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Jeremias Reis Comaru

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Valéria Barbosa

Valéria Barbosa

Jeremias Reis Comaru Fortaleza/CE

Fim

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Olhei através do vidro e percebi que já era noite. De que adiantaria eu me levantar? Certamente, o que encontraria seriam um par de almas penadas e um ou outro vigia dormindo. Então, fiquei tranquilo por alguns instantes, voltando a sobrepor as mãos unidas ao peito. Que péssimo costume!

Porém, sobreveio uma fome mortal. Não me lembrava da última refeição. Tentei, sem sucesso, encontrar algum sabor na língua; vinho ou carne talvez. Era muito provável que meus dentes tivessem sido escovados. Para que eu pagava aqueles inúteis?

Tirei o velho relógio de bolso para ver as horas e fiquei feliz por ouvir aquele ruído tão exato quanto monótono. Procurei um resto de luar após a passagem das nuvens. Devia estar uma noite ou madrugada bem agradável. Quando consegui descobrir a posição correta dos ponteiros nos algarismos romanos caligráficos do meu magnífico suíço de algibeira, dei-me conta das vinte e seis horas de jejum e que meu problema estava cada vez mais grave. Depois de quase morrer cremado, morrer de fome ou sede era quase um privilégio.

Quando eu era mais novo, levava tudo isso na brincadeira, matando de susto as pessoas quando aparecia. Só minha mãe mantinha as esperanças. Porém, com o tempo, minha estranha característica acentuou-se.

No meu primeiro enterro, aos quinze anos, houve uma grande comoção na cidade, pois todos deram como certa minha ida definitiva para a terra dos pés juntos. Minha mãe, incrédula, foi me visitar no dia seguinte e me resgatou. Do mesmo modo, a desgraça repetiu-se outras três vezes.

Já adulto, comprei um cão de guarda de faro apurado. Jack era um pastor belga mallinois, o mais inteligente que conheci. Ele me livrou de muitos enterros

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nos últimos anos, pois era o único capaz de confirmar que eu estava vivo. O que teria acontecido com ele? Sua ausência era minha única certeza de que havia algo de errado desta vez.

Decidi sair do caixão. Conforme minhas instruções, a tampa deveria ser leve e de fácil manejo. De fato, joguei-a para direita com facilidade. Jack estava no mausoléu ao meu lado. Com o ruído e a movimentação, deveria ter reagido. Aliás, por que estaria ali? Percebi que não se movia. Estava morto. Quanta insensatez! Eu nunca permitiria enterrar um cachorro no sepulcro da família.

Desvencilhei-me de todas aquelas flores que me cobriam e saltei para fora do caixão. Melhor não o tivesse feito. Descobri da pior forma que já não tinha meus dois pés. Que diabos aconteceu comigo? Quem matou meu cão? O desespero tomou conta de mim. Pela primeira vez, eu experimentava uma sensação de morte real.

Uma lanterna solitária aproximou-se como uma lentidão interminável. Decidi gritar para acelerar os passos de quem eu suponha que fosse o vigilante. Quando o rosto juvenil de minha mãe apareceu diante das grades do mausoléu, tomei um grande susto. Ela sequer tinha morrido. Como estava diante de mim daquela forma?

Julguei estar delirando. Finalmente, aquela história de morrer tantas vezes sem nunca ter morrido de fato acabou afetando meu cérebro. Deitei-me no chão e fechei os olhos. A escuridão tornou-se luz.

Ainda tive a chance de olhar para a carcaça destroçada de Jack à beira da estrada e para os pés calçados com os meus tênis depositados ao lado do meu cadáver inerte. O motorista da camionete não sabia em que planeta deixara seu último copo de uísque. O saco negro se fechou sobre mim e decidi que aquela seria a última vez. A nuvem voltou a encobrir o luar. Guardei o relógio no bolso e morri.

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