aluno NEE e, por outro, que o atendimento individualizado deve ser sempre feito dentro da sala de aula, conjuntamente com os seus pares. O ator chama, no entanto, a atenção para a ideia de que alcançar a verdadeira inclusão, não significa apenas colocar os alunos com NEE dentro da sala de aula. Em sua perspectiva, é imperioso encarar os alunos com NEE como membros de pleno direito da comunidade escolar, olhar para as suas necessidades e potencialidades e não tanto para as suas deficiências ou limitações. Em trabalhos mais recentes, Correia (2010, 2013) argumenta que o modelo para a inclusão deve alicerçar-se na ideia da “criança-todo” e não só na “criança-aluno”. Isto é, em

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sua perspectiva, uma concepção de educação inclusiva é aquela que respeita três níveis de desenvolvimento essenciais – académico, socioemocional e pessoal –, orientando-se, assim, para a maximização do potencial do aluno. Concordando com esta visão reconhecemos, todavia, que as possibilidades de ação orientadas por esta filosofia estão ainda muito comprometidas. Com efeito, a literatura sobre a questão da inclusão dos alunos com NEE e a investigação que já realizámos (CORREIA, 2014) demonstram que, apesar do discurso generalizado em prol da inclusão, coexistem concepções educacionais ambíguas, por vezes mesmo antagónicas, e práticas pedagógicas, não raramente, contraproducentes e até excludentes que obstam, nas escolas, à concretização de práticas de educação inclusiva (CORREIA, 2006; RODRIGUES; 2013). Essas concepções educacionais podem ser associadas à ideia “daltonismo cultural” a que se refere Cortesão (2003). Este “daltonismo cultural” representa uma visão etnocêntrica do processo educativo, através do qual o professor se sente legitimado a valorizar apenas os saberes eruditos, dos grupos dominantes, e a subestimar os restantes valores e saberes (CORTESÃO, 1997). Numa reflexão crítica deste fenómeno, Cortesão (2003) considera que o “daltonismo cultural” contribui para a ocorrência de práticas discriminatórias. Num posicionamento oposto, o professor não “daltónico cultural” considera importante atender à diversidade presente na sala de aula e reconhece nessa diferença uma riqueza a explorar em benefício de todos e no cumprimento dos princípios de uma educação inclusiva.


Num espaço complexo como é a escola onde atuam diferentes atores com concepções educacionais não convergentes pode justificar a subsistência de resistências e de obstáculos à concretização de uma educação inclusiva, e a adoção de uma atitude de “tolerância não concordante” e até, muitas vezes, de posições de discordância (FONSECA, 2004). Pensando nos professores, como os principais agentes educativos que atuam na escola a sua ação docente é muitas vezes perturbada pelas suas próprias concepções educacionais e pelas suas dificuldades em trabalhar com alunos com NEE (MANTOAN, 2004). A este propósito, Correia (1999; 2003; 2013) sustenta que para levar avante uma educação inclusiva o docente precisa recorrer a práticas educativas flexíveis, e nunca recorrer a abordagens rotineiras, iguais para todos os alunos. Para isso precisará investir no seu desenvolvimento profissional no sentido de melhor saber responder às situações com que se confronta e de refletir de forma sistemática sobre o seu trabalho quotidiano (NÓVOA, 1991; SCHÖN, 1992) realizado quer com as crianças, quer com os seus pares.

METODOLOGIA Tendo presente que, com esta pesquisa, se pretendeu compreender percepções de professores de educação especial e do ensino regular sobre potencialidades e limites de a EE se constituir uma via para a inclusão de alunos com NEE, a abordagem qualitativa (STRAUSS; CORBIN, 1998; MORGADO, 2012) foi considerada a mais adequada. O estudo foi realizado num agrupamento de escolas situado no norte do Alentejo, no ano letivo de 2014/2015. A

coleta de dados realizou-se através de focus group (MORGAN, 1993) e de notas de terreno (ERICKSON, 1985; ZABALZA, 1994). Foram realizados dois focus group: um com um grupo de sete professores de educação especial e outro com um grupo de nove professores, responsáveis por turmas do ensino regular com alunos com NEE incluídos. Os seus discursos foram sujeitos à análise de conteúdo segundo um sistema categorial (GRAWITZ, 1986; BARDIN, 2011), organizado, tal como já se referiu na introdução a este artigo, em três categorias de análise: 1) Conceito de escola inclusiva e possibilidades de sua concretização; 2) Modalidades de educação especial e 3) Relações entre professores da EE e professores da ER A primeira categoria visou aferir como cada docente concebe e interpreta a ideia de escola inclusiva. A segunda categoria pretendeu identificar as modalidades e as formas de atendimento da EE e problematizar possibilidades de inclusão que a elas podem ser associadas. A terceira categoria visou compreender a natureza das relações entre os docentes no quadro dos princípios de uma educação inclusiva. Os discursos dos professores de educação especial foram codificados pela sigla “PEE”3 e os dos professores de ensino regular foram codificados pela sigla “PER”4 . As notas de terreno foram datadas e codificadas com a sigla “NT”.

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS

Educação Especial: limites e potencialidades da educação inclusiva

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Na apresentação dos dados foi seguido o sistema categorial antes referido, organizado em três principais categorias. Para casa uma dessas categorias foram convocados e confrontados discursos dos professores do ensino regular e de EE procurando identificar proximidades e dissemelhanças existentes entre eles.

Nós, às vezes, usamos grandes chavões para tentar definir o indefinível… a escola inclusiva é um conceito muito utópico. (PEE1)

CONCEITO DE ESCOLA INCLUSIVA E POSSIBILIDADE DE SUA CONCRETIZAÇÃO

Apesar disso, há outros testemunhos de PER que revelam uma visão mais abrangente de educação inclusiva o que, em si, é um dado bastante significativo uma vez que, historicamente, em Portugal, a EE foi quase sempre entendida e praticada como uma resposta educacional “fora” da responsabilidade do professor do ensino regular (CORREIA, 2013) Ilustram esta posição os seguintes depoimentos: Quando se fala em escola inclusiva é incluir não apenas não alunos com deficiência, mas alunos com problemas graves de comportamento, alunos com famílias desestruturadas. (…) e que emocionalmente são frágeis, aluno que precisam de mais apoio, enfim, todos alunos mesmo aqueles que à partida não acompanham bem o ritmo das aulas e do professor. Acho que uma escola inclusiva é muito mais que o trabalho que se faz na sala de aula. (…) A escola inclusiva não pode ser só da responsabilidade do professor. Tem que ser também dos pais, dos funcionários. (...) todos nós temos responsabilidade. (PER1)

No que respeita a esta categoria, os professores do ensino regular (PER) e os professores da educação especial (PEE) têm, genericamente, um entendimento de escola inclusiva que se aproxima. Uns e outros consideram ser um conceito de difícil definição, atravessado por um forte sentido de utopia e não facilmente concretizável. Os PER referem a propósito: A escola inclusiva (…) acaba por ser irreal, porque há sempre um momento em que o aluno se desprende e não conseguimos incluir com os recursos que temos. (PER8) [Inclusão e escola inclusiva são] conceitos bonitos e utópicos, mas irrealizáveis, por mais boa vontade que tenhamos e por mais que nos entreguemos a esta missão. (PER2) Esta é também a visão corroborada por alguns PEE quando argumentam: 32

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Eu tenho grandes dificuldades em definir inclusão. (PEE6)


A ideia de responsabilidade partilhada denota uma concepção de escola inclusiva enquadrada pelos princípios de territorialização e da dimensão social da Educação (LEITE, 2005; LEITE; FERNANDES, 2007). Esta é visão é corroborada por alguns PEE ao considerarem que a escola inclusiva pressupõe “educar para e na diversidade” (PEE2), “incluir os alunos num meio o menos restrito possível (PEE4) e é uma responsabilidade de todos. Isto significa pensar a educação inclusiva, não circunscrita à escola e ao espaço de sala de aula e implica pensar a inclusão dos alunos com NEE numa perspectiva também mais abrangente ao nível da “comunidade educativa” (PEE7). Esta é uma leitura mais ampla de escola inclusiva que pressupõe educar toda a comunidade para “se adaptarem à diferença” (PEE1). Estes posicionamentos parecem poder ser associados à ideia de uma escola democrática, uma escola onde todos se respeitem e se sintam reconhecidos nas suas singularidades (LEITE; FERNANDES 2007). Situa-se nesta linha a visão de um PER, para quem Uma escola democrática é naturalmente inclusiva e, desde que sou professor, (…) eu sempre vi a escola como escola inclusiva… uma escola para todos. (PER4) Embora assim considere esta professora, considera também que a inclusão de alunos com NEE com graves problemas (sobretudo, do foro cognitivo) é sempre restritiva porque a escola pública não tem recursos (técnicos, físicos e humanos) para responder às especificidades/necessidades desses alunos. Na perspectiva de alguns professores, sob a égide da inclusão pode-se cair em situações

artificiais que se distanciem muito do sentido de uma educação inclusiva. Talvez por isso, alguns professores considerem que em alguns casos, a opção por uma escola especial pode ser a melhor. Os testemunhos seguintes dão conta dessa restritividade: Eu sempre vi a escola a incluir pessoas que, segundo parâmetros, conceitos e ideias conservadoras, não seriam incluídas. (PER4) A escola pública não tem recursos para incluir todos os alunos, sobretudo os que requerem um atendimento personalizado e cuidados de saúde e de higiene permanentes. (PER9) Estes testemunhos são corroborados pela visão de Correia (1999, 2010, 2013) quando sustenta que uma verdadeira inclusão requer recursos e serviços especializados e um trabalho estreito entre a escola e a família. Também nós, pela nossa experiência profissional, nos situamos em concordância com Correia (2013) reconhecendo, porém, que esta não é uma questão linear e de fácil concretização. A este propósito também os PEE admitem que há alunos difíceis de serem incluídos na sala regular, identificando como mais difíceis os que apresentam défice cognitivo mais grave: O que acho que é mais difícil é o défice cognitivo. Nós hoje valorizamos o que é intelectual, não valorizamos nem o emocional, nem o social. E se o aluno, à

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partida, tem esse problema não é (…) um bom colega, não é um par para que o outro se desenvolva. (PEE1) Os alunos com défices cognitivos graves, por exemplo muito dos que estão nas Unidades de Multideficiência e Surdocegueira Congénita, não estão incluídos no verdadeiro sentido, diria, quando muito, que estão integrados para não dizer que estão excluídos do resto da escola. (PEE4) Estes depoimentos são muito realistas e mostram um lado da inclusão escolar que nem sempre é expresso nos discursos dos profissionais, nem nos textos académicos. Contendo também, em si, a ideia já referida de que a inclusão é um processo marcado por uma certa utopia, estes depoimentos acentuam a dimensão curricular (cognitiva) como o aspeto mais valorizado na escola, e a que voltaremos mais adiante neste texto. Por outro lado, sabendo por experiência profissional que os aspetos emocionais e afetivos são centrais no processo de inclusão dos alunos com NEE parece poder inferir-se destes discursos que a inclusão de alunos com as caraterísticas mencionadas parece estar longe de ser uma realidade. Esta nossa visão parece ser corroborada por muitos PER que, na sua leitura, vão até um pouco mais longe considerando que os alunos com limitações severas ao nível cognitivo para além de não estarem incluídos são um obstáculo ao sucesso académico dos seus pares. As suas posições são expressas em ideias como:

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havia que distinguir o mais profundo do menos profundo, para poder integrar ou não. (…) Isto vai causar duas coisas: (…) em favor de uma minoria estragar uma maioria, o que já acontece. Não precisamos de ter lá alunos com NEE, basta ter uns preguiçosos. (PER9) Há alunos que não estão disponíveis para aprender, por muito que o professor faça. Muitos alunos com NEE tem graves dificuldades cognitivas que dificultam o sucesso dos outros colegas do ensino regular. (PER8) Esta são, com efeito, visões muito limitadas de integração e de inclusão e que contrariam alguns outros depoimentos já referidos defensores da inclusão de todos os alunos. Por outro lado, a visão destes dois professores do ensino regular chama a atenção para o modo alunos sem NEE percepcionam alunos com NEE e vice-versa. Alegam a este respeito o seguinte: Acho que há alunos com NEE nas salas de aulas que se sentem mal por serem tratados de forma diferenciada, por terem um colega da educação especial com eles ou por fazerem testes adaptados. Para muitos deles, tudo isso os separa do resto dos colegas e sentem-se frustrados. (PER8) (…) eu acredito que em determinadas situações, o aluno de NEE, em que haja uma consciência

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média pode sentir-se frustrado em relação aos seus companheiros. (PER9) Estas ideias evidenciam, de fato, a artificialidade que parece envolver a ideia de inclusão de alunos com NEE em contexto escolar e parecem também poder ilustrar dificuldades da comunidade educativa em aceitar, e reconhecer, a diferença. Interessante perceber que embora os PEE revelem também dificuldades em “lidar com a diferença” os argumentos aludidos são muito mais “suaves”, indiciando, porventura, uma maior sensibilidade para com estes alunos, tal como parecem ilustrar os seguintes excertos: esquecemo-nos, muitas vezes, a fazer essa tentativa [de inclusão] e não vemos, por exemplo, que ele não está num meio onde os pares os respeitem, e isso pode levar a que sofram e se sintam excluídos. (PEE4) Muitos alunos com NEE sentem-se abandonados pelos seus colegas do ensino regular. Se no 1.º ciclo isso pode não se notar muito, a partir do 2.º ciclo, os colegas começam a afastarem-se dos alunos com NEE. (PEE6) A dimensão curricular, como antes se mencionou, e as adaptações curriculares e pedagógicas que os alunos com NEE necessitam constituem um enorme desafio para todos os docentes, principalmente os PER. São várias as dificuldades que expressam na implementação daquelas adaptações curriculares:

Os vinte alunos que eu tenho exige uma diferenciação pedagógica que, muitas vezes, é um desafio que muitas vezes não conseguimos dar resposta. (PER8) Vi muitas vezes uma turma inteira parada à espera que eu trabalhasse de perto com o aluno com NEE para ajudá-lo a perceber o que os outros já tinham percebido. (PER2) Aliadas a estas dificuldades coligam-se outras decorrentes da passagem de ciclo de ensino. Uma docente, por exemplo, destaca as dificuldades resultantes da passagem do 1.º ciclo para o 2.º ciclo, em que o aluno passa a ter mais professores e maior número de disciplinas, fatos que podem obstar à inclusão do aluno com NEE: Refere a propósito dessa situação: a partir do momento em que deixam de ter um professor e passam a ter sete ou oito, em que toda a gente deve ser responsabilizada e em que não temos grandes recursos, começa o descalabro. (PER8) Também os PEE salientam que a inclusão é mais difícil na transição de ciclos de ensino e nos ciclos de escolaridades mais avançados, principalmente no ensino secundário, onde o trabalho com os alunos com NEE é para muitos professores uma realidade muito recente. Os excertos discursivos ilustram esta leitura:

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Quanto maior for o nível de ensino, mais difícil se torna para os fazer esse trabalho (…) a partir de que entras no patamar do secundário, as coisas começam a ser diferentes e os recursos cada vez menos. (PEE3) Em termos de ensino secundário – não é uma crítica específica a este agrupamento – não está preparado, em termos de condições e de recursos, para receber alunos com Currículo Específico Individual. (PEE4) Da análise realizada constatou-se que os mais críticos sobre a possibilidade de concretização de uma educação inclusiva são os PER, principalmente os diretores de turma que destacam a carga de trabalho acrescido que os alunos com NEE implicam. Uma diretora de turma afirma que a EE “acarreta um trabalho burocrático acrescido que não é considerado para o nosso tempo de direção de turma. ” (PER2) a acrescentar a velhos problemas identificados pelos professores no sistema educativo como é o caso no número elevado de alunos por turma. Uma outra docente interroga mesmo até que ponto a inclusão não representa uma não possibilidade face às atuais condições que a escola pública oferece. Como sublinha: Inclusão não pode ser uma palavra vã, sob pena de corrermos o risco de ainda ver mais exclusão daqueles que queremos incluir. (…) a escola tem, atualmente, que responder a questões e a si-

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tuações que carecem de um nível de inclusão para o qual não estamos preparados e para o qual a escola não tem condições. (PER4) Mais uma vez estas ideias parecem associar-se à visão de Correia (1997, 2010) relativa à importância de as escolas terem condições e recursos para que efetivamente se concretize a educação inclusiva. Igualmente alguns PEE colocam em causa a concretização de uma educação inclusiva. Por exemplo, uma docente confessa que a ideia de educação inclusiva parece ser uma realidade distante, admitindo que “Não houve um esforço para construir uma educação inclusiva. Houve um esforço para acabar com a educação que segregava” (PEE4). Esta docente (PEE4) considera o meio social, eivado de preconceitos sobre as pessoas com a deficiência, como uma grande dificuldade de concretização de uma escola inclusiva. No entanto, esta mesma professora considera que a escola tem a potencialidade de mudar as mentalidades, até porque está muito próxima da comunidade. Acho que este meio [social] é muito preconceituoso e acho que a grande potencialidade desta escola seria mudar mentalidades. A escola está muito próxima da comunidade porque é um meio pequeno, as pessoas conhecem-se todas e acho que a grande potencialidade desta escola seria abrir-se à comunidade e alterar as mentalidades.

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(PEE4) Apesar das ambiguidades de alguns discursos sobre o conceito de escola inclusiva e sobre dificuldades/possibilidades para a sua concretização, este depoimento transporta um sentido de esperança sobre o papel da escola e dos professores que importa sublinhar.

MODALIDADES DE EDUCAÇÃO ESPECIAL Em relação às modalidades da educação especial, alguns PER consideram que os alunos com NEE “ganham sempre pelo fato de estarem numa turma” (PER3) e que devem, se possível, ser “alvo de inclusão total na turma” (PER9). Por seu lado, genericamente, os PEE defendem que o aluno com NEE deve estar na sala de aula em contexto de turma, mas admitem exceções conforme o perfil de determinado aluno. Um docente deste grupo revela que: Em termos das nossas escolas, tenho dúvidas se incluir tem a ver com, por exemplo, o aluno estar ou não estar na turma (…) é aí [na sala de aula] que se concretiza essa inclusão, mas não é taxativo que isto seja uma evidência em todos os alunos, para todos os perfis de alunos que temos. (PEE6) Estas dúvidas são ainda mais evidentes para os PER. Alguns destes professores advogam a ideia de que certos alunos com comprometimentos graves (principalmente cognitivos) devem ser educados à parte da turma,

em contexto individualizado, principalmente os alunos com CEI (Currículo Específico Individual). Os depoimentos seguintes ilustram este posicionamento: Não sei qual o grau, mas a partir de determinada deficiência, os alunos tinham que ter assumidamente um currículo alternativo, adequado, e não fingir que está a acompanhar o currículo normal, sob pena dos outros se revoltarem e de eles também se frustrarem. Eles sabem que não estão a aprender o mesmo. (…) em determinadas deficiências, quando elas são muito profundas, estar na sala [de aula] não me parece bem! (PER9) Os alunos com NEE só devem estar na sala de aula, quando tem condições para isso, como é o caso de alunos com problemas motores ou cegos. Quando temos alunos com problemas cognitivos eles devem ter outro tipo de acompanhamento fora da sala de aula, e se possível, um acompanhamento o mais individualizado possível. (PER3) Estes posicionamentos parecem provocar um clima de tensão entre os dois grupos de professores, tal como foi observado numa reunião de conselho de turma. Numa reunião do 9E, uma professora de educação especial, responsável por vários alunos com CEI chamou a atenção para

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que estes devem manter-se na sala de aula nas disciplinas em que estão inscritos porque são alunos da turma e devem ser tratados como tal, e não serem dispensados da aula de por parte de alguns professores. Acrescenta que já falou com o diretor e que este lhe pediu para exortar os professores da turma a respeitar a legislação e a incluir os alunos na turma. (NT, 16/12/2014)

dades quando nós estamos a pedir que a escola seja “de todos e para todos”? Mais outro chavão! (PEE1)

Esta observação é corroborada pelo depoimento do seguinte professor:

Uma destas docentes evoca a sua experiência de familiar de uma criança com NEE para defender as escolas especiais, e a ideia que há alunos que não devem estar na escola regular, mas em instituições especializadas:

Fala-se muito de inclusão, mas o que eu digo muitas vezes aos professores da educação especial: “muito bem, agora vamos deixar a parte da conversa e agora venham conosco para a sala e mostrem-nos como se faz. (PER5) Assim, parecem existir fortes dúvidas quanto às modalidades de educação especial no agrupamento em estudo, tanto por parte dos PER como dos PEE. Estes, por exemplo, também expressam uma opinião pouco favorável quanto à existência das Unidades de Multideficiência ou de Surdocegueira Congénita ou das Unidades de Ensino Estruturado para Alunos com Perturbação do Espetro do Autismo, consideradas como instrumentos de retrocesso em termos de inclusão dos alunos especiais: Fazer Unidades quando nós falamos em inclusão? Fazer Uni-

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Quem vai para as Unidades? (…) Mas o que é um multideficiente? Quem é que define um multideficiente? Quantos é que podem lá estar? São questões pequeninas, mas na prática têm uma importância enorme. (PEE4)

A minha sobrinha tem um autismo profundo e surdez. Ela está institucionalizada e é a melhor coisa que lhe podia ter acontecido! Está feliz, é útil – foi trabalhada para ser útil. Na escola aquela miúda era um vegetal! (PEE4) Todos estes dados apontam para as dificuldades de implementar a educação inclusiva, e salientam as dúvidas evidenciadas por ambos os grupos de docentes, relativamente à natureza das modalidades de educação especial existentes no agrupamento. Estas dúvidas e dificuldades podem explicar que haja em cada grupo de docentes a defesa do trabalho de alunos com NEE fora da turma e até a aceitação da ideia de que para alguns alunos com NEE, a exclusão da escola regular e sua integração em “escolas especiais” será a me-


lhor opção.

RELAÇÕES ENTRE PROFESSORES DA EE E PROFESSORES A ER Alguns docentes do ensino regular revelaram que têm pouco contacto com os seus colegas da educação especial, especialmente os que exercem funções na escola secundária do agrupamento. Alguns professores de educação especial estão cá um ano letivo e nós nem os chegamos a conhecer porque nem temos essa oportunidade. (PER9) Os professores de educação especial permanecem mais na escola do 2.º e 3.º ciclo, o que na prática, acaba por ser a escola sede da educação especial. (PER3) Uma destas docentes, embora reconheça a importância de comunicação entre os dois grupos de professores, explica a falta de comunicação com os docentes de educação especial pelo fato de trabalharam num recente mega agrupamento: Tem de haver, de facto, mais comunicação, mas acho que o mega agrupamento prejudicou a comunicação entre os docentes. (PER1) Um dos dados relativo às relações entre professores de EE e professores do ER que sobressai do nosso estudo é o desconhe-

cimento generalizado por parte de alguns docentes do ensino regular acerca dos procedimentos relativos ao regime educativo especial e ao seu papel perante um aluno com NEE integrado na turma de que é responsável. Como revela um docente de educação especial: Eu já presenciei uma situação em que um diretor de turma se queixou de não ter sido avisado que tinha dois alunos com nee. Isto pode mostrar um lado positivo, pois os alunos não têm dificuldades assim tão visíveis, não percebem que há alguém «especial», mas, por outro lado, mostra que há tarefas mínimas que não são cumpridas. (PEE6) Esta atitude pode resultar de questões administrativas alheias ao diretor de turma (por exemplo, quando há um novo aluno na turma vindo de outro agrupamento e cujo processo ainda não chegou à escola), mas pode também ser devida ao desconhecimento do papel do professor no processo educativo dos seus alunos com NEE. É esta ideia que sobressai da opinião de uma professora da educação especial: Tenho a ideia que o diretor de turma não sabe porque não quer, pois existe muita informação disponível. Eu quando não sei, procuro saber (…) nós devemos, sempre que possível, tentar ter sempre boa relação com os diretores de turma, para

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bem dos nossos alunos, mas se não for possível devemos focar nos interesses dos nossos alunos e não nos interesses dos nossos colegas do ensino regular. (PEE3). Para esta docente há essencialmente dois tipos de diretor de turma: Aqueles que percebem qual é a sua função e entendem até o espírito da lei quando estipula que o responsável pelo aluno é o diretor de turma; e outros que, por circunstâncias diversas e por motivos diferentes, talvez por desconhecimento, talvez por insensibilidade ou porque simplesmente não querem ter mais trabalho, não entendem qual o seu papel e acabam por esperar que seja o professor de educação especial a gerir o processo do aluno, a tomar a iniciativa para as condições especiais de exame, a procurar recursos, enfim a passar a responsabilidade para o professor da educação especial, quando é sua obrigação ser os primeiros responsáveis pelo aluno que integra a turma que dirige. (PEE1). Estas ideias parecem evidenciar atritos e relações conturbadas entre docentes do ensino regular e docentes de educação especial. Parecem também significar que os docentes não se encontram para reuniões formais que podem ser importantes para articular estraté-

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gias e rentabilizar recursos e que não há tempo para a partilha entre os docentes devido ao volume excessivo de trabalho burocrático. Esta leitura encontra eco discursos de alguns professores do ensino regular: Uma diretora de turma hoje tem imenso trabalho na área da educação especial. (PER1) [O trabalho relativo aos alunos com nee] acarreta um trabalho burocrático altamente acrescido que não é considerado para o nosso tempo de direção de turma. (PER2). Sinal evidente de alguma tensão relacional entre os dois grupos de professores parece ter a ver com o modo como são entendidos os papéis de cada um. A este respeito, uma professora do ensino regular considera que os seus colegas da educação especial devem explicar o que fazer em cada caso concreto, pois só estes têm formação para isso. Por suas palavras: Não sei fazer de outra maneira. Fala-se muito e é o que digo [aos professores de educação especial]: “muito bem, agora vamos deixar a parte da conversa e venham conosco para a sala e mostrem-nos o que se faz”, porque, às vezes, é só mostrando e ninguém faz isso! (PER5) Esta atitude parece ser reveladora de uma certa desresponsabilização por parte de alguns docentes do ensino regular, considerando a educação de aluno com NEE tarefa exclusiva do docente de educação especial, o


que evidencia, por seu lado, desconhecimento pelas leis podendo este fato, em última análise, contribuir para obstar processos de inclusão. Pela análise dos dados recolhidos, verificamos que as relações entre os docentes da educação especial e os docentes do ensino regular nem sempre são harmoniosas. Os alunos NEE com Currículos Específicos Individuais são vistos como trazendo mais trabalho e perda de tempo, perante a azáfama das tarefas burocráticas do quotidiano e, particularmente, perante as exigências de cumprimentos dos objetivos ou das metas do programa das disciplinas, especialmente quando se trata de disciplinas sujeitas a exames nacionais. Atestam estas ideias os depoimentos seguintes: Os professores do ensino regular estão mais concentrados nos exames e nos resultados do que nos interesses de alguns alunos com NEE. (PEE2) Os professores [do ensino regular] não têm muita atenção os interesses do aluno [com NEE] (…) eles têm muita atenção aos interesses dos exames do grupo de turma, do aproveitamento em geral, (…) até percebo por que há imensos objetivos que os colegas têm que atingir, mas depois não se focam na criança em si. (PEE5) Há, no entanto, alguns docentes que assinalam o trabalho desenvolvido em parceria e em articulação com seus colegas, con-

siderando-o imprescindível para a qualidade do trabalho junto dos alunos com NEE. Eu tenho tido sempre crianças com NEE. Tenho tido várias experiências diferentes. Tive uma experiência muito boa com a A. [docente de educação especial], foi um bom trabalho que fizemos as duas. (PER7) Eu acho que a partilha é uma das coisas mais importantes. Claro que o procurar, o tentar, o saber, o tentar ter formação é importante. O que um professor de educação especial tem que fazer é muito ir por tentativa e erro. (PEE5). Também dos discursos de alguns professores de educação especial ressalta a sua vontade em criarem e manterem uma boa relação com os professores do ensino regular e demais atores educativos. Temos que nos adaptar sempre às circunstâncias e tentar levar as coisas pelo bom caminho para conseguir atingir os objetivos. Temos de nos ajustar a eles, para eles se ajustarem a nós. Até ao momento não tenho sentido grande diferença em relação ao professor do ensino regular ou ao professor da educação especial. (PEE2) Devemos criar boas relações com todos, principalmente com os colegas do ensino regular, em prol da inclusão dos alunos com

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NEE. (PEE6) Assim, a par de relações profissionais entre professores da EE e do ensino regular baseadas na cordialidade e na partilha de saberes e competências, subsistem sentimentos de algum desconforto face à presença de alunos com NEE nas salas de ensino regular, falta de diálogo e de partilha e de colaboração entre os dois grupos de professores. Estas relações profissionais podem constituir um obstáculo à concretização da educação inclusiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Na prossecução de alcançar o principal objetivo desta pesquisa – conhecer as percepções dos professores sobre potencialidades e limites da educação especial se materializar numa educação inclusiva – podemos vislumbrar algumas ideias principais que ressaltam da análise precedente. Ambos os grupos de docentes consideram a educação inclusiva uma realidade difícil de concretizar, principalmente quando se trata de alunos com NEE com graves limitações do foro cognitivo, sendo mais evidente esta opinião nos docentes do ensino regular. Alguns professores deste último grupo, consideram a diferenciação pedagógica respeitante aos alunos NEE uma tarefa difícil, uma vez que reconhecem não possuir formação na área da educação especial. Encontramos em ambos os grupos de professores, ainda que com mais evidência no grupo dos PER, posicionamentos que defendem que alguns alunos com NEE estariam melhor fora da escola regular, em instituições ou escolas especiais. Esta ideia não é corroborada pelos teóricos 42

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defensores da educação inclusiva (AINSCOW, 1997; CORREIA, 2003; MORGADO, 2010; RODRIGUES, 2013;) Em relação às modalidades da educação especial, os professores do ensino regular não têm uma opinião muito clara, revelando algum desconhecimento do funcionamento da educação especial no agrupamento, algo que pode constituir um limite à inclusão de alunos com NEE. Contudo, na sua maioria, acompanham a opinião geral dos seus colegas da educação especial, reconhecendo que os alunos NEE devem permanecer junto do grupo de turma. Os dados mostram que os docentes da educação especial são quem têm uma visão mais precisa dos modos de funcionamento da EE, ainda que alguns reconheçam que a concretização de uma escola inclusiva não é ainda uma realidade. Constata-se também que a opinião sobre a inclusão de alunos com NEE é percepcionada como um processo abrangente, e da responsabilidade de todos (família, escola e parceiros locais). Todavia, alguns discursos “deixam vir ao de cima” uma visão muito redutora de escola/educação inclusiva. Recorrendo a Stoer e Cortesão (1999), podemos considerar que muitos professores ainda tendem a tomar uma postura culturalmente “daltónica” face à diferença. Relativamente, às relações interpessoais entre os dois grupos de docentes, o estudo indica que são os professores do ensino secundário que expressam maior resistência à inclusão dos alunos NEE, a que não é alheio o fato de ser um ciclo de ensino onde só recentemente começaram a “chegar” esses alunos


fruto do alargamento da escolaridade obrigatória. As exigências da escola inclusiva colocadas ao professor do ensino regular e ao professor da educação especial são complexas e difíceis. Daí a necessidade do trabalho colaborativo e de um forte empenhamento nas tarefas a realizar, com uma relação baseada na transparência, honestidade, e constante comunicação, por exemplo, relativamente aos progressos ou retrocessos do aluno. Estas ideias foram defendidas por uns e outros professores, ainda que de forma mais convincente pelos PEE. No que respeita à relação profissional entre estes dois grupos de professores, Mantoan (2004) lembra que é urgente recuperar “a confiança que os professores do ensino regular perderam, a de saber ensinar todos os alunos, em exceção, por entenderem que não há alunos que aprendem diferente, mas diferentemente” (ibidem: 40).

concretização de uma escola inclusiva, foram também apontadas potencialidades e caminhos para a inclusão, que exigem condições, recursos e disponibilidade da organização escolar e dos seus protagonistas. Os dados permitem, igualmente, inferir sobre a importância de se romper com visões estigmatizantes no sentido de se alcançar uma nova postura profissional, e ética de abertura à “mudança de atitude face ao outro” (MANTOAN, 2004: 27-28), em prol de uma educação atenta às diferenças, e que a todos inclui (LEITE; FERNANDES, 2007).

