Revista Literatas #64

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Revista moçambicana& a complexidade da nossa identidade

literatas Junho | 2016 | Edição 64

Carlos Paradona Rufino Roque

FESTIVAL DE TEATRO ARRANCOU 28 DE MAIO

FITI - Festival Internacional Teatro de Inverno - é um evento internacional que envolve companhias de Teatro Nacionais e Internacionais com o objectivo de divulgar o produto artístico dos grupos teatrais, proporcionar o intercâmbio e a troca de experiências entre os grupos, bem como proporcionar oportunidades de formação e impulsionar o associativismo cultural. A Edição 2016 conta com Companhias de Moçambique, Angola e África do Sul.

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“Há antepassados no Zambeze” “NIKETCHE” EM CONSTANTE METAMORFOSE

Esteve em exibição no Centro Cultural Brasil-Moçambique (CCBM), em Maputo, o espectáculo Niketche Musical, uma produção de Kukarachas Galeria com direcção e encenação de Elliot Alex e coreografia de Ademar Chaúque, em reposição, depois de apresentação em Abril do corrente ano no Franco Moçambicano.

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LITERATAS

ÍNDICE CONCURSO LITERÁRIO FIM DO CAMINHO 2016

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DIA-A-DIA

AZGO 2016: DO PRÍNCIPE

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GUERREIRO AO REI AZAGAIA

MÚSICA “CABE AO LEITOR O PAPEL DE CUM-

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PLICIDADE COM O NARRADOR”

ENTREPALAVRAS

“NIKETCHE” EM CONSTANTE METAMORFOSE

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TEATRO

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AS CORES SÃO O SILÊNCIO EM MOVIMENTO* ARTES PLÁSTCICAS

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POESIA

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PROSA&CONTOS

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LITERATURA INFANTIL

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O REGRESSO DO XIBALO VAGENS

FICHA TÉCNICA

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Propriedade: Associação Movimento Literário Kuphaluxa | Av. 25 de Setembro, Nr.1728 (Centro Cultural Brasil-Moçambique), Maputo Colaboradores: Arnaldo Mosse, Guilherme Roda, Ronaldo Cagiano, Ganganhane Masseve, Eduardo Quive, Hermínio Alves, Poeta Militar, Nelson Lineu, Tânia Tomé, Pinto de Abreu e Filipe Stefani. Director Editorial: Nélio Nhamposse (825661276) Projecto Gráfico e Paginação: Mélio Tinga (844846486) Fotografia: Nito Zay Publicidade: Vice Versa (viceversa.servicos@gmail.com) Email: r.literatas@gmail.com

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EDITORIAL

OS ETERNOS MISTÉRIOS DO ZAMBEZE As artes são, por excelência, um campo de análise fecundo e sobretudo plurívoco, um eterno meio de questionamentos e de busca de respostas frequentemente especulatórias. Este provável editorial não passa de um mero exercício hermenêutico especulatório, pois, julgamos nós, as artes especulam-se por si só. Numa entrevista profícua e densa, Carlos Paradona, poeta e escritor, assegura-nos que “há antepassados no Zambeze” e ai justifica-se todo o misticismo daí resultante em torno do rio. É que quer em “Tchanaze, a Donzela de Sena”, quer em “N´tsai Tchassassa a Virgem de Missangas”, Paradona diz que “as histórias não têm nada de ficção. E se têm, de certeza, não é o narrador que ficciona. As histórias são aquelas, tal e qual são contadas à volta da lareira, numa noite amendoada de estrelas. As pessoas são aquelas e os lugares também”. Isto, dito por quem o diz, dá corpo e alma a todas as estórias que nos são descritas sobre o Zambeze. Esta entrevista permite-nos, diga-se, uma viagem pelo Zambeze, pelas suas tradições e crenças, mas, particularmente, um convívio com feiticeiros, bruxos, curandeiros e adivinhos. Um eterno manifesto sobre o rio, que cruza países e latitudes e escreve por si só os seus versos épicos. Um rio em constantes desequilíbrios entre os seus habitantes naturais e os que do mesmo ganham como sobreviver. Quem desaparece no Zambeze, não desaparece necessariamente, simplesmente muda de habitat para com os seus. Afinal, debaixo mesmo “há vida para além desta”. Existem cheiros e gostos; paixões e amores e, porque não, jasmins para espalhar alacridade num país onde o tempo não existe. Por outro lado e não menos importante, e mais do que uma peregrinação pelo mundo do dedilhar, ainda nesta edição registo digno vai para o Festival Azgo, uma religião para o público. Quando Azagaia subiu ao palco, o público ressuscitou e delirou. E Deltino Guerreiro estonteou com a sua melódica voz, a sereia de Ulisses. A fronteira entre a emoção e o fascínio tornou-se ténue e os mais sensíveis sucumbiam pelo que viam. Puro êxtase. De certo, tratou-se de um evento que mal terminou deixou saudade para guardar na memória. Nisso, a literatura nacional ganhou mais um prémio, denominado Fim do Caminho, que acontecerá anualmente em Nampula. Com uma única categoria, conto, a primeira edição teve como tema a criminalidade em Moçambique, em homenagem a Henning Mankell, escritor sueco falecido no ano passado e que viveu em Moçambique por mais de uma década e foi director do Teatro Avenida em Maputo. O resto, é pura viagem de viajantes sem destino e que esperam atracar num porto cuja memória desconhece. Um mundo ainda por inventar. Esta é a “Literatas” que lhe trazemos caro leitor. Viaje, simplesmente viaje.

