Revista Interritórios - Dossiê Paulo Freire

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Reitor Anísio Brasileiro de Freitas Dourado Vice-reitora Florisbela de Arruda Câmara e Siqueira Campos Pró-reitor para Assuntos Acadêmicos Paulo Savio Angeiras de Goes Pró-reitora de Extensão e Cultura Maria Christina de Medeiros Nunes Pró-reitor para Assuntos de Pesquisa e Pós-Graduação Ernani Rodrigues de Carvalho Neto Pró-reitora para Assuntos Estudantis Ana Maria Santos Cabral Diretor do Centro Acadêmico do Agreste Manoel Guedes Alcoforado Neto Vice-diretora do Centro Acadêmico do Agreste Ana Paula Freitas da Silva Coordenador do Núcleo de Formação Docente Ernesto Arcenio Valdés Rodriguez Tutora do Programa de Educação Tutorial - PET Infoinclusão Anna Rita Sartore

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Editores Responsáveis Anna Rita Sartore (UFPE - Brasil) Everaldo Fernandes da Silva (UFPE - Brasil) Janssen Felipe da Silva (UFPE - Brasil) Saulo Ferreira Feitosa (UFPE - Brasil) Organizadores Maria Eliete Santiago João Batista Neto Comissão Editorial Aline Renata dos Santos Alyson W. de Souza Campos Amanda Fabrícia Sobral Santos Daiane Keila Silva Danilo Melo de Lima Eunice Pereira da Silva Graciene Morgana Portela S. de Oliveira Maria Karoline G. Alves Marta Cordeiro da Silva Gomes Renata Ribeiro da Silva Rodrigo de Moura Pereira Safira M. de L. Rosa Vanessa da Silva Conselho Editorial Adrián Scribano (CIECS - Argentina) Alexandre Viana Araújo (UFPE - Brasil) Alexsandro da Silva (UFPE - Brasil) Ana Maria Pereira Aires (UFRN - Brasil) Ângela Maria M da Motta (UFPE - Brasil) Anna Rita Sartore (UFPE - Brasil) Carla Patrícia A. Lins Guaraná (UFPE - Brasil) Cinthya Lúcia M. T S de Melo (UFPE - Brasil) Claudemir Belintane (USP - Brasil) Conceição Gislane N. L. de Salles (UFPE - Brasil) Débora Maria do Nascimento (UERN - Brasil) Edilson Fernandes de Souza (UFPE - Brasil) Edlamar Oliveira dos Santos (IFPE - Brasil) Edmerson dos Santos Reis (UNEB - Brasil Edna Cristina do Prado (UFAL- Brasil) Ernesto Arcenio Valdés Rodriguez (UFPE - Brasil) Everaldo Fernandes da Silva (UFPE-Brasil) Faustino Teatino Cavalcante Neto (UFCG - Brasil) Iranete Maria da Silva Lima (UFPE - Brasil) Jaqueline Barbosa da Silva (UFPE - Brasil)

Janssen Felipe da Silva (UFPE - Brasil) José Batista Neto (UFPE - Brasil) Lucinalva Andrade Ataide de Almeida (UFPE Brasil) Marcelo Henrique G. de Miranda (UFPE - Brasil) ) Marcia Angela da Silva Aguiar (UFPE - Brasil) Márcia Gurgel Ribeiro (UFRN - Brasil) Márcia Maria de Oliveira Melo (UFPE - Brasil) Maria de Fátima Garcia (UFRN - Brasil) Maria do Socorro Silva (UFCG - Brasil) Maria Eliete Santiago (UFPE - Brasil) Maria Margarete S. de C. Braga (UECE - Brasil) Maria Joselma do Nascimento Franco (UFPE Brasil) Maria Veronica Filardo Garcia (UDeLAR - Uruguai) Milton Vidal Rojas (UACh - Chile) Nadège Mézié (Université Paris Descartes França) Paulo Henrique N Martins de Albuquerque (UFPE - Brasil) Paulo Henrique Ribeiro Peixoto (UFPE - Brasil) Rita De Cassia Cavalcanti Porto (UFPB - Brasil) Roberto Araújo Sá (UFPE - Brasil) Sandro Guimarães de Salles (UFPE - Brasil) Saulo Ferreira Feitosa (UFPE - Brasil) Tatiane Rodrigues Cosentino (UFSCar - Brasil) Wallace Ferreira de Souza (UFCG - Brasil) Willy Soto Acosta (UNA- Costa Rica) Tradução Emanuelle de Souza Barbosa

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Projeto Gráfico Amanda Fabrícia Sobral Santos Marcos Vinicius Santos Vieira Padrão Gráfico Alyson Wegilles de Souza Campos Safira M de L. Rosa Revisão Eunice Pereira dos Santos Daiane Keila Silva Danilo Melo de Lima Marta Cordeiro da Silva Gomes Renata Ribeiro da Silva Vanessa da Silva Diagramação Amanda Fabrícia Sobral Santos Graciene Morgana Portela Sousa de Oliveira Desenho da Capa Vanessa da Silva

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Sumário APRESENTAÇÃO

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ARTIGOS

O PENSAMENTO PEDAGÓGICO DE PAULO FREIRE À LUZ DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

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PAULO FREIRE NA TRILHA DA CRIATIVIDADE LIBERTADORA

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A PRÁTICA PEDAGÓGICA DOCENTE HUMANIZADORA VIVENCIADA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: EXERCÍCIO INTENCIONAL E FORMATIVO QUE REQUER AÇÃO-REFLEXÃO TRANSFORMADORA

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GONÇALVES, José Luís A.

ROSAS, Agostinho da Silva

LEITAO, Edineide Souza Sá GUEDES, Marília Gabriela de Menezes ENSAIOS

REMENDAR OU REINVENTAR O MUNDO, A PARTIR DE NÓS? PAULO FREIRE NOS INSTIGA, NOS PROVOCA, NOS CONVOCA...

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CONTRIBUIÇÕES DE PAULO FREIRE PARA O PENSAMENTO EDUCACIONAL LATINO-AMERICANO

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CALADO, Alder Júlio Ferreira

NETO, José Batista SANTIAGO, Eliete

RELATO DE EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL

UMA PRÁTICA DOCENTE INSPIRADA NA PEDAGOGIA FREIREA NA: A EXPERIÊNCIA NA CÁTEDRA PAULO FREIRE DA PUC-SP

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PAULO FREIRE NA FORMAÇÃO DE ESPECIALISTAS EM EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO DE ADULTOS E INTERVENÇÃO COMUNITÁRIA

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TRAÇOS DA PEDAGOGIA DE PAULO FREIRE NA SALA DE AULA DA GRADUAÇÃO

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SAUL, Ana Maria SAUL, Alexandre

ALCOFORADO, Luiz

BRAGA, Maria Margarete Sampaio de Carvalho RESENHA CRÍTICA

PRINCÍPIOS POLÍTICO-PEDAGÓGICOS FREIREA NOS NAS POLÍTICAS CURRICULARES E NO CHÃO DA ESCOLA

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CARTA DO RECIFE

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GUEDES, Marilia Gabriela de Menezes

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APRESENTAÇÃO

Em hora oportuna, Interritórios abre suas páginas ao debate das ideias freireanas. E o faz num duplo sentido. Com a finalidade de por em evidência as contribuições do ideário do educador pernambucano para o desvelamento e compreensão dos problemas da educação, condições inerentes à sua transformação/superação. Mas igualmente por não se entender neutra no intenso debate, desde que uma escalada regressista instalou-se no país, nos anos mais recentes, e assim tomar partido, condição básica ao ser político, ao fazer política. São de conhecimento público as manifestações de intolerância, e até mesmo de fomento ao ódio, de que o pensamento de Paulo Freire tem sido vítima nos dias que correm. Grupos de extração conservadora e ultraconservadora disseminam palavras de ordem com as quais se reeditam agressões experimentadas pelo educador pernambucano ao longo dos anos 1960, no Brasil, quando da preparação e implantação do regime militar (1964-1985). O número temático que apresentamos inscreve-se num lugar e em uma lógica de positivação em face deste debate, buscando difundir as teses, as ideias freireanas por meio daqueles que se dedicam ao estudo sério, honesto, crítico e ético, e, assim sendo, fogem das facilidades do discurso ideológico de ocasião. Responde ao convite dos editores da Revista à Cátedra Paulo Freire da UFPE, considerando o seu lugar e missão institucionais. A Cátedra foi criada através da Portaria n° 04/2005 do Conselho Universitário da Universidade Federal de Pernambuco, é vinculada a Pró-Reitoria de Extensão e Comunicação (PROExC). Representa reconhecimento institucional, preservação da memória e espaço de produção e socialização da Pedagogia Paulo Freire. Projeta-se como um espaço dinâmico e dialógico de produção e socialização do conhe cimento buscando tecer o pensamento freireano como memória e atualidade. Três grandes linhas tecem o movimento da Cátedra: estudo biográfico, estudo da pedagogia e preservação da memória, através das atividades de ensino, pesquisa e extensão. Nesta direção, foi organizado o Dossier Paulo Freire. Diferentes gêneros textuais compõem este número temático. Nesse sentido, trazemos ao público leitor dois ensaios, três artigos, dois ensaios, três relatos de experiência profissional, uma resenha crítica e um documento no qual se registra o posicionamento de educadores/as e instituições educativas reunidos/as no V Seminário Paulo Freire, promovido pela Cátedra Paulo Freire da Universidade Federal de Pernambuco, realizado na UFPE, campus Recife, em 2015. Dois dos textos publicados são de autores de origem portuguesa. É possível, portanto, encontrar palavras grafadas e construções frasais diferentes das do português em uso no Brasil. Os editores advertem ao leitor que mantiveram o texto tal qual foi submetido. O vigor da contribuição de Paulo Freire se expressa na diversidade da busca acadêmica de que é mostra o conteúdo que convidamos à leitura. Os artigos oferecem uma contribuição conceitual a partir da abordagem do pensamento de Paulo Freire, à luz da Filosofia da Educação, explora a categoria criati vidade, a partir da obra freireana e utiliza a categoria humanização para a leitura crítica da prática

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pedagógica docente. Quanto aos ensaios, o primeiro oferece uma reflexão criativa, densa e crítica que nos instiga à leitura do mundo enquanto o segundo, seguindo os traços de uma biografia formativa, mostra aspectos da indissociabilidade vida e obra de Paulo Freire para a construção do pensamento da educação latino-americano. A vivência pedagógica em espaços acadêmicos que tomam Paulo Freire como contribuição teórico-metodológica é apresentada através de três relatos de experiência profissional no âmbito do ensino superior: a primeira na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – Brasil, na Cátedra Paulo Freire, seguida daquela experienciada na Universidade de Coimbra, Portugal e a terceira na Universidade do Estado do Ceará, Brasil. Fecham este numero da Revista Interritórios, a resenha crítica de um dos três livros que compõe a Coleção João Francisco de Souza, no âmbito do Projeto Editorial da Cátedra Paulo Freire da Universidade Federal de Pernambuco, e o documento Carta do Recife, subscrita por educadores e instituições educacionais por ocasião do V Seminário Paulo Freire, realizado pela Cátedra Paulo Freire da Universidade Federal de Pernambuco em 2015. Organizadores

Daniel Lisboa Soares Daniel Lisboa Soares

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ARTIGO

O PENSAMENTO PEDAGÓGICO DE PAULO FREIRE À LUZ DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO GONÇALVES, José Luís A.

Resumo Propomo-nos analisar neste artigo o pensamento pedagógico de Paulo Freire na ótica da filosofia da educação. Entendendo-se esta área de saber, simultaneamente, como reflexão tanto das problemáticas educacionais (no plano epistemológico e hermenêutico) como das problemáticas educativas (dimensão ética e antropológica) presentes no discurso pedagógico de Paulo Freire, a nossa análise assentará numa circularidade epistemo-antropológica deste pensamento. Dito de outra forma, é nossa intenção caracterizar a relação estreita que estabelecem entre si uma epistemologia da práxis e uma antropologia dialógica no pensamento pedagógico deste grande educador. Filosofia da educação. Epistemologia da práxis. Antropologia dialógica. Abstracto En este artículo nos proponemos examinar el pensamiento pedagógico de Paulo Freire en la perspectiva de la filosofía de la educación. La comprensión de esta área del conocimiento refleja tanto el problema educacional (el epistemológico y el plano hermenéutico) como las cuestiones educativas (dimensión ética y antropológica) presentes en el discurso pedagógico de Paulo Freire. Nuestro análisis hestara basado en una circularidad epistémica-antropológica de su pensamiento. Dicho de otra manera, tenemos la intención de caracterizar la estrecha relación que se establece entre una epistemología de la práxis y una antropología dialógica en el pensamiento pedagógico de este gran educador. Filosofía de la educación. Epistemología de la praxis. Antropología dialógica.

O pensamento pedagógico de Paulo Freire à luz da filosofia da educação

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FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO: PARA UMA CRÍTICA DA RAZÃO EDUCATIVA Enquanto labor reflexivo sobre o pensamento da educação e as regras de formação dos seus enunciados, a Filosofia de educação levanta a hipótese epistemológica de haver uma razão educativa por detrás de todo o discurso pedagógico e de ser possível encontrar-lhe uma unidade de sentido. Esta abordagem do pensamento sobre a educação não pretende, todavia, eliminar as contradições ou reparar as inconsistências que nascem no interior dos discursos e práticas pedagógicas. Antes visa fazer emergir “[um] ‘pensamento de educação’ ao conjunto de produções teóricas que tratam da educação […], ou seja, [identificar-lhe] o discurso sobre os fundamentos, os fins, os valores. E reserva-se então a expressão filosofia da educação à análise deste pensamento, ao pensamento deste pensamento. Todo o alcance filosófico parece-nos estar nesta reduplicação reflexiva, ou mais exatamente, ‘criticista’ no sentido kantiano [do termo]”. (Cf. N. CHARBONNEL, 1988, pp. 173-174). A análise a algumas dimensões do pensamento pedagógico de Paulo Freire que nos propomos levar a efeito neste artigo acontece à luz desta concepção de filosofia da educação, isto é, estrutura-se enquanto crítica da razão educativa com o objetivo de evidenciar modestamente algumas virtualidades conceptuais de que o seu pensamento é portador. Este desiderato evidencia-se tanto mais complexo quanto é sabido que as linhas eóricas que sustentam o pensamento

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de Paulo Freire resultam mais das reflexões inspiradas no seu percurso biográfico e nas situações históricoexistenciais (situações-limite) vividas, do que das leituras sistemáticas realizadas pelo autor a obras de referência. Embora enumere em alguns escritos as leituras feitas e os autores estudados, a exemplo da Pedagogia da Esperança, a coerência entre vida e teoria constitui a grande fonte inspiradora do seu pensamento pedagógico. Fiel a esta aceção, focalizar-nos-emos não tanto sobre a ‘pedagogia’ de Paulo Freire – quando entendida como corpo teórico hermético e representativo de princípios doutrinários constantes a serem aplicados na prática educativa -, mas sobre ‘o pedagógico’ do seu pensamento, incidindo, então, a nossa atenção, preferencialmente, sobre as propostas teóricas e os conceitos que veiculam, secundarizando, sem menosprezar, as suas relações com a prática. Nesta perspetiva, importam mais as estruturas conceptuais que preconiza que os factos que arrola, interessa mais analisar o campo históricoproblemático em que se move o pensador e menos o avanço socioeducativo alcançados por uma determinada ideia. A compreensão das suas ideias pedagógicas far-se-á à luz de uma crítica kantiana da razão educativa, isto é, para fazer jus ao que se disse atrás, deseja-se que abordagem filosófica não seja apenas epistemológica, “mas que tenha em conta o conteúdo ontológico daquilo sobre o qual se está a refletir”. (CHARBONNEL, 1988, p. 143). Nesse sentido, a abordagem ‘filosófica’ preconizada neste artigo caracteriza-se por ser holística (ne-


nhum domínio escapa à interrogação filosófica), radical (pretende ir à raiz dos problemas) e vital (a crítica não se contenta com o interesse especulativo) (REBOUL, 2000). Clarificando os pontos de partida da nossa análise, esclarece-se que usaremos no contexto deste artigo o conceito de epistemologia no sentido empregue por Octavi Fullat i Génis (1997) para designar o conjunto dos saberes em geral e não só os assim denominados ‘científicos’. A nossa análise não incidirá, portanto, sobre um tipo de verdade empírica ou da realidade que as obras evocadas porventura possam querer evidenciar, e também não assentará na análise axiomática de verdades formais ou de coerência nelas contidas. Valorizaremos antes as verdades existenciais ou de sentido extraídas dos conceitos em apreciação, verdades essas que se apoiam preferencialmente no compromisso pessoal e/ou coletivo de alguém que os viveu de forma significativa-comprometida como foi o caso de Paulo Freire. Como existem tantos tipos de verdade quantas as modalidades de conhecimento, e a cada tipo de saber corresponde uma metodologia apropriada, a nossa análise crítica dos conceitos freirianos não incidirá, como anteriormente dito, sobre os saberes empíricos neles vertidos e que recorrem aos métodos redutivos-indutivos, nem tão pouco sobre os saberes formais preconizados pelo autor e que trabalham com o método axiomático-dedutivo. Antes, pretendemos destacar os saberes de sentido que emergem do pedagógico do seu discurso e que se extraem do mesmo preferencialmente através dos métodos hermenêuticos e fenomenológicos. É,

pois, nossa intenção interpretar o significado educacional/educativo do discurso freiriano para lhe perscrutar as configurações do humano de que é portador. Dito de outra forma, interessa-nos indagar em que medida “o humano e o educacional constituem «significantes-significados» mutuamente referidos”. (FULLAT I GÉNIS, 1997, p. 16) no pensamento freiriano.

POR UMA EPISTEMOLOGIA DA PRÁXIS – A MATRIZ FILOSÓFICA HEGELIANA DO PENSAMENTO PEDAGÓGICO FREIRIANO Um breve levantamento dos conceitos-chave mobilizados por Freire nas suas obras (e.g., práxis, sujeito-objeto, conscientização, oprimido, ser alienado, etc.) remete-nos para um conjunto de pensadores conhecidos em que ele se inspira ou nos quais enxerta e reelabora determinadas noções e/ou conceitos, designadamente em Kant, Fichte, Jaspers, Bloch, Buber, Fromm, Dewey, Bachelard, entre outros. No entanto, está evidenciado que a matriz filosófica do seu pensamento mergulha as suas raízes prioritariamente na tradição do pensamento dialético de inspiração hegeliana (WOHLFART, 2013). Disso dá conta, a título exemplificativo, a conceção e a estrutura epistemológica desenvolvida por Paulo Freire na Pedagogia do Oprimido, escrito que segue de perto o sistema filosófico de Hegel patente nas obras Ciência da Lógica e Enciclopédia das Ciências Filosóficas. Deve destacar-se, neste contexto, especialmente a dialética da subjetividade e da objetividade preconizada por ambos quando referida à construção da noção

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filosófica de conhecimento. Assim, quer em Hegel quer em Freire, na circularidade dialética da estrutura epistemológica veiculada, a objetividade resulta da exteriorização e concretização da subjetividade na forma da “diferença” fora de si; por sua vez, a subjetividade constitui-se a partir deste processo de exteriorização do sujeito na objetividade mas agora enquanto movimento de consciente de retorno” a si. Dito nas palavras de Paulo Freire, “a consciência do mundo constitui-se na relação com o mundo; não é parte do eu. O mundo, enquanto “outro” de mim, possibilita que eu me constitua como “eu” em relação a “você”. […] A consciência do mundo, tocado e transformado, é que gera a consciência do eu”. (FREIRE & MACEDO, 1994, p. 39). A noção de método empregue por Hegel ampara teoricamente a integração permanente entre subjetividade e objetividade que Paulo Freire advoga e defende: A objetividade dicotomizada da subjetividade, a negação desta na análise da realidade ou na ação sobre ela, é objetivismo. Da mesma forma, a negação da subjetividade, na análise como na ação, conduzindo ao subjetivismo que se alonga em posições solipsistas, nega a ação mesma, por negar a realidade objetiva, desde que esta passa a ser criação da consciência. Nem objetivismo, nem subjetivismo ou psicologismo, mas subjetividade e objetividade em permanente dialeticidade. (FREIRE, 1987, p. 41).

Ampliando este processo dialético para a relação entre sujeitos, Freire preconiza que o oprimido só será capaz de compreender os mecanismos psicossociais que concorrem

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para a introjeção do opressor na sua mente e identificar os obstáculos epistemológicos em objetivar o opressor como um outro por esta via:

Só no entendimento dialético de como […] se dão consciência e mundo é possível compreender o fenômeno da introjeção do opressor, a aderência deste àquele, a dificuldade que tem o oprimido de localizar o opressor fora de si, oprimido (FREIRE, 2000a, p. 106).

A sua fonte de inspiração situa-se em Hegel na medida em que este filósofo se propôs pensar as condições históricas de efetivação da liberdade capaz de fazer a síntese entre as dimensões da individualidade e da sociabilidade do ser humano, por via do reconhecimento intersubjetivo nas várias esferas da vida coletiva. Socorre-se, por isso, da dinâmica de reconhecimento estabelecida entre dominado e dominador patente na Dialética do Senhor e do Escravo (Hegel, Fenomenologia do Espírito) para extrapolar esse paralelismo para a esfera pedagógica da relação que entretêm professor e aluno na educação bancária versus educação libertadora. Hegel, na Fenomenologia do Espírito, contribuirá decisivamente para compreensão das implicações morais do reconhecimento ao estabelecer simultaneamente uma conexão obrigatória entre autoconsciência e reconhecimento intersubjetivo e um vínculo necessário entre esta aquisição intersubjetiva da autoconsciência e o desenvolvimento moral das sociedades inteiras. Esta mesma lógica é seguida por Paulo Freire nas suas mais variadíssimas obras. A educação libertadora de Paulo Freire é potenciada pela noção de conscientização e somente operacionalizável através de uma


metodologia dialógica e problematizante (Conforme Pedagogia do Oprimido) da experiência do aprender capaz de construir conhecimento, tem por objetivo desenvolver a consciência crítica das pessoas, para que sejam capazes de conhecer a realidade, de a interpretar e, agindo sobre ela mediante opções comprometidas, transformar o mundo tornando o educan do sujeito da sua história. O processo educativo de cariz emancipatório-libertário que o pensamento freiriano preconiza pressupõe, pois, o compromisso com uma práxis transformadora: “Na medida em que o compromisso não pode ser um ato passivo, mas práxis – ação e reflexão sobre a realidade – inserção nela, ele implica indubitavelmente um conhecimento da realidade”. (FREIRE, 1983, p. 21). A verdadeira práxis transformadora acontece quando existe consciência crítica e esta “somente se dá com um processo educativo de conscientização” […somente] na [consciência] crítica há um compromisso”. (Freire, 1983, p. 39). Como muitas outras noções ou conceitos, a expressão freiriana conscientização faz jus à matriz da filosofia hegeliana quando este pensador explica que “a conscientização não pode existir fora da práxis, ou melhor, sem o ato ação-reflexão. Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens. Por isso mesmo, a conscientização é um compromisso histórico”. (FREIRE, 1980, p. 26).

ANTROPOLOGIA FREIRIANA: A DIALOGICIDADE ENTRE O INACABAMENTO HUMANO E A ESPERANÇA DA LIBERTAÇÃO

A imbricação implícita entre conceções do humano e da educação – isto é, a relação que entretêm entre si antropologia e pedagogia – constitui um dos postulados-chave em filosofia da educação. Ancorados, pois, na afirmação de Kant de que o homem é o que é unicamente pela educação, concebe-se, portanto, a educação como projeto antropológico. E se toda a práxis educadora pressupõe uma antropologia, é lícito afirmar que paideia e anthropos amparam-se e sustentam-se mutuamente, abrindo-se, em filosofia da educação, o processo educativo a uma circularidade epistemoantropológica de grande importância. (CARVALHO, 1998, p. 14). Para que a educação tenha este pendor antropológico, a filosofia da educação demarcase “por um lado, da redução da filosofia a um papel epistemológico e, por outro, da sua identificação como hermenêutica da ação. Deste respeito e distanciamento resultará a identidade antropológica primordial da ideia de educação”. (Ibidem, p. 14). Os mais diversos autores que ajudarem a por de pé a história do pensamento educacional sempre entenderam a educação como um processo e/ou uma passagem intencional do homem condicionado (natureza) para a liberdade (cultura), ora entendida como libertação da ignorância e condição de participação na polis (Platão) ou, como defende Kant, um processo de abandono da animalidade/ menoridade e aprendizagem para a decisão autónoma-esclarecida. A antropologia freiriana situa-se, neste âmbito, próxima destas conceções, designadamente a kantiana quando Paulo Freire deseja encontrar o fundamento antropológico para o processo educativo:

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[…] Tratemos de encontrar, na natureza do homem, algo que possa construir o núcleo fundamental onde se sustente o processo de educação. […] Este núcleo seria o inacabamento ou a inconclusão do homem. […] A educação é uma resposta da finitude da infinitude. A educação é possível para o homem, porque este é inacabado e sabe-se inacabado. Isto leva-o à sua perfeição. (FREIRE, 1983, pp. 27-28).

Em razão da autoconsciência do seu inacabamento e intuindo as possibilidades da sua humanização, a condição antropológica do Homem freiriano é a de ser homo educandus: É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente […]. É também na inconclusão de que nos tornamos conscientes e que nos inserta no movimento permanente de procura que se alicerça a esperança. (FREIRE, 1996, p. 64).

Postula o autor, pois, a educabilidade do homem o que, por sua vez, remete para as características de maleabilidade e da plasticidade do processo educativo, afinal, condição da sua perfetibilidade, como recorda em registo kantiano, A. D. Carvalho: É aqui que a educação desempenha o seu papel antropologicamente decisivo: não constituindo um fim em si, ela é, todavia, imprescindível para o cumprimento do homem como fim em si mesmo. […] A educação serve, pois, a construção de um homem definido pelo seu futuro: antecipa a humanidade futura – o que lhe confere sentido – porque o homem tem necessidade

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da educação para concretizar a sua liberdade e se instituir como ser moral. (CARVALHO, 1990, pp. 145 ss).

Paulo Freire insere-se, com todo o mérito, na linha dos grandes edagogos do século XX, e na opinião de Enrique Dussel (2002, pp. 422- 430), “supera até outros nomes consagrados como Piaget, Vygotsky ou até Kohlberg pelo caráter relacional-dialógico que imprime a todo o processo educativo”. Contra uma perspetiva mais individualista do desenvolvimento humano, Paulo Freire advoga a humanização da pessoa no ato de aprender como estando umbilicalmente ligada à qualidade da relação intersubjetiva estabelecida entre os sujeitos em diálogo. O processo de humanização é potenciado pela problematização em educação e acontece na relação dialógica dos sujeitos: “O que se pretende com o diálogo […] é a problematização do próprio conhecimento em sua indiscutível reação com a realidade concreta na qual se gera e sobre a qual incide, para melhor compreendê-la, explicá-la, transformá-la”. (FREIRE, 1992, p. 52). Daí que aação dialógica seja, em si, uma ação transformadora, por via da educação: ao contrário do que ocorre na teoria anti-dialógica da ação, que mitifica a realidade para manter a dominação, na colaboração, exigida pela teoria dialógica da ação, os sujeitos dialógicos se voltam sobre a realidade mediatizadora que, problematizada, os desafia. A resposta aos desafios da realidade problematizada é já ação dos sujeitos dialógicos sobre ela, para transformá-la. (FREIRE, 1987, p. 167).

Reside na força deste diálogo a condição de possibilidade de humanização do pró-


prio Homem por via da construção da sua autonomia pessoal e profissional que, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada nas experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade. (FREIRE, 1996, p. 121).

Nasce de uma matriz crítica e gera criticidade (Jaspers). “[…] Nutre-se o amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso, só o diálogo comunica”. (FREIRE, 2000, p. 115). Em síntese, a antropologia marcadamente personalista de Paulo Freire propõe uma pessoa que se entende a partir da comunicação interpessoal (Mounier) e na dimensão relacional pela via dialógica (Buber). Uma característica antropológica marcante da filosofia de educação de Paulo Freire ligada ao inacabamento da condição humana é a esperança. A esperança faz parte da natureza humana. Seria uma contradição se, inacabado e consciente do inacabamento, primeiro, o ser humano não se inscrevesse ou não se achasse predisposto a participar num movimento constante de busca e, segundo, se buscasse sem esperança. A esperança é uma espécie de ímpeto natural possível e necessário […], condimento indispensável à experiência histórica. Sem ela, não haveria História, mas puro determinismo. Só há História onde há tempo problematizado e não pré-datado. A inexorabilidade do futuro é a negação da História. (FREIRE, 1996, pp. 80-81).

Este conceito teológico-filosófico é trabalhado por Freire muito próximo a conceção de esperança defendida por Ernst Bloch quando este a alia ao conceito de práxis. Na reinterpretação que E. Bloch faz das obras do jovem Marx, recupera-lhe os traços humanistas da sua proposta e junta-lhe o significado da esperança enquanto princípio utópico: “este é e continuará sendo o caminho do socialismo, a práxis utópica concreta. Todo o não-ilusório e o realmente possível nas imagens da esperança remontam a Marx”. (BLOCH, 2005, p. 27). Na esteira de E. Bloch, que articula a esperança com os conceitos de antecipação, de utopia e de práxis, Freire consegue integrar esta dimensão no projeto de uma epistemologia da práxis, erigindo a característica antropológica da esperança como condição da transformação pessoal e social: “Enquanto necessidade ontológica, a esperança precisa da prática para tornar-se concretude histórica. É por isso que não há esperança na pura espera”. (FREIRE, 2000a, p. 11). Assim, a educação libertadora é práxis quotidiana da efetivação da liberdade (conforme Hegel), na medida em que “a libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica ação e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo”. (FREIRE, 1987, p. 67).

CONCLUSÃO A crítica filosófica da razão educativa que perscruta o pensamento pedagógico de Paulo Freire permite destacar a relação estreita e mutuamente implicada entre as dimensões epistemológica e antropológica presentes no seu conceito de educação. A

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centralidade que ocupa a relação intersubjetiva no processo de conscientização por via da educação e o papel insubstituível que o diálogo adquire nesse processo instituem-no – ao diálogo - como princípio metodológico e epistemológico por excelência. Quando aplicado ao processo de ensino-aprendizagem não-diretivo, pode concluir-se que

dos acontecimentos, a conscientização é exigência humana, é um dos caminhos para a posta em prática da curiosidade epistemológica. (FREIRE, 1996, p. 54).

saber ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção. […] Este saber necessário ao educador não apenas precisa de ser apreendido por ele e pelos educandos nas suas razões de ser – ontológica, política, ética, epistemológica, pedagógica –, mas precisa também de ser constantemente testemunhado. (FREIRE, 1996, p. 47).

