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Da vaia à consagração: o centenário da Semana de Arte Moderna
Rômulo Santos de Almeida
Este ano de 2022, tão desafiador para o Brasil e para o mundo, é um momento único de reflexão crítica sobre o nosso passado, presente e futuro. Há um século, presenciávamos grandes acontecimentos que se inserem no quadro de intranquilidade da República Velha (1889-1930), com destaque para o levante do Forte de Copacabana, a fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a Semana de Arte Moderna, até hoje uma das efemérides mais significativas da cultura brasileira. Apesar dos numerosos estudos realizados sobre o evento, com seus altos e baixos, com seus acertos e erros, a Semana de Arte Moderna ainda pode ser uma fonte de rebeldia e inspiração iconoclasta, sobretudo agora quando a arte e os artistas sofrem ataques diretos do governo federal.
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Sob o mecenato do riquíssimo cafeicultor Paulo Prado e incentivada por Olívia Guedes Penteado, uma fina flor da oligarquia cafeeira, a Semana de Arte Moderna foi realizada entre os dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, e aos poucos se apresentou como uma força renovadora e propulsora de novas ideias. Contou, para tanto, com a participação, direta ou pelo envio de amostras individuais, de artistas e escritores – nem todos “modernistas” –, muitos dos quais ainda figuravam na época como ilustres desconhecidos. Entre os participantes estavam Graça Aranha, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Renato de Almeida, Ribeiro Couto, Plínio Salgado, Sérgio Milliet, Ronald de Carvalho, Di Cavalcanti, Yan de Almeida Prado, John Graz, Regina Gomide Graz, Anita Malfatti, Zina Aita, Vicente do Rego Monteiro, Victor Brecheret, Wilhelm Haarberg, Antonio Garcia Moya, Georg Przyrembel, Guiomar Novais, Heitor Villa-Lobos, e tantos outros. Houve recitais de poesias, exposição de pinturas, esculturas, maquetes de arquitetura e concertos musicais. A maioria das apresentações, não obstante restritas ao seleto e heterogêneo grupo – nem todos da elite econômica –, desafiou os padrões formais da arte clássica, escandalizando, com sua ebulição “futurista”, o público conservador e provinciano, acostumado com os cânones estéticos do academicismo (ALMEIDA, 2020; CAMARGOS, 2007; COELHO, 2012; GONÇALVES, 2012; MOTTA, 2022; NICOLA; NICOLA, 2021).
De acordo com Jorge Schwartz (1983), ao longo de décadas a Semana de 1922 rompeu com toda uma tradição, criticando, reescrevendo e reinventando-a. Sua premissa básica residia na superação de tradições acadêmicas sacralizadas para, em seguida, direcionar os debates sobre a nacionalidade. Entretanto, parte da crítica adverte que o prenúncio deste episódio tem início em 1913, com a exposição do pintor lituano Lasar Segall. Outra parte, porém, prefere o ano de 1917, durante a exposição da pintora Anita Malfatti, alvo de duras críticas do escritor Monteiro Lobato, que escreveu o artigo “Paranoia ou mistificação?”, comparando as pinturas da artista aos “desenhos que ornam as paredes dos manicômios”, “produtos de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses”, não passando, por isso, de “ramos da arte caricatural” (GONÇALVES, 2012, p. 107). O repúdio do autor do Sítio do Picapau Amarelo obteve, contudo, um efeito contrário, pois, saíram em defesa de Anita Malfatti, intelectuais e artistas já relativamente afinados pelas artes de vanguarda. Como afirmou Mário de Andrade, no dia 3 de fevereiro de 1922, em um artigo escrito para o jornal A Gazeta: “Há exageros em nossa arte? É natural. Não se constrói um arranha-céu sobre um castelo moçárabe. Derruba-se primeiro a mole pesadíssima dos preconceitos, que já foram verdades, para elevar depois outras verdades, que serão preconceitos num futuro, quiçá muito próximo (ANDRADE, 1922, p. 1).
Embalado pelo clima de modernidade que se seguiu após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o Brasil e a América Latina se tornavam, cultural e economicamente, mais ligados ao Velho Continente, canalizando o processo de absorção das vanguardas artísticas europeias. Segun-
do Belluzzo (1990, p. 18), os movimentos vanguardistas dos países centrais e dos países periféricos estavam sujeitos ao “mesmo processo histórico”, embora fossem estruturalmente diferentes, comportando-se como faces opostas de uma mesma moeda. Antonio Candido explicita essa questão ao reconhecer que as vanguardas agiam sobre nós, mas recebiam de nossa parte novas reinterpretações e novos usos, de modo que muitos modernistas reencontraram “a influência europeia por um mergulho no detalhe brasileiro” (CANDIDO, 2010, p. 128).
