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Ricardo Ryo Goto
Ricardo Ryo Goto São Paulo/SP
“Seja a mudança que você quer ver no mundo”- Mahatma Gandhi
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— Aiiii ! - Que foi, Chris ? - correu minha mãe para me ver estatelado no chão. — Escorreguei e rolei escada abaixo. — Machucou ?- ajudando a me levantar. — Não sei, não consigo andar. — Vou chamar seu pai para irmos ao médico.
Lembram-se daquele dia em que eu pedi a meu pai um par de meias e ele emprestou sua meia da sorte ?
Usei-a por uns dias acreditando que realmente me dava sorte. Minha mãe colocou para lavar, deixei de usá-la por um tempo e a maré de azar retornou. No fim, meu pai me explicou que não deveria alimentar essa crença. Pelo sim ou pelo não, voltei a usar e, quando subia a escada para o andar superior, só de meias, escorreguei. — Vamos tirar uma chapa de raios-x –disse o médico que me atendeu
— Espero que não seja grave –comentou meu pai, preocupado com possíveis despesas adicionais. — Estou com dor, mas acho que não quebrou nada.
Voltando com as chapas do pé direito, o doutor nos tranquilizou: — Nada de mais, foi apenas uma luxação. Vamos ter que colocar uma tala para imobilizar, tomar anti-inflamatórios, evitar colocar o pé no chão, deixando-o elevado e evitar molhar. Volta daqui uma semana.
Para alguém que tinha uma rotina movimentada- ir à escola, trabalhar no Doc, fazer tarefas domésticas, pajear de vez em quando meus irmãos, fazer algumas compras, andar de bicicleta, ir ao cinema - ter que ficar em casa durante uma semana por causa da restrição de movimentos ia ser um suplício.
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— Chris, quer algo para comer ? perguntava minha mãe enquanto eu descansava deitado no quarto. — Não mãe, vou esperar o jantar. — Se quiser é só gritar.
Embora o doente, enfermo, inválido ou acidentado passe a ser alvo da atenção dos familiares, ganhando um novo status (o “coitadinho”, “pobrezinho”) e com isso algumas regalias (ser atendido em primeiro lugar, ter prioridade nas escolhas, receber favores que antes lhe eram negados, ouvir palavras gentis e carinhosas, ter relevadas suas falhas e equívocos) a situação lhe é desvantajosa em função das perdas impostas.
Quando meu pai chegou para jantar, mostrou-me, com um largo sorriso, um par de muletas que havia tomado de empréstimo do sr. Omar, que, por sua vez, herdara de um falecido que ele havia enterrado. — Puxa, pai, agora posso me movimentar pela casa. — Mas toma cuidado para não cair de novo. Vai devagar.
Fui logo me apropriando delas e ensaiando uns passos entre o quarto e a sala de jantar. — Chris, se quiser posso arrumar suas coisas no quarto – comentou o Drew. — Posso recolher as roupas sujas e colocar na lavanderia – emendou aTônia. Claro, eu tinha que aceitar o fato de
que:
1-acidentes podem ocorrer com qualquer um, inclusive comigo. 2-gostando ou não, precisava de maior auxílio dos familiares e amigos 3-deveria demonstrar gratidão pela ajuda e favores recebidos, mesmo que soassem um tanto quanto falsos 4-não deveria abusar da boa vontade alheia por conta da situação de vulnerabilidade — Puxa, obrigado pela consideração, quero sim. — Se quiser mais um bife, pode falar, fiz pensando em você -sorriu minha mãe. — Depois te ajudo no banho –completou meu pai.
Diante de toda esta nova situação, tendo menos estímulos externos, já que estava confinado entre as 4 paredes de casa, sem poder olhar a cara da rua, pus-me a vasculhar meu interior, como se fosse um condenado à morte, um doente terminal, um portador de doença incurável, revisitando a memória, lembrando-me das coisas que fazia e que agora estão interditadas (andar, correr, pular, dançar) sentidas com tristeza e nostalgia, como se, de repente, eu tivesse sido excluído da festa da vida.
