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Clélia Jane Dutra

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Clélia Jane Dutra

Contagem/MG

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Materna

Alguns acreditam ainda hoje, que Deus criou a mulher com o único objetivo de perpetuar a espécie. Para isso, ela teria que ser dotada de uma doçura maior, mais compreensão e ter um sentido a mais. Se durante alguns segundos da sua vida, parar e pensar, você chegará à conclusão de que, a gravidez, só pode ser obra Divina, alguém ter alguém morando dentro de si, sentindo as mesmas coisas, estreitando as relações. Para mim, a mulher nasce ou não com o dom para ser mãe. Como aqueles que têm aptidão para pintar telas, tocar piano ou cantar maravilhosamente. É uma questão de vocação que às vezes percebe-se já na infância.

As mulheres da minha família nasceram com essa vocação. Mesmo a Lúcia, minha irmã, que nunca passou por um parto, é mãe. Maria, minha mãe, olhos azuis, pele curtida pelo sol, sempre foi doce. Poucas vezes perdia a cabeça, rodeada por oito filhos. Nessas horas distribuía uns beliscões torcidos, nada além. Com tantos afazeres, arrumava tempo nos finais de tarde, para contar histórias, sentada no banco de madeira ao lado da cisterna, debaixo do pé de manga. Já naquela época, eu viajava nos contos onde as bruxas tinham verrugas no nariz. Podia até sentir a água cristalina onde a princesa prisioneira ia encher seu pote de barro. Por causa desses momentos preciosos, hoje, sempre que posso, carrego um livro que é seguido pelos olhos e sentidos. A capacidade de infiltrar na história não me abandonou. Ao ler “As Brumas de Avalon”, tinha vontade de comer as maçãs cozidas no creme, preparadas no reino do Rei Arthur.

Kate, minha irmã caçula, apresentou o dom da maternidade ao ganhar a sua primeira boneca. Menina de olhos verdes e sensibilidade à flor da pele chorava e amolecia, ao falarmos que ela tinha uma barata pregada na bundinha (ela tem uma pinta preta, do tamanho de uma azeitona, nesse lugar).

Como nós duas éramos as meninas mais novas da família, brincávamos juntas. A diversão maior era no parquinho que ficava no quintal da frente de nossa casa. Nele, o papai construiu, com madeira, um escorregador e um balanço. Embaixo cobriu com areia, para amortecer as

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inúmeras quedas. Mamãe pintou tudo com tinta azul e verde.

É difícil saber se a proporção das brincadeiras era maior do que a das brigas. Lembro-me de uma vez, em que durante a Semana Santa, no Domingo de Ramos, fui à Capelinha acompanhando a Dinha Rita, mãe da mamãe. Dinha Rita, sempre mansa, era pequena e falava baixinho. Os cabelos grisalhos eram presos em um coque, preso com grampos grandes, meio abertos, um tanto gastos. Usava saias compridas e casaquinhos de mangas com algibeira (bolsos) para carregar os cobres (dinheiro). Dizia que eu era uma pimenta malagueta, enfezada. Mas, me tomava como companhia em seus passeios. Ela morava próximo à nossa casa. A outra avó, Dinha Aurora e a tia Preta, viviam conosco. Quando voltamos da Missa, com os galhos de Palmeiras, me desentendi com a Kate, por um motivo fútil. Empurrei-a de encontro à cristaleira da copa e bati nela com os ramos bentos. Sei que não foi uma “surra santa”.

Durante a infância, tivemos muito tempo para mostrarmos nossas afeições por nossas “filhas”. De um lado eu com minha boneca, Márcia, e do outro ela com seu bebê gordinho, barrigudo de cabelos encaracolados. Não me recordo do nome dele.

Mãe zelosa, a Kate não abandonava a filha para quase nada: no banho, na cama, na mesa e nem quando tínhamos que buscar água para abastecer a casa. A água era um problema. Existia uma cisterna no quintal. Naquela época o fornecimento de água tratada pela Copasa era deficiente. A cisterna supria nossas necessidades. Porém, como nossa casa ficava nos fundos da Avenida Amazonas, em um declive, ao chover muito, a enxurrada descia e caía na cisterna. Não podíamos, então, usar a água do poço. Todos, exceto o Clemir, que era muito pequeno e a Dinha Aurora, mãe do papai, tínhamos que buscar água. O líquido precioso era cedido pela fábrica de laticínios Itambé, a única que possuía poço artesiano.

