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David Leite
David Leite O pequeno coletor de destroços
U m co n to s o b re o m un do da l ua
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O domo cristalino reflete a poupada luz do sol como uma gigantesca gema jogada displicentemente no arenoso solo lunar. Debaixo do escudo de vidro, os afortunados habitantes do lugar, protegidos das intempéries do satélite, transitavam entre as vielas e estruturas iluminadas, alheios, alegres, desfrutando do ambiente artificial criado para eles. Lá fora, o respirador crepita mais uma vez. Um pequeno sinal sonoro indica que o oxigênio estava em nível perigosamente baixo. O garoto estapeia o mostrador, e as luzes voltam ao normal, da única que emitia um vermelho alarmante para quatro brilhantes luzes verdes. Até então não tinha conseguido consertar aquilo. Temia que ao abrir e tentar emendar os fios fosse causado pior estrago, e ainda mais seria difícil encontrar um novo equipamento no meio dos rejeitos e entulhos que vasculhava diariamente, portanto era melhor o costume com o arriscado defeito. Após isso, retorna aos seus afazeres. Do lado de fora do bioma sintético criado para acolher os cidadãos da base lunar, perambula pela área de descarte, procurando algo de valor que pudesse trocar e vender para assim garantir a sobrevivência da mãe e dos irmãos mais novos, estes que ainda não tinham condições de auxilia-lo na empreitada. Aguarda pacientemente próximo da comporta que descarregaria ali mais uma leva de resíduos. Sentado próximo de um dos corredores com vidro que ligavam os vários setores da base, relia pela décima vez uma raridade que encontrou. Um livro. De capa desgastada, pouco se lia de seu título, apenas “Andersen” em filigranas douradas saltava das manchas e rasgos da lombada. Sabia ler pouco, por isso agradava aquele tomo. Histórias curtas, fabulosas e cheias de magia. Ajudava a fugir um tanto do cenário árido e ruinoso em que vivia, as periferias da cidade do domo. Longe das vitrines polidas que separavam a suntuosa urbe do fustigado cenário sem cor, sem vida que era a superfície lunar. Era nos arrabaldes da brilhante cidade protegida que morava e sobrevivia. Ignorado pelos habitantes da missão de população da lua, rebento de uma das várias famílias modestas que foram retiradas do
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terreno terráqueo para erigir a ambiciosa empreitada e agora permaneciam marginais aos benefícios do que ajudaram a construir. Sonhava um dia ter acesso para lá dentro. Levar a mãe e os irmãos para visitar e ver as intensas luzes de cores variadas que enfeitavam cada compartimento da cidadela. Ver de perto as vitrines de lojas, presentear os irmãos com aqueles brinquedos coloridos e brilhantes, leva-los a comer um banquete naquelas mesas de refeitórios climatizados. Respirar com o rosto descoberto daquele capacete abafado. Divaga com o pensamento e esquece-se do livro. Levanta-se e virando-se para a janela atrás de si começa a olhar pelas frestas. Vê lá os cidadãos em sua rotina. Despreocupados, sorridentes, fazendo tudo o que tem sonhado. As faces de alguns mais emburrados o irritam um pouco. Como poderiam estar infelizes com tudo aquilo que tem? Apita novamente o equipamento, acusando a baixa do oxigênio. A luz vermelha acende com um bipe alto. Estapeia o mostrador. Uma vez. Nada. Duas vezes. O vermelho continua a alertar. Uma terceira vez golpeia-o, e a resposta do pequeno display continua alarmante. Desta vez, os níveis de oxigênio estavam realmente abaixo do seguro. Apavorado, começa a correr em direção a seu abrigo. Precisava de outro cilindro para continuar. Larga o saco de pano cheio de sucata, mas não o livro. Começa a correr desengonçadamente, como o traje de proteção permitia, aos saltos desequilibrados, que cobriam metros por vez, devido a pequena gravidade e seguindo paralelo a um dos túneis de vidro de ligação. O mostrador apitava cada vez com mais urgência. Com o fôlego ficando mais e mais entrecortado, olha para o lado do túnel tentando procurar ajuda. Ninguém passava. Já estava sentindo o ar dentro do capacete rarefazer. Corre o quanto pode. Tenta dar ainda mais longos saltos para cobrir melhor a distância. O impulso é longo, com a pouca gravitação, mas ainda assim estava distante de seu abrigo. Pensa em tentar cortar pelo deserto, mas ficaria cada vez mais perdido sem a referência da cidade. Certamente ficaria pelo caminho, no meio do nada. O sinal vermelho parecia não se importar. Bipava mais alto e com intervalos menores, sem qualquer remorso. Exausto, quase asfixiado e confuso, decide parar para tomar fôlego. Para em frente a uma cúpula transparente, uma intersecção entre os túneis. Coloca as duas mãos na vitrine e baixa sua cabeça tentando sorver o pouco ar de dentro do capacete. Uma respirada mais profunda, o faz levantar a cabeça. Via ali, através da vitrine, uma área iluminada com suaves luzes, onde uma família ao redor de uma mesa era atendida por uma garçonete de roupa azul clara. Um anel dourado pairava em sua
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cintura enquanto ela apertava um pequeno dispositivo de tela na mão. Seu rosto, gentil, conversava com alegria com os comensais na mesa. Que respondiam com a mesma alegria retribuindo o sorriso. O menor parecia gargalhar. E lhe era familiar... Seu irmão menor? Com roupas novas e cheias de cores, não o teria reconhecido. Procura olhar os outros rostos ao redor da mesa. Seu outro irmão mais novo. De cabelo cortado, parecia um pequeno adulto. Sua cara sempre foi amarrada, no entanto agora parecia dócil como jamais viu. Sua mãe, de coque e um lindo vestido. Por sinal, um vestido que certa vez viu e desejou presenteá-la, separava os pratos e talheres para os quatro na mesa. E, quase de costas, apenas com parte do perfil exposto, consegue reconhecer ele mesmo ali. Limpo, de roupa cortada, estendia o que parecia ser um daqueles cartões magnéticos para compras, como via usar tantas vezes. Estava feliz como nunca. O bipe cessa. A cena que o comoveu durante os extensos momentos começava a se contornar de sombras, suavemente, fechando suas vistas até restar apenas o pequeno brilho vacilante da lâmpada que enfeitava a mesa. E em outro segundo, nem mais isto...
FIM
david.leite.allnet@gmail.com