No quadro dos princípios de uma educação inclusiva, o professor de educação especial não poderá ter a responsabilidade exclusiva nos processos de ensino-aprendizagem dos alunos com NEE. O ideal será concretizar a participação cooperativa e a partilha da autoridade pedagógica e curricular. Esta cooperação deverá envolver os seus colegas do ensino regular, diretor escolar, técnicos que intervêm juntos dos seus alunos e os pais (ou cuidadores próximos). Mas, pelos dados a que chegamos neste estudo, isso implica uma mudança definitiva nas atitudes, principalmente, a renúncia do controle individual da sala de aula e dos alunos (SAGE, 1999). Em suma, o estudo mostra que a par de alguns limites enunciados pelos professores para a

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Professor de Educação Especial. E-mail: amiguelcorreia@gmail.com

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Doutora em Ciências da Educação, professora na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto Portugal; membro integrado do Centro de Investigação e Intervenção Educativas desta mesma Faculdade. E-mail: preciosa@fpce.up.pt 2

Os discursos dos professores de educação especial serão identificados de acordo com as seguintes siglas: PEE1 (Professor de educação especial 1), PEE2 (Professor de educação especial 2), PEE3 (Professor de educação especial 3), PEE4 (Professor de educação especial 4), PEE5 (Professor de educação especial 5), PEE6 (Professor de educação especial 6) e PEE7 (Professor de educação especial 7). 4

Os discursos dos professores de ensino regular serão identificados de acordo com as seguintes siglas: PRE1 (Professor de ensino regular 1), PRE2 (Professor de ensino regular 2), PRE3 (Professor de ensino regular 3), PRE4 (Professor de ensino regular 4), PRE5 (Professor de ensino regular 5), PRE6 (Professor de ensino regular 6), PRE7 (Professor de ensino regular 7), PRE8 (Professor de ensino regular 8) e PRE9 (Professor de ensino regular 9). 4

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Ramos, Luiza Olivia Lacerda 1 Ferreira, Rosilda Arruda 2

ENSAIO

A EDUCAÇÃO SUPERIOR BRASILEIRA EM NOVAS CONFIGURAÇÕES Resumo

O presente trabalho tem como objetivo analisar as novas configurações da educação superior brasileira, sobretudo a partir da implantação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDB Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Para tanto, aborda-se em primeiro lugar e, abreviadamente, os contributos e as influências dos primeiros modelos de educação superior, a partir da revisão de literatura relativa à questão. Em seguida, apresentam-se as características do sistema de ensino superior brasileiro pós LDB desde a sua classificação, organização e estrutura, destacando os avanços e recuos decorrentes. Num terceiro tópico, são abordadas as novas configurações da educação superior sob o ponto de vista da base legal que regulamenta suas práticas. Neste contexto, faz-se um recorte especial para o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), instituído pelo Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007, que se constitui na manifestação mais claras do reordenamento desse nível de ensino, analisando-se um dos seus efeitos representativos: a implantação de um novo modelo de cursos de graduação em universidades federais, denominados bacharelados interdisciplinares. Educação Superior Brasileira. Sistema de Ensino Superior Brasileiro. Bacharelado Interdisciplinar. Resumen Este estudio tiene como objetivo analizar las nuevas configuraciones de la educación superior brasileña, sobre todo desde la implementación de la Ley de Directrices y Bases de la Educación Nacional LDB N ° 9.394, de 20 de diciembre de 1996. Por lo tanto, se aborda en primero lugar y, en resumen, las contribuciones y las influencias de los primeros modelos de la educación superior, a partir de la revisión de la literatura sobre el tema. En seguida, presentamos las características del sistema de enseñanza superior brasileño post LDB desde su clasificación, organización y estructura, destacando los avances y retrocesos resultantes. En un tercer tema, son abordados las nuevas configuraciones de la educación superior desde el punto de vista de la base legal que regula sus prácticas. En este contexto, se haz un recorte especial para el Programa de Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) establecido por el Decreto N ° 6096 de 24 de abril de 2007, que se constituye en la manifestación más clara del reordenamiento de ese nivel de enseñanza, analizando uno de sus efectos representativos: la implementación de un nuevo modelo de carreras de grado en las universidades federales, llamados bachillerato interdisciplinarios.

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INTRODUÇÃO Contrariamente às histórias das Américas Espanhola e Inglesa que, ainda no período colonial tiveram acesso à educação superior, o Brasil aguardou até o final do século XIX para que as primeiras instituições científicas e culturais deste nível surgissem motivadas pela vinda da Família Imperial ao país. A partir da proclamação da Independência em 1822, aumenta o número de escolas superiores, no formato de unidades isoladas com foco na formação profissional. Entre 1808 e 1882 ocorreram tentativas de criar as primeiras universidades no Brasil, mas que sequer tiveram seus projetos debatidos nos órgãos de representação política existentes no país. Nesta época, a abolição da escravatura tomava a atenção integral dos parlamentares e os «pareceres e projetos de reforma da instrução de Rui Barbosa entraram a dormir no ‘sono donde passaram ao mofo e à traçaria dos arquivos’ palavras dele mesmo». (MACHADO, 2002, p.153). Em 1891, mesmo com a chegada da “República”, a Constituição omite-se em relação ao compromisso do governo com a educação universitária. Entre 1909 e 1912 surgem as primeiras universidades no Brasil: a Universidade de Manaus (1909) e a do Paraná (1912) (FÁVERO, 2006). Anos depois, em 1920 é criada oficialmente a primeira universidade da capital do país, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Apenas em 1931, com a promulgação do Estatuto das Universidades Brasileiras, a universidade surge como instituição formal. Após a Revolução Constitucionalista de 1932, ocorrida em São Paulo, foram

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criadas, em 1934, a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade de Porto Alegre (UPA) e em 1935 a Universidade do Distrito Federal (UDF). Este é um período de desenvolvimento político e econômico para o país muito especial. Os efeitos da abolição da escravatura levam o Brasil a «mobilizar os homens em torno da modernização da sociedade, ensinando-lhes o valor do trabalho» (MACHADO, 2002, p. 153) e com o processo de imigração, logo em seguida, essa preocupação vai desaparecendo. O percurso em tela nos leva a questionar que modelos de ensino e pesquisa foram herdados quando da implantação dessas primeiras instituições e quais consequências foram percebidas, tendo em vista este cenário social apresentado? Na tentativa de identificar algumas respostas, destacamos três correntes de pensamento que marcaram esta história: a francesa e a alemã, no princípio e a corrente norte-americana no período mais contemporâneo.

CONTRIBUTOS E INFLUÊNCIAS DOS PRIMEIROS MODELOS DE EDUCAÇÃO SUPERIOR É consenso na literatura - Anastasiou (1998), Paula (2002), Morosini (2006), Almeida Filho e Santos (2008) - que as Universidades da América Latina e, não obstante as brasileiras, iniciaram sua história com a forte influência dos modelos europeus, prioritariamente o francês e o alemão. Justificada pelo contexto social da época, as primeiras faculdades brasileiras tinham a finalidade de formar as pessoas para o domínio técnico e profissional como


maneira de enfrentar o subdesenvolvimento. Não por acaso, os estrangeiros indicados para lecionar nas primeiras universidades, eram franceses. Com isto, se instalava o modelo napoleônico que se consistiu por escolas isoladas de cunho profissionalizante e com grande centralização estatal. Nesse modelo, a pesquisa não é atividade nuclear da universidade, havendo dissociação entre universidades que se dedicam fundamentalmente ao ensino, e “grandes escolas” voltadas para a pesquisa e formação profissional de alto nível. O napoleônico foi um modelo que se caracterizou por uma estrutura universitária composta como federações de faculdades e de escolas de caráter profissionalizante. Com uma organização eminentemente profissionalizante, os cursos ou faculdades se centravam na finalidade de formar os burocratas que atuariam nos quadros administrativos do Estado. Fruto dessa influência, a universidade se imbuia dos mesmos ideais autoritários impostos pelo governante à sociedade civil. Esta, por sua vez, não tinha clara consciência da situação, até porque a educação não estimulava a crítica, pelo contrário, servia mais como doutrinação, mantendo os interesses do governo e das elites. Nos dias atuais, este modelo, segundo Anastasiou e Alves (2004), ainda se materializa em currículos universitários desenhados em grades com privilégios aos pré-requisitos, separando as disciplinas básicas das profissionalizantes que de acordo com o princípio da racionalidade, distancia teoria da prática. Contrapondo-se a esse modelo, o humboldtiano compreendeu a concepção humanista-idealista-humboldtiana e emergiu

quando a Alemanha, acometida pelos acontecimentos da Revolução Francesa e pelo domínio napoleônico do início do século XIX, criou universidades novas para equilibrar a perda de instituições que passaram para territórios estrangeiros e para unificar a nação. Tais universidades, por não estarem presas à tradição anterior, se adaptaram às novas exigências sociais e intelectuais. Do modelo humboldtiano tem-se a herança de uma concepção de universidade formadora de «elites dirigentes com base na constituição de uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras como órgão central de ensino superior e com consequente ênfase na formação científica de cunho humanista, não pragmático» (PAULA, 2002, p. 151). Nessa concepção alemã tem-se, como fundamento, a ênfase na importância da pesquisa na universidade e a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e uma formação com perspectiva geral, científica e humanista, com enfoque na totalidade e universalidade do saber. Politicamente, seu caráter é corporativo e deliberativo, gozando de liberdade de ensino e pesquisa nas primeiras décadas de funcionamento. A preocupação com a constituição da nacionalidade se deu com base numa perspectiva liberal elitista, com maior autonomia da universidade diante do Estado desembocando numa concepção mais idealista e acadêmica, e menos pragmática de universidade (PAULA, 2002). Ao longo do tempo, essa concepção sofreu uma série de modificações e desvios, dentre os quais se destaca a diminuição considerável da autonomia e da liberdade acadêmica.

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Sobre o compromisso social da universidade, o primeiro modelo a tensiona para a formação de burocratas para exercerem funções de Estado, o que fica notório o seu entrelaçamento aos interesses do Estado, inclusive na preparação de seus quadros, os quais deveriam seguir rigorosamente a orientação do governo, do poder instituído, deixando em segundo plano, os interesses da sociedade, da nação e dos segmentos médios e pobres da população, uma vez que só as elites tinham acesso a esse nível de ensino. O contrário do que o modelo alemão sustentava: a necessidade de sua plena independência financeira e administrativa do Estado. Pela influência humboldtiana, o que conta é a convicção de que toda forma de pretensão econômica social ou estatal deve ser rechaçada e, nesse modelo, a investigação científica, a formação humana e as ciências aplicadas ficaram fora da universidade (PAULA, 2002). Ou seja, no entendimento de como a universidade pode ser uma instituição a serviço do Estado, há oposição entre os dois fortes modelos que influenciaram a estruturação das primeiras universidades brasileiras. Enquanto o projeto implementado no modelo napoleônico impunha à universidade todos os controles do Estado para que ela cumprisse as atividades traçadas por esse, garantindo os efeitos da ação esperada com vistas ao seu fortalecimento, o modelo humboldtiano desconsiderava o nacionalismo estreito, o protecionismo, o utilitarismo e o positivismo que guiam os poderes públicos em matéria de ciência. Ao herdar o modelo francês, fortalecemos o espírito cartesiano nas ciências natu-

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rais, humanas e no mundo político e moral, uma vez que a universidade napoleônica era cartesiana, tecno-profissional e guia crítico-espiritual do Estado (moderno) e reafirmando uma universidade estatal de ensino, regida pelo interesse do Estado para seu o progresso econômico-político e da divulgação da língua nacional. Quanto ao modelo alemão, herdamos principalmente a presença da pesquisa e da autonomia na constituição da universidade e por elas os demais âmbitos se estruturaram. Uma pesquisa que enfatiza que a organização interna das instituições científicas superiores tem o dever de incentivar a própria atividade de pesquisa; por isso, deve ser uma colaboração livre, isto é, sem ter que obedecer a uma finalidade prévia ou externa, livre inclusive de posicionamentos e defesas políticas. Em algumas instituições o fazer pesquisa permanece centrado em áreas específicas e, até mesmo, em alguns professores por inúmeros fatores, como os ideais do projeto científico e tecnológico do país e a importância que a área assume em períodos distintos, as oportunidades de financiamento, a relevância da área para determinada instituição, a presença de laboratórios, estrutura, equipamentos e pessoal técnico de apoio, com a formação do professor em nível de doutorado e seu interesse por pesquisa, dentre outros (PAULA, 2002). Durante o período que ficou conhecido por Nova República (1945-1961), surgem diversas universidades públicas federais, distribuídas nas respectivas capitais de cada unidade da federação, e também universidades confessionais, oportunizando a expansão das matrículas. Estas universidades instituídas reu-


niam os cursos superiores da ocasião, criando vários outros na época e posteriormente. As heranças francesas e alemãs se fundem a outras propostas do Estado brasileiro, moldando-se aos mecanismos de nação impostos na época. A esse respeito, importa destacar uma destas propostas do Estado brasileiro, marcadamente influenciado pelo modelo americano e tratou-se de contribuição vital para este campo: o novo modelo de educação superior proposto por Anísio Teixeira em 1960. Persistindo em ideais pregressistas e com apoio político, em 1961, Anísio institui a Universidade de Brasilia – a UnB – como uma tentativa de adaptar o modelo norte-americano à realidade brasileira – menos especializada, mais carente de recursos e indissociando o saber prático. Gratuidade e igualdade eram princípios filosóficos de base dessa universidade. Os programas de ensino eram baseados em ciclos de formação geral e, grandes áeras de conhecimento organizavam centros, substituindo, dessa forma, as faculdades superiores. Tal modelo se constituiu num referencial para as demais universidades. Seu ideal de universidade se opunha às ideias de escolas superiores isoladas, pois defendia que apenas um referencial de conhecimento integrado seria capaz de promover uma educação para a cidadania e para a democracia. Este projeto, entretanto, durou pouco, pois uma das primeiras medidas decorrentes do Golpe Militar em 1964, foi a tomada da UNB desmoronando seu projeto com demissão do quadro de professores e alteração da proposta administrativa e curricular (ALMEIDA FILHO & SANTOS, 2008).

Neste mesmo período, o modelo norte-americano passa a ser referência para a reforma na época instituida pela reorganização millitar do ensino superior (Lei 6.540/1968) o que marca também na história da constituição da universidade brasileira a seletividade acadêmica e social como referência para as mudanças. Das contraditórias consequências para o ensino superior brasileiro, decorrentes dessa reforma tem-se por um lado, a modernização de uma fatia significativa das universidades federais, a revogação das cátedras vitalícias, a progressão da carreira docente e a expansão da pós-graduação. Do outro lado, segundo, Florestan Fernandes (1975) é momento do surgimento do ensino privado e, com ele, o isolamento, a transmissão de conhecimentos de natureza estritamente profissionalizante e separação formal do ensino e da pesquisa. Uma característica fortemente associada a este modelo era uma formação voltada para as exigências da sociedade capitalista estritamente de acordo com o momento atual que o país atravessava para ultrapassar o subdesenvolvimento. A funcionalidade, praticidade e a técnica eram privilegiadas em detrimento da intelectualidade e do humanismo, aspectos importantes na formação científica e filosófica dos estudantes (FERNANDES, 1975). Naturalmente que essas concepções não foram exclusivas, mas talvez determinantes para compor a história da educação superior brasileira marcada pela importação de modelos pedagógicos, curriculares didáticos e administrativos desde os seus primórdios. Podemos afirmar que a universidade clássica e

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seus modelos principais: napoleônico, hierárquico e conduzido ao alto e o humboldtiano, ligando à pesquisa e à formação, privilegiando a autonomia, não desapareceram, mas, talvez possamos afirmar que por ela estar imersa em um novo sistema mais amplo, muito mais variado e logo, mais complexo, reclama por um novo modelo. Esta amplitude se justifica quando notamos as inúmeras conexões que se estabelecem hoje entre o mundo do trabalho e as universidades, e começam, inclusive, bem mais cedo (um estudante de graduação amplia sua percepção através do estágio, por exemplo, desde o segundo semestre do curso). Mais variado e complexo, pois, nestas conexões, as relações são diversas e muito mais ricas, sobretudo no campo dos registros científicos, nas novas relações entre os setores públicos e privados, no crescente número e variedade de empresas, associações, organizações não governamentais que são criadas dentro da estrutura das universidades e fora delas. Pode-se deduzir que alguns dos atuais impasses vividos pela universidade no Brasil necessariamente estão relacionados à sua própria história e aos modelos herdados. Pelos estudos (PAULA, 2002; MOROSINI, 2006; TEIXEIRA, 1968), tem-se claro que ela foi criada não para atender às necessidades fundamentais da realidade da qual era e é parte, mas considerada como um bem cultural destinado a uma minoria. Produção essa que deveria procurar responder às necessidades sociais mais amplas e ter como preocupação tornar-se expressão do real, compreendida como característica do conhecimento científico.

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Um dos efeitos mais perceptíveis destas reformas centra-se na composição curricular linear e hierarquizada da educação universitária brasileira decorrente dos modelos de formação nas universidades europeias, em especial àquelas até aqui estudadas. No final dos anos 60 as estruturas universitárias acadêmicas muito sofreram com a reforma imposta pelo governo militar e, em seguida, com a abertura do mercado ao setor privado de ensino tendo como resultado, segundo Almeida Filho e Santos (2008), uma universidade brasileira submetida a um potente viés profissionalizante, com uma concepção curricular simplista, fragmentadora e afastada dos saberes e das práticas de transformação da sociedade.

CARACTERÍSTICAS DO SISTEMA DE ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO PÓS LDB 9394/96: AVANÇOS E RECUOS A promulgação da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, Lei nº 4.024/61, mesmo discursando sobre a possibilidade de flexibilização no ensino superior reforçou, na prática, o modelo tradicional vigente, mantendo as cátedras vitalícias e a supremacia do ensino sobre a pesquisa, uma vez que era uma época de repressão e silenciamento total, fruto do regime ditatório militar. Em 1971, é promulgada a lei Nº 5.692 de 11 de agosto de 1971 que fixa diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus – que hoje correspondem aos níveis da educação básica não se referindo, portanto, aos interesses da educação superior.


É a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDB 9.394/96 que os debates para o ensino superior são retomados. Em primeiro lugar, o estabelece como um nível de ensino da Educação e, define, no Capítulo IV finalidades, modalidades de cursos e programas, campos de abrangência e expansão. Com um caráter inovador, estabelece mecanismos de controle e regulação da qualidade para este nível de ensino por meio da introdução de programas de avaliação institucional. Dentre todas as finalidades da educação superior, previstas no art. 43 da referida lei, torna-se importante destacar o inciso I: «estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo», uma vez que o estímulo ao pensamento reflexivo parece-nos reclamar por uma formação em diferentes áreas, minimamente, a cultura, ciência e a tecnologia. Por conseguinte, esta articulação pode contribuir na medida em que se promove inter e intra-área. Não obstante, o incentivo à investigação é proposto sob a perspectiva do desenvolvimento da ciência aliado à arte e à tecnologia e o conhecimento é caracterizado com uma tríplice face: cultural, científica e técnica. O que percebemos é que, repetidamente, esse tripé surge como vértices ligando, unindo, aproximando as múltiplas formas de entendimento da vida e do homem. Com isso, complexidade, integração, rede de relacionamento dentro das escolas superiores - sejam elas de qualquer modalidade ou esfera - tornam-se urgências na definição do currículo, nas práticas de trabalho e nas relações. Parece-nos aqui que a concretização dessas finalidades no âmbito do ensino se dá por meio de uma forte tendência em dialogar e, acima de tudo,

flexibilizar os diversos elementos que compõem esses espaços acadêmicos, quer no nível administrativo, pedagógico ou financeiro. Para dar conta dessas finalidades, esta mesma Lei estabelece, no art. 45, que a educação superior «será ministrada em instituições de ensino superior, públicas ou privadas, com variados graus de abrangência ou especialização». E, conforme sua organização acadêmica, definidas pelo Decreto nº 5.773, de 9 de maio de 2006, podem ser compreendidas como Universidades, Centros Universitários, Faculdades e, mais recentemente, em Institutos Federais. Em seu artigo 52, a LDB 9.394/96 compreende as Universidades como Instituições pluridisciplinares, públicas ou privadas de formação de quadros profissionais de nível superior, que desenvolvem atividades regulares de ensino, pesquisa e extensão e de domínio e cultivo do saber humano. E dentro delas, respectivos cursos e programas: sequenciais, graduação – bacharelado ou licenciatura, pós-graduação – mestrados e doutorados – e de extensão, direcionados tanto para necessidades específicas quanto para público diferenciado. Desses cursos, a graduação ainda é a mais procurada. Destinada a candidatos com o ensino médio concluído e que tenham sido classificados por meio de processo seletivo, habilitam-nos, ao seu final, a exercerem a profissão escolhida e, portanto, ingressarem no mercado de trabalho com o título de bacharel, licenciado ou tecnólogo. Os cursos sequenciais ofertados em diversas áreas do conhecimento são destina-

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dos a um perfil que opta por menor tempo de duração na educação superior. Os cursos de extensão nascem a partir da urgência de se discutir temáticas extracurriculares e são ofertados ao grupo interno e externo da instituição, os quais, em geral não exigem pré-requisitos para a sua entrada. Em nível de pós-graduação, as instituições de ensino superior brasileiras ofertam uma ampla gama de opções em especialização, mestrado profissional, mestrado acadêmico ou doutorado. Apenas universidades e Centros Universitários detêm autonomia para criar e implantar cursos e programas de mestrado e doutorado (stricto sensu). Já nas demais instituições (faculdades, faculdades integradas, IFEs), a implantação desses cursos está sujeita à autorização do Ministério de Educação. Na sequência, os estudantes podem avançar seus estudos optando por dois tipos de mestrados, o profissional e o acadêmico, que no Brasil, são concluídos geralmente em dois anos. O primeiro tenta responder a uma necessidade socialmente definida de capacitação profissional em que evidencia estudos e técnicas diretamente voltadas ao desempenho de um alto nível de qualificação profissional, e o segundo, volta-se ao desenvolvimento da pesquisa acadêmica e confere habilidades para docência no ensino superior. Já os cursos de doutorado são desenvolvidos num período de quatro anos, aproximadamente, e sua conclusão está condicionada à apresentação de uma tese inédita sobre determinado assunto. Para esse conjunto de modalidades e níveis que se encontra estruturado o ensino

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superior brasileiro, a Lei nº 9.394/96, garantiu mais autonomia às universidades. Esta garantia significa por um lado, um avanço no processo da descentralização concedendo flexibilidade à gestão das universidades mesmo sendo possível que a União as descredenciem. Por outro lado, Tavares (1998, p. 65), defende que esta mesma autonomia pode significar também, na prática «a inviabilização de um paradigma de universidade voltada aos interesses de setores da população historicamente marginalizados» quando, por exemplo, a autonomia financeira preconizada rejeita qualquer outra concepção de universidade que não esteja dentro dos referenciais definidos pelo governo central. Ainda assim, o art. 53º da Lei prevê o exercício da autonomia universitária a partir da garantia de várias atribuições dela decorrentes. No âmbito do ensino, cabe destacar a liberdade para a fixação de currículos de cursos e programas - desde que de acordo com as diretrizes gerais - e liberdade para definir e estabelecer programas, projetos de pesquisa, base legal - estatutos até regimentos internos. Nesse sentido, à medida que as políticas se instalam, a sua consolidação passa a reclamar por mudanças e reformas profundas, tanto no ambiente pedagógico como na forma de perceber a universidade pública. Não é por acaso que a relação indissociável entre ensino, pesquisa e extensão constitui alicerce substancial da universidade, um princípio para o exercício desta reclamada autonomia. A própria Constituição Federal de 1988 em seu Art. 207 anuncia que o pleno gozo de autonomia didático-científica, administrativa, de gestão financeira e patrimonial impli-


ca na realização das atividades acadêmicas alicerçadas nesse tripé. Esse princípio se constitui um dos temas fundamentais para o desenvolvimento de políticas educacionais que se sucederam ao longo dos últimos vinte anos no país e corrobora para o ingresso e o firmamento da interdisciplinaridade nos estudos relativos ao processo de ensino e aprendizagem na educação superior, sobretudo nas universidades. A partir dos debates da indissociabilidade é que a interdisciplinaridade é apresentada como uma condição para que este projeto político se efetive, sob várias perspectivas. A indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão, assume lugar, ainda que de forma menos explícita, na Lei Nº 9.394/96, quando as finalidades da educação superior pressupõem a investigação científica a partir do trabalho de pesquisa, o ensino como forma de comunicação do saber e a extensão como mecanismo de divulgação dos resultados da pesquisa cientifica concebidas pela instituição. Desse modo, entender essa indissociabilidade ultrapassa a mera questão teorética ou legal, mas essencialmente, perceber e compreender questões epistemológicas, políticas e pedagógicas vinculadas a interesses e a projetos nacionais de educação ao longo do tempo. O termo indissociável nos remete a pensar em algo que não se pode separar, desunir. Esta condição reduz as distâncias entre as atividades acadêmicas e a sociedade conferindo-lhe um significado social, uma vez que

pressupõe projetos comuns entre si tendo em conta o que é relevante para a maioria da sociedade. Não obstante, este tema também contorna debates relativos à flexibilização curricular e à busca da unidade da teoria e da prática nas universidades. Apesar disso, o que tem sido percebido nas últimas décadas é o contrário. Ensino, pesquisa e extensão têm caminhado em sentidos distintos, muitas vezes opostos, demarcando o seu afastamento. Essa situação reforça a ideia de que essas obrigações não são possíveis de se complementar. É neste enquadramento e, à frente de alguns desafios, que se coloca a interdisciplinaridade como forma de contribuir para a superação desse tipo de prática. Quanto ao ensino, dentre os princípios em que deverá ser ministrado, destacamos «valorização da experiência extraescolar e vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais» (art. 2º). Será prioritariamente por meio dele que a educação superior disseminará o saber historicamente instituido. Quanto à pesquisa, está presente no conjunto das atribuições asseguradas à educação superior além de ser destaque nas finalidades para este nível de ensino vez que é, através dela, que o homem compreenderá o meio em que vive e perceberá suas relações encontrando – ou não - resposta a questões mais amplas de ordem social. Ademais, esta mesma lei recomenda que a extensão tenha dentre outras finalidades, a de divulgar os resultados das pesquisas geradas na instituição. Tal condição confere à extensão um lugar pri-

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vilegiado neste tripé, pois deste lugar se estabelece a ligação entre a universidade e a sociedade ratificando o seu engajamento social. Reunidos, esses três eixos tentam dar conta de uma visão de universidade «pautada em novos paradigmas, que envolve o respeito à ética, à diversidade cultural e à inclusão social como seus princípios e suas referências» (BRASIL, 2006, p. 40). Com essa compreeensão, a prática de envolver os diversos segmentos sociais – privilegiados ou excluídos – amplia as suas atribuições que, para além de produzir conhecimento novo e contribuir para o avanço da cultura, da ciência e da tecnologia deverá voltar-se para a «interdisciplinaridade, vista na perspectiva da estruturação dos problemas sociais e do desenvolvimento regional e local» passando então a compreender o trabalho científico mediante sua relevância social (BRASIL, 2006, p. 41). O discurso em tela prevê que a produção do conhecimento científico esteja em constante sintonia com questões sociais urgentes, o que consiste em rever métodos de pesquisa, ensino e extensão prezando, sobretudo, os conhecimentos do senso comum e a interdisciplinaridade uma vez que uma única disciplina não consegue explicá-las. Prevê também uma preparação profissional em que estejam circunscritas habilidades aliadas à flexibilidade, constante mudança e relativização, caso contrário, essa formação torna-se, em pouco tempo, obsoleta. Para tanto, a pesquisa e a extensão são indispensáveis uma vez que contribuem numa formação do estudante para além da técnica chegando ao âmbito social e político desen-

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volvendo a criticidade. Além disso, forças externas, exigências da sociedade, novas concepções quanto ao papel da universidade abrem espaço para se pensar num cenário em que a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão seja uma prática concreta de modo a tornar o conhecimento produzido acessível a toda a sociedade. Porém, até então, desarticulação e fragmentação são caraterísticas permanentes na atual conjuntura da educação superior quando esse tripé está em causa não refletindo o previsto em lei. Ações governamentais são pensadas com vistas ao enfrentamento de várias questões além das que citamos até aqui, demarcando um novo tempo para as políticas na educação superior, um tempo de uma universidade que congregue tais expectativas.

CONFIGURAÇÕES DA EDUCAÇÃO SUPERIOR SOB O PONTO DE VISTA LEGAL Lançado oficialmente em março de 2007 o Plano de Desenvolvimento da Educação – PDE dispõe de 29 (vinte e nove) ações do Ministério da Educação e compõe o conjunto de medidas governamentais do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, com vistas ao crescimento do país. Nesse plano, foram inscritas cinco ações para tratar da educação superior com os seguintes focos para: a facilitação de acesso ao crédito educativo, promovendo mais oportunidades de acesso ao estudante de comprovada baixa renda; a valorização do profissional qualificado; novas contratações de professores em universidades


federais; o aumento do número de vagas com a expansão universitária e a proposta de acessibilidade na educação superior.

plantações de laboratórios e bibliotecas, por exemplo, sem a devida infraestrutura nem manutenção.

Neste cenário analisamos, em especial, o contexto da reestruturação da arquitetura acadêmica da qual emergiu uma nova modalidade de cursos: os Bacharelados Interdisciplinares como resposta para o atendimento da meta, «a elevação gradual da taxa de conclusão média dos cursos de graduação presenciais para noventa por cento e da relação de alunos de graduação em cursos presenciais por professor para dezoito, ao final de cinco anos, a contar do início de cada plano» (BRASIL, 2007, p. 4).