Na perspetiva freiriana, a práxis verdadeiramente transformadora (da Natureza, do Homem e da Sociedade) há de dar conta do compromisso que a educação evidencia com a libertação gradual do Homem dos condicionalismos que impedem a sua humanização. O Homem “é um ser da “práxis”; da ação e da reflexão. […] Se encontra marcado pelos resultados da sua própria ação”. (FREIRE, 1992, p. 28). A pedagogia da esperança comprometida veiculada por Paulo Freire permite alimentar expectativas fundadas na transformação do mundo: Contra toda a força do discurso fatalista neo-liberal, pragmático e reacionário, insisto hoje, sem desvios idealistas, na necessidade da conscientização. Na verdade, enquanto aprofundamento da ‘prise de conscience’ do mundo, dos factos,

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GONÇALVES, José Luís A. Diretor da Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, Porto, Portugal; investigador do Gabinete de Filosofia da Educação do Instituto de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (UI&D/ Fil/00502) e do Centro de Investigação de Paula Frassinetti (CIPAF), Portugal. E-mail: joseluis@esepf.pt


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ARTIGO

PAULO FREIRE NA TRILHA DA CRIATIVIDADE LIBERTADORA ROSAS, Agostinho da Silva

Resumo O artigo decorre das discussões realizadas a partir da tese ‘educação popular com Paulo Freire pressupõe criatividade libertadora’. Como recorte teórico, centrou-se na leitura de Educação como prática da liberdade e Pedagogia do oprimido delimitando argumentos ao contexto e significado de criatividade e ação criativa. Dois objetivos foram elaborados desenhando o movimento metódico mediado pela dialética freireana. Um pretendeu demonstrar que criatividade é conotação fundante ao pensamento freireano e, na continuidade, outro objetivo delimitou a maneira de pensar-agir com criatividade e ação criativa em educação libertadora. Deduz-se que o pensamento freireano descrito se constitui em espaço teórico à criatividade e ação criativa, limitado pela singularidade da educação libertadora. Educação libertadora (popular). Criatividade libertadora. Ação criativa libertadora. Abstracto El artículo se deriva de las discusiones realizadas desde la tesis ‘educação popular com Paulo Freire pressupõe criatividade libertadora’. Como marco teórico, se centró en la lectura de La educación como práctica de la libertad y Pedagogía del Oprimido, se ha delimitado argumentos al contexto y significado de la creatividad y la acción creativa. Dos objetivos fueron construidos dibujando el movimiento metódico mediado por la dialéctica freireana. Un objetivo se he destinado a demostrar que la creatividad es fundamental para la continuidad del pensamiento freireano, otro objetivo marca la forma de pensar-actuar con creatividad y acción creativa en la educación liberadora. Educación liberadora (popular). Creatividad liberadora. Acción creativa liberadora.

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INTRODUÇÃO De certa maneira, um(a) leitor(a) mais cético(a) poderia se questionar orque relacionar Paulo Freire à conotação criatividade. Não seria de se estranhar, criatividade nunca foi tema gerador a sua discussão em educação. No entanto, ao adentrar em sua obra o(a) leitor(a) irá perceber que criatividade e ação criativa transitaram direta e indiretamente por dentro de seus livros. De Educação e atualidade brasileira (1959) à Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa (1996) criatividade emerge afastando-se do improviso, das práticas miméticas para assumir, gnosiologicamente, argumentos esclarecedores de seu pensar1. Seus livros, desde a maneira como os escreveu, são exemplos da diversidade de estilos, condição que se expressa com linguagem acadêmica (ex.: Educação e atualidade brasileira, 1959; Educação como prática da liberdade, 1967; Pedagogia do oprimido, 1970) aos dialogados (ex.: Sobre educação: diálogos, vol. 1, 1982; vol. 2, 1984; O caminho se faz caminhando: conversas sobre educação e mudança social, 1987 – publicado em 2002). Caminha pensando-escrevendo com sua singularidade percebida, em outros momentos, compartilhando histórias. Há os livros que escrevera pensando sua trajetória sob a maneira de tramas (ex.: Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido, 1992) ou cartas (ex.: Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo, 1977; Cartas à Cristina, 1994). Estes livros assinalam diferentes empregos à

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criatividade no contexto da escrita de Paulo Freire. Em processo de criação, exercitando seu potencial criativo, Paulo Freire segue demarcando as bases essenciais de suas ideias, condicionando sua própria inserção no mundo (ROSAS, 2008). Sua trilha transita associada aos vários gêneros da língua portuguesa. Como verbo, criatividade se encontra articulada a ação de “criar”, “recriar”, “recriar”, “inventar”, “reinventar” ou “re-inventar”. Em outros momentos, sob a condição substantivada, é corrente a identificação com termos que articulam criatividade à denominação de substantivo próprio, condição em que Paulo Freire se expressa com sua religiosidade, sua opção radicalizada na aproximação com o “Criador” (FREIRE, 1967). De outra maneira, concentra suas reflexões, orientado por argumentos da incompletude humana, intensificando o debate introduzido por Jean P. Guilford (1967), associando criatividade à condição humana, à habilidade de fazer cultura. Daí que, na condição de substantivo designando o estado singular de sujeito que vive o processo criativo (“criação”, “recriação”, “invenção”, “reinvenção”, “descobrimento”), ou mesmo, nas situações em que criatividade assinala a condição de sujeito no enfrentamento de problemas que capta da realidade percebida (“criador”, “‘criadora”), a ação criativa, no contexto da obra freireana, é consequência da maneira de ler o mundo, de estar no e com o mundo. Nesse sentido, mediado por sua opção teórico-filosófica, aquela com a qual delimi-


tou sua caminhada de sujeito histórico e de cultura, Paulo Freire vai trilhar com criatividade, maneira de “pensar-fazendo, centrando suas ideias no conceito de homem como ser de relações”. (ROSAS, 2008, p.39). Por conseguinte, como sujeito histórico e de cultura, Paulo Freire condicionou criatividade à educação enquanto processo de libertação humana livres do sectarismo, dos modos de opressão, produzidos no contexto de “sociedades fechadas”, constituídas por certa dialeticidade entre “inexperiência democrática e sua superação”. (FREIRE, 1959). Educação orientada por outros elementos que àqueles afinados com práticas pedagógicas “bancárias” – “opressora”, “vertical”, “informativa”, “autoritária”, “desesperançosa”–. Sua opção se fez por certa educação fundamentada na busca do “ser mais coletivo”, cuja dinâmica pedagógica se constituísse de práxis libertadora. Para muitos identificada por educação popular2. Assumindo o pensamento de Paulo Freire para delimitar Educação como prática da liberdade (1967), a discussão sobre criatividade vai exigir outros pressupostos, condicionando criatividade e ação criativa à práxis educativa “horizontal”, “comunicativa”, “democrática” e “criticamente esperançosa” (ROSAS, 2008, p.218). Entende-se, assim, que a ação de criar, recriar em educação, com e a partir dos enunciados teórico-filosóficos da Educação como prática da liberdade (1967), pressupõe a ‘leituramundo’ de que criatividade emerge com significado e práxis3 libertadora. Por isso mesmo, a ação de criar encontra-se condicionada por certa dimensão política

frente à diversidade das relações humanas. O que vai exigir de todos(as) que optam pela educação libertadora, delimitar suas ações conscientes de sua responsabilidade histórica com o social, com a valorização da vida em “sociedades abertas”4. Provavelmente a maior riqueza da obra de Paulo Freire, referente ao debate sobre criatividade, esteja na epistemologia condicionada por contextos amplos. Não se deve pensar criatividade com e a partir de Paulo Freire, em educação libertadora, sem esforço crítico radicalmente datado. Pensar criatividade em educação libertadora não deve se fixar numa leitura superficial, circunscrita ao conceito, ao esforço, mesmo que relevante, de descrever o significado de criatividade. Com Paulo Freire, em educação libertadora, significar criatividade exige trabalho situado e datado. Exige rigor metódico na busca por conhecimentos, por argumentação crítica, por “ética universal do ser humano” (FREIRE, 2000, p. 19). Exige responsabilidade política com o processo de humanização do humano. Daí que pensar a opção político-social atribuída à educação, delimitada por argumentos da criatividade com Paulo Freire, deve estar sustentada por princípios que fundamentam o processo de libertação humana. Exige ação criativa libertadora - criatividade libertadora5. E será este o propósito maior desta comunicação, demonstrar, por meio da palavra escrita em Educação como prática da liberdade (1967) e Pedagogia do oprimido (1987), criatividade é conotação fundante do pensamento freireano em educação. Na continuidade, pretendeu-se delimitar elementos teóricofilosóficos à maneira de pensar-agir com criatividade e ação criativa em educação libertadora (popular).

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Daí que a criação desse texto se deu em dois momentos que se movimentam na trilha da descoberta da criatividade libertadora. De início, com as primeiras ideias extraídas da obra de Paulo Freire (codificaçãodecodificação), o(a) leitor(a) poderá adentrar na dialeticidade mediada por argumentos da contradição, maneira com a qual se desvelará significado e situação com que criatividade e ação criativa se estendem como condição humana em busca por sua libertação. Na continuidade, com passos que se misturam com a trajetória da criação freireana, diálogo assumirá a conotação constitutiva de comunicação autêntica com que homens e mulheres se expressam como sujeitos ativos em processo criativo (codificaçãodecodificação). Como síntese, expressão da nova-codificação, nas considerações, criatividade e ação criativa articulam-se à educação libertadora (popular).

CRIATIVIDADE EM PAULO FREIRE: PRIMEIRAS IDEIAS Desde Educação como prática de liberdade (1967) a quando escreveu Educação e conscientização (capítulo 4) o esforço assumido por Freire fora o de pensar uma educação que possibilitasse contrapor o conservadorismo pedagógico, na direção de uma educação constituída por uma práxis libertadora. Educação orientada à aprendizagem de conhecimentos em busca da “superação da inexperiência democrática” (FREIRE, 1959). Naquela ocasião, a expressão criativa de Paulo Freire não se deu com o método de alfabetização, visto que sua atuação como professor de língua portuguesa não lhe sub-

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sidiara ao ponto de criar um método de alfabetização para educação de adultos. Bem porque o método analítico de alfabetização já havia sido inventado. Sua ação criativa interage com a introdução do diálogo, da leitura-mundo antecedendo a leitura da palavra, da afirmação do ser humano, analfabeto como sujeito histórico6 e de cultura7. Ao propor uma comunicação horizontal (círculo de cultura) entre professor (educadoreducando) e estudantes (educandos-educadores), sua ação criativa emerge do entendimento de que estar no mundo exige criticidade atenta aos feitos anteriores de outros homens e mulheres que ousaram pensar e posicionar-se no mundo. Pode-se imaginar, com Paulo Freire, que o movimento criativo seja consequência da “incompletude humana”, do reconhecimento acerca da “pluralidade” que se faz com as “singularidades” do humano (FREIRE, 1967), mediadas por certa compreensão crítica acerca das relações de que, como sujeito ativo, participa. A ação criativa de Paulo Freire esteve mais próxima da intenção de afirmar o ser humano como ser de relações, crítico por opção, delimitado por sua radicalidade, do que condicionado por certa elaboração de uma estrutura formal para a alfabetização de adultos. Seu ponto de partida, a pergunta. Questões desafiadoras com as quais o processo criativo ia sendo preenchido, com respostas inventadas, recriadas, expressando a maneira de solucionar problemas. Certa vez, se perguntara: “como proporcionar ao homem meios de superar suas atitudes, mágicas ou ingênuas, diante de sua


realidade? Como ajudá-lo a criar, se analfabeto, sua montagem de sinais gráficos? Como ajudálo a inserir-se?” (FREIRE, 1967, p.107). Dessas questões, iniciadas pela inquietude ousada, pela coragem de se perguntar, a ação criativa vai, aos poucos, se constituindo em ação concreta pensada. Seu exercício se deu pelo reconhecimento de que a leitura da palavra deve ser antecedida pela leitura do mundo, de onde se retiram temas e palavras geradoras8. É no mundo que se encontram os temas para a ação criativa. Codificar estes temas, decodificá-los pelo exercício singular da pessoa e, na continuidade, elaborar nova codificação são ações fundamentadas na compreensão utópica, amorosa da função educacional humana, maneira de agir com solidariedade tolerante daqueles que, não se acomodando no mundo, lhe deseja transformar. Educação orientada por esta intenção encontra seus argumentos na matriz epistemológica da comunicação verdadeira, cuja práxis pedagógica se expressa por diálogo autêntico (FREIRE, 1987). A ação criativa, elaborada nas relações entre sujeitos que atuam orientados pela valorização da “amorosidade humana em processo de sua humanização” (FREIRE, 1967), com atitude, humilde, dinâmica, situa-se no trânsito consciente nas relações de que participa, transformando obstáculos em concretos viáveis a serem enfrentados. Humildade e ação criativa encontram-se posicionadas a partir da realidade percebida, do reconhecimento de que a singularidade do sujeito em ação criativa, em aprendizagem, não se isola da pluralidade em que se insere. Nesse sentido, não há humildade que deva ser valorizada, no âmbito da educação libertadora, que esteja condicionada na direção contrária

ao respeito ao outro(a), ao diferente, à diversidade. Juntam-se a esta relação de elementos da matriz do pensamento de Paulo Freire, como afirmação de sua filosofia, teoria em educação, a esperança crítica (FREIRE, 1992), a fé, a confiança, a criticidade. Lembra-nos Carlos Brandão (2005, p.53), a alfabetização de adultos com Paulo Freire, com o que se chamou na origem por Método Paulo Freire, hoje claramente superado pela amplitude de seus feitos (sistema educacional), tem início com a participação do educador-educando, do educando-educador ao investirem ações na direção da descoberta “de palavras, revelando as ideias”, tem início com a pesquisa do “universo vocabular”, das “palavras geradoras” (FREIRE, 1987). Para Carlos Brandão (2005, p.55), a busca de temas e palavras geradoras significa a “procura das palavras da nossa gente”. Na continuidade, em processo de criação, os sujeitos se envolvem com um contexto que se amplia, o “das palavras geradoras para os círculos de cultura”. (BRANDÃO, 2005, p.61). Em círculo, situados na horizontalidade pedagógica, compreensão de que todos(as) são sujeitos de conhecimentos, de diferentes conhecimentos, cada um(a) com sua historicidade e culturas, compartilham aprendizagens na diferença. A criatividade emerge da ação crítica dos envolvidos mediados(as) pelo caminho que se estende “da palavra geradora para os temas geradores” (BRANDÃO, 2005, p.72), “aprendendo a ler e a escrever ideias com palavras” (BRANDÃO, 2005, p.75), transitam “do círculo para o mundo, da escola para a vida”. (BRANDÃO, 2005, p.83). Por conseguinte, a aprendizagem, enquanto expres-

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são da busca presente do estado alfabetizado, não se esgota na apropriação de definições de palavras, conceitos. Com Paulo Freire, a ação criativa estendida da descoberta das palavras para a apropriação do mundo, pela leitura-mundo, exige assumir perante ele [o processo de descoberta] uma atitude comprometida. Atitude de quem não quer apenas descrever o que se passa como se passa, porque quer, sobretudo, transformar a realidade para que, o que agora se passa de tal forma, venha a passar-se de forma diferente. (FREIRE, 2001, p.114).

Como criatividade libertadora, constitutiva da Educação Popular9, as atitudes se situam com propósitos de enfrentamento às formas de injustiça, contrárias aos modelos de opressão (FREIRE, 1987) e das desigualdades. Exige práxis, autenticidade, autonomia crítica (FREIRE, 2000). Expressa-se com atitude comprometida com o “pensar certo”10 (FREIRE, 2000, p.37-8), com a “esperança epistemológica” (FREIRE, 1992), com decisões tomadas por argumentos confirmados na “experiência reinventada”. (FREIRE, 1978). A ação criativa, assim pensada, encontra-se enraizada, comprometida com o social, com a busca da “superação de inexperiências democráticas”. (FREIRE, 1959). Interage com a perspectiva de criatividade integrada à educação como instrumento de transformação e respeito ao humano em sua humanização.

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Como recorte necessário à discussão, Pedagogia do oprimido (1987) foi livro selecionado por sua importância, e por relacionar criatividade à comunicação dialógica. Sua tese, “dialogicidade, essência da educação como prática da liberdade” (FREIRE, 1987, p.77), inspira-se na ideia de diálogo como condição humana. Confirma a prerrogativa de superação, em contexto histórico e de cultura, no momento em que pensa o “ser humano enraizado”, radicalmente comprometido com o outro, com o mundo, com as relações de que é sujeito autêntico e crítico. Criatividade com Paulo Freire, em Pedagogia do oprimido (1987), se insere na dialogicidade de pessoas cuja opção por comunicação esteja constituída de elementos da realidade que captam e agem com criticidade. Na diversidade de sujeitos, ação criativa e diálogo vão se constituindo em “situação-problema”, desafios mediados por “inéditos viáveis”, por certo movimento dialético de ação-reflexão-nova ação do ser humano se reconhecendo sujeito de criação. Por sua opção radical pela dialética, Paulo Freire inspira-nos a pensar criatividade mediada por certa dinamicidade contraditória da maneira humana de atuar em processo de comunicação. Pedagogia do oprimido (1987) possibilita reflexões entre teorias delimitadas ora por argumentos da dialogicidade, ora, como par oposto, a antidialogicidade. Disponibiliza elementos que evidenciam a criatividade como inerente ao ser humano, a condição humana de solucionar desafios captados da realidade, exigindo tomada de decisão quanto à maneira humana de estar e atuar criativamente.


Daí a ação criativa tanto servir aos modelos mais fechados de sociedade quanto podendo estar associada ao movimento de superação fundamental à organização de “sociedades abertas”. De um lado, circula condicionada por consciências ingênuas, criadas na contradição humanização-desumanização, no antidiálogo. Como sectário, ingenuamente em trânsito, o ser humano entra em contradição com sua “vocação humana”, a humanização (FREIRE, 1967; 1987). De outro, orientada por conotações provenientes da conscientização crítica, a ação criativa emerge como condição necessária à superação do “medo da liberdade”, ao enfrentamento de certa “dialética domesticadora”. (FREIRE, 1987, p. 24). Nas palavras de Paulo Freire (1987, p.30), [...] se ambas são possibilidades [hu-

manização e desumanização], só a primeira nos parece ser o que chamamos de vocação dos homens. Vocação negada, mas também afirmada na própria negação. Vocação negada na injustiça, na exploração, na opressão, na violência dos opressores. Mas afirmada no anseio de liberdade, de justiça, de luta dos oprimidos, pela recuperação de sua humanidade roubada.

Criatividade constituída de ideias e práticas de comunicação dialógica, situada na luta dos(as) marginalizados(as) pressupõe sujeito integrado ao projeto de sociedade que defende, consciente de seu enraizamento, cuja opção declina no movimento dialético das relações que participa, mediado por práxis libertadora. Nesse contexto, a comunicação dialógica é uma exigência da criatividade libertadora. Diálogo situado sob a lógica dialética,

mediada por contradição e superação, emerge da diversidade humana, das maneiras que o ser humano capta suas “situações limite” e as enfrenta consciente de seu “inédito viável”, de sua condição de inacabamento. Em movimento dialógico, a ação criativa trilha por curiosidade crítica11, fundamentada no que Paulo Freire (1987, p.78) denominou por “encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo”, superando a relação “eu-tu”. Em outra condição, presa ao antidiálogo, a ação criativa se afirma na opressão. Sua condição expressa a vontade de concentrar o produto criativo, os efeitos de sua criação no âmbito privado do indivíduo. Diferente da “colaboração”, a ação criativa de indivíduos se afirma com o desejo da “conquista”, da forma de “determinar suas finalidades ao objeto conquistado” (FREIRE, 1987, p.135), lhe atribuindo condição de posse, de coisa conquistada. Por isso mesmo, o homem e a mulher dominantes, no ato de dominar, atuam com ação criativa, negando ao outro(a) “o direito de dizer a palavra, de pensar certo”. Ibidem, p.123). Sua comunicação é mediada pelo aparato da mera informação. Criatividade condicionada por antidiálogo, própria ao modo opressor de dizer a palavra, se organiza por princípios sectários de divisão, manipulação para manter a condição de dominação. Noutra perspectiva, criatividade e ação criativa se situam sob a dinamicidade que, pretendendo superar o estado opressor de indivíduos, se consolida com a radicalidade dialógica. Motivo pelo qual os quefazeres criativos se situam no coletivo, na pluralidade delimitada por singularidades verdadeiras. A

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pronúncia da palavra se prolonga com a práxis libertadora, condição fundamental à ação criativa constituída com a maneira de pensar-agir, mediada por movimento da nova-codificação, em processo de libertação. Por isso mesmo, se a intenção for por trabalhar a prática educativa mediada por certa maneira de pensar-agir na dialogicidade como prática da liberdade (FREIRE, 1987), a trilha a ser desvelada exige criatividade libertadora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Dois foram os desafios absorvidos como “situação limite” para a comunicação em criação. Com o primeiro, a trilha foi sendo tecida com o propósito de demonstrar que criatividade é conotação fundante do pensamento freireano em educação. Caminhou-se por dentro da Educação e atualidade brasileira (1959), Educação como prática da liberdade (1967) e Pedagogia do oprimido (1987), de maneira a extrair elementos que possibilitaram afirmar a obra de Paulo Freire como espaço crítico ao debate sobre criatividade e ação criativa. Debate este que tanto consagra criatividade como condição humana, se situando no campo científico que explica criatividade, superando as ideias criacionistas ou aquelas decorrentes das explicações mágicas do espaço das fantasias, quanto a delimita por argumentação fundamentada na dinamicidade do ser humano como sujeito histórico e de culturas. Na continuidade, pretendeu-se delimitar elementos teórico-filosóficos à maneira de pensar-agir com criatividade e ação criati28

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va em educação libertadora (popular). Nesse sentido, os livros selecionados, condicionados pelo pensamento de Paulo Freire acerca da educação, possibilitaram afirmar criatividade e ação criativa como constitutivos da educação libertadora (popular). Por conseguinte, ao relacionar criatividade e ação criativa à práxis problematizadora, decorrente da educação como expressão do pensar-agir humano em processo de libertação das práticas opressoras, domesticadoras que coisificam a condição humana, há de se delimitar o campo teórico-filosófico da ação educativa com criatividade e ação criativa libertadoras. Daí que criatividade libertadora é condição humana motivada pela consciência transitivamente crítica; que se expressa como condição de sujeito ativo, transformador, singular, inconcluso. Criatividade e ação criativa, libertadoras, se exprimem como condição de ser humano que se reconhece como sujeito histórico e de cultura; que atuam com trabalho mediado por certo ânimo criador, experiência criativa; com amor aos homens e mulheres, exige atividade criativa revolucionária cujo movimento implica em superação da dicotomia trabalho manual e trabalho intelectual, da divisão de prática e teoria; exige ausência de privilégios, respeito à pluralidade, à disciplina criadora e militante; exige compromisso com o ser mais coletivo, ética contra a massificação, a sectarização, a consciência ingênua, milagrosa. Com o exposto, pode-se deduzir que, se a opção por educação for no sentido da tri-


lha delimitada por Paulo Freire, criatividade e ação criativa atendem por certo projeto político de sociedade fundamentado na dialeticidade contraditória e superadora das práticas opressoras. Exige ação criativa libertadora.

ROSAS, Agostinho da Silva Doutor em Educação, docente na Universidade de Pernambuco, nos cursos de Licenciatura em Educação Física e Licenciatura em Ciências Sociais; associado ao Centro Paulo Freire Estudos e Pesquisas. E-mail: agsrosas48@gmail.com

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Situado pela lógica da Dialética do concreto (1976) pode-se pensar que o trabalho de escrever-lendo-reescrevendo, como exercício gnosiológico remete o escritor-leitor ao esforço crítico de afastando-se da aparência da coisa, aproximar-se de sua essência. Paulo Freire (2001, p. 113) escreveu: “Isto significa que temos de realizar o esforço difícil de desembaraçálo destas aparências para apanhá-lo como fenômeno dando-se numa realidade concreta”. Nesta sintonia dialética encontram-se elementos da significação da coisa em si, maneira de se posicionar diante do agir gnosiológico, com criticidade. 1

Educação libertadora, introduzida nos anos de 1960 (educação de adultos), no Brasil, com o Movimento de Cultura Popular (Recife em Pernambuco), a Campanha de Educação Popular (João Pessoa e Campina Grande, na Paraíba) e a Campanha De Pé no Chão também se Aprende a Ler (Natal, no Rio Grande do Norte), vai abrir espaço para a criação da abordagem em Educação Popular, sustentada por argumentos da práxis libertadora, com e a partir de Paulo Freire. 2

Antes de prosseguir, há algo a ser dito. Paulo Freire nunca foi estudioso de criatividade. Em nenhum momento de sua obra criatividade foi objeto de seus estudos. No entanto, em toda a extensão de seu pensamento criatividade foi palavra fundante. Motivo pelo qual sua obra se apresenta com elementos de profundidade teórica, epistemológica e filosófica para explicar criatividade como pressuposto da educação libertadora. 3

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Sobre “sociedade aberta” e “sociedade fechada”, ver Educação e atualidade brasileira (1959).

“Criatividade libertadora expressa dimensão qualitativa com a qual se opõe semântica, política e filosoficamente aos modelos que explicam criatividade sob as bases da educação dominante, tradicional. Trata-se da opção que assume na ação de criar e recriar, influenciada pela lógica epistemológica e teórico-filosófica paulofreireana, o princípio que move as relações humanas” (ROSAS, 2008, p.140). 5

Assumir a condição de sujeito histórico diz da opção de homens e mulheres se perceberem no espaço-tempo. Diz Freire em diálogo com Moacir Gadotti (em A educação neste fim de século, 1991): “melhor maneira de alguém assumir seu tempo, e assumir também com lucidez, é entender a história como possibilidade. O homem e a mulher fazem história a partir de uma dada circunstância concreta, de uma estrutura que já existe quando a gente chega ao mundo. Mas esse espaço tem que ser um tempo-espaço de possibilidade, e não um tempo-espaço que nos determina mecanicamente”. (FREIRE, 1991, p.89-90). 6

Influenciado pela leitura de Álvaro Vieira Pinto (Consciência e existência, 1969), de que “cultura é uma criação do homem, resultante da complexidade crescente das operações de que esse animal se mostra capaz no trato com a natureza material, e da luta a que se se vê obrigado para manter-se em vida” (p. 122), Paulo Freire assume o termo cultura para delimitar a condição humana de produção pela sua força de trabalho. Reconhecendo-se sujeito de cultura, o ser humano integra-se ao mundo com relações de que participa ativamente. Nas palavras de Paulo Freire, “cultura como o acrescentamento que o homem faz ao mundo que não fez. A cultura como o resultado de seu trabalho. Do seu esforço criador e recriador [...] cultura é toda criação humana”. (FREIRE, 1967, p. 109). 7

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Paulo Freire parte do concreto vivido pelos educandos(as) – palavra e tema gerador -, desafia-os(as) em diálogo a assumirem-se como sujeitos; recria o concreto vivido pela reflexão crítica e autêntica (ROSAS, 2008, p.152). 8

Miguel Arroyo (2001) quando se referia à criação de um projeto de educação popular para o Brasil, lembrava a importância dos movimentos sociais como formas de luta pela libertação do povo. Associava o autor, educação popular aos “movimentos de libertação” no Brasil e América Latina, destacando a obra de Paulo Freire como referência à transformação do ambiente educativo-pedagógico de formação dominante, superando o modo de pensar e agir por dinamicidade orientada pela dimensão libertadora. 9

Foi termo empregado por Paulo Freire (2000), em contexto dialético, para assinalar a maneira de pensar comprometido. Pensar certo, “demanda profundidade e não superficialidade na compreensão dos elementos de um fato ou fenômeno. Supõe a disponibilidade à revisão dos achados, reconhece não apenas a possibilidade de mudar de opção, de apreciação, mas o direito de fazê-lo” (p. 37); “pensar certo é o de quem busca seriamente a segurança na argumentação, é o de quem, discordando do seu oponente não tem por que contra ele ou contra ela nutrir uma raiva desmedida”. (p.38-9). 10

Referindo-se ao ser humano com conotação de criticidade em diálogo, Paulo Freire (1987) retoma o que escrevera em Educação como prática da liberdade (1967) condicionando a transitividade do movimento de pensar-agir crítico à radicalidade com que as relações humanas são delimitadas por elementos de sua amorosidade. Com isso, escrevera: “O homem em diálogo, que é crítico, sabe que, se o poder de fazer, de criar, de transformar, é um poder dos homens, sabe também que podem eles, em situação concreta, alienados, pode ter este poder prejudicado. Essa possibilidade, porém, em lugar de matar no homem dialógico a sua fé nos homens, aparece a eles, pelo contrário, como um desafio ao qual tem de responder”. (FREIRE, 1987, p.81). 11

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Paulo Freire na trilha da criatividade libertadora

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ARTIGO

A PRÁTICA PEDAGÓGICA DOCENTE HUMANIZADORA VIVENCIADA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: EXERCÍCIO INTENCIONAL E FORMATIVO QUE REQUER AÇÃO-REFLEXÃO TRANSFORMADORA LEITAO, Edineide Souza Sá GUEDES, Marília Gabriela de Menezes

Resumo O artigo analisa a prática docente, na perspectiva humanizadora, como exercício dialógico e intencional que se articula à prática pedagógica institucional, contribuindo com a formação dos sujeitos nos processos de escolarização. As reflexões aqui apresentadas resultam de uma pesquisa realizada em um município da região metropolitana do Recife. A abordagem qualitativa presidiu a investigação tendo a coleta de dados utilizado a observação e a entrevista semiestruturada. A organização e tratamento dos dados fizeram-se através da Análise de Conteúdo de Bardin (2008). Os resultados mostraram aproximações da prática pedagógica docente analisada com os pressupostos da educação humanizadora freireana, na qual o diálogo, numa perspectiva crítica e amorosa, se apresentou como eixo articulador da relação docente-discente e do processo de produção do conhecimento. Prática pedagógica docente. Educação Humanizadora. Diálogo. Paulo Freire. João Francisco de Souza. Abstracto El artículo analiza la práctica docente en la perspectiva humanizadora, como ejercicio dialógico e intencional que articula la práctica pedagógica institucional, contribuyendo con la formación de los sujetos en los procesos de escolarización. Las reflexiones presentadas aquí son el resultado de una encuesta realizada en una ciudad de la región metropolitana de Recife. El enfoque cualitativo presidió la investigación, en la recopilación de datos se ha utilizado la observación y la entrevista semi-estructurada. La organización y el tratamiento de los datos se ha realizado a través del Análisis de Contenido de Bardin (2008). Los resultados demuestraron acercamientos de la práctica pedagógica docente analisada a través de los pressupuestos de la educación humanizadora freireana, en la cual el diálogo, representado por una perspectiva crítica y amorosa, se presenta como eje articulador de la relacción docente-discente y de los processos de produción del conocimiento. Práctica pedagógica docente. Educación humanizadora. Diálogo. Paulo Freire. João Francisco de Souza. A prática pedagógica docente humanizadora vivenciada na educação de jovens e adultos: exercício intencional e formativo que requer ação-reflexão transformadora

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INTRODUÇÃO O artigo trata da concepção de prática pedagógica docente, com foco no diálogo, na amorosidade e na criticidade. A partir de Paulo Freire (2009), tais conceitos trazem elementos que contribuem para a construção de aprendizagens que têm como horizonte a humanização dos sujeitos. Essas concepções se materializam em atitudes, escolhas e relações empreendidas na prática educativa em que os(as) estudantes são compreendidos como seres sociais, históricos e inconclusos, que ao desenvolverem, por meio do diálogo, a percepção crítica sobre a realidade, vão se tornando capazes de produzir seus próprios saberes e de criar condições para uma atuação mais efetiva na sociedade. Nessa direção, a prática dialógica se constrói na relação horizontal entre sujeitos. Relação que nasce de uma visão crítica e gera múltiplos olhares críticos sobre a realidade. Nutre-se da amorosidade, compreendida como dimensão afetiva, política, epistemológica e ética. A prática dialógica emerge, portanto, do exercício reflexivo da fala e escuta entre professores(as) e estudantes, que buscam problematizar a realidade e encontrar alternativas de transformação; orienta-se pelo conhecimento como instrumento de desvelamento da realidade; considera o contexto histórico em que o saber foi construído; assenta-se na busca da autonomia dos(as) estudantes e no compromisso ético e político com a justiça social. A perspectiva dialógica de educação é adotada por João Francisco de Souza (2007), quando entende a prática pedagógica como

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processo de formação humana institucional, coletiva e relacional. A prática pedagógica docente, por sua vez, é um dos núcleos constitutivos do processo de ensino e aprendizagem. Tal ideia, no entanto, não restringe a importância dessa prática nem o seu significado, ao contrário, a aproxima do entendimento de que a ação docente é relacional, formativa, intencional e sistematizada. No escopo da pesquisa, adotamos o conceito de prática pedagógica docente formulado por Guimarães e Santiago (2013, p. 17), com base em Souza, as quais destacam: “[...] a prática pedagógica docente e/ou educativa é humana por isso social e relacional, com intencionalidade formativa, tendo a instituição como influenciadora e espaço de sua efetivação”. A perspectiva aqui retida é de uma intencionalidade formativa que, de um lado, opõe-se a formas de ensino voltadas apenas para a decodificação mecânica da linguagem escrita e, por outro lado, orienta-se por um projeto educativo provocador da reflexão e teorização crítica da existência humana, permitindo que cada estudante possa perceber e identificar as tramas sociais onde estão enredados seus conhecimentos e seus valores, seu modo de ser e estar no mundo. É com essa compreensão que apresentamos, neste artigo, uma análise dos resultados de uma pesquisa1 que toma a prática de duas professoras da Educação de Jovens e Adultos (EJA), como objeto investigativo.

