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Director: Nelson Lineu | Editor: Eduardo Quive | Maputo, 20 de Julho de 2012 | Ano II | N°39 | E-mail: r.literatas@gmail.com
“Estamos a perder os nossos valores” Entrevista: Alex Dau, escritor moçambicano
Érica Antunes Pereira
As (in)diferenças sociais nas vozes poéticas de Alda Espírito Santo e Noémia de Sousa p.13
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Editori@l A força(da) Mudança
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inalmente é sexta-feira! Na lenda moçambicana sexta-feira é dia do homem, o dia das mulheres ainda está por se instituir, mas há quem diga que é domingo, na Igreja enquanto os homens dormem engolidos pela ressaca. Lendas e lendas, quem o diz? - é o povo - nunca o fulano ou sicrano. A Lenda é mesmo assim, seu autor não é tangível, a autoria é de qualquer um ao mesmo tempo que não é de ninguém – Património da Humanidade. Essas reflexões nos traz o autor de ―Reclusos do Tempo‖, Alex Dau que para além da criatividade sabe ouvir histórias do povo e traduzi-las. Afinal o que o povo conta pode ser um ponto de partida para um conhecimento científico. Alex Dau, reconhecendo esse potencial que herda dos seus tempos em Quelimane, cidade onde nasceu, transformou o que o povo diz, em matéria de leitura não só porque são histórias que mexem com o seu âmago, mas porque teme que a mudança quase que descontrolada e apressada dos tempos tome conta de
Propriedade do Movimento Literário Kuphaluxa Direcção e Redacção Centro Cultural Brasil - Moçambique
Av. 25 de Setembro, N°1728, C. Postal: 1167, Maputo Tel: +258 82 27 17 645 / +258 84 57 78 Tel: +258 82 27 17 645 / +258 84 57 78 117 117 Fax: +258 21 02 05 84 Fax: +258 21 02 05 84 E-mail: r.literatas@gmail.com E-mail: r.literatas@gmail.comz Blogue: literatas.blogs.sapo.mz Blogue: literatas.blogs.sapo.mz
DIRECTOR GERAL Nelson Lineu (nelsonlineu@gmail.com) Cel: +258 82 27 61 184 DIRECTOR COMERCIAL Japone Arijuane (jarijuane@gmail.com) Cel: +258 82 35 63 201 EDITOR Eduardo Quive (eduardoquive@gmail.com) Cel: +258 82 27 17 645 CHEFE DA REDACÇÃO Amosse Mucavele (amosse1987@yahoo.com.br) Cel: +258 82 57 03 750 REPRESENTANTES PROVINCIAIS Dany Wambire - Sofala Lino Sousa Mucuruza - Niassa COLABORADORES FIXOS Pedro Du Bois (Brasil), João Tala - Angola Mauro Brito (Maputo) Izidro Dimande Lopito Feijoó K.-Angola Filinto Elisio-Cabo Verde
tudo. Numa breve incursão pela forma que nasce o escritor em si, buscamos a sua obra, a sua vida a sua sensibilidade para com os factos históricos da Literatura Moçambicana, afinal, estamos perante um jovem que apesar de publicar seu primeiro livro em 2004, caminhou com a história literária nacional desde princípios dos anos 90, momento em que há mais uma mudança ―forçada‖ nas nossas letras, com a Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO) e a Geração Charrua no centro do furacão. Estamos a falar de tempos em que uma outra geração, além dos charuanos, queria seu espaço. As mudanças sempre nos perseguem por mais que sejam conflituosas. Mesmo a lembrar Lucílio Munjate no dia 12 de Julho, durante a mesa redonda sobre de onde vem os escritores de hoje, a história da Literatura Moçambicana, quando se trata de entrada de escritores mais novos, é marcada por uma certa relutância por parte dos que já merecem o título de escritores. O que mais desperta atenção ainda, é o facto de haver pouca cultura de aceitação do outro como seu par e partilhar experiências como tal. Muitas vezes parece que é intenção de quem já subiu um degrau, chutar a quem de baixo ainda vem e sempre que possível, ocupar todos espaços ―vazios‖. Isto pelo menos Alex Dau partilha, aliás, reitera que as barreiras sempre existiram, o que faz-nos ainda, voltar a ideia de Lucílio Manjate: as revistas literárias em Moçambique surgem sempre para responder a uma necessidade pontual dos que estão em volta delas, os novos, os ―acotovelados‖ o que significa que, os Ungulani Ba Ka Khosa, Eduardo White, Marcelo Panguana, Juvenal Bucuane, Pedro Chissano, Armando Artur, e os demais, criaram a Charrua para expor os seus trabalhos. Na mesma sequência, surgiram o Oásis, Lua Nova, curiosamente estas duas revistas, ligadas a AEMO aqui em Maputo e o Xitende, um pouco por fora, na cidade de Xaixai (nos próximos números será publicada uma entrevista com o editor dessa revista). A ideia é sempre a mesma, contornar os percalços dos que já são escritores. Na verdade estamos em momentos em que as mudanças ocorrem sem que as desejemos, mas porque o próprio tempo, já está farto do caranguegismo de que se compõe a nossa história. É esta, portanto, uma entrevista também para contar a história. Verdade ou mentira, o facto é, estamos realmente em tempos de mudanças e porque não só mudam os tempos, os homens também mudam, Gabriel García Marquéz, poderá ter uma aposentadoria antecipada. Muitos outros assuntos marcam este número e a semana em que destacamos a escritora brasileira Conceição Evaristo no nosso ―livro‖ como a personagem principal. De resto só a boa nova de que podemos nos ver e dialogar todos dias. Literatas agora é todos dias em: http://revistaliteratas.blogspot.com . Eduardo Quive eduardoquive@gmail.com
COLABORAM NESTA EDIÇÃO Rosália Diogo-Brasil Fernanda Angius-Portugal COLUNISTA Marcelo Soriano (Brasil) Nelson Lineu - Maputo Victor Eustaquio– Portugal FOTOGRAFIA Arquivo — Kuphaluxa Eduardo Quive ARTE E DESIGN Japone Arijuane PARCEIRO
CINEMA
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Pressupostos para análises de três filmes brasileiros
ENSAIO
Pág. 13
As (in)diferenças sociais nas vozes poéticas de Alda Espírito Santo e Noémia de Sousa
POESIA
Pág. 07
Amosse Mucavele - Moç Rita Dahl - Finlândia Conceição Lima - S.T.P Wislawa SzymborskaPolónia
Lau Siqueira - Brasil
Centro Cultural Brasil—Moçambique
Nuno Júdice - Portugal
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LITERATAS
Destaque
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García Márquez vai parar de escrever
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Prémio Nobel de Literatura Gabriel Garcia Marquez vai parar de escrever devido à doença que lhe apoquenta. O irmão do escritor, “Gabo”, como foi sempre conhecido no seio da família, sofre de demência senil e não vai terminar nem a segunda parte da biografia “Viver Para Contar”. FONTES: Notícias & Público
O escritor colombiano Gabriel García Márquez, de 86 anos, sofre de demência senil, embora ainda conserve o humor, a alegria e o entusiasmo que sempre teve, afirmou o seu irmão Jaime García Márquez. Por causa da doença, Gabo, apelido do prémio Nobel de Literatura, não deve escrever a segunda parte da sua biografia ―Viver para Contar‖, nem nenhuma outra obra. ―Infelizmente, acho que não será possível, mas tomara que esteja errado‖. Num encontro com participantes do programa cultural Ruta Quetzal BBVA, no Museu da Inquisição, na cidade caribenha de Cartagena, o irmão do autor disse que, do ponto de vista físico, ele está bem, embora já tenha alguns conflitos de memória. ―Na nossa família, todos sofremos de demência senil e ele já tem os estragos causados pelo cancro linfático em 1999, que quase o matou. A quimioterapia salvou a sua vida, mas também acabou com muitos neurónios, muitas defesas e células e isso acelerou o processo‖, explicou. No entanto, o irmão de Gabito, nome pelo qual se referiu o tempo todo ao escritor, afirmou que ainda é possível conversar com ele. ―Quando falamos com ele, temos muita preocupação com a sua saúde, mas terminamos profundamente felizes porque ele está vivo‖, acrescentou. Jaime García Márquez explicou que o estado de saúde do seu irmão é uma notícia que, por diferentes razões, mantiveram em relativo segredo, não porque exista algo grave que não possa ser divulgado, ―mas porque se trata da sua vida, e ele sempre tentou protegê-la‖.
―O facto real é que há muitos comentários, alguns estão certos, mas sempre estão cheios de morbidez. Às vezes, dão a sensação de que queriam que ele morresse, como se a sua morte fosse uma grande notícia‖, reclamou.
A demência (ou não) de Gabriel García Márquez O presidente da Fundação de Novo Jornalismo Ibero-Americano, fundada por Gabriel García Márquez, escreveu na sua conta Twitter que o escritor não sofre de demência, confirmando no entanto que tem problemas de memória. A reacção de Jaime Abello surgiu logo depois de o irmão do autor de Cem Anos de Solidão ter falado pela primeira vez em público sobre o seu estado de saúde, que há vários meses tem gerado muitos rumores. Jaime García Márquez disse então que o escritor tinha perdido a memória, tinha sido diagnosticado com demência – um problema recorrente na família – e que, por causa disso, deixaria de escrever. Mas Jaime Abello Banfi escreveu no Twitter que ―Gabo não está demente‖, admitindo, no entanto, que García Márquez tem problemas de memória. ―Envelheceu e esquece-se das coisas, mas ainda posso desfrutar dele como amigo.‖ O presidente da fundação, que é também amigo do escritor, sustentou ainda que ―não há diagnóstico médico de demência‖.
Escritora Cremilda de Lima advoga continuidade na literatura infantil
Brasil quer promover literatura do país na CPLP com US$ 6 mil dólares por projecto
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escritora Cremilda de Lima advogou na passada, terça-feira, em Luanda, que para haver uma continuidade sobre a literatura infantil e novos escritores há a necessidade de existir uma base onde se desenvolvam acções literárias. Em declarações à agência noticiosa, Angola Press, sobre a situação da literatura infantil em Angola, a escritora realçou que, com tais acções, podem estimular talentos que andam a ser perdidos para a escrita, pois escritores de literatura infantil e histórias infantis a muito poucos. Acrescentou que esta escassez de escritores que apostam na literatura infantil também se deve a falta de conhecimento da matéria em questão, por não terem sido feitas reedições de livros autores que tiverem um valor quase imensurável para a literatura que podiam servir de apoio. ―Autores como Rosalina Pombal e Gabriela Antunes, cujos livros deveriam ser reeditados e vendidos pelo país todo, não são reeditados‖, disse. Sugeriu que os encarregados de educação devem actuar como agentes destas actividades, comprando livros, lerem e despertarem em seus filhos o interesse pela leitura, mas de uma forma agradável e não impondo. Segundo a fonte, há uma proposta ao Ministério da Educação, de forma a ser implementado no país, um plano nacional de literatura a nível das escolas em que os alunos serão analisados nas salas de aulas com os professores. ―Os professores vão, dentro deste plano, fazer actividades que permitam verificar se realmente as crianças lêem para que a literatura infantil continue parte exactamente do imaginário das crianças‖, assegurou. Nascida em Luanda, Cremilda de Lima, licenciada em pedagogia pelo ISCED, é professora do ensino primário desde 1977, tem já publicados vários livros, nomeadamente "O tambarino dourado", "Missanga e o sapupo", "O nguiko e as mandiocas", "A kianda e o barquinho de fuxi", "A múcua que bailoçava ao vento", "O maboque mágico", "A velha sanga partida" e "Mussulo uma ilha uma encantada".
Fundação Biblioteca Nacional (FBN) abriu edital para selecção de obras de autores brasileiros que receberão recursos do governo para publicação em outros países de língua portuguesa. O edital está na edição desta segundafeira (9) do Diário Oficial da União. As inscrições gratuitas começam hoje e vão até o dia 30 de Setembro de 2013. O edital se destina a apoiar a publicação de obras lançadas até Dezembro de 2013. Cada projecto seleccionado poderá re ceber apoio financeiro de até US$ 6 mil, equivalente a aproximadamente R$ 12 mil, para custear despesas relacionadas à edição ou à promoção da obra. A selecção faz parte do Programa de Apoio à Publicação de Autores Brasileiros na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Criado pela Fundação Biblioteca Nacional (FBN), vinculada ao Ministério da Cultura, o programa, com vigência até Dezembro de 2020, apoia propostas no âmbito da literatura e de humanidades, especialmente os seguintes géneros: romance, conto, poesia, crónica, infantil ou juvenil, teatro, obra de referência, ensaio literário, ensaio de ciências sociais, ensaio histórico, ensaio de vulgarização científica e antologias de poemas e contos, ao todo ou em parte. "O apoio poderá ser atribuído a editoras com projectos de publicações inéditas ou reedições de obras já publicadas no país e que estejam esgotadas e fora do mercado há pelo menos três anos. Não serão aceitas inscrições para publicação de obras inéditas no Brasil", diz o edital. As informações são da ABr.