De acordo com Catani, Lima e Azevedo (2008, p. 23), «o REUNI é um programa de reforma das IFES acoplado a um plus de financiamento para aquelas universidades que a ele aderirem». Esse conjunto de condições é uma forma de estimular a concorrência entre as universidades federais. Em outras palavras, sugerem que o REUNI configura uma disputa de regularidade e de busca de identidade ao referencial de universidade recomendado pelo MEC, uma vez que este programa estabelece a condição do cumprimento das metas para a liberação de financiamentos.

Para o atingimento dessa meta foi projetado, em 2007, o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI. Na sua esfera, muitos pesquisadores se debruçam em analisar as consequências e os desafios postos à gestão universitária a partir desse Plano, dos quais mencionamos, p. Catani, Lima e Azevedo (2008) e Almeida Filho e Santos (2008). Uma parte destes pesquisadores defende o REUNI especialmente pela possibilidade de melhor desenvolver atividades acadêmicas, notadamente, aquelas relacionadas à mobilidade, atualização na composição curricular, e novas modalidades de graduação. Outra parte critica por compreendê-lo como um caminho para a subserviência das universidades ao governo federal e, consequentemente, uma ameaça à qualidade da produção científica. Outro ponto de crítica reside no baixo repasse que o governo federal prevê para esta reestruturação, acarretando em im-

Embora a universidade passe a integrar novo traço de organização social marcada pela operacionalização, produtividade e flexibilidade distanciando-se da universidade como instuitição social, reconhecida pela sua capacidade de produzir conhecimento com liberdade e espírito crítico (CHAUÍ, 2001), este programa tem sido um dos instrumentos para a operacionalização das novas diretrizes na universidade pública com uma franca adesão. Basicamente, o centro das atenções desse plano gira em torno de dois argumentos. O primeiro trata da pouca oferta de vagas nas instituições públicas o que acaba direcionando o estudante para o setor privado que, segundo as mesmas diretrizes, encontra-se em total esgotamento. O segundo argumento refere-se às heranças antigas do regime de formação profissional que estão ultrapassadas para as atuais exigências do mercado de trabalho.

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Em sua proposta, os objetivos foram focados na ampliação do acesso e permanência na educação superior, na inovação acadêmica aliada à integração dos diferentes níveis de ensino, na otimização e aproveitamento dos recursos humanos e infraestrutura das instituições federais de educação superior. Parece-nos que a proposta de rearquitetura acadêmica dos cursos de graduação se destaca das demais intenções do REUNI, como veremos a seguir. O Programa em tela compreende de seis dimensões: (i) a Ampliação da Oferta de Educação Superior pública que implica no aumento de vagas de ingresso, especialmente no período noturno, na redução das taxas de evasão e na ocupação de vagas ociosas. (ii) a reestruturação acadêmico-curricular que consiste na revisão da estrutura acadêmica buscando a constante elevação da qualidade, a reorganização dos cursos de graduação e a diversificação das modalidades de graduação, preferencialmente com superação da profissionalização precoce e especializada; Implantação de regimes curriculares e sistemas de títulos que possibilitem a construção de itinerários formativos; e Previsão de modelos de transição, quando for o caso. (iii) a renovação pedagógica da Educação Superior compreende a articulação da educação superior com a educação básica, profissional e tecnológica e a atualização de metodologias (e tecnologias) de ensino-aprendizagem bem como a previsão de programas de capacitação pedagógica, especialmente quando for o caso de implementação de um novo modelo. (iv) o Suporte da pós-graduação ao desenvolvimento e aperfeiçoamento qualitativo dos cursos de graduação compreende na articulação da

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graduação com a pós-graduação. (v) o compromisso social da instituição prevê políticas de inclusão, programas de assistência estudantil e políticas de extensão universitária. E (vi) a mobilidade intra e inter-institucional compreende na promoção da ampla mobilidade estudantil mediante o aproveitamento de créditos e a circulação de estudantes entre cursos e programas, e entre instituições de educação superior. (BRASIL, 2008) Mesmo com seu término em 2012, sua natureza tem repercutido, ainda hoje, na prática de algumas instituições. A título de exemplo, temos a adesão do programa Universidade Nova e em decorrência, a criação dos chamados Bacharelados Interdisciplinares que, nas diretrizes do Programa são reconhecidos como uma, dentre outras «modalidades ou formas de organização curricular da graduação» (BRASIL, 2007, p. 26) como possibilidade de materialização dos ideais contidos para uma nova universidade. Tipo de formação que passaremos a discutir a seguir.

BACHARELADOS INTERDISCIPLINARES – BI O I Seminário Nacional da Universidade Nova ocorrido em dezembro de 2006 marca o início oficial das discussões relativas à reestruturação da arquitetura acadêmica da educação superior no Brasil. Na época, reuniram-se representantes de 57 (cinquenta e sete) Instituições Federais do Ensino Superior (Ifes) e do Ministério da Educação - MEC. O professor Naomar de Almeida Filho na oportunidade, reitor da UFBA, foi um dos idealizadores desse projeto com grandes contribuições do


Professor Boaventura de Sousa Santos. Antes de pormenorizá-lo, porém, é interessante relatar, brevemente qual o contexto de base do projeto Universidade Nova. Almeida Filho e Santos (2008) revela um percurso singular nesta linha do tempo em que os projetos Universidade Nova e UFBA Nova se convergem e fundem. É no encontro da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior – ANDIFES, em agosto de 2006, que ele apresenta, ao Conselho Pleno dessa associação, esboços do projeto de uma UFBA Nova o qual teve muita receptividade e apoio de vários reitores a seu favor como uma proposta viável também para outras universidades. Com o engajamento de vários reitores em uma rede de discussão, no mesmo ano, o projeto é apresentando à ANDIFES, desta vez, como o projeto da Universidade Nova. Dai ficar evidente a fusão entre os projetos da Universidade Nova e da UFBA Nova. Desse encontro, resulta o Manifesto da Universidade Nova, elaborado pelos Reitores de Universidades Federais Brasileiras pela reestruturação da Educação Superior no Brasil demonstrando a emergência em se «consagrar um novo paradigma de universidade: contemporâneo com os destinos do mundo; afinado com o espírito de época; comprometido com as necessidades do desenvolvimento nacional e socialmente inclusivo» (MANIFESTO, 2006, p. 5). Este documento ratifica os argumentos apresentados pelo REUNI e aparece reproduzido no Projeto da Universidade Nova como princípios, orientações e encaminhamentos para o enfrentamento da questão em nome de uma nova universidade.

Expõem as deficiências postas na atualidade para as universidades que vão desde aos equívocos presentes nas diversas interpretações da sua função social, passando pelos efeitos nefastos do modelo tradicional vigente com paradigmas superados até a necessidade de vivificar a autonomia universitária. Ratificam fundamentos para a educação universitária dentre eles a articulação entre ensino pesquisa e extensão, por meio da inovação, do desenvolvimento científico e tecnólogico. E indicam estratégias no processo de reforma com destaque para a flexibilização e racionalização da formação profissional por meio da revisão dos currículos e projetos acadêmicos e, igualmente, facultar aos estudantes experiências interdisciplinares, formação humanistica, estímulo à criativade e capacidade crítica. Dada as suas características, é possivel afirmar que o Projeto Universidade Nova tem um referencial histórico que se reporta à década de 1930 quando se levantou debates sobre uma nova concepção de universidade tendo, na liderança, Anísio Teixeira. Citado por Almeida Filho e Santos (2008), o projeto da Universidade Nova se inspira conceitualmente em Anísio Teixeira na medida em que para ele, a escola pública era “a máquina que prepara as democracias” e o lugar em que o diálogo e a participação no processo educacional são pressupostos fundamentais. O mesmo autor apresenta argumentos a partir de trechos retirados do projeto de lei que institui a Universidade de Brasilia - UNB, como possíveis elementos conceituais que convergem integralmente com a proposta da Universidade Nova: a formação universitária

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numa perspectiva de unidade orgânica, aliada a uma preparação científica e cutural que antecede seu ingresso nos cursos profissionalizantes em órgãos universitários que não pertencem a nenhuma faculdade, mas ao contrário, servem a todas elas. Além disso, a possibilidade de articulação entre os bacharelados, a educação superior com estrutura modular por ciclos de formação, tendo uma etapa inicial na formação universitária de caráter geral, são elementos de similitude com as propostas anisianas para a UNB. Ao citar articulação dos saberes, relação espaço-tempo, hiperconectividade, pensamento complexo, multi-inter-trandisciplinaridade, paradigmas alternativos de formação como «valores filosóficos, metodológicos e pedagógicos da contemporaneidade», Almeida Filho e Santos (2008, p. 247) trazem outro aporte teórico-conceitual para a idealização da Universidade Nova: Milton Santos e a Geografia Nova. Tanto nesta proposta quanto na anisiana, a formação universitária em questão defende e prioriza a emancipação crítica de sujeitos e saberes a partir do reconhecimento desses valores em detrimento de qualquer forma de dominação. E, com esse discurso, compromete-se a ultrapassar os pressupostos herdados dos modelos das clássicas escolas superiores que evidenciam contradições epstemológicas quanto à função da universidade eliminando distorções a ela inerentes em nome da emancipação pedagógica, curricular e, especialmente, política da universidade pública contemporânea.

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A inspiração para este projeto de universidade também parte de análises outras no âmbito sócio-econômico e político tanto nacionalmente quanto internacionalmente os quais uma proposta dessa envergadura deve se lembrar. Como dizem, «precisamos avaliar as opções históricas possíveis neste momento, posto que os blocos político-econômicos já se definem, p. NAFTA, ALCA, União Europeia, novos atores como Mercosul, novas propostas como G-4 (Brasil, África do Sul, Índia e China) » (ALMEIDA FILHO E SANTOS, 2008, p. 178). E ao tempo em que esses blocos são definidos, são demarcados espaços de predomínio de saberes no âmbito da educação superior e da produção cultural. Algumas pistas indicam que esse projeto também se inspirou em mais dois referenciais considerados por Almeida Filho (2008, p. 143) como «modelos de arquitetura curricular vigentes no mundo contemporâneo»: o modelo europeu unificado pelo processo de Bolonha – o MUE e o modelo norte-americano de college mais graduate schools – o MNA embora o mesmo autor reitere que a universidade Nova é livre de qualquer estratégia que a ponha em condição de submissão à internacionalização. De fato, é possível perceber semelhanças quanto, por exemplo, à estrutura acadêmica e à organização dos níveis de ensino em ciclos. Tanto Bolonha quanto o projeto da Universidade Nova, propõem que os estudantes passem por etapas de escolaridade superior considerados ciclos priorizando, no seu primeiro momento, estudos gerais. A compreensão da universidade enquanto espaço privilegiado para uma formação profissional mais


humanística e cultural, a conexão em distintas áreas e níveis de estudos, bem como a flexibilidade e mobilidade docente e discente, tratam-se de princípios políticos e conceituais que também aproximam aos ideais do Protocolo de Bolonha. Outra similaridade presente é o foco na empregabilidade, condição natural uma vez que fica demarcada cada vez mais a condição da universidade atender ao mercado de trabalho. Catani, Lima e Azevedo (2008, p. 27), trazem de modo crítico a compreensão de que «ao que tudo indica, o Brasil aprecia e admira as novidades europeias, embora se deixe levar pela força gravitacional dos EUA» ao adotarem o modelo americano para os BI sem, entretanto, a devida estrutura acadêmica e tecnológica que o mercado de trabalho exige das universidades. Mesmo assim o projeto se constitui e, para a garantia da modularização da interdisciplinaridade, da progressão e da flexibilidade com vistas a assegurar a mobilidade intra e interinstitucional, é proposta uma estrutura curricular para o padrão Universidade Nova. A estrutura do Programa Universidade Nova tem como fundamental mudança a implantação do regime de três ciclos de educação universitária reorientando, desse modo, a trajetória acadêmica dos estudantes que, ao ingressarem na universidade através do ENEM/Sisu, passam por três fases distintas, se assim desejarem «Primeiro Ciclo: Bacharelados Interdisciplinares (BI), propiciando formação universitária geral, como pré-requisito para progressão aos ciclos seguintes; Segundo Ciclo: Formação profissional em licenciaturas ou carreiras específicas; Terceiro Ciclo: Formação acadêmica, científica ou artística, de

pós-graduação» (ALMEIDA FILHO & SANTOS, 2008, p.200). O Bacharelado Interdisciplinar – BI trata-se de um curso com terminalidade própria quando, então, o estudante poderá optar, após sua conclusão ou por avançar seus estudos partindo para o terceiro ciclo ou até mesmo encerrando sua cadeira de estudos neste primeiro ciclo e seguindo para o mercado de trabalho com uma formação em bacharel interdisciplinar em determinada área de conhecimento. Em síntese, essa proposta sugere mudanças na forma de ingresso dos estudantes nas universidades federais, na composição, ordenamento e dinâmica curricular das graduações além da mobilidade acadêmica e interface com os diversos niveis: graduação e pós-graduação e respectivas modalidades. Estas mundanças passam a se concretizar, pouco a pouco com o reordenamento do currículo dos cursos profissionais e da pós-graduação; com a institucionalização dos Bacharelados Interdisciplinares nas universidades federais e com as novas possibilidades de processo seletivo. Parece oportuno, antes de proceder ao estudo dos referenciais, destacar dois aspectos que nos levam a compreender que os BI estão circunscritos com especial relevo no movimento de reforma acadêmica proposto pelo REUNI. O primeiro trata-se de que este Programa induziu as «IFES a realizarem reestruturações da arquitetura acadêmica a fim de melhorar o processo formativo na graduação» (BRASIL, 2010, p. 2) e, a partir de então, propostas mais amplas de reordenamento

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curricular passam a compor a agenda dos debates na Educação Superior. O outro aspecto consiste na defesa de que uma nova dinâmica social nos processos de produção e circulação do conhecimento tem reclamado por novas formas de profissionalização, novos modelos universitários reiterando a urgência em superar a visão fragmentadora do conhecimento sob a qual a atual arquitetura curricular das nossas graduações encontra-se acomodadas. Os Bacharelados Interdisciplinares são «programas de formação em nível de graduação de natureza geral, que conduzem a diploma, organizados por grandes áreas do conhecimento» (BRASIL, 2010, p. 24) e se caracterizam por uma trajetória formativa altamente flexivel quanto à composição curricular, baseada na interdisciplinaridade e mobilidade intra e interinstitucional. Constituem-se assim, como a etapa inicial dos estudos superiores quando serão desenvolvidas competências e habilidades voltadas para a autogestão da aprendizagem ao longo da vida atribuindo ao estudante plena autonomia. É possivel perceber a concretização da dessas orientações em três contextos distintos: o primeiro, na organização de atuais cursos de BI em áreas de concentração próximas a essas orientadas, a saber: Artes, Ciência e Tecnologia e Humanidades; o segundo, nas múltiplas oportunidades de experiências dos estudantes no cotidiano pedagógico; e o terceiro, na diplomação nas respectivas grandes áreas.

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Diante dessa caracterização é possivel

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reconhecer duas perspectivas de caráter, inegavelmente, interdisciplinar, nos anos inicais do estudante da educação superior. Uma delas trata-se do investimento à formação geral alicerçado na multiplicidade cultural das mais variadas áreas, quer seja artística, científica, cultural ou tecnológica, ao tempo em que o aluno vai se reconhecendo diante do leque de possibilidades e ofertas de formação profissional na educação superior. A outra, na intenção pedagógica que investe na postura flexível do estudante voltado para o desenvolvimento e a vivência de práticas complexas consolidando uma formação baseada na interdisciplinaridade. Tendo em vista essa intenção é fundamental que a comunidade universitária tenha espaço e tempo adequados para atualizar constantemente as práticas educativas. É então esperado que este profissional mobilize, com flexibilidade, conhecimentos, competências e habilidades gerais e específicas para responder às determinações do mundo do trabalho. Isto nos faz lembrar dos conceitos e práticas da interdisciplinaridade na dimensão interacional em que a comunicação de ideias, o intercâmbio e o desenvolvimento do pensamento sistêmico promovem, de certo modo, a flexibilidade. Pelo conjunto de competências que desenham o perfil profissional de um bacharel interdisciplinar, parece-nos existir mais um fio que une a proposta da Universidade Nova e dos Bacharelados Interdisciplinares à Declaração de Bolonha. É que tais competências derivam das originárias competências presentes no Projeto Alfa Tuning para a América Latina que, por sua vez, se inspira no Projeto Tuning do Processo Europeu de Bolonha. Almeida Fi-


lho e Santos (2008) admitem ainda que essa iniciativa teve como principal finalidade estrear formas de interação com as 62 (sessenta e duas) universidades latino-americanas que participaram desse projeto – e também com universidades brasileiras – contribuindo para o desenvolvimento da qualidade por um lado e por outro, detectando competências relacionadas às profissões.

Este Projeto também introduziu o conceito de Área de Concentração (AC) como campos de formação ou campos do conhecimento multi ou interdisciplinares que se constituem de componentes, parte optativos e parte obrigatórios. Estas áreas são organizadas a partir de um conjunto coerente de estudos teóricos e aplicados que contribui para superar um perfil acadêmico encerrado em si mesmo.

Em respeito às variações das estruturas e práticas de ensino, os referenciais nacionais declaram que cada instituição deve apresentar sua proposta preservando, naturalmente, elementos que garantam a interdisciplinaridade uma vez que este é o traço marcante dos BI. A diversidade na organização curricular deve estar presente nos projetos pedagógicos uma vez que se constituem ferramentas de consulta para que a comunidade projete esses ideais na prática.

Como resultado, a titulação se fará com a especificidade escolhida pelo estudante como: Bacharel em Ciência e Tecnologia, Área de Concentração em Ciências da Matéria, ou Bacharel em Saúde, Área de Concentração em Saúde Coletiva e assim sucessivamente.

Daqui em diante, cabe destacar que Almeida Filho (2008) apresenta as configurações dos Bacharelados Interdisciplinares como sendo pertencentes ao Projeto UFBA Nova. Então, é bom que se esclareça que o modelo ora proposto se definiu como um ponto de partida para que outras universidades consubstanciassem, do seu modo, os ideais preconizados de universidade neste novo século. O curso tem duração prevista para integralizar os estudos em três anos como carga horária mínima de 2.400 horas. As modalidades previstas no Projeto UFBA Nova abrangem quatro grandes áreas do conhecimento: Artes, Humanidades, Ciência e Tecnologia e Saúde.

Almeida Filho e Santos (2008, p. 202) destacam que os conceitos de Bloco e Eixos curriculares são a base estrutural do currículo «definidos como conjunto de módulos (cursos, disciplinas, atividades, programas, trabalhos orientados) ofertados aos alunos durante o período letivo». A Formação Geral integraliza-se com uma carga horária mínima de 600 (seiscentas) horas – 25% do total dos três anos - e compõe-se de três eixos – Eixo EL: das Linguagens (formação paralela e sequencial durante todo o programa) e Eixo ET: Interdisciplinar Temático (composto por dois blocos: Estudos sobre a Contemporaneidade e Formação nas Três Culturas) e Eixo EI: Orientação profissional ou Integrador (sequência de módulos, blocos ou atividades de integração que articulem múltiplos conteúdos). Os primeiros registros de BI no Brasil datam de quase dez anos. A Universidade

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Federal do Grande ABC – UFABC já vinha protagonizando o movimento de implantação de ciclos e bacharelados interdisciplinares antes mesmo da formalização da Universidade Nova e também da implantação dos referenciais orientadores, em 2008. Neste modelo, a prática da universidade, sobretudo o ensino e a pesquisa, bem como a organização curricular dos cursos de graduação e pós-graduação se fundamentam na interdisciplinaridade. Seu projeto dispõe de um currículo por áreas do conhecimento com vistas tanto à possibilidade de ser tornarem referência acadêmica quanto à possibilidade de uma educação integral como princípio a ser seguido. Atualmente, a UFABC encontra-se com dois campi – Santo André e São Bernardo do Campo contabilizando, em agosto de 2015, 12.433 alunos matriculados. Destes, 9.201 encontram-se distribuidos entre os três bacharelados interdisciplinares que oferta. Estes números conseguem traduzir os resultados positivos do projeto e a capacidade de alcance da universidade. Em 2008, a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) propõe o BI em Ciências da Saúde e, no ano seguinte, em Energia e Sustentabilidade; A Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA) implanta o BI em Ciência e Tecnologia e a Universidade Federal de Alfenas conta com Ciência e Economia. A Universidade Federal da Bahia e a Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) implantam em 2009 os Bacharelados Interdisciplinares, respectivamente, em Humanidades, Ciência e Tecnologia, Saúde e Artes e o segundo, em Humanidades e Ciência e Tecnologia. Em 2010, a Universida-

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de Federal de Juiz de Fora (UFJF) lança o BI em Ciências Humanas e outro em Artes e Design. Em 2011, a Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) implanta sete Bacharelados Interdisciplinares: Etno Desenvolvimento; Gestão Ambiental; Ciências e Tecnologia das Águas; Ciências Biológicas; Tecnologia da Informação; Ciências da Terra; Ciências e Tecnologia. Em 2012, chega a vez da Universidade Federal de São João Del Rey (UFSJ) implantar o BI em Biossistemas. Em 2013, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) propõe o BI em Mobilidade. Registros recentes publicados na base de dados do Ministério de Educação – MEC anunciam que, das instituições superiores existentes nos 27 estados brasileiros, 53 em 16 estados cadastraram curso Interdisciplinar nas mais variadas modalidades. O gráfico seguinte revela esta distribuição entre as cinco regiões do Brasil.

Fonte: Elaborado pelas autoras, dados do E-Mec, 2015.

A partir deste gráfico, é possível reconhecer uma maior concentração destes cursos nas regiões Sudeste, Norte e Nordeste do país. Entretanto, nestas regiões, três estados centralizam a oferta de acordo com o E-Mec: a Bahia com 37% dos cursos, o Pará com 12,5% e


Minas Gerais com 10,5%, ou seja, mais de 50% dos cursos ofertados em todo o Brasil estão concentrados nestes três estados. No conjunto dos 105 cursos cadastrados, quanto ao grau, contabilizam-se 60 (sessenta) bacharelados, 44 (quarenta e quatro) licenciaturas e 01 sequencial, totalizando 105 cursos de BI cadastrados. Neste total, distintas áreas de concentração – em torno de 30 (trinta) - os organizam, com destaque para as Ciências e Tecnologia - e seus desdobramentos -, Educação do Campo, Artes, Saúde e Humanidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo deste artigo buscamos apresentar a linha do tempo da trajetória da educação superior brasileira, sobretudo das universidades desde suas principais heranças até os modelos mais recentes. Em seguida, observamos a conjuntura da educação superior no século XXI quanto à sua classificação, estrutura e princípios quando adentramos na proposta da Universidade Nova/UFBA Nova percebendo as singularidades de caráter inovador que a contorna. Em se tratando disso, cuidamos de compreender em especial, os Bacharelados Interdisciplinares enquanto proposta de reordenamento acadêmico, a partir de seus fundamentos, orientações práticas, competências profissionais, estrutura e desenho curricular. No que concerne à trajetória das universidades brasileiras percebemos que, mesmo sendo muito jovem, é marcada por momentos bem distintos conforme o contexto político, social – tanto nacional como inter-

nacional – de cada época. Com seu surgimento datando meados de 1920, ou seja, ainda sequer completamos 100 anos de existência, justifica-se (talvez) os desafios percebidos da universidade atual em se adaptar ao novo, por carregar heranças emblemáticas de escolas humboldtianas, napoleônicas e americanas. Novos tempos estabelecem novas conjunturas e o discurso para uma universidade para o século XXI se traduz na Universidade Nova com um «mescla tímida dos modelos existentes nos EUA e do Processo de Bolonha» (Catani, Lima & Azevedo, 2008, p. 20) destacando repetidamente: indissociabilidade entre ensino pesquisa e extensão, autonomia, flexibilidade, expansão, democratização, função social, autoformação, aprendizagem em redes, mobilidade. Estas expressões traduzem uma fase do Brasil que se mostra politicamente exausto de opressão e, sobretudo, silenciamento que os anos anteriores lhe marcou. Almeja pela emancipação crítica de sujeitos e saberes em detrimento de qualquer forma de dominação a partir do reconhecimento de valores filosóficos como hiperconectividade, pensamento complexo, multi-inter-transdisciplinaridade, paradigmas alternativos de formação, nos quais os Bacharelados Interdisciplinares ocupam parte nesse lugar com caráter inovador. Acrescentando a toda essa discussão, parece-nos óbvio que os debates relativos à internacionalização da educação superior brasileira, a submissão aos países signatários do Processo de Bolonha ou aos modelos de escolas superiores norte-americanas situam-se em zonas periféricas quando se trata de uma problemática nuclear sobre a universidade

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como um lugar privilegiado para a defesa de um projeto nacional neste século XXI e que, portanto, deve ter e oferecer condições para que a comunidade nela inserida possa agir de acordo com seus interesses e na busca da consecução de projetos defendidos em lutas históricas.

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Doutora em Educação, professora adjunta da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UFRB luizaramos.ufrb@gmail.com) 1

Doutora em Educação, professora adjunta da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB rosildaarruda@gmail.com 2

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PENSAMENTO NEGRO E EDUCAÇÃO INTERCULTURAL NO BRASIL SILVA, Claudilene1 SANTIAGO, Eliete2

Resumo A despeito de a população negra constituir a maioria da população brasileira, o desejo de branqueamento do Brasil ainda invisibiliza essa população em diversos campos da sociedade, inclusive na educação. Entretanto, autoras/es referenciais no campo da pesquisa sobre Educação e Relações Raciais defendem que a população negra no Brasil sempre se preocupou com a educação de suas crianças e adolescentes expressando suas concepções e orientações. Indagamos se é possível reconhecer nas experiências educacionais negras elementos constitutivos de uma pedagogia decolonial e se práticas educativas vivenciadas por esses movimentos podem ser consideradas na gênese da luta por uma educação intercultural no Brasil. Para avançar com essas questões, utilizamo-nos de um estudo bibliográfico, e os resultados apontam que o pensamento negro em educação no Brasil dialoga com conceitos fundamentais da educação intercultural. Sua trajetória evidencia a existência de uma constante tensão entre a manutenção da lógica eurocêntrica e a proposição epistêmica dos descendentes de africanos no Brasil. Pensamento Negro. Pensamento decolonial. Educação. Interculturalidade. Resumen A pesar de que la población negra constituye la mayoría de la población brasilera, el deseo de blanqueamiento del Brasil todavia invisibiliza esa población en diversos campos de la sociedad, inclusive en la educación. Entretanto, autoras/es referenciales en elcampo de la investigación sobre Educación y Relaciones Raciales, defienden que la población negra en Brasil siempre se preocupó con la educación de sus niños y adolescentes expresando sus concepciones y orientaciones. Indagamos si es posible recontocer en las experiencias educativas negras elementos constitutivos de una pedagogia decolonial, si prácticas educativas vivenciadas por esos movimientos pueden ser consideradas en la génesis de la lucha por una educación intercultural en Brasil. Para avanzar en esos asuntos, nos servimos de um estudio bibliográfico, y los resultados apuntan a que el pensamiento negro en la educación en Brasil dialoga com conceptos fundamentales de la educación intercultural. Su trayectoria evidencia la existencia de una constante tensión entre el mantenimiento de la lógica eurocéntrica y la proposición epistémica de los descendientes de africanos en Brasil. Pensamiento negro. Pensamiento Decolonial. Educación. Interculturalidad.

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Introdução O Brasil é o segundo país do mundo em população negra, ficando atrás apenas da Nigéria, no continente africano. A despeito de a população negra constituir a maioria da população brasileira, o desejo de branqueamento do Brasil ainda invisibiliza essa população em diversos campos da sociedade, inclusive na educação. Ao mesmo tempo, existe um movimento contrário que busca visibilizar os descendentes de africanos no Brasil, suas formas de existência, organização e inserção cultural, política, social e educacional. No campo da pesquisa científica, é somente a partir dos últimos 30 anos que a população negra começa a passar de objeto a sujeito de investigação3 . Todavia, existe uma vasta produção cultural e intelectual de autoria dos mais variados grupos sociais de maioria negra que foi desconsiderada ao longo da história do Brasil, mas que começa a ganhar força na atualidade. Do ponto de vista teórico e epistemológico, afirma Cunha Jr. (2006) que os pesquisadores/as negros/ as interessados em temas específicos da população negra podem ser agrupados em três tendências conceituais: aqueles/as que se abrigaram nos conceitos werberiano e americanos de raça e raça social; aqueles/as que seguiram a tendência nacional de uma tentativa de composição entre raça social e classe social; e aqueles/as que estavam procurando a produção de um conhecimento de ruptura com a hegemonia do pensamento eurocêntrico. A perspectiva epistêmica dos estudos pós-coloniais latino-americanos tem se mos-

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trado para uma parcela de pesquisadoras/es que compõem esse terceiro grupo como uma possibilidade de fundamentação de suas pesquisas, uma vez que o pensamento decolonial deseja fundar um pensamento “outro” (WALSH, 2008) que afirme a necessidade de mudar não só as relações, mas também as estruturas, condições e dispositivos de poder que mantêm a desigualdade, inferiorização, racialização e discriminação, inclusive no âmbito educacional. Autoras e autores referenciais no campo da pesquisa sobre Educação e Relações Raciais defendem que a população de origem africana, relegada à exclusão ou semi-incluída no sistema público educacional, criou suas próprias formas e espaços de educação e escolarização, ao mesmo tempo em que protagonizou e continua a ser protagonista das lutas travadas na construção de políticas educacionais que garantam a inserção qualificada dessa população nos sistemas públicos de ensino. Diante dessa realidade, indagamos se é possível reconhecer nas experiências educacionais negras elementos constitutivos de uma pedagogia decolonial. E, ainda, se práticas educativas vivenciadas por esses movimentos podem ser consideradas na gênese da luta por uma educação intercultural no Brasil. Para avançar com essas questões, utilizamo-nos de um estudo bibliográfico por meio do qual buscamos construir um mapa de leitura das trajetórias históricas e experiências educativas vivenciadas pela população negra no Brasil, a partir das quais compreendemos que se instituiu e consolidou o que chamamos de um pensamento negro


em educação, evidenciando aspectos teóricos que se aproximam das bases conceituais dos estudos pós-coloniais latino-americanos. O estudo centrou-se em duas fontes: textos referenciais escritos ou organizados por pesquisadoras e pesquisadores reconhecidos no âmbito da pesquisa sobre Educação e Relações Raciais no Brasil, tais como Petronilha Gonçalves e Silva, Luiz Alberto Gonçalves, Nilma Gomes, Cunha Júnior e Jeruse Romão, entre outros; e o relatório do VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste do Brasil, que ocorreu no Recife no ano de 1988. As leituras sobre os estudos pós-coloniais latino-americanos foram aprofundadas a partir de textos de pesquisadores/as que compõem e rede modernidade/colonialidade, Anibal Quijano, Walter Mignolo, Maldonato-Torres e Catarine Walsh, entre outros/ as. Organizamos o texto em três partes: inicialmente, discutimos aspectos conceituais sobre a interculturalidade no pensamento decolonial; em seguida, abordamos a trajetória histórica de constituição do pensamento negro em educação; e, por fim, tentamos identificar aproximações e distanciamentos entre as experiências educativas dos movimentos negros no Brasil e as proposições conceituais do pensamento decolonial.