METODOLOGIA


O caminho metodológico escolhido para esta investigação nos fez optar pela abordagem qualitativa, considerando sua pertinência e adequação. Como procedimentos e instrumentos de coleta de dados, recorremos à entrevista semiestruturada e à observação. A análise temática, uma das modalidades da Análise de Conteúdo, foi fundamental para a organização e o tratamento das informações coletadas e produzidas no campo. A Secretaria de Educação de Olinda foi nossa opção de campo mais amplo dessa pesquisa. Inicialmente, a escolha foi estimulada pelos estudos de Guedes (2012), que buscou compreender a contribuição de Paulo Freire na formulação de políticas e práticas curriculares nos sistemas de ensino do estado de Pernambuco. A citada autora apontou, além da Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco, cinco municípios da região metropolitana de Recife (RMR) – Cabo de Santo Agostinho, Jaboatão dos Guararapes, Camaragibe, Olinda e Recife – os quais revelaram, em suas propostas curriculares, indícios do pensamento político-pedagógico de Paulo Freire. A definição pelo município de Olinda ocorreu, posteriormente, após entrevistas realizadas com a Assessora do Gabinete da Secretaria e com a Coordenadora da Divisão de Educação de Jovens e Adultos, as quais destacaram o trabalho que vem sendo desenvolvido pela Coordenação de Educação de Jovens e Adultos, no sentido de reduzir o quantitativo de evasão, bem como, realizar iniciativas, em solidariedade com gestores(as) e professores(as), de estimular ações de incentivo e valorização de jovens e adultos(as) que estudam em classes

da EJA. Através dessas entrevistas, vimos que o pensamento político-pedagógico de Paulo Freire constituiu-se uma referência histórica no município de Olinda desde 1996, período em que foi criado o Centro de Educação de Jovens e Adultos (CEJA), sob a gestão do então prefeito de Olinda, Germano Coelho, e do professor João Francisco de Souza, titular à época, da Secretaria de Educação. Essa constatação corrobora com o que sustenta Minayo (2002) sobre a entrevista, que a entende como um instrumento fundamental para que o(a) pesquisador(a) possa obter informações contidas na fala dos atores(as) sociais, sendo possível aprofundar conhecimentos, além de esclarecer dados sobre o objeto de pesquisa. O CEJA representou uma proposta inovadora e as ações que foram desenvolvidas nesse espaço tiveram repercussões, tanto em nível regional como nacional. As concepções pedagógicas que fundamentaram o projeto desenvolvido pelo CEJA têm referência no pensamento freireano, à medida que se orientava por uma proposta educativa crítica, em que a formação de professores se realizava de forma contínua. Objetivava-se a consolidação da EJA como modalidade de ensino com características próprias, procurando estabelecer articulações com as necessidades de vida, trabalho e participação política e social das pessoas. Diante disso, nossa opção pela EJA em Olinda fundamenta-se por compreendermos que as ações que vêm sendo empreendidas no município sustentavam-se em princípios hu-

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manizadores freireanos, os quais orientaram a proposta educativa do CEJA e que permanecem inspirando as ações da Coordenação de Adultos até os dias atuais, refletindo-se no trabalho pedagógico dos (as) professores(as). Para conhecer a materialização dos princípios da educação na perspectiva da humanização de Paulo Freire, na prática pedagógica docente que se realiza no chão da escola, nos valemos da observação. Tura (2011, p. 189) considera a observação um procedimento que possibilita ao pesquisador/a adentrar à vida de um grupo, “[...] com o intuito de desvendar as redes de significados produzidos e comunicados nas relações interpessoais. Há segredos do grupo, fórmulas, padrões de conduta, silêncios e códigos que podem ser desvelados”. Desta forma, buscamos na observação da prática pedagógica de duas professoras da EJA, considerar gestos, atitudes e ações que acontecem na prática educativa, sem perder de vista as peculiaridades dos sujeitos e do espaço em que estão incluídos. Atentamos, também, para o modo como os materiais didáticos, os conteúdos e as atividades realizadas eram escolhidos e abordados nas aulas, articulando-os com os pressupostos do diálogo, amorosidade e criticidade tratados na teoria pedagógica freireana. Organizamos os dados a partir das situações de ensino apresentadas nas práticas das professoras, ou seja, a partir das diferentes atividades desenvolvidas com os(as) estudantes, de forma sistemática. As discussões e os resultados dessa análise serão discutidos a seguir.

RESULTADOS E DISCUSSÕES Para compreender a organização do cotidiano da sala de aula e os cenários em que foram produzidos os saberes, partimos da compreensão freireana de que a ação docente não se faz sem a discente. Assim, entendemos que as concepções, as metodologias, as articulações estabelecidas entre o discurso e a prática revelam as bases teórico-práticas que orientam o trabalho do(a) professor(a) na relação com os(as) estudantes e no trato do conhecimento. Desta forma, as professoras procuraram construir situações de ensino alegres e desafiadoras, que buscassem superar a visão compartimentada nos processos de produção de conhecimento. Privilegiaram propostas dialógicas que favorecessem a interação da turma e a articulação entre as temáticas, considerando o universo cultural dos(as) estudantes; buscaram construir relações democráticas, não impondo os conhecimentos, mas criando espaço e fazendo pequenas intervenções para que todos(as) pudessem exercer o direito à fala e à escuta. Com isso, descrevemos e analisamos a seguir três situações de produção de conhecimento desenvolvidas nas práticas das professoras.

LEITURA, PRODUÇÃO E INTERPRETAÇÃO DE DIFERENTES TIPOS DE GÊNEROS TEXTUAIS: UM TEXTO DE PROPAGANDA E UM POEMA

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O incentivo à leitura e interpretação de


diferentes gêneros textuais foi uma das situações de ensino nas quais as professoras procuraram promover a discussão do conteúdo com a participação dos(as) estudantes de forma efetiva. Nesse sentido, um texto de propaganda e um poema foram utilizados como recurso didático.

Nessa situação de ensino, a professora procurou iniciar o assunto, contextualizando o texto e mostrando a relação do seu conteúdo com as discussões sobre gênero textual que havia trabalhado em Língua Portuguesa e os assuntos de História, conforme o extrato do diário de campo:

Em relação à propaganda, foi feito uso de um texto escrito no tempo do Brasil Imperial, publicado pelo Almanak Laemmert, no ano de 1885, que apresenta uma propaganda de uma fábrica de cerveja, instalada no Rio de Janeiro, naquele ano (Figura 1). O objetivo desta atividade foi contribuir para que os(as) estudantes exercitassem a análise e a compreensão textual, por meio das características do gênero propaganda, dando, ainda, continuidade ao estudo da história do Brasil.

Professora: “Observem que nessa propaganda vemos que fala de uma fábrica de cerveja que existia há 131 anos. Agora vocês imaginem como eram as fábricas naquela época. Será que tinham a organização que vemos hoje?”. Um estudante diz: “Eu acho que não, professora, porque as coisas hoje mudaram, avançaram. Quando eu trabalhava na fábrica, as coisas não eram como é hoje. Eu mesmo entrava e saia das câmaras frias de sorvete e nem recebia adicional pela insalubridade”. Outra estudante lembra: “Eu trabalhava numa fábrica e ficava com a mão cheia de calo e nem recebia luva, nem óculos de proteção, nem nada. Hoje é melhor.”. A professora diz: “E o senhor seu A, o que acha? E você L?” Seu A responde: “Eu nem sei professora, mas eu acho que os sindicatos eram melhores antes do que agora”. A professora diz: “Sim, eu também concordo, a maioria deles hoje tem envolvimento com os empresários”. Seu A destaca: “No meu tempo não tinha isso da gente não saber o que acontecia. O sindicato falava, se reunia”. A professora ressalta: “Pois é, temos uma sociedade que é contraditória. Nós avançamos em direitos e, por outro lado, o jogo de interesses políticos e econômicos faz as coisas, às vezes, recuarem, por isso a gente precisa se esclarecer para perceber o que está por traz das atitudes das lideranças políticas”.

Figura 1 - Gênero textual propaganda

Fonte: Almanak Laemmert, 1885.

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Figura 2 - Poesia: O Açúcar

Caderno de campo, 2015. Na condução do momento de produção de conhecimento, as professoras apostavam na capacidade de discernimento dos sujeitos aprendentes, no seu potencial para perceber a evolução do tempo, situando-se nele de forma crítica e interferindo em seu direcionamento. Revelaram, ainda, que o contexto social e político pode dificultar os sujeitos de pensar de forma liberta sobre a realidade, mas também, pode ir sendo superado, no ato mesmo de pensar criticamente sobre os desafios impostos, ao passo que se organiza a ação, por meio do estudo, da decisão, da criação. Desse modo, estimulam a formação de pessoas que possam se relacionar de maneira mais recíproca e solidária. O trabalho realizado a partir da poesia intitulada “O Açúcar”, retirada do livro didático de EJA (Figura 2), serviu para evidenciar uma prática pedagógica na qual estudantes e professoras atuam como sujeitos no processo de produção do conhecimento e o texto é tomado como objeto de reflexão sobre as condições do trabalhador rural que produz o açúcar. Após a professora estimular o interesse da turma pelo poema, duas estudantes solicitaram realizar a leitura. Todos(as) concordaram e as ouviram com atenção. Diferentes compreensões sobre a poesia foram apresentadas, dentre as quais: a falta de conhecimento que as pessoas têm, de um modo geral, sobre a vida sacrificada dos(as) trabalhado-

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Fonte: Linguagem. É bom aprender, vol. 1, 2013.

res(as) do campo, principalmente os(as) cortadores(as) de cana; sobre os baixos salários e, em muitos casos, a precariedade das condições de trabalho. Foram discutidos, também, os aspectos que compõem o gênero poesia, como estrofes, versos e linguagem subjetiva. Nessa direção, os(as) estudantes conseguiam apontar no texto os trechos que expressavam emoção e sofrimento. As atividades indicavam o esforço para a formação de leitores(as) críticos(as) que conseguiam ampliar o sentido do texto, explorando os temas nele apresentados e fazendo correlações entre o conteúdo e o objeto sobre o qual estavam estudando. É importante ressaltar o empenho da professora no incentivo para que estudantes pudessem expor seus saberes e experiências, contando sobre o trabalho daqueles que, um dia, foram cortadores(as) de cana. Vários aspectos foram ressaltados: o sofrimento causado pelo trabalho, a falta de registro na carteira, a sobrecarga de trabalho e, ainda, o fato de terem trabalhado


desde criança. Assim, as condições criadas pela professora oportunizavam discutir os temas que surgiam, revelando uma postura crítica e humilde da professora, ao considerar a leitura de mundo dos (as) estudantes como conhecimentos válidos e importantes na experiência educativa, ao mesmo tempo em que reconhece a importância de avançar essa percepção, como podemos ver no extrato a seguir: Professora: “Observem quanta coisa já mudou. Hoje, há uma exigência maior para a carteira assinada. Temos como reivindicar através da Justiça do Trabalho. Do mesmo jeito, o trabalho infantil é proibido. Temos leis para proteger o menor.” Caderno de campo, 2015. Assim, o processo de alfabetização orientado pelas professoras, ao se opor a métodos de ensino abstratos e distantes da realidade dos (as) estudantes, aproxima-se da visão de Paulo Freire (2006), tendo em vista que palavras e frases do texto foram associadas à realidade concreta da vida dos (as) estudantes e partiram da tematização. Nessa direção, a prática dessas professoras considerariam os (as) estudantes sujeitos coprodutores do conhecimento, ao garantir o direito de pronúncia de sua palavra e ao buscar formas de contribuir para o empoderamento desses sujeitos. A ação educativa favoreceu também interação e a cumplicidade entre os (as) estudantes. Nesse momento, havia um clima de respeito, em que a turma se escutava e descrevia um para o outro sobre suas vivências, conforme pode ser visto no trecho a seguir:

Professora: “Com qual idade vocês começaram a trabalhar no corte de cana”? Um estudante respondeu: “Com mais ou menos 11 anos”. O outro afirmou: “Comigo foi desde os 10 anos e o pior é que eu fiquei sem receber meus direitos, professora”. Outras duas estudantes se aproximam e trocam com os colegas relatos de experiências como cortadoras de cana. Caderno de campo, 2015. Nesta situação de ensino, teria ocorrido a valorização da escuta dos depoimentos dos(as) estudantes pelas docentes, a organização das oportunidades das falas de quem quisesse dar o seu depoimento. Esse exercício de fala e escuta colaborava para desenvolver a disciplina intelectual de esperar a vez de falar; de escutar enquanto o outro falava; respeitar as diferentes opiniões; ter postura atenta no ato comunicativo.

ATIVIDADES DE PRODUÇÃO DE TEXTO COMO INSTRUMENTO DE CONSCIENTIZAÇÃO CRÍTICA O desenvolvimento da produção escrita de textos consistiu numa abordagem dialógico-crítica e na inter-relação entre os conteúdos, situações de ensino, em que a produção textual foi o resultado de reflexões teórico-práticas, que partiram da leitura de textos e da análise do âmbito social e político das quais os(as) estudantes participam. As professoras buscaram, através do estimulo à produção escrita, problematizar a

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temática da acessibilidade, estimular a percepção crítica dos (as) estudantes sobre as condições precárias das ruas, das calçadas e da violência no trânsito e contribuir para que ampliassem o conhecimento sobre o assunto, firmando posicionamento, desenvolvendo a sensibilidade e a solidariedade diante do problema. Em Souza (2007, p. 102), a prática educativa que defende como utopia “[...] a construção dessa democracia enquanto forma de vida e sistema social contém como seus temas constitutivos o poder e o desenvolvimento integral do ser humano e da sociedade”.

Figura 3 - Texto Cadeirante

Tomamos conhecimento de que esta atividade foi sugerida pela Coordenação de Educação de Jovens e Adultos do Município, que propôs a cada turma da EJA levar para um próximo Encontro de Educação de Jovens e Adultos uma produção escrita que contemplasse a temática da inclusão social.

Fonte: Texto produzido por uma estudante de EJA, 2015.

Na ocasião, foi solicitado pelas professoras que os (as) estudantes escrevessem sobre a acessibilidade, aproveitando as informações e debates sobre o conteúdo discutido na aula anterior. Uma das redações (Figura 3) produzidas neste dia, foi apresentada à turma, como exemplo de um bom texto produzido, sem contudo, desconsiderar os demais textos construídos pelo grupo. Durante a leitura do texto pela autora, os (as) colegas escutavam atentamente e, após o término, a professora elogiou, procurando valorizar a capacidade de produção e autonomia da estudante. Na ocasião, foi solicitada a opinião da turma sobre a redação e o conteúdo do texto. O envolvimento dos (as) estudantes era evidenciado na participação e

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no pronunciamento da maioria sobre o texto lido, como podemos acompanhar a seguir: Professora: “O que acharam do texto da colega”? Uma estudante respondeu: “Acho que o texto de M. quer dizer que precisa melhorar a capacidade dos políticos em melhorar a vida das pessoas, devia ter mais iluminação, cuidado com buracos.” A professora pediu atenção para que todos pudessem falar e diz que é importante ouvir a opinião de cada um (a). Outro colega disse: “Acho que precisa melhorar as condições das ruas, das calçadas e dos ônibus.” Outra estudante frisou: “Precisa melhorar a iluminação.” Outro disse: “Para passar na rua em frente à escola, precisa ter muito cuidado, porque os carros e ônibus não param para ninguém passar, mesmo vendo que aqui é uma escola.” A professora sintetizou: “Pois é, pelo que vemos a questão da acessibilidade envolve problemas, como consciência dos motoristas, melhorias nas calçadas, iluminação, limpeza urbana. Quer dizer, depende das ações e da consciência de cada ser humano, nos-


so respeito pelo outro nas filas, no trânsito, quando estamos dirigindo um carro, uma moto. Mas, também, tem relação com as lideranças políticas”. Caderno de campo, 2015. A discussão da temática da acessibilidade, estimulou a percepção crítica dos(as) estudantes sobre as condições precárias das ruas, das calçadas e da violência no trânsito. Contribuiu para que ampliassem os conhecimentos sobre o assunto, tomassem posicionamento, desenvolvendo a sensibilidade e a solidariedade diante do problema.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ação das professoras representou também um esforço pela permanência dos (as) estudantes na escola, procurando torná-la um espaço prazeroso e de participação. Além disso, demonstravam interesse pelos temas e eventos culturais discutidos e promovidos pela Coordenação de Jovens e Adultos, envolvendo a turma para que participassem. Nesse sentido, vimos que é possível acontecer no chão da escola, aproximações com a educação na perspectiva da humanização freireana, bem como, com a compreensão de Souza (2007) sobre a prática docente como instituinte da prática pedagógica institucional.

Na prática pedagógica docente-discente analisada, o diálogo ganhou centralidade, gerando duas subtemáticas: o diálogo na perspectiva da criticidade e da amorosidade. Todavia, as categorias evidenciadas, não foram compreendidas de forma fragmentada, mas inter-relacionadas. A prática dialógica, na perspectiva da criticidade, se deu no reconhecimento do ser humano como ser histórico e social; na valorização pela leitura de mundo dos (as) estudantes e pela problematização da realidade com vistas à mudança social; na tematização dos conteúdos; no rigor presente nas atitudes das professoras, na seleção dos materiais, dos conteúdos e atividades. A prática educativa dialógica, na perspectiva da amorosidade, expressou-se no afeto e cuidado pelos(as) estudantes; no exercício da fala e escuta, no respeito aos saberes e na confiança na capacidade de produzirem conhecimento.

LEITAO, Edineide Souza Sá Mestre em Educação pela UFPE, docente do SESI, Pernambuco. Membro da Cátedra Paulo Freire da UFPE. GUEDES, Marília Gabriela de Menezes Doutora em Educação pela UFPE, Professora Adjunta do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino da UFPE. Membro da Cátedra Paulo Freire da UFPE

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REFERÊNCIAS BARDIN, L. Análise de conteúdo. 5. ed. Lisboa/Portugal: Edições 70, 2008. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 31. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.. _____. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 28. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. _____ Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Centauro, 2006. GUEDES, M. G. de M.. Contribuição de Paulo Freire para as políticas e práticas curriculares nos sistemas de ensino. 2012. Tese (Doutorado em Educação) – Centro de Educação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012. SOUZA, J. F. E a educação popular: ¿¿ Quê ?? Uma Pedagogia para fundamentar a educação, inclusive escolar, necessária ao povo brasileiro. Recife: Bagaço, 2007. TURA, M. L. R. A observação do cotidiano escolar. In: ZAGO, N.; CARVALHO, M. P.; VILELA, R. A. T. (Orgs.). Itinerários de Pesquisa. Rio de Janeiro: Lamparina, 2011, p. 183-206 GUIMARÃES, O; SANTIAGO, E. A compreensão sobre prática pedagógica nas pesquisas veiculadas nos encontros de pesquisa em educação do norte e nordeste. Anais do XXI Encontro de Pesquisa do Norte Nordeste. Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013. LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. MINAYO, M. C. de S.. Pesquisa social – Teoria, Método e Criatividade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002..

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Dissertação intitulada: “A prática pedagógica docente na perspectiva da humanização em Paulo Freire”. Recife: Universidade Federal de Pernambuco. Programa de Pós-graduação em Educação, sob a orientação da Profª. Drª. Maria Eliete Santiago. 1

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ENSAIO

REMENDAR OU REINVENTAR O MUNDO, A PARTIR DE NÓS? PAULO FREIRE NOS INSTIGA, NOS PROVOCA, NOS CONVOCA... CALADO, Alder Júlio Ferreira

Há cerca de vinte anos, pouco depois da “grande viagem” de Paulo Freire, ousei ensaiar uns versos, em memória e homenagem deste Tecelão da Utopia. O mote das aludidas estrofes (dez estrofes, em versos decassílabos, com rimas abbaaccddc) era o seguinte: “Paulo Freire vaguei no Universo, atiçando as centelhas da Utopia”1. Com efeito, a vida, a obra e o legado freireanos estiveram - e seguem estando - organicamente vinculados à esperança (não no sentido de aguardar passivamente, mas no sentido freireano de “esperançar”) de um mundo novo, alternativo à barbárie capitalista, que agride e avilta, de mil formas, a Mãe-Terra, inclusive os humanos e toda a comunidade dos viventes. Coisifica o ser humano, impede ou bloqueia o processo de humanização2. Não desumaniza ou avilta apenas suas vítimas – a Terra e a imensa maioria da humanidade, mas também desumaniza seus algozes – alertava Freire -, por a todos reduzir a objetos do lucro, de uma ganância necrófila. Toda a Terra geme em dores de parto, vítima das formas mais atrozes de agressão, de exploração, de esgotamento de bens do Planeta, ao protagonizar sucessivas e crescentes ameaças aos filhos e filhas da Mãe- Terra. A humanidade clama por uma sociabilidade alternativa a essa barbárie. No Brasil, na América Latina e em outras partes do mundo, vimos assistindo, de longa data, a crescentes sinais de exaurimento do atual modelo hegemônico, ao qual não têm faltado, aqui e alhures, heroicas resistências. Sucede que raramente, ou quase nunca, têm resultado eficazes. Aqui, ali, até que aliviam temporariamente aspectos pontuais nocivos do sistema, mas, por não haverem sido tocadas suas raízes, logo retornam seus efeitos deletérios.Amplo, sem embargo, tem sido, no Brasil e em escala planetária, o leque de resistências que seguem assumindo um preponderante caráter de “remendo”. Trata-se de reações, quase sempre fragmentárias e episódicas, opostas “a varejo”, que se têm mostrado reiteradamente impotentes – et pour cause! - para responderem, à altura, aos desafios colocados.

Remendar ou reinventar o mundo, a partir de nós? Paulo Freire nos instiga, nos provoca, nos convoca...

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Eis por que, ao (re)visitarmos Paulo Freire, nos damos conta de sua provocação a ousarmos para além de meras reações: sem prejuízo destas, somos historicamente convocados a ensaiarmos, desde aqui e agora, passos moleculares, alternativos à lógica e ao espírito do modelo hegemônico imperante. Nas linhas que seguem, é disto que cuidaremos.

POR UMA LEITURA DE MUNDO À ALTURA DOS ATUAIS DESAFIOS Por décadas a fio, acostumamo-nos a enfrentar, no varejo, ofensivas em série das forças adversárias, sucessivos e crescentes escândalos, intermináveis malfeitos e desmandos – por vezes, de responsabilidade compartilhada -, sem que sobre isto nos empenhássemos num enfretamento articulado de tais impasses, ao mesmo tempo em que cuidássemos de ousar passos alternativos a essa ordem hegemônica. Aqui, ali, até que tal inquietação era verbalizada, mas pouco ou nada assumida como verdadeira prioridade. Assim agindo, ainda que expressemos por palavras nossa ira contra o establishment, no fundo, objetivamente, acabamos facilitando as coisas favoráveis ao mesmo sistema, perito que é em contornar nossas reações desacompanhadas de passos alternativos à lógica e ao espírito da ordem hegemônica que dizemos combater. Bem sabemos, aliás, da recorrente engenhosidade da classe dominante brasileira, de forjar mil “arranjos” de cúpula, fingindo mudança, para tudo seguir como antes... Figuras como José Honório Rodrigues3 bem nos ajudam a refrescar nossa memória histórica. A sagacidade vulpina das forças hegemônicas

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brasileiras só concorre com a impactante “ingenuidade” de parcelas mais expressivas de nossas forças de esquerda: em diversas ocasiões estas se renderam à esperteza (e “expertise”) das elites brasileiras. E todas as vezes se deram mal, mas seguem apostando nos arranjos de cúpula... Não raro, assumir posição contundente, aos olhos de expressivas parcelas de protagonistas das forças populares, é interpretada como atitude que não corresponde a sujeitos sintonizados com o seu tempo. “É preciso ser homem do seu tempo!”, diz-se, como se tal atributo fosse sinônimo de acomodação ou passividade ante situações insustentáveis. Tal conduta nos remete a algumas figuras de referência, Freire inclusive, ao evocarem distintas situações semelhantes. Em seu “Educação como Prática da Liberdade”, encontramos elementos de reflexão que nos sacodem, pela relevância e atualidade (ainda que sua reflexão se atenha a inícios ou meados dos anos 60.): O grande perigo do assistencialismo está na violência do seu antidiálogo, que, impondo ao homem mutismo e passividade, não lhe oferece condições especiais para o desenvolvimento ou a “abertura” de sua consciência que, nas democracias autênticas, há de ser cada vez mais crítica. Sem esta consciência cada vez mais crítica não será possível ao homem brasileiro integrar-se à sua sociedade em transição, intensamente cambiante e contraditória. (FREIRE, 1989, p. 56).

Referia-se, então, a práticas estratégicas e táticas bem ao sabor dos setores dominantes, como instrumento de dominação: por meio de medidas assistencialistas, manter as


massas populares conformadas, à maneira das táticas usadas, na Roma antiga, do famoso artifício “pão e circo”, de modo a controlar e conter os impulsos subversivos de uma massa faminta ou maltratada. Prática sempre combatida pelas forças de esquerda, quando praticadas pelas forças adversárias. Por mais difícil que se apresente, semelhantes procedimentos vieram à baila, também entre nós, e agora, já não como política implementada por forças de direita.... Isto tem muito a ver com a falsa interpretação de que, sendo nós, os proponentes e implementadores de ais políticas assistencialistas, a coisa é diferente... Bastaria, para tanto, manter afinado o discurso ”contra as elites”. Não poucos são, a este respeito, os procedimentos falaciosos que acabam, não raro, “naturalizados” ou consagrados como procedimentos normativos, assumidos como próprios do dever ser. Um outro exemplo ilustrativo temos na superestimação do ato de votar como expressão suficiente para a plenitude democrática, do exercício “supremo” de cidadania, seja para quem elege, seja para quem é eleito. Em alguns casos, chega a ser a única ou pelos menos a forma decisiva de legitimação definitiva de expressão democrática, ainda que daí estejam ausentes outros componentes essenciais do processo democrático, tais como o compromisso de se efetivar o programa pelo qual se foi eleito, a necessidade de controle social sobre os eleitos e eleitas, bem como o instituto de revogabilidade, sem deixarmos de sublinhar o direito/dever de cada cidadã(o), de participar decisivamente por meio de seus organismos de democracia direta, (conselhos populares, fóruns, audiências públicas, círculos de cultura, núcleos...), ainda

que em contexto de democracia representativa. Ainda um exemplo ilustrativo: a tendência a uma espécie de ética da conveniência, presente em situações várias, como, por exemplo, na superestimação de procedimentos de caráter formalista, como vem sucedendo no processo de impeachment. Aí se tem observado um debate, no mínimo, questionável – para não se dizer infrutífero -, quando se aventura abusivamente ao ofício de hermeneutas das leis, afoita e esterilmente concorrendo-se com especialistas do Supremo Tribunal Federal, tribunal ao qual compete, em última instância, dirimir pendências constitucionais, inclusive o que é “golpe” e o que não é, do ponto de vista jurídico, a despeito do juízo singular de cada cidadã(o) sobre o caso em tela, até porque tal decisão comporta, como se sabe, uma dimensão também política. Questiona-se, aqui, a eficácia do combate, no referido terreno, em comparação aos espaços mais favoráveis de disputa – a mobilização da sociedade, a partir de suas principais forças, mas priorizando outras ferramentas portadoras de chances promissoras. O campo jurídico, com efeito, não corresponde a um campo ou terreno de combate favorável às classes populares, até por se tratar de instrumento componente de um aparelho de Estado (o Judiciário). Por mais de uma vez, a esse respeito, tenho me socorrido de clássicos, não apenas como Marx e Freire, mas também a figuras como Cornelius Castoriadis e Claude Lefort. De Castoriadis, por exemplo, tenho escutado, mais de uma vez, uma entrevista que considero valiosa, na perspectiva da invenção democrática como um processo permanentemente instituinte, o que não nos dispensa a atenção às lições do passado4.

