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Das minhas conversas com meu avô
Francisco Costa Lima
Difícil essa tarefa de dizer esse adeus, né? Mais difícil para mim, que não tenho nenhum plano de dizer adeus tão cedo, que ainda planejo ter tantas conversas com ele.
Bem, vou lá:
Alguns dias atrás, quando já sabia que a morte do meu avô se aproximava, mas ainda não sabia quando viria, escrevi um poema:
Melancolia # 2 As ondas dependem do vento, mas o rio segue sempre para o Leste.
(Por uma curiosa coincidência, nossos dois oceanos apontam para lá.)
As ondas não dependem do rio, surgem, crescem e morrem.
Uma onda depois da outra, o rio não depende das ondas.
Eu me consolo que o caminho é bonito.
De lá para cá, apesar de ter sido pouco tempo, sinto que aprendi muito, e que já não leio, já não falo o poema que eu mesmo escrevi da mesma forma.
Meu avô era um grande estudioso da Ásia, em particular da China, e, em grande parte por conta dele, eu acabei tomando gosto pelo assunto e estudando uma coisa ou outra de filosofia oriental. Há uns meses, me deparei com um conceito que não consegui digerir muito bem, estudando Taoísmo. Tratava-se de como aquilo que é eterno é também natural, é imutável por natureza. Não são coisas que no Ocidente, com a nossa lógica de progresso, estão necessariamente conectadas, somos mais a favor da eterna mudança para frente, mas até aí tudo bem. O que me deixou sem entender nada foi que, no Tao, a morte não é vista nem como algo que entra no conceito de natural ou eterno.
Confuso, talvez um pouco contraditório para uma mente criada sob o dogma cristão do descanso eterno no reino de Deus, a morte sempre me pareceu parte da natureza, parte do ciclo natural das coisas.
Da última vez que fui visitá-lo, então, em sua casa, aproveitei um momento em que ele estava dormindo para pegar emprestado de sua estante seu Tao Te Ching (Obra maior e fundadora do Taoismo). Numa versão de capa dura, branco, grande, uma edição lindíssima.
O que entendi a partir do seu livro (muito mais completo e profundo do que o pocket que eu tenho e que estava consultando), foi que a questão é que, quando se diz que a morte não faz parte das coisas naturais, não significa que ela é antinatural. Ela está simplesmente fora dessa dicotomia. Nem a morte, nem tão pouco a vida, são naturais.
A metáfora usada então é a seguinte: se o Tao - que se traduz em caminho, verdade, mas que em verdade não se traduz, pois diz daquilo que se experiencia - se o Tao é o Rio, metáfora já consagrada, a vida é uma onda no Rio, ela depende da existência do mundo, da materialidade do mundo para existir, mas ela é alheia a ele, independente.
(Uma visão que diz muito do costume coletivista da tradição Chinesa, que contrasta fortemente com meu livro pocket, uma tradução certamente inspirada na onda new age ocidental que parece apresentar o rio como caminho da vida individual - meu caminho, meu rio, com começo, meio e fim, sendo o fim do rio o fim da vida. A lógica Chinesa coloca o indivíduo como algo muito menor. Não é que a sociedade seja uma junção de homens e mulheres, a lá Thatcher, mas que os homens e as mulheres são uma parte pequena da sociedade).
Eu entendi naquele momento parte da ideia, mas só vim realmente a entender e digerir num nível mais emocional, alguns dias depois que ele faleceu.
Como assim a morte não é eterna? Ora, eu ainda planejo ter muitas conversas com meu avô, mesmo ele estando morto.
O esclarecimento me veio quando passei a pensar na última vez que estive em sua casa.
Quando eu estava na sua casa, lendo um livro seu sobre o taoísmo, eu estava tendo uma conversa com ele, mesmo ele estando dormindo.
Quando eu, com quinze anos, fui ler um Hobsbawm que ele me deu de aniversário, estava conversando com ele, mesmo estando em cidades diferentes. Quando entrei numa espiral/buraco negro na Wikipedia sobre Bhagat Singh e outros comunistas indianos da década de 30 cuja biografia meu avô havia me recomendado anos antes, estou conversando com ele. Quando assisti uma série coreana que ele me recomendou, estava vendo com ele. Toda vez que jogo xadrez com algum amigo meu, estou também jogando xadrez com ele, que me ensinou a jogar e a gostar de jogar xadrez. (E de quem ganhei tão poucas vezes).
Quando paro para apreciar as plantas de uma bonita paisagem, e me lembro da bela casa dele e de Juju, em Aldeia, estou apreciando aquela vista com ele. Quando olho para os olhos marejados da minha mãe, para o sorriso gostoso do meu irmão, para o jeito sem jeito do meu tio, eu vejo um pouquinho dele.
Quando aprecio o meu silêncio, quando me empolgo em explicar algum tema um pouco intelectual demais, quando vou a rua protestar, posso até não estar com ele, mas sei que só sou quem sou e sinto o que sinto porque ele me moldou, porque passei pelos seus silêncios, suas empolgações, suas lutas.
Se me permitem uma última viagem ao oriente, dessa vez ao Budismo, gostaria de trazer uma imagem que acho muito bonita e que me ajuda a entender o que sinto: se chama a Teia de Indra:
A teia de Indra é como uma teia de aranha com orvalho
Uma rede que conecta cada ponto a outro ponto, em cada ponto uma pérola
E cada ponto é um reflexo de toda a rede, em cada pérola dez mil pérolas
E no reflexo da gota tem outra gota que também ela reflete toda a teia e a si mesma.
E que vira assim uma grande corrente do ser, as vidas se encontram pelos fios e se refletem infinitas vezes umas nas outras. __ // __
Eu vou sentir saudades do meu avô, mas eu tenho a tranquilidade de saber que meu avô reflete em mim, e que eu, quando reflito nos outros, reflito também nos outros o meu avô, e que ainda vamos conversar muito.
Francisco Costa Lima Neto de Marcos Ferreira da Costa Lima
Texto lido na Missa de 7º dia de meu avô.
Francisco Costa Lima é bacharelando em Direito pela UFPE