A INTERCULTURALIDADE NO PENSAMENTO DECOLONIAL

O pensamento decolonial da vertente

latino-americana é marcadamente fundamentado nas ideias desenvolvidas por intelectuais integrantes do Movimento da Negritude4 como Aimé Césaire, Amílcar Cabral e Frantz Fanon, entre outros, apresentadas em trabalhos que datam da segunda metade do século XX, tais como: a raça como elemento estrutural na hierarquização dos povos; a desumanização dos colonizados, que são transformados em “coisa”; a relevância da descolonização das mentes no processo de descolonização territorial; a necessidade de o colonizado desaprender para reaprender a sua própria humanidade. Algumas dessas ideias também estão presentes no pensamento do educador brasileiro Paulo Freire, que tem contribuído de forma significativa para a construção de uma educação humanizadora cuja produção tem referenciado nossos estudos. No início do século XXI, tais ideias foram minuciosamente sistematizadas, aprofundadas e enriquecidas por intelectuais latino-americanos como Anibal Quijano, Walter Mignolo, Maldonato-Torres, Ramón Grosfoguel e Enrique Durcel, entre outros, e pela norte-americana Catarine Walsh, para constituir a teoria dos estudos pós-coloniais latino-americanos. Esses e outros intelectuais constituem o Grupo de Pesquisa Modernidade/Colonialidade que se reuniu pela primeira vez no início dos anos 2000, passando a atuar como uma rede de investigação e difusão de seus enfoques sobre as heranças coloniais na América Latina, considerando como eixo articulador o binômio modernidade/colonialidade (CASTRO-GOMES & GROSFOGUEL, 2007).

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A abordagem teórica, profundamente enraizada na dimensão do locus de enunciação - “o lugar geopolítico e corpo-político do sujeito que fala” (GROSFOGUEL, 2010 p. 459) -, possui como questão central o desvelamento da articulação entre modernidade/ colonialidade e suas implicações na organização da dominação eurocentrada. O Pensamento Decolonial – como eixo de luta e ferramenta de análise – aponta e quer transformar a matriz colonial presente em todos os países da América do Sul, que estruturou e mantém as relações de poder no Estado-Nação por meio do binômio colonialismo/colonialidade. Afirma Maldonato-Torre (2007 p. 131) que, “embora o colonialismo preceda a colonialidade, a colonialidade sobrevive ao colonialismo”. Conforme aponta Anibal Quijano (2007, p. 93), “a colonialidade é um dos elementos constitutivos do padrão mundial do poder capitalista”. Diz respeito à distribuição do controle do poder mundial, que segundo o autor obedeceu a uma lógica de classificação e hierarquização baseada no eurocentrismo, que associou raça e divisão do trabalho para configurar um novo padrão mundial de controle do trabalho e, portanto, um novo padrão de poder que tomou a categoria raça como seu eixo articulador, revelando uma divisão racista do trabalho. A colonialidade refere-se, portanto, à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si por meio do mercado capitalista mundial e da ideia de raça (MALDONATO-TORRE, 2007), expressando-se

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mediante quatro dimensões: a colonialidade do poder, a colonialidade do saber, a colonialidade do ser e a colonialidade da mãe natureza. Para Oliveira (2011), o conceito de colonialidade do ser abarca e explicita todos os outros. Refere-se à invenção e inculcação da não-existência dos povos subalternizados, configurando uma dominação psíquica, nos termos de Fanon (2005, p. 61), “um combate de retaguarda no terreno da cultura, dos valores, das técnicas, etc.”. Por isso, acredita o autor, “a descolonização é verdadeiramente a criação de homens novos. Mas essa criação não recebe a sua legitimidade de nenhuma potência sobrenatural: a “coisa” colonizada se torna homem no processo mesmo pelo qual ela se liberta” (idem p. 53). Para os pós-colonialistas latino-americanos, essa lógica de hierarquização e racialização eurocêntrica materializada na constituição dos Estados-Nação, transformou uma experiência local em padrão universal, negando e invisibilizando todas as outras culturas e formas de existência. Entretanto, por mais que sejam negadas e invisibilizadas as experiências não- ocidentais não deixaram de existir em função da universalização da experiência europeia. Na realidade contemporânea, os modos de vida e de existência não- europeus passam a ganhar relevância no processo de desconstrução de uma história única. De modo que o diálogo e as relações entre as culturas alcançam um lugar de destaque nesse processo. Como afirma Boaventura de Souza Santos (2011 p. 1), “o mundo diversificou-se, e a diversidade instalou-se no interior de cada país. A compreensão do mundo é muito


mais ampla que a compreensão ocidental do mundo; não há internacionalismo sem interculturalismo”. Visibilizando os limites das perspectivas teóricas eurocêntricas, os estudos pós-colonialistas latino-americanos apontam para a necessidade de partirmos das experiências dos povos ancestrais para fundarmos um pensamento “outro”5 e construirmos um mundo “outro”, nos quais exista a possibilidade de diálogo entre culturas. De acordo com Vera Candau e Kelly Russo (2010), o termo interculturalidade surge na América Latina, no contexto educacional, e precisamente, com referência à educação escolar indígena, embora outros grupos tenham participado do processo de ampliação do debate sobre interculturalismo e educação. Segundo as autoras, a despeito de os grupos dos movimentos negros no continente se caracterizarem pela resistência e por suas lutas contra o racismo, portanto pelo reconhecimento de suas identidades culturais, “foi difícil encontrar na produção bibliográfica latino-americana sobre a educação intercultural referências às contribuições dos grupos e movimentos negros”. (CANDAU e RUSSO, 2010 p. 158). Contudo, no contexto brasileiro, Luiz Alberto Gonçalves e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2004) discutem as experiências da educação indígena e as experiências da educação de jovens e crianças negras, como movimentos por uma educação multiculturalista. E embora guardem profundas diferenças entre si, os termos interculturalidade e multiculturalidade têm sido utilizados, em

alguns contextos, como sinônimos para fazer referência à existência de múltiplas culturas em um determinado lugar, defendendo seu reconhecimento, convivência e respeito. Afirmam esses autores que as primeiras iniciativas dos negros brasileiros para discutir questões referentes à pluralidade étnica, do país, data do final dos anos 40 do século XX. Considerando a trajetória de surgimento das escolas bilíngues para a população indígena (a partir das primeiras décadas do referido século), Candau e Russo (2010) afirmam que “diferentes línguas foram o passo inicial para a proposição de um diálogo entre diferentes culturas” (p. 158). Entretanto, ao analisarmos as proposições de autores afiliados aos estudos pós-coloniais latino-americanos é possível afirmar que, para o Pensamento Decolonial, o diálogo entre culturas, a interculturalidade, não diz respeito apenas ao convívio ou à comunicação entre diferentes grupos. É algo mais complexo, mais profundo e mais transformador, porque está para além do respeito, da tolerância e do reconhecimento da diversidade, como veremos na continuação do texto. Catherine Walsh (2010), considerou a variedade de contextos e interesses, nos quais se tem usado o termo interculturalidade para afirmar que podemos explicar esse termo a partir de três perspectivas. A autora chama de interculturalidade relacional “o contato e intercâmbio entre culturas, quer dizer, entre pessoas, práticas, saberes, valores e tradições culturais distintas, que podem se dar em condições de igualdade ou desigualdade6 ” (WALSH, 2010 p. 77); considera a proposição do filósofo peruano Fidel Tubino para denominar como interculturalidade

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funcional “o reconhecimento das diversidades e das diferenças culturais, com o objetivo da inclusão destas no interior das estruturas sociais já estabelecidas7 ” (idem). Para a autora, essa perspectiva é funcional à lógica do modelo neoliberal existente, porque busca promover o diálogo, a convivência e a tolerância, mas não questiona as causas das desigualdades sociais e culturais, não modifica as estruturas de poder. Por isso, vários autores têm se referido a essa perspectiva como “a nova lógica multicultural do capitalismo global”. Por fim, Walsh define e assume a interculturalidade crítica como sendo “o reconhecimento de que a diferença se constrói dentro de uma estrutura e matriz colonial de poder racializado e hierarquizado, com os brancos e “branqueados” em cima e os povos indígenas e afrodescendentes nos degraus inferiores8 ” (WALSH, 2010 p. 78). Afirma a autora que a interculturalidade crítica ainda não existe, é algo por construir. É compreendida como estratégia, ação e processo permanentes de relação e negociação entre, em condições de respeito, legitimidade, simetria, equidade e igualdade. É assumida como um projeto político, social, ético e epistêmico, que afirma a necessidade de mudar não só as relações, mas também as estruturas, condições e dispositivos de poder que mantém a desigualdade, inferiorização, racialização e descriminalização, inclusive no âmbito educacional. Walsh (2009) explica ainda que o conceito de interculturalidade está intimamente ligado ao conceito de plurinacionalidade. Baseando-se na noção de ambiguidade funda-

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cional, a autora nos leva a compreender que todos os Estados-Nação da América do Sul foram fundados como Estados que possuem caráter uninacional e natureza monocultural (negando e invisibilizando outros povos e culturas, enquanto afirmavam o ideário europeu/ocidental), embora concretamente sejam constituídos por povos e culturas distintas. O discurso da mestiçagem (utilizado de múltiplas formas nos diversos países da América Latina) gerou uma noção abstrata de inclusão, mas uma prática concreta de exclusão. E a lógica multicultural atua hoje no sentido de reconhecer e incluir a diversidade cultural, porém mantendo a estrutura do Estado-Nação. Para Walsh, é por isso que em muitos momentos se utilizam os termos multiculturalidade, pluriculturalidade e interculturalidade (inclusive de forma oficial) como se eles fossem sinônimos. A autora refere-se a esse processo como uma recolonialidade: “No capitalismo global da atualidade, opera uma lógica multicultural que incorpora a diferença, na medida em que a neutraliza e a esvazia de seu significado efetivo9 ” (WALSH, 2009 p.132). Assim, a plurinacionalidade seria o eixo do projeto intercultural que trata da transformação da matriz colonial a partir da transformação do Estado-Nação (uninacional, colonial e excludente) para um Estado Plurinacional construído a partir das diferenças ancestrais. A plurinacionalidade e a interculturalidade são projetos decoloniais que se propõem, portanto, a fundar um pensamento “outro”, ao reconceituar e refundar estruturas sociais, epistêmicas e de existências que


põem em cena e em relação equitativa lógicas, práticas e modos culturais diversos de pensar, atuar e viver. Nas palavras de Walter Mignolo (2008), a opção decolonial é imaginar um mundo no qual muitos mundos podem existir em conjunto. Assim, a opção decolonial significa entre, outras coisas, aprender a desaprender para poder aprender novamente de outra forma. Segundo Walsh (2009, p. 140), Como projeto político, social, epistêmico e ético, a interculturalidade crítica expressa e exige uma pedagogia e uma aposta e prática pedagógicas que retomam a diferença em termos relacionais, com seu vínculo histórico-político-social e de poder, para construir e afirmar processos, práticas e condições distintas. Dessa maneira, a pedagogia é entendida além do sistema educativo, do ensino e transmissão do saber. É também processo e prática sociopolíticos produtivos e transformadores, assentados nas realidades, subjetividades, histórias e lutas das pessoas que vivem num mundo regido pela estrutura colonial (tradução nossa). A essa pedagogia solicitada pela interculturalidade crítica a autora chamou pedagogia decolonial. Para ela, embora a pedagogia decolonial possua elementos comuns à pedagogia crítica anunciada por Paulo Freire a partir dos anos 1960, as pedagogias decoloniais incorporam a categoria raça como eixo articulador, como proposto por Frantz Fanon. E, dessa forma, sugere a autora que as pedagogias decoloniais são aquelas capazes de, cruzando essas duas vertentes contextuais do “pensar a partir da” condição ontológico-existencial-racializada dos colonizados

e do “pensar com” outros setores populares, fazer insurgir, reviver e reexistir. Dessa forma, a genealogia da pedagogia decolonial está nas lutas e práticas próprias dos povos ancestrais africanos e indígenas, que foram subalternizados na relação colonialismo/colonialidade e que, portanto, tiveram essas suas práticas, conhecimentos e formas de organização invisibilizadas. Isso não significa que elas não existissem, como é possível perceber no caso dos movimentos sociais negros brasileiros, foco deste trabalho.

PENSAMENTO NEGRO EM EDUCAÇÃO NO BRASIL: ACESSO, PRESENÇA E PERTENÇA DA POPULAÇÃO NEGRA À EDUCAÇÃO ESCOLARIZADA A população de origem africana no Brasil desde sempre expressou suas concepções e orientações, conforme apontam Petronilha Gonçalves e Silva e Lúcia Barbosa (1997), tendo em vista a educação de suas crianças e adolescentes dentro e fora dos processos formais de escolarização. Mariléia Cruz (2005, p. 21) afirma que o fato dos negros darem corpo a intervenções sociais no campo intelectual nos primeiros anos da Republica, por meio das organizações negras, da criação de escolas e da imprensa negra, sinaliza para a existência de processos de escolarização vivenciados pelos negros desde o período da escravidão. “A necessidade de ser liberto ou de usufruir a cidadania quando livre, tanto durante os períodos do Império quanto nos primeiros anos da

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República, aproximou as camadas negras da apropriação do saber escolar, nos moldes das exigências oficiais” (CRUZ, 2005, p. 27). A escolarização dessa população caracteriza-se, portanto, nesse primeiro momento, como luta por reconhecimento e inclusão social. A escola, como instituição moderna criada como espaço de disseminação do conhecimento, foi considerada um instrumento capaz de fazer ascender socialmente. Para a população negra, desprovida de bens materiais, esse espaço apresentou-se quase como a única oportunidade de conquistar algum prestígio social (SILVA, 2013). Ao olharmos para a trajetória de luta dos movimentos negros brasileiros pela educação escolarizada, é possível identificarmos três diferentes movimentos de aproximação e vivência da escolarização: a) escolarização como portal, b) escolarização como espelho e c) escolarização como enraizamento. No primeiro momento, a escolarização foi vista como um portal poderoso para a inclusão social e para o reconhecimento da população negra na sociedade brasileira. Embora encontrem-se evidências do acesso da população negra a escolas e outras instituições de instrução públicas já a partir da segunda metade do século XIX (CRUZ, 2005; ARANTES, 2005), esse segmento criou suas próprias escolas e empreendeu esforços diversos, desde o período do Império, que lhes garantiram a apropriação dos saberes formais exigidos socialmente. Mariléia Cruz apresenta alguns exemplos (2005, p. 28): o Colégio Perseverança ou Cesarino, fundado em Campinas (SP), em 1860; o Colégio São

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Benedito, também em Campinas (SP), em 1902; as aulas públicas oferecidas pela Irmandade de São Benedito, em São Luiz do Maranhão; a escola de Ferroviários de Santa Maria, no Rio Grande do Sul; e os cursos de alfabetização, primário e preparatório para o ginásio oferecidos pela Frente Negra Brasileira. Os estudos de Luz (2008) sobre a Sociedade dos Artistas, Mecânicos e Liberais de Pernambuco revelam que essa Associação promoveu um trabalho de profissionalização e instrução para operários jovens e adultos no Recife, na primeira metade do século XIX. Segundo o autor, o trabalho da associação “culminou na instalação do Liceu de Artes e Ofícios de Pernambuco, no final do mesmo século” (LUZ, 2008, p. 17). Essas iniciativas são indícios de que o movimento negro brasileiro sempre considerou a educação escolar como um portal poderoso para ascensão social de seu povo. Além de promover os seus próprios processos de escolarização, reivindicou e continua a reivindicar a inclusão da população negra na escola pública em todos os níveis de ensino. Entretanto, o acesso de camadas da população negra à escola, por meio da política de universalização do ensino, não resolveu o problema das desigualdades étnico-raciais na educação. Conforme chama a atenção Henriques (2001), a discrepância na escolaridade entre brancos e negros é em média de 2,3 anos de estudos. Essa desigualdade tem se mostrado intergeracional, pois é praticamente a mesma para um jovem hoje como foi para seus pais e avós. Do ponto de vista qualitativo, Paixão (2003) elenca alguns vetores de pro-


dução das desigualdades étnico-raciais no sistema de ensino brasileiro: a discriminação no espaço escolar, a imagem e a representação da população negra nos parâmetros curriculares e no material didático escolar e paraescolar e a importância da família na reprodução intergeracional das condições de vida e na confirmação ou superação das situações problemáticas vivenciadas no espaço escolar. No segundo movimento, a escolarização pode ser entendida como um espelho no qual a população negra se olha, mas não se vê, não se encontra nas imagens refletidas. Caracteriza-se como um momento de questionamento da negação e da invisibilidade da população negra no espaço escolar, seja nos conteúdos disciplinares, no material didático, nos murais das instituições escolares. A população negra passa a reivindicar a sua existência física e a exigir a sua presença no espaço escolar. Esse período é fortemente marcado pela denúncia da escola como espaço de produção e reprodução de práticas racistas e discriminatórias. O VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste realizado no Recife, em julho de 198810 , teve como preocupação central “questionar a negação da importância do negro na formação social brasileira, através dos meios oficiais de educação do país”11 . As proposições construídas apontam para a necessidade de introduzir o estudo da História da África nos currículos escolares; discutir o papel da professora e do professor na descolonização do ensino e considerar a aprendizagem pela prática cultural como elementos importantes para o sucesso do processo de

ensino/aprendizagem da população negra. Os blocos afros, em Salvador (BA), a partir dos anos de 1980, o Centro Maria da Conceição (1982) e o Grupo Cultural Daruê Malungo (1990), no Recife (PE), são exemplos de experiências educativas iniciadas nas décadas de 1980 e 1990, que se estruturam tomando a aprendizagem pela prática cultural como elemento fundante do processo de ensino e de aprendizagem. Embora objetivassem possibilitar o sucesso na educação escolar de crianças e jovens negros conforme o modelo oficial (ocidental/eurocêntrico), tais práticas são fundamentadas nas lutas, nas experiências e nos conhecimentos próprios dos povos de origem africana no Brasil, o que as aproxima daquilo que Walsh (2009) define como uma pedagogia decolonial. A aprendizagem pela prática cultural faz referência a uma educação que é assentada na cultura afro-brasileira e africana e toma como princípios orientadores a ancestralidade, a identidade e a resistência dos africanos e seus descendentes. Finalmente, o terceiro movimento é aquele que estamos buscando vivenciar na contemporaneidade. A escolarização como forma de enraizamento. É um momento revelador da heterogeneidade da escola e da necessidade de reconhecimento e acolhimento dessa heterogeneidade como elemento fundamental para o sucesso do processo de ensino-aprendizagem. Trata-se de um período de busca e apropriação das histórias e das subjetividades negadas, mas que não deixaram de existir. Momento no qual a centralidade da cultura ganha contornos nos processos educativos. A figura a seguir sintetiza as características dos três movimentos

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referidos:

Figura 01 – Movimentos de aproximação e vivência da população negra com a escolarização

Fonte: elaboração própria.

Na condição de movimentos de aproximação e vivência, vale destacar que não se trata de momentos lineares ou superados. Nas diversas realidades brasileiras, esses movimentos se entrecruzam, se distanciam e, em alguns contextos, coexistem simultaneamente. Gomes (1997), ao discutir a contribuição dos negros para o pensamento educacional brasileiro, conclui que o olhar do movimento negro para a educação trouxe, para além das reivindicações, problematizações teóricas e ênfases específicas que dão materialidade a um pensar sobre a educação, construído a partir do ponto de vista do povo negro. A autora sistematiza essa contribuição em 05 aspectos: 1) a denúncia de que a escola reproduz e repete o racismo presente na sociedade; 2) a ênfase na história de luta e resistência do povo negro; 3) a afirmação da existência de uma produção cultural realizada pelos negros, com uma história ancestral que nos remete à nossa origem africana; 4) a consideração de que existem diferentes identidades no espaço escolar; e 5) a denúncia de que a estrutura excludente da escola precisa

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ser reconstruída para garantir o acesso à educação, a permanência e o êxito dos alunos de diferentes pertencimentos étnico-raciais e níveis socioeconômicos. A partir das reivindicações de acesso da população negra à instituição escolar e da inclusão da história e cultura afro-brasileira nos currículos escolares, os movimentos negros brasileiros problematizaram a existência de valores e práticas discriminatórias na escola, principalmente quando essa instituição nega a existência da diferença em seus domínios. Revelou a heterogeneidade da escola e enfatizou a história de luta e resistência da população negra (uma vez que a escola apenas oferecia a história de sua escravidão) e a centralidade da cultura nos processos educacionais do povo negro. Configurou dessa forma um pensamento sobre a educação constituído a partir de suas práticas e vivências educacionais construídas, na maioria das vezes, alternativamente aos processos de educação formal (SILVA, 2013). O pensamento negro em educação no Brasil trata-se, portanto, de um conjunto de ideias e práticas educativas que foram sendo construídas a partir das experiências vivenciadas por ativistas e/ou organizações do movimento negro brasileiro, com a intenção de prover uma educação de efetiva qualidade para a população negra. Ao examinarmos os anos de luta por uma educação antirracista e uma aprendizagem significativa para a população negra, encontramos iniciativas educativas diversas, e em diferentes regiões do país, destinadas a diferentes níveis e modalidades de ensi-


no: são intervenções pedagógicas, práticas de ensino-aprendizagem, projetos político-pedagógicos e propostas educacionais, que em dados momentos são denominadas pedagogias. Dentre estas, destacamos: a Pedagogia Interétnica de Salvador, proveniente do Núcleo Cultural Afro-Brasileiro, que data de 1978; a Pedagogia Multirracial, formulada por Maria José Lopes da Silva, no Rio de Janeiro, em 1986; a Pedagogia Multirracial e Popular proposta pelo Núcleo de Estudos Negros, em Santa Catarina, em 2001 (LIMA, 2004, 2011). Em Salvador, ainda é possível apontar a Pedagogia Nagô, também referida como Mito-Pedagogia (a partir de 1999), vivenciada na escola do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá (MOLINA, 2011). Essas e outras iniciativas educativas tomam a história e cultura afro-brasileira como bases de sua ação pedagógica e possuem como fundamento o combate permanente ao racismo, a afirmação da identidade da população negra e a superação das desigualdades étnico-raciais. Em sintonia com as circunstâncias, possibilidades, contextos e momento histórico em que cada uma delas foi elaborada, orientam-se por diversas teorias, sempre em complementariedade, tais como: o Multiculturalismo Crítico e a Afrocentricidade, ambas desenvolvidas nos Estados Unidos; a Educação Popular vivenciada no Brasil e na América Latina; a Tradição Oral dos povos ancestrais; e o Pensamento do educador brasileiro Paulo Freire, que é evidenciado em todas as iniciativas educativas que foram citadas.

ALGUMAS

CONSIDERAÇÕES:

ENCONTRANDO CONVERGÊNCIAS E APROXIMANDO CAMINHOS A trajetória da luta dos movimentos negros brasileiros por educação nos revela a existência e vivência de situações que se aproximam do que o militante afro-equatoriano Ruan García tem se referido como o conhecimento casa adentro. Segundo Walsh (2007), Garcia utiliza essa expressão para designar os processos internos das organizações e comunidades para construir e fortalecer um pensamento e um conhecimento próprios. Para o afro-equatoriano, sem conhecimentos próprios não podemos construir a interculturalidade. Se não temos conhecimento casa adentro, não podemos dialogar com outros conhecimentos casa a fora. Alguns autores/ as afro-brasileiros, como Célia Azevedo, têm se referido a esses mesmos processos com os termos “da porteira pra dentro” e “ da porteira pra fora”. Conforme Molina (2013), termos cunhados por Mãe Senhora (terceira Ialorixá12 do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, localizado em Salvador na Bahia) para sinalizar as esferas de saber e de poder que os membros da sua comunidade precisavam aprender a frequentar: o diploma e o orgulho do pertencimento étnico-racial. Mãe Senhora seguia os passos de Mãe Aninha (Ialorixá fundadora do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá), que nos anos 1970 acolheu a primeira experiência escolar num terreiro de Candomblé que se propunha, com uma pedagogia a partir de dramatizações de

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contos afro-brasileiros, escolarizar as crianças por meio da conexão com suas origens africanas13 . Mãe Aninha se tornou símbolo da luta da comunidade negra brasileira por uma educação antirracista, pois a ela é atribuída a celebre frase: “Quero ver as crianças de hoje, no futuro, de anel no dedo e aos pés de Xangô”. Percebemos, assim, que embora o movimento de aproximação da população negra brasileira da educação escolarizada visasse à sua inclusão e ao reconhecimento na sociedade, tendo se dado “nos moldes da educação oficial” (CRUZ, 2005), portanto eurocentrada, não se pode negar a existência de tentativas de construir ações a partir dos conhecimentos próprios, que podem ser entendidas como práticas de enfrentamento e desconstrução do eurocentrismo. Petronilha Gonçalves e Silva e Lúcia Barbosa (1997) afirmam que as ações educativas deliberadamente concebidas e vivenciadas pelos movimentos negros brasileiros buscam as primeiras referências nas civilizações africanas anteriores à colonização europeia, e a elas seguem-se novas referências criadas nas diferentes circunstâncias históricas. Ou seja, existe uma constante tensão entre a manutenção da lógica eurocêntrica (a colonialidade do saber, a geopolítica do conhecimento) e a proposição epistêmica dos descendentes de africanos no Brasil. Existe um pensamento negro construído a partir das experiências dessa população que foi negado e invisibilizado ao longo da história do Brasil. Essas ações são pensadas e executadas em paralelo com a busca de reconheci-

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mento e inclusão da população negra nos sistemas de ensino oficiais, mas com o mesmo ponto de referência: combater o racismo e as desigualdades raciais, visibilizar a diferença colonial na perspectiva da população negra e construir possibilidades de convivência, equitativa e respeitosa, entre todos os habitantes do território do Brasil. Ou seja, o que se pretende com o reconhecimento da população negra não é apenas a inclusão dessa população na sociedade brasileira, mas também a inclusão de suas formas de pensar, de se organizar e de existir.

Gomes (2010, p. 493) afirma que: A inserção de negros e negras no campo da pesquisa científica e da produção do conhecimento, não mais como objetos de estudo, mas como sujeitos que possuem e produzem conhecimento, faz parte da história de lutas sociais em prol do direito à educação e ao conhecimento, assim como da luta pela superação do racismo.

Segundo a autora, esses e outros pesquisadores oriundos de diferentes grupos sociais e étnicos, ao se inserirem nas universidades, desencadeiam um outro tipo de produção do conhecimento, um conhecimento realizado ‘por’ esses sujeitos, que privilegia a parceria ‘com’ os movimentos sociais ao invés de produzir conhecimento ‘sobre’ esses movimentos e seus sujeitos. Um conhecimento que se constrói, portanto, a partir da diferença colonial e busca evidenciar um “pensamento outro”, um dos conceitos fun-


dantes do pensamento decolonial. É trilhando esse caminho que os movimentos negros do Brasil chegam à proposição da Lei nº 10.639/03, a alteração da LDB nº 9394/96, e com ela a proposição de modificações na estrutura da sociedade brasileira. A alteração da LDB 9394/96 pela Lei nº 10.639/03 propõe transformar a inclusão da educação das relações étnico-raciais e da História e Cultura Afro-Brasileira nos currículos escolares em política pública de educação (BRASIL, 2004). Para Nilma Gomes (2009), a alteração vincula-se à garantia do direito à educação e requalifica esse direito ao acrescer-lhe o direito à diferença. A lei exige que se repensem as bases das relações étnico-raciais, sociais e pedagógicas sobre as quais se assenta a política educacional brasileira. Ela propõe-se a modificar a escola, mexendo com a estrutura da instituição, uma vez que exige a mudança de atitude dos atores da comunidade escolar em seus mais diversos níveis de atuação.

Ainda segundo Nilma Gomes: Com avanços e limites, a Lei 10.639/03 e suas diretrizes curriculares possibilitaram uma inflexão na educação brasileira. Elas fazem parte de uma modalidade de política até então pouco adotada pelo Estado brasileiro e pelo próprio MEC. São políticas de ação afirmativa voltadas para a valorização da identidade, da memória e da cultura negras. (2009, p. 40).

Ao considerarmos que o racismo antinegro constitui elemento estruturador das relações sociais e institucionais estabelecidas no Brasil, podemos concluir que, por consequência, a Lei nº 10.639/03 propõe modificações para a estrutura da própria sociedade brasileira. Partindo desse princípio, não será difícil compreender o nascedouro das dificuldades vivenciadas e enfrentadas no exercício de sua implementação. Tais dificuldades são reflexos da ideia enraizada de inferioridade do negro e superioridade do branco, fundada na colonialidade do ser, que justifica o racismo e as desigualdades étnico-raciais no país. Entretanto, como sugere Oliveira (2011), como possibilidade, ela é um instrumento que pode criar as condições para a transformação das relações de subalternidade na educação brasileira, pois se propõe a ampliar o foco dos currículos, assumindo novas abordagens interpretativas sobre a identidade nacional, com alguns pressupostos não-eurocêntricos. Nesse processo, a formação dos professores/as ganha papel relevante, uma vez que “o desafio de contar e aprender uma história outra e fazer dela um elemento de novas perspectivas políticas, epistemológicas e indenitárias nos processos educacionais” (OLIVEIRA, 2011, p. 11) não está mais apenas a cargo dos movimentos negros, mas de todos os profissionais da educação. Todavia, concordamos com o autor que esse continua sendo um campo de disputas, conflitos e negociações. E, portanto, “a produção de novas enunciações e espaços de enunciações” dependerá, durante muito tempo ainda, da capacidade de luta e organização coletiva da população negra brasileira para

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dar materialidade à intencionalidade da lei e suas diretrizes. Diante das reflexões apresentadas, consideramos que o pensamento negro em educação, em diálogo com o pensamento de Paulo Freire, aponta elementos que podem configurar uma pedagogia decolonial da população negra no Brasil. Uma pedagogia que se concretiza por meio um pensar e agir pedagógico de permanente combate ao racismo. Que se organiza por meio da interdisciplinaridade e aposta em processos geradores de autoestima e orgulho do pertencimento étnico-racial; nela a intervenção pedagógica é uma vivência e por isso possibilita uma aprendizagem significativa; a problematização do conhecimento é contextualizada pela contação de histórias como princípio organizador do trabalho pedagógico (mitos, literatura afro-brasileira, lendas etc.). E os conhecimentos disciplinares caminham lado a lado com os valores, normas e atitudes que são relevantes para a comunidade negra, uma vez que seus princípios orientadores são a ancestralidade, a identidade e a resistência dos africanos e seus descendentes. Trata-se de uma pedagogia que se coloca a serviço da eliminação das desigualdades raciais, sociais e educativas, se propondo a enfrentar “o mito racista que inaugura a modernidade [...] e o monólogo da razão moderno-ocidental” (BATISTA, 2009, apud WALSH, 2009). Assim, compõe o conjunto das pedagogias que se esforçam, como define Walsh (2009, p. 141), por “transgredir, deslocar e incidir na negação ontológica, epistêmica e cosmogônico-espiritual”, caracterizando-se como uma das pedagogias

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que integram o questionamento e a análise crítica, a ação social transformadora, embora ainda tenha muito a caminhar em busca de também incidir na insurgência e intervenção nos campos do poder, saber, ser e na vida, no sentido de implodir a matriz colonial.