Para não perder o ano escolar, meus pais pediram ao Greg para que ele viesse
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até minha casa após a aula para me repassar as lições do dia. — Puxa, como eu gostaria de poder ficar uma semana inteira sem ver os professores da Corleone, dormindo até mais tarde, comendo só porcaria , assistindo TV e jogando videogame.
Como ele é filho único e vive com o pai, provavelmente, numa situação idêntica à minha ele seria tratado como um rei. - Olha, Greg, ficar quase o dia todo sozinho confinado em casa é muito monótono, uma hora a gente cansa dos programas da TV, das revistas em quadrinhos, dos livros de aventuras, e até das comidas gostosas feitas especialmente para nós. Dá também uma sensação de inutilidade. Sinto falta de todas as coisas que fazia no dia-a-dia. — Não seja por isso. Peço ao Caruso vir aqui diariamente te dar uma surra. — É, não seria nada mal. Como está se virando sem a minha presença ? — Bom, você não é insubstituível. Ele arrumou um porto-riquenho para servir de saco de pancada.
Depois dessa conversa, recebi inúmeras visitas do pessoal daqui da Bet-Stuy. — Oi carinha que mora logo ali, tem um dólar ? — Ei Chris, você tem que arrumar um atestado médico para eu não descontar os dias em que não está trabalhando na mercearia.
— Olha o catálogo de equipamentos ortopédicos que eu trouxe para você dar uma olhada. Quer uma cadeira de rodas ? – ofereceu-me o Perigo.
Golpe Baixo achou uns jogos de montar e quebra-cabeças nas lixeiras e trouxe para eu passar o tempo.
O sr. Fong veio com alguns biscoitos da sorte dizendo que era para eu comer evitando novos acidentes. Sorte eu teria se não passasse mal com eles, pois estavam todos vencidos.
O sr. Omar veio me consolar com sua frase predileta: “Não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe”.
Tio Mike “juntou a fome com a vontade de comer” para descolar um jantar e me desejar melhoras – Chris, há males que vem para bem. - Traduzindo: meu acidente fez você ganhar uma boca livre.
O Malvo quis me ver também, mas meu pai impediu sua entrada, desconfiado de que pudesse sumir com algum objeto de valor.
A Tasha ficou uns minutinhos me paparicando e dizendo como eu era um “tadinho”, e, no fim, ao ouvir sua avó chamando do lado de fora, deu-me um beijo na bochecha.
A visita que mais me surpreendeu foi a da srta. Morello. — Chris, ainda bem que foi só uma luxação no pé. Imagine você
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completamente inválido, tendo que ser sustentado pelos seus pais que não conseguem parar no emprego junto com 2 irmãos desajustados que ficam pulando de escola em escola.
Traduzindo: sare logo para não cair na rua da amargura.
Depois de ser agraciado com a atenção dos moradores do bairro, a semana de convalescença passou mais tranquila, retornei ao médico que me livrou da tala e recomendou cuidado nos próximos dias. — Ei Mané, só vou poupar o seu pé direito porque ainda está se recuperando –deu-me as boas vindas o Caruso depois de derrubar meus livros pelo chão.
Agradeci ao Greg por ter espalhado pra todo mundo que eu estava “de molho”, fazendo com que me visitassem. - Você tem razão em dizer que não sou insubstituível. Os outros é que se tornaram imprescindíveis para mim durante minha “quarentena”. Aprendi que nem tudo que parece ruim é de fato ruim. Depende da forma como vemos as coisas. — Como você viu as coisas ? — Bom, ninguém teve culpa por eu ter me acidentado, por isso ninguém tinha obrigação de me beneficiar em nada. Todo mundo que me visitou foi bastante gentil, mas ninguém deixou de ser como é, ou seja, todo mundo se mostrou como é em sua essência. Por isso eu concluí que quando a gente se vê sozinho e em dificuldades, não pode exigir que os demais sejam melhores conosco. — Você descobriu sua essência ? — Acho que sim. Não sou melhor nem pior que ninguém. Agradeço ter passado pelo acidente, para me dar essa lição de humildade. — Pois é,todo mundo odeia o Chris... à sua maneira.