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Livros e Leitores
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John Bella lança "O Regresso da Rainha Njinga"
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escritor angolano Jorge Marques Bela “John Bella” fará o lançamento do segundo volume do seu romance ―o regresso da Rainha Njinga‖, em Dezembro deste ano, por ocasião do 349º aniversário da morte da soberana do império Ngola. De acordo com o escritor, que avançou o facto esta semana à Angop, o lançamento oficial do livro vai acontecer em Luanda e posteriormente será apresentado em Portugal, país onde está a ser preparada a referida obra pela Editora portuguesa ―O cão que lê‖. O livro, segundo o autor, comportará mais de 300 páginas que retratam aspectos sobre a soberana do reino do Ngola e deverá chegar a Angola em número de tiragem não revelado no próximo mês de Agosto. O primeiro volume do romance sobre a rainha, de 23 páginas, de acordo com John Bella, intitula-se ―os primeiros passos da Rainha Njinga‖ e foi editado em Novembro de 2011. Njinga Mbande, tida como maior símbolo da resistência armada contra a ocupação portuguesa, nasceu em meados de 1582 e faleceu a 17 de Dezembro de 1663, sem, no entanto, ter sido capturada ou morta como foi intenção das mais altas patentes militares portuguesas da época esclavagista, ante uma longa e impiedosa perseguição a que a rainha foi submetida. John Bella retrata neste romance estes e outros aspectos que nortearam a vida da rainha Njinga Mbande, com o objectivo de divulgar e levar ao conhecimento das novas gerações a imponência dessa que foi a soberana do reino do Ngola (Angola), bem como contribuir no crescimento da história. Segundo o autor, para a compilação dos dados recorreu-se ao estudo e contacto com investigadores, tendo sido apurado que para a reconstituição do Império Ngola, quase já sob domínio político-militar português, Njinga Mbande teve que fazer alianças com os africanos e holandeses para uma luta contra a escravidão do seu povo.
―Com este livro aspiro procurar encontrar, analisar e posteriormente fazer entender as causas deste ou daquele procedimento, quer positivo ou aparentemente negativo, de Mwene Njinga a Mbande sobre os acontecimentos de Zanga kya Ndanji, Kuwapolo, Kindonga, Kyambata, Kala a Ndula, Samba a Lukala, Mbanza e Makaria a Matamba, Mapungu a Ndongo, Kakulu ka Hangu, Kakulu ka Basa, Kasanji Kula a Muxitu, Kasanji Kula a Xingu, Kasanji ka Kinguri, entre outras localidades do reindo do Ngola no período de 1623 a 1630‖, sustentou. John Bella começou a escrever aos 12 anos de idade e ingressou na Brigada Jovem de Literatura em 1984. Em 1987 frequentou um curso de literatura brasileira na União dos Escritores Angolanos, em Luanda. Em 1995 publicou o seu primeiro livro de poemas intitulado ―Água da vida‖ e até 2012, escreveu outras obras como ―Panelas cozinharam madrugadas‖, ―As orelhas do coelho Hélio‖, ―Nzamba o rei sou eu‖ e ―Estes dois são Cão e Gato‖. Fez a apresentação este mês, do seu mais recente livro infantil ―As lágrimas do Reisol‖, inserida no âmbito do projecto ―Jardim do livro infantil‖, decorrido de 29 de Junho último a 1 Julho no país, sob promoção do ministério da cultura. Angola Press
A máquina de fazer espanhóis romance alfaguara, 2010. décima edição. Autor: Valter Hugo Mãe- Portugal Fonte: http://www.valterhugomae.com
U
m dos romances de maior sucesso no ano de 2010 em Portugal, consensualmente elogiado pela crítica. no país dos silvas poucos serão os que escapam a pensamentos paradoxais de profundo amor pela nação misturados com uma ancestral dúvida sobre se não estaríamos melhor como cidadãos do país vizinho. entre o dramático da vida, com a idade a descontar o tempo, e o hilariante da casmurrice e da senilidade, este romance é um retrato dos homens que perduram depois da violência mais fracturante. É um retrato delicado e sensível da terceira idade, com o que acarreta de ideias confusas sobre o passado e sobre o presente. Há, mesmo depois da tragédia, uma felicidade possível, como se para algumas coisas estivéssemos reservados, contra todas as expectativas, tristezas e frustrações acumuladas.
Este espaço é seu
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Paulo José Miranda, Prémio Saramago em 1999, regressa com «Filhas» FONTE: Porta-Livros
P meiro
aulo
José
Miranda, pri-
vencedor,
em
1999, do prémio literário
José
Saramago
(com Natureza Morta), está
de
regresso
com Filhas, uma obra editada pela Oficina do Livro Sobre o livro: «Memórias e segredos num ziguezague que intercala o romance histórico e o presente, como o tempo de um jogo de futebol. 1746. O rei D. João V anuncia aos habitantes das ilhas dos Açores que a Coroa concede benefícios a quem decidir emigrar para o litoral sul do Brasil. Ao embarcar nesta aventura, João Cabral cruza-se com Maria de Fátima, uma mulher fascinante e invulgarmente emancipada para época. Desta união nasce uma descendência que marcará a saga da família Oliveira Cabral e a origem da colonização do Sul do Brasil, Florianóp o l i s , a n t i g a I l h a d o D e s t e r r o . Paulo José Miranda conduz-nos pela intimidade desta família através de uma empolgante viagem pelos laços que unem pai e filhas, Portugal e o Brasil.»
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Pressupostos para análises de três filmes brasileiros Filmografias Complementares Guido Bilharinho - Brasil
a diretriz de preocupação (e ocupação) com o relacionamento humano, especificamente, o amoroso, Válter Hugo Curi (São Paulo/SP, 1929-2003), prossegue em seu segundo filme, Estranho Encontro (1958), a vasta filmografia (para os padrões brasileiros), que irá desenvolver pelas décadas seguintes. Com pertinácia, insistência e coerência, Curi realiza até 1998 mais de 20 (vinte) filmes de qualidades desiguais, porém, em que avulta Noite Vazia (1964). Por sinal, paralelamente a ele, também estreante nos anos 50, mas, pautando obra em registro diverso, mas não oposto, como equivocadamente sempre se colocou no quadro de exacerbação ideológica que caracterizou as décadas do pós-guerra, Nélson Pereira dos Santos também irá construir considerável filmografia. Curi, diferentemente de Nélson, não se dedica à elaboração de conflitos interclasses e concernentes à condição e situação sócio-econômica de suas personagens. Opta por fixar-lhes o comportamento emocional e/ou o relacionamento amoroso. O ser humano é composto, como se sabe, de feixe de emoções, condicionantes, pulsões e compulsões variadas, bipartindo-se entre condição e situação econômicosocial (luta pela sobrevivência em quadro infra-estrutural organizado em sociedade dividida em classes) e conformação intelecto-subjetiva, complexamente formada. Como dito, Nélson preocupa-se principalmente com aquela e Curi com esta, complementando-se e não se opondo, pois. Em Estranho Encontro, com argumento e roteiro também seus, Curi aplica, em trama inteligentemente construída, tratamento formal requintado, em que a consciência estética e o cuidado elaborativo patenteiam-se desde as cenas iniciais, que, mutatis mutandis, evocam às do filme A Morte Num Beijo (Kiss Me Deadly, EE.UU., 1955), de Robert Aldrich.
Julgamento da Obra de Arte A análise e o julgamento da obra de arte não pressupõem sua contextualização espácio-temporal e o mais que isso implica de condicionantes e relativizações. Tais procedimentos críticos não se balizam (e nem se limitam) por esses fatores, bastando-se a si mesmos com fulcro na obra, no resultado obtido pelo autor e advindo de todo o processo elaborativo. Muito menos orienta-se esse exame por parâmetros ideológicos ou de qualquer outra natureza que não seja, apenas e unicamente, o estético e, na ficção, também a propriedade do enfoque da natureza humana. Nesse mecanismo intelectual não interessam nem mesmo (com igual ou mais razão) origem, motivações e objetivos que direcionaram e condicionaram o autor. Todos esses fatores são, como se sabe, exteriores e alheios à arte. À evidência que se pode analisar e julgar a produção artística sob qualquer outro ponto de vista, procurando observar, por exemplo, se ela atingiu as finalidades artísticas (se existirem) que moveram o autor. Contudo, tal empreendimento nada tem a ver com julgamento de seu valor como produto resultante da atividade intelectual-artística. A preceituação ora expendida visa fixar (ou lembrar) questões óbvias na concepção moderna da arte e da crítica da arte. Aplica-se, pois, urbe et orbe, indistintamente. Por isso, não vem à baila, a não ser como mera curiosidade, o papel que a obra de arte representou em seu tempo no contexto ideológico-político. Aliás, tal
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circunstância só serve para obnubilar análises e empanar julgamentos, obscurecendo e comprometendo a isenção e a exação que devem presidir o mecanismo crítico avaliativo. Ao se comentar o filme Ravina (1958), de Rubem Biáfora (São Paulo/SP, 1922-1996), com mais razão ainda devem ser afastadas Cenas do filme Os Fuzis quaisquer conotações trazidas à memória pela significativa militância crítica e perfilhada tendência criativa do cineasta. Interessa, pois e apenas, o resultado, ou seja, a obra que legou. Ravina é o marco inaugural dessa filmografia, composta ainda de O Quarto (1967) e de A Casa das Tentações (1975), um filme, portanto, por década.
Verdade e Arte Entre os intelectuais de esquerda lavrou – e ainda lavra – o equívoco de subordinar a expressão artística à mensagem social, política e filosófica. A obra, em consequência, não passaria, nesses casos, de veículo ou instrumental ideológico, sacrificando-se (quando qualificado o autor) ou não atingindo (na hipótese de incompetência) o nível artístico. Contudo, não é a escolha do tema ou a orientação que se lhe imprime os responsáveis por esse descaminho ou frustração. Ao contrário do que geralmente se pensa e se propala, o assunto e sua diretriz são neutros do ponto de vista artístico, independendo do posicionamento políticoideológico e social do autor, não importando sua condição, posição, atitude ou conduta e correspondente objetivo religioso, social, político e ideológico. Quaisquer sejam, o que conta e vai ser aferido é o valor estético da realização, isto é, conforme Hegel, sua concepção e expressão, traduzidas em profundidade e propriedade de conteúdo e criatividade formal. Por isso, pode-se ter grande poema tematizando simples árvore de beira da estrada e poema sem nenhum valor abordando o destino da humanidade. O caso do filme Os Fuzis (1963), de Rui Guerra (Maputo/Moçambique, 1931-), é exemplar de como se reúnem e são sintetizadas intenção engajada e forma artística, sem subordinação desta àquela, como convém. À evidência que, além disso, é indispensável que o autor seja artista, tenha talento, consciência e informação estética acompanhados de persistente exercício elaborativo. Os Fuzis alia visão, posicionamento e crítica social com alto grau de realização cinematográfica, na utilização adequada e vigorosa dos meios expressionais da arte, do que decorre forte conteúdo humano e social expresso em apropriada construção formal. (do livro O Cinema Brasileiro Nos Anos 50 e 60, editado pelo Instituto Triangulino de Cultura em 2009-www.institutotriangulino.wordpress.com)
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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba/Brasil e editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000, sendo ainda autor de livros de literatura, cinema, história do Brasil e regional. (Publicação autorizada pelo autor)
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Crónica
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Um texto sem assunto para Jovens Poetas J.A.S. LOPITO FEIJÓO K. - Angola
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o longo dos meus alongamentos cerebrais, não raras vezes, tenho cruzado com um assunto que é -nada mais nada menos, o assunto das crónicas sem assunto. Agora, ao arriscar tocar este assunto, corro o risco de ser considerado como tal. Um tal de autor, de texto sem assunto. Na verdade predispus-me a escrever em razão de uma aguda e insolente insónia que há dois dias me assola, provavelmente, tendo como causa as exageradas doses de cafeína mais uns charutansos nas jornadas retraçadas. São três da matina e rebolando na posição horizontal – claro! -, olho pró lado e contemplo o Bicho numa aparente, saudável e luxuosa soneca. Antes mesmo de me levantar confirmo ser ela muito boa de respiração. Não há rinoceronte que lha enfrenta em caso de desafios à fio. Sinto-me também nas vestes dos Pablos. Primeiro, de Picasso delineando com os olhos os contornos do alheio corpo desnudo. Depois, de Neruda que num instante me incendiou as entranhas inspirando-me estes versos para uma por/ suposta: VERÓNICA. No meio das tuas temperadas coxas/contundente reside um continente com seus mares/de mais intercalares e felinos olhares seculares/onde desaguam incolores os jorros deste jarro. //No seio dos teus seios de divinos paladares/habita o leite ainda não derramado/nas papilas deste faminto andarilho que sou/ nos (uni) versos do teu corpo! Da janela do quarto observo uma divinal paisagem nocturna com o Mussulo e a Ilha Dos Pássaros já bem às escuras, quando num repente tudo ao redor escurece também. Triste. Resta-me a beleza do mar agora envaidecido com o florescente brilho da lua reflectindo na sua pele ondular. Sevicias da empresa de distribuição eléctrica em Luanda. A EDEL dos nossos hábitos e costumes. Irritado mas conformado volto a deitar-me e, logo / logo, minutos depois é reposta a «legalidade» iluminática. Provavelmente um qualquer animal (ir) racional ou mesmo um sapateiro matreiro, dado às electrónicas, por (des) propositado engano deve ter posto as patas na patilha em que não devia. Então levanta-se (de) novamente o escriba que, espiritualmente e por momentos, deixou de habitar em mim. Adentro o escritório, pela porta ao lado da porta do quarto da Casa-Museu que me recolhe neste merecido 2º piso onde me encontro na rua do pôr-do-sol ao Benfica de Belas silhuetas caluandas e, prossigo a aventureira procura de um assunto para então consumar a minha escrita neste texto cujo assunto – sei de antemão! -, Reside no facto de inexistir um assunto para redigir, iniciando assim, esta crónica sem assunto. Sem mais contra-curvas sento-me na cadeira já a precisar de substituição nos próximos dias e, debruço-me na escrivaninha com tampo de correr e do tipo daquela do poeta Pessoa que o pessoano João Paulo Cavalcanti Filho, juntamente com a Royale máquina de escrever do Senhor Fernando, arrematou por uns míseros noventa e tal mil euros num leilão em Lisboa. Já sentado e decidido, recupero a inspiração do cronista ainda sem assunto que por culpa da EDEL nossa de todos os dias se havia já passado. Mentalmente recuperado, pese a chatice da insónia, cá estou a procura do assunto. Primeiro arrumando a mesa e na sequência, mexendo e remexendo. Papeis para aqui, papeis para acolá.