Conta-se que: antes de deixar o porto do Ouidah, na atual República do Benin, os africanos escravizados eram levados à árvore do esquecimento – plantada pelo rei Agadja em 1727. Depois de nove voltas dadas pelos homens – as mulheres davam sete – acreditava-se que origens, identidade cultural, lembranças de suas moradas e de suas localizações geográficas perdiam-se no limbo. A memória era reconhecida pelos mercadores de escravos como uma poderosa arma de resistência. Ao que parece, eles estavam certos em relação à força da memória14 .

Todavia, compartilhamos com os autores do texto citado anteriormente a ideia de que o poder da árvore pode ser questionado exatamente pelo fato da sobrevivência da raiz indenitária africana no Brasil e na diáspora negra. Consideramos que as práticas educativas concebidas e executadas pelos movimentos negros no Brasil, assim como suas ações para incluir e disseminar os estudos sobre a história e cultura afro-brasileira e


africana nos currículos escolares, são resultados dos esforços dessa população para dar a volta inversa na árvore do esquecimento e, dessa forma, reencontrar-se, refundar-se, reexistir.

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Doutora em Educação, professora adjunta da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB Instituto de Humanidades e Letras - Campus dos Malês - São Francisco do Conde/ BA. E-mail: claudilenems@unilab.edu.br 1

Doutora em Ciências da Educação, professora titular do Departamento de Administração Escolar e Planejamento Educacional do Centro de Educação da UFPE. Coordenadora da Cátedra Paulo Freire da UFPE. E-mail: mesantiago@uol.com.br 2

Citando Guerreiro Ramos, Gonçalves e Gonçalves e Silva (2004, p. 93), ao afirmarem que “os sociólogos brasileiros haviam transformado os negros em tema de estudo, como se eles fossem em si mesmos um problema social”. 3

Reação à branquitude reinante da cultura ocidental, sistematizada na França, na década de 1930, por um grupo de estudantes oriundos de países colonizados das Antilhas e da África. Surge inicialmente como movimento literário e posteriormente assume caráter político, ideológico e cultural. Na década de 1960, internacionalizou-se como um movimento de resgate da humanidade do negro, o qual se insurgiu contra o racismo imposto pelo branco no contexto da opressão colonial (Domingues, 2005). 4

5

Um pensamento construído por outras lógicas que não a racialização e racionalização eurocentrada.

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Tradução nossa.

7

Tradução nossa. Tradução nossa.

8

Tradução nossa.

9

O encontro, já referido na introdução desse trabalho, teve como tema “O Negro e a Educação” e é uma ação que acontece nesse movimento de questionamento da negação e da invisibilidade da população negra no espaço escolar. 10

Dados disponíveis. In: NEGRO E EDUCAÇÃO. Relatório do VIII Encontro dos Negros do Norte e Nordeste do Brasil. Recife: Movimento Negro Unificado, 1988. 11

Ialorixá é uma sacerdotisa, uma liderança religiosa do Candomblé, uma zeladora de orixás (as divindades iorubanas trazidas para o Brasil na diáspora negra). 13 Trata-se da Mini Comunidade Obá Biyi, um projeto piloto envolvendo educação escolar na comunidade do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, fundado em 1978 com o intuito de complementar o ensino da escola oficial de primeiro grau ou iniciar o processo de escolarização através da creche e da pré-escola (MOLINA, 2013). 12

Disponível em http://diariodoandre.com/2010/8/12/volta-inversa-na-arvore-do-esquecimento/ Acesso em 21 de maio de 2012. 14

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CONCEPÇÕES E PRÁTICAS DE FORMAÇÃO CONTINUADA NA EDUCAÇÃO BÁSICA SANTOS, Edlamar Oliveira dos 1 BATISTA Neto, José 2

Resumo O texto discute resultados de pesquisa, cujo objetivo foi analisar as concepções de formação continuada, que orientaram a política de formação docente da Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife e a organização e produção das práticas formativas com professores dos ciclos iniciais do Ensino Fundamental. Nas últimas décadas, as políticas educacionais têm atribuído ênfase à formação docente como elemento fundamental para fazer frente ao grande desafio da melhoria da qualidade do ensino. É importante destacar que nesse cenário as políticas de formação continuada assumiram um tom propositivo, ao se colocarem como caminho para a efetivação de mudanças na prática docente. Predominou nesse processo a defesa da tese de que a melhoria do ensino poderia ocorrer por meio da qualificação docente. Esse entendimento, por sua vez, contribuiu para ampliação do debate da formação continuada como política pública, orientada por leis, programas e linhas de financiamentos. O processo de investigação adotou uma perspectiva qualitativa de pesquisa. A coleta de dados realizou-se por meio de entrevistas com professores e gestores da Secretaria de Educação e observação dos encontros de formação. Procedemos, ainda, com análise de documentos oficiais relativos à formação continuada. A análise de conteúdo constituiu a nossa opção de interpretação dos dados. Como resultado, destaca-se a ideia de que as concepções e práticas de formação continuada analisadas foram estruturadas, organizadas e produzidas, considerando-se uma perspectiva de formação docente que enseja a reflexão sobre a prática pedagógica. O estudo revelou que a formação continuada é advogada como importante instrumento de melhoria da qualidade do ensino e de valorização do magistério. Reforça-se, nesse contexto, a intenção de firmar-se a relação entre formação continuada, mudança na prática docente e melhoria do ensino. Políticas Educacionais. Formação Continuada. Prática Pedagógica. Resumen El texto discute los resultados de investigación, cuyo objetivo fue analizar los conceptos de formación continua, que guió la política de formación de los profesores del Departamento de Educación, Deporte y Ocio de Recife y la organización y producción de las prácticas de formación con los profesores de los ciclos iniciales de la escuela primaria. En las últimas décadas, las políticas educativas han dado énfasis en la formación docente como un elemento clave para enfrentar el Concepções e práticas de formação continuada na educação básica

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reto de mejorar la calidad de la enseñanza. Es importante tener en cuenta que en este escenario las políticas de formación continua han asumido un tono sugestivo una vez que se han colocado como un camino para la realización de cambios en la práctica docente. He predominado en este proceso la defensa de la tesis de que una mejora de la enseñanza podría ocurrir a través de la calificación docente. He predominado en este proceso la defensa de la tesis de que una mejoria de la enseñanza podría ocurrir a través de la calificación docente. Esta comprensión, a su vez, contribuyó a ampliar el debate sobre la formación continua como política pública, guiada por leyes, programas y líneas de financiación. La recolección de datos se realizó a través de entrevistas con los profesores y directivos del Departamento de Educación y la observación de los encuentros de formación. Seguimos con el análisis de los documentos oficiales relacionados con la formación continua. El análisis de contenido constituyó nuestra opción de interpretación de los datos. Como resultado, se destaca la idea de que los conceptos y prácticas de educación continua analizados fueron estructurados, organizados y producidos, teniendo en cuenta la perspectiva de la formación del profesorado que inspira a la reflexión sobre la práctica pedagógica. El estudio mostró que la formación continua es recomiendada como una herramienta importante para mejorar la calidad de la enseñanza y valoración de magisterio. Se subraya en este contexto la intención de establecer la relación entre la formación continua, cambio en la práctica docente y mejoria de la enseñanza. Políticas Educativas. Formación Continua. Práctica Pedagógica

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INTRODUÇÃO O texto se insere no debate sobre as concepções e práticas de formação continuada de professores no âmbito da educação básica. Apresenta resultados de pesquisa, cujo objetivo foi analisar as concepções de formação continuada que orientaram a política de formação docente da Secretaria de Educação, Esporte e Lazer do Recife e a organização e produção das práticas formativas, configuradas a partir de tais concepções, considerando-se as experiências desenvolvidas com os professores dos ciclos iniciais do ensino fundamental, no período de 2001-2008. Na literatura que trata da formação continuada, identificamos um conjunto de medidas políticas que resultaram na elaboração de dispositivos legais e normativos, assim como a definição de políticas de financiamento que visaram o fortalecimento de programas de formação continuada para os professores da educação básica. Outro aspecto que consideramos na literatura consultada foi a discussão que vem sendo tecida acerca dos modelos teóricos da formação de professores, que indicam a prática docente como espaço de produção do saber. O processo de investigação adotou uma perspectiva qualitativa de pesquisa. A abordagem de pesquisa qualitativa, segundo as autoras, André e Lüdke (1995), configura-se como possibilidade de interpretação de dada realidade, a partir do contato direto e sistemático entre o pesquisador e a situação a ser investigada. A investigação qualitativa é descritiva e interpretativa: os dados recolhidos são transpostos, o mais fielmente possível, na comunicação dos resultados da pesquisa. Nesse processo de busca e de deslindamento do real, o sujeito experimenta situações de aprendizagem que favorecem a ampliação e apropriação de novos conhecimentos sobre dado objeto de estudo, assim como o seu próprio desenvolvimento. Em consonância com os objetivos da investigação, procedemos, inicialmente, com o levantamento e a seleção de documentos em que se pautaram a política de formação continuada da rede municipal

de ensino do Recife. Em seguida, realizamos observações sistemáticas dos encontros de formação continuada vivenciados em uma escola municipal que atende alunos do 1º e 2º ciclos do ensino fundamental. Utilizamos ainda como procedimento a entrevista semiestruturada, que foi aplicada a professores (5) da escola participante da pesquisa e a gestores (3) da Secretaria de Educação, Esporte e Lazer do Recife. A análise e a organização dos dados se deram a partir da análise de conteúdo (BARDIN, 1977), que nos permitiu codificar, categorizar e tematizar as unidades de sentido manifestadas nas mensagens. A análise se dirigiu para a organização e produção da prática pedagógica da formação continuada e as concepções de formação que a fundamentam. Para tanto, consideramos o processo de planejamento, seleção e organização dos conteúdos, estratégias metodológicas e formas de avaliação das atividades de formação realizadas com os professores do 1º e 2º ciclos, nos coletivos de rede e o cotidiano escolar. A primeira parte do texto apresenta e discute aspectos relacionados às políticas de formação continuada, bem como os modelos teóricos orientadores da formação docente. Em seguida, são apresentadas as concepções e práticas de formação continuada adotadas pela RMER e sua relação com o cotidiano escolar.

A FORMAÇÃO CONTINUADA NA EDUCAÇÃO BÁSICA: TENDÊNCIAS TEÓRICAS ORIENTADORAS Tomando em consideração as reflexões sobre as tendências teóricas que orientam as práticas de formação continuada no Brasil, realizamos uma análise dos estudos organizados por Marin (2000); Candau (1997); Mizukami e Reali (1996); Carvalho e Simões (1999); Gatti (2008), entre outros. Esses autores, ao mapearem e analisarem as práticas formativas vivenciadas no Brasil dos anos 1970 aos tempos atuais, caracterizaram as grandes tendências que, historicamente, foram se constituindo como orientações teórico-metodológicas da formação e do tra-

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balho docente. Os estudos produzidos sobre a formação continuada destacam que, nos processos formativos desenvolvidos ao longo das décadas de 1970 e 1980, os professores foram submetidos a um modelo de formação pautado nos pressupostos da racionalidade técnica, que impunha uma visão “determinista e uniforme” sobre o seu trabalho. Esse tipo de conhecimento, referendado pela pesquisa de cunho positivista, configurou os modelos de treinamento que caracterizaram a formação continuada. Essa formação tinha por função garantir a instrumentalização técnica do professor, atribuindo-se um caráter de neutralidade, na medida em que ela se fazia isolada dos aspectos políticos e sociais que envolviam o ensino e o próprio processo formativo. No período aludido, a formação continuada assumiu um caráter pontual e disperso, baseado numa lógica de adaptação, desarticulado de um projeto coletivo e institucional. A partir da década de 1990, a formação continuada inscreve suas bases numa abordagem teórica que advoga a prática pedagógica como espaço de produção do saber e, em decorrência disso, reconhece que o trabalho docente se constitui da existência de “um conhecimento tácito, espontâneo, intuitivo, experimental, um conhecimento construído no cotidiano da prática educativa” (SCHÖN, 2000; TARDIF, 2002). Em decorrência disso, houve a valorização do pensamento reflexivo sobre a prática, e o reconhecimento dos saberes elaborados no âmbito dessa prática começa a aparecer. Em geral, podemos dizer que as proposições apresentadas pela literatura educacional vêm acompanhadas do entendimento de que a reflexão sobre a prática pedagógica é considerada uma estratégia importante para a formação dos professores, assim como uma possibilidade de reconstrução da identidade docente e de valorização dos seus saberes práticos. Essas questões indicam que está ocorrendo um movimento de reconceitualização da formação continuada. Assim, pudemos perceber que, em meados anos de 1990, a formação continuada passou a se apoiar em novos enfoques e/ou tendências teóri-

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cas que focalizavam a prática docente e os saberes profissionais tecidos a partir dela. Por seu turno, esses aspectos influenciaram os processos de formação de formação continuada. Nesse novo modelo de formação, a valorização da prática e dos professores tem contribuído para se repensar concepções e práticas de formação docente, haja vista que ele oportuniza relações mais democráticas no processo de elaboração e apropriação do conhecimento. Ademais, os processos formativos construídos nessas bases potencializam reflexões mais próximas dos problemas concretos das escolas e dos professores, o que, consequentemente, tem ajudado a estabelecer novos vínculos com a realidade escolar e com a prática docente. Contudo, chamamos a atenção para o fato de que o saber prático não é suficiente para fundamentar uma perspectiva que se proponha a compreender a multidimensionalidade do trabalho docente. O olhar demasiado sobre as questões imediatas do ensino pode incorrer no risco de contribuir para o desenvolvimento de uma prática formativa baseada num praticismo e/ou na supervalorização do professor como sujeito individualizado. A prática reflexiva, não raramente, tem sido evocada como panaceia dos problemas educacionais, aspecto que tem contribuído para deslocar o eixo da problemática da qualidade do ensino, na medida em que a preocupação sai do âmbito relativo à sociedade em seu conjunto e recai no campo técnico-pedagógico, relativo, sobretudo, à prática do professor. Como se sabe, porém, não é só a formação do professor que precisa passar por mudanças, mas as demais condições que possibilitam a superação dos problemas que envolvem a atividade educativa.

POLÍTICAS DE CONTINUADA

FORMAÇÃO

Os desafios gerados pelas mudanças da sociedade contemporânea e a existência de uma agenda de reforma na educação, com o intuito de solucionar os problemas sinalizados pelos resultados do ensino, são fatores que contribuíram para enfatizar o papel da formação docente nas políticas educacionais dos anos de 1990. Nesse processo,


a formação continuada passou a se fazer presente entre as preocupações das políticas, assumindo um tom propositivo, ao se colocar como caminho para a efetivação de mudanças na prática docente. Em decorrência disso, foram formulados e implementados projetos e programas que inicialmente se voltaram para o professor do Ensino Fundamental, mas que hoje abrangem os diferentes níveis, etapas e modalidades da educação básica. A defesa do pressuposto de que a melhoria do ensino pode ocorrer por meio da qualificação docente contribuiu, em definitivo, para a institucionalização da formação continuada. Sendo assim, desde a década de 1990, o Ministério de Educação (MEC), em parceria com os sistemas de ensino, vem ampliando e conformando novos programas de formação continuada e formação em serviço para os profissionais da educação básica. Nessa direção, o MEC se incumbiu da elaboração e da implementação de um conjunto de marcos legais e regulatórios, com o objetivo de promover o desenvolvimento de uma agenda de formação continuada em nível federal, estadual e municipal. Entre os normativos legais, destacamos, para efeito de análise, a LDB, Lei 9394/96, o PNE, Lei 10.172/2001 e a Portaria nº 1403/2003, que instituíram a Rede Nacional de Formação Continuada. Esses documentos, ao tratarem dessa modalidade de formação, definiram concepções, diretrizes, procedimentos e recursos que determinaram uma política de formação e valorização para o magistério. Na análise que fizemos da formação continuada na LDB 9394/96, três aspectos nos chamaram a atenção. O primeiro aspecto que evidenciamos tem a ver com as discussões conceituais que perpassam os termos apresentados no corpo da lei. No Art. 61, Inciso I, a formação continuada é considerada como capacitação em serviço; no Art. 67, Inciso II, ela aparece como aperfeiçoamento profissional continuado e no Art. 87 destaca-se como treinamento em serviço. A diversidade de terminologias não guarda somente uma questão semântica. Ela traduz as finalidades de uma concepção de formação continuada, que se inscreve no movimento de materialização de uma lei que priorizou a construção de mecanismos capazes de responder aos compromissos firmados

na Conferência de Jontiem. Mais que confusões terminológicas, esses conceitos traduzem uma concepção de formação e de professor que serviu de sustentação para o desenvolvimento de políticas de formação docente de caráter técnico-instrumental, orientadas por uma perspectiva compensatória. No que diz respeito à regulamentação, o estudo de Gatti (2008) revelou que, em meados da última década do século passado, a formação continuada apresentou crescimento exponencial com o advento da Lei de Diretrizes e Bases (LDB 9394/96). Na LDB, a formação continuada aparece como direito do professor e como instrumento de profissionalização, determinando que a mesma deve ser oferecida aos profissionais da educação dos diversos níveis de ensino. O Art. 67, Inciso II, estabelece que os sistemas de ensino deverão assegurar a formação dos docentes em exercício como um direito do professorado, integrante de sua carreira e de política de valorização do magistério. O segundo aspecto diz respeito ao espaço ocupado pela formação continuada no âmbito da lei. Essa modalidade de formação aparece como direito do professor e como um dos instrumentos de valorização profissional que deve estar, inclusive, assegurado nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público, conforme podemos verificar no Art. 67 da referida Lei. Nesse artigo também são definidos, simultaneamente, os princípios orientadores da valorização do magistério, o piso salarial profissional, a progressão funcional, as condições adequadas de trabalho e o aperfeiçoamento profissional continuado. O terceiro aspecto que ressaltamos na LDB reside na caracterização da formação continuada como sendo formação em serviço. Essa questão se manifesta de forma contundente no Art. 87, § 4°, o qual advoga que “até o fim da década da educação somente serão admitidos professores habilitados em nível superior ou formados por treinamento em serviço”. Esse entendimento contribuiu para a proliferação de programas especiais que, em nome da qualificação docente, legitimaram cursos que, não raramente, contribuíram para um processo de for-

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mação aligeirada do professor. Outra nuance desse processo foi a restrição da concepção de formação continuada a uma perspectiva compensatória, que se expressou por meio de programas de formação especiais ou programas de treinamento voltados, principalmente, para os aspectos curriculares e metodológicos. A garantia da formação continuada do professor trouxe, ainda, a necessidade de se repensar a ampliação de recursos para a manutenção e o desenvolvimento da formação docente. Sendo assim, o Governo Federal se ocupou de regulamentar uma política de financiamento sistemático, por meio do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (Fundef), instituído pela Lei 9422/1996. O Fundef teve uma dupla finalidade, na medida em que visou à articulação de recursos voltados à universalização do ensino fundamental e à valorização do magistério, por meio do pagamento de salários e da instituição de planos de carreira e formação em serviço. Embora o Fundef tenha apresentado limites quanto ao seu funcionamento, podemos perceber que o mesmo se propôs a contemplar o desenvolvimento profissional do docente. É importante salientar que o Fundef foi substituído em 2007 pela Lei nº 11.494, que instituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). A referida política ampliou a perspectiva de universalização do ensino, na medida em que estendeu o alcance dos recursos alocados para a manutenção e desenvolvimento de toda a educação básica e manteve a perspectiva de valorização dos profissionais do magistério. A LDB 9394/96 e o Fundef dedicaram um lugar para a formação continuada e advogam-na como direito do professor e como dever do Estado, fatores esses que são importantes para institucionalização da formação enquanto política pública. Contudo, teria sido necessário o estabelecimento de critérios quanto à oferta das ações formativas, pois a demanda observada acelerou o crescimento de um mercado rentável. A mercantilização da formação continuada nos leva a pontuar as seguintes questões: a não valorização das secretarias de educação como insti-

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tuições que formulam e implementam políticas de formação docente, ficando limitadas a uma prática aplicacionista, o silenciamento da voz do professor na definição das políticas e o fortalecimento de uma concepção de formação continuada que, muitas vezes, tem se ocupado somente da certificação, distanciando-se de uma perspectiva de desenvolvimento pessoal, profissional e institucional. A formação continuada também foi tratada no Plano Nacional de Educação (PNE), Lei 10.172/2001, que traçou objetivos e metas para formação de professores e valorização do magistério. No PNE, “a formação continuada assume particular importância, em decorrência do avanço científico e tecnológico e de exigência de um nível de conhecimentos sempre mais amplos e profundos da sociedade moderna” (2001, p. 67). Nesse sentido, o plano diz que “deverá dar especial atenção à formação permanente (em serviço) dos profissionais da educação” (PNE, 2001). De acordo com essa lógica, percebemos uma valorização da formação continuada como estratégia de qualificação profissional face às exigências da “sociedade do conhecimento e/ou sociedade da informação”. A formação permanente aparece, nesse contexto, como caminho necessário à configuração de um novo processo educativo em que os professores, como protagonistas, necessitam se atualizar permanentemente para desempenhar tarefas que estão sempre a se transformar, em decorrência das mutações técnico-científicas. Com essa ideia de formação permanente, percebemos que prevalece no PNE uma concepção de formação continuada que, muitas vezes, tem favorecido o desenvolvimento de práticas formativas voltadas para a atualização de conteúdos, métodos ou técnicas, com o intuito de promover a modernização da escola e do ensino. Vêse, assim, que o PNE e a LDB guardam semelhanças quanto à assunção de uma concepção de formação continuada alinhada aos interesses da reforma educativa implementada no início da década de noventa. Ainda em consonância com esse ideário, o PNE (2001) defende a tese de que “a formação con-


tinuada é parte essencial da estratégia de melhoria permanente da qualidade da educação, e visará à abertura de novos horizontes na atuação profissional”. Reafirma-se o protagonismo docente como caminho para a efetivação da qualidade do ensino. O PNE estabelece conformidade ainda com a LDB quando explicita que essa modalidade de formação deverá ser assegurada pelas “secretarias de estaduais e municipais de educação, cuja atuação incluirá a coordenação, o financiamento e a manutenção dos programas como ação permanente e busca de parcerias com universidades e instituições de ensino superior”. A partir dessa ideia, as justificativas que se põem apontam para a criação de um sistema de formação continuada constituído pelo conjunto dessas instituições. Outro aspecto de similitude entre os documentos aludidos é a valorização da modalidade de educação a distância na realização dos programas de formação continuada. Com relação às diretrizes políticas assumidas pelo MEC no campo da formação continuada, a partir de 2003, destaca-se a criação da Rede Nacional de Formação Continuada de Professores da Educação Básica (RNFC). A história de criação dessa rede remonta ao processo de implantação da Portaria MEC n° 1403, de 09 de junho de 2003, que instituiu o Sistema Nacional de Certificação e Formação Continuada de Professores. Dentre os objetivos desta Rede, destacam-se o compromisso com a melhoria do ensino e a qualificação docente. Visa, ainda, uma articulação entre as instituições formadoras e a socialização dos conhecimentos produzidos sobre a educação com os professores da educação básica. Para tanto, recomenda que essa formação seja desenvolvida por meio da Rede Nacional de Formação Continuada (RNFC), que deverá coordenar e implementar os programas: Gestar I (professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental), Gestar II (professores dos anos finais do Ensino fundamental) e o Pró-letramento. Tais programas priorizam as áreas de Língua Portuguesa e Matemática e Alfabetização. Sugere-se ainda que a formação continuada garanta maior protagonismo dos docentes, privilegiando estudos e reflexões coletivas sobre a prática pedagógica.

A implantação da Rede Nacional de Formação Continuada inaugurou uma nova fase da formação docente, na medida em que anuncia duas questões pouco valorizadas pelas políticas anteriores: a institucionalização da formação continuada, por meio dos Centros de Pesquisa e Desenvolvimento Escolar, pertencentes às universidades públicas e comunitárias, e a construção de uma perspectiva de formação continuada que propugna o desenvolvimento de uma atitude investigativa e reflexiva sobre a prática de ensino e a valorização do próprio local de trabalho como espaço da formação. Observamos, ainda, que a referenciada Rede busca estabelecer um diálogo com o aspecto da valorização profissional, aproximando-se, assim, de pontos propostos pela LDB 9394/96 e pelo PNE 2001, e aponta para a necessidade de uma política de financiamento que se estenda a toda educação básica (Fundeb), como forma de promover a sua universalização, a melhoria da qualidade do ensino e a qualificação dos profissionais da educação. É importante registrar que o discurso da formação continuada manifestado pela Rede Nacional de Formação Continuada, embora tenha um tom propositivo nos aspectos já pontuados, ainda apresenta resquícios de uma política focalizada, principalmente quando prioriza o desenvolvimento de pesquisas aplicadas com relação aos conteúdos dos anos iniciais do ensino fundamental, tecnologias de gestão e avaliação. Nesse marco, vemos emergir numa perspectiva de formação continuada que visa à melhoria da qualidade do ensino, sobretudo daqueles aspectos vinculados aos indicadores de desempenho, que denotam fragilidades nas aprendizagens dos alunos. O foco da formação é, portanto, a aprendizagem do aluno, mas não qualquer aprendizagem, mas, sim, aquela que garanta a aquisição de determinadas competências a serem avaliadas em testes padronizados. É oportuno observar que o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) implantado pelo governo Lula, em abril de 2008, reafirmou o discurso da formação continuada como decisiva na conquista da melhoria do ensino ofertado pela educação básica. O PDE sustentava o discurso de que “a melhoria da

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qualidade da educação básica depende da formação de seus professores, o que decorre diretamente das oportunidades oferecidas aos docentes” (PDE, 2007, p.10). Nesse contexto, reforça-se a ideia do professor como protagonista dos projetos educativos, o que fortalece o discurso da formação continuada e da profissionalização e ratifica a convocação das redes de ensino para consecução deste objetivo.

CONCEPÇÕES E PRÁTICAS FORMAÇÃO CONTINUADA NA REDE MUNICIPAL DE ENSINO DO RECIFE A educação municipal da cidade do Recife passou ao longo dessas últimas três décadas por mudanças no seu quadro político, que, invariavelmente, têm significado descontinuidades de ações no âmbito das políticas educacionais. Braga (2008) observou que tais mudanças são relativas às divergências de caráter político que durante as últimas administrações do município vêm se alternando entre um franco conservadorismo, observado na gestão de Roberto Magalhães (1997-2000), e os modelos progressistas democráticos, com Jarbas Vasconcelos (1986-1988) e o prefeito João Paulo, em seus dois mandatos consecutivos (2001-2004 e 2005-2008). No que tange às políticas educacionais, o estudo revelou que a RMER, desde o final dos anos de 1980, comprometeu-se com o desenvolvimento de experiências de caráter político-pedagógico (Ciclo de Alfabetização, 1986; Tecendo a Proposta da Rede, 1993 e Ciclos de Aprendizagem, 2001) que anunciaram à necessidade de se criarem as condições para o desenvolvimento de uma prática educativa de cunho propositivo, como possibilidade de atendimento das demandas das classes populares, no que diz respeito à democratização do ensino. Pudemos observar, ainda, que essas propostas vieram acompanhadas pelo desenvolvimento de políticas de formação continuada para os professores. Tais políticas tinham por objetivo contribuir com a reinvenção da prática educativa e a melhoria do trabalho docente,

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com vistas a promover melhoria na aprendizagem do aluno. Nessa direção, as experiências citadas tomaram a formação continuada como estratégia para efetivar mudanças na prática do professor, o que possibilitou que ela fosse conquistando seu lugar, construindo sua identidade e se constituindo, enquanto política plenamente inserida no cotidiano dessa rede de ensino. A gestão educacional instalada no período de (2001-2008) cunhou uma política educacional pautada no desenvolvimento de ações no âmbito da gestão, do currículo, da avaliação e nas questões relativas à profissionalização docente (formação, concurso, revisão de plano de cargos e salários). No que tange à formação continuada, a Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife se comprometeu, ao longo da gestão em análise, com o desenvolvimento de uma política sistemática, direcionada aos professores dos diferentes níveis e modalidades de ensino da RMER. Ademais, na medida em que foram se intensificando os desafios quanto à melhoria do ensino oferecido pela rede de ensino, a gestão da Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife passou a dedicar atenção especial à ampliação das estratégias de formação continuada, bem como a investir em possibilidades de criação de alternativas que pudessem concorrer para o desenvolvimento da formação continuada no âmbito da escola. Ainda que se considere que essa gestão manteve uma perspectiva de continuidade, a pesquisa evidenciou que houve algumas mudanças de foco no encaminhamento das políticas voltadas para o ensino, que, de alguma forma, influenciaram no trato das questões relacionadas à formação continuada. Num primeiro momento, o projeto de educação municipal voltou-se para ampliação das possibilidades de acesso à escola para, num segundo momento, centrar seu olhar na permanência do aluno, com a oferta de um ensino com qualidade. Não podemos deixar de destacar também que, na primeira gestão de João Paulo (2001 a 2004), a Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife precisou lidar com políticas educacionais de cunho neoliber-


al implementadas pelo governo de FHC. Esse fator, provavelmente, exigiu políticas mais alinhadas ao debate político sobre as finalidades da escola, relacionadas à democratização da escola e do ensino. Afinal, essa era a tônica assumida pelas políticas educacionais que se colocavam na contramão do projeto de educação neoliberal. A política de formação continuada da Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife combinou diferentes práticas formativas que traduziram objetivos e concepções de formação, materializando formas diferenciadas de organização e produção das práticas formativas. Quanto às ações e aos programas de formação, a Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife investiu, entre 2001 e 2008, na realização de atividades elaboradas e executadas pela própria Secretaria, a exemplo dos estudos intensivos, oficinas, seminários de socialização, etc. e em programas implementados pela Rede Nacional de Formação Continuada - MEC (Pró-letramento) e programas do Centro de Estudos, Educação e Linguagem - CEEL (Professor Alfabetizador). Além disso, ofereceu ações voltadas para formação inicial em serviço, por meio do Programa Especial de Graduação em Pedagogia (Progrape), e normatizou formas de participação do professor em encontros científico-acadêmicos e cursos de pós-graduação. Esse quadro demonstra que a Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife desenvolveu nesse período um conjunto de ações e programas que traduzem diferentes formas de se pensar e fazer a formação continuada na RMER.