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Retornando a Freire, inclusive na obra acima citada (1989), percebemos a pertinência e acuidade de sua crítica, em especial, quando alude à contraposição entre “radicais” e “facciosos”: Mesmo sabendo que a origem da categoria “práxis” remonta a priscas eras, não se pode negar o lugar privilegiado que tal concepção ocupa na vida, na obra, no legado de Paulo Freire, que lhe vem sobretudo da herança marxiana, combinada, antes, com o legado do Cristianismo da Libertação. A este respeito, entre vários autores, também ousei, em outra oportunidade, rastrear raízes do pensamento freireano, sobretudo, nessas duas correntes (CALADO, 2009)5. A despeito da densa contribuição de Max Weber e de Ernst Troeltsch, quanto à dinâmica histórica de avanços e descensos das forças sociais inovadoras – em sua análise, Troeltsch deteve-se mais no caso do Movimento Anabatista que, após emergir impetuosamente contra todo o establishment, passou a acomodar-se ao mesmo -, importa sempre refletir criticamente acerca das condições concretas que intervieram e podem intervir, nesse processo, ora precipitando-o, ora contendo-o, ora até evitando-o. Aí comparece uma confluência de fatores inter-relacionados. Um deles, com forte incidência causal, tem a ver com o escanteamento, secundarização ou abandono do seu rocesso formativo, com graves consequências em sua práxis transformadora, inclusive de natureza ético-política. Em tal percurso de descenso, não são poucas as ocorrências ligadas ao descaso da práxis6, descuido em relação ao que já se sabia acerca do caráter do Estado (componente essencial do

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Capitalismo), distinção entre origem de classe e posição de classe, autonomia dos movimentos sociais populares diante do Mercado e do Estado, autofinanciamento, autogestão (importância dos núcleos...), alternância do exercício militante em cargos de coordenação-direção e militância na base, critérios de aliança política, orgânica e permanente interação entre direçãobase, necessidade de se assegurar formação contínua, não apenas a militantes dirigentes ou coordenadores, mas também os militantes de base etc., etc. Ainda como consequência deste quadro, pode-se mencionar a progressiva superestimação da pauta oficial do establishment (“golpe”/”não-golpe”, “provas jurídicas”/”não-provas jurídicas”, envolvimento individual de acusados/ não envolvimento individual, etc.), enquanto, por outro lado, arrefece a atenção, em relação a bandeiras substantivas para as forças de mudança, tais como auditoria da dívida pública, combate aos paraísos fiscais, à evasão de divisas, à sonegação fiscal, à renúncia fiscal, à taxação das grandes fortunas e outras do gênero. Não se trata de restringir apenas a Freire ou a Marx e a clássicos do gênero. É preciso que estejamos sempre abertos a discutir com pensadores comprometidos com a invenção democrática, tais como um Castoriadis ou um Claude Lefort7. Quando falamos em descaso ou abandono da teoria, convém ter presente a necessidade de se afastar uma concepção distorcida de teoria – infelizmente muito corrente, no senso comum – como algo abstrato, etéreo, descolado da prática (“uma coisa é a teoria; outra coisa bem distante é a prática”, diz-se),


quando, em verdade, prática e teoria constituem faces da mesma moeda, dimensões, portanto, indissociáveis. Cabe aqui lembrar que é justamente nesta indissociabiliadade que se enraíza o conceito de “práxis”. Eis por que ousamos dizer: mostra-me tua prática, e dir-te-ei qual é tua teoria. Por esta razão, debitamos a essa descabida cisão, uma série de equívocos em série cometidos por forças de esquerda.

COM FREIRE, PARA ALÉM DE UMA ADEQUADA LEITURA DE MUNDO: URGE REESCREVÊ-LO Uma adequada leitura de mundo constitui, por certo, um primeiro e indispensável passo, como condição sem a qual não se consegue intervir alternativamente na realidade que se tem. Aí reside um dos reconhecidos méritos do nosso Tecelão da Utopia. Não vem por acaso o subtítulo que encima este tópico. A este respeito, tornou-se famosa sua afirmação de que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra.” Afirmação genial, sobretudo, quando situada no quadro do processo de letramento inicial. Aí já se pode vislumbrar seu compromisso com a “práxis”, na medida em que, mais do que em ajudar os alfabetizandos a lerem palavras, ele está preocupado em ajudálos a mudar o mundo. Numa das entrevistas por ele concedida, cuidaram de enaltecê-lo como criador de um método, ao que ele contestou, agradecido pelo reconhecimento, mas agregando que maior do que isto era sua “gula”: a de ajudar a transformar a realidade. Mais do que simplesmente “ler” a realidade, importava-lhe ajudar a transformá-la, como, aliás, sustentava o filósofo da Práxis, em uma

de suas teses contrapostas a Feuerbach (Tese XII) (MARX, 1888), de que, diferentemente do que têm feito os filósofos, ao interpretarem o mundo de diversas maneiras, o que importa mesmo é transformá-lo. Também para Freire – e nós, com ele -, trata-se, sim, de nos empenharmos na mudança do mundo, inclusive pela via da educação: sozinha, lembrava Freire, a Educação não muda a realidade, mas sem ela, em vão se tenta transformar a sociedade. Como viabilizar, então, passos nessa direção? Receitas não há, bem o sabemos. Pelo menos de uma coisa temos certeza: de que pelas vias até aqui tentadas, a realidade social tem dado sinais de que se mantém (quase) inalterada, em suas estruturas. A “gula” freireana, que compartilhamos, nos instiga a perseguir o horizonte libertário, também por caminhos alternativos. Nosso horizonte comporta uma tríplice tarefa: a de irmos forjando, desde o chão do quotidiano, desde aqui e agora, um novo modo de produção, um novo modo de consumo e um novo modo de gestão societal, adequadamente articulados e em respeito à dignidade da Terra e de toda a comunidade dos viventes, em grande medida, nos termos propostos por François Houtart, em sua luminosa contribuição8. Em outras ocasiões, já tivemos oportunidade de enunciar elementos componentes dessa tríplice tarefa. Desta feita, seguem algumas linhas versando especificamente sobre o lugar do processo formativo contínuo, como fio condutor e articulador das referidas tarefas. Partimos de alguns questionamentos: de

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que formação contínua se trata? Quais as linhas-força de um tal processo formativo? Que lugar nele ocupa a contribuição ou protagonismo dos sujeitos individuais? Bem sabemos ser vão pretender da escola (da Educação Infantil à Pós- Graduação) uma formação contínua capaz de dar conta dos desafios e das aspirações dos sujeitos (individuais e coletivos) que se querem protagonistas de uma sociabilidade alternativa ao modelo vigente. Não bastasse ser o sistema de ensino oficial organizado ou controlado pelo Estado – parte componente essencial do sistema capitalista -, também sabemos que na escola passamos apenas um período de nossa vida. O processo formativo que nos interessa é ininterrupto, por definição. Deve ocupar-nos o dia todo e todos os dias. Mais importante: deve ser protagonizado, em todos os seus momentos (concepção, planejamento, execução, metodologia, avaliação...) pelos próprios protagonistas – mulheres e homens da classe trabalhadora, isto é, dos que ivem do seu trabalho. Outra razão para se tratar de processo formativo contínuo, tem a ver com a complexidade, a extensão e a multiplicidade temática e metodológica a serem tomadas em conta, quer no plano individual, quer no plano coletivo. De fato, o processo formativo que interessa aos membros das forças sociais imbuídas da tarefa de construção de uma sociabilidade alternativa à ordem vigente, há de comportar uma diversidade de situações e dimensões que abarcam todo o existir. Trata-se de trabalhar, de modo concatenado e ininterrupto, as mais diferentes facetas da existência - econômica, política, cultural-, de maneira a interli-

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gar os mais distintos aspectos da vida humana e do planeta:        

relações com o Cosmos; relações de espacialidade; relações ecológicas; relações de gênero; relações de orientação sexual; relações étnicas; relações geracionais; relações de caráter místico.

Tanto no que concerne ao temário, quanto no que diz respeito à metodologia, cada aspecto desses (e outros) há de ser experienciado, no processo formativo, sempre de maneira articulada e contextualizada. Quanto a cada aspecto do temário, tais dimensões são trabalhadas sempre a partir dos interesses suscitados pelos formandos, em seu dia-a-dia, e tomando-se em consideração seu perfil (individual e coletivo). Temário também trabalhado, de modo a atentar-se para uma adequada costura de passado-presente-futuro. Nesse sentido, pode-se começar por sondar dos formandos e formandas que tipo de organização societal corresponderia a suas aspirações: que tipo de sociedade atenderia às nossas aspirações, do ponto de vista econômico, do ponto de vista político, do ponto de vista cultural? Fazendo-se um paralelo com a sociedade que temos, tal consulta vai fluindo mais facilmente, à medida que se zelar pela dinâmica de trabalho, ou seja, sob a forma de círculo de cultura. Nesse sentido, sem qualquer pretensão de cópia ou reedição mecanicista, parece útil uma revisitação, por exemplo, da temática relativa aos círculos de cultura protagoniza-


dos pelo Movimento de Cultura Popular, não se dispensando inclusive uma consulta das páginas finais de “Educação como Prática da Liberdade”, onde se acham instigantes figuras inspiradoras desses círculos de cultura.

sociais, associações, enfim organizações de base de nossa sociedade), quanto aos sujeitos individuais, aqui tendo como referência o incentivo ao estudo de biografias de nossos clássicos de referência.

Aqui, joga um papel decisivo a atuação dos animadores ou animadoras desses círculos de cultura, cuja principal tarefa é a de ouvir, ponderar e selecionar palavras-chave, brotadas das rodas de participantes, capazes de comportar sentimentos e posições representativas dos referidos protagonistas. Palavras-chave que hão de inspirar os temas decisivos dos diversos encontros, permitindo fornecer múltiplos fios do seu quotidiano, do seu sentir, do seu pensar, do seu querer, do seu agir, do seu existir. Nesse sentido, há de se reconhecer a contribuição oferecida, em suas pesquisas, por Cornelius Joannes e Salete van der Poel, em sua densa e fecunda experiência na RELEJA (Rede de Letramento de Educação de Jovens e Adultos, Paraíba), graças ao rico potencial de sua metodologia de letramento, em que os formandos/formandos são também protagonistas dos textos de seu processo de letramento.

Como se percebe, este é apenas um de tantos aspectos a comporem uma proposta formativa contínua, a ter como protagonistas as organizações de nossa sociedade, envolvendo diretamente cada um de seus membros respectivos – de base e de coordenação. E só este item comporta uma imensa tarefa com relevante papel didático: o de oferecer aos formandos preciosos elementos biográficos de figuras de referência, ajudando a todos a compreenderem quão fecundo foi o seu percurso, e quão numerosos e embaraçosos foram os desafios enfrentados. Não se trata, por certo, de sugerir “imitação”, até porque tais figuras não pretendem ser reeditadas, mas reinventadas.

Articulado a esses momentos, há de se trabalhar, de forma mais didática, diferentes tempos da realidade. Aqui, também importa revisitar o passado de nossa história, não como um golpe de saudosismo, mas como uma busca de nossas raízes econômicas, políticas e culturais, capazes de oferecer-nos lições para o presente e para a construção do futuro. Cuida-se aqui de reavivar a memória histórica de nossa gente, suas lutas, suas conquistas, suas derrotas, seus acertos e erros. Tanto em relação aos sujeitos coletivos (movimentos

O exercício de rememoração da gesta de nossos ancestrais (coletivos e individuais) tem uma incidência concreta na arte de forjar – ou de irmos forjando – uma sociabilidade alternativa à atual ordem hegemônica, porque, como costumava dizer Eduardo Galeano, “o passado tem muito a dizer ao futuro”. Mais do que isto, trata-se de uma via privilegiada de se exercitar a mística revolucionária, que permite aos protagonistas de uma nova sociabilidade cotejar criticamente experiências – bem sucedidas e mal sucedidas de ontem com as buscas de hoje, ajudando a fortalecer o querer revolucionário, inclusive por meio da disposição do exercício da autocrítica (individual e coletiva).

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Um outro elemento constitutivo desta proposta formativa tem a ver com nossa contínua necessidade de atualizar, melhor dito: materializar, ou ir materializando, nossas tarefas revolucionárias, no chão do dia-a-dia. Isto se faz, a partir das coisas “miúdas” ou aparentemente insignificantes ou invisíveis. Dá-se, por exemplo, por força da curiosidade epistemológica, da sede de saber despertada nos formandos, que, assim, vão se tornando observadores dos fatos e situações do cotidiano, vão se tornando aprendizes e praticantes do paradigma indiciário, atentos aos sinais, ensaiando interpretá-los: vão aprendendo a enxergar coisas e fatos que antes não eram capazes de alcançar; passam a ouvir coisas novas, em relação às quais antes eram urdos; passam a sentir coisas novas antes inacessíveis, passam a intuir situações novas. Para tanto, a arte da convivência comunitária tem um sentido todo especial. Sozinhos e isolados, jamais seriam capazes de protagonizar ações heurísticas, inovadoras. É a força transformadora da relacionalidade a ajudar-nos a superar, ou ir superando, nossa condição de seres inacabados, inconclusos. Tal aventura, ademais, é que nos vai permitindo ensaiar passos moleculares alternativos ao modelo vigente, à medida que vamos aprendendo a costurar os múltiplos fios da realidade, a conectá-los, conferindo-lhes sentido. Tal exercício de costura dos fios da realidade tem implicações concretas. Seu alcance incide, não apenas sobre o aprimoramento dos sentidos perceptivos. Também se favorece a dimensão volitiva (concernente ao querer) dos protagonistas, contribuindo melhor para aprimorar seu agir. Note-se que o exercitar-se na conexão dos fios da realidade não

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constitui uma operação apenas intelectiva, a favorecer apenas o bom pensar, mas se estende, de modo articulado, às demais dimensões do processo de humanização, alcançando o sentir, o querer, o agir, etc9. Isto se dá, ao longo da vida, desde que se façam presentes as condições favoráveis a tal processo, sendo uma delas – a mais importante – a vida comunitária de diálogo, partilha e mútuo aprendizado, característica, por exemplo, dos círculos de cultura. Vivência comunitária que também incide diretamente na progressiva aquisição de consciência crítica também no assumir deveres e tarefas pessoais. Não se cuida de apenas “receber” da comunidade, mas igualmente de participar com sua contribuição efetiva.

À MANEIRA DE UMA PROVISÓRIA CONCLUSÃO DESSAS NOTAS Fartos têm sido os ensaios versando sobre a decisiva força transformadora da ação comunitária, na busca de superação do atual modelo, em direção à construção de um novo modo de produção, de um novo modo de consumo e de um novo modo de gestão societal, com respeito à dignidade do Planeta, dos humanos e do conjunto dos viventes. E aqui também ratificamos e compartimos desse sentimento. Isto deve, sim, prosseguir. Sucede que, por vezes, certas formulações passam a impressão de algo que se possa fazer, sem o necessário aporte pessoal. Nessas linhas, cuidamos de ressaltar, sem prejuízo algum da dimensão comunitária, o lugar e o papel insubstituíveis do protagonismo pessoal dos respectivos membros.


Com efeito, cada tarefa comunitária supõe também a ação de cada membro componente das comunidades. Em todos os processos de construção da nova sociedade. Talvez com maior força ainda no que se trata da ensaiar passos alternativos na construção de um novo modo de consumo, alternativo ao establishment. Para tanto, há um leque amplo de tarefas individuais concretas, indo desde o esforço constante do exercício de autocrítica a uma adequada reavaliação das agendas individuais: as atividades constantes de minha agenda rotineira estão apontando para onde? Eu posso otimizar essa agenda, em que pontos? De que modo devo tentar, nesse sentido? Importa sublinhar aí o privilegiado lugar da mística revolucionária, também no plano individual. Por vezes, podemos constatar que a quase totalidade de nossas atividades tem se limitado a um reagir pontual e episódico de um calendário pouco ou nada eficaz. Até porque toma a maior parte do nosso tempo em reagir à pauta oficial do atual modelo, sem que nos assegure condições de ousarmos pautas propriamente nossas, inventivas e voltadas para nosso horizonte de organização societal, essencial, acenando para um constante crescimento de nossa condição de novos homens, de novas mulheres, inclusive pela decisiva adoção de um estilo de vida condizente com nossas mais densas aspirações. Aqui, também, tem lugar privilegiado o exercício das diferentes linguagens artísticas, como espaço fortemente humanizador. Enfim, damo-nos conta de que em vão buscamos ir forjando um novo mundo, se o tentarmos deixando-nos “de lado” desse processo, sem nele nos envolvermos plenamente, de modo que hoje tentemos agir melhor do que ontem, e amanhã, melhor do que hoje. Mudar o mun-

do, sim, ou melhor: ir mudando o mundo sim, mas a partir de nós! João Pessoa, 07 de julho de 2016.

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CALADO, Alder Júlio Ferreira Doutor em Ciências da Educação pela Universidade Paris VIII-Saint Denis, Sociólogo e Educador Popular, Professor da UFPB, é membro do Centro Paulo Freire – Estudos e Pesquisas. Acompanha a caminhada dos Movimentos Sociais Populares e as Pastorais Sociais – especialmente no Nordeste – desde meados dos anos 60. E-mail: aldercalado@gmail.com

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REFERÊNCIAS CALADO, A. J. F. Rastreando fontes da utopia freireana: marcas cristãs e marxianas do legado de Paulo Freire. Disponibilizado em Consciência.net, pelo link:<http://consciencia.net/rastreando-fontes-da-utopia-freireana-marcas-cristas-emarxianas-do-legado-de-paulo-freire-por-alder-julio-ferreira-calado/> CASTORIADIS, C.. Entrevista com Cornelius Castoriadis, conduzida por Chris Marker. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=5HL22xsVK4c> ____________. Démocratie et être citoyen. Savoir gouverner et être gouverné ou rester esclave. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=l1VS4SaYnpg> FREIRE, P.. Educação como Prática da Liberdade. 19ª ed., Rio: Paz e Terra, 1989. ________. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora. UNESP, 2000. HOUTART, F. El bien común de la humanidad: un paradigma post-capitalista frente a la ruptura del equilibrio del metabolismo entre la naturaleza y el genero humano. Tercera Conferencia para el Equilibrio del Mundo. La Habana, 28-30 de Enero 2013. Disponibilizada em <http://web.ua.es/es/ giecryal/documentos/ponenciahoutart. pdf?noCache=1361258372640, acessado em junho de 2016> MARX, K. Teses sobre Feuebach. Edição eletrônica Editora Ridendo Castigat Mores, 1999, www.jahr. org Obra disponibilizada em <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/feuerbach.pdf>, acessado em junho de 2016. RODRIGUES, J.H.. Conciliação e Reforma no Brasil: um desafio histórico-cultural. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1965. SALES, Ivandro da Costa. Educação popular: uma perspectiva, um modo de atuar. (Alimentando um debate). In Educação popular: outros caminhos. (Org.) Afonso Celso Scocuglia, José Francisco de Melo Neto. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 1999, p. 111-122; VÁSQUEZ, A. S. Filosofia da Práxis. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1977.

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Disponibilizado em http://www.lainsignia.org/2005/enero/cul_068.htm

1

Aqui, me vem ao espírito o título de um famoso documento/manifesto da Ação Católica Operária (ACO), em Recife, em 1970, no início do período mais tenebroso da ditadura empresarial-militar: “Nordeste: o homem proibido”. 2

3

Conforme seu clássico “Conciliação e Reforma no Brasil: um desafio histórico-cultural”.

4

Vale a pena revisitar Castoriadis, disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=5HL22xsVK4c>

Disponibilizado pelo link:<http://consciencia.net/rastreando-fontes-da-utopia-freireana-marcascristase-marxianas-do-legado-de-paulo-freire-por-alder-julio-ferreira-calado/> 5

Conforme a Tese II sobre Feuerbach (MARX, 1888), resumidamente: o critério da verdade é a prática, não o discurso. 6

7

Reflexão do primeiro está disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=l1VS4SaYnpg

Disponível em <http://web.ua.es/es/giecryal/documentos/ponenciahoutart.pdf?noCache=1361258372640, acessado em junho de 2016>. 8

Sobre isto, recomendamos ler, entre outros Adolfo Sanchez Vásquez “Filosofia da Práxis” e Ivandro da Costa Sales. “Educação Popular como perspectiva e como um modo de atuar”. 9

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ENSAIO

CONTRIBUIÇÕES DE PAULO FREIRE PARA O PENSAMENTO EDUCACIONAL LATINO-AMERICANO NETO, José Batista SANTIAGO, Eliete

Resumo O presente artigo resulta de uma revisita a textos de Paulo de Freire incursionando por princípios, teses e práticas construídas em resposta às questões postas pela Educação. Abordamos quatro contribuições do que chamaremos as obras do pensamento de Freire, evidenciamos traços como a singularidade biográfica, a originalidade de sua construção teórica e o cultivo de uma profunda coerência entre vida e obra. Valemo-nos para, fundamentalmente, de alguns depoimentos de pesquisadores de orientação teórica crítica disponível como produção acadêmica e da sua obra do autor para evidenciar as contribuições freireanas para o pensamento da educação latino-americano. Pedagogia freireana. Educação latino-americana. Obras de pensamento. Abstracto Este artículo resulta de una nueva visita a los textos de Paulo Freire incursionando por principios, tesis y prácticas construidas en respuesta a las preguntas formuladas por la educación. Abordamos cuatro contribuciones que llamaremos de las obras de pensamiento de Freire, evidenciamos rasgos como la singularidad biográfica, la originalidad de su construcción teórica y el cultivo de una profunda coherencia entre la vida y la obra. Hemos utilizado fundamentalmente algunos testimonios de investigadores de orientación teórica crítica disponible tal como producción académica y de su obra al respecto del autor para poner de relieve las contribuciones freireanas al pensamiento de la educación en Latinoamerica. Pedagogía freireana. Educación latinoamericana. Obras de pensamiento.

Contribuições de Paulo Freire para o pensamento educacional latino-americano

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INTRODUÇÃO Em definitivo, Paulo Freire ofereceu muitas contribuições à educação para o Brasil, para a América Latina e para o mundo. São tantas que não constitui tarefa fácil selecionar algumas que, por sua significação e relevância, possam compor este breve espaço tempo. Selecionar nunca é tarefa fácil, salvo quando se quer esquecer, silenciar. Não é o caso. Dispusemo-nos a rememorar, revisitar, restituir ideias, princípios, teses construídas em resposta às questões postas pela Educação. Assim, arbitrariamente, identificamos quatro contribuições do que chamaremos as obras do pensamento de Freire, a que nos dedicaremos nesse breve texto. Entendemos por obra de pensamento um trabalho de reflexão sobre eventos inscritos na experiência singular dos sujeitos. Ela surge a partir das concepções originais de um sujeito, germinando de sua história de vida, como adverte Dominique Maingueneau: As obras emergem em percursos bi-

ográficos singulares, porém esses percursos definem e pressupõem um estado determinado do campo. (...) O ato de escrever, de trabalhar num manuscrito, constitui a zona de contato mais evidente entre a ‘vida’ e a ‘obra’. Trata-se de fato de uma atividade inscrita na existência, como qualquer outra, mas que também se encontra na órbita de uma obra, na medida daquilo que assim a fez nascer. (MAINGUENEAU, 1995, p.45)

Ora, se as obras “emergem em percursos biográficos singulares”, no que concerne ao educador pernambucano, alvo dessas ob62

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servações, constatamos não só a singularidade em sua biografia, mas a originalidade de sua construção teórica e o cultivo de uma profunda coerência entre vida e obra. A justo título, oerência é uma das marcas de uma trajetória de vida, cuja admiração de muitos intelectuais e povos deu a volta ao mundo. Nessa perspectiva, apresentamos depoimentos de educadores de orientação teórica crítica, reunidos por Ruth Pavan em seu estudo sobre a presença de Paulo Freire nos trabalhos do GT Educação Popular da Anped (2008). A justo título, Pavan diz das muitas aprendizagens que Michel Apple (2006) realizou com Freire em matéria de educação. Meu trabalho intenso com os ativistas brasileiros, e o que aprendi com eles, começou no meio da década de 1980, logo depois que se extinguiu o governo militar apoiado pelos Estados Unidos. Esse trabalho continuou por meio da intensa nteração que tive com Paulo Freire e tornou-se ainda mais intenso, pois ajudei o Partido dos Trabalhadores – e com eles aprendi – a construir uma educação digna no Brasil. (APPLE, 2006, p.13, citado por PAVAN, 2008, p.2).

Peter McLaren, por sua parte, afirma que: Freire não só representa um revolucionário em educação comprometido com a libertação dos oprimidos, com a luta pela justiça social e a transformação da educação, mas sua pedagogia adquiriu um status legendário. Sua pedagogia “começou como um meio de conferir poder a


oprimidos camponeses brasileiros, atingiu um status legendário através dos anos. Poucos educadores caminham tão sabiamente e com tanta determinação entre as fronteiras da linguagem e da cultura.” (MCLAREN, 1997, p.327, citado por PAVAN, 2008, p.2).

Henri Giroux reconhece em Freire características que o fazem não apenas um homem de seu tempo, mas também do tempo futuro. Como educador da esperança que é, construiu um discurso, uma prática e uma concepção de educação e de vida que [...] representam um modo de reconhecer e criticar um mundo que vive perigosamente à beira da destruição. [...] A obra e presença de Freire estão aí não apenas para nos lembrar o que somos, mas também para sugerir no que podemos nos transformar. (GIROUX, 1997, p.156, citado por PAVAN, 2008, p.2)

PAULO FREIRE: UM DOS PAIS DA TEORIA CRÍTICA EM EDUCAÇÃO Estudiosos brasileiros das tendências do pensamento pedagógico, a exemplo de Saviani, Libâneo, Gadotti e tantos outros, são unânimes em reconhecer o papel pioneiro de Freire na construção da Teoria Crítica em Educação. Do mesmo modo, Giroux (1997) lembra que ele muito contribuiu para a pedagogia crítica: “[...] a obra de Freire oferece uma visão de pedagogia e práxis que é partidária

em sua essência; em sua origem e intenções, ela é a favor de ‘optar pela vida’” (GIROUX, 1997, p.56). Sua filiação às correntes críticas do pensamento pedagógico se estabelece desde sua primeira obra, Educação e atualidade brasileira1. Ali, um problema para Freire era, nos termos de então, a relação entre a educação e os problemas da época, entre educação e contexto sócio político em que ela se insere. Isso o faz, anos depois, afirmar em um documentário de título evocativo Paulo Freire Contemporâneo: “O que eu já buscava naquela época [anos 50/60] era uma crítica à educação brasileira.” Em Educação e atualidade brasileira, Freire dialoga com autores nacionais de diferentes orientações teóricas, desde isebianos2, como Guerreiro Ramos, Álvaro Vieira Pinto, Roland Corbisier, até estudiosos considerados como “explicadores do Brasil”, a exemplo de Gilberto Freyre e Caio Prado Jr., mas também com Anísio Teixeira e Fernando Azevedo. É possível identificar dois elementos que unem esses autores: priorizam a leitura histórica da realidade brasileira e veem na educação um meio de promoção do desenvolvimento. As análises de Freire nessa obra o fazem aproximar-se das teses de Anísio Teixeira sobre o crescimento industrial que vive o Brasil a partir dos anos 1950, em especial durante o período de Juscelino Kubistchek. Embora seja um entusiasta da industrialização, traço que envolve os intelectuais desse período, preocupa-o que a modernização de nossa formação social não tenha sido acompanhada por igual avanço democrático. Percebe que conhece-

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mos dificuldades para que a participação se faça na construção das decisões políticas e públicas, em função da “inexperiência democrática” que resulta de um passado colonial restrito, daí porque o espirito democrático não teria vingado no país. No entanto, reconhece as contradições manifestas num tempo de transformações que podem, de resto, interferir na mentalidade antidemocrática arraigada no espírito do brasileiro. Por outro lado, seu otimismo o faz crer, como Anísio Teixeira, na possibilidade de formar no brasileiro/a hábitos e disposições democráticas por meio de processos educativos escolares. Essa tese colocará a escola no centro do debate sobre a democratização da sociedade brasileira, no qual desempenhará papel fundamental. No fundo, firma-se a ideia de que a democracia como uma experiência humana para ser vivida, precisa ser aprendida. Não que ela ocorra nessa ordem, pois se pode aprendê-la vivendo-a e vivendo-a aprendê-la. Eis aqui um legado de Freire para as sociedades, a não separação entre o vivido e o pensado, entre a educação e compromisso político, entre o intelectual e as transformações de seu tempo. Esse é o primeiro texto de maior fôlego que produzirá; texto que tem por base as experiências educacionais vividas no SESI desde os anos 1940. Vinte e dois anos depois, Freire profere a Conferência de abertura do Congresso Brasileiro de Leitura, na qual toma a leitura como objeto desde uma perspectiva crítica, como só o é de ser. Ali reafirma uma compreensão que se difundirá como algumas das tantas que

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ouvimos e lemos toda vez que se pretendeu e pretende citá-lo em algum material escrito (texto acadêmico, texto político, epígrafe, panfleto, etc.). Diz Freire que a “compreensão crítica do ato de ler não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra...” (1982, p.11) (grifos nossos). Sem esquecer que o trecho selecionado evidenciava antecipações de uma das ideias de base do que mais tarde se denominou de letramento, chama a atenção, nos comentários que em geral se seguem, a maior importância que se atribui ao entendimento do mundo, do outro e de si, que a leitura pode trazer. Igualmente, causa perplexidade a oposição que, por vezes, se enxerga entre uma leitura e outra. Tão importante quanto o trecho citado é o que o precede e o que está posto na sequência. A leitura é obra da inteligência e pode expandila, na medida em que é feita de forma crítica. Esta parece ser uma primeira ideia importante a ser extraída. Por outro lado, no entender de Freire, a leitura do mundo não prescinde da leitura da palavra, portanto, uma existe com e pela outra. Uma relação de implicação está na base da leitura e explicita seu dinamismo e os vínculos entre texto e contexto. A compreensão de texto implica a percepção das relações que constituem o mundo a que o escrito alude e representa.