Vou ordenando o papelsório e o pensamento quando -depois de ter avistado o Livro dos Livros -, inesperadamente ataco com os olhos e saltam-me para as mãos as mais importantes cartas que qualquer jovem poeta deve ler e reler. Refiro me, sem medo de errar, às «Cartas A Um Jovem Poeta» assinadas por um tal de Maria Rilke que, nascido em Praga então capital da Boémia integrada no estado dos Habsburgos, em vida atendia pelo nome de Rainer. São dez cartas no total, endereçadas para um destinatário concreto. Franz Kappus. Um jovem oficial do exército austríaco autor de algumas experiências poéticas que aos dezanove anitos ousou escrever para o poeta pedindo opinião sobre aquilo que rabiscava em seus papeis nas horas de lazer. Segundo o próprio Kappus, «várias semanas passaram até que a resposta chegasse. A carta selada de azul trazia o carimbo de París, era pesada e exibia no sobrescrito a mesma caligrafia nítida, bela e segura que compunha o texto da primeira à última linha», tendo assim começado uma troca de correspondência regular que se prolongou até 1908 e cuja importância reside fundamentalmente no facto de serem cartas que podem interessar «também a muitos dos que hoje crescem e aos que ainda estão por vir nos dias de amanhã», pois segundo ainda o discípulo de Rilke em 1929, «quando fala um Grande e Inigualável os pequenos calam-se» e, acrescento, escutam, aprendem e devem agradecer. É justamente por isso que ainda cá andamos à procura de um assunto para este texto. Acreditem. E não vai este, tornar-se definitivamente, o assunto desta viajem no texto que agora desejo sem assunto até ao fim mas, tenho na memória também uma outra importantíssima ―Carta‖. De Virginia Woolf, também ―... A Um Jovem Poeta‖ que há cerca de trinta anos o David Mestre me deu para ler com sérias recomendações que ainda hoje me têm sido úteis e, só agora e tardia mas publicamente, agradeço. Tanto Rilke como Woolf, aconselham jovens principiantes. Diz-se que os seus conselhos vão em sentidos opostos mas coincidem fundamentalmente no momento em que aconselham os seus correspondentes a não terem pressa de publicar pois para Virgínia, enquanto jovens podemos escrever disparates, cometer até erros gramaticais e inventar seja lá o que for... sendo assim que se aprende a escrever, ficando com a sua liberdade em perigo todo aquele que, em jovem, indiscriminada e apressadamente publicar. Já Rilke insiste na paciência, no trabalho e na crença na própria vida pois, para ele a vida tem sempre razão e, «Nessa vida o tempo não é uma medida, um ano nada é, e dez anos não são nada; ser artista significa: não fazer cálculos nem contas, amadurecer como uma árvore que não força a sua própria seiva e resiste, confiante nas tempestades da Primavera, sem recear que o Verão possa não vir depois...a paciência é tudo!». Até mesmo na vã tentativa de encontrar um assunto para esta crónica que definitivamente terminará por acabar ou acabará por terminar sem o dito cujo assunto. Finalmente, vem-me à tona uma questão identitária. A questão da idade que, suponho, não deve ser vista sob parâmetros balizados de forma rigorosa apesar de Ortega Y Gasset – na sua Meditação Del Pueblo Joven-, ter dito ser (mais ou menos) aos trinta anos de idade que os Homens começam a ser fiéis a si mesmo pois, em jovens sempre preferimos as coisas dos outros em vez das nossas, vivendo sempre em constante imitação. Assim sendo, com assunto ou sem assunto, apraz-me visitar uma vez mais o pensamento da ―lírica‖ prosadora fascinada por versos que foi Virgínia Woolf. Corajosamente disse esta ao seu jovem correspondente: «A maior parte dos defeitos dos poemas que lí pode ser explicada, creio, pelo facto de estes serem expostos à luz feroz da publicidade, quando são ainda muito novos para lhe resistirem». Entretanto lhe havia já dito: «E, por amor de Deus, não publique nada antes dos trinta anos». Ponto & final!
O dia em que alguém viu Deus Vicente Sitoe
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briu os olhos Deus, como se acordasse da morte. Ou como se tivesse perdido o sono no meio da madrugada. De repente sentiu a sua própria existência. Olhou a sua volta e não viu nada que não fosse a escuridão. Sentiu-se sozinho e assustado. Pensou que ele era o primeiro ser existente. Portanto, se esqueceu que a escuridão já existia quando ele abriu os olhos. Continuou a pensar. Pensou, pensou, pensou. O trabalho dele era conversar com os próprios pensamentos. Imaginava e fantasiava dia e noite. Assim passaram-se os primeiros dias da vida de Deus, que para nós são meros segundos. Passaram os anos, que para nós são só minutos. Até quando num determinado dia teve a ideia de tentar o seu primeiro acto de criação. Ia começar por eliminar a coisa que mais lhe dava medo no momento – a escuridão. Pegou no verbo haver, que já tinha sido criado sabe-se lá por quem, e disse: - Haja luz. No instante seguinte não houve luz. Perdurou a escuridão até quando os primeiros raios do Sol começaram a vencer a madrugada. Lentamente o Sol foi subindo pelo horizonte longínquo. Por fim ganhou postura nas alturas. Mais uma vez ficou provado que o Sol estava ofuscado pela escuridão que existia antes de Deus ter acordado. O Sol é mais velho que Deus. O Sol iluminou o mundo e os olhos de Deus viram o que ele não podia acreditar. Viram um verde sem fim. Tudo estava em harmonia. Os bichos do mato pulavam entre bosques e savanas. A natureza estava em paz. E Deus, mais uma vez, tinha atrasado a criação deles. De tanta decepção, ele fechou os olhos. Pensou que fazendo de conta que aquilo não estava ali, realmente não o estaria. Mas se enganou. A natureza é mãe de si mesma. Pensou, pensou, pensou. Até que decidiu arriscar abrir os olhos novamente. Depois caminhou até um riacho que estava por perto para lavar a vergonha da cara. Quando viu o seu reflexo no espelho
da água, se achou tão bonito que pensou em se clonar. Pegou um bocado de barro das margens do rio, dissolveu-o nas mesmas águas e disse: - Farei o Homem a minha imagem. Tendo em consideração que não existe barro branco, nem água colorida, então sabemos que Deus moldou uma escultura negra. Ficou feliz com a sua, segundo ele, segunda criação. Se orgulhou de si mesmo. Mas aquela coisa não tinha nem vida, nem morte. Antes que Deus soprasse-lhe o fôlego, do outro lado da margem do rio surgiu um pastor acompanhado da sua manada de ovelhas. Se olharam Deus e o pastor. Ele ficou novamente decepcionado com o seu atraso ao acto de criação do Homem. Virou as costas e foi embora. Ao longo do caminho decidiu se cegar. Arrancou os olhos com os próprios dedos. O pastor estranhou o comportamento do ser do outro lado da margem. Decidiu atravessar o rio para ir conferir a estátua abandonada. Quando chegou, não tinha restado mais nada dela, senão o barro derretido. Tentou seguir as pisadas do fugitivo, mas esse há muito tempo que também desaparecera. O pastor frustrado deu meia volta, atravessou novamente o rio, recolheu as ovelhas e voltou a sua aldeia para anunciar a boa nova. Disse ter visto Deus, em carne e osso. Aliás, em primeiro lugar disse que existia Deus. Um só Deus. O pastor chamou Deus de seu pai. Disse ter lhe visto em pleno acto de recriação do Homem. Tentava criar uma espécie mais divina. A espécie humana que realmente seria de barro, porque aquela que existia era setenta por cento feita de água. Que os aldeões abandonassem as suas crenças politeístas. Mas, acima de tudo, que se arrependessem dos seus erros. Erros esses que o pastor deu o nome de pecados. Pois o arrependimento era a única coisa que curaria a cegueira de Deus e lhe traria ao convívio com as pessoas. Pregou tanto que as pessoas acreditaram. Ninguém se deu conta de que o pastor é que tinha inventado o Deus que tinha criado o Homem. Porque, na verdade, ele não tinha visto nada que não tenha sido projectado pela sua imaginação.
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Um muro da cidade Visby
Porto de partida
Receita para fazer o Azul
Lau Siqueira - Brasil o limite guarda o infinito onde o mar e o rochedo fundem o tempo e a coragem vence o medo onde habitam as verdades do arco-íris os beijos invisíveis do ar e os caules duvidosos do homem perfurando elos ecos ocos e um pampa imerso no olhar onde as memórias deflagram ruidosos silêncios sob nuvens apressadas
Rita Dahl - Finlândia A noite desce aos muros da cidade, uma parede azul, nenhuma alma viva perto. De uma fonte antiga corre a àgua pelas escadas astuciosas os estratos da concha na concha na area da praia. É trópico, os lábios escuros da noite, as ondas balancadas do Atlântis e o fado dentro de uma taverna fechada apresentada pela cantora fantasmagórica tudo, imaginado nesse momento. As ondas batem com a força nas pedras da praia, muito duro atravessar costas mas arqueadas dos cisnes até o horizonte. castanhas descem pelos decénnios na nica do transeunte, as folhas farfalham as notas moeda misteriósa mais desconhecida do que o amor. No colo de fecha de Kärleksporten dobramo-nos violentamente.
o limite onde tudo começa
Encontro Inesperado
Nuno Júdice - Portugal Se quiseres fazer azul, pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande, que possas levar ao lume do horizonte; depois mexe o azul com um resto de vermelho da madrugada, até que ele se desfaça; despeja tudo num bacio bem limpo, para que nada reste das impurezas da tarde. Por fim, peneira um resto de ouro da areia do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal. Se quiseres, para que as cores se não desprendam com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado. Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico. Ambas a s cores te parecerão semelhantes, sem que possas distinguir entre uma e outra. Assim o fiz – eu, Abraão ben Judá Ibn Haim, iluminador de Loulé – e deixei a receita a quem quiser, algum dia, imitar o céu.
Ronda da Noite
(poema vermelho – lau siqueira)
Arquipélago
Wislawa Szymborska-Polónia
Conceição Lima-S.T. e Príncipe O enigma é outro – aqui não moram deuses Homens apenas e o mar, inamovível herança.
Nós nos tratamos com extrema cortesia, dizemos: quanto tempo, que bom revê-lo. Nossos tigres bebem leite. Nossos falcões preferem o chão. Nossos tubarões se afogam no mar. Nossos lobos bocejam diante da jaula aberta. Nossas cobras perderam seu lampejo, nossos macacos, sua graça; nossos pavões, suas plumas. Faz tempo que os morcegos deixaram nossos cabelos. Caímos em silêncio no meio da conversa, e não há sorriso que nos salve. Nossos humanos não sabem falar uns com os outros.
Amosse Mucavele - Moçambique Rondam os chuis colonizados pela cor cinzenta A pincel pintam o asfalto (sub)urbano recalcado pelas pegadas do judas( e a força divina quando é que passará por este lugar invisitavél?). Vigilância: o lupanar do tropel das infindáveis noites agrestes. Concorrência: a espingarda nas costas e a navalha nas mãos do MABANDIDO o herói da esquina. Onde a vida ralha e a morte malha.
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| Por: Eduardo Quive
“Estamos a perder os nossos valores”
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ascido a 23 de Maio no ano da independência de Moçambique, em Quelimane, província da Zambézia extremo centro do país, Paulo Alexandre Dauto da Conceição ou simplesmente Alex Dau é autor de dois livros de conto, nomeadamente, “Reclusos do Tempo” e “Heróis de Palmo e Meio”. É um dos poucos falados como acontece com muitos escritores moçambicanos, mas olhando profundamente na sua obra, nota-se que estamos perante um escritor destacável na literatura contemporânea nacional. L: (Literatas) Como é que entra para as letras? Alex: Os meus primeiros passos para a literatura dão-se na Escola Primária de Sinacura em Quelimane, quando começo a fazer trabalhos da disciplina de português, a famosas redacções. Era nesse espaço da disciplina onde conseguia expor os meus pensamentos e os professores elogiavam. Sempre nas redacções conseguia ter maior nota. Mas outro incentivo foi do meio onde vivia entre jovens e adolescentes, nós gostávamos de ler, na altura não havia muito de televisão nem DVD, então nós trocávamos revistas da colecção Mar e Vela, tipo Capitão, Homem Aranha, Balas, Vampiro. Eram raros os livros naquela altura. Tinha que pegar num ler depois contar o outro o que trouxe a necessidade de trocarmos os livros. Acho que foi daí que começou a surgir essa inclinação para a literatura. L: Estamos a falar dos tempos onde tinha-se sérias dificuldades de adquirir os livros, como é que vocês conseguiam contornar essa situação? Alex: Naquela altura as bibliotecas eram raras, até hoje continuam poucas e as que existem são difíceis de entregar o livro para ler em casa. Nós recorríamos a livros de pessoas mais velhas que faziam colecções, procurávamos ter esses livros, contactávamos as pessoas íamos buscar e líamos, muitas vezes quando gostássemos do livro fazíamos de tudo para nos apoderarmos do mesmo. Fazíamos uma usurpação para fins académicos, de facto tínhamos interesse de ler. O que funcionava principalmente para que todos tivéssemos acesso era que eu lesse e depois emprestasse a outro. Mas esse emprestar era condicionado pelo facto de o outro ter também um livro para me emprestar. Fugindo um pouco da sua questão, uma das coisas que contribuiu muito para que me entrasse esta veia de gostar de escrever foi o ambiente em que cresci, estava no meio da província, isto é, distante da capital e era moda daquele tempo, que se contasse histórias pelos mais velhos. Antes de dormir os meus primos e primas mais velhas contavam-nos histórias sobre curandeiros, feiticeiros e etc. era uma época em que a guerra civil estava no auge, nos anos 80 e ouvíamos também histórias da guerra, e por conta disso verá que nos meus livros não fujo muito dessa temática.
ao meio urbano, a tradição oral vai caindo no desinteresse. Estamos a perder os nossos valores. L: Falou da guerra, tenho lido muito dos escritores da era colonial e do pósindependência e também dos contemporâneos, como seu caso. Mas entendo que há sempre uma gota de sangue na vossa escrita, há uma marca da guerra, parece que tanto os antigos e os novos não saem dessa temática… Alex: A guerra marcou-nos, nós ouvimos histórias sobre nossos amigos, familiares, eu próprio perdi familiares durante a guerra, e ouve muitas especulações e histórias sobrenaturais. Nós ao escrevermos, abordando as guerras, nem sempre para homenagear essas vitimas. Por isso que a guerra ainda estará presente na nossa escrita, assim também como está nas nossas almas. L: Falou do seu encontro com a leitura e sobre a escrita… quando é que percebe que deve escrever?
