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Fernanda Vieira
Fernanda Vieira Boston/MA – Estados Unidos
O Manual de docilidade de Clarissa Passos
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O relógio, o quarto, a sala, a poeira fina sobre os móveis, o passarinho que canta de manhã, a cigarra que anuncia outro dia de sol, o trovão da chuva, o sorriso no apartamento do lado, as crianças que correm por motivo nenhum, os adultos que correm o tempo todo. Tudo fere a sensibilidade de Clarissa. Ela nunca soube bem quando começou, mas acha que foi quando quis que a mãe morresse por não a deixar brincar por mais tempo. Por que você não morre, sua inútil? Por que não morreu quando eu nasci? Recriminou o pensamento tão rápido que seu coração pulou uma batida e meia. Era como se tivesse sentido um formigamento na cabeça e um sorriso suprimido junto com o pensamento perverso. Ali, sua sentença fora marcada. Clarissa é moça boa, foi menina estudiosa, obediente e doce. Hoje, dizem moça ponderada. Age suavemente, fala pausadamente, olhar morno, gestos pequenos sempre muito junto ao corpo. O abismo em que caminha é solitário e cotidiano. Clarissa pensa e imagina coisas terríveis, que suprime logo correndo. As mãos suadas, a boca apertada em um sorriso proibido, o coração acelerado. Esse jogo alimenta alguma coisa que a consome desde a infância. Devorando por dentro como que chupasse a vida pelas pontas dos dedos, como uma sopa em um canudo. Os ossos já aparecem sob a blusa de algodão verde claro com renda inglesa que a tia deu no aniversário. Adorável. Ela odiou a blusa, odiava a tia, queria cortar tudo na tesoura. Cortarcortarcortar. A blusa e ainda mais a tia. Cortarcortarcortar. NÃO! NÃO! NÃO! Sorria nervosa agradecendo o presente tão querido e por dentro uma luta intensa sem vencedores. A tia está bem, obrigada. "Clarissa, minha menina, você está muito magra." Clarissa às vezes não sabe distinguir os limites das coisas. Se é sonho ou se é verdade, o inexplicável fica sem ser questionado. A mancha roxa na perna. A dor muscular no braço direito. As pequenas
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manchinhas de terra na barra do vestido novo. O arranhão no braço esquerdo que ela escondeu com a bata amarelinha para evitar a pergunta para qual ela não tinha bem uma resposta. “Essa menina é muito frágil, fica marcada com qualquer coisa e nem sabe onde se machuca.” A sandália de couro ficou com uma mancha engraçada de alguma coisa meio gosmenta. Eu nem sei como. O cachorro do vizinho sumiu, aquela peste minúscula que latia incessantemente atrás dela quando saía porta afora. Sumiu. Clarissa sorria aliviada, mesmo quando espalhou os cartazes pela vizinhança. Ele não ia voltar. Mas Clarissa não se lembra como poderia saber disso. Às vezes Clarissa ri de nervoso. Uma risadinha pequena, guardada para si. “Essa menina é uma flor”. Ela aperta as mãos caminhando pelo quarto de noite. Os pensamentos inundando o quarto até que ela não pode respirar. Submersa, por dentro ela grita, mas a boca aberta a faz afogar. Clarissa fecha os olhos, prende a respiração e se contrai até que o quarto pare de girar e os pensamentos cessem de inundar. Ninguém entende seus desmaios. O médico disse que poderia ser uma anemia. O psiquiatra não encontrou problemas na doçura frágil dessa moça quase menina. Clarissa matou os pais três vezes esse mês e de três formas diferentes. Quando a prima caiu da escada, Clarissa demorou para chamar socorro. Dizem que foi choque. Clarissa também acha que foi choque. Foi uma felicidade tão genuína que ela arrancou os cabelos da nuca naquela noite, enquanto brigava com o sorriso que teimava em marcar a memória. Ela não sabe o nome do demônio que mora dentro dela, mas ela se alimenta cada dia com mais fome. Clarissa não consegue tirar da cabeça qualquer filme de terror. “Ela não gosta, Carlos. Respeita a menina. Ela se impressiona”. E muito. Na quarta-feira passada ela roeu as unhas até sangrarem, não conseguia tirar uma cena da cabeça. Andava pelo quarto, batia palmas de susto, murmurava baixinho coisas impronunciáveis. Mudava os personagens, mudava o cenário, mas permanecia a cena. Ninguém sabe a guerra de Clarissa. Deitada em seu quarto, no silêncio da sua privacidade fabricada, Clarissa trava uma guerra que já perdeu. Naquele dia da infância, quando queria matar a mãe. Essa megera patética. AAAAAAAAA Calma! Um, dois, AAAAAAAA silêncio! Clarissa
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mexe os olhos, mas a boca é uma linha firme por onde não sai nada. A rezadeira já benzeu, a novena já foi repetida duas vezes, a mãe já acendeu vela e a prima do interior já pediu a graça por essa menina. Clarissa Passos está sendo consumida por uma doença que médico nenhum consegue diagnosticar e padre nenhum consegue combater. Os sonhos inflamam o corpo macilento da meninamoça-mulher e a consomem para dentro. Ela se lembra como os seios se arrepiaram e o corpo respondeu com força com a “pobre moça que caiu nos trilhos” e a menina viu a foto na banca de jornal, naquele pasquim sanguinolento. Ela tenta não olhar, mas os olhos são teimosos. “Suas olheiras estão muito fundas, menina”. E sua língua está grande demais, desgraçada. Clarissa ouviu no rádio do vizinho sobre menino eletrocutado na escola. Pobre menino. Pensava no corpo convulsionante enquanto o seu pulsava ao se tocar na intimidade das suas cobertas. “Mas o médico não resolve o problema dessa menina?” Faz três dias que Clarissa não fala, não sai da cama, não fecha os olhos. Catatônica, choque, coma. Ninguém acerta ao certo que Clarissa está sendo devorada, consumida por dentro. Três dias que ela não apaga da memória, do corpo, da alma, os gritos daquele garoto dos Braga. “Dizem que ele fugiu de casa com uma namorada de fora”. Clarissa acha que não. Sabe que NÃO. Se recusa a fechar os olhos, se recusa a abrir a boca, seu corpo trancado e a mente em total desmedida. Ele não vai voltar também. Que nem o mendigo da rua de cima. Ou a mulher do caldo de cana do quarteirão da escola. Ou a menina da turma de canto. O vendedor de cocada e pamonha que passava aos gritos na hora da TV. O carteiro. A diarista dos Amoedo da rua de baixo. O florista, que deixou o quiosque abandonado, coitado. O filho do dono da banca de jornal e suas investidas medíocres. A irritante Susana que tirava ótimas notas em tudo e era boa em tudo. Quase tudo. Ela era muito lenta. O padrasto daquela menina da turma da tarde. Qual era o nome dele? Clarissa grita por dentro. Consumida pelo demônio que a penetrou pelos poros na infância. O inferno são os outros. www.ikamiaba.com.br