Nélio Nhamposse Director Editorial


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DIA-A-DIA

REDACÇÃO

Concurso Literário Fim do Caminho 2016 considerado de jovens escritores tenha demonstrado uma paixão para escrever contos sobre crime. Homenagem a Henning Mankell

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ais de 60 jovens moçambicanos responderam ao anúncio da primeira edição do concurso literário Fim do Caminho, submetendo seus contos sobre crime em Moçambique, como forma de mostrar a sua indignação com este mal que está afectar a sociedade. O concurso é parte do Festival Fim do Caminho, edição 2016, que acontece anualmente em Nampula.

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Apresentando contos que falam de gangues que aterrorizam a vida dos cidadãos que residem nas grandes cidades e outras histórias que relatam ecos de bandidos, vigaristas e funcionários corruptos, a antologia dos melhores textos do festival que se pretende publicar em 2017 em Português e Inglês, irá trazer nomes desconhecidos da literatura lusófona africana para o mundo dos leitores. A criminalidade é um problema que preocupa os moçambicanos, aliás, a polícia registou, só em 2014, mais de 11,000 casos criminais, por isso não é novidade que um número

Os organizadores do concurso dizem estar surpresos pelo número de candidaturas submetidas: “não tínhamos ideia que existiam muitos escritores de crime em Moçambique” – disse a romancista britânica Lisa St Aubin de Teran, fundadora da Teran Fundation, instituição moçambicana baseada em Nampula e que organiza o concurso com financiamento da Miles Morland Foundation. O tema inaugural do concurso foi sobre crime em Moçambique, em homenagem a Henning Mankell, escritor sueco falecido no ano passado e que viveu em Moçambique por mais de uma década e foi director do Teatro Avenida em Maputo. Os mais de 60 contos sobre crime submetidos ao concurso mostram que o seu legado está em Moçambique. “Eu sei que Henning Mankell teria se esforçado para ler as histórias, porque Moçambique foi parte integrante da sua vida” – disse Anneli Høier da CLA Literary Agency, agente do escritor sueco. Cada um dos contos, de seis páginas, narra a história da criminalidade que se vive no ventre das cidades deste país da África Austral. Maputo, Beira, Nampula, Chimoio, Xai-Xai, Pemba e Tete, onde residem os autores dos textos que se candidataram ao concurso literário Fim do Caminho. Em algumas histórias é notável a forma criativa como os participantes introduzem detectives que combatem perigosos cadastrados, em outras os detectives cometem alguns erros, o que lhes faz não conseguirem combater os referidos crimes. Dezenas de Novas Vozes Africanas O concurso literário Fim do Caminho tem participações de escritores inéditos e premiados. A idade média dos participantes é


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Henning Mankell

Os escritores que irão integrar a antologia de contos sobre crime, bem como os grandes vencedores serão anunciados no website do Festival Fim do Caminho, bem como na página do Facebook, logo depois do dia 15 de Junho de 2016. Festival de Agosto no Oceano Índico O Festival Fim do Caminho vai acolher a segunda edição do Fórum Literário Fim do Caminho, a realizar-se em Agosto, na cidade nortenha de Nampula, bem como a terceira edição do festival de cinema. O fórum vai juntar escritores moçambicanos e um brasileiro, num debate público a acontecer nesta cidade, que seguir-se-á de uma oficina de escrita numa escola e numa galeria de arte da Ilha de Moçambique. O festival de cinema contará com um programa personalizado de filmes de curtas-metragens, bem como documentários característicos sobre Moçambique ou que tenham a ver com Moçambique.