Há muita coisa que nós achamos impossível, principalmente com a evolução da ciência, as pessoas vão chegando-se mais ao meio urbano, a tradição oral vai caindo no desinteresse. Estamos a perder os nossos valores.
L: Muitos escritores do vosso tempo (embora começar a publicar nos anos 2000, não deixa de ser fruto dos anos 80) levaram consigo a oralidade. No entanto hoje isso é pouco frequente. As histórias contadas na infância foram importantes para moldarem o escritor que há em ti? Alex: Foram e ainda são importantes como moçambicanos e africanos porque quando escrevemos fugindo dessa temática tradicional escrevendo histórias de amores por ai, aquele que a ler pode ter dificuldades de perceber a sua origem, mas se pegamos os traços que fazem parte da nossa cultura com o povo, vir-se-á de imediato que se trata de um africano. Isso já é um bom princípio porque estaremos a valorizar o que somos, vamos dar a conhecer as nossas histórias. Realmente esse enriquecimento da parte tradicional ou a parte mágica é muito importante; porque enquanto alguém nos conta, vamos imaginando e desenvolvemos o nosso enredo. Isso fortifica o escritor que há em ti, eu penso assim. Ainda a pouco tempo ouvi uma história da minha província, como disse, sou de Quelimane, de um régulo que se transformou num Hipopótamo, esse sobrenatural que ouvimos dá-nos vontade de criar e contar mais uma história. Eu particularmente giro em volta disso, seria, se calhar; difícil de me despender em outras temáticas. Então quando encontro alguém a contar essas histórias, por mais que não seja próxima de mim, fico interessado, da mesma forma que um europeu ou americano se interessa pelo que gira em sua volta. Os moçambicanos devem se interessar mais por isso. Há muita coisa que nós achamos impossível, principalmente com a evolução da ciência, as pessoas vão chegando-se mais
Alex: Quando venho para Maputo em 1987, vi que tinha a possibilidade de publicar. Havia espaço no jornal Domingo para a publicação de poemas e explorei essas possibilidades, por essa razão o que primeiro publiquei foi poesia nesse jornal e depois tive contacto com o Jorge de Oliveira quando trabalhava na Televisão de Moçambique (TVM) ele era coordenador da Gazeta de Artes e Letras da Revista Tempo, e conversando com ele passei a ter espaço na Tempo para publicar os meus poemas e depois desafiaram-me a escrever conto, que é uma coisa que fazia um pouco antes, como disse através do impulso das redacções da escola. Portanto começo a me dedicar porque já tinha um espaço onde podia mostrar o meu trabalho e que teria a possibilidade de que os outros vissem e pudessem fazer a crítica. Enquanto faço essas publicações ganhei contactos com indivíduos mais idóneos e que pudessem dar sugestões e análise dos meus textos, dar ideias, umas más e outras boas, mas sempre conseguia distingui-los. Portanto o meu maior incentivo foi o espaço que encontrei para publicar os meus trabalhos na revista Tempo. Daí foi uma caminhada que graças a Deus não parou. A revista Tempo parou de ser editada e encontrei espaço noutros jornais como Savana, Zambeze, e depois daí começaram a aparecer os livros. Reclusos de Tempo L: “Reclusos do Tempo” é a sua obra de estreia. Fale-nos na primeira pessoa sobre a temática desse livro. Alex: Recluso do Tempo é o título de um conto que faz parte do livro do mesmo nome. Nessa história falo de sobrenaturais, que acontecem numa determinada região onde os habitantes dessa região não respeitam a sua tradição, porque não fazem aquelas ofertas aos seus antepassados e por isso são penalizados. Instala-se uma tempestade que devasta todas as casas dessa zona e outras infra-estruturas, daí o régulo tenta fazer as pazes com os espíritos no sentido de eles abandonarem a revolta com seus familiares. Sabe-se que as nossas tradições mandam que quando chegam os tempos da colheita e há bons resultados uma parte vai para os deuses e essa região desrespeitou essas leis, pelo que os espíritos da zona zangaram-se. Sendo assim eles ficaram Reclusos do Tempo. Portanto, o dia já se tinha transformado em noite, eles sofreram uma penalização pelo desres-
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peito às tradições. L: Portanto está aí iminente a tradição oral de que foi alvo enquanto emergia. Terá sido por isso que optou começar pelo conto? Alex: No conto sinto-me mais a vontade. Mas a escolha foi por ter tido muitos contos publicados na revista Tempo e quando chegou a altura de publicar o meu livro só fiz o trabalho de selecção. Fiz também o processo de reescrever alguns desses contos e procurei escrever outros inéditos. Mas se a minha obra for lida por quem já acompanha os meus paços vai perceber que muita história que conto no livro já contei na revista. Por outro lado para colocar a sensação de novidade no leitor acrescentei mais dois ou três contos inéditos. Contudo a temática não foge dos mitos e tradições, o sobrenaturalismo, e por ai fora. L: Você não tem medo dessas histórias? Alex: Quando criança realmente essas histórias aterrorizavam-me, mas não deixava de ouvi-las. Bastava ouvir essas histórias, mal dormia, morria de medo e andavam muitas imaginações na cabeça e só pensava ―isso só pode ser verdade‖. Apesar de todo o medo, todos os dias que houvesse uma chance, ia ouvir essas histórias e hoje devo dar graças a Deus por as ter ouvido porque desenvolveram o meu mundo imaginário. Foi graças essas histórias que caminho pela literatura, porque para escrever é preciso ouvir. Tem que se saber ouvir e imaginar. L: O que te leva a escrever? Alex: Na escrita eu me encontro. Eu estou em permanente busca de mim mesmo, então, à medida que vou escrevendo, vou encontrando partes de mim, então se não escrever estarei muito longe de me encontrar. A dias eu lia uma crónica de António Lobo Antunes e ele cita um escritor chamado Scott Fitzgerald que diz o seguinte ―não se pode contar a vida de um escritor porque eles são muitos‖. Eu identifico-me muito com essa frase, porque eu escrevo para me encontrar. Por isso é que não posso deixar de escrever, se não me vou encontrar.
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na qualidade do livro. Foi o segundo livro e quem sabe as portas se abrirão para o terceiro. Talvez aparecerá quem se interesse pelo meu trabalho, críticas e vou percebendo, assim em que posição me encontro no panorama literário moçambicano. L: Os políticos tem dito por muitas vezes que Moçambique „e “Pátria de Heróis”. Que heróis nos traz como exemplo para a sociedade? Alex: Para mim, todo moçambicano é herói, porque estamos a viver num país com muitas riquezas mas enfrentamos pobreza estrema. Temos muitos recursos e nem se quer usufruímos dessa riqueza, estamos a sobreviver num país que é rico. Para o livro em particular, os heróis de palmo e Meio são os meninos de rua, esses que abandonam suas casas por maus tratos e outros por serem explorados, circulam na cidade a pedir dinheiro de pão a mando dos seus familiares. Na altura Samora Machel (primeiro presidente de Moçambique independente) dizia ―crianças são flores que nunca murcham‖ mas hoje vemos crianças sem ter quem as apoie e as dê assistência, ficando ao Deus dará, a chutar latas, a dormir ao relento e sem ter o que comer. Estará a invocar o papel do escritor para com o que acontece a sua volta. Estamos perante a um Alex Dau que não é alheio ao que acontece no mundo que o rodeia? É impossível ficar alheio. Há alguns contos em que interfiro sob aqueles males que acontecem na sociedade. Conto essas histórias e dou o meu parecer sobre o assunto. L: Ao abrir seus livros já publicados o que te vem na alma? Alex: Primeiro vem-me que consegui alcançar um objectivo. Mas há sempre a sensação de que não poço parar por ai, a luta continua, tenho que seguir em frente. Mas é assim é me mais difícil escrever agora do que antes. Porque temos tantas coisas que atrapalham, confesso que se vivesse no campo podia escrever melhor. No meio urbano é mais complicado, de dia uma correria e quando chego a casa tem que arranjar
Os escritores já conhecidos sentiam-se ameaçados porque um mais novo L: Num ensaio sobre a sua obra, Ricardo Riso tece o seguinte comentário “ a literatura moçam- comparava os seus trabalhos e via que era possível publicar também. bicana inicia o século XXI sob o signo da desconfiança, sofrendo acusações de sua morte Por isso que os mais novos faziam essas tentativas apesar das barreiras. por parte de uma nova geração de escritores que reivindica visibilidade para seus textos e oportunidades de publicação. Configura-se, então, um conflito de gerações, principalmente com os partícipes da revista Charrua e com a histórica AEMO – Associação dos Escritores Moçambicanos, esta acusada de favorecer os escritores oriundos daquela revista. Em que posição você se encontrava perante esse conflito? Alex: Nunca me envolvi directamente, mas sempre procurei apoiar aqueles que como eu, precisavam de um espaço para mostrar os seus trabalhos e naquela altura realmente, não existia esse espaço para, por exemplo, editar um livro. Em contrapartida, existia espaço para publicar pequenos trabalhos como contos e poesia. Mas a parte do livro, era mais complexo, aliás as editoras eram poucas e pelo que me lembro a editora que todos recorríamos na altura era a da AEMO. Mas para ter acesso a esse espaço na AEMO tinha que ser um indivíduo super dotado se não ficava de fora. Eram muito poucos os que conseguiam publicar no principio e nos finais de 1990. Então acho que esse grupo de escritores emergentes estava de facto a procura de encontrar um espaço para mostrar seu talento e trabalho. Há situações em que podemos ler nosso trabalho e comparar com o dos outros e notarmos que afinal o nosso é melhor e aí vem essa questão ― porque é que não posso publicar?‖. É por isso que também os escritores já conhecidos sentiam-se ameaçados porque um mais novo comparava os seus trabalhos e via que era possível publicar também. Por isso que os mais novos faziam essas tentativas apesar das barreiras. Heróis de Palmo e Meio L: Versando já sobre o “Heróis de Palmo e Meio”, o que te levou a escrever esse livro? Alex: ―Heróis de Palmo e Meio‖ é a minha segunda obra, portanto que veio depois de ―Reclusos do Tempo‖. Primeiro queria provar à mim próprio que é possível publicar outro livro e firmar-me como um indivíduo que pode escrever outra coisa. Outra coisa que me levou a publicar é que já tinha o material suficiente. Portanto ―Heróis de Palmo e Meio‖ não foge muito do projecto inicial, também foram contos publicados na imprensa, uns na revista Tempo, outros no suplemento Cultural do jornal Notícias e dois ou três inéditos. No entanto, a grande diferença entre os dois livros é que ―Heróis de Palmo e Meio‖ fui em busca de meios para publicar o livro enquanto o primeiro fui custeado pela AEMO. Este último tive que ir buscar os recursos pessoalmente, procurei o patrocinador, a editora e negociei com ambos, preparei a capa para o livro entre outras coisas. L: O que te custou ter publicado esse livro? Alex: Realmente deu-me muito trabalho, não porque tinha que escrever porque os contos já existiam, a parte da revisão, capa, estar atento ao trabalho da editora, negociar com o patrocinador porque este impunha algumas condições que tinha que aderir, em fim. Deu mais trabalho, mas valeu a pena porque o empenho da editora foi bom e isso reflectiu-se
aquele tempinho para escrever porque se não, não vou me encontrar. L: Para si que importância tem a leitura? Alex: A leitura é importante porque dá-nos a possibilidade de imaginarmos e criarmos as nossas personagens através daquilo que lemos. Gosto de fazer a seguinte comparação entre ler e ver um filme. Num filme há um guionista, o que escreveu o roteiro, o realizador é quem fez o filme, portanto ao assistir vemos aquilo que os outros quiseram que visse. Mas quando lemos um livro nós somos o realizador do filme, colocamos de como queremos, escolhemos as personagens e as melhores imagens. Essa é a mais-valia da leitura, a leitura é a peça chave para tudo que fazemos. Infelizmente poucos lêem, mesmo os estudantes universitários, eles acabam ficando direccionados para aquilo a que são formados, mas o resto não entendem e são vedados de capacidade de imaginar. L: Agora pode dizer o que acha importante dizer e que não lhe perguntei. Alex: Noto que não há um contacto entre os escritores, são poucas as chances que há para conversas; seja em jeito de palestras como vocês fazem, sejam conversas informais entre escritores, penso que isso é importante. Outra coisa que me entristece também é o seguinte: no dia do lançamento do meu livro estiveram lá alguns escritores que não tinham condições de comprar o livro e mesmo eu, há vezes em que vou a um lançamento e não tenho dinheiro para comprar o livro porque o dinheirinho que tenho no bolso só dá para o pão, por isso acho que tinha que haver um mecanismo para que os escritores tenham acesso aos livros quando vão a um lançamento. Que se arranje uma forma de o escritor ter o livro seja para pagar a preços simbólicos, porque penso que é um acto inédito ver o seu confrade a lançar o livro e ter dele um autógrafo. Agora o escritor sai do lançamento do seu confrade sem se quer ter o livro nas mãos e os outros que nem são da área estão com o livro na mão. Para mim isso é triste. Há vezes em que um escritor não vai ao lançamento porque ao perguntar do preço logo lhe é dito que são 500,00 meticais, logo não vai. Não porque não gostaria de estar presente, mas pelo preço e porque não é capaz de comprar. L: Então muitas vezes reclama-se que o livro é caro e afinal, nem sequer o escritor que é autor tem dinheiro para adquiri-lo? Alex: Verdade seja dita, aqui em Moçambique não se pode viver da escrita. Não pode só porque publicou um livro pensar que terá dinheiro para viver. Os ganhos que advêm por ter publicado um livro, em termos financeiros são quase inexistentes. Portanto, o ganho maior é saber que lançou um livro e isso lhe pode levar a outras oportunidades de vida e se calhar a oportunidade de aparecer uma editora estrangeira interessar-se por ele se calhar pagar melhor. Para nós não sofrermos por querer olhar a literatura como nossa fonte de sobrevivência temos que olhar para outras actividades. Para podermos existir como ser humano e até como escritor. Tinha que haver uma maneira de se ajudar o escritor.