Dialogando com as tendências históricas de sua época, em especial com o universo de desorganização artística que se abria, a Semana de Arte Moderna representou “o engatinhar de uma nova mentalidade na vida cultural brasileira que já se encontrava latente desde a década de 1910” (BOAVENTURA, 2008, p. 14). Paulatinamente, ela será interpretada como a primeira manifestação coletiva em prol de um “espírito artístico moderno” que reuniu artistas e intelectuais na criação de uma arte brasileira, comparável apenas, por sua repercussão, à chegada da missão francesa ao Rio de Janeiro no século XIX ou, no século XVIII, à obra do Aleijadinho (AMARAL, 1998; ZILIO, 1997).
Entretanto, nem tudo é celebração. Mesmo tendo de enfrentar um ambiente cultural bastante retrógrado a rupturas muito ousadas no terreno experimental e artístico, é necessário questionar o triunfalismo hegemônico criado em torno da Semana de Arte Moderna de 1922. Embora tenha iniciado, como afirma Bosi (2013, p. 369), uma fase “especialmente rica de aventuras experimentais tanto no terreno poético como no da ficção”, não existe unanimidade em relação aos seus saldos. Camargos (2007, p. 30) defende, por exemplo, que “se tivesse realmente pretendido representar tudo de novo que se fazia em termos artísticos no país, a Semana de 1922 poderia ser taxada de “retumbante fracasso”. Pois tanto em artes plásticas, quanto em literatura e música, teve uma abrangência que deixou a desejar”. Foi também um evento, em princípio, pouco conhecido e relativamente ignorado pela imprensa. Com raríssimas exceções, a lista de seus participantes se restringiu ao velho clichê Rio-São Paulo, ignorando, naquele momento, o que de relevante ocorria nos demais Estados (CAMARGOS, 2007). Noticiada pelo jornal Correio Paulistano, em 29 de janeiro de 1922, e depois pelo jornal A Gazeta, em 22 de fevereiro do mesmo ano, a imprensa se mostrava dividida e a maior parte das informações acabou sendo divulgada por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Graça Aranha e Menotti Del Picchia.
Mesmo nos anos 1960, quando começou a se estabelecer a sua aceitação coletiva, a Semana de Arte Moderna de 1922 ainda não era o grande tema que despertava o interesse das novas gerações, muito mais preocupadas com os rumos nefastos que o Brasil tomava com a instauração da ditadura civil-militar. Manipulada pelo nacionalismo ufanista dos militares, a grande comemoração viria somente em 1972, criando-se uma espécie de “consenso público” ao redor da sua importância, tornando-a “parte fundamental de uma visão oficial de Estado” (COELHO, 2012, p. 110). Uma questão, porém, se impõe: esse reconhecimento da Semana de Arte Moderna não ficou restrito à propaganda da ditadura, mas manteve, principalmente entre os mais jovens, a sua fonte de insatisfação com a ordem. Vista por esse ângulo, a Semana pode ser uma fonte de iconoclastia que, com idas e vindas, rupturas e continuidades, ainda acende a necessidade de novas atualizações, mais plurais e inclusivas, no cenário artístico e cultural brasileiro. Um dos elementos efetivos para uma compreensão abrangente desse fenômeno é pensar que o país comportou não um “Modernismo”, resultante de um marco fundador que se generalizou monoliticamente, mas “Modernismos”, diversos e heterogêneos, que aos poucos adquiriam cores próprias e definiam propostas que, em maior ou menor medida, dialogavam entre si.
Referências
ALMEIDA, Rômulo Santos de. Oswald de Andrade e Gilberto Freyre: sentidos do “nacional” e do “regional” na construção da brasilidade. Recife: Ed. UFPE, 2020. (Coleção Sociologia).
ANDRADE, Mário de. Arte moderna I: terno idílio. A Gazeta, São Paulo, 3 de fevereiro de 1922, p. 1 (coluna “Notas de Arte”). In: BOAVENTURA, Maria Eugenia (org). 22 por 22: A Semana de Arte Moderna Vista pelos Seus Contemporâneos. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2008.
CAMARGOS, Marcia. 13 a 18 de Fevereiro de 1922: a semana de 22: revolução estética?. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2007.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 11.ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010.
SCHWARTZ, Jorge. Vanguarda e Cosmopolitismo na década de 20: Oliveiro Girondo e Oswald de Andrade. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 1983. (Coleção estudos).
Rômulo Santos de Almeida é Sociólogo e doutorando em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).