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de 26 anos, sendo de destacar novas vozes masculinas e femininas da literatura que submeteram suas histórias. O concurso despertou a atenção de aspirantes a escritores a partir da imprensa e das redes sociais em Moçambique. Uma das instituições penitenciárias do país havia igualmente manifestado o interesse para que os reclusos tivessem oportunidade de submeter seus contos ao concurso. “A ficção sobre crime é um dos géneros mais populares no mundo. Se temos contos criminais nórdicos e de Los Angles, porque não temos contos criminais de Nairobi ou Accra? Este magnífico e enorme continente africano está repleto de variedades culturais, que podem servir de base para a construção de lindas histórias” – disse Kwei Quartey, escritor do Gana e autor do romance “Crianças da Rua” do original em inglês “Children of the Street”, numa mensagem dirigida à equipa do Fim do Caminho, congratulando-a pela iniciativa. Vencedores anunciados em Junho O processo de submissão de candidaturas para a primeira edição do concurso literário Festival Fim do Caminho terminou no dia 15 de Maio. Os contos estão neste momento com os membros de júri que trabalham no processo de classificação. Por razões de transparência, os membros de júri não foram anunciados, mas deixa-se claro que são dois renomados escritores moçambicanos. Os membros do júri não conhecem os nomes reais dos candidatos, mas sim pseudónimos que foram submetidos com o intuito de garantir maior isenção.

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AZGO 2016 Do príncipe Guerreiro ao rei Azagaia Irreverente, mordaz, sarcástico, emotivo, suado e cheio de ar nos pulmões, com letra ao peito e com a verdade viciante. Não há uma descrição cabal para este homem que atravessou o inferno ao paraíso e agora, na sexta edição do Festival Azgo, ascendeu a um trono de que nenhum antecessor nos vem à memória. Chama-se Azagaia e qualquer tentativa de defini-lo pode ser “insípida” a olhar pela sua grandeza. Ele e um outro moçambicano, Deltino Guerreiro, foram “implacáveis” nos palcos do Azgo 2016.

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Azgo cumpriu com a promessa de paralisar a sede da nação moçambicana. Nem as acácias cobriram o céu que se encheu de luz, que indicava o sítio certo: o Campus da Universidade Eduardo Mondlane (UEM), em plena Julius Nyerere, a nobreza da capital. De longe a luz aliada a uma grande campanha de divulgação chamavam homens e mulheres de todas as idades e cores para o Festival Azgo. Não nos engane a numeração que aponta para a sexta vez que o evento acontece,

Esta edição foi única. Da gastronomia, pintura, artesanato à música, o Azgo fez de tudo para reter o seu público. Um público, aliás, que acorreu sem receios para o que desde 2015 reclama o título de maior festival de artes contemporâneas no país. A elaboração de um festival que tem a música como sua bandeira, a música do mundo – para bem dizer – com olhos postos nos ritmos transversais e totalmente globais, -, faz deste evento único num Moçambique em que há mais três principais festivais de

música, nomeadamente, Festival de Marrabenta, Festival Tropical Zouk e More Jazz Series. O Azgo é realmente para ir – ir para além do que somos e do que sabemos sobre ritmos e estilos musicais e de viver a urbanidade. Neste ano, a organização acertou em cheio. Desde os já conhecidos Lura (Cabo Verde), Paulo Flores (Angola), Zahara (África do Sul), Neyma, Mr. Bow, Azagaia e Xidiminguana, os mais ou menos conhecidos, HMB e GranMah aos ilustres desconhecidos Deltino Guerreiro (Moçambique),


MÚSICA

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Bolodja (Suazilândia), Èstere (Nova Zelândia) e Souti Sol (Quénia). A festa foi a matar.