LIÇÕES DO EXÍLIO A ruptura da institucionalidade provocada pelo golpe militar de 1964, faz com que Freire e sua família viva a amarga experiência do exílio. A experiência do exílio começou sozinho (sem passaporte e sem família), mas


não solitário. Ninguém chega a parte alguma só, muito menos ao exílio... Carregamos a memória de muitas tramas, o corpo molhado de nossa história, de nossa cultura; a memória, às vezes nítida, clara, de ruas de infância, da adolescência ... uma frase possivelmente já olvidada por quem a disse. Uma palavra por tanto tempo ensaiada e jamais dita, afogada sempre na inibição, no medo de ser recusado, que, implicando a falta de confiança em nós mesmos, significa também a negação do risco (FREIRE, 1992, p.32-3).

Primeiro na Bolívia (quase 60 dias, entre outubro e novembro de 1964), depois no Chile durante a presidência do democrata cristão Eduardo Frei e do socialista Salvador Allende. Outro exílio mais com o golpe chileno comandado por Pinochet. Encerra sua vida no Chile em abril de 1969 e, a convite da Universidade de Harvard (Massachussetts), vai viver no EUA, onde permaneceu por quase um ano como Professor Visitante. Daí parte para a Suíça, a convite do Conselho Mundial das Igrejas, fixou-se em Genebra, onde viveu por dez anos até retornar em definitivo para o Brasil em junho de 1980. A experiência do exílio deixa marcas profundas, mas é também um tempo para que pudesse tomar distanciamento do Brasil e, assim, podê-lo ver melhor, em suas grandezas e mazelas. Quem se exila costuma idealizar o que vive fora ou que tinha antes em seu país. Sabe-se depois, a custa de muita reflexão sobre essa difícil experiência, que o exílio não é uma coisa nem outra. Ele é um momento de tomada de consciência das diferenças cultu-

rais, mas também de tomada consciência de sua própria identidade cultural. Tomada de consciência que possibilita a construção de um valor: o valor que advém da cultura de origem. Permite também a ruptura com a visão colonial/colonizada, aquela que se designa pela máxima o melhor é o que vem de fora. A experiência do exílio (contexto de empréstimo, como dizia) é motivo de aprendizagens para Freire, que a expressou nesses termos: E o exílio então me deu essa outra grande lição. Na medida em que tu te experimentaste no teu contexto, historicamente, socialmente, na medida em que tuas raízes entrarem nesse contexto, em primeiro lugar nunca mais deixas de pertencer a esse contexto e em segundo lugar jamais pertences só a ele. Eu sinto em mim um pedaço da raiz ultrapassando o meu sapato onde quer que eu esteja. Essa fala arrastada, do nordestino que continua, o gosto da comida, a minha visão de mundo, a minha linguagem. (FREIRE. In ARAÚJO FREIRE, 2006, p.206).

LEITURA DO MUNDO COMO PRINCÍPIO EDUCATIVO Outra contribuição ainda aponta para a importância de irmos cavoucar em nossa própria experiência, em nossa história de vida. Assim, nesse mesmo texto sobre A importância do ato de ler, deixam evidentes os saberes que somos capazes de construir quando nos dispomos a ler e “reler” momentos vividos, guardados na memória. Saberes construídos ao longo de nossa vida e que vão nos consti-

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tuindo. A isso que, hoje, chamamos de saberes experienciais, acreditando-se, por vezes, ser achado recente e de origem exógena, Freire preferia denominar de saber da experiência feito. A retomada da infância distante, buscando a compreensão do meu ato de “ler” o mundo particular em que me movia – e até onde não sou traído pela memória -, me é absolutamente significativa. Nesse esforço a que me vou entregando, re-crio, e re-vivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra (1982, p.12).

Não lia palavra, mas era capaz de ir, pouco a pouco, a medida que as experiências se sucediam, lendo o mundo, o seu mundo. A esse ato de ler que não consiste em ruptura com a “leitura” do mundo, chamou de leitura da “palavramundo”. A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão, seu terraço – o sítio das avencas de minha mãe -, o quintal amplo em que se achava, tudo isso foi o meu primeiro mundo. [...] Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam [...] na tonalidade diferente de cores de um mesmo fruto em momentos distintos: o verde da mangaespada verde, o verde da manga-espada inchada; o amarelo esverdeado da mesma manga amadurecendo, as pintas negras da manga mais além de madura. A relação entre essas cores, o desenvolvimento do fruto, a sua resistência à nossa manipulação e o seu gosto. Foi nesse tempo, possivelmente, que eu, fazendo e vendo fazer, aprendi a significação da ação... (Id., p.13)

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Esse modo de entender a leitura o marcou tão profundamente que, mais tarde, quando assume a tarefa de ensinar língua portuguesa no então nível secundário, em escola do Recife, recusa-se a reger-se unicamente pelos ditames da gramática normativa para expor os conhecimentos da língua “à curiosidade dos alunos de maneira dinâmica e viva”. Explora os significados de textos de autores consagrados ou dos próprios alunos. “Os alunos não tinham que memorizar mecanicamente a descrição do objeto, mas apreender a sua significação profunda” (Id., p.17) Ao reconhecer a experiência como fonte de conhecimento, não pretendeu defender que sua emergência pudesse se produzir de forma espontânea ou puramente intuitiva, mas como resultado de reflexão rigorosa e sistemática, portanto, como ato de humano de distanciamento das práticas, em que de forma intencional, visa-se o conhecimento sobre práticas e o autoconhecimento, mesmo que não necessariamente pretendido.

RELAÇÃO ENTRE O EDUCADOR E OS MOVIMENTOS POPULARES Por fim, passemos a um olhar sobre as relações educador/a e os movimentos sociais através de um trecho de vídeo documentário. Trata-se de uma fala de Freire em conversa com Pedro Pontual3. A fala provocativa pontua o papel do educador progressista. Uma das tarefas do educador progressista, hoje, com relação aos movimentos populares é, exatamente, aprendendo com eles, com os movimentos


populares, ensinar também. Não há porque temer, quem tenha o dever, a tarefa e o direito de ensinar aos movimentos populares. De jeito nenhum, eu jamais me entregaria, prometendo ser discípulo deles. De jeito nenhum, porque é mentira e é falso. Também não serei o eterno professor de movimentos. Sou um educando educador” (Depoimento de Freire cedido em 1989. IN INSTITUTO PAULO FREIRE. Paulo Freire Contemporâneo, documentário, 2006).

Por outro lado, ao recusar ser refém de quem quer que seja, recusa o entendimento dos que querem impingir aos movimentos populares a condição de um oráculo a ser consultado porque nele se situa a Verdade. Rompe assim a ideia de um caminho único que leve à Verdade, advogando sua condição multicêntrica e polifônica. Para isso, impõe-se a necessidade do diálogo, da prática da fala escuta atentiva de quem a ele se integrar e reconhecimento de valor a quem fala e a quem escuta.

Com a demonização de toda forma de representação, com toda forma de mediação político social, que vem de par com o crescente encantamento com a forma direta de representação política do cidadão para efetivação da democracia, propor um papel para o/a educador/a, na sua relação como os movimentos populares, parece ser uma heresia. Esse debate é, no entanto, mais que oportuno, porque ele agrega questões fundamentais para a construção mesma da democracia como valor e prática social. Vale lembrar que Freire fez essa advertência, mas, antes de tudo, celebrou as tantas marchas que os movimentos sociais produziram e produzem, em favor de questões fundamentais para os excluídos desse país, bem como propôs outras tantas, na medida em que reconhecia o quanto se tem a fazer para que as necessárias transformações ocorram.

NETO, José Batista Doutor em Ciências da Educação, Professor Associado do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino do Centro de Educação da UFPE, membro da Cátedra Paulo Freire da UFPE. E-mail: josebn@uol.com.br

De um lado, chama à atenção para a relação entre educador/a e movimentos populares seja de, mutuamente, ensinar e aprender. O que vale dizer, retomando suas palavras, “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende, ensina ao aprender”.

SANTIAGO, Eliete Doutora em Ciências da Educação, Professora Titular do Departamento de Administração Escolar e Planejamento Educacional do Centro de Educação da UFPE, Coordenadora da Cátedra Paulo Freire da UFPE. E-mail: mesantiago@uol.com.br

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REFERÊNCIAS ARAÚJO FREIRE, Ana Maria. Paulo Freire. Uma história de vida. S. Paulo: Villa das Letras, 2006. FREIRE, Paulo. Educação e atualidade brasileira. Recife: Universidade do Recife, 1959. _______. A importância do ato de ler em três artigos que se completam. S. Paulo: Cortez Editora/ Editora Autores Associados, 1982. _______. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. S. Paulo: Paz e Terra, 1992. INSTITUTO PAULO FREIRE. Paulo Freire Contemporâneo. S. Paulo, 2006, (documentário). PAVAN, Ruth. A contribuição de Paulo Freire para a educação popular: uma análise do GT de Educação Popular da Anped. Caxambu: Anais da 31ª Reunião Anual, 2008. MAINGUENEAU, Dominique. Présentation. In: Langages, 29ᵉ année, n. 117, 1995. Les analyses du discours en France, sous la direction de Dominique Maingueneau.

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Educação e atualidade brasileira originalmente é a tese de Paulo Freire escrita em 1959. Foi concebida com a finalidade de atender às exigências do concurso para efetivação como professor da cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas Artes da Universidade do Recife. 1

Em referência ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), criado em 1955 e extinto em 1964 pelo regime militar. Era vinculado ao Ministério de Educação e Cultura, dotado de autonomia administrativa, com liberdade de pesquisa, de opinião e de cátedra. Realizou pesquisa e ensino de problemas brasileiros nos campos das Ciências Sociais e Humanas, com foco na temática do desenvolvimento, tendo sido uma das instituições responsáveis por elaborar e irradiar as teses do nacionaldesenvolvimentismo. 2

Educador brasileiro e militante dos movimentos sociais que foi Presidente do CEAAL (Conselho de Educação de Adultos da América Latina, cuja sede situa-se em Santiago do Chile). 3

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RELATO DE EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL

UMA PRÁTICA DOCENTE INSPIRADA NA PEDAGOGIA FREIREA NA: A EXPERIÊNCIA NA CÁTEDRA PAULO FREIRE DA PUC-SP SAUL, Ana Maria1 SAUL, Alexandre2

Resumo O texto apresenta o trabalho de docência desenvolvido na Cátedra Paulo Freire da PUC-SP, realizado no 1º semestre de 2016, com 32 doutorandos e mestrandos. Essaexperiência objetivou contribuir para o desenvolvimento profissional de educadores, alunos da Cátedra, nas dimensões de ensino e pesquisa, e concretizar princípios teórico-metodológicos da pedagogia freireana. Um trabalho de leitura de realidade possibilitou levantar o universo temático do grupo-classe, dando origem a uma programação educativa dialógica, por meio da qual se pretendeu apreendercriticamente o real, e a interdependência intrínseca entre os conteúdos estudados e a concretude dos problemas de pesquisa e das práticas pedagógicas dos estudantes. Os principais resultados obtidos puderam ser evidenciados em produções de textos dos alunos, que demonstraram a apropriação de referenciais freireanos trabalhados no curso, a serem incorporados em suas Dissertações e Teses. Paulo Freire. Prática docente. Cátedra Paulo Freire. Ensino superior. Abstracto El artículo presenta el trabajo de docencia desarollado en la Cátedra Paulo Freire en la PUC-SP, que se ha realizado en el primero semestre de 2016, con 32 estudiantes de doctorado y de maestría. Esta experiencia tuvo como objetivo contribuir al desarrollo profesional de los edUcadores, alumnos de la “Cátedra”, en las dimensiones de la enseñanza y de la investigación, y concretizar los principios teóricos y metodológicos de la pedagogía freireana. Un trabajo de lectura de la realidad permitió levantar el universo temático del grupo-clase, lo que llevó a una programación educativa dialógica, a través de la cual se he pretendido captar críticamente el real, y la interdependencia intrínseca entre los contenidos estudiados y la materialidad de los problemas de investigación y de las prácticas pedagógicas de los estudiantes. Los principales resultados logrados pudieron ser evidenciados en las producciones de los textos de los alumnos que mostraron la apropiación de las referencias freireanas Paulo Freire. Práctica docente. Cátedra Paulo Freire. Enseñanza superior. UMA PRÁTICA DOCENTE INSPIRADA NA PEDAGOGIA FREIREA NA: A EXPERIÊNCIA NA CÁTEDRA PAULO FREIRE DA PUC-SP

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INTRODUÇÃO O objetivo desse texto é apresentar e discutir o trabalho de docência que se desenvolve na Cátedra Paulo Freire da Pontifícia Universidade Católica deSão Paulo, com a intenção de materializar princípios da pedagogia freireana3. Paulo Freire foi professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pelo período de 17 anos (1980 -1997). Quando ele já não estava entre nós, no 2º semestre de 1998, a Reitoria da PUC-SP aprovou a criação da Cátedra Paulo Freire, proposta pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Currículo. A Cátedra Paulo Freire é um espaço especial para o desenvolvimento de estudos e pesquisas sobre, e a partir da obra de Paulo Freire. A Cátedra recebe, prioritariamente, mestrandos e doutorandos do Programa de Educação: Currículo. No espaço da Cátedra, os estudos visam a estudar criticamente o pensamento de Paulo Freire, para compreendê-lo e reinventá-lo. Busca-se atender à orientação e ao desejo de Freire, assim registrados desde o seu livro “Ação Cultural para a Liberdade”, ao dizer sobre a continuidade de sua obra. Quanto aos outros, os que põem em prática a minha prática, que se esforcem por recriá-la, repensando também meu pensamento. E ao fazê-lo, que tenham em mente que nenhuma prática educativa se dá no ar, mas num contexto concreto, histórico, social, cultural, econômico, político, não necessariamente idêntico. (FREIRE, 1981, p. 17).

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Reinventar o legado freireano significa, na Cátedra Paulo Freire, fazer uma releitura crítica da obra do autor cuidando, no entanto, de não descaracterizar as suas propostas fundamentais, tendo em vista discuti-las frente aos novos desafios do mundo atual. E, sobretudo, construir e sistematizar uma práxis coerente com os princípios fundamentais da obra freireana. Rejeita-se, pois, qualquer compreensão de reinvenção que possa significar rompimento com o pensamento do autor para que se “faça tudo de novo”. Ao mesmo tempo, entende-se como necessário, exercer uma postura crítica às ações que aproximam ou reduzem a filosofia e a pedagogia de Freire a métodos e técnicas, muitas dessas chanceladas por modismos e pela “grife” das chamadas inovações pedagógicas.

A PEDAGOGIA DE PAULO FREIRE: UM QUEFAZER NA EDUCAÇÃO MARCADO POR PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO POPULAR A luta intransigente de Paulo Freire contra situações de opressão e a favor de uma práxis democrática, sustentada por princípios de solidariedade e justiça social, definiram a sua compreensão e a sua prática a favor de uma Universidade progressista. Em seus escritos encontram-se princípios que podem ser tomados como crivo para orientar e, ou, analisar a práxis institucional de uma Universidade pautada pelo referencial da Educação Popular.


No conjunto desses princípios destaca-se o compromisso da Universidade a favor da construção de um conhecimento crítico-transformador, na direção de uma sociedade democrática, justa e solidária, que transborda e penetra a estrutura e o funcionamento de uma instituição de ensino superior. Paulo Freire escreve:

não são experimentados pela maioria, se acham presentes em minoria significativa. [...] em lugar de negar a importância da presença [...] da comunidade, dos movimentos populares na [instituição educacional] se aproxima dessas forças com as quais aprende para a elas poder ensinar também. [...] supera os preconceitos de raça, de classe, de sexo e se radicaliza na defesa da substantividade democrática.

Não se faz pesquisa, não se faz docência como não se faz extensão como se fossem práticas neutras. Preciso saber a favor de que e de quem, portanto contra que e contra quem pesquiso, ensino ou me envolvo em atividades mais além dos muros da Universidade. (FREIRE, 1993, p. 113).

[...] não considera suficiente mudar apenas as relações entre [educadores] e educandos, amaciando essas relações, mas, ao criticar e tentar ir além das tradições autoritárias da escola velha, critica também a natureza autoritária e exploradora do capitalismo.

É possível dizer, a partir de escritos de Freire, que um trabalho, na Universidade, pautado pelos princípios da Educação Popular:

E ao realizar-se, assim, como prática eminentemente política, tão política quanto a que oculta, nem por isso transforma [a instituição] onde se processa em sindicato ou partido.

[...] jamais separa do ensino dos conteúdos o desvelamento da realidade. [...] respeita os educandos, não importa qual seja sua posição de classe e, por isso mesmo, leva em consideração, seriamente, o seu saber de experiência feito, a partir do qual trabalha o conhecimento com rigor de aproximação aos objetos. [...] trabalha, incansavelmente, a boa qualidade do ensino [...] através de rigoroso trabalho docente e não com frouxidão assistencialista. [Está atento à necessária] formação científica e clareza política de que as educadoras e os educadores precisam para superar os desvios que, se

É que os conflitos sociais, o jogo de interesses, as contradições que se dão no corpo da sociedade se refletem necessariamente no espaço das [instituições educativas]. (FREIRE, 1993, p. 101-103).

Esses princípios exigem um quefazer político-pedagógico, no cotidiano da Universidade, a fim de que esta se concretize como uma instituição de ensino superior coerente com a Educação Popular defendida por Paulo Freire.

Não é suficiente, portanto, apenas de-

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clarar, embora absolutamente necessário, o compromisso de uma ação educativa, na Universidade, com o ideário da Educação Popular. A coerência dos princípios que definem esse compromisso precisa se expressar, também, nas ações de ensino, pesquisa e extensão. Cabe, em primeiro lugar, propor-se a superar certas dicotomias, por vezes frequentes. Em “Pedagogia da Autonomia”, Freire (1997) considera que ensinopesquisa são ações que se interpenetram. E, em “Pedagogia da Esperança” indaga: Como superar a tentação basista, voluntarista e, também a tentação intelectualista, verbalista, blablabante? Como entender, mas sobretudo viver, a relação prática-teoria sem que a frase vire frase feita? (FREIRE, 1992, p.136).

Essas questões requerem reflexão contínua, pois elas pervadem as diferentes esferas de ação da Universidade. Não se trata de respostas fáceis, rápidas, porque essas não são perguntas retóricas. É preciso construir tais respostas em diálogo aprofundado que passa pela prática e pela teoria, sempre, no cotidiano demandante das instituições de ensino. Aos professores cabem, continuamente, decisões que estão no coração de suas práticas e que respondem às perguntas: Que conteúdo ensinar? Como ensinar? Como avaliar? Vale resgatar, aqui, as questões que nos faz Paulo Freire, em “Pedagogia da Esperança”, no tocante a uma Universidade que se quer encharcada dos princípios da Educação Popular:

Que conteúdos ensinar, a favor de que

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ensiná-los, a favor de quem, contra que, contra quem. Quem escolhe os conteúdos e como são ensinados? Que é ensinar? Que é aprender? Como se dão as relações entre ensinar e aprender? Que é o saber de experiência feito? Podemos descartá-lo como impreciso desarticulado? Como superá-lo? Que é o professor? Qual seu papel? E o aluno, quem é? E o seu papel? Não ser igual ao aluno significa dever ser o professor autoritário? É possível ser democrático e dialógico sem deixar de ser professor, diferente do aluno? Significa o diálogo um bate-papo inconsequente cuja atmosfera ideal seria a do “deixa como está para ver como fica”? Pode haver uma séria tentativa de escrita e leitura da palavra sem a leitura do mundo? Significa a crítica necessária à educação bancária que o educador que a faz não tem o que ensinar e não deve fazê-lo? Será possível um professor que não ensina? Que é a codificação, qual o seu papel no quadro de uma teoria do conhecimento? (FREIRE, 1992, p.135).

Novamente, vale insistir, essas não são questões retóricas. Debruçar-se sobre as mesmas, para respondê-las e para construir uma prática coerente, implica adentrar questões políticas, que se referem à utopia de uma sociedade democrática, justa e solidária. Em decorrência, cabe questionar a natureza do conhecimento que é construído/distribuído na Universidade e que, não pode ser outro, senão um conhecimento crítico-transformador. Na vertente das questões epistemológicas, cabe discutir qual é o conhecimento crítico/significativo a ser trabalhado na Uni-


versidade. E aqui, a questão do senso comum, entendido como saber de experiência feito, tem se constituído em um divisor de águas, em confronto com o dito saber construído historicamente pela humanidade. Não tem sido reconhecida, por educadores alinhados com a educação bancária, a necessidade de valorizar e equacionar essas diferentes produções, todas elas construídas, em tempos históricos, pela humanidade. As questões pedagógicas dizem da docência-discência e da avaliação. Um primeiro saber a compreender, sublinhado por Paulo Freire, é: quem ensina aprende e quem aprende, ensina. A partir desse entendimento, o diálogo assume uma categoria central como forma de construção de conhecimento, na relação ensino-aprendizagem. Destaque-se, aqui, a imprescindível leitura crítica da realidade que inclui a necessidade de partir do conhecimento dos educandos, e não ficar nele, para a construção do conhecimento crítico. Integrando essa discussão, coloca-se a urgência de superar os condicionamentos de um saber-fazer disciplinar, fragmentado, na direção de um conhecimento inter/trans/multidisciplinar. E, finalmente, não com menor importância, vem à pauta a questão da avaliação, em suas diferentes modalidades, desde a chamada avaliação dos educandos ou avaliação da aprendizagem, passando pela avaliação de cursos, projetos e avaliação institucional, propriamente dita. Em todos esses âmbitos da avaliação educacional na instituição universitária, é fundamental que se considere que a avaliação não pode ser entendida como controle, desenvolvida com práticas autoritárias e ameaçadoras. A avaliação que importa, em uma perspectiva de Educação Popular, é

aquela que serve a propósitos emancipatórios, contribuindo para a qualidade social da educação. É importante que se diga que uma Universidade que objetiva ter uma proposta e uma prática pautadas nesses princípios da Educação Popular precisará ter vontade política, disposição e ações para questionar e mudar paradigmas estabelecidos que, muitas vezes, estão em direção oposta a essa, por conta de opções ideológicas dos educadores, respectivas histórias de vida, formação e hábitos. Essa não é uma tarefa fácil. Diz Freire: “[...] a Educação Popular cuja posta em prática, em termos amplos, profundos e radicais numa sociedade de classe, se constitui como um nadar contra a correnteza” (FREIRE, 1993, p. 49). Porém, vem dele mesmo a esperança e o apelo, em epígrafe de seu livro “A Educação na Cidade” (1991): “Mudar é difícil, mas é possível e urgente”. Tem-se buscado, na Cátedra Paulo Freire, estimular o desenvolvimento acadêmico dos participantes, subsidiando seus quefazeres pedagógicos e pesquisas com aportes teóricos significativos, ou seja, com teorias que se colocam a serviço do descortinamento e superação das contradições sociais, tendo como referência as necessidades apontadas pelos sujeitos da prática educativa. Nas aulas, são criadas oportunidades para que os discentes possam dizer a sua palavra e dialogar com os colegas e professores, para avançar na compreensão dos principais problemas que os impedem de ser mais.

METODOLOGIA

UMA PRÁTICA DOCENTE INSPIRADA NA PEDAGOGIA FREIREA NA: A EXPERIÊNCIA NA CÁTEDRA PAULO FREIRE DA PUC-SP

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A matéria-prima das aulas semanais, que tiveram início em fevereiro de 2016, e se encerraram em meados de junho, foram as preocupações e dúvidas que os educandos4 traziam em relação a possíveis conexões entre os objetos/problemas de pesquisa de suas dissertações e teses e a pedagogia de Paulo Freire, perpassadas pelos fatos e dados dos seus contextos de atuação profissional, e de suas percepções sobre eles. Um trabalho de leitura de realidade (FREIRE, 1987, 2011) “estou em dúvida se 2011 é página, se for deveria ser (FREIRE, 1987, p. 2011) ou se for dois anos seria Freire (1987, 2011) possibilitou levantar os temas de interesse do grupo-classe, dando origem a uma programação educativa dialógica, por meio da qual aprofundouse o estudo dos temas e conceitos da pedagogia freireana, com a intenção de subsidiar os pós-graduandos em suas pesquisas e práticas pedagógicas. O planejamento das aulas, realizado por dois professores da Cátedra Paulo Freire5, em uma perspectiva colaborativa6, era construído semanalmente e levava em consideração as propostas dos docentes em relação ao estudo sistemático, rigoroso e intencional do pensamento de Freire, e as necessidades apresentadas pelos alunos a cada aula. Essa opção exigiu dos professores disposição para aprender um com o outro e com o grupo de estudantes, abertura ao diálogo e capacidade de escuta. Requereu, também, condições objetivas que permitiram aos docentes da Cátedra tempo para estudo e elaboração conjunta do quefazer educativo. Na sala de aula, as cadeiras eram sempre dispostas em círculo, seguindo a tradição do trabalho educativo desenvolvido por Paulo

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Freire, nos “Círculos de Cultura”7. No início de cada aula, a proposta de trabalho era apresentada e discutida com a turma, podendo ser alterada e acrescida a partir de comentários dos alunos. Em seguida, sempre havia um primeiro momento de diálogo sobre os acontecimentos da semana que, sob a ótica dos pósgraduandos e dos professores, eram considerados importantes para discutir no coletivo da Cátedra. Dentre os temas debatidos, merecem destaque questões ligadas à política mais ampla, como o impeachment da presidenta Dilma, noticiado pela imprensa, questões ligadas à política educacional, como os projetos de lei que pretendem instituir as “Escolas sem Partido”, e outros assuntos relacionados à política universitária, além de medos e angústias advindas das práticas dos participantes, em seus contextos profissionais. Buscou-se, assim, jamais deixar de lado a preocupação em desvelar as interconexões entre os contextos concretos dos participantes da e o contexto teórico da Cátedra (FREIRE, 1995) ou Freire (1995). Segundo Freire, O professor se faz educador autêntico na medida em que é fiel a seu tempo e a seu espaço. Sem esta fidelidade, mesmo bem intencionado, se compromete sua atividade formadora. É que não pode haver formação do educando se o conteúdo da formação não se identifica com o clima geral do contexto a que se aplica. Seria antes uma deformação (FREIRE, 1962, p.46).

Na primeira aula foi apresentado e discutido o cronograma do curso e a proposta de trabalho para o semestre. Para levantar os temas de interesse dos alunos foram feitas a


eles, por escrito, as seguintes questões: 1. Qual é o seu problema de pesquisa? 2. O que você busca na Cátedra Paulo Freire, diante do seu problema de pesquisa? As respostas lidas e comentadas por seus respectivos autores, foram também entregues aos professores. Uma análise do material escrito, enriquecido por anotações provenientes da aula, permitiu aos docentes da Cátedra caracterizar um universo temático do grupo-classe, relacionado ao pensamento de Freire. Diante da impossibilidade de trabalhar, com profundidade, em um único semestre, com um grande volume de conceitos, alguns deles foram priorizados. Dentre os conceitos presentes nas respostas dos alunos, de forma explícita e implícita, aqueles que apareceram com maior frequência e apresentaram maior aderência ao critério de pertinência à obra de Freire, foram: educação problematizadora, leitura do mundo, humanização/ transformação/justiça social, diálogo, currículo e prática pedagógica.

um dos conceitos de forma relacional, isto é, possibilitando que a compreensão inicial que se pode ter sobre ele fosse enriquecida e ampliada em um processo de cisão e retotalização do mesmo, que resulta em um conhecimento mais denso e complexo do conceito. Respeitou-se, também, o caráter relacional da obra de Freire e a proposta desse autor de que o ato gnosiológico não prescinda de um “cerco epistemológico”, isto é, da compreensão das inter-relações e múltiplas determinações que se estabelecem entre os objetos de conhecimento, Freire (1995) (FREIRE, 1995). A representação gráfica da trama conceitual elaborada para compreender, analisar e trabalhar com o conceito de educação problematizadora, ao longo do primeiro semestre letivo de 2016, na Cátedra Paulo Freire, é apresentada na figura a seguir. Figura: 1 Trama Conceitual do conceito Educação Problematizadora

A organização do estudo sistemático dos conceitos selecionados foi pensada a partir de uma trama conceitual freireana (SAUL, A. M.; SAUL, A., 2013), ou Saul A. M. e Saul A. (2013) construída pelos professores e debatida com o grupo, cujo centro foi a educação problematizadora, ou seja, o conceito que mais despertava a curiosidade e a preocupação dos educandos.