Leia esta entrevista na íntegra na Literatas on-line:
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Conto contigo Unamo-nos aos melhores, não aos piores! Japone Arijuane - Moçambique
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ezes são e continuam a ser tantas que eu paro e penso na questão CPLP; tanto se disse e diz-se e nada se vê
na prática, em relação ao seu funcionamento. Sendo CPLP um órgão que dizem ser comunidade de países. Ora, não quero por algum momento por em causa a questão de comunidade, olhando pela língua pode até chegar-se a esta premissa; mas, uma comunidade não se faz somente pela língua; a comunidade é, e deve ser, uma colectividade de factores comuns, desde os sociais, culturais, não só económicos e políticos, como tristemente faz-se com a CPLP, encontros de políticos e para políticos; porém, ainda nesta semana a imunda cidade de Maputo prontificase a colher um desses banquetes, aos senhorios chefes dos nossos estados. Bom, como já disse e todos vos sabeis, este órgão é mais político; tem a política no sentido pejorativo, como o pressuposto básico; mostrando-se altamente alheia a vontade do povo. Por esta, e muitas outras razões, que não quero aqui citar, não é, e não pode vir a ser dúvida alguma, para nós outros; a questão de, se a Guiné Equatorial, um país recordista em todos os índices de extinção a democracia: como a fome, a corrupção, o super analfabetismo, o narcoestado, o desrespeito dos direitos humanos, e muito mais índices que levariam me tempo todo em querer descreve-los; pode ser admitida como membro efectivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa; lógico!, e não só; pois, isto é politicamente correcto. Os senhorios chefes e donos da CPLP têm interesses eminentemente inversos aos já plasmados no papel como princípios e ideais deste órgão; se não, a Guiné Equatorial nem tão pouco seria o que é, sei lá o que é, perante a CPLP, muito menos debate daria sua provável pertença a comunidade. Isto mostra, claramente, que a democracia nessa comunidade, principalmente nos países africanos, é doentia; e não só, em alguns países chega mesmo a ser morta e enterrada. Ora vejamos, como é que se explicam as democracias monopartidárias, em países como, por exemplo: Moçambique e Angola? Mas esta ainda não é a questão. Eis a questão: qual é o interesse do cidadão comum da Guiné Equatorial, e cidadãos comuns de todos países da CPLP em fazerem parte da comunidade? Se são políticos não acho, pois acho que, para estes nada muda.
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Hermenêutica (em desalinho) para a Independência Nacional Filinto Elísio - Cabo Verde
P
ara mim, a Independência Nacional é um achado ontológico de maior relevo e só a descrevo em palavras desalinhadas. Palavras, elas próprias, em processo de libertação. Direi, assim a abrir, que 5 de Julho de 1975 entrou em mim e daqui nunca mais saiu. Se nos entendemos, a Independência Nacional, no que teve de luz e sombra, em processo dialéctico, sumariza-se por libertação. E a libertação é pré-requisito da liberdade e esta a condição basilar do desenvolvimento. A libertação, sendo apanágio do despertar colectivo, nos permitiu ousar o vaticínio do Poeta Corsino Fortes do tal ―Golpe d‘Estode na Paraíse‖. Assumida a Independência Nacional, entrámos logo em cena, já do primeiro acto de país improvável, para a polifonia de narrativas fossem elas as da I e da II Repúblicas, da reconstrução do País em monolítica unidade para a democratização em plural encanto, de perspectivarmos hoje transformação como agenda. Diria até, que era o navio que, ora redesenhado o mar de sua própria navegação, caminha para uma realidade já mais provável na fé de cada um de nós. Tenho vivido a efeméride da Independência Nacional em estado de êxtase. Lembro-me, como se hoje fosse, do rito da bandeira das quinas a descer e da euforia da bandeira das espigas de milho a subir, afora o redemoinho que à hora da grande largada fez do Estádio da Várzea nosso porto seguro para uma venturosa largada. Lembro-me também, adolescente e em rodagem, dos acordes de um hino em despedida e do uníssono de um hino novo, cuja letra (então vitoriosa) nos recordava dos nossos avós. Mais tarde, pois a história é teatro que não se cala, as nossas estrelas são dez e o hino deste tempo chama o irmão para o hino da liberdade. Que legítimo o tempo! Lembro-me ainda, com orgulho deste aparte, das palavras mansas e amigas trocadas entre um tropa do MFA 25 de Abril e um tropa das FARP, em como estavam doravante unidos pelos laços da solidariedade e de amizade, posto livres do colonialismo e do fascismo. ―Com a Independência de Cabo Verde, Portugal ganhou um grande amigo‖, disse alguém, também anónimo. Contava-me sempre dessas coisas o meu falecido amigo Luís Martins, filho do Poeta Ovídio Martins, que, por tempos dos comités, balalaicas e ladas, andava ele de dreadlocks, piercing na orelha e sabia namorar a flor de lácio com sujeito, predicado e complemento directo. Livre da silva, Luís Martins, era a Independência em seu estado frutal. Escrevendo ele sempre, com sintaxe da solidão e do desejo, o País que tanto amava. Um achado ontológico, dizia-vos, já que em mim abrir o sonho de uma terra utópica e necessária, de um ordenamento que não exclui alguém, de uma abertura para a humanização e para os direitos de todos, de uma postura menos positivista dos poderes - civilizada e democrática, ininterruptamente livre, livre, livre, como a letra do ―Imagine‖, de John Lennon. E, para fechar o texto, tempo de encararmos a Independência Nacional não apenas como um marco heróico do passado (na sua saudosa lembrança), mas como um desígnio de futuro, uma êxtase que nos trará mais qualidade de vida para o nosso devir existencial no ―Estode de Paraíse‖. Já numa toada, tão armilar quão hermenêutica, revejo Abílio Monteiro Duarte a declarar a Independência Nacional, sob um tórrido Julho que o calendário afirmava 5, a Declaração da Independência. Às tantas, convencia-nos ele, com elevada transcendência, da liberdade tudo se ousar.
Se a CPLP professa-se boas maneiras, maneiras democraticamente viradas ao povo, nada diríamos e veríamos a Guiné Equatorial a entrosar-se; ainda mais, os chefes preocupados estariam sim, com a outra Guiné, a Bissau; que esta entregue ao seu azar. Já agora em Maputo, os chefes além de degustarem as iguarias a moda presidencial, deveria traçar e discutir estratégias de como a comunidade pode institucionalizar-se, sair do abstracto; onde a cultura e a educação desempenhariam os seus nobres papeis. Traçar estratégias de como arrancar o mal pela raiz na Guiné-Bissau, como evitar greves populares nos países membros impulsionados pela desigualdade social, como vimos no Magreb; criando, assim, uma democracia, no verdadeiro sentido; uma democracia sólida e solidária. Extinguindo a mortal doença do século (Corrupção), e que as reuniões, os debates, não parecem somente na língua e pela língua adormecessem, como o acordo ortográfico, que por si só discorda de se efectuar; que os milhares e milhares de valores monetários usassem-se para
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mitigar a pobreza, não a ortografia, que no meu entender não chega a ser problema algum; e que as fronteiras entre países membros não existissem, pois não faz sentido algum chamarmo-nos de países irmãos, pertencentes a mesma comunidade; em
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quanto para visitarmo-nos temos, antes pelo contrário, esquecer a irmandade, e pagar somas exorbitantes de dinheiro em vistos. Por fim, a justiça e a paz, não como pretexto para guerras, mas como o primórdio da vida humana!
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O passo certo
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Africanidades
no caminho errado Da África sem história à história dos africanos Diálogo entre poeta
Victor Eustáquio– Portugal
e pescador Nelson Lineu - Moçambique
O
diálogo começou por volta de meia hora; o pescador escrevendo falas com
a língua do anzol, o poeta bem firme, pescando os versos que vinham-no bem ao fundo, para descrever e defender sua ousada forma de ser, aliás, ambos são eminentemente ousados; ambos, com tantas, si não todas; coisa em comum: o mar, a solidão, os afazeres paternos; todos estes denominadores vinham a flor da conversa como pano do fundo. Eis a eloquência; por vezes demente, mas unanimementem, ambos puxando sardinha a sua brasa -Há muito que te perscruto ó pescador, vim desmascarar-te, seu cínico, covarde e hipócrita. -Não tens moral para tal meu poeta! Queres usar a defesa como ataque. -Que brincadeira sem graça, estas a tentar por confusão na minha cabeça para fugires. Habituas-te usar anzol, queres ganhar tempo. -Eu conheço muito bem o tempo, e quando é que ele me favorece, por não ter nada a temer, afirmo que estás a fazer papel do diabo que por falar-se dele demora ou nunca aparece. -Belas palavras! Elas mostram exactamente o que és, meu preguiçoso. -Olha quem fala, fracote que por não querer enfrentar a realidade fecha-se na solidão, és errante por necessidade. Tua virilidade é desprezível, falas de amor como uma mulherzinha, e quando quer-se macho escondes-te por trás da boémia, ainda chamas-me preguiçoso; todos os dias vês-me no barco, enfrentando sol, maré e por vezes temporais, para trazer comida para os meus. -Rio-me de ti, podes enganar a todos mas a mim não enganas mais, estas a lançar palavras para defenderes-te, tu é que criastes esse cenário todo. São exactamente esses obstáculos que te movem, trazendo-te o sexto sentido, como os versos trazem a mim. Assim pareces um óptimo chefe de família, cumprindo os seus deveres. Sais de manhã e voltas no final do dia, qual e a diferença com a minha solidão? Se nunca mesmo estamos sós? No mar vaiste encantando com as ondas, sentindo o mundo em te, uma sensação que só nos dois conhecemos, fazes da tua esposa várias mulheres, essa é a tua boémia. Também és um poeta, conheces muito bem o nosso afecto com o mar, e tu ambicioso que és, ficas por lá o dia todo. Inventou essa desculpa que eu chamo clássica: alimentar a família. Não te contentas apenas em contemplares, queres sentir o mar a fundo chamando isso de força. Preguiçoso, eu chamo-te por não escreveres, ainda egoísta, queres ficar com tudo o que vives e sentes em ti. -Queres ofender-me, mas também mentis ou omites, no fundo queres ser como eu, os papéis prendem-te, fuja e venha ser livre, como eu. -Queres fazer-me acreditar que não aprecias a minha vida e que um foragido pode ser livre? Publicidade
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1) África não tem história. Sendo um continente primitivo, as estruturas sociais permaneceram sempre "tribais". Por outras palavras, África foi sempre considerada como um continente a-histórico, a viver no mais primitivo dos sistemas naturais. 2) Os monumentos e outras manifestações artísticas, assim como as estruturas arquitectónicas, que revelaram um bom nível de desenvolvimento social e político, foram construídas por outros que não são africanos, sobretudo por brancos ocidentais. O que leva a concluir que os africanos são incapazes de, por si próprios, construírem a história. 3) E mesmo que se reconheça que o continente tenha construído algo, o pouco que fez só foi possível através dos miscigenados e não dos negros. De resto, os africanos do norte, miscigenados com árabes, de pele branca, são os únicos que têm algum capital histórico, embora seja islamizado. Se alguém procura uma possível definição de etnocentrismo, eis três proposições de natureza racista, que aliás foram objecto de acesa discussão no mundo eurocêntrico, que espelham bem o que podem ser os preconceitos inerentes a este paradigma: o princípio de considerar inferior aquilo que é diferente. Dir-se-ia que nos dias de hoje, num planeta tão unido como desunido pelas redes de comunicação à escala global (ou quase), onde cada vez mais se aceita, ou diz-se aceitar, o relativismo cultural – entendido como uma tentativa de avaliação de cada cultura nos seus próprios termos (não obstante o tema não ser pacífico) – que afirmações como as acima referidas fazem parte do passado. Mas decerto que a ingenuidade não enferma de tão extrema simplicidade, o que obriga a questionar de novo: farão realmente parte do passado? É que uma coisa é o que se defende formalmente, outra coisa é que se faz no plano material, na prática, acções que, aliás, tendem a institucionalizar-se, entrando na esfera formal pela força do poder normativo dos factos. Dito de forma simples, as práticas reiteradas, ou convicções e afectos que, à partida, são condenáveis e porventura feridos de ilegalidade, conquistam, regra geral, um estatuto legal, pelo efeito de erosão, manifestado no consentimento pelo hábito (ou até mesmo através da adesão por imitação). É evidente que a problemática é complexa, porquanto envolve muitas variáveis e dimensões, mas na substância deve merecer reflexão e muitas cautelas, tanto mais que os termos da dicotomia entre opressores e oprimidos têm sido objecto de uma inversão: o eurocentrismo hegemónico acabou por criar espaço para o afrocentrismo fundamentalista, que se apropriou da mesma retórica para constituir discursos racistas em tudo semelhantes aos primeiros, do que resultam novas interrogações: Afinal, que espaço ocupa África na história, não na africanista, naquela que foi contada pelo mundo dos brancos ocidentais no seu longo monólogo sobre o continente ―negro‖, mas na que os próprios africanos querem contar? E que espaço ocupa África, na visão dos próprios africanos, no mundo moderno ligado em rede, supostamente vencida parte considerável da batalha contra os preconceitos etnocêntricos?