Do príncipe Guerreiro ao rei Azagaia Retenham bem este nome: Deltino Guerreiro. Este jovem de raízes nortenhas de Moçambique deve ter sido um dos maiores atrevimentos do Festival Azgo e, sem surpresa, com este tipo de aposta, uma vez ser característica deste evento, revelar nomes que passam por um anonimato absurdo no nosso meio cultural. Sim, Deltino é daqueles músicos de se ouvir única vez e se ter certeza do seu talento nato e trabalho exaustivo nos acordes. Nos temos actuais, o país tem muito poucos músicos a revelarem-se de grande valor. Seu primeiro e até agora único álbum, bastante rodado na estação portuguesa virada para a África de língua portuguesa RDP África, saiu em 2015 e tem um título, no mínimo curioso, “Eparaka”, que significa “Bênção”. Um álbum com alma e mistério, aonde o jovem “macua” canta na sua língua, em português e inglês. Se ouvi-lo em álbum é um ritual, encontrá-lo ao vivo é então estar de viagem no sagrado. É o que nos proporcionou o Azgo, fomos de viagem para um lugar que, de certeza, nos transformou.

GLOBAL

Acompanhado de experientes instrumentistas, com destaque para os guitarristas Dodó e Nelton Miranda, Deltino deixou o seu melhor, a voz afinadíssima, e não deixou ninguém do público, que se fez aos milhares, de braços cruzados. Este jovem vai ainda ser tema de uma crónica. Retenham. Por outro lado, o experiente rapper Azagaia, que esteve acompanhado pelos seus “Cortadores de Lenha”, fez o perfeito fogo que se espetou nas almas que não retiveram os delírios. Foi o ponto mais alto do Festival Azgo, à excepção de um outro momento protagonizado pelos quenianos Souti Sol cujas vozes e coreografias foram de espanto e emoção à flor da pele. Mas Azagaia, que quase matava os seus fãs de saudades após longa paragem, voltou com toda a força. Enchia os pulmões no grande e nobre palco Fany Fumo, que o festival já o consagrou como espaço dos reis. Estar naquele palco, com aquela luz, aquele som nítido e que fazia tremer o corpo, entronizou o “mano” Azagaia. Foi o auge de um festival que foi à sexta-feira e sábado, sem tréguas. A avaliar pela qualidade inquestionável, em todos os aspectos, adivinha-se uma sétima edição impossível. Será que há mais para ver? A ver vamos!

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AZGO 2016

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Carlos Paradona Rufino Roque

Cabe ao leitor o papel de cumplicidade com o narrador”

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em inventar, nem os enredos e muito menos as personagens e a essência, o escritor Carlos Paradona Rofino Roque, de 53 anos, confia nas próprias histórias para cativar o leitor. Aliás, se ele mesmo não resistiu ao mistério de um dos maiores rios africanos e que atravessa Moçambique pelo peito, nenhum leitor poderá olhar para o grande Zambeze sem ouvir os rugidos dos náufragos que fazem correr as tintas do romance de Carlos Paradona. “Tchanaze, a donzela de Sena” e “N´tsai Tchassassa a Virgem de Missangas” são um relato desapiedado do místico. Reinvente-se e invente-se na conversa sobre memórias e sobre um rio onde todo o mundo converge, o Zambeze.

Literatas (LT): Um homem que nasce em 1963, em plena época colonial, que história tem para contar sobre a sua infância, o seu lar, a sua comunidade e tudo à sua volta? Carlos Paradona (CP): Eu nasci em Inhaminga, no seio duma família modesta, o último dos nove irmãos. Minha mãe era camponesa e meu pai caçador de animais de grande porte (elefantes, búfalos e outros) e ferreiro ao serviço duma serração que se localizava em Inhamitanga, a meio caminho de Chupanga, nas proximidades do regulado dos Sine, que o meu avô renunciou a favor de um dos seus genros, dos Sine. O meu pai tinha a sua forja em casa, com a qual fabricava armas de caça, enxadas, catanas, machados e outros objectos contundentes. Estes ofícios herdou do seu pai, quer dizer, os Roque foram todos caçadores e ferreiros. Em Inhaminga, como em todo o país, a vila