Com a trama, foi possível estudar cada

Fonte Conceitos: Paulo Freire

Passou-se então a estudar cada um dos

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conceitos com a utilização de diferentes estratégias formativas e dinâmicas que incluíram: 1. Levantamento de saberes de experiência dos participantes, por meio de problematizações que buscavam fazer emergir conhecimentos advindos de suas práticas e de dados da realidade em relação à temática estudada. 2. Diálogo em pequenos e grandes grupos a partir de excertos de textos, trechos de vídeos e textos completos, indicados para estudo pelos professores da Cátedra. São exemplos dos textos indicados: “Cinco razões para dialogar com Paulo Freire”, de Danilo Streck; “Mudar é difícil mas é necessário e urgente: um novo sentido para o projeto político pedagógico da escola”, de Ana Maria Saul e Alexandre Saul; “O que é o método dialógico de ensino? O que uma pedagogia “situada” e o empowerment? – Capítulo 4 do livro “Medo e ousadia: o cotidiano do professor”, de Paulo Freire e Ira Shor; “Papel da educação na humanização”, de Paulo Freire; Capítulo 2 do livro “Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire; Capítulo 1 do livro “Pedagogia da Autonomia”, de Paulo Freire; “Formação de professores em Paulo Freire: uma filosofia como jeito de ser-estar e fazer pedagógicos”, de Eliete Santiago e José Batista Neto; e outros. 3. Análise coletiva e relacional de tramas conceituais, produzidas pelos estudantes, tendo como centro o conceito principal a ser trabalhado em suas dissertações ou teses, permitindo a composição de sínteses coletivas sobre um determinado conceito e outros, a ele relacionados. 4. Realização de jogos teatrais que permitiram aos participantes construir um clima favorável ao desenvolvimento do trabalho de formação de pesquisadores-docentes, exigin-

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do cooperação, concentração, descontração e confiança. 5. Apresentação de pesquisas de egressos da Cátedra Paulo Freire que guardavam relação com os conceitos estudados. 6. Participação de professores de outras Universidades e/ou Programas de Pós-Graduação para aprofundamento teórico-metodológico. Como foi o caso das aulas ministradas pelo prof. Dr. Dario Fiorentini, da Unicamp, e pela profa. Dra. Bernadete Gatti, da Fundação Carlos Chagas. 7. Elaboração de textos que descrevessem uma prática educativa ou intenções de pesquisa dos alunos, com o objetivo de realizar análises coletivas das mesmas, tendo como crivo crítico a trama conceitual com centro na educação problematizadora, construída e estudada na Cátedra.

AS PRODUÇÕES DOS ALUNOS: UMA AVALIAÇÃO CRÍTICO-REFLEXIVA DO CURSO No final do semestre letivo, solicitou-se que alunos expressassem as suas compreensões do que fora vivenciado na disciplina em produções escritas. Esse foi o momento de sistematizar, de forma sintetizada, a produção de conhecimento que os participantes da Cátedra tiveram durante o curso. Em seus textos, os pós-graduandos deveriam apresentar reflexões, explicitar e justificar formas ou perspectivas de utilização/ articulação dos conceitos freireanos analisados nas aulas, nas práticas e/ou pesquisas relatadas/anunciadas nos textos, tendo em vista melhor compreender suas realidades profis-


sionais, suas indagações de pesquisa, ou, ainda, analiSar resultados obtidos em investigaÇÕES. PARA confecção dos manuscritos, foi sugerido que os alunos revisitassem os textos indicados/lidos durante o curso e também consultassem outros. Algumas dessas produções foram apresentadas e discutidas nas aulas, e todas foram entregues aos professores da Cátedra, como parte da avaliação final do curso. Objetivou-se que esse momento fosse caracterizado como uma avaliação crítico-reflexiva sobre o trabalho desenvolvido, tomando-se como referência as expectativas iniciais dos mestrandos e doutorandos e o percurso trilhado durante o semestre. Alguns alunos escreveram sobre a contribuição das aulas para as suas dissertações e teses, quer do ponto de vista da fundamentação teórica, quer do ponto de vista metodológico. O trabalho sobre tramas conceituais freireanas chamou muito a atenção do grupo-classe e, em virtude desse fato, várias tramas conceituais foram construídas, de acordo com o interesse dos pesquisadores desse grupo. Outras produções foram apresentadas demonstrando a contribuição do curso para as práticas dos alunos, na docência, na gestão de escolas ou em outras instâncias da educação. As produções escritas foram discutidas nas aulas, como mais um momento da trajetória de formação de alunos e professores. As análises das sistematizações constituíram momentos valiosos de avaliação formativa, conquanto geraram novas produções de conhecimento e indicações importantes para os próximos semestres de trabalho da Cátedra Paulo Freire. Ao mesmo tempo, fo-

ram momentos prazerosos porque o grupo desenvolveu relações de respeito, e confiança que permitiram uma convivialidade amorosa e solidária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência de docência aqui relatada atestou a possibilidade e o valor de se trabalhar com princípios da pedagogia freireana no ensino superior e, em especial, na Pós-Graduação. Assumindo o compromisso ético-político de desenvolver a docência a partir da problemática de pesquisa e dos interesses dos educandos, como ponto de partida do processo crítico de construção de conhecimentos, a Cátedra propôs-se a contribuir para a formação de pesquisadores em uma vertente contra hegemônica, porque defende uma proposta que se opõe a processos formativos prescritivos, reprodutivistas e conteudistas de educação. Destaque-se, também, que essa experiência, aqui relatada, pôde consolidar uma proposta de docência compartilhada com dois professores que trabalharam em uma perspectiva colaborativa, nos momentos de planejamentoe em cada aula, semanalmente. Ao analisar, com os alunos, a prática de docência compartilhada dos professores que conduziram o trabalho nesse semestre, foi possível percorrer muitos dos 27 saberes docentes apresentados por Paulo Freire em “Pedagogia da Autonomia - saberes necessários à prática docente”. Constatou-se que o diálogo, o respeito, a autonomia partilhada, a interdisciplinaridade, a humildade, os saberes de experiência feitos, dentre outros, são saberes

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que foram se tramando, necessariamente, na construção dessa proposta de docência experienciada na Cátedra Paulo Freire da PUCSP, nesse primeiro semestre de 2016.

SAUL, Ana Maria 1 Professora Titular do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Currículo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Coordenadora da Cátedra Paulo Freire da PUC-SP. E-mail: anasaul@ uol.com.br SAUL, Alexandre2 Doutor em Educação pelo Programa de Estudos Pós-

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REFERÊNCIAS FIORENTINI, Dario. Pesquisar práticas colaborativas ou pesquisar colaborativamente? In: BORBA, Marcelo de Carvalho; ARAÚJO, Jussara de Loiola (Orgs.). Pesquisa qualitativa em educação matemática. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013. p. 53-86. FREIRE, Paulo. A educação na cidade. São Paulo: Editora Cortez, 1991. ______. À sombra desta mangueira. São Paulo: Editora Olho D’água, 1995. ______. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. ______. Cartas à Guiné-Bissau – registros de uma experiência em processo. São Paulo: Paz e Terra, 1977. ______. O professor universitário como educador. Estudos Universitários: Revista de Cultura da Universidade do Recife, Recife: Imprensa Universitária, v. 1, 1962. ______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. ______. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1992. ______. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. ______. Política e educação. São Paulo: Editora Cortez, 1993. IMBERNÓN, Francisco. Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e a incerteza. Questões da nossa época. São Paulo: Editora Cortez, 2004. SAUL, Ana Maria; SAUL, Alexandre. Mudar é difícil, mas é necessário e urgente: um novo sentido para o projeto político pedagógico da escola. Revista Teias, v.14, n. 33, p.102-120. Dossiê Especial, 2013.

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O uso deliberado do adjetivo freireano e flexões, assumido nesse texto e em produções da Cátedra Paulo Freire da PUC-SP, é uma questão de preferência, pela compreensão de que a manutenção da grafia integral do sobrenome do autor destaca com maior vigor a procedência das produções: a matriz de pensamento de Paulo Freire. Em alguns redutos acadêmicos significativos seguiu-se, pois, o seguinte critério: à ortografia original do antropônimo, foi acrescentado o sufixo ano, resultando no adjetivo freireano. 3

Mestrandos e doutorandos alunos de diferentes cursos de Pós-Graduação da PUC-SP (Educação: Currículo, Educação: Formação de Formadores, Educação: Psicologia da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-SP). 4

No primeiro semestre de 2016, trabalharam como docentes da Cátedra Paulo Freire da PUCSP a profa. Ana Maria Saul e o prof. Alexandre Saul. 5

6

Conferir o conceito de colaboração em Freire (1987), Imbernón (2004) e Fiorentini (2013).

As razões para a disposição das cadeiras em círculo foram discutidas com os alunos desde aprimeira aula. Aos poucos, os estudantes foram assumindo essa forma de trabalho como um valor para si, conectado a uma prática educativa democrática e dialógica, passando a chegar mais cedo para arrumar as cadeiras na posição adequada antes da chegada dos professores. Sobre o trabalho nos “Círculos de Cultura”, conferir FREIRE (1987, 1981). 7

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RELATO DE EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL

PAULO FREIRE NA FORMAÇÃO DE ESPECIALISTAS EM EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO DE ADULTOS E INTERVENÇÃO COMUNITÁRIA ALCOFORADO, Luiz1

Resumo Ao longo das últimas décadas, a educação de Adultos tem vindo a reforçar a sua especificidade, quer enquanto problemática, quer enquanto campo de práticas, assumindo a importância de Paulo Freire como autor central deste processo. As Universidades, um pouco por todo o mundo, têm vindo a integrar-se neste esforço promovendo a construção de conhecimento e formando especialistas. Neste texto apresentamos experiências educativas ligadas ao Mestrado de Educação e Formação de Adultos da Universidade de Coimbra, que têm na obra de Paulo Freire um dos principais pontos de interesse e trabalho. Indicamos as opções teóricas e recenseamos os temas geradores escolhidos pelos/as alunos/as no planejamento e desenvolvimento de Círculos de Cultura. Educação de Adultos. Formação de educadores. Paulo Freire. Abstracto Durante las últimas décadas, la educación de adultos ha venido reforzando su especificidad, en cuanto problematica y en cuanto campo de prácticas, asumiendo la importancia de Paulo Freire como autor principal de este proceso. Las Universidades, un poco por todo el mundo, han tenido la responsabilidad de ser parte de este esfuerzo promoviendo la construcción del conocimiento y formando especialistas. En este trabajo se presentan experiencias educativas relacionadas con el Master en Educación y Formación de Adultos e Intervención Comunitaria de la Universidad de Coimbra, que tienen en la obra de Paulo Freire uno de los principales puntos de interés y de trabajo. Se indican las opciones teóricas y se enuncian los generadores elegidos por los estudiantes en la planificación y desarrollo de los círculos de cultura. Educación de Adultos. Formacion de educadores. Paulo Freire.

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O DESAFIO DAS UNIVERSIDADES: CONSTRUIR UM CAMPO DE CONHECIMENTO E FORMAR PROFISSIONAIS PARA A EDUCAÇÃO DE ADULTOS Não será excessivo afirmar que a grande maioria dos processos educativos organizados, ao longo da História, se justificou por razões de estado e da administração, por obrigações determinadas pela teologia e pela fé e por necessidades evidenciadas pelas trocas comerciais (GRAFF, 1994). Já depois do século XVIII, no entanto, a este conjunto de razões, foram-se juntando, sucessivamente, motivos de desenvolvimento econômico mais geral e, principalmente, ideias de progresso democrático e social, traduzidos por uma fé firme na pessoa humana e pela necessidade de garantir uma efetiva igualdade de direitos e de oportunidades a todas as pessoas, em qualquer fase das suas vidas. Foi assim que surgiram as condições necessárias para o aparecimento de uma educação, ou pós-escolar, ou em substituição da escola que não se tinha podido frequentar, por qualquer razão, aparecendo a Educação de Adultos como um movimento social (JARVIS, 2001), ao qual foram aderindo sucessivas gerações de educadores, construindo a sua atividade numa militância e sentido ético de quem acreditava ser possível multiplicar as oportunidades e os direitos de todas as pessoas, independentemente da sua idade, desafiando-as a contribuir para a construção e fortalecimento das democracias, participar na edificação das identidades na-

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cionais, maximizar o crescimento econômico e promover, decisivamente, a sua realização individual e social. A Educação de Adultos foi-se organizando com o propósito de procurar responder a estes desafios civilizacionais, tendo a consciência plena que apenas dos seus contributos poderiam advir os recursos transformadores imediatos e necessários, para as pessoas e respetivas comunidades. Num primeiro momento, procurou fazê-lo, adotando os modelos tradicionais de ensino (LENGRAND, 1970), uma vez que o seu público era constituído por trabalhadores que dependiam, inteiramente, no que respeita à sua instrução, das instituições públicas ou particulares, dos quadros e corpos docentes oficiais, os quais, por sua vez, estavam submetidos a padrões tradicionais de cultura, de referências e de formação. Depois, porque estes modelos começaram a revelar uma evidente insuficiência de respostas para servir os interesses e características dos adultos, procurou construir a sua identidade numa distância assumida e progressiva das modalidades tradicionais de educação (LENGRAND, 1970). Foi, então, numa progressiva oposição a estruturas mentais, ideológicas, culturais e metodológicas conservadoras, que privilegiavam a herança cultural, o conformismo, a ordem e a infantilização do ato educativo, que veio, progressivamente, a constituir-se um novo tipo de Educação de Adultos. Teve origem e desenvolveu-se “fora dos caminhos tradicionais da escola e da universidade, nos colégios populares da Dinamarca, nas organizações de ensino mútuo, nas instituições de educação operária ou cooperativas, nos movimentos e associações de educação popular, etc… “ (LENGRAND, 1970, p. 49). Desta forma, a pessoa adulta foi deixando de ser entendida


como objeto de formação para ser considerada como sujeito e agente da sua própria mudança e da transformação dos seus contextos de vida. Não significava isto que a Educação de Adultos sempre fosse identificada como um conjunto de finalidades, metodologias e características universalmente fixadas. De Natale (2003) regista, pelo menos, dois grandes modelos, que, surgidos ambos até ao final do século XIX, cada um à sua maneira, marcaram duas diferentes formas de entender as atividades educativas para adultos. No primeiro, era “entendida como intervenção extraordinária, de carácter técnico e profissional e como instrumento de promoção social e de formação periódica” (DE NATALE, 2003, p. 48), enquanto no segundo modelo, que teve origem no pensamento e ação do bispo dinamarquês N. F. S. Grundtvig, se assumia que era indispensável construir uma Educação de Adultos essencialmente dirigida, “tanto para a consolidação da personalidade e para a elevação pessoal, como para o contínuo progresso e fortalecimento de uma organização social e democrática, inspirada no mais absoluto respeito das liberdades subjetivas” (DE NATALE, 2003, p. 48). Para este último campo de práticas era fundamental valorizar uma educação para a vida, reforçando, particularmente, a importância da família e das comunidades como espaços educativos. Ainda assim, mesmo com o aparecimento de muitas respostas educativamente inovadoras, principalmente até à segunda metade do século XX, a Educação de Adultos foi-se constituindo, sobretudo, como uma resposta para debelar os défices de conheci-

mentos de que as pessoas adultas eram portadoras, no âmbito dos contextos sociais que integravam, quer essas diferenças fossem de natureza cultural, religiosa, técnica, profissional, política, ou de exercício de cidadania. De Natale (2003, p. 54) cita Simpson, para concluir que a Educação de Adultos, quer quando promovida por iniciativas públicas ou por associações privadas, foi sempre o lugar de encontro de três movimentos: o idealismo humanitário e cultural de pessoas de formação superior, que consideravam um dever comunicar os privilégios da educação aos menos afortunados; a propaganda nacionalista, ideológica ou religiosa; a vontade de indivíduos ou grupos que queriam beneficiar outros com as vantagens da educação. Qualquer que fosse, no entanto, o sentido e força desses diferentes movimentos, cada vez se foi tornando mais visível que a Educação de Adultos, mesmo quando tinha como principal finalidade a superação dos eventuais défices de que as pessoas adultas eram portadoras, transportava consigo, desde sempre, uma assumida componente ideológica de mudança, indispensável para o cumprimento dos seus objetivos e finalidades, enquanto movimento social.

Assim, falar de Educação de Adultos passou a significar, também, falar de um movimento, que se foi afastando dos modelos tradicionais da escola de massas, que ousou percorrer outros caminhos, para além da instrumentalidade dos saberes escolares, vocacionais e profissionais, e que, progressivamente, se constituiu, desde os círculos de estudos da Dinamarca e Suécia, como projeto emancipatório e de Educação Popular, para poste

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riormente se alargar, com essa matriz identitária, a outras latitudes, como, por exemplo, à renovação de muitas das outras práticas europeias, às experiências de Highlander, nos Estados Unidos, criadas e dinamizadas por Miles Horton e, já na segunda metade do século XX, como veremos mais à frente, sair completamente renovada e revitalizada pelos incontornáveis contributos do pensamento e da praxis de Paulo Freire. Na verdade, a partir do segundo grande conflito mundial do século XX podemos identificar um decisivo impulso para a Educação de Adultos, que lhe permitiu assumir-se como domínio científico e como campo de práticas de identidade própria, com progressivo reforço de uma especificidade em permanente construção. Surgiram as primeiras investigações sistemáticas, apareceram os primeiros contributos teóricos de fôlego, realizaram-se os primeiros fóruns internacionais de reflexão e sistematização de atividades e apareceram os grandes programas de ação, que a procuraram enquadrar num desenvolvimento, tanto quanto possível, harmonioso e integrado. Todo este esforço foi ampliado pela UNESCO e pelas sucessivas Conferências Internacionais que este organismo organizou, procurando aglomerar os seus países membros num compromisso político com uma resposta educativa de especificidade própria, construída com base em novos referenciais ideológicos (fins) e tecnológicos (meios). Para que estes objetivos fossem prosseguidos, tornava-se inadiável a participação das Universidades, desafiadas a contribuir para criar uma identidade epistemológica para este domínio e estimuladas a formar os

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profissionais/docentes capazes de construir e desenvolver um campo de práticas, concordante com essa especificidade teórica. As Universidades foram respondendo a este veemente apelo, preocupando-se com uma real abertura a novos públicos, inclusivamente através de programas de extensão, passando a incluir nos seus programas, conteúdos relacionados com o domínio científico da Educação de Adultos e, posteriormente, criando programas de pósgraduação, pensados especificamente, para a formação de especialistas capazes de atuar numa área já com identidade reconhecida. A generalidade das Universidades portuguesas e a Universidade de Coimbra, em particular, responderam também a este desafio (ALCOFORADO, SOUSA, MOIO, SIMÕES, RITA e CARVALHO, 2007; ALCOFORADO e FERREIRA, 2011). No caso específico da Universidade de Coimbra, desde os anos setenta, do século XX, que se verifica uma produção científica regular acompanhada pela inclusão desta área nos programas de formação graduada e pós-graduada em Ciências da Educação. Posteriormente, no início deste século, foi criado o Mestrado em Educação de Adultos (atualmente com a designação de Educação e Formação de Adultos e Intervenção Comunitária) que, para além do objetivo de incrementar os trabalhos de pesquisa neste domínio, assumiu a responsabilidade de contribuir para reforçar a especificidade das práticas, preparando especialistas em planejamento, desenvolvimento e avaliação de atividades educativas com pessoas adultas. Desde o primeiro ano de existência deste Mestrado que o pensamento e praxis de


Paulo Freire foram incluídos nos programas de diferentes Unidades Curriculares, integrando, atualmente, os conteúdos de “Perspetivas Teóricas em Educação e Formação de Adultos” (contributos para as bases e princípios teóricos de construção desta problemática) e “Conceção, Desenvolvimento e Avaliação de Programas Educativos para Adultos” (através do planejamento e animação de Círculos de Cultura), devendo todos/as os/as Mestrandos/ as, em pequenos grupos, escolher um tema e preparar um Círculo de Cultura que é, depois, desenvolvido na aula, com a participação de todos/as os/as colegas. É esta experiência que vamos relatar neste texto. Começaremos por identificar as ideias-chave do pensamento de Paulo Freire que norteiam os nossos trabalhos, explicaremos como utilizamos a proposta dos Círculos de Cultura, indicaremos os temas que mais têm sido escolhidos pelos/as alunos/as, nas últimas edições e deixaremos exemplos de desenvolvimento, que foram propostos no último ano letivo.

TRABALHAR COM PAULO FREIRE NO MESTRADO DE EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO DE ADULTOS E INTERVENÇÃO COMUNITÁRIA Comecemos por identificar os princípios teóricos (históricos, conceituais…) que procuramos explorar no nosso trabalho de aprendizagem conjunta Professor/Alunos/as, no âmbito da Unidade Curricular do Mestrado que procura fazer emergir um dos contributos mais originais e desafiadores deste campo de práticas. Ainda na década de cinquenta do sé-

culo vinte, quando um pouco por toda a parte, se pensava e se desenvolvia uma Educação de Adultos muito calcada na educação escolar, baseada em conteúdos e modelos tradicionais de transmissão e avaliação, Paulo Freire empenhou-se em construir uma proposta específica para pessoas adultas, consubstanciada numa prática educativa e social, conhecida e difundida, alguns anos mais tarde, através da obra Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 1972), ainda hoje um dos livros mais lidos e debatidos em todo o mundo. Nesse trabalho, são enunciados os aspetos essenciais das novas propostas de trabalho pedagógico, integradas no todo coerente do que designa pedagogia do oprimido, entendida como “aquela que tem de ser forjada com ele (oprimido) e não para ele, enquanto homens e povos, na luta incessante de recuperação da sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento na luta pela sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará” (FREIRE, 1972, p. 43). No entanto, a experiência da sua própria prática, o levara a constatar que nem sempre os oprimidos conseguem identificar a sua situação de opressão, normalmente construída e codificada na cultura dominante do opressor, sendo, por isso mesmo, na grande maioria das situações, impossível envolverem-se volitivamente na partilha e construção da sua pedagogia libertadora. Então, a pedagogia do oprimido, que não pode ser elaborada pelos opressores, é um dos instrumentos para esta descoberta crítica – a dos oprimidos por si mesmos e a dos opressores pelos oprimidos, como manifestações da sua

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desumanização. (FREIRE, 1972, p. 44).

Partindo destes princípios fundadores e entendendo os homens e as mulheres como agentes do processo histórico, Paulo Freire foi construindo a sua praxis educativa, na convicção militante de que, quando estão em causa atividades de educação/formação que envolvam pessoas discriminadas, em função de diferenças ideológicas, construídas em resultado de estereótipos desenvolvidos e mantidos por culturas hegemônicas, o ato educativo terá que ser, simultaneamente, político e dialógico (FREIRE, 1972). Político, porque não há educação neutra (a ação cultural, ou está ao serviço da dominação, ou ao serviço da libertação de homens e mulheres!), devendo, por isso mesmo, qualquer ato educativo, traduzir-se numa construção e reconstrução contínua de significados da realidade, implicando ação sobre essa realidade; político, também, porque a sua finalidade deverá incluir a transformação de uma visão ingênua, responsável por situações de opressão, por uma visão crítica, que una os oprimidos numa ação promotora de mudança social.

Ao mesmo tempo e por outro lado, o ato educativo é transformado numa relação dialógica (porque ninguém educa ninguém, nem ninguém se educa sozinho), baseada numa convivência de igualdade entre o educador, os educandos e o objeto de conhecimento, devendo o primeiro assumir uma permanente atitude de humildade, amor e fé nos homens e nas mulheres, enquanto agentes do processo histórico e produtores de cultura e, por isso mesmo, capazes de problematizar a sua situação existencial e de se envolverem, de forma autônoma e responsável, na construção de uma nova realidade. 90

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Para isto, os espaços e tempos formativos/educativos transformam-se em Círculos de Cultura (BRANDÃO, 1981; FEITOSA, 1999; ROMÃO, 2001), pois, num verdadeiro retorno aos princípios da Paidéia, a pedagogia deverá constituir-se como um processo de humanização da cultura, devendo a primeira tarefa do educador ser a da criação de condições para que ele e os educandos descubram, no contexto gerador, os temas geradores para a compreensão crítica da realidade. Estes são conceitos absolutamente centrais nas propostas freireanas e, naturalmente, incontornáveis na organização e desenvolvimento de um Círculo de Cultura, pelo que é, sempre, nossa intenção, ainda que sumariamente, envolvermo-nos numa breve descoberta do seu significado. Procurando entender as propostas de Paulo Freire, também através de Romão (2001, p. 137), “os temas geradores são elementos constitutivos de uma unidade epocal”, entendida como o conjunto de ideias, conceções, valores, etc. que dominam uma determinada época. Assim, por exemplo, a globalização econômica e as fatalidades engendradas pelas ideologias, que a suportam, podem ser temas geradores e, por isso mesmo, desdobrarem-se em muitos outros temas de debate e em situações passíveis de análise coletiva. Só que estas situações apresentam-se, muitas vezes, para os excluídos, como codificadas na lógica de quem dispõe de condições de privilégio e poder, sendo que a primeira grande finalidade do processo educativo deverá consistir, por isso mesmo, em descodificar essas vivências, induzidas por uma consciência ingénua da realidade, rumo a novas atitudes e ações que elevem os participantes a agentes de mudança, incluídos num


projeto político de sociedade que busque, continuamente, o máximo de igualdade de direitos, deveres e oportunidades e que conviva, de forma harmoniosa, com o mínimo de restrições de liberdades individuais. Teremos, assim, uma aposta, militante e intransigente, numa educação problematizadora, que procurará, permanentemente, a superação da realidade de partida, através de uma praxis transformadora2. Nos seus últimos textos, Freire (1992; 1995; 1997) reatualiza um pouco a ideia e identificação dos oprimidos. Fala, com particular insistência, na necessidade de educar para a multiculturalidade e a diversidade, assumindo a importância das diferenças, sempre que sejam aditivas na construção de formas de vida baseadas na cooperação e na solidariedade, possibilitando a criação de uma cidadania planetária, suportada numa ética integral de respeito por todos os seres vivos que partilham o planeta (FREIRE, 1995). Por outro lado, continua a militância intransigente contra a constatação recorrente de diferenças que criam, muitas vezes, ideologias discriminatórias (económicas, de cultura, de raça, de género…), acreditando que elas são geradas, naturalmente, pelas culturas hegemónicas, interessadas em perpetuar a sua situação de favor. Quando tal acontece, repete, convictamente, que “é impossível pensar na superação da opressão, da discriminação, da passividade, ou da pura rebelião que elas engendram, primeiro, sem uma compreensão crítica da História e, segundo, sem projetos de natureza políticoideológica no sentido da transformação ou da reinvenção do mundo” (FREIRE, 1995, p. 32). Logo, é necessário man-

ter e atualizar o princípio de que, em qualquer atividade educativa ou formativa, mormente daquelas destinadas a pessoas adultas, qualquer aprendizagem tem sempre que ser acompanhada de uma leitura do mundo (FREIRE & MACEDO, 1994), traduzida em atitudes problematizadoras, na interpretação crítica da realidade e na sua superação. No seu livro autobiográfico Cartas a Cristina, Freire (2002) estabiliza a dimensão axiológica que deve orientar qualquer processo educativo, reafirmando a centralidade atribuída à Liberdade, à Democracia, à Justiça e à Vocação para Ser Mais. Entende liberdade não como um presente que alguém nos oferece, mas como um direito que ora conquistamos, ora preservamos, ora aprimoramos, ora perdemos, dependendo do que fizermos com os momentos atuais. Assim, a contínua humanização, das pessoas e das comunidades obriga a uma luta permanente pela superação dos obstáculos ao controlo racional da nossa vida, criando condições estruturais que tornem possível a permanente construção de uma sociedade mais democrática, capaz de se defender, punindo os infratores com justiça e rigor, capaz de falar, de protestar e permanentemente disposta a lutar pela realização da justiça (FREIRE, 2002). Em síntese, uma sociedade progressivamente mais democrática, onde todos os problemas se resolvam sempre com um aprofundamento dos processos democráticos, jamais substituídos por situações de exceção. Mais que um método, o que Paulo Freire procura deixar-nos é uma agenda educativa de compromisso para a construção de uma

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Educação Popular, ao serviço de um desenvolvimento integrado e sustentável e da humanização das pessoas, das comunidades e da sociedade. Uma agenda, um corpus teórico e uma praxis que dialogam com outras ideias e que nas nossas experiências de ensino aprendizagem, no Mestrado, fazemos dialogar com outros contributos teóricos e propostas de intervenção educativa que, cada uma à sua maneira, têm vindo a influenciar a construção da especificidade da área da Educação de Adultos. Um primeiro exercício de diálogo leva-nos a uma reflexão conjugada sobre as ideias de Paulo Freire, John Dewey e Jürgen Habermas. Na verdade, ainda que não tenham sofrido influências mútuas diretas, estes três autores revelam várias semelhanças e complementaridades, pelo que constitui um desafio heurístico de elevado interesse fazer a leitura comparada dos respetivos contributos. É exatamente este exercício que se propuseram fazer Morrow; Torres (1998, p. 127), argumentando que, para Dewey, Freire e Habermas, a educação não diz respeito apenas à educação, mas também à formação e à expansão da democracia e da cidadania democrática. Mais claramente ainda que a filosofia política de Dewey, as filosofias políticas de Freire e Habermas não temem o reconhecimento de que a democracia tem lugar no contexto do capitalismo, criticando ambos as relações sociais capitalistas, muito embora rejeitem noções simplistas sobre a revolução da classe trabalhadora ou alternativas socialistas. Tanto Freire como Habermas se

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centram na dominação e na exploração, enquanto conceitos (capitalismo tardio, capitalismo dependente), mas estão essencialmente preocupados em apreender os elementos subjetivos e comunicacionais das relações de poder interpessoais, bem como as possibilidades da sua transformação.

Entendendo a pedagogia crítica, através da confluência dos contributos de Freire e Habermas, Morrow & Torres (1998) afirmam que a sua premissa fundamental é a de que, da história das relações sociais presentes na formação tanto do educador como do estudante, emergem obstáculos cruciais à aprendizagem e esses obstáculos são, na sua maioria, invisíveis, pois encontram-se interiorizados no self dos participantes e reproduzem-se nas relações que definem a educação como atividade social. Então, tanto para Freire como para Habermas, qualquer proposta educativa crítica tem que ser orientada para a remoção desses obstáculos e a transformação das relações sociais existentes. Por outro lado, ainda que reforçando a ideia da influência de Dewey em Paulo Freire e a identidade de princípios com a escola russa de psicologia, iniciada por Vigotsky, Gadotti (s/d, p. 18) encontra, igualmente, muitos pontos em comum com o pensamento de Carl Rogers, pois, mesmo não defendendo a não diretividade na educação, existe em Freire uma clara opção por princípios rogerianos, desde a “liberdade de expressão individual, à crença na possibilidade de os homens resolverem, eles próprios, os seus problemas, desde que motivados interiormente para isso”. Assim, pelo que fica dito, apesar das óbvias diferenças entre estas propostas teóricas, com influência decisiva na construção de uma especificidade


para a Educação de Adultos, será pacífico aceitar a existência de pontes e denominadores comuns, que nos desafiam a uma leitura mais sustentada do domínio, na atualidade, e a um envolvimento numa (re)construção permanente das práticas e dos respetivos modelos de suporte. É tudo isto que procuramos explorar no segundo semestre, na Unidade Curricular de Conceção, Desenvolvimento e Avaliação de Programas Educativos para Adultos, desafiando os nossos alunos, após identificação com todos estes contributos teóricos, a planejarem e desenvolverem Círculos de Cultura.

