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Guilherme Luz

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LiteraAmigos

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Guilherme Luz

Rio de Janeiro/RJ

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Opostos pelo vértice

— Quando duas retas são concorrentes, elas formam quatro ângulos, como num “X”. Se olharmos dois a dois, é possível perceber que esses ângulos ou estão lado a lado ou só têm um único ponto de contato, que coincide com o de contato entre as retas. Os ângulos dessa segunda opção que eu falei são chamados de ângulos opostos pelo vértice. Eles são congruentes, ou seja, têm medida igual, embora apontem para lados opostos. Já os ângulos dispostos lado a lado, são conhecidos como adjacentes e são suplementares: somados formam 180º.

Sempre que Nelsinho dava essa aula, ele lembrava de Carlos. Sempre não, mas, pelo menos, de um ano pra cá, quando os dois assumiram o relacionamento.

Ambos eram professores em uma escola estadual. Ele de matemática e o outro de artes. Ele de capricórnio e o outro de câncer. Ele com ascendente em virgem e o outro em peixes. Ele pretendia construir família assim que se tornasse professor universitário e o outro sonhava com isso desde o primeiro beijo. Apesar de serem como os ângulos opostos pelo vértice, tinham uma adjacência, uma suplementariedade, das mais afinadas.

Enquanto ainda eram colegas de trabalho, estavam sempre do mesmo lado nas discussões, nos conselhos. Nos almoços entre professores, geralmente confraternizações que Nelsinho detestava na mesma medida inversa que Carlos amava, concordavam nas discussões políticas, sociais e até em assuntos banais. Um argumentava com dados, estatísticas, resultados de pesquisas e outro mostrava o lado humano das situações, a filosofia, a entrelinha. E assim eram imbatíveis. Ambos eram engraçados, um completava a piada do outro, dando um toque especial que os levava aos 180º. Foi natural, tanta similaridade e tanta oposição não poderiam ser desperdiçadas assim: se apaixonaram. Na razão do matemático, o custobenefício da relação lhe geraria lucros emocionais, sociais e - o mais importante - profissionais, ou seja, estando casado, ele teria mais estabilidade pra enfiar a cara nos livros, pois o concurso para professor substituto da Universidade Federal se aproximava.

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Na utopia do professor de artes, Nelsinho, apesar de pouco expressivo, seja com palavras ou com atitudes, preenchia todos os requisitos: trabalhador e ambicioso, educado e inteligente, caseiro, cozinha bem e, o principal: era tão sujo no sexo quanto seu ateliê ficava após as aulas pras crianças. Eram, como os elementos dos seus signos, terra e água que, aquecidos pelo calor da cama, tornavam-se lama. A turma, quando na aula de Nelsinho, mais parecia um velório: fixadas no quadro e na explicação, as crianças não davam um pio. Já Carlos se irritava com quem não falasse, cantasse, dançasse. Ele entrava nas aulas ordenando que arrastassem todas as cadeiras pros cantos e sentassem como quisessem. Nelsinho odiava dar aulas em horários pós aula de artes. Mas, com a doçura e maleabilidade aquática de Carlos, Nelsinho sedia e recolhia seus chifres de pedra. Por incrível que pareça, tiveram ótima convivência depois que casaram. Ambos respeitavam muito o espaço do outro. A adjacências eram superiores às oposições, portanto pouco brigavam. No entanto, depois de três anos, as oposições começaram a forçar o desequilíbrio do sistema milimetricamente planejado por ambos, cada um do seu jeito. Tanto o artista quanto o matemático eram controladores. A quase psicose de Nelsinho pela vaga na Universidade federal e a “tranquilidade de cigarra” de Carlos transformaram esses ângulos opostos pelo vértice de agudos para obtusos, obtusos até demais. Separaram. Ficaram mais dois anos indo e vindo: sentiam falta das adjacências e das congruências. Mas as oposições se tornavam mais fortes conforte ficavam mais separados. Um dia, há mais de oito meses que o casal não se encontrava, deram de cara no meio do aeroporto de Guarulhos. Nelsinho ia cursar o doutorado no sul de Portugal e Carlos faria um curso de verão no sul da Espanha. A viagem acabou se tornando um sonho: voltaram. Chegando ao Brasil, no final do doutorado de Nelsinho, tentaram morar juntos mais de três vezes. Não adiantava: as oposições gritavam incontestáveis quando passavam todos os dias juntos. Nelsinho não aguentava mais tinta guache espalhada pela casa. Carlos não admitia o outro com a cara enfiada nos livros e sem dar atenção ou jantar à mesa. Só se entendiam mesmo no sexo e, talvez, só isso mesmo ainda os unia, como o único ponto de contato das retas concorrentes.

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Um dia, bom... um dia, dando aula sobre ângulos, finalmente Nelsinho entendeu o que repetia há quase duas décadas. Nesse mesmo dia, em uma exposição, Carlos viu um quadro que o tocou: misturava cores opostas e as separava. Uma acendia ao lado da outra. Longe, entretanto, se apagavam. Resolveram tentar mais uma vez: havia um ponto de congruência e o resto eles precisariam aprender a lidar, afinal, só há oposição se há, de alguma forma, união. Ainda que apenas em um ponto. Foi então que, depois de quase vinte anos lutando contra, casaram-se, ou melhor, aceitaram as amarguras da alteridade. Entraram para a faculdade juntos, por amor pelo estudo: estudaram filosofia. E até ficarem velhinhos, entre números e cores, Carlos foi o melhor canceriano que um capricorniano poderia querer e vice-versa. Quando Nelsinho morreu, aos sessenta e nove anos, teve um ataque súbito de coração, Carlos já havia se aposentado e começava a vender suas obras para exposições. Voltando do enterro, pintou uma tela que chamou de “Opostos pelo vértice”, inspirada nas anotações matemáticas do marido, as quais remexia para intensificar o sentimento de dor, de perda. E que impressionavam pela precisão no traço das retas, círculos e polígonos. Ganhou todos os prêmios daquele ano. Morreu no mesmo dia que o marido, sendo que um ano depois: aneurisma cerebral.

Rio de Janeiro, 29.03.21

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