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Era estratificada com base na cor, pois oss colonos, brancos, viviam na zona urbana e os naturais na periferia, em casas de pau e pique ou em casas de madeira dada a sua abundância porque cortada e serrada duma forma indiscriminada pelas serrações ligadas a Moçambique Florestal Companhia. Só para ilustrar, todo o distrito de Cheringoma, na altura Conselho de Cheringoma, tinha mais de cinco serrações. O conceito de serração, na altura, era algo mais do que se assiste agora. As serrações eram verdadeiros centros urbanos, com todos os serviços e, até, com bairros residenciais. Portanto, a minha infância foi igual a de muitos da minha época e da minha região, a deambular de serração em serração mas com a casa permanente em Inhaminga, o que permitia ter acesso ao ensino missionário ali implantado. (LT): A poesia foi a janela para espreitar o mundo literário, porque ela no lugar de outros géneros?

Nito Zay Marcos Vieira - O Mito da Luz

(CP): Como disse, a Ilha da Juventude era demasiadamente poética pelas suas paisagens e pelo modo de vida das suas gentes. Ali havia, além de estudantes estrangeiros, alunos cubanos muitos dos quais provenientes da Ilha grande. Naquele tempo, a população estudantil na Ilha da Juventude superava em grande escala o número de residentes na ilha não estudantes. Os estudantes moçambicanos eram acima de dois mil e também os angolanos ultrapassavam essa cifra. Havia mais de quarenta escolas secundárias, pré-universitárias e politécnicas de regime internato. Portanto, a interacção entre estudantes era maior. Foi este ambiente que despertou a minha veia poética, que permitiu o meu caminhar no mundo literário. Doutro modo não podia ser. E não era apenas a poesia que existia em Cuba. Li muitos bons romances de autores cubanos. Tinha que começar de alguma maneira e encontrei espaço na poesia. Em Cuba, lia

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frequentemente os autores a que me referi e outros de que já não me recordo. Já em Moçambique, praticamente nada havia para ler. As livrarias não tinham nada. O que tinham era a literatura política da União Soviética, da República Democrática Alemã, da Coreia do Norte e de outros países socialistas. Abundavam livros filosóficos Marxistas como, por exemplo, o famoso Manifesto Comunista. Porém, fui vasculhando na Académica e Minerva e fui descobrindo alguns livros esquecidos. Encontrei um Sebastião Alba, Orlando Mendes, José Craveirinha, Rui Nogar, Jorge Viegas, Sophia de Melo. Nos anos 80, o Instituto Nacional do Livro e do Disco publica alguns autores africanos e moçambicanos acima citados. Com a criação da AEMO, em 1984, aparecem na sua biblioteca autores brasileiros como Drumond de Andrade, Jorge Amado e outros. Também aparecem autores angolanos como Pepetela, Luandino Vieira. Também li Garcia Marques, Pablo Neruda e Maximo Gork, entre outros, e as colecções do Reino do Caliban. Que eu me lembre, as primeiras publicações do pós-independência foram aquelas do INLD acima referidas, que foram complementadas com o surgimento das colecções Inicio, Timbila e Karingana da AEMO.

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(LT): Em 1991, publica o seu primeiro livro e, sem grande surpresa, poesia, intitulado “A Gestação do Luar”. Uma poesia que alinha com os Charrueiros, não bastante engajada, mas também não muito alheada. A publicação da obra, em tempos difíceis, e sobretudo tendo em conta esse não total alheamento, era uma mensagem para a pátria?

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(CP): Cresci num ambiente poético e, como tal, estreio-me com poesia. Não acredito que não tenha sido bastante engajada. Do mesmo modo, não aceito que tenha sido não muito alheada. Depende de como se faz a leitura da época. Sei que o pouco que se escrevia até aos princípios de 1980 falava muito do colonialismo, da opressão, da Luta Armada, isto é, inspirava-se num passado recente e distante. Também, nos primeiros anos da década de 80, começam a surgir novas propostas poéticas. O ponto mais galvanizante da nova corrente literária encontra o seu eco em 1984, quando S. Machel, durante os trabalhos do 4º Congresso, incentiva os jovens a escreverem também sobre o presente e o futuro, a abraçarem o lirismo e a não se intimidarem por serem acusados por alguns sectores da época de não terem lido os Lusíadas. Penso que dali para frente as ferramentas literárias foram outras. Julgo que “Gestação do Luar” não fugiu desta metamorfose. A mensagem para a Pátria foi sempre

