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Débora Araújo

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Valéria Barbosa

Valéria Barbosa

Débora Araújo Juazeiro do Norte/CE

Pele Cinza

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Quando abriu a porta do quarto que ficava no fundo da casa, Bárbara sentiu o cheiro de mofo e urina que impregnava o cômodo. Hesitou na entrada, perguntando-se novamente se não deveria esperar a filha chegar para ajuda-la. Entretanto, Alice avisara que sairia com os amigos, o que significava que demoraria a voltar.

Adentrou o local, segurando algumas caixas vazias de papelão, uma dentro da outra e as colocou no chão, separadas. Olhou enojada a cama onde a mãe dormira nos últimos três anos. No guarda-roupa, primeiro lugar que escolheu para recolher as coisas, notou que, provavelmente, nem precisaria de todas as caixas que tinha trazido. Eloá tinha poucos pertences e suas roupas se compunham, a maior parte, de camisolas finas e desgastadas. Aquilo não daria nem para doação, pensou, possivelmente virariam pano de chão.

Começou o trabalho de forma automática e rápida. Queria sair daquele lugar fétido o quanto antes, uma vez que mal frequentara aquele lugar com a mãe viva, quem diria com a mesma já enterrada há meses.

Bárbara não parecia lembrar que um dia ela e a senhora que habitara aquele cômodo foram muito amigas, tal qual ela era com sua filha. Mesmo quando ela mudou-se de cidade e começou a construir a sua própria família, elas continuaram mantendo contato, mas aí veio a doença. A maldita doença.

Eloá foi a diversos médicos, mas nenhum sabia dizer o que aquilo era e nem mesmo sabiam como fazer com que as manchas acinzentadas com líquido viscoso escorrendo parassem de aparecer pelo seu corpo, deixando a mulher cada vez mais fraca e demente, até o ponto em que precisou morar com a filha.

O aspecto da mãe era para Bárbara algo asqueroso. As manchas já invadiam quase toda a extensão da pele, inclusive o couro cabeludo e o líquido estava sempre manchando roupas e colchas da cama e pingando no chão. Colocara a mãe num minúsculo quartinho no quintal da casa e contratara uma enfermeira para cuidar dela durante o dia. A noite era deixada uma grande quantidade de comida e uma garrafa de água ao lado da cama, junto com um penico para que ninguém precisasse ir até lá ajudá-la.

Alice, às vezes, ia conversar com a vó, tinha paciência em entender suas balbuciações e perguntava a mãe o porquê de não ir vê-la. — Ela sente sua falta — dizia.

Contudo, Bárbara não achava aquilo possível, visto que a genitora mal se lembrava de quem era. A noite era atormentada por pesadelos terríveis. Sonhava que era velada por um monstro de cor cinza enrugada, com pouquíssimos fios

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longos na cabeça, e uma poça de um líquido fétido e transparente ao seu redor. Dentro daquele delírio noturno, acordava com a substância pingando em seu rosto e a face daquilo a poucos centímetros dela. Despertava de madrugada e certificava-se que a porta que dava para o quintal estava de fato fechada. Duvidava que sua mãe tivesse forças para sair da cama sozinha, mas não queria arriscar que o sonho se tornasse realidade.

Quando, por fim, Eloá morreu, foi tomada por um sentimento de alívio, há muito destituído de qualquer sensação de culpa. Apesar de nos primeiros meses, sempre rejeitar a ideia de que gostaria que a mãe se fosse e deixasse de ser um fardo, findo os três anos aquele pensamento já não existia.

Nunca mais ter que ouvir o mastigado lento quando ia para o quintal, porque realmente era necessário e a enfermeira deixara a porta aberta, ou o arrastar dos pés. Nunca mais ter que colocar na máquina de lavar, tecidos com aquelas manchas tenebrosas e fedidas. E o mais importante, nunca mais correr o risco de olhar para aquela figura disforme.

Embora não tivesse passado tanto tempo empacotando as coisas, ao terminar, Bárbara se sentiu um pouco tonta e enjoada. Talvez fosse aquele cheiro que ela não conseguia se acostumar ou as lembranças da mãe que vivera ali. Levou as caixas para dentro e quando saiu pela última vez, deu uma olhada no local, decidida de que mandaria descer a abaixo todo o cômodo. Faria uma horta no lugar, quem sabe.

Tomou um banho e deitou-se ainda com o mal-estar, esperando que quando acordasse, ele já tivesse passado.

Às onze da noite, Alice chegou em casa e viu que a mãe já tinha empacotado as coisas. Meneou a cabeça, com reprovação. “Eu disse a ela que amanhã faríamos isso juntas”, pensou, mas de forma carinhosa pela teimosia constante da mãe.

Foi ao quarto de Bárbara lhe dar um beijo de boa noite, porém ao abrir a porta estancou aterrorizada. A mulher dormia de lado e dali onde Alice estava, podia ver de perto os pés descalços da mãe e em um deles havia uma mancha acinzentada, onde um líquido viscoso escorria.

Deu meia-volta e fechou a porta, pensando: “Talvez seja hora de mamãe se mudar para o quarto dos fundos”.

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