Para nos abastecermos de água, podíamos seguir dois caminhos que nos levavam à fábrica Itambé. Ou subíamos cerca de cinco quarteirões da Avenida Amazonas e virávamos na esquina da distribuidora de Biscoito Piraquê ou passávamos pelo mato do campinho. Kate, eu e o Cleiton levávamos uma lata de alça, daquelas que servem para acondicionar tinta de parede. A tia Preta, com sua trança negra, carregava uma lata grande, na cabeça, protegida por uma “rodilha” de pano. Ia rebolando, orgulhosa de não

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desperdiçar nenhuma gota, com o vai e vem dos seus quadris.

A Kate e seu bebê iam derramando toda a água pelo “campinho” salpicado de pétalas alaranjadas. Às vezes, colocávamos as latas no chão e prendíamos flores nos cabelos. O Cleiton ria e dizia que o que tinha nascido feio, não tinha jeito de consertar. Com raiva, eu o chamava de “Pão molhado” e a Kate chorava.

Quanto mais a Kate derramava lágrimas, mais o Cleiton se divertia. O menino destilava ciúmes por todos que rodeavam a Kate, desde que o colo da sua mãe foi usurpado por ela. Quando a Kate nasceu, o irmão tinha onze meses incompletos, um bebê ainda. A tia Preta, parecida com índia, assumiu o papel de mãe, para o único filho que teve na vida.

O Cleiton percebeu que a boneca da irmã seria a sua maior fonte de prantos. Nas raras vezes em que encontrava o bebê sozinho, pegava a faca e cortava um dedinho até ficar dependurado, um em cada dia. Quando via, a Kate chorava e fazia tudo para que o dedo não caísse. Em vão. Ao mexer, o dedinho descolava da mão. Nessa hora, por perto sempre estava o irmão mal feitor, dizendo que o bebezinho estava com muita dor. Lembro-me dos olhos verdes da minha irmã, inchados e circundados de vermelho, sofrendo por sua cria. Eu também não sabia que era ele quem decepava os dedinhos. Assim foi, um a um, até que ela ficou apenas com as mãozinhas. Foi um desalento.

O que o Cleiton mais gostava era de pão com manteiga, molhado no café. E de fazer água brotar dos olhos da Kate. Bastava uma oportunidade e o ladino botava seus planos em prática com a cumplicidade do caçulinha, Clemir. Quando era descoberto em flagrante em suas maldades, muitas vezes não podia ser castigado, pois em sua defesa, surgia a tia. Ela carregava-o para o seu quarto. Ali ele permanecia em território que ninguém ousava invadir, até que a poeira baixasse.

O pior das crueldades aconteceu em um dia de São Pedro. O papai sempre fazia uma grande festa. Lembro-me dos preparativos: as bandeirinhas de seda coloridas, os balões de papel dobrado, o amendoim torrado, a canjica desde cedo fumegando no fogão a lenha da Dinha Aurora e da grande fogueira de troncos que arderia por toda a noite.

No dia, todos trabalhavam. Dinha Aurora soprava as casquinhas dos amendoins e fazia paçoca. Papai arrumava os troncos secos em forma de pirâmide no centro do terreiro. Mamãe cozinhava o gengibre para o quentão. As crianças passavam grude nas bandeirinhas e os tios as pregavam em um varal de cores.

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Com tantas tarefas e distração, o Cleiton teve tempo de sobra para sequestrar o bebê da Kate.

Ao perceber o sumiço da filha, que há pouco tempo estava a seus pés, Kate se desesperou. O choro começou de manhã, chegou à tarde, emendou com a festa, foi iluminado pela fogueira e molhou o travesseiro de espuma sobre o colchão de palha seca. No outro dia, ao acordar, o choro retornou com a canjica requentada e o sofrimento tomou proporções que envolveu toda a família, exceto uma pessoa.

Todos procuravam. Talvez alguma criança que ajudou na festa teria levado a boneca para brincar, alguém disse. O Cleiton, então, chegou sério perto da Kate e disse: “Ela morreu. Perdeu os dedos. Estava doente e morreu.” O golpe foi fatal. Nunca pensei que minha irmã tivesse tanta água por dentro. Ficamos perto dela, a Márcia e eu, dando apoio. O Clemir ficou também, com os olhinhos verdes piscando, piscando... até que falou: “O Cleiton enterrou a boneca na areia debaixo do escorregador e do balanço de madeira que o papai fez para brincarmos, eu ajudei.”

O Clemir traiu a confiança do seu “chefe”, pois percebeu que não existe nada maior do que o amor de uma mãe.

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