PAULO FREIRE NOS PROGRAMAS DO MESTRADO EM EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO DE ADULTOS E INTERVENÇÃO COMUNITÁRIA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA: UM DESAFIO PARA REPENSAR OS TEMAS E AS PRÁTICAS EDUCATIVAS Logo na primeira aula do novo semestre letivo, impomos a nós próprios o desafio e animar um Círculo de Cultura sobre o Tema Gerador “Liberdade”. Começamos por pedir aos alunos que reflitam individualmente sobre o que significa, para eles, liberdade3. De seguida pedimos que formem pequenos grupos e procurem consensos, até chegarmos a um acordo generalizado do grupo (normalmente

entre doze e quinze alunos/as) sobre o que significa liberdade. Escrevemos e projetamos (ou fazemos um poster) com este entendimento coletivo de liberdade. Num novo momento, procurando problematizar este entendimento inicial, através de um confronto com codificações reconhecidas da liberdade, iniciamos a projeção de imagens famosas identificadas com o tema (estátua da liberdade, em Nova Iorque; pintura “a liberdade guiando o povo” de Lacroix; fotografias de momentos célebres de repressão, ou libertação, individual e coletiva), pedindo ao grupo e a cada um/a dos/as presentes que expresse a sua leitura das imagens e o que encontra nelas que se relacione com o seu (e do grupo) entendimento de liberdade. Numa outra fase, selecionamos um conjunto de poemas que os/as alunos/as declamam (exemplos: “Liberdade” de Fernando Pessoa; “Operário em Construção”, de Vinícius de Morais) e canções (exemplo: “Ma Liberté”, de Georges Moustaki), pedindo comentários e incentivando debates sobre o entendimento de liberdade presente nestes textos, encontrando semelhanças e diferenças com a definição do grupo. Por fim, pedimos que reflitam demoradamente sobre a sua definição inicial, que a alterem, se assim entenderem, estabilizem um compreensão final e elaborem projetos pessoais e grupal de ação, que lhes permita incrementar continuamente a sua liberdade individual, de grupo e da comunidade que integram. Numa das últimas edições desta Unidade Curricular, os/as alunos/as fixaram-se

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num sentido que identifica liberdade como algo que está em contínua construção, retirando da nossa ação diária obstáculos de natureza externa, tais como influências/dependências, diferenças culturais e linguísticas e limitações económicas, mas também obstáculos de natureza interna, como impulsos, hábitos, ignorâncias e preconceitos. Elaboraram e sequenciaram um programa de remoção progressiva de alguns destes obstáculos. Para as aulas seguintes propomos que sejam eles/as próprios/as, após várias conversas na aula e nos intervalos, a identificar temas geradores e a planejarem e desenvolverem Círculos de Cultura, ou seguindo os princípios orientadores da experiência que acabaram de viver, ou enriquecendo as atividades com princípios teóricos oriundos dos contributos estudados. Organizando-se em pequenos grupos de três, ou quatro elementos, assumem a responsabilidade de todas as propostas de atividades. Mesmo que haja, de forma predominante, uma aproximação à experiência anteriormente vivenciada, esta opção metodológica tem-se revelado uma surpresa muito significativa. Em primeiro lugar, porque é percebida pelos alunos como verdadeiramente diferente das suas referências anteriores. Depois porque lhe reconhecem uma inegável adequação às caraterísticas e necessidades das pessoas adultas. Por fim, porque se dedicam, normalmente, de forma muito envolvente, à sua preparação e animação. Por tudo isto, parece-nos importante recensear aqui, os temas geradores escolhidos nos últimos anos e dar exem

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plos concretos do seu desenvolvimento.


Tabela 1: Temas geradores, justificações e ideias orientadoras dos Círculos de Cultura TEMA GERADOR

JUSTIFICAÇÃO

IDEIA ORIENTADORA

Amor

À mulher é ainda, muitas vezes, destinado um papel secundário e de menor poder, nas relações amorosas

Debater criticamente os estereótipos relacionados com a mulher e o amor

Direitos humanos

Ainda existem muitos lugares onde os direitos humanos não são respeitados, muitas vezes em situações concretas, bem próximas de nós.

Encontrar formas de refletir sobre a importância dos Direitos Humanos, a sua atualidade e maneiras de incrementar a sua presença nos nossos espaços de vida e no mundo

Gentileza

“Gentileza é um gesto de cuidado com o outro e com a vida”, ajudando a resolver muitos conflitos.

É necessário praticar a gentileza com todos e em todas as situações, esperando que a pratiquem conosco, tornando todas as situações de vida um pouco mais humanizadas.

(Des)Igualdade de Oportunidades entre Homens e Mulheres

A desigualdade entre homens e mulheres atravessa todas as áreas da sociedade.

Refletir sobre situações concretas de desigualdade no trabalho, na política, na economia e na família, sugerindo formas de minorar progressivamente as situações de desigualdade.

Violência Doméstica

A realidade mostra-nos que este tema é uma realidade muito presente, em Portugal, na atualidade.

Tomar consciência dos tipos de violência doméstica, das formas como é silenciada e denunciada e identificar algumas estratégias para a ultrapassar.

Extinção de Profissões no mundo rural

O interior do país, principalmente as áreas mais rurais estão a envelhecer e a ficar desertificadas, levando à extinção de várias profissões tradicionais

Refletir sobre a possibilidade de manter e recuperar algumas profissões, através de projetos integrados de Desenvolvimento Local

Fonte: Mestrandos/as em educação PAULO FREIRE NA FORMAÇÃO DE ESPECIALISTAS EM EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO DE ADULTOS E INTERVENÇÃO COMUNITÁRIA

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Juntamos na tabela 1 os temas geradores, as justificações para a sua escolha e as ideias principais que orientaram o planejamento dos círculos de cultura organizados pelos/as alunos/as nos dois últimos anos letivos. Reafirmamos que após o enquadramento teórico anteriormente descrito, deixamos a escolha dos temas geradores e a organização e desenvolvimento das atividades, completamente à iniciativa dos/as alunos/as. A função de Professor da disciplina, durante estas atividades, vai variando, conforme as situações, de mais um membro do grupo e, por isso mesmo, elemento ativo dos círculos de cultura, a uma posição de observador não participante. Procuremos agora, com recurso ao exemplo de um Círculo de Cultura, em concreto, ilustrar as propostas educativas dos/as mestrandos/as. Recorremos, para isso, ao Círculo com o tema gerador “Direitos Humanos”, até por ter sido, da sequência apresentada na tabela, o último a ser desenvolvido. Uma primeira ideia que os/as aluno/as pretenderam trazer para debate foi o conceito de paz. A partir de um poema de uma criança sobre a paz, iniciaram a uma análise crítica da relação entre a ausência da violência e da guerra como condição para que os seres humanos possam experienciar sentimentos de segurança, de liberdade e de incentivo à participação para a construção do bem comum. Relembrou-se o momento histórico de aparecimento do documento da Declaração Universal, recordando a sua relação com o final da barbárie e a esperança de construção de um mundo de concórdia à escala planetária. No decorrer subsequente das atividades, foram sendo estabelecidas ligações dire-

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tas entre uma seleção de alguns artigos da Declaração com imagens e informação relativas à sua (não) observação em diversos locais do mundo, para terminar com a famosa frase de José Saramago “toda a gente fala de direitos humanos e ninguém de deveres, talvez fosse importante inventar um Dia dos Deveres Humanos”. Todos foram desafiados, então, a encontrar uma possível proposta de deveres que podiam ser incluídos numa agenda para a implementação de uma efeméride com estas caraterísticas. Sem pretendermos ser exaustivos, parece-nos interessante referir o aproveitamento posterior do Círculo com o tema “Violência Doméstica”. Como uma das mestrandas era formadora da área de Cidadania e Profissionalidade, de um grupo de mulheres adultas envolvidas num curso de Educação e Formação de Adultos de nível Secundário, decidiu explicar ao grupo a experiência que tinha desenvolvido no âmbito do Mestrado. Perante o grande interesse demonstrado pelas pessoas envolvidas no curso, animou um Círculo com o mesmo tema gerador, com aquele grupo e, perante os resultados conseguidos, os Círculos de Cultura passaram a ser a forma de trabalho predominante, naquela área curricular, ao longo do que restava do curso. Esta situação, em particular, apenas corrobora o sentimento muito positivo que os/as alunos/as do Mestrado e atuais/futuros especialistas de Educação de Adultos e Intervenção Comunitária experienciam com as propostas educativas de Paulo Freire e a pertinência da sua aplicabilidade na realidade portuguesa da atualidade. Nas palavras de um dos grupos, “os Círculos de Cultura assumem-se como uma metodologia capaz de colocar em reflexão crítica assuntos e temas do quotidiano dos educandos, auxi-


liando-os a compreenderem melhor a sua realidade, a sua intervenção e a sua participação nessa realidade”.

Notas Conclusivas A afirmação da Educação de Adultos como domínio científico e campo de práticas, com especificidade própria, apela a um envolvimento das Universidades, numa assunção plena de quatro responsabilidades principais: promover a constituição de equipas de pesquisa capazes de contribuir para a (re)conceptualização teórica contínua da Educação de Adultos, enquanto problemática; favorecer a produção e comunicação especializada de conhecimento; incluir a Educação de Adultos em todos os programas de Ciências da Educação e de Formação de Docentes, de graduação e pósgraduação, ajudando a formar os especialistas necessários a práticas que, desde há muito tempo, estão identificadas como possuindo uma identidade em permanente construção; usar todas estas atividades para contribuir na construção de comunidades ecoeducativas, capazes de induzir uma progressiva humanização de todos os seus membros. Dada a importância que o pensamento e a obra de Paulo Freire assumiram para este domínio, é cada vez mais comum encontrarmos a sua presença nas atividades de pesquisa e ensino/aprendizagem, particularmente nos programas de pós-graduação de inúmeras Universidades, um pouco por todo o mundo. O nosso caso é apenas mais um programa de formação, ao nível de Mestrado, que inclui as propostas do grande pensador e pedagogo, em diálogo com outros contributos, como mais um desafio aos/às alunos/as e futuros/as

especialistas para se tornarem profissionais capazes de melhor responder aos três grandes desafios que a Educação de Adultos deve enfrentar, nos dias de hoje: envolver quem mais precisa; encontrar respostas que melhor se adequem às necessidades de mudança das pessoas e das comunidades; desencadear os impulsos emancipatórios necessários para garantir o ser mais de homens e mulheres envolvidos no seu processo de humanização contínua. Aceitando o desafio que o próprio Paulo Freire nos lançou, é fundamental que partilhemos a leitura e reinvenção que vamos fazendo da sua obra nas nossas práticas de pesquisa e de ensino aprendizagem. Por um lado será a melhor forma de mantermos viva a sua herança e, por outro lado, conhecer, refletir e dialogar sobre diferentes abordagens, será a única maneira de o convocar para o empreendimento inadiável de trazer dignidade e credibilidade para a Educação de Adultos.

ALCOFORADO, Luís1 Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Coimbra. É Professor na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra e Investigador do Grupo de Políticas Educativas e Dinâmicas Educacionais (GRUPOEDE) do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEISXX), uma Unidade de Investigação da Universidade de Coimbra e da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT).

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REFERÊNCIAS ALCOFORADO, L.; FERREIRA, S. M.. Educação e Formação de Adultos. Nótulas sobre a necessidade de descomprometer a Cinderela, depois do beijo do Príncipe Encantado. In Alcoforado, L. e outros. Educação e Formação de Adultos: políticas, práticas e investigação. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, p. 7-20, 2011. ALCOFORADO, L.; SOUSA, C.; MOIO, I.; SIMÕES, J.; RITA, R.; CARVALHO, V.. Transição para o trabalho de licenciados em Ciências da Educação pela FPCEUC, com estágio curricular na área de Educação de Adultos. Revista Portuguesa de Pedagogia, 41(3), p. 375-388, set./dez. 2007. BRANDÃO, C. R.. (1981). O que é Método Paulo Freire? São Paulo: Brasiliense, 1981. DE NATALE, M. L.. (2003). La edad adulta, una nueva etapa para educarse. Madrid: Narcea, 2003. FEITOSA, S.. (1999). Método Paulo Freire – Princípios e práticas de uma concepção popular de educação. Disponível em www.paulofreire.org. FREIRE, P.. Pedagogia do Oprimido. Porto: Afrontamento, 1972. ____________ Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1992 ____________ Política e Educação. São Paulo: Cortez, 1995 ____________ Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997. ____________ Cartas a Cristina. Reflexões sobre a minha vida e a minha praxis. São Paulo: UNESP, 2002. FREIRE, P.; MACEDO, D.. Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra. São Paulo: Paz e Terra, 1994. GADOTTI, M.. A voz do biógrafo brasileiro. A prática à altura do sonho. Disponível em www.paulofreire.org s/d. GRAFF, H.. Os Labirintos da Alfabetização. Reflexões sobre o passado e o presente da alfabetização. Porto Alegre: Artmed, 1994.

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JARVIS, P.. Introduction: Adult Education – an ideal for modernity? In Jarvis, P. Twentieth Century Thinkers in Adult & Continuing Education. Londres: Kogan Page, p. 1-11, 2001. LENGRAND, P.. Introdução à Educação Permanente. Lisboa: Livros Horizonte, 1970. MORROW, R. A.; TORRES, C. A.. Jürgen Habermas, Paulo Freire e a Pedagogia Crítica: Novas orientações para a Educação Comparada. Educação, Sociedade & Culturas, nº 10, p. 155-174, 1998.

Na linha do que sugere Paulo Freire e, entre outros autores, José Eustáquio Romão, se aspalavras geradoras são a metodologia de trabalho mais adequada para a Alfabetização de Adultos, os Temas geradores são muito mais indicados para situações de Pós-alfabetização, Animação Social e Educação Continuada e Intervenção Comunitária. Procurando criar situações educativas próximas da realidade dos/as nossos/as Mestrandos/as, optamos por basear os “nossos” Círculos de Cultura em temas geradores, eles próprios destinados a criar experiências problematizadoras e, desejavelmente, criadoras de condições de mudança. 2

Normalmente, para iniciar esta reflexão individual, usamos uma das histórias da Mafalda, da autoria de Quino. Nessa pequena tira, Mafalda encontra uma Menina, na praia e pergunta-lhe como se chama. Quando a Menina lhe diz que se chama Liberdade, Mafalda fica em silêncio, sem saber muito bem o que dizer. Então a Liberdade diz-lhe: pronto! Já tiraste as tuas conclusões estúpidas? É que toda a gente tira conclusões estúpidas quando me conhece! 3

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RELATO DE EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL

TRAÇOS DA PEDAGOGIA DE PAULO FREIRE NA SALA DE AULA DA GRADUAÇÃO BRAGA, Maria Margarete Sampaio de Carvalho1

Resumo O texto se constitui no relato de uma experiência profissional desenvolvida no contexto da disciplina A Pedagogia de Paulo Freire, do Curso de Pedagogia do Centro de Educação da Universidade Estadual do Ceará. Objetiva analisar de que modo o pensamento pedagógico de Paulo Freire pode se constituir como aporte teórico da prática pedagógica docente-discente na sala de aula da graduação. Os/as estudantes que cursaram a disciplina e mestrandos/as que dela participaram na condição de estagiários de docência foram tomados/as como sujeitos da história e do conhecimento. A análise de ações e relações empreendidas entre a educadora e os estudantes anuncia traços do pensamento de Paulo Freire. Pedagogia de Paulo Freire. Prática Pedagógica Docente-discente. Inquietação Indagadora. Abstracto El texto se constituye del relato de una experiencia profesional desarrollada en el contexto de la asignatura A Pedagogia de Paulo Freire, del Curso de Pedagogia/Centro de Educação de la Universidade Estadual do Ceará. Tiene como objetivo analizar como el pensamiento pedagógico de Paulo Freire puede constituirse como aporte teórico de la practica pedagógica docente-discente en aulas de cursos de graduación. Los/las estudiantes que cursaron la asignatura y los masters que de ella participaron en las condiciones de pasantes de enseñanza fueron convertidos(as) como sujetos de la historia y del conocimiento. El análisis de acciones y relaciones emprendidas por la maestra y por los estudiantes anuncia rastros del pensamiento de Paulo Freire. Pedagogía de Paulo Freire. Practica Pedagógica Docente-Discente. Inquietud Indagadora.

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INÍCIO DO DIÁLOGO No intuito de analisar de que maneira o pensamento pedagógico de Paulo Freire pode constituir aporte teórico da prática pedagógica docente-discente na sala de aula da graduação, procedermos com o relato de uma experiência profissional desenvolvida no contexto da disciplina A Pedagogia de Paulo Freire, do Curso de Pedagogia do Centro de Educação da Universidade Estadual do Ceará (CED/UECE). Para adensar as análises, realizamos uma entrevista com dois mestrandos que participaram da disciplina nos semestres 2015.1 e 2015.2, na condição de estagiários de docência, pessoas que, assim como os graduandos/as, foram tomadas como sujeitos da história e do conhecimento. O corpo deste trabalho constitui-se, no primeiro momento, da explicitação dos conhecimentos prévios dos/as estudantes acerca de Paulo Freire e sua Pedagogia e, na sequência, das suas inquietações, dúvidas e curiosidades mobilizadoras da busca pelo conhecimento, permeadas pelas concepções de educação freireana acerca da prática pedagógica docente-discente. Consta, em seguida, de análise de ações e relações construídas por nós e os/ as estudantes, desde a sistematização até a implementação do Programa da Disciplina - objetivos, conteúdo, metodologia, avaliação e bibliografia - para anunciar, no quarto momento, as aprendizagens decorrentes dos estudos realizados no desenvolvimento da disciplina.

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Nas considerações provisórias, reconhecemos que há traços do pensamento de Paulo Freire na prática pedagógica vivenciada, uma vez que buscamos reconhecer e lapidar os conhecimentos dos/as educandos/ as e com eles/as recriar as contribuições do Autor, instigados/as pelas inquietações indagadoras do grupo.

O QUE OS/AS ESTUDANTES SABEM SOBRE PAULO FREIRE E SUA PEDAGOGIA Para Freire (1996), o trabalho educacional precisa partir da prática social, no intuito de possibilitar o diálogo permanente com a reflexão, na elaboração do conhecimento, via norteadora da intervenção na realidade. Traços da Pedagogia freireana foram perseguidos na gestão da disciplina A Pedagogia de Paulo Freire, do Curso de Pedagogia do CED/UECE, no decorrer de dois semestres letivos, ocasiões em que dois mestrandos realizavam o Estágio de Docência2, participando ativamente da prática pedagógica docente-discente. Na concepção de Souza (2009), a prática pedagógica é uma prática social intencional, institucional, coletiva e organizada que se constitui de diversas dimensões, dentre elas a prática docente e a prática discente. Nosso olhar se debruça sobre essas práticas, usando como lente de leitura a compreensão freireana de que não há docência sem discência, justificando o uso da denominação prática pedagógica docente-discente.


Com apoio em referenciais freireanos, compreendemos que a prática pedagógica docente-discente que se pauta pela ação-reflexão-ação tende a considerar a aprendizagem como elemento central do ensino. Sustenta-se na participação dos sujeitos envolvidos no ato de conhecer e reconhece as diferenças culturais, sociais, étnicas, de gênero e de pessoa, sem reafirmá-las como causa de desigualdade ou exclusão.

Vida e obra de Paulo Freire. A construção histórica do pensamento de Paulo Freire. Concepções de homem, de conhecimento, de sociedade e de educação, em Freire. A educação bancária e o anúncio da pedagogia do oprimido. A politicidade do ato educativo. Cultura e saber popular. Principais categorias freireanas: diálogo, círculo de cultura, leitura de mundo, práxis, formação e resgate da humanidade.

Nas duas edições da disciplina, acolhemos os/as estudantes e, com suporte em uma frase de George Snyders (1988), que indica como igualmente importantes a necessidade de o/a professor/a saber o conteúdo com que trabalha e conhecer o/a educando, demos início à aula, solicitando que os/as estudantes dissessem quais os seus nomes e as razões que os/as levaram a escolher a disciplina, dentre tantas outras optativas.

Com apoio na Ementa, os/as educandos/as e o/a estágiário/a revelaram que já sabiam, mesmo que difusamente, muitas coisas sobre Paulo Freire e a Pedagogia Libertadora. O conjunto de comentários dos dois grupos evidenciou que Paulo Freire, o Patrono da Educação Brasileira, é trabalhado em algumas disciplinas do Curso de Pedagogia, entretanto, pouco se aprofunda sobre sua obra. Inquietava alguns/mas estudantes o fato de saberem que Paulo Freire é mais conhecido fora do Brasil do que aqui, pairando a incompreensão de tantas críticas feitas a ele, dada a sua contribuição incontestável para a Educação. Asseguramos, na ocasião, que há muitas críticas e incompreensões a respeito de Freire, que merecem ser discutidas e esclarecidas.

No geral, a expectativa em relação à disciplina exprimia-se como muito positiva. Os/as estudantes comentaram que têm boas referências de colegas de turmas anteriores e que a avaliam como importante para a formação de pedagogos/as. No terceiro momento, distribuímos tarjetas, orientando no sentido de que cada um/a pusesse, de um lado, suas certezas, conhecimentos prévios sobre Paulo Freire e/ ou sua pedagogia e, no outro, suas dúvidas, incertezas ou curiosidades que, com a ajuda do grupo, passamos a assumir como inquietações indagadoras. A ementa da disciplina, aprovada pelo Colegiado do Curso foi tomada como referência:

Foi evidenciado que Paulo Freire destacou a existência de opressores e oprimidos nas relações sociais, desenvolveu a Pedagogia do Diálogo, com base no reconhecimento de que ninguém educa ninguém nem se educa sozinho, uma vez que as pessoas se libertam em comunhão (FREIRE, 1988). Acrescentamos a noção de que uma prática pedagógica dialógica se ancora na relação horizontal estudante-professor/a, dado o re-

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conhecimento de que muito se tem a aprender um/a com o/a outro/a e que, no pensamento pedagógico de Freire, encontra-se a ideia de que onde quer que haja homens e mulheres, há o que fazer, ensinar e aprender (FREIRE, 2000). Era consenso entre os graduandos/ as a compreensão de que, no concernente à alfabetização de adultos, conhecida como Método Paulo Freire, o autor recorreu à utilização de palavras geradoras e que a sua bandeira de luta foi tingida pelo compromisso com a justiça social. Boa parte dos/as estudantes compreende o conceito de leitura de mundo em Paulo Freire como entendimento da realidade, conhecimento de mundo. Essa categoria tem assento na Pedagogia Freireana, que reconhece o universo vocabular do/a educando/a, os saberes da experiência feitos no contexto de vida dos sujeitos, base da sua educação, sugerindo não a ruptura, mas a associação com o conhecimento científico, escolar. Era recorrente a compreensão dos/as acadêmicos de que é uma educação voltada para a liberdade, em lugar de uma modalidade tradicional, denominada por Freire (1988) como bancária. O Educador pernambucano propõe uma educação dialógica, que abre perspectivas para a educação popular; uma educação crítica para formar sujeitos que assumam posicionamentos críticos. Destacamos, com base em Freire, o fato de que não existe neutralidade e que a denúncia da omissão em situações injustas se faz necessária, para que contribuamos com a trans-

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formação social, com origem na educação das classes oprimidas e não para estas. Como educador do povo, o trabalho de Paulo Freire foi desenvolvido em busca da libertação e da humanização dos oprimidos, razão por que incomoda tanto, no momento atual, aos proponentes da Escola Sem Partido3. Entre os/as estudantes, persiste a ideia de que a humanização em Freire se relaciona com a liberdade necessária para viver. Acrescentamos a ideia de que o exercício da liberdade tem como horizonte a libertação, inédito viável freireano. A humanização em Freire se constitui na busca do Ser Mais, condição do inacabamento humano. Nessa perspectiva, as práticas pedagógicas docente-discentes, quando consubstanciam o exercício da liberdade, assumem feições humanizadoras (BRAGA, 2015). Para os graduandos, a materialidade desse pressuposto é o trato que Paulo Freire deu à Educação de Adultos, na perspectiva da educação como ato de amor. A experiência de alfabetização de 300 pessoas em 40 dias, em Angicos-RN, é emblemática da Pedagogia Freireana. Algumas informações adicionais transmitidas aos estudantes diziam respeito ao fato de que Paulo Freire cursou Direito, que é o maior educador do Brasil e aprendeu com seus pais, rabiscando o chão, transformado em lousa, com o graveto, em substituição ao lápis ou ao giz. Os livros de Paulo Freire mais conhecidos pelos/as estudantes são Pedagogia do Oprimido, Educação como Prática da Liberdade, A importância do ato de ler e Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa.


A atitude de considerar os conhecimentos de mundo dos/as estudantes, seus saberes prévios acerca de Paulo Freire e sua Pedagogia desencadeou um processo pedagógico instituidor do trabalho colaborativo, como observa a mestranda que participou da disciplina, no semestre 2015.2. Percebi um trabalho colaborativo, onde o conhecimento e o desenvolvimento da autonomia de cada estudante foi o ponto mais importante do processo, isso levando em consideração as peculiaridades de cada ser envolvido no processo. Estagiária R

A iniciativa de caracterizar o grupo de estudantes, em termos de suas aprendizagens, se constituiu como manifestação de respeito aos seus saberes previamente construídos e ponto de partida para novos conhecimentos, em matéria de sedimentação, ampliação e novas elaborações (BRAGA, 2015).

O QUE OS/AS ESTUDANTES QUEREM SABER SOBRE PAULO FREIRE E SUA PEDAGOGIA Dado o espaço do artigo, apresentaremos, apenas, o desdobramento do trabalho desenvolvido na disciplina do semestre 2015.1. As inquietações indagadoras dos/as estudantes gravitavam em torno de temáticas que abordam conceitos, contextos e perspectivas de compreensão do alcance da Pedagogia Freireana. Feitas algumas aglutinações de pontos comuns, as questões expressas pelos/ as estudantes da turma foram:

Que saberes consubstanciam a alfabe-

tização libertadora? Como abrir ao contorno geográfico e sociocultural dos menos favorecidos? Que práticas pedagógicas docente-discente favorecem a aprendizagem daqueles que frequentam a Escola Pública? Em que medida a “desmitificação da realidade” pode ser mediada no e pelo ensino dos conteúdos? Como se materializam, na prática pedagógica docente-discente, os saberes problematizados pela pedagogia freireana? Para proceder ao tratamento dos pontos suscitados pelo grupo, nos utilizamos de elementos da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2008). Partimos das questões individuais, escritas nas tarjetas, passamos pelos mapeamentos, chegando à montagem de quadros aglutinadores das temáticas comuns, para, finalmente, chegarmos a uma versão preliminar do material. As questões foram debatidas em pequenos grupos, sintetizadas por nós como versão final das inquietações indagadoras, com posteriores discussão e aprovação do grupo. Essa metodologia de trabalho legitimou a vontade coletiva de seguir com o planejamento das aulas, sistematizadas no Programa da disciplina. As inquietações indagadoras definidas como fios condutores das ações e relações a ser empreendidas no decorrer do semestre foram: Como o processo ensino-aprendizagem pode ser emancipador? Que prática pedagógica pode levar o aluno a pensar a liberdade, conduzida pela inquietação indagadora?

Essas questões foram utilizadas como

TRAÇOS DA PEDAGOGIA DE PAULO FREIRE NA SALA DE AULA DA GRADUAÇÃO

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elemento nuclear, a fim de nortear a elaboração do Programa, que constou de: objetivos geral e específicos, conteúdo programático, metodologia, avaliação e bibliografia.

