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Joaquim Bispo

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Joaquim Bispo Odivelas, Portugal

O c r í t i co de A r te

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Sentada na terceira fila do auditório, Carina bebia as palavras do orador. Para além da assertividade e da articulação do raciocínio, a figura do crítico de Arte impunha-se também pela imagem límpida: um rosto impecavelmente barbeado a harmonizar-se com o crânio rapado. De roupa, a habitual t-shirt negra, sob um casaco igualmente negro. Uma coerência. A frase final — “A Arte é, por isso, a atividade humana que persegue e explica a nossa vontade de divino” — resumia na perfeição o que fora dito.

Quando terminaram as palmas, Carina sentiu que queria aproximar-se dele, com o pretexto de pedir um autógrafo, mas não foi fácil: outras circunstantes também deviam ter sentido apelos de empatia, porque se juntaram várias à volta do palestrante. Por fim, a sua figura esbelta de morena chamou a atenção do mestre, que lhe fez um sinal para avançar. Enquanto ele rabiscava um autógrafo expressivo e esteticamente equilibrado no folheto da palestra, Carina lançou algumas palavras que transmitiam bastante do que sentia: — Professor, adorei ouvi-lo. Os meus pensamentos viajaram por mundos primordiais e inexplorados, num estado de graça tal, como se ouvisse As Quatro Estações de Vivaldi.

Pensou ter-se excedido, quando Delvaux levantou os olhos para ela e foi como se se tivesse feito um grande silêncio. Os olhos dele, negros e brilhantes, transmitiam um misto de ternura e comoção, mas também uma curiosidade alienígena. Fixaramna por um momento, enquanto, impercetivelmente, um sorriso se juntava à ternura do olhar. — Apetece-lhe um café? — soltou Delvaux, num tom de voz doce, mas que não deixava lugar a escusas.

Carina assentiu emocionada e tanto mais embaraçada quanto lhe parecia que o convite excedia em muito as palavras pronunciadas.

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Assim que Delvaux conseguiu livrarse do resto do envolvimento festivo da palestra, sentaram-se no pequeno bar do Centro de Artes. Ele tinha muito para revelar e a curiosidade que Carina manifestou pela sua faceta de pintor, de que ela não desconfiava, levou-a a aceitar um encontro para a semana seguinte no ateliê do crítico.

Agitada, ligou a todas as amigas a contar a experiência surpreendente que tivera e o encontro que prometia ser excitante intelectualmente. O resto se veria. — O Delvaux? O próprio Sandro Delvaux? Uau! Esse tipo é lindo — reagiu Sónia, sem conseguir esconder uma ponta de inveja. — Sabes o que eu lhe disse, a abrir? “Os meus pensamentos viajaram por mundos primordiais e inexplorados.” Eu nem queria acreditar. — Estás muito atiradiça, mulher! Vai-te a ele! — Sónia, ele tem quase cinquenta anos… Eu só me deslumbrei pela cabeça dele — desvalorizou Carina, mentindo com todas as frequências do telemóvel.

Passados uns dias, porém, o entusiasmo expectante foi esmorecendo, à falta do contacto prometido. Duas semanas foi o limite tolerado por Carina. Entre a semi-humilhação e a irritação pela sedução negligenciada, Carina resolveu procurar o crítico e fazer-lhe notar a indelicadeza. “Talvez esteja doente”, pensou, desejando que “antes isso”. Descobrir a morada do ateliê não foi difícil e umas informações cruzadas no Facebook deram-lhe umas pistas das horas em que Delvaux costumava frequentar o local de pintura. No dia seguinte, de tarde, com uma dispensa no escritório para “obrigações legais”, procurou o “desaparecido”.