O Xai-Xai sem Adelaide Djokanhane-Moçambique O sol ainda era miúdo e já os pássaros pesqueiros sobrevoavam os corais a procura do pequeno-almoço, os caranguejos na correria da anciã da fuga atropelavam-se nos corredores a procura do seu buraco, os pescadores já no mar a dentro estavam a preparar o puxa -puxa da rede, as comerciantes da praxe de bacias na mão e bebes às costas esperavam ansiosas pelo marisco. E Adelaide na escuridão da manhã coloca-me num barco de aluguer, destes que enfileiram os locais de hospedagem nos dias sem hóspedes. Percorremos os corais afastados do areal à uma distância de 40 milhas, rumo a zona calma do mar sem o olhar dos seres vivos do mar e da terra. Ela com o volante na mão desligou o motor, naquele olhar alegre sem dizer palavra alguma. O barco bamboleava e distanciava, fixou os olhos nos meus. Afastou-se do volante, sorriu. Desligou o motor. Deslizou o fio da blusa preta, o tecido era fino como o linho, levantoua sobre a cabeça. Retirou. O peito ondulado descrevia o cuidado da infância, da cor negra da sua pele, a saia era da cor do mar, não levava o zipe, só elástico. Retirou sem presa do olhar dos pássaros que surgiram ao nosso local, como se fossem abutres em tempo de fome. Fiquei inerte. Perdi a inspiração. Olhei-a. Como nascera ia ficando. Sem dizer outra vez palavra alguma retirou a calcinha. Estava intrépida. Da pasta que trazia sacou um sutiã do mar colorido, colocou no lugar do corpo. Eu pensei em lançar a angorá para travar o balançar do barco. Mas este não levava. Pensei em dizer uma palavra, mas nada saia da garganta. Ela esticava o sutiã em pé, sua cona limpa sem pêlos púbicos brilhava nos meus olhos cegos, seu corpo de sereia era batido pelos raios da manhã e pelas gotas salgados da água que lutava em possuir o que a minha frente estava. Olhei-a. No braço esquerdo segurava o biquíni enquanto com a direita assentava-se para coloca-lo. Pronta lançou-se ao mar profundo. Sumiu da vista dos terrestres e foi-se juntar aos peixes. Eu, ali segurando o volante do barco olhando para tudo quanto é local do mar, tremia. A excitação ainda dominava. Minutos passaram quando dum gole de suspiro saiu acompanhada de pingos de água salgada. Pulou para dentro do barco, sacudiu-se, ligou o motor e dirigiu para do Xai-Xai.
SEXTA-FEIRA, 20 DE JULHO DE 2012
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Conceição Evaristo Conceição Evaristo nasceu em 29 de Dezembro de 1946 numa favela da zona sul de Belo Horizonte. Teve que conciliar os estudos com o trabalho como empregada doméstica, até concluir o curso Normal, em 1971, já aos 25 anos. Mudou-se então para o Rio de Janeiro, onde passou num concurso público para o magistério e estudou Letras na UFRJ. Na década de 1980, entrou em contacto com o Grupo Quilombhoje. Estreou na literatura em 1990, com obras publicadas na série Cadernos Negros, publicada pela organização. É Mestra em Literatura Brasileira pela PUC-Rio, e Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Suas obras, em especial o romance Ponciá Vicêncio, de 2003, abordam temas como a discriminação racial, de género e de classe. A obra foi traduzida para o idioma inglês e publicada nos Estados Unidos em 2007.
Obras Recordar é preciso
Romance Ponciá Vicêncio (2003) Becos da Memória (2006)
Eu-Mulher
Poesia Poemas da recordação e outros movimentos (2008) Contos Insubmissas lágrimas de mulheres (Nandyala, 2011) Participações em antologias Cadernos Negros (Quilombhoje, 1990) Contos Afros (Quilombhoje) Contos do mar sem fim (Editora Pallas) Questão de Pele (Língua Geral) Schwarze prosa (Alemanha, 1993) Moving beyond boundaries: international dimension of black women‘s writing (1995) Women righting – Afro-brazilian Women‘s Short Fiction (Inglaterra, 2005) Finally Us: contemporary black brazilian women writers (1995) Callaloo, vols. 18 e 30 (1995, 2008) Fourteen female voices from Brazil (EUA, 2002), Estados Unidos Chimurenga People (África do Sul, 2007) Brasil-África: como se o mar fosse mentira (Brasil/Angola, 2006)
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Uma gota de leite me escorre entre os seios. Uma mancha de sangue me enfeita entre as pernas. Meia palavra mordida me foge da boca. Vagos desejos insinuam esperanças. Eu-mulher em rios vermelhos inauguro a vida. Em baixa voz violento os tímpanos do mundo. Antevejo. Antecipo. Antes-vivo Antes – agora – o que há de vir. Eu fêmea-matriz. Eu força-motriz. Eu-mulher abrigo da semente moto-contínuo do mundo.
O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos A memória bravia lança o leme: Recordar é preciso. O movimento vaivém nas águas-lembranças dos meus marejados olhos transborda-me a vida, salgando-me o rosto e o gosto. Sou eternamente náufraga, mas os fundos oceanos não me amedrontam e nem me imobilizam. Uma paixão profunda é a bóia que me emerge. Sei que o mistério subsiste além das águas.
SEXTA-FEIRA, 20 DE JULHO DE 2012
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| Por: Érica Antunes Pereira - Brasil Doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP).
As (in)diferenças sociais nas vozes poéticas de Alda Espírito Santo e Noémia de Sousa
R
ESUMO: Amparados pelos estudos de Frantz Fanon (1979) e Albert Memmi (1989), pretendemos analisar os poemas “Passe” de Noémia de Sousa e ―Construir‖ de Alda Espírito Santo a fim de demonstrar a preocupação dessas autoras no que diz respeito às (in)diferenças sociais. PALAVRAS-CHAVE: Literaturas Africanas de Língua Portuguesa; Poesia engajada; Alda EspíritoSanto; Noémia de Sousa Nascidas em 1926, a são-tomense Alda Espírito Santo e a moçambicana Noémia de Sousa se tornaram figuras exponenciais das literaturas africanas de língua portuguesa tanto pela qualidade estética de sua poesia quanto por denunciarem a situação colonial desde o fim dos anos 40, dando voz aos oprimidos e numa postura que advém das (in) diferenças e das injustiças sociais experimentadas pelas autoras desde muito cedo. Noémia de Sousa, por exemplo, fala sobre sua ―tomada de consciência‖ em entrevista concedida a Michel Laban (1998), merecendo destaque duas passagens: E eu lembro-me de uma vez estar num autocarro, num machimbombo, como se chama lá [em Moçambique], a ler um livro e um ―senhor‖ troçar de mim. Foi uma coisa, eu era uma criança, devia ter para aí dez anos, que me chocou muito, tanto mais que se me dirigiu macaqueando a pronúncia do negro a falar português, com um forte sotaque, a insinuar que eu não sabia ler e que estava a fingir para mostrar aos brancos. Eu era uma miúda e ele chocou-me, está a ver? (p. 267) Mesmo na igreja o negro tinha que ficar lá para trás, nos bancos de trás; nos autocarros, aquele banco corrido, assim de trás, era para eles, não podiam vir à frente. Nós éramos descendentes de colonos, nós mestiços tínhamos direito a ficar em qualquer lugar, mas eu via os outros lá atrás. Eu via a mulher grávida negra que ficava de pé e se não fosse um dos negros a dar-lhe o lugar ninguém lhe dava; mas a senhora branca que entrava, tinha logo, fosse quem fosse, alguém que se levantasse para lhe dar o lugar, grávida ou não grávida... (p. 268-269)
Também Alda Espírito Santo, em entrevista ao mesmo Michel Laban (2002, p. 67), afirma:
... eu cresci, durante uns oito anos, num colégio de freiras, no norte de Portugal, e só quando a minha mãe chegou a Portugal e nos levou – eu e a minha irmã – para Lisboa, encontrei um grupo de parentes e amigos africanos. Lá no Norte de Portugal havia poucos negros. Na rua diziam-nos: ―Preta, mulata, nariz de macaca‖ e por aí fora outras coisas disparatadas, mas felizmente nada disso me afectou. Depois é que tomamos contacto com o mundo, Tínhamos um primo chamado Arlindo Espírito Santo que andava à descoberta das pessoas! Ele é que nos levou o Mário de Andrade, o Agostinho Neto – todo o mundo com que entrámos em contacto. Foi toda uma descoberta que nos levou a tomar consciência de nós mesmos.
Esse sentimento de injustiça suscitado na infância das duas autoras se acentuou com o correr dos anos e deu passagem, no final da década de 40, ao que Roberto Pontes (1999, p. 30) chamou de “poesia insubmissa”, caracterizada por conter “um tom de luta e libertação‖ capaz de ―modificar [o] comportamento coletivo, ainda que por um instante‖. No início da década de 50, Alda Espírito Santo e Noémia de Sousa se conheceram em Lisboa, no número 37 da Rua Actor Vale2, ou, simplesmente, na casa da Tia Andreza, como ficou conhecida a morada da família Espírito Santo que, ao abrir as portas aos então jovens intelectuais africanos, ―permitiu a aproximação de gerações e a transmissão de um caldo de cultura em vias de se perder‖ (MOURÃO, 1997, p. 125). Isso porque o objetivo dos estudos junto ao Centro de Estudos Africanos, como passou a ser conhecido o grupo realizador das tertúlias, era
o retorno às fontes, a redescoberta do Eu africano, a reafricanização de assimilados que eles eram de facto, a tomada de consciência da total alienação, pelo facto de terem sido os pouco eleitos ‗portugalizados‘ que conseguiram ultrapassar todas as barreiras e atingir a suprema etapa do ingresso nas universidades portuguesas (ROCHA, 2003, p. 89).