TRAÇOS DA PEDAGOGIA FREIREANA NA GRADUAÇÃO A escolha prévia ou a definição compartilhada com os/as educandos/as de questões a serem discutidas, iluminando a definição de conteúdos de ensino-aprendizagem, objetivos, metodologia, maneiras de avaliar e referencial bibliográfico, elementos de organização de uma disciplina, expressa uma posição política do professor (FREIRE, 2000). A micropolítica da sala ressignifica a posição do(a) professor(a) perante os problemas da divisão social. Numa perspectiva humanizadora, assume compromisso com a transformação da sociedade. Decorrente das inquietações indagadoras do grupo, o objetivo geral da disciplina consistiu em compreender como o pensamento político-pedagógico de Paulo Freire ganha vida na prática pedagógica vivenciada na escola pública e nos movimentos sociais, para subsidiar processos de ensino-aprendizagem mediados pela inquietação indagadora. Para levar a termo o objetivo geral, outros, mais específicos, foram delineados: Analisar as contribuições e o lugar da pedagogia freireana como aporte teórico da formação de professores no Brasil. Estudar o contexto sócio-histórico da pedagogia freireana. Identificar as concepções de sociedade, 106 Interritórios | Revista de Educação V.2 | n.2

homem, educação e alfabetização presentes na pedagogia freireana. Analisar as possibilidades e os limites de aplicação da proposta políticopedagógica de Paulo Freire nos anos 1960 e no contexto atual. Conhecer anúncios da materialidade da pedagogia humanizadora de Paulo Freire na prática pedagógica docente-discente. Como desdobramento dos objetivos do grupo, e em associação com os elementos propostos no ementário da disciplina, o conteúdo programático constitui-se de: Contexto histórico da constituição do pensamento de Paulo Freire. Concepção de sociedade, homem, educação e alfabetização em Paulo Freire. Angicos-RN: contexto da experiência com alfabetização de adultos nos anos 1960. Educação Libertadora: o anúncio da pedagogia do oprimido em substituição a educação bancária. Dialogicidade, círculo de cultura, leitura de mundo, práxis: essência da educação como prática de liberdade. A prática pedagógica docente-discente humanizadora nos contextos escolares e não escolares. Pedagogia freireana: aporte teórico da formação de professores no Brasil? O Método de Paulo Freire: fases de elaboração e execução. A politicidade do ato educativo e a valorização das positividades da cultura e do saber populares. O mapeamento das inquietações indagadoras permitiu que a organização e o tratamento dos conteúdos se dessem articuladamente com os interesses e


Os conteúdos foram bem explorados e discutidos com os estudantes que fizeram parte do contexto, desde a análise da ementa da disciplina. A utilização e exploração de livros completos em uma disciplina do curso de graduação foi uma ação que chamou muita atenção. Isso fez a diferença. Os estudantes destacaram esse estudo ao final da disciplina. expectativas do grupo, incentivando os/as estudantes a empreenderem a leitura de duas obras - Medo e Ousadia (FREIRE e SHÖR, 1986) e Pedagogia da Esperança (FREIRE, 1994). A estagiária R assim analisa essa prática:

ou de alienação na esteira do aprendizado da docência universitária. Na compreensão dos estagiários, ao assumir o diálogo como fio condutor da metodologia de trabalho, possibilitamos a interação direta com os sujeitos cognoscentes: [...] o aluno foi sendo parte do processo em todos os momentos da disciplina. O conhecimento de cada indivíduo participante também foi um fator que foi levado em consideração em todos os momentos pela professora regente da turma, a exemplo do Seminário Integrado para realização da avaliação dos estudantes, ação que colocava todos do grupo como participantes do processo, a avaliação ocorria através de aspectos individuais e coletivos e tudo foi avaliado por todos. Estagiária R

A metodologia utilizada na disciplina constou de sínteses críticoreflexivas das aulas, exposições dialogadas, estudos individuais e em grupo, debates temáticos, projeções de vídeos, leitura de livros, produção de textos, pesquisas e Seminário Integrado. A intenção foi vivenciar os princípios e a metodologia da Pedagogia de Paulo Freire na sala de aula. Para tanto, a relação dialógica foi perseguida nas ações e relações entre os membros do grupo. O Estagiário H compreende que a prática pedagógica docente-discente que acompanhou no semestre 2015.1 apresenta traços de materialidade dos pressupostos freireanos: Na prática pedagógica da professora percebi a materialização do pensamento vivo de Paulo Freire. Todo o trabalho desenvolvido estava centrado no profundo respeito aos educandos tendo a humanização como foco central do ato docente. Foi possível a mim, como aluno em contexto de Estágio de Docência do Curso de Mestrado em Educação, a percepção de quem ensina, ensina algo a alguém para fomentar processos de libertação

A metodologia utilizada foi a aula dialogal (...). Interessante que a professora encarnou a Pedagogia dialógica quando no primeiro dia de aula, procurou conhecer o “saber de experiência feito” dos educandos. Cada um propôs uma dúvida sobre a obra de Freire. Essa pergunta foi a força motriz de cada educando, em busca de compreender seu objeto de monografia e de praticar o exercício da escrita acadêmica. Estagiário H

Em Medo e Ousadia (1986), Paulo Freire e Ira Shor dialogam sobre as diversas relações professor-aluno que levam à reprodução ou à libertação das classes oprimidas, problematizando as práticas pedagógicas reprodutoras vigentes nas salas de aula do Ensino Superior, apontando caminhos para a materialização

TRAÇOS DA PEDAGOGIA DE PAULO FREIRE NA SALA DE AULA DA GRADUAÇÃO

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de práticas libertadoras. Para tanto, o/a professor/a recorre ao diálogo, elemento fundante do planejamento de suas aulas, espaço-tempo de reinvenção do conhecimento e da sociedade, em que os/as professores/as ou os/ as estudantes exercessem o poder de produzir conhecimento, reafirmando seu poder de refazer a sociedade (FREIRE, 2000). A bibliografia a que recorremos foi discutida e escolhida juntamente com os estudantes, levando em consideração os livros que eles/as já haviam lido. Segundo a estagiária H, essa experiência se constituiu em “fator importante, pois, se a professora propusesse uma bibliografia já conhecida pela turma poderia causar uma falta de interesse dos estudantes”. E prossegue, dizendo: Paulo Freire não tem um livro que sistematize seus conceitos. De forma dialógica ele vai diluindo seu pensar e seu fazer pedagógicos através de uma escrita em tom de fala pessoal aos seus leitores. De maneira geral, estas obras permitiram a reflexão em torno da liberdade, da profissionalidade, da profissionalização e da autonomia produzida pelo aprendizado dos saberes da docência. Estagiária H

A avaliação acadêmica foi realizada em acordo com as normas da instituição formadora e em reconhecimento à sua dimensão processual e de sua importância como fator de realimentação da aprendizagem. Levou em conta a assiduidade, o nível de intervenção nas atividades pedagógicas e as produções individuais e em grupo, mediante sínteses crítico-reflexivas das aulas, o Seminário Integrado4 e a autoavaliação.

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Ao final da disciplina, cada graduando/a foi convidado/a a discorrer sobre como percebeu a disciplina em relação a: conteúdos trabalhados, metodologia utilizada, desempenho da professora e bibliografia utilizada. Além disso, cada qual manifestou a percepção acerca do desempenho e envolvimento do grupo, exercitou a autoavaliação, atribuindo uma nota na escala de 0 a 10 para o desempenho na disciplina, identificando os avanços e limites do seu processo de aprendizagem. Por fim, foi convidado a apresentar sugestões para a melhoria da disciplina.

APRENDIZAGENS DECORRENTES DAS AÇÕES E RELAÇÕES EMPREENDIDAS Para responder às perguntas norteadoras da disciplina - Como o processo ensino-aprendizagem pode ser emancipador? Que prática pedagógica pode levar o aluno a pensar a liberdade, conduzida pela inquietação indagadora? - questões específicas precisavam ser respondidas. Assim, cada grupo escolheu uma, engendrando o movimento de busca coletiva para conhecer e recriar as contribuições de Paulo Freire. A inspiração da proposta adveio dos elementos do Ciclo do Conhecimento de Paulo Freire, que se dá pelo momento da produção de um conhecimento novo e o momento em que o conhecimento produzido é conhecido ou percebido (FREIRE; SHÖR, 1986). Na busca por responder, por exemplo, ao questionamento - Como abrir ao contorno geográfico e sociocultural dos menos favorecidos? - o


grupo apontou, à luz de Freire e Shör (1986), como possibilidade, a efetivação da aprendizagem nas condições reais de existência dos/ as educandos/as, de modo a promover o desvelamento e a consequente transformação da realidade. O contexto social do ensino constituise como elemento provocador da consciência crítica, necessitando que o/a educador/a libertador/a recorra a questionamentos acerca do que nos é expresso, promovendo, por meio de uma pedagogia criativa, a autonomia dos/ as educandos/as. O/a educador/a libertador/a é aquele/a que estabelece uma atmosfera pedagógica pautada nas inquietações dos/as educandos/ as, identifica seus níveis cognitivos e afetivos, propicia a democratização da expressão e investe em práticas geradoras de aprendizagens significativas, em busca da transformação. É um educador/a que expressa entusiasmo para despertar o interesse do aluno, cria um clima que favorece a espontaneidade na relação do discente, criando um campo linguístico comum e vinculando o discurso com a realidade dos/as educandos/as. O/a educador/a libertador/a se reconhece como sujeito inacabado, em transformação. Emprega, simultaneamente, diversas metodologias em sala de aula e mantém um discurso coerente com a prática. Para tanto, ele é radicalmente democrático, responsável e diretivo. Que práticas pedagógicas docente-discente favorecem a aprendizagem daqueles que frequentam a Escola Pública? Para responder a esse questionamento, o grupo achou que se fazem necessárias a liberdade de o/a educadora e o/a educando pensarem e de serem criativos/as, bem como a socialização desses sujeitos, me-

diatizados pelo mundo real, pelas condições reais do grupo. Nesse sentido, a educação se faz dialógica, porquanto os/as educandos/ as são legitimados como sujeitos do conhecimento, tendo suas experiências reconhecidas no contexto social do ensino. Esse é um processo a demandar luta coletiva, que lança luz sobre a realidade. Para contribuir com o debate sobre uma outra questão - Em que medida a “desmitificação da realidade” pode ser mediada no e pelo ensino dos conteúdos? -, o grupo indicou como achados na obra estudada: a valorização das subjetividades; a relação contexto teórico-contexto concreto; o investimento em relações democráticas; a vivência de aulas libertadoras. Para o exercício de uma prática pedagógica docente-discente de matriz humanizadora, o/a professor/a não pode ser neutro/a, mas é aquele/a que reconhece ser diferente dos/as educandos/as, sem ser antagônico. O/a docente tem autoridade sem ser autoritário/a, garantindo uma atmosfera democrática, de modo a descentralizar a organização na figura do professor, incentivando a que os/as estudantes se organizem, por si só. A ação políticopedagógica desse/a educador/a segue em direção a uma sociedade igualitária. A equipe interessada em responder - Como se materializam, na prática pedagógica docente-discente, os saberes problematizados pela pedagogia freireana? - apresentou como resposta a noção de que a prática pedagógica que se assume como denúncia da opressão se ancora na Pedagogia da Oposição, é contra-ideológica, uma vez que contribui com o desvelamento da realidade. Para tanto, o professor busca ser libertador, a servi-

TRAÇOS DA PEDAGOGIA DE PAULO FREIRE NA SALA DE AULA DA GRADUAÇÃO

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ço da educação, compreendida como ato político; educar a favor de quem e contra quem colabora para a constituição do sonho político, esteado num projeto político que delineia como horizonte uma sociedade de perfil político diferente do que encontramos hoje. As respostas para as questões específicas colaboraram para se compreender que o processo ensino-aprendizagem emancipador pressupõe o investimento em práticas rigorosas de conhecimento, eivadas pela seriedade, haja vista que o ato de conhecer nem é neutro nem é indiferente. A prática pedagógica que pode levar o aluno a pensar a liberdade, conduzida pela inquietação indagadora, demanda o processo dialético de afastar-se para se aproximar, permitindo a apreensão rigorosa e crítica do objeto a ser conhecido. A esse respeito, Freire (2001, p. 112) defende o argumento de que: No processo de produzir e de adquirir conhecimentos, terminamos também por aprender a “tomar distância” dos objetos, maneira contraditória de nos aproximarmos deles. A tomada de distância dos objetos pressupõe a percepção dos mesmos em suas relações uns com os outros. A “tomada de distância” dos objetos implica a tomada de consciência dos mesmos, mas esta não significa ainda que eu esteja interessado ou me sinta capaz de ir além da pura constatação dos objetos para alcançar a raison d’être dos mesmos.

Um jeito de sistematizar essas compreensões pode ser percebido na figura elaborada por um dos grupos, a seguir exposta.

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Figura 1. Práticas Pedagógicas Transformadoras

Fonte: Elaboração coletiva de estudantes da disciplina A Pedagogia de Paulo Freire (2015).

O mapa conceitual revela a compreensão aprofundada de pressupostos de Paulo Freire, que reconhece a desmistificação da realidade como possibilidade de iluminar a prática pedagógica docente-discente. Nesse sentido, o mergulho em estudos e discussões de obras do Autor consistiu em experiência investigativa, que pode ser realizada em outras salas de aula da graduação. Nas palavras do Estagiário H: Através da escuta sensível [a professora] permitiu o debate e a discussão em torno das perguntas-chave de cada educando no contexto das obras de Paulo Freire que foram estudadas. Ela compreendia que o saber do educando é ponto de partida, para que através da mediação pedagógica, pudesse fazer o salto qualitativo da síncrese para a síntese na esteira da análise, processo esse que viabilizou a construção do conhecimento científico.


O grupo vivenciou uma atmosfera produtiva, que se estabeleceu com rigor dialógico (FREIRE, 2000) e criativo, pautado na liberdade dos/as educandos/as, levando-os/as a recriar o conhecimento crítico, uma vez que partiu de inquietações indagadoras advindas do grupo e recorreu à leitura como material impulsionador de reflexões.

tar cada estudante em suas raízes e saberes, relacionando-os com os conteúdos propostos pela disciplina, perspectiva a ser considerada nas práticas pedagógicas docente-discentes de matriz dialógica, humanizadora.

CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS De maneira coletiva, tendo como referente os conhecimentos que o grupo de estudantes já tinha consolidado sobre Paulo Freire e sua Pedagogia, mapeamos as inquietações indagadoras que poderiam mobilizar o grupo, em busca de mais aprendizagens, com a possibilidade de empreenderem na leitura de uma ou mais obras de Paulo Freire. Isto contribuiu para o envolvimento do grupo na metodologia utilizada na disciplina, que deu ensejo à vivência de momentos perpassados por múltiplas aprendizagens. O diálogo estabelecido na nossa escuta atenta e no exercício da pronúncia do/as educandos/as, com o intuito de captar seus temas e com eles/as investir nas inquietações indagadoras, que mediaram o estudo das obras, contribuiu com a ampliação do arcabouço teórico freireano, bem como dos níveis de desenvolvimento cognitivo, político e afetivo os/ as partícipes do processo de ensino-aprendizagem. A experiência anuncia elementos do Ciclo do Conhecimento de Paulo Freire, uma vez que buscou reconhecer e lapidar os conhecimentos dos/as educandos/as e recriar as contribuições do Autor. Vivenciar o processo de aprendizagem como um ciclo implica respei-

BRAGA, Maria Margarete Sampaio de Carvalho Professora da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Atualmente, realiza Estágio de Pósdoutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo da 1

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REFERÊNCIAS BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. 19. ed. Lisboa/Portugal: Edições 70, 2008. BRAGA, Maria Margarete Sampaio de. Prática pedagógica docente-discente: traços da pedagogia de Paulo Freire na sala de aula. Recife: Editora UFPE, 2015. FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 18. ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1988. _____. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1994. _____. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. ______. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000. ______. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. 10. ed. São Paulo: Editora Olho d’Água, 2000a. ______. A Educação na cidade. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2001. FREIRE, P.; SHOR, I. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. LIMA, Maria Socorro Lucena, BRAGA, Maria Margarete Sampaio de Carvalho. Relação ensino-aprendizagem da docência: traços da pedagogia de Paulo Freire no ensino superior. In: Dossiê Paulo Freire, a Prática Pedagógica e a Formação de Professores. Educar em Revista. Curitiba: UFPR, n. 61, 2016 (No prelo). SNYDERS. A alegria na escola. Barueri: Manole, 1988. SOUZA João Francisco de. Prática pedagógica e formação de professores. In: BATISTA NETO, José; SANTIAGO, Maria Eliete (org.). Prática pedagógica e formação de professores. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2009. Escola sem Partido <:http://escolasempartido.org/artigos/382-paulo-freire-e-aeducacaobancaria-ideologizada> 112 Interritórios | Revista de Educação V.2 | n.2


Segundo Lima e Braga (2016), o Estágio de Docência é prática formativa do pesquisador para a docência no ensino superior. É obrigatória para todos/as os/as estudantes bolsistas matriculados/as quando está inserida na estrutura curricular dos cursos de pós-graduação stricto-sensu. 2

Para melhor compreensão da ideologia que sustenta a proposta Escola sem partido, ver: http://escolasempartido.org/artigos/382-paulo-freire-e-a-educacao-bancaria-ideologizada Acessado em 14/07/2016. 3

O Seminário Integrado consta de uma proposta de trabalho, em modelo espiral, de modo que todos/as os/as participantes estudam uma mesma obra e, interativamente, assumem distintos papeis, a depender da tarefa proposta para o estudo de cada capítulo: exposição dialogada, atividade prática, síntese escrita, problematização, crítica propositiva e atualização do conteúdo. 4

TRAÇOS DA PEDAGOGIA DE PAULO FREIRE NA SALA DE AULA DA GRADUAÇÃO

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114 Interritórios | Revista de Educação V.2 | n.2


RESENHA CRÍTICA

PRINCÍPIOS POLÍTICO-PEDAGÓGICOS FREIREA NOS NAS POLÍTICAS CURRICULARES E NO CHÃO DA ESCOLA GUEDES, Marilia Gabriela de Menezes1

O livro Princípios político-pedagógicos freireanos nas políticas curriculares e no chão da escola1 demonstra sua singularidade e importância ao descrever em detalhes um trabalho de pesquisa que teve como objetivo compreender a contribuição de Paulo Freire na formulação de políticas e práticas curriculares nos sistemas públicos de ensino. A partir do pressuposto de que o pensamento político-pedagógico freireano está sempre em movimento, dialoga com diferentes questões contemporâneas, assim como traz elementos norteadores para a construção da teoria curricular emancipatória e eticamente comprometida com a humanização dos sujeitos. Com esse propósito, a autora organiza o livro com um texto introdutório seguido de quatro capítulos. Na introdução, Guedes (2015) situa o livro como o resultado da pesquisa realizada no doutorado em educação obtido na Universidade Federal de Pernambuco e aponta como questão central discutir os fundamentos que caracterizam o pensamento freireano, de que forma eles orientam as políticas curriculares e como se materializam nas práticas pedagógicas. Apresenta argumentos que evidenciam que os fundamentos educacionais de Paulo Freire, como uma construção teórica do seu pensar crítico-dialético da realidade, estão eivados por questões que permeiam o campo do currículo, bem como consideram que toda ação educativa é sempre intencional e reflete, implícita ou explicitamente, um referencial teórico. Sendo assim, afirma ser necessário tomar o currículo como um campo investigativo, para melhor compreensão dos sistemas de ensino quanto às propostas dos gestores e à prática dos(das) professores(as). O primeiro capítulo traz o referencial teórico em que discute o currículo na perspectiva crítica e os fundamentos político-pedagógicos de duas categorias basilares do pensamento freireano: relação e diálogo. Assim, a pesquisadora dialoga com diferentes autores, como, Michael Apple, Henry Giroux, Peter McLaren, Michael Young, Ivor Goodson, Eliete Santiago, Ana Maria Saul, José Augusto Pacheco, entre outros. No segundo capítulo, a autora trata da construção metodológica, discutindo as bases teóricas que orientam a pesquisa e apresentando os procedimentos e instrumentos utilizados no caminho percorrido para a sua concretização e os elementos que fundamentaram a escolha do campo da pesquisa. Apoia-se no método materialismo histórico e dialético, utilizando a abordagem plurimetodológica. Na organização e no tratamento dos dados, recorre à Análise de ContePRINCÍPIOS POLÍTICO-PEDAGÓGICOS FREIREA NOS NAS POLÍTICAS CURRICULARES E NO CHÃO DA ESCOLA

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údo nos termos que define Laurence Bardin. Descreve, ainda, o estudo exploratório que permitiu conhecer os sistemas de ensino do estado de Pernambuco que apresentam traços do pensamento de Paulo Freire nas propostas educacionais e curriculares, assim como selecionar o lócus da investigação: a Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco (SE/PE) nos anos de 1980 e 1990. Focalizando as ações desenvolvidas no segundo e terceiro governos de Miguel Arraes e, na atualidade, a Secretaria de Educação do município de Camaragibe. Nesse município, elege uma unidade escolar para acompanhar o trabalho educacional nela realizado por uma professora da Educação Infantil, a fim de compreender a contribuição de Paulo Freire para esses sistemas. A autora analisa, no terceiro capítulo, a Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco e aponta que esse sistema de ensino embasou as políticas de gestão, as políticas de ensino, as políticas de valorização do profissional da educação no movimento de recriação e ressignificação dos princípios freireanos, com destaque para os Fóruns Itinerantes de Educação, os Conselhos Escolares e os Círculos de Educação e Cultura. Dessa forma, esclarece que, nos processos de formulação e nas vivências das políticas e práticas curriculares no referido sistemas de ensino, estavam desenhadas as contribuições de Paulo Freire, porque defendia a participação democrática, o exercício da autonomia e a descentralização do poder como elementos basilares para a construção de uma sociedade democrática.

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A proposta educacional libertadora tomou forma com as experiências nos Círculos de Educação e Cultura reinventados criativamente pela SE/PE para os jovens e adultos pernambucanos. Nas políticas de valorização do profissional da educação, apoiadas nas discussões de Paulo Freire sobre a indissociabilidade entre teoria e prática, os referenciais freireanos foram adotados como conteúdo e forma nos processos de formação continuada dos(as) professores(as). No quarto capítulo, ao tomar a Secretaria de Educação do município de Camaragibe, recorreu ao estudo do chão da escola para desvelar o trabalho pedagógico desenvolvido na relação docente-discente, e mostrar que o repertório de conhecimentos acerca do pensamento freireano discutido nos processos de formação estava presente no planejamento, na organização do espaço e do tempo pedagógico com as situações de produção de conhecimento. O trabalho docente revelava que educar é ato de criação, requer respeito com o ser humano e compromisso com um projeto de sociedade igualitária. A professora participante da pesquisa demonstrava, nas ações que desenvolvia, um cuidado com o trabalho que realizava à medida que as formas organizativas de espaço e tempo pedagógicos permitiam elaborar situações para a produção do conhecimento nas relações tecidas entre ela e as crianças. Em síntese, as discussões de Paulo Freire sobre os saberes necessários para o exercício da docência na proposta educativo-libertadora norteavam as ações desenvol-


vidas pela professora, como a rigorosidade ética, a compreensão da natureza inconclusa do ser humano, a prática educativa como prática formadora e o processo de ensino e aprendizagem como construção criativa que permite aos(as) professores(as) e estudantes assumirem o papel de sujeitos do processo educativo. Ao final da obra, tece algumas considerações sobre o conhecimento construído e esclarece que as questões que perpassam a pesquisa, para favorecer maior compreensão dos sistemas de ensino que reconhecem o pensamento freireano como fundamento na formulação de políticas e práticas curriculares, trouxeram elementos para afirmar que os princípios político pedagógicos do pensamento de Paulo Freire contribuem na construção de propostas e práticas curriculares voltadas para formação humana do sujeito no processo de escolarização com base no trabalho pedagógico na relação docente-discente. Instiga também o leitor a refletir sobre alguns desafios: ressignificar os ensinamentos freireanos, a fim de superar a realidade neoliberal, que se impõe nos dias atuais, mediante políticas que tentam falsear o processo democrático; e construir de forma inventiva e criativa mecanismos de democratização da gestão educacional que permitam concretizar um processo de formulação e vivência das políticas e práticas curriculares com a participação efetiva da sociedade nos diferentes sistemas de ensino, de modo a atender à diversidade do nosso país.

O trabalho revela sua importância por compreender que o processo educativo pode tornar-se instrumento que contribui para homens e mulheres superarem as situações desumanizadoras em que são submetidos na barbárie e nos processos de exclusão social vividas nos dias atuais. Isso é fruto do entendimento das potencialidades da educação, não como utopia irrealizável nem tampouco com consciência ingênua, mas com a consciência crítica das suas limitações e das suas possibilidades. Essas ideias estão embasadas no pensamento político-pedagógico de Paulo Freire que revelam elementos que ajudam a entender a educação como processo de emancipação humana a serviço da transformação social e o currículo como construção de significados sociais e valores culturais. Dessa forma, o presente livro traz elementos que podem subsidiar a orientação de novos caminhos para a formulação de políticas e práticas curriculares na perspectiva crítica-emancipatória.

GUEDES, Marilia Gabriela de Menezes. Princípios político-pedagógicos freireanos nas políticas curriculares e no chão da escola. Recife: editora UFPE, 2015. 348 p. 1

PRINCÍPIOS POLÍTICO-PEDAGÓGICOS FREIREA NOS NAS POLÍTICAS CURRICULARES E NO CHÃO DA ESCOLA

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CARTA DO RECIFE

CARTA DO RECIFE Professores/as, estudantes, pesquisadores/as e gestores em educação e instituições educacionais presentes ao V Seminário Paulo Freire, em Recife, reafirmam a relevante contribuição de Paulo Freire para a construção de um projeto social e de educação, no horizonte da justiça social

Reunidos no V Seminário Paulo Freire, promovido pela Cátedra Paulo Freire da Universidade Federal de Pernambuco, professores, estudantes, pesquisadores/as e gestores em educação e instituições educacionais expressaram seu repúdio ao posicionamento de manifestantes, nas mobilizações políticas de caráter conservador, que tiveram lugar no último dia 15 de março do corrente ano, na cidade de Brasília. Naquela ocasião conclamava-se, a contracorrente do que defendem as forças vivas da população brasileira, afeitas ao pensamento emancipador, um basta ao educador, Patrono da educação brasileira, Paulo Freire. O repúdio foi expresso através de Carta Aberta, proposta pela Cátedra Paulo Freire da UFPE e pela Cátedra de EJA da UNESCO, Núcleo UFPE, aprovada por unanimidade dos presentes ao Seminário, no dia 08 de maio, passando a chamar-se Carta do Recife. Participantes do V Seminário Paulo Freire, diante do repúdio, de grupos conservadores, ao pensamento e a proposta político pedagógica de Paulo Freire, ocorrido nas manifestações de 15 de março do corrente ano, vem a público expressar o seu reconhecimento para a luta histórica, deste educador brasileiro, pela justiça social através da educação, ao seu compromisso com um projeto de sociedade e de educação que tenha como horizonte os direitos humanos e sociais e a relevância dos seus referenciais na construção de uma pedagogia crítico-transformadora. Professores/as, instituições e entidades de classe que constituem movimentos sociais progressistas, assim como a produção acadêmica nacional e internacional, têm mostrado a universalidade da contribuição freireana para diversos setores e segmentos da sociedade e a relevância política, pedagógica e social do seu pensamento. Nessa perspectiva, temos afirmado que Paulo Freire é um pensamento vivo, vigoroso, atual, sem fronteiras, assim como é referencial para se pensar políticas públicas e práticas sociais e educacionais no horizonte dos direitos humanos e da justiça social. Contraditoriamente, a atualidade, o vigor e a contribuição política e pedagógica de Paulo Freire inquietam a grupos conservadores, que passaram a destilar ódio em diferen-

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tes contextos políticos e institucionais. Esse ódio insano se fez voz de repúdio a Paulo Freire, nos acontecimentos de 15 de março. Por que tamanho ódio a um educador que, com suas ideias e o trabalho individual e coletivo, lutou pelos direitos humanos e por justiça social? Por que o rechaço a um cidadão brasileiro, e do mundo, que deixou como legado uma filosofia e pedagogia que têm como horizonte a humanização do humano? Por que conclamar a um basta ao educador que defendeu, com seu incansável trabalho na educação, a condição humana das gentes oprimidas, excluídas, invisíveis e assujeitadas? Paulo Freire, Patrono da Educação Brasileira, formulou e praticou uma educação através da qual homens e mulheres se reconhecem e são reconhecidos como sujeitos do conhecimento e da história, não importando sua condição sócio-econômico-cultural ou seu território de vida e de trabalho. Formulou e praticou uma educação problematizadora que se realizou através de temas/questões que emergiam da realidade social, dos contextos de vida e das vivências de homens e mulheres, constituídos conteúdos da educação, os quais, quando problematizados, possibilitaram reflexão, apropriação crítica da realidade e ação transformadora. Embora, inicialmente, suas ideias e práticas tenham emergido como processos de alfabetização, era uma filosofia em ação que ganhava corpo e se experimentava no final dos anos 1950/1960 em diversos pontos do país (Recife, Angicos, Brasília). A experi-

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ência que despontava no Nordeste do Brasil, e que logo se espalhou pelo mundo, incomodou segmentos que haviam se apossado da direção política do país. Como registra a história recente, essa educação emergente e diferenciada foi interrompida no Brasil, uma vez que ameaçava o poder político e econômico constituído e arrancava do homem e da mulher brasileiros/as a sua condição de protagonistas das suas próprias vidas – vivências – e História. A educação proposta e vivenciada por Paulo Freire reconhecia a vocação ontológica de ser mais do homem e da mulher, e, por reconhecê-la, respondia com processos de produção do conhecimento e não com processos de transferência daquele e daquela que sabem mais para aquele e aquela que sabem menos ou que não sabem. Essa prática educacional foi interrompida com o golpe de 1964, mas não foi anulada. O autoritarismo no poder, o golpe de estado, interrompeu a experiência no chão brasileiro, mas não o sonho coletivo, também sonhado por Freire que, apesar das adversidades, deu continuidade ao trabalho; permaneceu na luta e na construção da pedagogia da humanização fora do Brasil, mas sem se distanciar dele. Foi esse o “crime” que Paulo Freire cometeu – promover uma educação conscientizadora. Contribuir para o empoderamento de homens e mulheres através da educação. Criar as condições de visibilidade do homem e da mulher enquanto seres silenciados, marginalizados e coisificados.


O “crime” deste pedagogo foi ter afirmado, com a prática, que a educação é um ato político; foi ter honrado a opção política de colocar a educação a serviço da humanização, da libertação, da justiça e do direito. Foi essa pedagogia da leitura crítica e da intervenção na realidade que perspectivava um projeto de sociedade democrática que lhe valeu a prisão, o exílio, a perda dos direitos políticos em seu país. Mas, estávamos nos anos de 1960, era plena ditadura militar. E hoje? O processo de redemocratização do país trouxe Paulo Freire de volta, entre outros e outras exilados/as. Voltou com seu sonho (e de muitos de nós) de justiça e com experiências consolidadas na andarilhagem por culturas diversas e desafios políticos. No tempo de exílio, respondeu aos convites com suas contribuições teórico-epistemológicas tecidas no Brasil, coerente com a opção política de colocar a educação como prática da liberdade, não se afastando do sonho que fazia da educação uma prática local que podia passar a ser planetária. Paulo Freire é esse educador brasileiro, ao mesmo tempo recifense e cidadão do mundo; andarilho da utopia, que sem mágoa e sem medo (sabemos todos/as que com ele convivemos) lutou esperançoso pelo estado de direito, por uma sociedade justa e igualitária, pela condição de sujeito e de dignidade do homem e da mulher.

na busca, cujo pensamento se constitui num paradigma para a educação no século XXI. PAULO FREIRE É UMA PEDAGOGIA que tem como horizonte a construção de uma nova humanidade, uma educação libertadora e humanizadora, a qual estamos a carecer no século XXI no planeta Terra, e no Brasil em particular. Uma educação que, mais do que evidenciar, se comprometa com a superação de práticas minimizadoras, focalistas, exploradoras, preconceituosas e negadoras do ser mais. PAULO FREIRE É UM COMPROMISSO SOCIAL E ÉTICO UNIVERSAL que somente aqueles/aquelas que colocam o direito e a justiça social como horizonte das políticas públicas, dos projetos e das ações podem optar. Por isso, Paulo Freire é uma opção política. Portanto, não é, nem esperamos que seja, pensamento consensual, nem opção universal. Não é, nem será, opção de alas e grupos conservadores, defensores de privilégios. Mas é e continuará sendo referencial para aqueles e aquelas que lutam por justiça social. Recife, 08 de maio de 2015.

PAULO FREIRE É UM TESTEMUNHO DE DIÁLOGO entre culturas, de um pensar crítico esperançoso que fez da educação um dos instrumentos de luta e de construção social e que deposita sempre sua esperança

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