Delvaux estava bom, aliás, demasiado bom, o que desarmou qualquer resquício de retaliação que Carina ainda mantivesse. Delicado, insinuante, desculpou-se com um apagamento involuntário do número de Carina. O ateliê eram duas assoalhadas na zona da Bica. No “quarto” instalara Delvaux um pequeno escritório onde provavelmente elaborava a parte ensaística do seu trabalho. A “sala”, uma divisão de uns 3x5 m, também ainda com soalho de madeira, era usada como acanhado estúdio. A um lado, encostavam-se dezenas de

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telas, frente a um cavalete que recebia luz da janela, à esquerda. Ao lado desta, um espelho de “corpo inteiro”. A toda a volta da divisão, ao nível dos olhos, uma boa dúzia de autorretratos, vários ainda a manifestar outra estrutura capilar do artista. — Só faz autorretratos, professor? — foi a pergunta mais neutra que Carina conseguiu produzir, estupefacta com tão inesperada galeria. — Não, não! Pinto muitos outros géneros, mas este tem a vantagem de me proporcionar um modelo à mão, a qualquer hora, de graça — asseverou, sorrindo. — Mas só tem aqui autorretratos… — É que estes não se vendem; são para consumo próprio — acentuou Delvaux a ironia, dando uma gargalhada. — São muito interessantes. Parece um álbum fotográfico. Usa-os como outras pessoas usam fotografias na estante ou em cima da cómoda? — Não exatamente. Repare, um autorretrato é também um exercício de autoconhecimento. Por exemplo este — apontou uma imagem abertamente expressionista, ainda com uma frondosa cabeleira negra — mostra o jovem com pouco tempo de Belas-Artes, cheio de vontade de inovar, um pouco revolucionário até. Veja o brilho no olhar aberto e luminoso. O tratamento plástico ilustra na perfeição o meu estado de espírito de então. — E mantém-no aqui desde essa altura? — Sim, ajuda-me a não me esquecer dos sonhos de jovem. Nele, espreito-me nesse tempo, com o olhar a perscrutar a minha imagem no espelho, ou o que dela selecionava. — Em casa deve ter outras imagens nas paredes, não? — lançou Carina, sem ter medido bem o implícito autoconvite que a referência sugeria. — Não; só tenho autorretratos. Minto. Tenho uma moldura-caixa com umas das últimas madeixas de cabelo, enquanto ainda tinha o que cortar — acrescentou em tom vagamente melancólico. — Parece assim um bocadinho narcisístico, não acha? — arriscou. — Sim, talvez. Já me têm acusado disso. Se vissem as pilhas de desenhos a carvão e a sanguínea… —

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sorriu-se. — Como dizia a publicidade: “Se eu não gostar de mim, quem gostará?” Repare, não estou a fazer mais do que um Durer. Já viu aqueles extraordinários autorretratos em que ele se afirma não só belo e próspero, como um virtuoso da pintura? E os mais de cem autorretratos do grande Rembrandt? São leituras psicológicas que o pintor faz de si próprio, tal como as fará Van Gogh mais tarde. A subjetividade acrescenta-se às outras vertentes da pintura.

O entusiasmo tomara conta do discurso de Delvaux, que agora dava uma aula privada e emocionada à jovem admiradora. Ele próprio tinha consciência de que a admiração que provocava nela era o seu alimento. — Um artista é uma espécie de instrumento do divino. Ao capturar-se a si próprio em momentos de criação está perto de captar o processo divino. Veja este — mostrava-se a mirar-se de meio lado, em tronco nu. — É a imagem de alguém — eu — que observa com toda a atenção a atividade do pintor — eu — que o pinta. Este loop provoca uma quase vivência do quadro, mesmo não estando pintado de maneira muito naturalista.

Carina experienciava um misto de deslumbramento pelo brilho teórico de Delvaux, com um mal-estar que radicava na maneira de ele ver o mundo, e que começava a assustá-la. — Deixe-me falar-lhe de Velásquez — prosseguiu o crítico de Arte. — Alguma vez se apercebeu da maneira ardilosa que ele usou para pintar As meninas? Aquilo é um autorretrato disfarçado de cena íntima da corte. Mas quem sobressai mais do que as infantas? Ah, pois é!

Carina já não aguentava. Pediu desculpa por ter de se retirar: «mas tenho de regressar ao escritório». Desceu as escadas do prédio rapidamente, enquanto Delvaux, surpreendido e magoado, a chamava. Mas só um vago eco lhe respondia.

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