Difundiu-se, assim, o ―discurso da diferença‖ característico da Negritude africana de língua portuguesa e que, segundo Pires Laranjeira (1995, p. 17; 498), foi a ―única corrente estético-literária que deu expressão ao homem negro considerado no seu conjunto e universalidade‖ naquele período. Alda Espírito Santo e Noémia de Sousa fizeram parte dessa geração de 50 e contribuíram quer para a (re)afirmação dos valores africanos, quer como fomentadoras da luta pela independência que começava a brotar. Isso porque, à medida que a representação desse homem negro e colonizado ocorria e se acentuavam as diferenças em relação ao branco colonizador, tornava-se possível cogitar no ―enraizamento e autonomia das respectivas literaturas‖ (LARANJEIRA, 1995, p. 503), pois “quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade‖ (SILVA, 2005, p.91). Seguindo essa senda, observamos que a poesia dessas duas autoras contém um alto teor de denúncia das (in)diferenças sociais, entendidas por nós como um processo dialético que, a partir da perspectiva de um sujeito poético colonizado, realça: a) a diferença social experimentada pelo colonizado – descrito, nesse caso, a partir do uso de adjetivos que possuem conotação negativa (―despojado‖, ―escorraçado‖, entre outros) – , diante de uma situação fática que, normalmente, está ligada ao processo de colonização; e, b) a indiferença do colonizador quanto à sorte do colonizado, mas numa esfera que pende para a ideal – e que, talvez, quem sabe, não corresponda à ótica do colonizador, tido como aquele que se ―esquece‖ do outro ―na hora do banquete‖ ou como ―o carrasco‖ que não se digna a ensaiar o menor gesto de bondade –, pois o ponto de vista do sujeito poético é sempre parcial, ou seja, é a perspectiva do colonizado a tomada como válida e verdadeira nos poemas das autoras em apreço. Para termos uma noção mais acurada de tal fato, vejamos de perto dois poemas que bem ilustram as (in)diferenças sociais, a começar por ―Passe‖ de Noémia de Sousa (2001, p. 41-43). Datado de 6 de setembro de 1950, este poema dá, como dissemos há pouco, voz ao colonizado, então considerado ―indígena‖, para contestar a exigência de apresentar o ―passe‖, documento que continha uma espécie de histórico pessoal em que eram anotados os trabalhos prestados e os castigos sofridos, caso houvesse3, pelo colonizado: Passe A ti, que nos exiges um passe para podermos passear pelos caminhos hostis da nossa terra, diremos quem somos, diremos quem somos: — Eternos esquecidos na hora do banquete,
abandonam-nos sempre na rua húmida, reluzente de noite, e oferecem-nos apenas o espectáculo das janelas iluminadas, dos risos estrídulos, e a amarga ironia das nossas canções negras filtradas como aguardente de cana por lábios finos e cruéis... Nós somos os filhos adoptivos e os ilegítimos, que vossos corações tímidos, desejosos de comprar o céu – ou a vida, vieram arrancar aos trilhos ladeados de micaias, para depois nos lançarem, despidos das peles e das azagaias, —- ah, despojados dos diamantes do solo e do marfim, despojados da nossa profunda consciência de homens — nos tantos metros quadros4 dos bairros de zinco e caniço! Nós somos sombras para os vossos olhos, somos fantasmas. Mas, como estamos vivos, extraordinariamente vivos e despertos! Com sonhos de melodia no fundo dos olhos abertos, somos muchopes de penas saudosas nos chapéus de lixo; e zampunganas trágicos – xipócués vagos nas noites munhuanenses, e mamparras coroados de esperança, e magaíças, e macambúzios com seu shipalapala ecoando chamamentos... No cais da cidade, somos os pachiças e na Vida digna, somos aqueles que encontraram os lugares tomados, somos os que não têm lugar na Vida, ah na Vida que se abre, luminosa, com cada dia de pétala! Nós somos aqueles que só na revolta encontram refúgio. Que se deixam possuir, ébrios, pelo feitiço dos tambores, nos batuques nocturnos da vingança, somos aqueles que modelam sua dor de braços torcidos no pau preto do Norte, a dor deformadora que mais tarde despertará o desprezo e a incompreensão nas prateleiras dos museus da civilização... Somos os despojados, somos os despojados! Aqueles a quem tudo foi roubado, Pátria e dignidade, Mãe e riquezas e crenças, e Liberdade! Até a voz da nossa Raça, da revolta dos nossos corpos tatuados, nos foi roubada para embriaguez de vossos sentidos anémicos, arrastando-se nos bailes frios iluminados a electricidade... Despojados, ficámos nus e trémulos, nus na abjecta escravidão dos séculos... Mas com o calor da chama eterna das nossas fogueiras acesas, crepitando, rubras, sobre os dias e as noites, com vaga-lumes de protesto, de gritos, de esperança! — Agora, que sabes quem somos, não nos exijas mais a ignomínia do ―passe‖ das vossas leis! O sujeito poético, em ―Passe‖, é um ―nós‖ que, dirigindo-se a um interlocutor – o colonizador – , dá-se a conhecer e manifesta sua consciência e indignação quanto aos desmandos impostos por aquele. O tom é, de certa forma, agressivo, irônico, e pode ser constatado, na tessitura do poema, pela reiteração e pela sonoridade revelada pelos muitos ―ss‖ – ―passe‖, ―passear‖, ―nossa‖, ―somos‖ são alguns exemplos – indicativos de uma ―poética da voz‖ que escapa ―ao exílio silencioso da escrita‖ (LEITE, 1998, p. 107). Logo na primeira estrofe, valendo-se do pronome possessivo ―nossa‖ para qualificar a terra, esse sujeito poético inaugura uma via contestatória que subverte os fatos e põe o colonizador em seu devido lugar: um lugar que, certamente, não cabe na ―nossa terra‖! Tanto essa idéia tem fundamento que vários recursos utilizados no poema, como os versos extensos e os sinais de pontuação, insinuam, para além do discurso narrativo, a fala proferida em público, típica das ―bocas malditas‖, ou seja, das tribunas livres, dos espaços dedicados às denúncias e aos protestos. Nesse sentido, ao se definir como os ―eternos esquecidos na hora do banquete‖, o ―nós‖ põe em xeque tanto as diferenças quanto as indiferenças sociais: se, por um lado, há ―um banquete‖, pelo outro, há os ―eternos esquecidos‖, os abandonados ―sempre na rua húmida, reluzente de noite‖. As oposições constituem a base do poema conforme a figura do colonizador aparece descrita com toques de uma luminosidade que não é compartilhada pelo colonizado. No entanto, antes que imaginemos que este esteja em total desvantagem, lembremos da reversão da negatividade em positividade e vice-versa de que tão bem trata Albert Memmi (1989, p. 117-120) para perceber que, em ―Passe‖, os signos luminosos, cuja simbologia costuma ser ligada à bondade, adquirem perspectiva absolutamente contrária, prestando-se para assinalar, como aludimos há pouco, tanto a crueza indiferente do colonizador quanto a diferença social havida entre ele e o colonizado. Eleger o ―nós‖ como sujeito poético, portanto, é uma estratégia bastante significativa, pois estabelece uma relação interdependente entre a coletividade e a subjetividade que, como analisa Laura Cavalcante Padilha (2002, p. 185), faz com que ―o desejo de transformação‖ seja ―mostrado como um desejo de todos, o que o torna mais ameaçador‖. Em tal aspecto, é emblemática a penúltima estrofe que, ao enunciar ―Somos os despojados, somos os despojados!‖, irrompe de vez o grito, dando voz, ainda que subsista o teor subjetivo, à coletividade. Nessa mesma estrofe, o par opositivo luminosidade versus obscuridade é pungente e reitera o que afirmamos há pouco quanto à assunção de significado diverso do habitual: os bailes do colonizador passam a ser tachados como ―frios iluminados a electricidade‖ e, apesar do despojamento, da nudez e do medo imposto ao colonizado, este subverte a ordem para manter ―o calor da chama eterna das nossas fogueiras acesas,/ crepitando, rubras, sobre os dias e as noites,/ com vaga-lumes de protesto, de gritos, de esperança!‖ Em outras palavras, ao afirmar, de modo recorrente, ―Nós somos‖ ou, apenas, ―Somos‖, o sujeito poético cria uma identidade opositora à identidade do colonizador, pois, modificando a perspectiva do olhar que, até então, era o do ―outro‖, (re)conhece-se a si próprio. Por conseqüência, se pensarmos que a toda identidade corresponde uma diferença, logo vemos que esse é um processo dinâmico cuja significação se ampara nas relações de poder, na disputa contínua para mantê-lo ou conquistá-lo. É exatamente essa vontade de reivindicar o próprio espaço, a própria identidade, que observamos nos dois versos que desfecham o poema: ―^ Agora, que sabes quem somos,/ não nos exijas mais a ignomínia do ‗passe‘ das vossas leis!‖ O poema ―Construir‖ de Alda Espírito Santo (2006a, p. 65), tal qual o de Noémia de Sousa, foi escrito em 1950 e focaliza as (in)diferenças sociais sob a perspectiva da coletividade. Vejamos: Construir
SEXTA-FEIRA, 20 DE JULHO DE 2012
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LITERATAS
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Construir sobre a fachada do luar das nossas terras Um mundo novo onde o amor campeia, unindo os homens de todas as terras Por sobre os recalques, os ódios e as incompreensões, as torturas de todas as eras É um longo caminho a percorrer no mundo dos homens. É difícil sim, percorrer este longo caminho De longe de toda a África martirizada. Crucificada todos os dias na alma dos seus filhos. É difícil sim, recordar o pai esbofeteado Pelo despotismo dum tirano qualquer A irmã violada pelo mais forte, os irmãos morrendo nas minas Enquanto os argentários amontoam o oiro É difícil sim percorrer esse longo caminho Contemplando o cemitério dos mortos lançados ao mar Na demência dum louco do poder, caminhando impune para a frente, sem temer a justiça dos homens É difícil sim, perdoar os carrascos Esquecer as terras donde nos escorraçaram As galeras transportando nossas avós para outros continentes Lançando no mar as cargas humanas Se os navios negreiros têm lastro em demasia, é difícil sim, Esquecer todos esses anos de torturas e inundar o mundo luz5 De paz e de amor, na hora fatal do ajuste de contas. É difícil sim, mas um erro não justifica outro erro igual. Na construção de um mundo novo à sombra das nossas terras maravilhosas, juramos não sofrer uma afronta igual Mas receber conscientes os6 amor onde há fraternidade Espalhando assim o grito potente da nossa apregoada selvajaria Mas essa hora tarde e os gritos do deserto espreitam Por sobre as nossas cabeças encanecidas da longa espera Mas os nossos sonhos hão-de abrir clareiras nos eternos luares Dos nossos desertos assombrados.
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Uma outra observação que não nos pode passar é que, da mesma forma que no poema de Noémia de Sousa, o par opositivo luminosidade versus obscuridade aparece bem demarcado também nesse de Alda Espírito Santo. Todavia, a simbologia, em ―Construir‖, não é subversiva como em ―Passe‖; aqui, a luminosidade indicia, de fato, algo benéfico, como vemos nos dois versos finais: ―Mas os nossos sonhos hão-de abrir clareiras nos eternos luares/ Dos nossos desertos assombrados‖. Notável é a intensidade de luz desejada pelo sujeito poético: não bastam os ―luares‖, eles são reforçados com o adjetivo ―eternos‖ e com o substantivo ―clareiras‖, formando um conjunto de imagens que, justaposto aos ―nossos sonhos‖, norteia a vontade de realizar a ―construção de um mundo novo à sombra das nossas/ terras maravilhosas‖. Em contrapartida, o passado é referido como ―nossos desertos assombrados‖, numa remissão às crueldades cometidas pelo colonizador. Retomando a idéia do engajamento e da combatividade na poesia de Alda Espírito Santo, os versos livres e extensos que se aproximam da prosa e o emprego reiterado dos verbos de ação, já a começar pelo título do poema – ―Construir‖ –, têm sua importância, pois, ao contrário do que se espera, o sujeito poético tece as malhas de uma revolta que não se ampara na luta armada, mas na edificação: ―um erro não justifica outro erro igual‖. Como vemos, tanto o poema ―Passe‖ de Noémia de Sousa quanto o poema ―Construir‖ de Alda Espírito Santo apontam para as (in)diferenças sociais e denunciam, cada um com suas características específicas, a situação colonial opressiva e violenta à que se opõe um sujeito poético coletivo – um ―nós‖ – que, fazendo uso da voz ou do gesto, não se queda na inércia jamais.
NOTAS:
2. A respeito da ocasião, Alda Espírito Santo escreve: “Tivemos conhecimento da chegada de Noémia de Sousa a Portugal e logo nos pusemos em contacto com ela. De pronto, uma tarde, Noémia entrava serenamente na residência da Actor Vale-37 e, para sempre, uma amizade segura nos uniu‖ (2006, p. 47). 3 Em entrevista a Michel Laban (1998, p. 315), Noémia de Sousa explica o significado do “passe” como “uma espécie de caderneta, quer dizer identificação da pessoa e depois, por todos os sítios onde ele ia trabalhando, os patrões iam pondo anotações: se o mandavam ao posto para ser castigado, era lá registado. De maneira que se se desse uma má informação num passe, nunca mais podia arranjar trabalho, não é?‖ 4 Cremos que, aqui, o correto seria “quadrados”, mas optamos por transcrever exatamente como aparece na edição de Sangue negro de 2001. 5 Questionamos se não há um equívoco nesta edição da obra, pois nos parece que a palavra “luz” faz parte doverso anterior. 6 Também aqui temos a impressão de haver um equívoco; seria mais adequado que o artigo estivesse no singular.
Ao lermos o poema ―Construir‖, temos a sensação de que ele é uma espécie de continuidade de ―Passe‖, pois, ao contrário deste, o sujeito poético – também um ―nós‖ – já se mostra consciente da própria identidade, de modo que sua reivindicação, agora, não é mais retirar o poder das mãos do colonizador, mas, conforme sinaliza desde o título, ―Construir‖ ―um mundo novo onde o amor campeia, unindo os homens/ de todas as terras‖. ―Construir‖ é um poema que, com os olhos baseados na esperança, se volta para o futuro, mas sem esquecer a injustiça vivenciada pelo colonizado no curso dos anos; ela está, segundo o sujeito poético, ―Crucificada todos os dias na alma dos seus filhos‖. Tanto isso é verdade que há quatro anáforas (re)afirmativas – ―É difícil sim‖ – para introduzir as (in) diferenças sociais ao longo dos trinta e três versos que constituem o poema e dentre as quais destacamos, só para exemplificar, a imagem do ―pai esbofeteado/ Pelo despotismo dum tirano qualquer/ A irmã violada pelo mais forte, os irmãos morrendo nas minas/ Enquanto os argentários amontoam o oiro‖. Ainda que a própria Alda Espírito Santo, em entrevista concedida a Michel Laban (2002, p. 100), qualifique a sua poesia como sendo “de solidariedade”, tem razão Laura Cavalcante Padilha (2006, p. 21) quando afirma que se trata de ―uma solidariedade aos iguais‖, posto responder a violência imprimida pelo colonizador com a violência do ―fogo de sua fala‖. Nessa mesma linha, invocamos Frantz Fanon (1979, p. 193), para quem o homem colonizado que escreve para seu povo deve, quando utiliza o passado, fazê-lo com o propósito de abrir o futuro, convidar à ação, fundar a esperança. Mas para garantir a esperança, para lhe dar densidade, é preciso participar da ação, engajar-se de corpo e alma no combate nacional. Confrontando tais idéias com o poema ―Construir‖, percebemos que, de fato, conforme o sujeito poético se vale das agruras do passado para impulsionar os seus pares para a ―construção‖ do futuro, solidariza-se com os mesmos; concomitantemente, a violência dos versos cantados pelo sujeito poético coletivo – um ―nós‖ –, em revide à violência dos atos praticados pelo colonizador, colabora para que um projeto de busca pela identidade nacional seja instalado.
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Referências bibliográficas FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. José Laurênio de Melo. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. LABAN, Michel. Encontro com Noémia de Sousa. In: Moçambique. Encontro com escritores. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 1998, v. 1, p. 243-346. _________. Encontro com Alda Espírito Santo. In: São Tomé e Príncipe. Encontro com escritores. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2002, v. 1, p. 61-104. LARANJEIRA, Pires. A negritude africana de língua portuguesa. Porto: Edições Afrontamento,1995. LEITE, Ana Mafalda. Voz, origem, corpo, narração – poesia de Noémia de Sousa. In: Oralidades & escritas nas literaturas africanas. Lisboa: Edições Colibri, 1998, p. 101-110. MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Trad. Roland Corbisier e Mariza Pinto Coelho. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. MOURÃO, Fernando. Memória dos anos cinqüenta. In: Mensagem. Lisboa: Editora ACEI, 1997, p.125. PADILHA, Laura Cavalcante. Silêncios rompidos. In: Novos pactos, outras ficções: ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p. 171-186. __________. Uma voz insubordinada e solidária. In: MATA, Inocência (coord.). A poesia e a vida: homenagem a Alda Espírito Santo. Lisboa: Edições Colibri, 2006, p. 21-27. PONTES, Roberto. Poesia insubmissa afrobrasilusa: estudo da obra de José Gomes Ferreira, Carlos Drummond de Andrade e Agostinho Neto. Fortaleza: EUFC; Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1999. ROCHA, Edmundo. Angola. Contribuição ao estudo da génese do nacionalismo moderno angolano (período de 1950-1954) (testemunho e estudo documental). Lisboa: Edição do Autor, 2003. SANTO, Alda Espírito. Cantos do solo sagrado. São Tomé e Príncipe: UNEAS, 2006. __________. O coral das ilhas. São Tomé e Príncipe: UNEAS, 2006a. SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 73-102. SOUSA, Noémia de. Sangue negro. Maputo: AEMO, 2001.