apostólica e não apocalíptica. (LT): Em 2009, 16 anos após a sua estreia, lança o romance “Tchanaze, a Donzela de Sena”. O que motivou a sua fuga da poesia? (CP): Não penso que tenha sido fuga. A prosa pode ter dentro de si um fluído poético. No Tchanaze julgo que estão presentes alguns fluídos. Além disso, para o caso do romance em apreço, a poesia não teria espaço para descrever os acontecimentos nele narrados. Eu assumo que a poesia é companheira da prosa, caminham lado a lado e inspiram-se da mesma realidade. Não vejo nenhuma narrativa literária desnudada de recantos poéticos. (LT): E, entretanto, longe da poesia, o romance desce às nossas ricas tradições à busca de uma donzela que sucumbiu da inveja e dos desejos dos mortos. (CP): Estas histórias não têm nada de ficção. E se têm, de certeza, não é o narrador que ficciona. As histórias são aquelas, tal e qual são contadas à volta da lareira, numa noite amendoada de estrelas. As pessoas são aquelas e os lugares também. E as tradições, também, são essas. Quero dizer, essas histórias não são minhas, não foram inventadas por mim. Elas resultam do que as pessoas contam-se, entre si, e que, provavelmente, tenham passado de boca em boca. Elas resultam duma leitura atenta das vivências e das crenças autóctones. (LT): O submundo das nossas tradições, os feiticeiros, os bruxos, curandeiros e adivinhos são presenças fixas e bem instruídas e narradas na sua obra (incluindo no segundo romance, “N´tsai Tchassassa a Virgem de Missangas”). Conte-nos a sua relação com os personagens o Ntchira, Kampira, N´pfiti, entre outros? (CP): Não há nenhuma relação. Melhor dizendo, pode haver muita relação se considerarmos que as minhas vivências primordiais foram no campo. Não me lembro de ter sido levado a qualquer médico ou hospital quando era ainda infante. Mas sei que os meus pais levavam-me, e com frequência, a curandeiros quando ficasse doente. Tal como já dissera, após a morte do meu pai vivi algum tempo em Gondola, em casa de minhas tias. Ora, uma delas era curandeira e eu deleitava-me todas as manhãs com filas de pacientes que afluíam à sua casa. Uns, regressavam às suas origens satisfeitos e, outros, com semblantes mais entristecidos do que


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quando chegavam. Devo confessar que fui um observador atento das liturgias praticadas pela minha tia. Nesta perspectiva pode haver alguma relação. (LT): E porque falamos também de personagens do seu segundo romance, novamente traz-nos a história de uma “donzela” irradiante e, uma vez mais, envolto (o romance) aos feitiços e a um modo tradicional bastante “primitivo”, em que homens e animais partilham conversas, desejos e formas de viver.

(CP): Na verdade, conheci esse rio muito antes de o ver. Ouvi uma série de lendas à sua volta. Contaram-me do Tchiposse, uma das almas que jazem no fundo dos pilares da ponte que liga a vila de Sena à Dona Ana. Contaram-me dos seus gritos enrouquecidos que, em noites escuras, vagueiam de pilar em pilar, a clamar como um louco e para ninguém, por um rapé de tabaco da última colheita. De maneira que, quando atravessei a ponte de Sena, pela primeira vez, de comboio, incessantes gritos repercutiam-se nos meus ouvidos. Pensei no Tchiposse e nos outros. Julgo que o Zambeze e os seus afluentes marcaram a minha infância.

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(CP): Na verdade, o último romance é uma fábula, em que há diálogo e convivência de homens com animais. Esse tipo de histórias é frequente no vale do Zambeze. Não inventei nada. A fábula é aquela e a ilação, que dela se pretende, é a que está aí patente. As fábulas do Zambeze procuram ensinar que cada homem tem sempre um espaço na sociedade em que vive e, nem sempre, os mais fortes são os vencedores. A vitória resulta da inteligência e não da força. É isso o que está patente neste

meu romance. Esta fábula é muito conhecida naquelas terras e, acredito, que tenha viajado de boca em boca desde os tempos mais remotos até aos nossos dias. Nada está ficcionado. Está contada tal e qual se fala. (LT): Para terminar, o rio Zambeze “e os seus afluentes” são seu campo de acção, quase de uma relação amorosa. Fale-nos do valor emocional que esse rio representa para si?

