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Chico Milla
Chico Milla
Fortaleza/CE
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Apoptose
“A man who doesn't detest a bad government is a fool” - Ursula K. Le guin
Quando o Apocalipse Zumbi começou, ninguém moveu um dedo sequer.
A mãe acordou no mesmo horário de sempre, com uma serenidade de invejar e dar nos nervos. Seguiu o script de todos os dias até aquele, que poderia ser o último; coçou os olhos enquanto passava em frente à Santa Ceia no corredor, ajeitou o moletom, desceu as escadas e fez café para toda a família. Óbvio, tudo no piloto automático, pelo menos até o instante em que acendeu a luz do celular e sentiu os olhos doerem.
Abriu o Instagram, ignorou os grupos de família no WhatsApp e desceu o feed do Twitter sem ler nada por inteiro. Apagou, ignorou e marcou como lidas todas as mensagens enviadas pelo Governo Estadual sobre uma catástrofe ambiental (mais especificamente, fúngica) que havia estourado e que todos deveriam se esconder e tentar, a ferro e fogo, sobreviver até que novas instruções fossem dadas.
Apática, a mãe pôs o café na garrafa térmica e encheu sua caneca. Três dedos e o resto de leite sem lactose. Já a levava até a boca quando, em um susto repentino, deixou-a escapulir no chão. O barulho de porcelana invadiu seus ouvidos. O motivo do susto? Uma pessoa sendo dilacerada por um zumbi do lado de fora da casa, o sangue sujando o vidro da janela junto dos berros de desespero. Uma garota implorava por ajuda, mas a mãe não fez nada. E até fez: maldisse os cacos no chão da cozinha, pegou uma nova caneca dentro do armário e a encheu de café. Óbvio, três dedos e o resto de leite sem lactose.
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O pai foi o segundo a descer, já de terno, sorriso amarelo e o cabelo lambido com SBY, um gel tão caro quanto duradouro. Conseguira aquele pote na promoção por cento e oitenta reais. Também seguiu o script; perguntou à esposa se as crianças já tinham acordado (algo que poderia ter conferido, já que também passava em frente aos seus quartos), pôs uma xícara de café, duas colheres de açúcar mascavo e ligou a televisão da cozinha.
Testemunhou algumas fotos de pessoas sendo comidas vivas no metrô e vídeos simultâneos de crianças correndo de zumbis em grandes avenidas. Encarou a âncora do jornal que, aos prantos, não conseguia esconder a vontade de estar com a família em uma crise daquelas proporções. Acompanhou tudo com aqueles olhos de filtro, marcando na cabeça as coisas que não poderia deixar passar. Foi quando viu o diretor do jornal entrar ao vivo, pedir à mulher para se retirar e colocar no lugar um homem jovem e corajoso (ao menos, foi o que o pai supôs).
As crianças desceram enquanto o Presidente fazia um anúncio decretando Estado de Guerra. A garotinha deu bom dia, o adolescente não. A mãe perguntou o que estava acontecendo. O pai pediu silêncio, ouviu a notícia e fez alguma anotação no seu jornal impresso. Na televisão, o Presidente emburrado e de braços cruzados com um dos Ministros do STF do lado. O jurista, apoiado em meias-verdades e meias-palavras, explicava que era cada um por si e Deus por quem fosse religioso. No fim, até desejou sorte aos ateus.
As cenas de tripas fora dos seus corpos e zumbis famintos seguiam como foco das notícias enquanto a filha, menor, falante e com certeza mais esperta, abraçava o pai e perguntava o que tinha de diferente nele. A resposta veio junto de um sorriso largo, de orelha a orelha, se gabando do novo gel para cabelo.
O filho se sentou como sempre se sentava; jogando a mochila em uma cadeira, fazendo barulho com as correntes no pescoço e deixando bem na cara com suas roupas, pretas da cueca à jaqueta, o quanto odiava o mundo e julgava a vida uma completa perda de tempo. Depois, como se não se cansasse da mesma fala toda santa manhã, perguntou se
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ainda tinha achocolatado Lonny na geladeira. A mãe disse que sim.
O marido foi rápido ao avisar que precisava chegar cedo ao serviço e a mãe mais rápida ainda ao entender o recado. Colocou a mesa; tirou da geladeira o suco de laranja e o leite, mas esse com lactose. Depois, foi veloz para que não fosse cobrada pela segunda vez; cortou uma fatia do bolo de cenoura com chocolate e a colocou para a filha, jogou dois achocolatados no colo do garoto, arrumou as bandejas de presunto e mussarela junto da margarina e pegou dois copinhos de iogurte light de frutas vermelhas.
Foi então que perguntou como estavam as notas do filho (que resmungou de pronto que, como sempre, estavam cravadas na média mínima) e quando o marido consertaria a torneira do banheiro de baixo (ele respondeu no susto que ligaria à noite para uma agência que fazia aquele tipo de serviço). Até cogitou perguntar sobre as notícias e novidades do telejornal, mas foi interrompida pelo comentário de que as coisas estavam iguais, paradas. Isso, óbvio, em um tom que deixava nítida a insatisfação e desesperança com a economia.
Com os quatro à mesa comendo e os sons das mastigações preenchendo a falta de assunto, a vida seguia de praxe. Ao que parecia, o caos causado por um fungo invadindo, controlando e destruindo cérebros de milhares de pessoas a cada minuto não conseguiria invadir aquela casa. Óbvio, os muros e cercas-elétricas daquele condomínio já não eram mais obstáculos para os mortos-vivos, porém, as portas eram. Por elas, feitas de um material tão resistente quanto leve, nem tiro passaria. Sem falar no forro à prova de incêndio e invasões, as paredes feitas sobre vigas metálicas e, como se isso tudo não bastasse, uma dispensa enorme com prateleiras lotadas de mantimentos (comida, recicláveis, etc.).
Era, na melhor e pior das hipóteses, um café da manhã com as cores e os cheiros de qualquer outro da semana ou do mês. Se apelasse um pouco para a memória, dos anos.
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