Feliz aniversário para as letras da Literatas
o mês de junho, a Revista Literatas completou 1 ano de vida. Cá do atlântico, saúdo essa data querida e desejo a ela longa vida. Que essa criança cresça bem saudável, inventiva e poética. O contentamento que me toma é amplo. Rosália Diogo - Brasil Tentarei, à guisa de nortear o leitor sobre a dimensão da importância que atribuo a esse instrumento de comunicação – trata-se de uma revista que cumpre o propósito de informar, e formar, no planeta, cidadãos interessados em boa prosa sobre a diversidade das marcas literárias que amalgam os continentes. Essa produção cumpre ainda o salutar papel de possibilitar ao leitor conhecer melhor o universo societário moçambicano. Para mim, que tive o privilégio de viver nesse país e usufruir da riqueza cultural lá existente, e, sobretudo, da refinada e gentil forma com a qual o povo daquele país convive conosco, os ―estrangeiros‖. Passei a dizer, porque sinto profundamente, que Moçambique é uma das minhas terras de pertencimento. Destaco algumas matérias publicadas por esses jovens escritores, que enfrentam limitações diversas para nos presentear com esse precioso material de leitura. As temáticas para as quais solicito especial atenção reverberam significativo esforço pessoal que tenho envidado para dar visibilidade à literatura afro-braileira e moçambicana. Afora isso, acentuo a narrativa do escritor Mia Couto, que tem soberbamente traduzido, em nível planetário, os enredos que permeiam o modo de vida e os embates presentes no seu país. O primeiro acesso que tive da revista foi por meio da edição número 2, datada de julho de 2011, quando se passavam poucos dias que havia retornado ao Brasil, após ter traçado, no
Centro Cultural Brasil-Moçambique, um pouco da literatura afro-brasileira de Conceição Evaristo e Paulina Chiziane. Na ocasião, privilegiei as marcas textuais das duas escritoras que nos facultam uma melhor compreensão do modo feminino de ver o mundo por meio da matéria poética e prosaica. Com perspicácia, os organizadores do semanário registraram a minha tentativa de estreitar relações culturais e afetivas com Moçambique. Também em 2011, o escritor Mia Couto enriquece o espaço das Letras Literatas para dissertar sobre a provisoriedade que o mundo, e os desafios para o continente africano, que assume características de acentuadas diferenças no que se refere à parte subsaariana em comparação à parte norte, cujos países muitas vezes desconhecida como pertencente ao conjunto do continente. O mote da escrita de Couto foi a situação caótica vivida pela Líbia, ainda sob a batuta do ditador Kadhafi. Tendo observado de perto os embates, limites e possibilidades experimentados pelos ecos do norte que chegaram a Moçambique, quando lá estive, de novo me senti profundamente tocada pelo assunto. Em se tratando de Mia Couto, dotado de reconhecida sensibilidade para compreender e encenar no campo literário as alegrias e dores do mundo, o seu relato nos impulsiona a pensar em alguns desafios a serem vencidos na cena contemporânea. Em uma edição posterior, já em 2012, me apropriando desse instrumento, por meio do qual me cederam cadeira cativa para partilhar impressões e testemunhos, relatei a vinda da escritora Paulina chiziane ao Brasil e a sua valorosa contribuição na I Bienal do Livro e da Leitura de Brasília. No evento, Chiziane, além de traçar um elucidador papel da matéria literária de Moçambique, teceu importante críticas acerca da influência da televisão e da igreja brasileira em seu país. Espero, com muita energia n‘alma, que instrumentos de comunicação como a Revista Literatas tenha longa vida, crescendo bem, como está a cada edição, incorporando poetas ao seu conteúdo, pois, como preconiza o nosso saudoso poeta Mário Quintana, na edição número 2, ― Poetar não é profissão. É um estado de espírito, ou de coma‖. Assim, parabenizo aos criadores dessa revista, ao amigo Calane da Silva, que cede o centro Cultural Brasil-Moçambique para a gestão do projeto, aos colabores e leitores, que dão boa sustentação para a vida desse gracioso bebê. Decerto, em breve, na sua fase adulta, será motivo para que possamos olhar para trás e dizer com orgulho: que bom que cuidamos com carinho e vigor dessa nossa cria. Da minha parte, só tenho a dizer em português – obrigada ou me expressar no falar dos moçambicanos: Kanimambo!
NOTA EDITORIAL: Por motivos técnicos, este texto não foi publicado na sua totalidade na edição passada, por isso a sua repetição na íntegra. Por transtornos que isto terá causado, nossas poéticas desculpas aos leitores e em particular a autora: Rosália Diogo. Kanimambo!
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LITERATAS
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Croniconto Os conselhos de rua
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Vovó Fina Quem me dera encontrar o verso puro, O verso altivo e forte, estranho e duro, Que dissesse, a chorar, isto que sinto!! Florbela Espanca, in Livro de Mágoas
Dany Wambire - Moçambique
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stá mais do que provado que educação tradicional, a educação não formal, está a cair de pára-quedas abaixo em Fim-de-Mundo, resultado da influência virulenta da globalização. Entre as educações, triunfou a educação informal, trazendo novos valores, produzidos copiosamente pela modernidade. Sim, foi-se abandonando os preceitos da educação tradicional, a educação não formal, e também a ela. Então, perdeu-se uma instituição que preparava homens e mulheres para a construção e a harmonia sociais. E ganhou, como já disse, a educação informal, a que os fim-de-mundenses apelidam-na educação de rua ou conselhos de rua. E a cumprir esta educação, está Tugénio Escandaloso, homem antes bastante observador dos bons costumes. Livre dos comuns vícios, Tugénio viu sua felicidade ameaçada aquando de uns conselhos que ele recebia numa certa barraca. Tudo começou quando os amigos convidaram-no a beber. Ele foi a acompanhar os amigos ao local onde os amigos compravam, a alto preço, a embriaguez. Com efeito, foram pedindo as bebidas e os respectivos copos. E Tugénio recusou, mas não redondamente, consumir qualquer espécie de bebida, com menos ou mais álcool, o que deixou os amigos irritados e maldispostos. Até não beber, não era mau! Mas, maquiavelicamente podia-se justificar esse mal-estar dos amigos de Tugénio Escandaloso: o homem que quiser ser recto no meio de tortos homens, convoca o seu caixão, sua morte, sua procissão de funeral e a sua sepultura. Até as flores que dão beleza os tectos das campas. E ele bem disso sabia. Mas esse Tugénio foi apresentando resistências. ― Amigos, eu não bebo. Nunca bebi e não quero beber álcool. No seguido, lhe desceram elogios dissimulados vindos dos amigos de média data, que o ladeavam, aí na barraca. ― Isto é bom! Mesmo nós bebemos por força maior! ― Por força maior? Como por força maior? ― Sim, por força maior do vício. Foram explicando que bebiam não por gosto pela bebida, mas sim pelo medo do vício maior, o das mulheres. Quer dizer, eles bebiam e fumavam para se evadirem da mulheringuice. Pois, segundo eles, ninguém escapava a todos vícios, por completo. Então, imperioso era eleger o mal menor, um vício inofensivo e pouco dispendioso ― se é que existe. E como Tugénio detestava prostituir ou mesmo das prostiputas, escolheu também beber, acrescendo o clube de bêbedos de Fim-deMundo. Todavia, convencer-lhe a beber, não foi suficiente. Como a pândega continuava imparável, vieram os outros conselhos, com destaque para o de conflitos conjugais. Disseram todos, com excepção de Tugénio, em uníssono que as brigas fortificam as relações. ― Um casal deve lutar de vez em quando, ou o homem deve bater na sua esposa. ― Mas não é necessário. ― Reagiu Tugénio. ― É necessário, Tugénio, porque no primeiro dia que discutirem ou lutarem, acaba o lar. Alongou-se o debate. E a maioria é que vence, apesar de, às vezes, ser cega ou inconsciente, como foi o caso. E Tugénio foi pensando na sua relação com a esposa, Sidália Infectada. Nos dez anos de casamento, ele jamais encostou na pele ou no cabelo da mulher com violência. E isso, segundo os amigos, era mau. Foi então, a partir desse inexacto momento, que Tugénio Escandaloso foi batendo na mulher, depois de regressar de uma bebedeira. E o mais engraçado é que ele gritava, divulgando motivos enquanto dirigia sovas à mulher. ― Estou a te bater para que o nosso casamento seja mais forte, mais duradoiro!
Eduardo Quive - Moçambique
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erá sido no dia 12 de Julho, data em que meu pai completava 30 dias de pós-vivo, que faleceu a vovó Alfina, vovó Fina como carinhosamente era tratada nos caminhos errantes da vida. Agora baba e vaga noutras terras, onde se quer o mundo a pode ver. Tal mundo não é onde me encontro, porque eu, a vejo como quero e quando quero, eu não sou daqui. Vejo vovó Fina, vovó Olinda, Garande, Eva, Pire, Sitoi, Muholovi, Maússe entre outros defuntos da minha rua mortífera. Vejo-os na matina e ao anoitecer, de dia, devaneamos entre vivos fingidos de poeiras e outros ventos que os mundanos precisam para viver. Nós morremos para dar vida aos vivos, assim como os vivos assim o são para dar vida a nós mortos. Tudo hipocrisias e tolices de um soberano que se inventa de invisível. Mas esse também o conheço. Sofre com os sons de José Guimarães, Alexandre Langa, o Kid Munhamane, Tony Django, Matchionguezi no delírio da escrita de Sebastião Alba, Heliodoro Batista e Amin Nordine, todos artistas que também me fazem sofrer. Ah! Quem sou eu sem esses moribundos? E consumada que ficou a morte da vovó Fina naquela quinta -feira friorenta de Julho, outros ventos sopram entre os vivos e porque o seu enterro foi de dia, escapuli-me da tumba para celebrar entre chorudos a sua ascensão. Comoção a mistura de raiva pela desorganização da natureza norteou o meu espírito fugitivo. Mas de tudo, a nostalgia foi maior. Lembrei-me do pão partilhado entre nós, seus netos por afecto e seus netos de sangue, sem nenhum separatismo. Pão e salada de alface que ela cultivava na machamba do ka Rosa, caiam -nos bem, a sabor de óleo de peixe sobrado da refeição de ontem, sentados bem embaixo da mafureira ou da árvore das saborosas tangerinas que nos roubava as noites enquanto roubavamos em silêncio. Vovó Sambo, como também a tratávamos, de capulana garrida e lenço na cabeça que escondia o cabelo branco, de costas inclinadas pela velhice, se quer deixava derrubar pela falta que o tempo nos dava do sagrado alimento. Parava do muro e nos chamava lá de casa em surdina (para que a minha mão não ouvisse e nos proibisse) para que fossemos ao raríssimo almoço que saia das suas mãos de camponesa. Felizes, nós, os netos de fora e os de casa, Marcinha, Dinoca, Clarinha, sentados ao seu redor, nos deliciávamos. Saciar não era a meta, o que valia mesmo, era enganar o estômago como mandam as normas da nossa pobreza. Todas crianças da rua brincavam naquele quintal onde amizades moldavam-se de dia e de noite, sem temermos as horas. Tudo isso me vinha naquele dia 14, tarde de funeral triste, em que um ciclo se fechava na vida daquela que era avó minha e de outras crianças da minha rua, sem saber distinguir a ligação sanguínea. Que lágrimas chorariam tão nobre idosa que de facto precisava cessar as suas funções neste mundo em que apesar do bem maior, há sempre espaço para invejas e desamores? Enquanto hinos se entoavam para tornar sagrado o momento, não me cabia lágrimas daquele fim, apenas estas e outras nostalgias. Das quantas vezes alegres, em que de noite gritávamos canções infantis, corríamos atazanados no seu quintal, entravamos lá dentro enquanto ela dormia, desarrumávamos o quanto podíamos, roubávamos o milho e a mandioca para as nossas barrigas cheias de vontades insaciáveis. Lembro-me das orações obrigatórias que eram uma rotina na hora de tomar qualquer refeição. Agradecer a Deus pelo alimento que nos dá sem sermos cumpridores dos seus mandamentos. Orar pela barriga que vai saciar com dois graus de arroz do sacrifício da velha que não sabe pensar só em si. Obrigado Deus pelo pão-nosso de cada dia, isso tínhamos que dizer sempre, vovó Fina fazia questão. A morte é mesmo uma oportunidade para ingratos como nós que enquanto vivas as pessoas não as sabemos glorificar como tanto merecem. É uma oportunidade para os errantes caírem em si, comendo do próprio remorso, fruto do desleixo da vida que se quer conhecem a sua origem. Lembrei-me do seu modo de falar dos ma-Dindindi. Vovó Fina que era de Ka Nhaka, pessoa multicultural e multivivida já falecida, como era possível me lembrar de tanta coisa? Vi lágrimas. Vi gente olhando ao além, sem certeza de que viveriam para ver mais mortes. Vi dor esmagando gente sem compaixão, tal como vi Deus a matar toda essa gente, sem se quer lembrar-se dos que ficam na terra. Deus calado e sínico que levou o pai de Netinho, o tio Pedro, esposo da tia Lalate; Levou a vovó Lodovina, a mu-Cabuverdiana; Deus que matou a mãe da Yolanda ainda cheia de vida, matou a tia Laurinda e ainda levou a minha irmã, mana Luizinha, o meu irmão, mano Orlando, o meu chará e o meu pai. Deus bandido.
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