LiteraLivre Vl. 4 - nº 23 – Set./Out. de 2020
Fernanda Vieira Boston/MA – Estados Unidos
O Manual de docilidade de Clarissa Passos O relógio, o quarto, a sala, a poeira fina sobre os móveis, o passarinho que canta de manhã, a cigarra que anuncia outro dia de sol, o trovão da chuva, o sorriso no apartamento do lado, as crianças que correm por motivo nenhum, os adultos que correm o tempo todo. Tudo fere a sensibilidade de Clarissa. Ela nunca soube bem quando começou, mas acha que foi quando quis que a mãe morresse por não a deixar brincar por mais tempo. Por que você não morre, sua inútil? Por que não morreu quando eu nasci? Recriminou o pensamento tão rápido que seu coração pulou uma batida e meia. Era como se tivesse sentido um formigamento na cabeça e um sorriso suprimido junto com o pensamento perverso. Ali, sua sentença fora marcada. Clarissa é moça boa, foi menina estudiosa, obediente e doce. Hoje, dizem moça ponderada. Age suavemente, fala pausadamente, olhar morno, gestos pequenos sempre muito junto ao corpo. O abismo em que caminha é solitário e cotidiano. Clarissa pensa e imagina coisas terríveis, que suprime logo correndo. As mãos suadas, a boca apertada em um sorriso proibido, o coração acelerado. Esse jogo alimenta alguma coisa que a consome desde a infância. Devorando por dentro como que chupasse a vida pelas pontas dos dedos, como uma sopa em um canudo. Os ossos já aparecem sob a blusa de algodão verde claro com renda inglesa que a tia deu no aniversário. Adorável. Ela odiou a blusa, odiava a tia, queria cortar tudo na tesoura. Cortarcortarcortar. A blusa e ainda mais a tia. Cortarcortarcortar. NÃO! NÃO! NÃO! Sorria nervosa agradecendo o presente tão querido e por dentro uma luta intensa sem vencedores. A tia está bem, obrigada. "Clarissa, minha menina, você está muito magra." Clarissa às vezes não sabe distinguir os limites das coisas. Se é sonho ou se é verdade, o inexplicável fica sem ser questionado. A mancha roxa na perna. A dor muscular no braço direito. As pequenas
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