O DIÁLOGO COM AS PRÁTICAS DE FORMAÇÃO CONTINUADA DESENVOLVIDAS PELA SECRETARIA DE EDUCAÇÃO, ESPORTES E LAZER DO RECIFE O estudo evidenciou que há, por parte da Secretaria de Educação do Recife, uma preocupação em definir diretrizes que ajudem a conformar uma política de formação continuada para os seus pro-

fessores, associando-a à conquista da melhoria do ensino e da aprendizagem do aluno. Nesse sentido, observamos que a política de formação continuada da Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife está alicerçada no discurso da melhoria da qualidade do ensino. Em razão disso estabelece relações de congruência com os aspectos relacionados à necessidade de criação de novas formas de intervenção didático-pedagógica no ensino e, em decorrência disso, assume uma concepção de formação continuada que enfatiza a reflexão sobre a prática docente, pois parte da compreensão de que tais mudanças implicariam na melhoria do processo de ensino-aprendizagem. Em que pese as especificidades de cada uma das práticas analisadas, pudemos observar que prevaleceu, como elemento comum, o desejo de provocar melhoria no ensino, mediante a qualificação docente. Os dados analisados indicaram que as concepções e práticas de formação continuada, assumidas e materializadas pela gestão da Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife, no período aludido, aproximam-se de uma perspectiva teórica que defende a reflexão sobre a prática pedagógica como eixo estruturante. Vale ressaltar que ao longo da gestão essa perspectiva foi assumindo contornos diferenciados, os quais têm relação com as exigências postas para o ensino, para o trabalho do professor, bem como para as demandas do contexto socioeducacional. A reflexão sobre a prática pedagógica, embora tenha sido a concepção de formação assumida ao longo da gestão da Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife, entre 2001 e 2008, não se desenvolveu de forma única, bem como não teria orientando a política em questão em única direção. Observamos que em alguns momentos essa perspectiva da reflexão esteve voltada para questões mais amplas da educação, sobretudo no período de implantação da proposta político-pedagógica da RMER - “Ciclos de Aprendizagem”. Nesse período, a formação continuada se caracterizou pela realização de encontros acadêmico-científicos semestrais, aspecto que, segundo os professores participantes da pesquisa, dificultou uma reflexão sistemática das questões cotidianas que envolvem a escola e o

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ensino. Por outro lado, esses mesmos professores reconhecem a importância desse tipo de formação e alguns demandam a sua continuidade. No momento posterior, a reflexão sobre a prática pedagógica apareceu mais vinculada aos aspectos do ensino. Essa tendência foi evocada pela Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife como um caminho necessário à consolidação das mudanças pretendidas com a política curricular de ciclos. A partir dessa perspectiva, ela investiu na construção de processos formativos que pudessem promover uma reflexão mais sistemática da prática pedagógica no cotidiano da escola. Essas questões demonstram que a Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife ressignificou as práticas de formação continuada, na tentativa de garantir uma intervenção direta no ensino e no trabalho do professor e assim enfrentar os problemas da qualidade do ensino. Para tanto, desenvolveu ações e implantou programas que têm um olhar mais direcionado para sala de aula, bem como criou algumas condições para efetivação de processos formativos no âmbito do cotidiano escolar. Com relação à formação continuada na escola, observamos que esse processo foi tecido a partir das orientações contempladas no Programa Pró-letramento, cuja ênfase recai no ensino de Alfabetização, Linguagem e Matemática. Nesse processo, tornou-se importante o resgate do coordenador pedagógico como profissional responsável pela formação de seus pares na escola. Além da formação no cotidiano escolar, a Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife elaborou e implementou ações que se efetivaram por meio de encontros coletivos de rede, nos quais os professores tinham oportunidade de participar de atividades diferenciadas, tais como: cursos de atualização curricular e didático-pedagógica, seminários de socialização de experiências e oficinas pedagógicas. Nessas atividades, o foco também estava nas questões do ensino. Com relação à organização da prática pedagógica da formação continuada, observamos que a prática reflexiva tecida nos processos formativos estava permeada por um movimento contraditório.

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De um lado, revelava a preocupação da Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife com as experiências das escolas e do professor e, por outro, indicava uma visão reducionista de prática, sobretudo quando não se conseguia estabelecer relação com os demais elementos que integram o trabalho docente. A prática pedagógica insere-se na prática social mais ampla, envolve um conjunto de condicionantes históricos, políticos, sociais e culturais que, no nosso entendimento, não podem ser desvelados e interpretados somente pelo fazer imediato do professor. Dessa maneira, a formação teórica é fundamental para que o docente compreenda a educação e os elementos integrantes do seu trabalho. Caso contrário, a formação pode vir a assumir um caráter puramente técnico-instrumental. No que diz respeito à organização das práticas formativas desenvolvidas nos coletivos de rede e no cotidiano escolar, a pesquisa evidenciou essa tensão. Percebemos ainda que as práticas formativas que não conseguiram desenvolver estratégias metodológicas que favorecessem a reflexão sobre a prática pedagógica estruturaram-se valorizando a disseminação de conteúdos curriculares e/ou inovações didático-pedagógica. De forma geral, a organização da prática pedagógica revelou o desenvolvimento de práticas formativas nos espaços coletivos de rede e no cotidiano escolar, centradas no conteúdo curricular e no professor formador. Caracterizaram-se também pelas dificuldades dos professores formadores em articular conhecimento disciplinar e conhecimento pedagógico; pelas dificuldades para desenvolver uma metodologia que favorecesse a problematização da prática pedagógica e sua relação com a prática social mais ampla e por reflexões sobre a prática pedagógica limitadas ao fazer imediato, desprovidas de fundamentação teórica. Nenhuma dessas características impediu que os professores participantes da pesquisa deixassem de reconhecer a importância da formação continuada no seu processo de desenvolvimento profissional, assim como não os fez deixar de destacar o esforço da Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife em oferecer uma formação que fosse


capaz de articular conteúdos curriculares (o que ensinar) e elementos didático-pedagógicos (como ensinar). Porém, nesse processo, não escaparam as preocupações dos professores quanto aos limites da formação continuada, sobretudo quando relacionam sua atividade profissional às condições de trabalho que dispõem para realizá-las, bem como as condições de formação. A pesquisa revelou que a perspectiva de formação continuada que valoriza a reflexão sobre a prática pedagógica implica um conjunto de condições que vão além das questões que envolvem mudanças nos processos formativos, ou seja, ela se vincula não somente a uma questão epistemológica e/ou pedagógica, mas às condições oferecidas para o professor se formar e desenvolver o seu trabalho. Daí porque salientamos a inviabilidade de se estabelecer uma relação direta entre qualidade do ensino e formação continuada, sob pena de cairmos numa visão unidirecional de culpabilização do professor pelos problemas relativos à crise do ensino. No que diz respeito às condições de produção das práticas formativas, a pesquisa revelou que tais práticas fazem parte de um processo vivo e dinâmico, no qual se inscrevem os problemas gerais da educação. Assim, embora tenhamos percebido que a gestão da Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife tem demonstrado certo empenho no trato das questões relativas à formação continuada do professor, as condições oferecidas para a efetivação da formação ainda não são suficientes para atender às necessidades dos professores. Nesse sentido, levantamos algumas preocupações que foram sendo apontadas, na medida em que analisávamos o processo de organização e produção das práticas formativas vivenciadas nos espaços coletivos de rede e no cotidiano escolar. Uma das primeiras preocupações diz respeito à necessidade de se garantir condições favoráveis para a formação continuada. Essa preocupação provém dos limites que observamos quanto à garantia do espaço e tempo para que essa formação se efetivasse. No geral, a Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife não mexeu com as estrutu-

ras relativas às condições de trabalho do professor. Pelo contrário, utilizaram-se de mecanismos paliativos, que, se por um lado adequaram os processos formativos à complexa realidade da Rede Municipal de Ensino de Recife e das condições de trabalho e funcionais de seus professores, por outro, trouxeram implicações que indicavam uma situação não muito vantajosa para o professor adquirir uma formação consistente e de qualidade. A segunda preocupação se refere aos limites do Programa Movimento de Aprendizagem Interativa (Mais), criado com o objetivo de oportunizar estagiários para substituírem o professor durante as atividades de formação continuada, no horário de regência da sala de aula. Foi possível constatar que tal medida, embora tenha sua importância, não conseguiu garantir a equidade no acesso à formação, aspecto que interferiu negativamente para que se efetivassem dois princípios da política de formação continuada da Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife: a formação como direito do professor e a valorização da escola como espaço de formação. Ambas as questões denotam que uma política de formação continuada vai além da oferta de cursos, pois implica em determinadas condições que passam por transformações necessárias às condições de trabalho, salário e carreira. A terceira preocupação diz respeito à formação no cotidiano escolar. O estudo revelou que esse tipo de formação vem acontecendo por meio de programas elaborados e organizados por instâncias externas à escola, aspecto que indica a necessidade da Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife estimular as escolas a formularem seus próprios programas de formação continuada, assim como oferecer condições para as escolas e os professores se envolverem em processos colaborativos de formação e de trabalho. De toda maneira, apesar das dificuldades decorrentes da implantação e funcionamento da formação no cotidiano escolar, a pesquisa revelou que a experiência vivenciada com o Programa Pró-letramento favoreceu a garantia de espaço e tempo para formação continuada no âmbito da escola, bem como resgatou o papel do coordenador pedagógico como profissional responsável

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pela formação dos seus pares, pela mediação das questões pedagógicas no âmbito da escola. Os professores participantes da pesquisa foram enfáticos em ressaltar esses aspectos, além do Programa Pró-letramento como um dos pontos positivos na política de formação continuada da Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife. A quarta preocupação que levantamos acerca da produção das práticas formativas se refere à presença do professor tutor no âmbito da formação continuada. A experiência de tutoria na RMER expressou, por um lado, fatores positivos e, por outro, aspectos passíveis de discussão, haja vista o seu caráter contraditório. Sobre este último aspecto, destacamos a perspectiva de reprodução e/ou de “passa-repassa”, que as ações e programas de formação continuada têm assumido por intermédio das práticas de tutorias. Compreendemos a importância de um quadro próprio de formadores da Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife, bem como do coordenador pedagógico. Entretanto, esse quadro de formadores também necessita dispor de algumas condições de formação e de condições de trabalho. Por fim, destacamos que é inegável que a gestão da Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife experimentou avanços na concepção de formação continuada, ao aproximar suas políticas de algumas questões pontuadas no debate político-epistemológico do campo da formação docente, pois ajudaram a Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife a vislumbrar novos processos formativos.

CONSIDERAÇÕES No âmbito dos documentos de caráter mandatário (LDB e PNE), percebemos que os mesmos definem princípios e diretrizes comuns no tocante à formação continuada do professor, sobretudo no que se refere ao fortalecimento de um discurso que advoga a melhoria da qualidade do ensino como decorrência de um intenso processo de qualificação docente. Além disso, os documentos evidenciam uma vinculação da formação continuada com o pro-

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cesso de atualização do professor às necessidades da sociedade contemporânea. Esse quadro contribuiu para a proliferação de diferentes ações e programas de formação continuada, que, não raramente, cumpriram a tarefa de simplesmente certificar os professores e/ou preencher lacunas de uma formação inicial considerada insuficiente. Em decorrência disso, houve uma aceleração no crescimento do mercado da formação continuada e o fortalecimento de uma perspectiva de formação em serviço. Na pesquisa que realizamos, percebemos que existe por parte da Secretaria de Educação, Esporte e Lazer do Recife, no período 2001-2008, um esforço em construir uma política de formação continuada de caráter sistêmico e sistemático. Nesse sentido, a Secretaria de Educação, Esportes e Lazer do Recife investiu na criação de uma infraestrutura (equipamentos, material pedagógico, quadro de professores formadores e estagiários, etc.) para a realização das atividades de formação em rede e nas escolas. Assumiu igual importância os investimentos quanto às discussões acerca das concepções e práticas de formação continuada presentes na rede e no debate nacional que trata da formação docente. A definição de princípios, diretrizes e ações no âmbito da política estudada contribuiu para o fortalecimento de uma perspectiva teórica de formação continuada que se aproxima dos ideais da epistemologia da prática. Porém, se torna importante avançar nas práticas de formação, sobretudo em ações que considerem os processos pelos quais os professores se apropriam e constroem seus conhecimentos e suas experiências pessoais e profissionais. A articulação entre formação e profissionalização se constitui como uma necessidade muito recorrente nas falas dos sujeitos desta pesquisa. A garantia da jornada de trabalho em uma única escola e a melhoria nas condições de trabalho e de formação se tornam importantes para a efetivação de um projeto pedagógico compromissado com a conquista de uma educação pública de qualidade socialmente referenciada. É evidente que a formação do professor não é a “formula mágica” para resolver todos os males da educação, todavia, não se pode


deixar de considerar que esta desempenha um papel importante na construção de novas experiências educacionais. Sem desconsiderar a importância dos investimentos feitos no campo da formação continuada, parece ser necessário ampliar as reflexões sobre os princípios, finalidades e pressupostos teóricos subjacentes às políticas de formação continuada que estão sendo implementadas. Convém lembrar que permanece a defesa da profissionalização dos professores, mediante uma sólida formação e a alteração de suas condições de trabalho.

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Doutora em Educação, professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco, IFPE 2 Doutor em Ciências da Educação, Professor Associado do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino do Centro de Educação da UFPE, membro da Cátedra Paulo Freire da UFPE. E-mail: josebn@uol.com.br 1

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NOTAS SOBRE EDUCAÇÃO POPULAR A PARTIR DA PESQUISA COM RECICLADORAS E RECICLADORES Lousada, Vinícius Lima 1 falar a palavra certa, a palavra que atua, a palavra que transforma é já começar a transformar Paulo Freire Resumo Procurei nomear este artigo de “notas” porque pretendo trazer à baila algumas das minhas anotações a respeito das aprendizagens efetivadas com recicladoras e recicladores da Associação de Reciclagem Ecológica Rubem Berta (Galpão), em Porto Alegre/RS. Ressalto a palavra “recicladora” no feminino e no plural, como também, à frente na ordem da palavra “reciclador” não por mero jogo de palavras ou simples gentileza. Trata-se de uma tentativa sincera, embora reconhecidamente tímida, de homenagear essas mulheres que tenho acompanhado como educador e pesquisador Educação Popular. Recicladoras. Recicladores Resumen Traté de nombrar este artículo de “notas” porque quiero evidenciar algunas de mis anotaciones al respecto de los aprendizajes realizados con recicladoras y recicladores de la Associação de Reciclagem Ecológica Rubem Berta (Galpão), en Porto Alegre / RS. Subrayo la palabra “recicladoras” en femenino y plural, como también por delante en el orden de la palabra “reciclador” no por mero juego de palabras o simple gentileza. Se trata de un intento sincero, aunque reconocidamente tímido, de honrar a estas mujeres que he seguido como educador e investigador. Educación Popular. Recicladoras. Recicladores

Notas sobre educação popular a partir da pesquisa com recicladoras e recicladores

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INTRODUÇÃO Acompanho aqui a recusa freireana de qualquer forma de manifestação machista ou discriminatória, inclusive no campo da linguagem. Do mesmo modo, é preciso dizer que são essas Marizas, Tânias, Nairs, Adrianas, Gilmaras, Jumaras, Simones e outras oprimidas não somente na dimensão da pobreza a que são submetidas, num recorte local das consequências funestas globais do darwinismo social instaurado nos dias que vivemos, mas também pela cultura predominantemente machista presente, seja na tradição judaico-cristã, seja no modus vivendi “microterritório” do Galpão, onde os homens que são minoria se impõem e ao reproduzirem essa sócio-ilógica. Essas mulheres que fazem a vida do Galpão enfrentam no cotidiano o duro labor braçal que afeta a sensibilidade, que marca suas horas no ritmo de produção reinventado no diálogo nas mesas de triagem, com suas piadas, deboches e mesmo suas brigas. É na triagem dos materiais recicláveis do lixo – com seus odores e sujeiras – que chega à unidade de reciclagem, não raramente entre fezes alheias e alimentos embolorados, das sobras mesmo, que elas materializam o seu trabalho e geram solidariamente e individualmente a sua renda, obviamente, não numa solidariedade dos anjos, perfeita ou idealizada. E sim, na solidariedade possível que essas formas de inclusão precária que o trabalho com o refugo da sociedade de consumo permite.

RECICLADORAS NO FEMININO E NO PLURAL 110 Interritórios | Revista de Educação V.3 | n.3

Em minhas observações participantes junto a essas mulheres não é difícil perceber o que um dos pesquisadores de nosso grupo nomeou de garimpo, ou seja, a coleta pessoal de material reciclável para a venda a terceiros fora da associação para remuneração pessoal, a despeito das intencionalidades de trabalho coletivo e colaborativo da associação. Nas leituras das recicladoras o garimpo é a oportunidade de “fazer um dinheiro a mais para um leitinho, etc.”. A necessidade material sobrepuja os discursos da economia solidária que não se materializam na totalidade nessa associação cooperativa criando uma tensão que faz do trabalho solidário uma busca solitária pela alimentação pessoal e dos seus, ou para algum pequeno luxo, uma compra de material de limpeza, higiene pessoal, cigarro ou leite, fora do orçamento normal nas classes subalternas da sociedade contemporânea. Essas mulheres sentem nas carnes o peso das interdições a que são acometidas, são corpos conscientes interditados de ser, com o direito sobre si negado várias vezes ante a imposição dos homens com os quais convivem. Têm o direito de dizer a sua palavra roubada muitas vezes, mas não deixam de transgredir o silêncio que lhes é imposto pela dominação masculina reproduzida no recorte do Galpão. Sua resistência se desdobra através de críticas “de bastidores”, de sarcasmos reveladores e de uma justa raiva que manifestam como que afirmando sua presença no mundo, na denúncia do que é impróprio à vida humana ou à dignidade de mulher no ambiente de trabalho que se pressupõe solidário.


Corpos conscientes – repito – estigmatizados por lidarem com o lixo da sociedade do descarte e do consumo desvairado, identificadas por outras pessoas, que ignoram o seu trabalho, como se fossem menos gente ou refugo social cuja desumanização imposta pelo lidar com as sobras deveria, igualmente, reforçar uma autoimagem de ser menos. Contudo, o aceite da coisificação não se dá de forma dócil e meramente reprodutiva do que se estabelece no âmbito global da sociedade de classes. É preciso ressaltar a capacidade de resiliência dessas mulheres que se refazerem ante as situações- limites que se lhes estabelecem, transgredindo a feiura do cenário de trabalho com lixo com os seus próprios ajustes e enfeites corporais, seus vários anéis e bijuterias, que reafirmam a sua gentilidade que procura resistir à desumanização. Nesse grupo de recicladoras as mulheres parecem não ceder às divisões do eu e às interdições que o viver e o trabalhar na periferia impõem. Apesar de não poderem transitar livremente nos espaços da cidade, pela falta de recursos pecuniários para o transporte público, do controle de horários frente à insegurança da vila, da dominação masculina dos parceiros e dos desafios da educação dos filhos e da manutenção social, afetiva, econômica da família, todas eu, a seu modo não-padronizado, repito, apresentam uma capacidade de refazerem-se, de juntar os pedaços retomando a esperança e a fé na vida. A categoria resiliência tem me ajudado a entender o fenômeno desse quefazer “manhoso” - no sentido das estratégias próprias de sobrevivência dos pobres. Entretanto, para não malbaratar a categoria de outro campo

das Ciências Humanas é preciso considerar o que compreendo pela mesma. De fato, resiliência consiste numa imagem tomada da Física pela Psicologia. Com a colaboração dessa última podemos concebê-la como a capacidade do sujeito em lidar com problemas, superar as situações- limites e resistir à pressão das situações as mais adversas sem adentrar um surto psicótico. Entretanto, essa atitude de refazer-se é uma opção do indivíduo como sujeito de ocorrências que, ao saber-se inacabado e condicionado pelas materialidades da existência não se admite determinado por elas. Nas redes de sociabilidade que se estabelecem, dentro e fora da Unidade de Reciclagem que estudo, destacam-se os encontros para o café, as trocas de confidências, a partilha de afetos e saberes que denotam a sabedoria popular que se elabora na leitura do mundo feita a partir do limite ou do abismo da sociedade desigualmente configurada no que toca ao acesso aos bens culturais, à educação e outras condições concretas da modernidade que não se realiza na periferia das grandes cidades.

DA AÇÃO EDUCATIVA E DA ENTRADA NO GALPÃO DE RECICLAGEM A Associação de Reciclagem Ecológica Rubem Berta é existente desde o ano de 1993, e foi gerada como parte de um “macroprojeto” da Prefeitura Municipal de Porto Alegre de reassentamento urbano apartado das denominadas zonas de risco da Capital, articulando a questão da moradia e da geração de renda. A população que vivia nos arredores do muro

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que separava a Avenida Sertório dos arredores do Aeroporto Salgado Filho e dava conta da sobrevivência a partir da relação com o lixo foi transferida para a Zona Norte da cidade, nas proximidades do Conjunto Habitacional Rubem Berta. A construção das casas se deu de forma “germinal” com a possibilidade de inserção de outras peças conforme as formas de apropriação e as necessidades dos residentes. Na atualidade, contando com trinta associados, a A. R. E. Rubem Berta se mantém com o auxílio econômico do Departamento Municipal de Limpeza Urbana da Cidade de Porto Alegre, e com o produto das vendas de material reciclável, separado e classificado conforme a sua natureza, para clientes fixos e outros alternados, permitindo assim a manutenção da partilha dos recursos econômicos obtidos para fins de pagamento de salários aos associados conforme as horas trabalhadas. Foi nesse cenário atuei como coordenador pedagógico no Projeto “Reciclando Vida” 2 , em 2007, e estou presente enquanto pesquisador e assessoria na referida associação desde então. Sair do binário na investigação social, lidar com ambiguidades e saber ouvir “manhas”, transitar entre as tramas do cotidiano do galpão e compreender uma rede de significados tecida na periferia de Porto Alegre para mim, educador advindo do interior do Rio Grande do Sul com inserções em periferias urbanas de contextos diferentes, se constitui num belo processo educativo no que se refere à minha formação enquanto gente, pesquisador e doutorando.

Quando me referi às “manhas” no aci-

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ma, estou me reportando ao que Freire (2006), fornecendo-nos uma compreensão mais rigorosa do ponto de vista da interpretação da cultura popular, assim nomeia os aprendizados dos oprimidos que fomentam, na sua práxis existencial, uma cultura da resistência. A resistência presente na aparente adequação à situação-limite consistiria, assim, numa atitude de rebeldia. Ainda, da produção freireana (Freire, 2003) colho a concepção de situaçãolimite como toda aquela circunstância presente na vida dos sujeitos que os impedem de serem mais, de darem vazão a essa vocação inerente à condição humana bem caracterizada pelo inacabamento. As situações-limites são situações de opressão articuladas com um projeto social anti-dialógico que, a serviço da dominação de grupos sociais privilegiados em relação aos esfarrapados do mundo, produzem a desumanização de quem oprime e de quem é oprimido, exigindo, destes últimos, atitudes- limites, de ruptura paulatina com o projeto de opressão mediante ações reflexivas que transcendam as situações-limites. Sem, contudo, contarmos com uma concepção antropológica que abarque o inacabamento, ou a incompletude e a história como tempo de possibilidade, é impossível pensar/agir no sentido de superação das situações-limites. Incompletude é uma categoria de pensamento que pode ser compreendida com a contribuição de Paulo Freire quando nos fala da consciência do inacabamento, ou seja, trata- se do ator social saber-se como ser em processo de construção, como um projeto que se refaz ao longo de seu trajeto histórico, condicionado pelos fatores que marcam seu contexto, mas portador de uma vocação ontológica de ser mais, ou seja, um processo de


dinâmica transformação e ampliação de suas possibilidades durante a existência. O reconhecimento do próprio inacabamento permite ao sujeito predispor-se à mudança, ao novo, ao diferente, a começar pelo exercício da autocrítica, admitindo em si a carência de saberes e valores que o autorizariam a apreender a realidade ou o objeto de estudo na sua inteireza. Para Freire, “o inacabamento do ser ou a sua inconclusão é própria da experiência vital. Onde há vida há inacabamento. ” (FREIRE, 2000, p. 55). Somos seres de circunstâncias transitórias, modificadas pela nossa capacidade de intervir no mundo, fazê-lo e modificá-lo e, concomitantemente, modificarmo-nos e fazermo-nos gente, quer dizer, humanizarmo-nos. Não somos simplesmente homo sapiens, sapiens porque vivemos na condição dessa espécie, somos porque estamos sendo, damos significado à vida transformando-a em existência. Finalmente, gostaria de ressaltar que a não-linearidade de suas trajetórias e a manifestação plural do perfil identitário das mulheres recicladoras que estudo pede um tipo de análise sociológica que não se presta ao mero ajuste dos dados colhidos no campo empírico aos referenciais teóricos estudados. O recorte social desse grupo manifesta plenamente a complexidade desses dias que coloca em cheque as análises sociais tradicionais, exatamente como ressalta Melucci (2001) em seus escritos sobre a invenção social do presente.

CAFÉ, PÃO COM LINGUIÇA, DIÁLOGO E ALTERIDADE

Gostaria ainda de tecer breve consideração sobre o café no galpão. Esse hábito se reveste de um caráter ritualístico e simbólico. Tem o seu horário religiosamente obedecido por todas e todos, jamais sendo interrompido na chegada de autoridades, visitas ou descarga de material. Alguns preparam pães, bolinhos, polenta com salsicha e partilham entre si. Outros juntam trocados para comprar o pão, manteiga, linguiça, etc. Formam pequenos grupos livremente seguindo o critério de afinidades entre leituras de mundo, gostos, crenças e humores, aliás, muita coisa é regida pelo estado de humor no Galpão. Esses grupos se localizam em diferentes áreas conforme o bem-querer, fenômeno que se reflete até na disposição da ordem de pessoas nas mesas de triagem. Explorei bastante esse espaço de convivência para a minha inserção e legitimidade junto ao grupo. Quando observo e participo do café, onde sempre me oferecem algo, mesmo que eu não tenha trazido nada, percebo que desfilam diálogos sobre os cuidados com os filhos, a luta por ampliar a casa germinada para atender melhor a família, as novidades do Galpão e da comunidade, trocas simbólicas sobre crenças religiosas, partilhas de receitas de chás e vivências junto ao posto médico, entre outros temas que emergem e que não cabe agora elencar. Fica evidente que o que articula as pessoas no seu trabalho e em nossas ações educativas é, fundamentalmente, o elemento afetivo, a confiança que nasce por meio do diálogo entre os pares, numa relação de mútuo respeito e horizontalidade algumas vezes. Aliás, a

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respeito do diálogo, elucida-nos Freire (2006, p. 120) de que enquanto relação democrática, “o diálogo é a possibilidade de que disponho de, abrindo-me ao pensar dos outros, não fenecer no isolamento. ” Assim, a busca do outro denota a formação de uma parceria, de uma rede de relação que livra aquele que procura o outro na ação dialógica do individualismo doentio e da desumanização por ele gerado. Nessa perspectiva, o educador da esperança não deixa de ressaltar o diálogo intersubjetivo como uma relação horizontal entre A e B, oriundo de uma matriz crítica, provavelmente intuída pelos oprimidos – penso eu – frente ao esgotamento do anti- diálogo e à desertificação afetiva edificada na lógica social que ora o reforça. O diálogo se nutre do amor, de humanidade, de esperança, de fé e de confiança recíproca que se estabelece na ação comunicativa entre os sujeitos do diálogo. E como recorda Freire: “quando os dois polos do diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com fé no próximo, se fazem críticos na procura de algo e se produz uma relação de empatia entre ambos” (1979, p. 39). Desse modo, o diálogo autêntico se fundamenta e se nutre do amor, da aposta na relação com o outro. Essa aposta pede uma abertura à alteridade, uma categoria teórica apresentada no âmbito da Filosofia da Libertação3 . Essa categoria se inscreve numa concepção filosófica, como a de Enrique Dussel, em que o ser é o Outro (ZIMMERMAN 1987, p. 44), totalmente o outro, não como extensão de mim porque distinto e externo a mim mesmo e ao meu mundo simbólico, mas, como um sujeito cujo mistério preciso abrir-me para que a

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nossa relação não seja de dominação e, por consequência, de opressão; propondo, assim, a superação dos valores auto afirmativos que imperam na racionalidade presente na modernidade ocidental. Esse conceito fundamental em Dussel, a alteridade, pautado na anterioridade antropológica, cara também a Freire (2007, p. 30) que lembra no âmbito da relação pedagógica a necessidade do respeito aos saberes “socialmente construídos na prática comunitária” do outro (o educando), referindo-se mesmo às aprendizagens que os sujeitos trazem anteriormente ao diálogo com o educador, construídas na práxis, existencial, com os outros e no mundo. Esses saberes, aprendizagens, elementos culturais e simbólicos se configuram, sob encaminhamentos de suas escolhas, em elementos da identidade própria do outro. A alteridade caracteriza-se, segundo Dussel, na “passagem diacrônica, desde o ouvir a palavra do outro até a adequada interpretação” (1986, p. 208) orientada por uma ética antropológica coerente. Nesse sentido, estabelecer uma relação alteritária com o outro exige aprender a ouvi-lo, não apenas subsumindo-o em sua totalidade, mas compreendendo-o após uma temporalidade diacrônica. A palavra do outro é escutada e assumida na aceitação da identidade do outro. Ouvir não é fazer-se objeto passivo da fala do outro, embora a necessidade fundamental do silêncio, mas sim uma postura de escutar como sujeito coparticipe do ato comunicativo, adentrando com o outro no movimento interno de seu pensamento que, por sua vez, metamorfoseia-se em linguagem. As-


sim, saber ouvir é o que torna possível a comunicação entre os sujeitos. E, dessa forma, ouvir implicaria numa disponibilidade permanente do sujeito que ouve à fala do outro, abrindo-se a esta, ao gesto e à identidade própria do outro que faz uso da palavra. Aquele que ouve não se anula, não é mero objeto da exposição alheia, ao contrário disso, participa do ato dialógico exercitando, inclusive, o direito democrático de discordar, de opor-se e tomar posição ante a palavra exposta pelo outro. Nesse “entrevero simbólico” observo a tentativa dessas mulheres em nem sempre classificarem seus pares, de os nomearem a priori, buscando, ante as identidades que se refazem na ecologia de suas relações sociais e na tessitura de seus itinerários, em que o Outro: o pobre, o excluído e marginalizado, a mulher; enfim, os que têm o direito de dizer a sua palavra negados, sejam plenamente incluídos. Admitir a outredade daqueles com os quais interagem. “Fulana não é uma drogada”, afirmam, “ela tem uns probleminhas com um fumo mais pesado, mas é excelente pessoa quando não tá chapada”. Outras vezes, quando convém, o grupo lança mão da estigmatização: “Ela bebe demais, é estourada, por isso não serve para estar na coordenação”. Esse tipo de fala aparece quando uma das associadas que já foi uma liderança na comunidade ensaia uma forma possível de empoderamento e critica o modus operandi do Galpão, colocando em dúvida o status quo da liderança masculina, ausente no concreto do trabalho cotidiano, e daqueles que nela aconchegam ora recolhendo proteção pessoal, ora efetivando a manutenção da sobrevivência ou do poder conferido aos que

pertencem de alguma forma ao colegiado de direção.

