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Maria Clara Lima

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LiteraAmigos

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Maria Clara Lima

Recife/PE

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A troca

Eles se conheceram numa festa de réveillon. Ela era amiga de uma amiga de uma colega de trabalho dele. Nenhum dos dois estava curtindo o cover de Zeca Pagodinho. Numa mesa de canto, ele bebia o resto da cerveja de outra pessoa e ela tentava abafar o barulho com fones de ouvido. Foi ele quem puxou conversa, reclamando da performance do cantor: muito caricatural. — E o arranjo é uma droga — ela completou, mais alto que o necessário, quando percebeu que ele se dirigia a ela. — Tu não gosta de pagode? Ela arrumou a mecha de cabelo que tinha escapado do coque, preso com um lenço laranja no topo da cabeça. — Eu gosto de new age. Ele respondeu que achava bacana, mesmo sem saber que danado era new age. Não rolou um beijo depois da contagem regressiva, mas rolou uma troca de telefones e, na semana seguinte, um convite para dar uma olhada na coleção de discos dela. Ele viu muito mais do que os discos. Mas só entendeu o verdadeiro sentido da afirmação de que ela gostava de new age no segundo encontro. Não é que ela curtia harpa, órgão, vozes etéreas e ruídos da natureza do jeito que pessoas normais curtem rock, pop ou mpb. Ela era incapaz de fazer qualquer coisa se não estivesse ouvindo Enya. Acordava, trabalhava, estudava, cozinhava, conversava, cagava, trepava com a mesma trilha sonora. Seguia a discografia completa na ordem de lançamento e, quando chegava ao final, voltava para o começo. Em casa, o estéreo da sala ficava ligado o tempo todo. Na rua, ela não tirava os fones de ouvido. A mulher era inteligente, asseada, fazia um ótimo molho madeira além de um maravilhoso boquete, então ele decidiu que valia a pena desculpar a excentricidade dela. Ele também não tinha esquisitices? A mania de lamber a ponta do dedo para virar a página do jornal, o refluxo que o abrigava a abafar um arroto no almoço, a necessidade de mijar duas vezes antes de dormir para garantir que não acordaria de madrugada. Eles se viam nas noites de sábado. No vigésimo encontro, tamborilando o piano de If I could be where you are na coluna vertebral dele, ela disse que morria de saudade quando ele ia embora e sugeriu que morassem juntos. Sentindo-se amado, lisonjeado, ele fez as malas no dia seguinte. E enlouqueceu em setenta e duas horas. Uma coisa era ouvir new age quando eles se encontravam apenas uma vez na semana, parecia até que estavam num filme, com a musiquinha sussurrada em segundo plano. Outra coisa era viver na

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mesma vibração da namorada, sem nunca apertar o botão de pausa, abdicando totalmente do sossego. Ele não sabia que precisava de silêncio até ser privado dele. Aguentou o máximo que pôde, mas explodiu no refrão de Caribbean Blue. Empurrou o mini-system com força de cima da mesa da sala. O modelo Panasonic recém-comprado fez um estrondo ao cair no chão. Ainda assim, a cantilena continuou a tocar até que ele arrancou o fio da tomada. — Eu não quero mais ouvir essa porra de new age nessa casa — ele falou, quando ela apareceu no corredor. — … — Ouviu o que eu disse? Essa porra de new age tá me deixando maluco. — Eu pensei que tu gostava de new age. — Eu gosto — foi a resposta automática. — Mas tu é obcecada. — Não precisava quebrar o aparelho. Ela se aproximou do mini-system e encaixou a tela que tinha soltado do alto-falante por causa da queda. Agachada, segurando o equipamento nos braços como se segura um bebê, ela concordou: — Tá bem. — Tá bem o quê? — Vou parar de ouvir música quando tu estiver em casa. Tu nunca reclamou, eu pensei que tu não ligasse. — É esquisito escutar esse troço o dia todo. Ela cumpriu o que prometeu. Parou de ouvir música na frente dele. E nas costas também, com medo de chateá-lo. O relacionamento prosperou a partir daí. Casaram. Ele ficou orgulhoso por tê-la transformado numa pessoa mais normal. Ela, com o tempo, se acostumou a viver sem música: tinha perdido o new age, mas ganhado um marido e depois dois filhos adoráveis. Era até uma troca justa.

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