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Mauro Vitale

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Valéria Barbosa

Valéria Barbosa

Mauro Vitale Itatiba/SP

O mundo do alto da sua cabeça

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Sinto saudade de você velho companheiro. Do tempo em que estávamos juntos e Eu era o seu confidente. Você se lembra? Quando você acordava de madrugada exaltado, procurando um papel e uma caneta para poder anotar um novo poema que chegara em sonho? Eu estava lá para vê-lo trabalhar enlouquecidamente até o sol raiar. E então você lia a sua mais nova canção para mim. Você, com a sua entonação grave, esmiuçava todos os pormenores de uma noite de amor que nunca teve. Ondas sonoras me invadiam e tomavam conta de todo o meu ser. E Eu, o seu primeiro ouvinte e maior admirador, contemplava estasiado mais uma preciosidade saída da sua cabeça tempestuosa.

Sou grato a você que me apresentou o mundo. Por cada conhecimento que alcancei estando ao seu lado. Eu carrego na lembrança a imagem do nosso lar, onde talvez você agora esteja sonhando com um novo poema de amor que nunca experimentará. Eu fecho os olhos e caminhamos pelo quarto novamente. Revejo as paredes verdes, a janela marrom de madeira que vivia permanentemente fechada, a cama caramelo e manca que vergava com o seu peso ao se deitar. Me lembro de cada móvel, de cada teia, de cada nódoa no teto. Dos azulejos da cozinha amarelados pela gordura das suas intermináveis frituras. E quase sinto o cheiro da gordura velha misturado com o acre das garrafas de bebidas largadas e da fumaça do cigarro que impregnava o ambiente. O seu cheiro. Sentia-o nos seus cabelos ensebados e na sua barba sempre por fazer.

Mas veio aquele dia amargo e nossa história se desfez. Na ocasião Eu sentia que algo estava prestes a acontecer. Não dei muita atenção para esse sentimento e segui tocando a vida. Lembro que você tomou banho e vestiu as mesmas roupas puídas de sempre. A velha camisa xadrez vermelha, uma caça jeans e o paletó marrom já bastante gasto nos cotovelos. Você estava alucinado, colocou uma, duas, três taturanas para cheirar. Guardou a cocaína junto com um pequeno espelho e um pedaço de canudo de plástico no bolso do paletó e saímos. Do nosso pequeno apartamento no vale do Anhangabaú seguimos em direção a rua Augusta.

Chegando na baixa Augusta paramos num boteco onde você se serviu de cerveja e cachaça e fomos para fora fumar. Enquanto acendia o cigarro Eu

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admirava os neons dos prostíbulos e casas noturnas iluminando a cidade. Acompanhava as mulheres seminuas se equilibrando em botas de salto alto na caça por gordas carteiras. O ruído da cidade me impressionava. O barulho das buzinas dos automóveis. Jovens sorvendo cervejas e conversando sobre o último filme do Tarantino que tinham acabado de assistir. Um casal de velhos bebericando cachaça e comendo pururucas enquanto ele declamava para ela um poema de amor meloso que fizera em sua homenagem. O barulho dos saltos das botas batendo no asfalto. Uma sinfonia de sons para contemplar. E senti que você também se contagiava e era raro você superar o estado de consternação. Eu me senti feliz por você.

De tempos em tempos íamos ao banheiro, mais um teco para harmonizar com a cerveja. Você estava radiante. O grande poeta. O maldito dos malditos. Declamando em alto e bom som para os bêbados da rua a triste história da sua vida: já faz alguns anos que esses putos me roubam! Estão baixando os meus livros da internet os pilantras! Quanto dinheiro já não me roubaram? Eles dizem que a poesia pertence ao mundo, mas como ficam os poetas? Por acaso não precisamos de comida? Não temos contas pra pagar? O que esperam que eu faça da vida? Que venda palestras motivacionais para novos escritores?

Enquanto você se entregava as suas divagações Eu caminhei sobre a parte lisa da sua cabeça. Queria sentir o vento da noite de outono bater em meu exoesqueleto. Quando percebi estava entre os seus dedos indicador e polegar e fui lançado para voar como poeira. Dançando no vento da madrugada fui pousar no musgo da calçada. Foi assim que o seu mundo desapareceu da minha história e me vi entregue a própria sorte no infinito dessa cidade de concreto. Um cemitério grande demais para um piolho insignificante.

Blog Pequeno inventário de delírios cotidianos: https://obolor.blogspot.com/

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