EDUCAÇÃO POPULAR: BREVE IDEÁRIO E A CRÍTICA SAUDÁVEL Consolidado nos anos 70 e 80 o trabalho social e educativo denominado Educação Popular, as mais diversas experiências geraram alternativas educativas, políticas e culturais para que as classes populares tentassem superar as questões originadas nas situações de opressão e exclusão social em diferentes pontos da América Latina, com o engajamento de educadores e diferentes profissionais cuja opção parecia ser um projeto de libertação dos pobres. A educação se configura como popular quando a sua opção se define pelo popular, ou seja, no momento em que a ação pedagógica assume tal sentido em sua intencionalidade e prática que se manifesta em plena sintonia com os interesses das classes populares. Uma prática educativa é genuinamente popular no momento em que está engajada na luta da participação social e no projeto de construção da cidadania dos pobres. Sendo a função precípua da Educação Popular a conscientização, segundo o seu histórico ideário, é fundamental nos acercarmos dessa categoria para que possamos ter a clareza teórica de que conscientização não consiste, messianicamente, na doação da leitura crítica do mundo de alguns poucos iluminados ao povo ou com os grupos populares com os quais trabalham. Na vertente epistemológica de Paulo Freire encontra-se outra concepção

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de conscientização que pede uma postura ativa dos oprimidos, de assunção de si mesmos ante as contradições captadas da leitura que fazem da realidade. A conscientização é isto: tomar posse da realidade; por esta razão, e por causa da radicação utópica que a informa, é um afastamento da realidade. A conscientização produz a desmitologização. É evidente e impressionante, mas os opressores jamais poderão provocar a conscientização para a libertação: como desmitologizar, se eu oprimo? Ao contrário, porque sou opressor, tenho a tendência a mistificar a realidade que se dá à captação dos oprimidos, para os quais a captação é feita de maneira mística e não crítica. O trabalho humanizante não poderá ser outro senão o trabalho da desmitificação. Por isso mesmo a conscientização é o olhar mais crítico possível da realidade, que a “desvela” para conhecê-la e para conhecer os mitos que enganam e que ajudam a manter a realidade da estrutura dominante. (FREIRE,1979, pp.15-16). Então, conscientização é entendida como um processo que implica a ultrapassagem da consciência ingênua da realidade para leitura crítica na qual a realidade se daria como objeto inteligível de análise, onde os homens e as mulheres assumiriam uma posição epistemológica e um compromisso histórico.

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Nesse sentido, a conscientização se manifestaria como um teste de realidade, ou seja, quanto maior a conscientização, maior é o desvelamento crítico da realidade. Como compromisso histórico, a conscientização exigiria dos sujeitos que se assumissem como fazedores da história e do mundo, dadas as condições materiais e históricas, numa relação dialética entre consciência e mundo. Certamente, não podemos pensar numa absoluta homogeneidade de ideias e de ações culturais sob a bandeira da educação ou dos movimentos de vocação popular, embora sejam identificáveis os traços familiares em diferentes tendências que se afirmam nesse campo. As ações empreendidas foram e são matizadas pela presença de diferentes redes culturais e demandas dos grupos sociais – étnicos, religiosos, do campo, das florestas, das cidades, das margens dos rios, etc. - que se munem da Educação Popular para atenderem as suas reivindicações e protagonizarem a construção das mudanças sociais que dão significado profundo à sua práxis. Foi desse modo que a Educação Popular passou a incorporar no seu discurso e na sua ação pedagógica todo um debate político-ideológico construído à margem e, às vezes, na contramão até mesmo daquilo que era produzido na academia. O ideário da Educação Popular está impregnado, desde a sua origem, da intenção de transformar a cultura popular, simplificada em resíduo da vida comunitária, em movimentos populares reivindicatórios fazedores da história. Esse protagonismo popular exigia a conscientização dos sujeitos a respeito das suas condições concretas e históricas, como


destacado anteriormente, mediante ações pedagógicas em parceria com a cultura popular, ao mesmo tempo em que essa era o seu ponto de partida. Naturalmente, nas ondas da história essa perspectiva sofreu mutações no seio das múltiplas tendências e experiências que foram sendo gestadas pelos movimentos sociais e suas mais diversas configurações até os dias de hoje. Na esteira dos apontamentos para uma crítica saudável a respeito dos limites reflexivos da Educação Popular orientada por formas clássicas de análise de conjuntura social - que por sua vez, não dão conta da complexa teia de fatores que articuladamente produzem a exclusão social - estão Zitkoski (2007) e Brandão (1995), entre outros. Segundo o primeiro, ao observarmos a complexidade do tecido social, a presença da crítica e da abordagem pós-moderna que se instauram ante o esgotamento argumentativo de alguns pilares da racionalidade moderna e as novas configurações da incorrigível lógica do capital em busca da harmonia de seu sócio metabolismo (MÉSZÁROS, 2005) é que se torna forçoso reconhecer que existem inúmeras consequências dessas questões para a organização e atuação prática dos Movimentos Sociais e da Educação Popular. De acordo com o convite de diálogo da Educação Popular para com a pós- modernidade, teoricamente levado a efeito no texto supramencionado faz-se necessário o exercício de repensarmos a Educação Popular em seus fundamentos teóricos e metodológicos, numa dialógica conexão com o contexto socioeconômico, cultural e político de aceleradas mudanças em curso, provocadas, tam-

bém, pela materialização do neoliberalismo em diferentes escalas. Nesse nível de reflexão, a Educação Popular teria como imperativo reorientar-se, porque estamos vivenciando de forma global, na contemporaneidade, progressiva complexificação da vida social sobre a qual os paradigmas tradicionais da análise sociológica não se encontram em condições de responderem de modo suficiente. Assim, segundo o autor, a Educação Popular, em seu desafio de revisar a sua ação estratégica necessita observe os trânsitos ocorridos nos últimos anos no âmbito da cultura, com o fenômeno da descentralização, do multiculturalismo e da reorganização dos padrões culturais; da política, com a efervescência dos novos movimentos sociais; das alterações que surgem com uma crescente organização da sociedade civil; e da economia, com a globalização dos mercados cada vez mais competitivos e desregulamentados pela lógica neoliberal. (ZITKOSKI, 2007, p. 8). Desse modo, se coloca à Educação Popular o labor de construir novos caminhos teóricos e metodológicos que proponham uma articulação da sociedade civil em sincronia com a complexidade de sua atual configuração. Essa rearticulação da Educação Popular e do tecido social deverá ser o ponto de partida para que a sua perspectiva colabore eficazmente com o processo de democratização dos espaços e bens públicos, bem como, de reorganização dos sistemas políticos e econômi-

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cos sob os ditames de uma nova ethos social, não mais definido pelo jogo econômico do capital, mas a favor da humanização dos homens e das mulheres. Doutro ponto de vista, houve um paradoxo entre expansão dos movimentos de cultura popular e força política na América Latina. Na medida em que cresceu a relação entre intelectuais militantes e os movimentos, ampliou-se o conjunto de novos movimentos sociais vinculados às suas causas específicas, em seus contextos históricos, geográficos e locais, nacionais e étnicos, motivados por uma pluralidade de demandas específicas e, por causa disso, reduziu-se a força desses movimentos quando convergentes em defesa da “causa unitária” da cultura popular. As principais causas do enfraquecimento desses movimentos residiriam na submissão apressada da cultura à política, na uniformização das diferenças culturais, na oposição entre tradição e modernidade e, finalmente, na contradição polarizante da ideologia para com a questão da identidade. Tais indicativos permitem revisar as matrizes teóricas e metodológicas da Educação Popular na América Latina e repensar a produção de um olhar sobre o tecido social que melhor o compreenda, evitando-se análises simplistas e grosseiramente justapostas numa rígida inferência sociológica. No que diz respeito à submissão da cultura popular à política, o ideário dos movimentos de educação e cultura popular, nos grupos supostamente radicais, revela certo mecanicismo histórico, pretendendo supor que toda e qualquer cultura produzida pelo

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povo, no âmbito de uma sociedade desigual, como as reinantes na América Latina, seriam inexoravelmente subalternas à cultura das elites dominantes, vindo a reproduzir, pura e simplesmente essa última. Essa concepção tem sentido, certamente, mas não como uma verdade absoluta, segundo pensavam alguns intelectuais mergulhados nos chamados trabalhos de base, embasados nas matrizes políticas e teóricas em que militaram, sob as quais delineavam suas análises sobre o tecido social. Pensar assim, hoje, consistiria em ignorar a capacidade seletiva, re-criativa e inventiva das culturas tradicionais, tanto quanto, a diversidade sociocultural que há muito vem sendo construída por novos sujeitos sociais que tem se apresentado esfera pública. No que tange a uma forçada uniformização das diferenças culturais, parece ter estado presente no ideário transformador dalguns militantes da cultura popular uma postura que estabelecia certa opacidade teórica e empírica, que se portava no sentido de enquadrar a cultura popular aos seus referenciais e sob a mesma “causa”, ignorando a sociodiversidade da produção cultural. Dessa forma, os teóricos dessa “causa comum” ignoravam os sujeitos sociais que protagonizavam a sua própria história, movendo-se no ambiente de sua identidade cultural específica, destacados da seguinte forma por Carlos R. Brandão: Novos sujeitos sociais que, sobretudo após se constituírem como movimentos particulares de defesa de direitos humanos, descobrem em si mesmos a evi-


dência de serem também sujeitos de culturas originais. Descobrem por si mesmos a maneira como alguma forma de participação em movimentos sociais atualiza de dentro para fora esta “cultura em processo” que, entre iguais culturas quando olhados desde um ponto de vista mais amplo, abre às portas à possibilidade ampliada de afirmação de diferenças culturais de identidade, de ethos, de estilo de vida e mesmo de projeto peculiar de destino social. (BRANDÃO,1995, p. 154) Outra insuficiência teórica digna de nota é a questão do antagonismo entre tradição e modernidade. Considerando que mesmo a partir dos anos 60, alguns setores dos movimentos de cultura popular já percebiam que as diferenças da cultura popular são a sua força e sua história, as questões exclusivamente de classe passaram a ser relativizadas perante às problemáticas e às diferenças étnicas, ambientais e culturais. Emergiu daí uma concepção da cultura, que sugere novas práticas de Educação Popular “não-messiânicas” ou modernizantes da cultura popular, menos classificatórias dessa enquanto objeto de análise e de intervenção, buscando, por sua vez, compreender os significados, as diferenças temporais, simbólicas, históricas e circunstanciais dos grupos sociais. Por fim, outro ponto que assinala o limite de estudos ou experiências no seio da ação pedagógica dos movimentos de cultura popular reporta à oposição entre ideologia

identidade. Na defesa da “de ideologização” das culturas populares é provável que se tenha estabelecido ações que, se meditadas de forma desapaixonada, negaram as identidades culturais algumas vezes. Entendo que toda a prática educativa que se nomeie emancipatória ou que se abrigue nessa perspectiva, deveria favorecer assunção por parte dos educandos de sua identidade cultural e não a sua negação, respeitando e criando um ambiente educativo onde os sujeitos não neguem as suas raízes ou matrizes culturais. Sobre a identidade cultural e a necessidade de sua assunção, Paulo Freire se expressa nesses termos: Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto. A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a “outredade” do “não eu”, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade de meu eu. (FREIRE, 2000, p. 18). Resíduos de negação ou de possibilidade de assunção da identidade cultural dos educandos devem ser problematizados e analisados em diálogo com novos referenciais sociológicos e pedagógicos para que possamos colaborar, de alguma forma, com a discussão sobre Educação Popular. Daí a relevância das pesquisas sobre experiências de Educação Popular que discutam suas práticas de forma comprometida socialmente, mas não submis-

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sa a esta ou aquela vertente, desapaixonada, muito embora eu assuma a perspectiva da não-neutralidade científica. Quiçá venhamos a nos propor em ouvir o que os sujeitos alvos de nossas intervenções educativas, militantes e de investigação pensam de nosso trabalho sobre eles mesmos. Seria o bom começo de virada epistemológica para a Educação Popular e para a produção acadêmica sobre seu campo.

PARA NOVAS PERSPECTIVAS... Procurei nesse texto desenvolver um exercício de fazer dialogar com a teoria e prática, referenciais estudados e minha empiria no campo de ação investigativa. Minha intencionalidade na escrita também se inclinou a trazer ao diálogo em torno da Educação Popular elementos normalmente esquecidos no trabalho com grupos populares, resíduos da convivência, muitas vezes descartados nas análises militantes ou macro sistêmicas que teimam em estabelecer, através de uma ótica utilitarista, o descaso para com os retalhos do cotidiano, onde realmente se materializam as mudanças sociais que semeiam as nossas utopias e embalam o nosso querer bem pelos espoliados das periferias. Destaquei palidamente a questão de gênero, subsumida nos discursos de luta do movimento de catadores, como noutros movimentos, que estruturam uma representatividade privilegiadamente masculina e sobre aquelas e aqueles que trabalham no setor de reaproveitamento de resíduos sólidos que não podem ser identificados homogeneamente como catadores, considerando que, como no caso do Galpão em que estou inserido, fazem 120 Interritórios | Revista de Educação V.3 | n.3

a triagem apenas, mas se identificam como recicladores, num status diferente do catador que transita com seu carrinho na rua e cata nas latas de lixo espalhadas pela urbe. Quero frisar que os diferentes eles e elas não podem ser postos, para fins de análise sociológica ou de ação educativa – que se pretenda a favor das classes populares – numa massa homogênea apelidada de catadores. Além disso, parece ser fundamental uma sociologia reflexiva que compreenda das questões de gênero no que toca a presença do silenciamento das mulheres a partir de diferentes modos de dominação masculina no espaço de associações que se pretendam cooperativas. Ao invés de me ocupar numa narrativa e reflexão sobre o trabalho e ações que pareçam traduzir ensaios de emancipação política ou empoderamento, como comumente encontramos nas falas e nos escritos de quem labuta na Educação Popular, voltei-me nesse texto a outros aspectos marcantes do cotidiano do Galpão, que são potencialmente criativos e objetivamente afetivos, denotando que a ação coletiva em grupos populares não se faz apenas com palavras de ordem, em marchas e com bandeiras em punho em prol de reivindicações de projetos políticos mais amplos, às vezes, incorporados em suas falas à força de violência simbólica. Tenho registrado em minhas inserções na A.R.E. Rubem Berta que os afetos, as partilhas mobilizam as sociabilidades dessas mulheres e de alguns homens mais do que supomos e estabelece laços de confiança de tal forma verdadeiros que permitem a presença do diálogo autêntico entre “eu-e-tu” de forma


horizontal e humanizada a, a partir da escuta e da acolhida da outredade do interlocutor.

progressista e crítica.

Tudo isso, não numa assembleia, mas numa simples refeição, num encontro em que o comer junto revela à recusa à desumanização que a exclusão tenta concretizar na vida dessa gente por diferentes meios. Para tanto, aproveitei as contribuições de alguns autores estudados para compreender os dados que emergem da empiria e, ao mesmo tempo, para exercitar uma reflexão mais densa sobre o que estudo, aprendendo a não cair em análises aligeiradas e superficiais onde o dado vale por si. Por fim, busquei a reflexão teórica sobre o quefazer da Educação Popular em diálogo com os referenciais teóricos disponíveis e numa retomada de reflexão já posta em movimento em trabalhos anteriores. Desenvolvi minha argumentação no sentido de resgate de ideário da Educação Popular reafirmando o seu compromisso histórico para com a libertação dos oprimidos através da conscientização das situações-limites em que se movem e, igualmente, destacando o papel fundamental do diálogo amoroso nesse processo de humanização libertadora. Entretanto, não pude deixar de anunciar, com outras vozes, a carência das concepções tradicionais da Educação Popular frente à complexidade social de nosso tempo e, ao mesmo tempo, procurei apontar os elementos dessa crítica saudável que denuncia o esgotamento de uma racionalidade e anuncia possibilidades criativas à Educação Popular se dialogicamente aberta às provocações da pós-modernidade, inserida numa orientação

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Doutor em Educação, professor e coordenador da Licenciatura em Pedagogia do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, IFRS. http://www.bento.ifrs.edu.br/site/ 1

Este projeto se inspirou nas contribuições combinadas das seguintes áreas do conhecimento: Educação Popular, economia popular e solidária e educação ambiental. Objetivamente, o projeto se propôs a criar alternativas de sustentabilidade para a A. R. E. Rubem Berta, promovendo o fortalecimento socioeconômico de sua atividade – fim: a reciclagem e, oportunizando a elaboração de novas tecnologias de gestão e produção, efetivadas de forma orientada e assessoradas por meios que os fortaleçam de forma individual e coletiva proporcionando, desta forma, uma melhoria significativa na qualidade de vida dos recicladores, a partir dos ganhos, gerando benefícios socioambientais. 2

Compreendo Filosofia da Libertação como a corrente filosófica orientada pelo princípio de libertação dos povos oprimidos, configurando-se numa reflexão a partir de uma leitura de mundo crítica feita desde a América Latina. Trata-se de uma corrente filosófica comprometida com a realidade histórica em que ela é produzida, procurando construir alternativas para as gentes latino-americanas em seus contextos tendo em vista a sua plena realização enquanto seres humanos. A Filosofia da Libertação, onde a produção teórica de Dussel (2000) se insere, pretende estar “encarnada” numa práxis de superação da (des)ordem social vigente, herdado do modelo ocidental eurocêntrico, para a elaboração coletiva de uma ordem social. 3

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PERCURSOS DAS TRANSFORMAÇÕES DA TEORIA E DA VALIDAÇÃO DO CONHECIMENTO NAS CIÊNCIAS HUMANAS: DO FALSIFICACIONISMO DE POPPER À TEORIA DE VALOR DE RICKERT MIRANDA, Marcelo Henrique Gonçalves de1 Pensam os sábios, com razão, que os homens de todas as épocas imaginavam saber o que era bom ou mau, louvável ou condenável. Mas é um preconceito dos sábios acreditarem que hoje o sabem melhor que em qualquer outra época Nietzsche. Resumo O presente artigo tem como finalidade, de forma geral, retratar alguns aspectos do debate epistemológico sobre as condições de validade na produção do conhecimento científico para as ciências humanas via questões que dizem respeito às ciências nomotéticas e sobre as ciências ideográficas. Busca-se a) mapear os percursos assumidos na construção desses dois campos de saber relacionando-os às implicações das tradições empirista e racionalista; b) problematizar a relação entre o sujeito e o objeto da pesquisa; e c) sublinhar-se-á os aspectos que a teoria do conhecimento assumiu dentro do falsificacionismo de Popper e da teoria do valor de Rickert na construção do campo de conhecimento das ciências humanas. Teoria do Conhecimento. Ciências Nomotéticas. Ciências Ideográficas. Teoria do Valor. Resumen Este artículo se dedica, en general a retratar algunos aspectos del debate epistemológico sobre las condiciones de validez en la producción de conocimiento científico para las humanidades a través de temas relacionados a las ciencias nomotéticas y las ciencias ideográficas. Se busca a) mapear las rutas realizadas en la construcción de estos dos campos del conocimiento los relacionando a las implicaciones del las tradiciones empirista y racionalista; b) examinar la relación entre el sujeto y el objeto de la investigación; y c) enfatizar los aspectos que la teoría del conocimiento asumió dentro del falsificacionismo de Popper y de la teoría del valor de Rickert en la construcción del campo de conocimiento de las ciencias humanas. Percursos das transformações da teoria e da validação do conhecimento nas ciências humanas: do falsificacionismo de Popper à teoria de valor de Rickert

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INTRODUÇÃO O presente artigo tem como finalidade, de forma geral, retratar alguns aspectos do debate epistemológico sobre as condições de validade na produção do conhecimento científico para as ciências humanas via questões que dizem respeito às ciências nomotéticas, isto é, ciências que buscam estabelecer regras gerais na explicação dos fenômenos e que podem ser reproduzidos em experimentos; e sobre as ciências ideográficas, ou seja, ciências que se preocupam em estudar o singular, o único e os fenômenos que não podem ser reproduzidos por meio de experimentos. Busca-se mapear os percursos assumidos na construção desses dois campos de saber relacionando-os às implicações das tradições empirista e racionalista; problematizar a relação entre o sujeito e o objeto da pesquisa; e de uma maneira específica, sublinhar-se-á os aspectos que a teoria do conhecimento assumiu dentro do falsificacionismo de Popper (1902 – 1994) e da teoria do valor de Rickert (1863-1936). A princípio destacaremos algumas ideias de Kant (1724-1804) sobre a filosofia do conhecimento que são retomadas no pensamento de Rickert.

DUAS DIFERENTES TRADIÇÕES DE CONCEBER A TEORIA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO Segundo Bento (1977), Kant, em uma das suas obras clássicas: Crítica da Razão Pura, considera que o conhecimento é obtido por meio de julgamento objetivo da ciência ou do senso comum. Nesse percur126 Interritórios | Revista de Educação V.3 | n.3

so, o conhecimento é engendrado por meio da experiência, mas tal construção só ganha sentido ou percepção via categorias a priori que ordenam conceitualmente a percepção da experiência para ser entendida. Portanto, A mente não faz simplesmente e passivamente “gravar” senso – impressões. Espaço e Tempo são (a priori) as formas nas quais a experiência perceptual é ordenada. Anteriormente disso, os julgamentos perceptuais adquirem objetividade. Adquire os status do julgamento sobre a existência e a natureza da realidade exterior. (BENTO, 1977, p. 102). É importante destacar que essa teoria do conhecimento, por meio do julgamento objetivo do conhecimento científico ou do senso comum, servirá de base para se problematizar: a) a relação entre sujeito de pesquisa das ciências humanas (kulturwissenschaften) com o seu objeto de estudo, no caso outro ser humano, e o sujeito das ciências naturais com o seu objeto de estudo, ou seja, algum fenômeno da natureza; e b) a não neutralidade do pesquisador das ciências humanas como impossibilidade dessa ciência adquirir o mesmo estatuto das ciências naturais. Tais problematizações serão desenvolvidas mais adiante. Com essa concepção da teoria do conhecimento, Kant busca ultrapassar os debates entre as tradições Empiristas e Racionalistas. Se por um lado, o Empirismo, de tradição inglesa (nasce em Locke 1632-1704),


valoriza que todo o processo do conhecer, do saber e do agir é aprendido pela experiência, pela tentativa e erro, compreendido aqui por Abbagnano como: a diretriz filosófica que faz apelo à experiência como critério ou norma da verdade e que, por isso, assume a palavra “experiência”. Em geral, tal diretriz se caracteriza pelos traços seguintes: a) nega o caráter absoluto da verdade ou, ao menos, da verdade que é acessível ao ser humano; b) reconhece que toda verdade pode e deve ser posta à prova, logo, eventualmente modificada, corrigida ou abandonada. (1982, p. 308). Por ouro lado, no Racionalismo (de Descartes, 1596-1650 a Espinosa, 1632-1677; e Leibniz, 1646-1716) impera a forma de raciocínio dedutivo, na qual há a classificação do mundo pelo procedimento da razão determinando crenças e técnicas. Conhecimento, nesse viés, é, assim derivado aprioristicamente de axiomas auto evidentes ou racionalmente demonstráveis. (ABBAGNANO, 1982; OUTHWAITE & BOTTOMORE, 1996). Exposto o debate entre Empirismo e Racionalismo que constituía o campo de produção do conhecimento nos séculos XVII e XVIII, vejamos a partir desse contexto as principais características da teoria do conhecimento em Popper e posteriormente em Rickert predominantes no século XX e suas contribuições para produção do conhecimento das ciências humanas.

O FALSIFICACIONISMO DE POP-

PER: A CIÊNCIA PROGRIDE POR CONJECTURAS E REFUTAÇÃO Karl Popper (1902-1994) tem por objetivo contestar o Positivismo Lógico ou Empirismo Lógico do Ciclo de Viena que em linhas gerais foi uma forma extrema de empirismo, alegando que as teorias deveriam ser válidas por meio dos fatos adquiridos na observação (BENTO, 1977; CHALMERS, 2000; GIDDENS, 1998). Pensando na produção do conhecimento e no método das ciências humanas, Popper, na sua filosofia da ciência denominada de falsificacionismo, admite que a observação seja orientada por teorias que fornecem categorias a priori na constatação da experiência. No entanto, o autor traz à baila na sua filosofia da ciência que as teorias não podem ser estabelecidas como verdadeiras ou provavelmente verdadeiras a partir da evidência observativa. Para Popper As teorias são interpretadas como conjecturas especulativas ou suposições criadas livremente pelo intelecto humano no sentido de superar problemas encontrados por teorias anteriores e dar uma explicação adequada do comportamento de alguns aspectos do mundo ou do universo (CHALMERS, 2000, p. 64). A ideia defendida por Popper diz respeito a que uma vez que as teorias especulativas são propostas devem ser testadas implacavelmente por observação e exper-

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imento. Não se pode ter certeza da veracidade das teorias, diante disso, opta-se por testes para tentar refutar as hipóteses ou ver a sua capacidade de resistência a esses testes. As teorias que não resistem aos testes de observação, e experimento, devem ser descartadas. Em seu livro: Lógica das Ciências Sociais constam vinte sete teses sobre a teoria do conhecimento, no entanto, destacamos a sexta por ser considerada, por alguns teóricos (BENTO, 1977; CHALMERS, 2000; GIDDENS, 1998) como a principal. Nessa tese Popper afirma materializando o falsificacionismo que: a)O método das ciências sociais, como aquele das ciências naturais, consiste em experimentar possíveis soluções para certos problemas; os problemas com os quais iniciam-se nossas investigações e aqueles que surgem durante a investigação. As soluções são propostas e criticadas. Se uma solução proposta não está aberta a uma crítica pertinente, então é excluída como não científica, embora, talvez, apenas temporariamente. b) Se a solução tentada está aberta a críticas pertinentes, então tentamos refutá-la, pois toda crítica consiste em tentativas de refutação. c) Se uma solução tentada é refutada, através do nosso criticismo, fazemos outra ten-

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tativa. d) Se ela resiste à crítica, aceitamo-la temporariamente; e a aceitamos, acima de tudo, como digna de ser discutida e criticada mais além. e) Portanto, o método da ciência consiste em tentativas experimentais para resolver nossos problemas por conjecturas que são controladas por severas críticas. É um desenvolvimento crítico consistente do método de ‘ensaio e ‘erro’. f) A assim chamada objetividade da ciência repousa na objetividade do método crítico. Isto significa, acima de tudo, que nenhuma teoria está isenta do ataque da crítica; e mais ainda, que o instrumento principal da crítica lógica – a contradição lógica – é objetivo (POPPER, 1998, p. 15-16). Na busca para exemplificar a tese de Popper, Chalmers nos indica abaixo um modelo para ilustrar tal pensamento se apoiando na lógica do falsificacionismo: Um corvo, que não era preto, foi observado no local x no momento m” deduzir logicamente disto que “todos os corvos são pretos” é falso. Isto é, o argumento. Premissa: um corvo, que não


era preto, foi observado no local x no momento m. Conclusão: Nem todos os corvos são pretos. (CHAKMERS, 2000, pp. 64-65). Assim, dentro da visão do falsificacionismo, algumas teorias podem se revelar falsa, e podem ser derrubadas, por meio de um apelo aos resultados da observação e do experimento. A lógica que apoia o falsificacionismo nos mostra que não é possível chegar leis e teorias universais por deduções lógicas, visto que proposições de observação singulares alteram ou podem sempre vir a alterar leis e teorias universais. Nesse percurso, no campo da produção do conhecimento das ciências humanas, as situações específicas de cada cultura ou contexto histórico instituído como singular que são observáveis constituem a propriedade de refutar leis e teorias concebidas como universais. Assim, a crítica indutiva desestabiliza proposições teóricas mais gerais. Entretanto Giddens (1998) nos expõe dois limites em Popper. O primeiro limite, exposto também por Chalmers (2000), diz respeito à ênfase que Popper atribui à refutabilidade que repousa na relação mais próxima possível com a crítica da lógica indutiva. Para Popper, a lógica da produção do conhecimento científico por indução de leis torna a certeza impossível, apesar de fazermos muitos testes, podemos afirmar que por meio de um próximo teste é possível deixar de confirmar o conhecimento produzido. Desta forma, a validade das leis científicas jamais

pode ser verificada conclusivamente e tal aspecto prejudicaria a própria constituição das ciências humanas como campo científico mesmo que tendo a suas especificidades. O segundo limite está relacionado com a questão do desprezo da linguagem. Para Popper a terminologia teria como função a clareza e a ausência de ambiguidade nos testes rigorosos das teorias científicas. Ou seja, é como se os termos se constituíssem como uma relação de causa e efeito entre o sujeito emissor e o sujeito receptor da linguagem sem a possibilidade de outras interpretações ou “ruídos” nessas interpretações. Para Popper, as palavras mesmo sendo diferentes teriam de expressarem as mesmas ideias. Nesse ponto, Popper não considerou a polissemia dos termos e próprio uso da linguagem, como fez a virada linguística para as ciências humanas, para se ter acesso à realidade e haver a inteligibilidade nas interações sociais. Ao desconsiderar a polissemia dos termos, esse procedimento termina aproximando Popper do Círculo de Viena que ele tanto alegou se diferenciar e da primeira fase de Wittgenstein que influenciou parte do Positivismo Lógico e que foi ultrapassada pela segunda fase de Wittgenstein sobre os jogos de linguagem. Assim, verifica-se, sobretudo no campo de produção de conhecimento das ciências humanas, que vários indivíduos podem verbalizar um mesmo termo e esse ter significados distintos ao mesmo tempo que indivíduos diferentes podem falar termos distintos e eles terem o mesmo significado. Os termos são significantes vazios que gan-

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ham significados em decorrência do processo valorativo em que cada sujeito se encontra e das regras estabelecidas em cada contexto de interação. Ou seja, os significados dependem de contexto histórico, do tempo e espaço ao qual o indivíduo tem vivenciado sua experiência e das relações estabelecidas nas teias de significados e de valores materializadas por meio das socializações e das sociabilidades. O que nos parece é que até o momento, a ênfase da tradição do falsificacionismo exposta aqui em Popper não questiona na relação sujeito-objeto o processo de entendimento, o Verstehen, nem por parte do objeto que seria nas ciências do espírito ou da cultura (para usar termos neokantianos) o próprio ser humano, nem por parte do Verstehen relacionado ao pesquisador que busca compreender o que os indivíduos expressam. Dessa maneira, percebe-se que há um período de transição entre explicações causa-efeitos gerais abundantes nas ciências da natureza e a questão do entendimento/compreensão (Verstehen) que posteriormente será problematizado nas ciências humanas. Para compreendermos melhor o processo de transição no campo da teoria do conhecimento tendo como referência a partida do método das ciências da natureza para o método da teoria do valor na constituição do método das ciências humanas por meio das contribuições de Heinrich Rickert, indicaremos algumas características do neokantismo ou do neocriticismo que estão na base epistemológica desse teórico.

O NEOKANTISMO 130 Interritórios | Revista de Educação V.3 | n.3

Alguns teóricos (ABBAGNANO, 1982; BENTO, 1977; FERREIRA, 1999; DA MATA, 2006) nos expõe que a corrente filosófica do neokantismo se estabeleceu a partir de meados do século XIX na Alemanha, inicialmente hostil ao idealismo alemão, a todo tipo de metafísica e ao positivismo francês e inglês. Essa corrente filosófica voltou a destacar a distinção kantiana entre o mundo noumenal e o mundo do fenômeno. Para Kant havia uma separação entre o mundo fenomênico aberto para a percepção; e o mundo noumenal (inteligível), ou seja, os dos métodos e conceitos do pensamento do conhecimento científico (BENTO, 1977, p.104). Ao sublinhar essa distinção acima referida entre os mundos, os neokantianos consideraram que o mundo fenomênico é infinito/irracional, ao passo que o mundo noumenal é racional e finito. O ser humano ao categorizar ordena e limita o caos da realidade ao seu redor, registrando apenas o que pode apreender por suas categorias a priori e não existindo categorias não acontece a inteligibilidade, ou seja, não há possibilidade do mundo da vida ser acessado, classificado e transformado pelo cientista. O desafio dessas alegações está relacionado com a teoria do conhecimento científico que tem de transcender o mundo da vida. Em relação à teoria do conhecimento científico, segundo Ferreira (1999), para os neokantianos, a ciência necessita encontrar princípios universais e não transitórios, para que ela possa reivindicar para si um status


acima do mundo da vida. A reflexão epistemológica seria, então, uma alternativa de certeza, segurança, às disjunções deste presente que tende a se perder em excesso, em arte. Adiantando o nosso argumento: ao colocar entre parênteses a própria finitude do sujeito cognoscente, a reflexão epistemológica promovida pelos neokantianos da Escola de Baden esforça-se por construir uma área de segurança a partir da qual o mundo da vida possa ser acessado, classificado e transformado por um sujeito livre, posicionado acima da transitoriedade e excesso da vida moderna. (FERREIRA, 1999, p. 75). Vale destacar que vários neokantianos tentaram dar respostas à problemática acima, isto é, entre a finitude do sujeito cognoscente e produção de conhecimento de princípios universais e não transitórios, além de abordarem questões relacionadas a diferenças ou a aproximações relativas às ciências da natureza e da cultura/espírito tais como: Wilhelm Dilthey, Georg Simmel, Heinrich Rickert. Contudo, concentrar-se-á apenas em Rickert, na sua teoria do valor e na contribuição de sua teoria para o campo de produção de conhecimento das ciências humanas, visto que se trata de um espaço restrito na confecção desse artigo.

HEINRICH RICKERT E A TEORIA

DO VALOR O principal trabalho de Heinrich Rickert, Die Grenzen der naturwissenschaftlichen Begriffsbildung foi publicado pela primeira vez em 1902. Uma de suas principais realizações foi elaborar uma fundamentação no plano lógico-conceitual para as ciências culturais (kulturwissenschaften), ou seja, para as ciências humanas que deveriam estar de acordo com uma epistemologia e lógica existentes (DA MATA, 2006; OUTHWAITE, 1985). Assim como outros neokantianos, Rickert traz a distinção entre ciências nomotéticas e ciências ideográficas, mas esta diferenciação se daria não por causa do objeto, pois o mundo é o mesmo tanto para as ciências da natureza como para as ciências culturais. A diferença está relacionada à metodologia específica que cada uma usa. Ou seja, “a mesma realidade se torna natureza se a consideramos do ponto de vista do geral, e se torna história, cultura se a consideramos do ponto de vista do especial e do individual, do específico” (DA MATA, 2006, p. 354). Rickert ao afirmar que o mundo é o mesmo para as ciências naturais e para as ciências humanas contribuem para problematizar o estatuto das primeiras como sendo exclusivamente científico, pois a diferença estaria não no objetivo de estudo, mas sim no método de estudo. As ciências da natureza buscam explicações gerais que podem ter validadas sua produção de conhecimento por meio da repetição das experiências. Já nas ciências humanas a validade de seu conhecimento se dá pelo que há de específico, exclusivo, ou seja, o histórico que não pode ser repetido em laboratório.

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Os métodos das ciências kulturwissenschaften são individualizados e estão referidos a valores, enquanto os das ciências naturwissenschaftlichen são generalizados Nesta perspectiva, a diferença principal em relação às ciências da natureza não deveria ser buscada no plano material (nível dos objetos) aos quais umas e outras se devotam, mas nos procedimentos adotados, ou seja, plano formal (nível lógico-conceitual). O que se opõe ao “natural” não é o “espiritual”, diz Rickert, mas o “histórico” (entendido aqui enquanto evento ou realidade singular.) (DA MATA, 2006, p. 349). Portanto, nessa perspectiva, o que diferencia a ciência, de maneira geral, de outras formas de conhecimento e percepção da realidade é o fato que a ciência elabora conceitos. Da Mata (2006) nos expõe que para Rickert, o ser humano comum é distinto do indivíduo cientista porque este último tende a extrair – do agregado de conhecimentos que sirvam às necessidades imediatas do primeiro – daquele mesmo agregado, um sistema. Dessa maneira, estes conceitos são os instrumentos ou, numa linguagem mais kantiana, são as categorias a priori que possibilitam apreender parte da realidade. Eles seriam sempre uma leitura da realidade, uma vez que é impossível obter a realidade em sua totalidade, pois a mesma é multifacetada e complexa e os conceitos nos permitem

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operacionalizar e reduzem a complexidade. Nessa perspectiva, o conhecimento produzido cientificamente é sempre inacabado, pois o pesquisador não tem como ter acesso à realidade na sua totalidade, uma vez que, via conceito, só se tem acesso à parte dessa realidade. Assim, podemos alegar que o conceito seria um instrumento ao mesmo tempo em que seria o objetivo da teoria do conhecimento científico. O que, dessa maneira, permitiria exceder o mundo da vida por meio da transcendência conceitual que caracteriza o campo de conhecimento científico. Da Mata (2006) nos traz a indagação sobre a ideia de conceito histórico exposta por Rickert visto que se a história foca sua pesquisa nas especificidades dos fenômenos o que permite afirmar que ela opera suas análises conceitualmente. Assim, tal perspectiva depende da definição de categorias e ou conceito de entendimento e conceitos científicos que podem ser mais simples ou ser mais abstratas. É importante ressaltar que, para Kant, as categorias seriam mais abstratas do que os conceitos tais como as categorias de tempo e espaço que seriam maneiras de o ser humano ordenar o mundo. Nesse caminho, Abbagnano expõe que para Kant, as categorias são os modos pelos quais se manifesta a atividade do intelecto, a qual consiste essencialmente em ordenar diversas representações sob uma representação


comum, isto é, em julgar. Elas são, portanto, as formas [...] em que o juízo se explica independentemente do seu conteúdo empírico. [...] as categorias são conceitos primitivos do intelecto puro e condicionam todo o conhecimento intelectual e a própria experiência; mas elas não se aplicam às coisas em si e o conhecimento que delas se vale (isto é, todo o conhecimento humano) não pode estender-se, portanto a tais “coisas em si” ou “númenos”. As categorias são, todavia, condições da validade objetiva do conhecimento, isto é, do juízo em que o conhecimento se concretiza. Com efeito, um juízo é uma conexão entre representações. Mas tal conexão não é subjetiva, logo não vale só para o sujeito isolado que a efetua, mas é feita [...] segundo um modo, uma regra que é igual para todos e que, portanto, confere necessidade e objetividade àquilo a que se ligou na percepção. (ABBAGNANO 1982, p. 115-116). Em relação à definição do conceito, Abbagnano nos indica que o termo é um signo do objeto (qualquer que seja) e se acha em relação de significação com ele; [uma das funções do conceito é a de] organizar os dados da experiência

de modo que se estabeleçam entre eles conexões de natureza lógica. Um conceito científico, não se limita, via de regra, a descrever e classificar os dados empíricos, mas torna possível a sua derivação dedutiva. É esse o aspecto pelo qual a formulação conceitual das teorias científicas tende à axiomatização: a generalização e o rigor da axiomatização tende a levar ao limite o caráter logicamente organizador do conceito; são funções de organizar e de prever que exercem hoje os tipos fundamentais dos conceitos científicos que não são nem descritivos nem classificatórios: isto é, os modelos, os conceitos matemáticos e as construções. (ABBAGNANO, 1982, p. 153156). No entanto, ressaltamos que devido à proximidade e à relação entre categoria e conceito, esses termos são bastante confundidos na produção do conhecimento no campo das ciências humanas. Vejamos como a definição de conceito dividida em duas partes pode contribuir para a nossa compreensão sobre a teoria do conhecimento, pois Rickert afirma existirem dois tipos de conceitos: conceitos simples e conceitos científicos. Os primeiros correspondem a elementos conceituais não definíveis (dados da percepção imediata, como as noções de “doce” ou “azul”.

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Os conceitos científicos, por sua vez, são agregados — seja de elementos conceituais, seja de outros conceitos científicos. Para Rickert, não existe qualquer diferença entre o conteúdo de uma exposição científica, em geral, e o conteúdo do conceito. De modo que ‘um complexo de conceitos, que encerra o conhecimento científico de uma realidade, é o conceito desta realidade (DA MATA, 2006, p. 355).

Este ponto nos remete a questão dos valores na sua teoria do conhecimento, de forma geral, relativos às ciências da cultura ou ciências humanas; e de maneira específica, à história levando em consideração que a sua especificidade é que elas são indissociáveis dos valores sociais. Para Rickert há dois tipos de valoração: a teórica e a prática:

intersubjetivo, mas que não implica qualquer “tomada de posição”. [...] Sem valoração teórica não há conceituação histórica [...]. Uma vez que sem ela não saberíamos sequer eleger o que é relevante. O problema da atribuição de historicidade é para Rickert — como o será para Weber — uma questão de valores “universais”, isto é, socialmente partilhados. [A segunda] A valoração prática, por seu turno, implica uma tomada de posição “contra” ou “a favor”. Para ela não há, ao menos idealmente, lugar na ciência. A distinção entre estas duas modalidades pode ser ilustrada a partir de um exemplo dado por Rickert. Certamente concordaremos que há algo de errado com o historiador da arte caso ele só leve em conta em seus estudos aquilo que seu próprio gosto estabelece como “belo”. Já o historiador científico “precisa se limitar ao que, contrariamente a uma valoração artística, podemos chamar de ‘relação’ teórica com o valor da arte” (DA MATA, 2006, p. 356).

A primeira permite ao historiador eleger o que, em meio à massa de objetos, épocas ou personalidades que tem diante de si, deve ser considerado efetivamente relevante. Claro está que se trata de um construto

A separação dos tipos de valoração entre teórica e prática exemplifica tanto a capacidade do ser humano em fazer leituras da realidade, ou seja, “teorizar” o mundo a sua volta; como ao mesmo tempo em que essa distinção da valoração demonstra, no tipo teórico, uma elaboração da elaboração

A partir do exposto percebemos que Rickert ao classificar os conceitos em dois grupos indica que o primeiro são conceitos simples porque são dados da percepção imediata, não há o que questionar sobre a noção de doce. Enquanto que o segundo grupo está relacionado ao fazer científico e a realidade seria o próprio conceito dessa realidade.

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na qual o que é teorizado cientificamente é selecionado do mundo fenomênico. Assim o conhecimento científico é engendrado no privilégio de certos fenômenos por meio do uso de conceitos em detrimentos de outros aspectos ou outros conceitos. Nesse viés, a produção de conhecimento nas ciências humanas ou nas ciências sociais deve ser construída levando em consideração entre os valores elencados pelos sujeitos da pesquisa (os sujeitos objetos de estudos) em decorrência de suas experiências ou vivencias, isto é, valorização prática; e as categorias, teorias e conceitos científicos que o pesquisador tem como background, ou seja, valorização teórica e suas categorias práticas também. Uma das especificidades das ciências humanas e ciências sociais em relação às ciências da natureza é que o nosso objeto de estudo é um ser pensante que constrói um conhecimento sobre o mundo e sobre a sua realidade. Logo, como critério de objetividade, é importante se averiguar que conhecimento esse indivíduo traz para que possamos mapeá-los intersubjetivamente com outros sujeitos pesquisados e para que possamos construir o conhecimento sobre aquela realidade assumindo que é sempre uma leitura do mundo. Essa valorização teórica é compreendida pelos neokatianos como a possibilidade do próprio pesquisador, seja da ciência da natureza ou das ciências humanas, só poder fazer leitura parcial e nunca total sobre o mundo, pois sua produção de conhecimento não tem como obter a essência do mundo. É

nessa impossibilidade da produção do conhecimento em sua totalidade que a ciência se constitui como um campo de conhecimento não dogmático e sempre inacabado. Assim, fazendo alguma comparação entre Popper e Rickert, ressaltamos que na teoria do conhecimento científico, para os neokantianos, o mundo fenomênico é percebido por meio de conceitos/teorias que possibilitam leituras do mundo, mas nunca o mundo em sua totalidade. Tal característica contribui para pensar as ciências ideográficas que procuram a percepção do particular, do que está relacionado com os juízos de valor que criam um mundo noumênico, a partir do mundo fenomênico e não necessariamente a refutabilidade das teorias. Por outro lado, na construção da teoria do conhecimento proposta por Popper, a questão central está na refutabilidade e na impossibilidade de validar as leis científicas de forma conclusiva. Assim, como cada teoria ou proposição não pode ser comprovadamente admitida como verdadeira, elas são validadas a partir de suas capacidades de resistirem à refutabilidade. O que nos leva a concluir que Popper lidava com uma frustração por não pode obter a verdade das coisas e dos fatos, como se ainda buscasse um exercício de abstração sobre a contingência e tal exercício seria materializado em uma metodologia comum para ambas as ciências (da natureza e da cultura ou do espírito). Desta forma, haveria uma resignação e caberia ao cientista se contentar com a pos-

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sibilidade da refutação como prêmio de consolação e tabua de salvação em um mar em fúria do mundo irracional e complexo. Enquanto que para Rickert a impossibilidade de retratar o mundo fenomênico não era uma frustração, mas sim o que permitia sua especificidade, visto que a teoria do conhecimento científico se constrói por meio de entendimentos sobre entendimento já realizados, são interpretações das interpretações, são aspectos valorizados em detrimentos de outros aspectos. Esta perspectiva assume uma diferença metodológica entre as ciências humanas e as ciências sociais (kulturwissenschaften) que se dedicam ao que é singular e não pode ser repetido e as ciências naturais (naturwissenschaftlichen) que se debruçam sobre a investigação de leis gerais. Desta maneira, o fazer da teoria do conhecimento tem a sua própria história que nos ajudar a entender/compreender os caminhos traçados e a construção de “verdades”. Ou seja, necessitamos usar o verstehen na própria (re)construção da filosofia da ciência.

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REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1982. BENTO, Ted. Philosophical Foudations of the Three Sociologies. Londres/ Henley/ Boston: Routledge e Kegan Oaul, 1977 CHALMERS, Alan F., O que é Ciência afinal? São Paulo: Brasiliense, 2000. DA MATA, Sérgio. Heinrich Rickert e a fundamentação (axio)lógica do conhecimento histórico. 2006 FEREREIRA, Jonatas. A Teoria do valor de Windelband e Rickert: fundamentos temporais de uma teoria do conhecimento in Estudos de Sociologia – Recife: Revista do PPGS da UFPE. Vol. 5, nº 2. – 1999. GIDDENS, Anthony – Política, Sociologia e Teoria Social: Encontros com o pensamento social clássico e contemporâneo. São Paulo: Unesp, 1998. POPPER, Karl. A Lógica das Ciências Sociais. Rio de Janeiro e Brasília: Tempo Universitário/UNB, 1998. OUTHWAITE, William. Entendendo a Vida Social. Brasília: Editora Universidade de, 1985. ____ & Bottomore, Tom. Dicionário do Pensamento Social do Século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. RICKERT, Heinrich. The Limits of Concept Formation in Natural Science: A logical introduction to the historical sciences. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.

Percursos das transformações da teoria e da validação do conhecimento nas ciências humanas: do falsificacionismo de Popper à teoria de valor de Rickert

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Doutor em Sociologia, professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco e-mail: <mm.marcelohenrique@yahoo.com.br> 1

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CIDADANIA E CRIANÇA Belintane, Claudemir 1 O conceito de cidadania se aplica à criança do mesmo modo que se aplica ao mundo adulto? O que é cidadania para uma criança? Quais são seus direitos de cidadão? Ler textos de seu universo imediato de letramento é avançar na cidadania? Desde os gregos que o conceito de cidadania faz-se valer em sua justeza, mas sempre deixando as marcas de seus complexos contornos. Cidadão!? Quem? Eu? Você? O banqueiro? O político corrupto? O escravo? O explorado? Um cidadão pode fazer ecoar seu “ão” ou contentar-se com seu “inho”. Como educadores, nossas perguntas precisam retomar essas marcas em uma das faixas etárias mais desprotegidas: E a criança?! Como uma criança pode ser cidadã? O que para ela seria cidadania? Teria algo a ver com esse “dada” que faz essa palavra lembrar infância?

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ACESSO À ESCOLA? Nas últimas décadas, o Ministério da Educação e as redes regionais de ensino vieram reforçando certo compromisso da educação com a cidadania. Isso parece muito bom, mas até onde tudo isso não pode redundar em uma retórica vazia, que só louva o já feito? O que de fato é preciso garantir e exercitar para que se possa falar em cidadania, sobretudo quando temos a infância como referência? Claro, podemos pensar nos direitos de acesso à educação! Sabemos que os últimos governos fizeram esforços para garantir o acesso de todas as crianças ao ensino básico (considerando apenas o Fundamental e o Médio) e, praticamente, chegamos lá: hoje, quase a totalidade das crianças brasileiras acima de seis anos está matriculada em uma escola. O mesmo ainda não podemos dizer quanto à Educação Infantil. Apesar da lei, ainda não se garantiu o acesso de todas as crianças a creches e escolas de educação infantil. Com esse governo ultraliberal (que governa para o mercado financeiro), as possibilidades atuais estão mais para cortes do que para extensão desse direito. Então, se considerarmos a infância, até mesmo o simples acesso ainda não está garantido. Mas cidadania não para aí! Vamos adiante.

ACESSO SIM, MAS E GARANTIR A QUALIDADE? Neste quesito, a garantia de direitos do pequeno cidadão cai pelas tabelas, e isso não é apenas culpa de governos – claro que

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estes devem ficar com o maior quinhão mesmo, pois são eles os responsáveis diretos pela execução das políticas. Pensemos, por exemplo, na colaboração das universidades! Elas teriam o papel de gerar conhecimentos para que as políticas acertem a mão em suas mudanças ou até mesmo para que possam apresentar críticas, contraposições em relação a políticas que não levam a lugar algum. Infelizmente boa parte dos professores e pesquisadores universitários está preocupada em garantir a sua condição de cidadão acadêmico internacional. Seguindo o reclame dos órgãos de fomento, das castas burocráticas que controlam as verbas para a pesquisa, a busca maior de um pesquisador é a internacionalização. Debruçar sobre problemas brasileiros e ir além das influências internacionais (das linhas pedagógicas) poderia ser o grande caminho: estabelecer um compromisso mais estreito entre o cidadão universitário e o candidato a cidadão, que é esse nosso complexo aluno brasileiro das classes desprivilegiadas. Contudo, isso parece não constituir o grande valor. O valor perseguido pelas lides universitárias está no estatos de seus pares internacionais, pois com eles ocupam-se em tratar de grandes questões educacionais, destas que atravessam os oceanos e figuram por um bom tempo nas revistas científicas e, de vez em quando, na mídia comum. Pesquisar o mundo brasileiro, a escola do pobre, conviver dentro dela, aceitar seus desafios seriam objetivos importantes para ajudar a garantir a qualidade da educação, mas o que a gente mais encontra, para facilitar a vida acadêmica, é a filiação teórica, a


subsunção a um pesquisador do exterior com o objetivo de fortalecimento nos agrupamentos internacionais. Mesmo nossos problemas mais palpáveis vão ser encapsulados por essas teorias e aí para resolvê-los tudo vai depender de como o professor do ensino básico assume o discurso universitário. Se a moda europeia se firma em tratar o contínuo dos discursos com a teoria dos gêneros de Bakhtin, é isso que vão levar aos professores e estes, por um bom tempo, vão se ocupar com essas classificações, vão fazer cursos de formação, receber novos materiais de formação, assistirão a mudanças nos livros didáticos, receberão novos projetos de suas secretarias etc. Se o resultado não for bom (e normalmente não é, por mais bem-intencionado que seja o projeto), se a coisa fica ainda pior do que dantes, já não é mais com eles. O tempo passou! Novas ideias estarão a caminho.

PARES E CONTRAPARES NACIONAIS E INTERNACIONAIS A qualidade em educação do ponto de vista teórico, da pesquisa universitária, acaba virando um balaio de gatos, pois todos os intelectuais que participam dos planos de governo pensam de cima para baixo. Primeiro pensam nas linhas de seus pares e contrapares e para não desagradar muita gente, não raro, juntam várias delas. Por exemplo, olhando bem o PNAIC (Pacto Nacional para a Alfabetização na Idade Certa), podemos notar que seus formuladores tentaram contemplar boa parte das correntes, mas o que a gente não enxerga no plano são as demandas reais das escolas brasileiras. Por exemp-

lo, a lista de objetivos tornou-se uma lista de DIREITOS - essa é a ideia magna: contemplar a cidadania tornando objetivos de ensino em direitos, ou seja, alguém teria que garantir aquele direito. Uma pressão ou um reconhecimento ético arrogante, do tipo, vamos reconhecer o direito do pobre, fazendo uma boa lista de direitos bem ajustada à retórica universitária, à relevância das ciências de primeiro mundo. Executá-la, efetivá-la no caudal complexo do cotidiano escolar, ah, isso é lá com os professores! Não estamos aqui para dar receitas! Que sejam professores críticos! A professora, com seus trinta alunos (na rede municipal de São Paulo chegando a quarenta), isolada, sem um trabalho coletivo e nem auxiliares de ensino, apenas com o que recebeu de formadores do PNAIC e das últimas novidades da Secretaria – quase sempre um conjunto de boas intenções, que casam bem com as teorias internacionais – assiste dia a dia sua esperança esmorecendo, quando percebe que 60% dos alunos que passaram por suas mãos não teriam leitura suficiente para continuar seus estudos. Apesar disso, na educação em geral, tudo está em paz, o plano é bom aos olhos de todos. Há consensos quando se pode dizer que é um direito da criança de oito anos (terceiro ano) “compreender e produzir textos orais e escritos de diferentes gêneros, veiculados em suportes diversos, e para atender a diferentes propósitos comunicativos, considerando as condições em que os discursos são criados e recebidos” (PNAIC, 2015, p. unidade 01, p. 32) - este é apenas o primeiro item de uma lista de seis sofisticados DIREITOS de aprendizagem da área de Língua Portuguesa

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para o ciclo de alfabetização: 1º ao 3º Ano. Tais diretos, entre tantos outros, seriam garantidos executando um amplo conjunto de “diferentes conhecimentos e capacidades básicas” divididos em cinco tópicos: (1) leitura; (2) produção de textos escritos; (3) oralidade; (4) análise linguística: discursividade, textualidade e normatividade; (5) análise linguística- apropriação do sistema de escrita alfabética. Puxa vida! Mais do que clara que a intenção de garantir o direito à cidadania da criança amplia-se no direito de garantir sobrevida às concepções vigentes em suas universidades. Parece um pouco aquela anedota que contam sobre a opinião do glorioso Garrincha diante da tática infalível exposta pelo técnico Vicente Feola para vencer a defesa russa: “Mas, o senhor já combinou isso com os jogadores russos? ”, diz Garrincha na sua ingenuidade, ou genialidade, de quem joga entre zagueiros que buscam seus joelhos. Como a professora vai garantir sozinha, lá na solidão da sala de aula, diante de uma heterogeneidade complexa, tais direitos de aprendizagem com as sofisticações que as linhas acadêmicas pedem, se ninguém combinou nada com os russos (ou ruços?)? Diz Guimarães Rosa pela voz de Riobaldo: “querer o bem com demais força já é por si principiar no mal”. Falta, então, conhecer mais a infância brasileira na escola (não a do laboratório), a professora brasileira. Em modus vulgaris: “cagar menos regra” e assumir mais as dificuldades reais de uma sala de aula, conhecer os “ruços”, como pens-

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am, como entendem a escrita, como se diferenciam na mesma classe social, como concebem a escolarização etc. Para fazer isso, seria melhor deixar a filiação de lado, ir em busca de surpresas, ir mais peladinho para a escola. Quem conhece criança de perto, sobretudo as mais pobres, sabe muito bem que sua cidadania, sua garantia de direitos está na mobilização de sua maior potência, que é sua capacidade de fantasiar. Para provar isso, em vez de me apoiar em Freud, Vygotsky ou em algum outro grande autor, trago a voz de uma boa experiência, a professora Henriqueta Lisboa, que, por acaso, foi também escritora e compiladora de contos de origem oral e conheceu crianças mineiras de pertinho: O sentimento estético da criança encontrará no folclore, acima de tudo, um mundo prodigioso de imagens e ritmos, a que raras vezes se superpõe a literatura escrita. Mundo de poesia, aurora primeva, limpidez de fonte. Assim, prolongar uma tradição regional no que ela possa oferecer de fecundo equivale a renovar o momento lúdico e lírico da humanidade; verificar, mais tarde, que essa tradição tem caracteres idênticos ou semelhantes aos de outros povos será recolher uma lição de amor. (LISBOA, 2002, p. 15). E essa voz mineira faz eco com a do filósofo-poeta Ortega y Gasset, que, em


1920, pugnou contra esse mesmo pragmatismo que vem ditar os direitos da cidadania infantil. Para o filósofo espanhol, a criança se alimenta de mitos, com eles robustece sua capacidade de fantasiar e é essa capacidade que se desdobra em desejo de aprender, de saber mais. Para Gasset, por detrás de todo grande cientista, de grandes escritores e artistas, está uma criança sonhadora. Jogar sobre a infância as utilidades cotidianas em nome de garantir direitos de cidadão é sufocar sua “niñez”. O que vemos nesse pragmatismo, exercido em nome de Bakhtin e de alguns bakhtinianos suíços, é uma enxurrada de textos de pouco valor, supostamente oriundos do universo de letramento da criança (logomarcas, propagandas, cartazes, bulas de remédio, receitas de culinária, manuais e outros textos perecíveis e de curto fôlego) sufocando os textos e gêneros que permitiriam o entusiasmo da criança e seu engajamento em leitura de textos de maior fôlego, de maior complexidade. O que os “gêneros do cotidiano” de um pretenso universo de letramento ou aqueles que garantem a cidadania engendram é a alfabetização funcional. Estaria então a cidadania e a garantia dos direitos ligados à alfabetização funcional? Se quisermos respeitar e garantir a cidadania, bem como zelar pelos direitos da infância, temos de enxergar que o que há de mais sagrado nesse campo é o que sustenta a sua capacidade de fantasiar. Os produtores de joguinhos eletrônicos sabem disso, usam de Gilgamesh a pokemons e com isso conseguem manter o entusiasmo das crianças para as novas fases e versões.

Nossa conclusão é: cidadania para criança ou para a infância é muito diferente de cidadania para adulto, para o mundo dos negócios e da política. Se tomarmos a criança brasileira do chão concreto da escola, a coisa fica mais diferente ainda. Se quisermos garantir direitos de verdade, temos que nos atentar às condições gerais da escola brasileira. O que significa uma professora sozinha cuidando de uma turma de trinta e tantos alunos com vinte por cento que já leem fluentemente, trinta que já dominam as sílabas simples, mas se enroscam nas complexas, mais trinta que ainda precisam aprender as letras e dez que sequer sabem o que é a função aluno (alunos que não entendem o que é uma sala de aula, como se relacionar com as outras crianças, que existem horários etc.)? Garantir a cidadania da infância passa por uma ampla reforma, uma reforma que não precisa respeitar tanto os Linguistas, Psicólogos, Pedagogos e Associações Internacionais (como as do método fônico, por exemplo) e outros próceres da internacionalização universitária, sobretudo quando eles vivem na Suíça ou nos EUA. Garantir a cidadania para a criança brasileira pressupõe andar descalço e quase pelado pelas escolas brasileiras; pressupõe escutar de fato os professores e crianças que sofrem com as demandas escolares e com as reais dificuldades em enfrentá-las. Entender coisas do tipo (mas in loco): por que algumas crianças não entram na escrita com a mesma facilidade que as outras? De que estratégias os professores podem lançar mão para lidar com uma sala extremamente heterogênea? Quantos

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profissionais são necessários para, de fato, garantir a alfabetização de trinta crianças em um ou dois anos? Um professor para trinta alunos dá? Nós fomos verificar isso de perto e achamos que não dá. Para encerrar este texto realçando o “dadá” da palavra cidadania, deixarei aqui uma boa prosa poética, imaginada e posta em palavras pelo poeta mineiro Chico dos Bonecos (Francisco Marques): ESCONDIDO - Marina, o que é cidadania? - Cidade de quem? - Ci-da-da-ni-a. - Já sei! Quer dizer: sei, mas não sei falar. Entendeu? - Entendi. É isso mesmo. - Isso mesmo, o quê? - Cidadania é tanta coisa que a gente acaba não sabendo falar. - E agora é a minha vez de perguntar: tio Joanico, o que é cidadania? - Você vai me ajudar a responder. Quer ver? Observe alguma coisa que está ao seu redor. - Hum.... Um toquinho de lápis.

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- Cidadania é isso! - Lápis? - O lápis e o que está escondido no lápis. - Escondido? - Cidadania é o direito de ter um lápis e descobrir os desenhos que ele pode fazer ou as palavras que ele pode escrever. - Ou as histórias que ele pode inventar. - Eu sabia que você sabia, Marina Gudina de Gurrunfina De Maracuntina Xiringabutina - E eu sabia que você sabia, tio Joanico Gudico de Gurrunfico de Maracuntico, Xiringabutico! Cidadania é o direito de descobrir as coisas dentro das coisas que a gente vai descobrindo. (MARQUES, 2000, pp. 40-41) Será que nossos ministros, secretários e intelectuais que subsidiam os governos não estão precisando de uma boa conversinha com o Tio Joanico? Talvez a professora Henriqueta Lisboa concordasse com isso: “Eu também acho, gudacho, de gurrunfacho, de maracuntacho, xiringabutacho”.


REFERÊNCIAS BELINTANE, C. Oralidade e alfabetização: uma nova perspectiva da alfabetização e do letramento. 1. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2013. v. 1. 223p. BRASIL, Ministério da Educação. Pacto nacional pela alfabetização na idade certa. Documento orientador das ações de formação continuada de professores alfabetizadores em 2015 http://pacto.mec.gov.br/images/pdf/Formacao/documento_orientador_2015_versao_site.pdf. Acesso em 10/2016. LISBOA, H. Literatura Oral para a Infância e a Juventude. São Paulo: Peirópois, 2002. MARQUES F. Galeio. São Paulo/Belo Horizonte: Editora Um dia Atrás do Outro: Piloto, 2000 (pp. 40-41). ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

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Professor Livre-docente na Universidade de São Paulo USP e pesquisador na área de linguagem, desenvolvendo o eixo temático “linguagem e educação”. Seu foco principal se estabelece a partir do tripé oralidade, escrita e memória (incluindo os meios eletrônicos). Possui diversas pesquisas e publicações nos campos da alfabetização e do letramento, sempre tendo como perspectiva a cultura oral e a literatura. Site http:// www.grupo-oralidade-leitura-escrita.com/ 1

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