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Pescador, Filipe Stefani – Grafite sobre papel sulfite, 2014. Felipe Stefani nasceu na cidade de São Paulo, Brasil, em 1975. Além das artes plásticas dedica-se também à poesia e já publicou dois livros, “O Corpo Possível” em 2008 e “Verso Para Outro Sentido” em 2010. Vê as palavras como traços e, os traços, como poemas.


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Centro Cultural Brasil-Moçambique

“Niketche” em constante metamorfose

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steve em exibição no Centro Cultural Brasil-Moçambique (CCBM), em Maputo, o espectáculo Niketche Musical, uma produção de Kukarachas Galeria com direcção e encenação de Elliot Alex e coreografia de Ademar Chaúque, em reposição, depois de apresentação em Abril do corrente ano no Franco Moçambicano. Niketche Musical é na verdade uma espécie de bailado, um tipo de teatro em que os actores-bailarinos usam a dança como o seu principal recurso de representação. E,

através de coreografias de dança, a acção das personagens é projectada no espaço cénico. Inspirado na obra Niketche: uma história de Poligamia (2002), da renomada escritora Paulina Chiziane, o espectáculo apresenta fragmento de situações extraídas do romance numa combinação entre a dança de salão e representação teatral. Este romance já foi adaptado para o teatro por companhias como Mutumbela Gogo e Luarte, e neste momento está a ser adaptado para uma série televisiva no Brasil.

Niketche conta o drama de Rami, primeira mulher de Tony, que depois de vinte anos de casados, descobre que o seu marido é um polígamo, tais mulheres espalhadas pelo país. Desesperada, Rami, procura salvaguardar o seu lar e para isso entra em conflito com as suas rivais até que descobre que elas também não passam de vítimas de Tony, decide se juntar a elas e vingar-se do marido. Esta trama repleta de surpresas, para além de trazer a ribalta um tema bastante actual e que espelha a tradição africana (a poligamia) discute também


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a diversidade étnica do país. As mulheres de Tony são provenientes de diferentes províncias, tais como, Maputo, Zambézia, Nampula e Cabo Delgado, só para citar algumas, e cada uma delas apresenta hábitos e costumes diferentes das outras, o que faz de Niketche uma obra de encontros culturais. A cenografia deste espectáculo opta pela “nudez” do palco. Nos é apresentando uma caixa preta preenchida apenas por um estendal, em que estiveram penduradas algumas peças de roupa, que os actores foram usando durante a representação. Este cenário figurava, em muitas cenas a casa da Rami. O mesmo cenário foi usado para projectar outros espaços dramáticos a partir da luz que permitia isolar e destacar o lugar de actuação pretendido. O vazio do espaço cénico não só permitiu que houvesse mais espaço para a evolução dos actores/bailarinos, como revela a riqueza do teatro pobre defendido, por exemplo, pelo renomado dramaturgo russo Gotowski, uma estética que para além de economizar recursos cénicos permite que o espectador participe activamente no espectáculo através da sua imaginação. O espectáculo ao invés de mostrar sugere. A obra em palco misturou a contra-cena teatral e a dança. Foi através destes dois recursos que se projectaram diversas situações dramáticas temperadas de diferentes atmosferas, o que transportou o público ao encontro da história . Entretanto, num olhar mais analático pode perceber-se que não houve um profundo trabalho de representação teatral, visto que o elenco em palco é composto por bailarinos que foram desafiados a representar. A capulana esteve bastante presente no espectáculo. Todas actrizes/bailarinas estavam trajadas de vestidos de capulana. O que ajudou a sublinhar a moçambicanidade que o texto reclama. Em termos de caracterização das personagens, optou-se por um figurino que para além de permitir distinguir as personagens ajudava os actores/bailarinos a executar sem problemas as suas coreografias, uma vez que se tratava dum bailado.

O bailado, especificamente o ballet, foi um dos principais tipos de dança estudados por Eugénio Barba a quando da criação da Antropologia Teatral. Uma disciplina que estuda o comportamento cénico pré-expressivo “que se encontra na base dos diferentes géneros, estilos e papeis das tradições pessoais e colectivas” (Barba, 1994). Barba acredita que na representação ou na performance deste artista condensa-se uma série de signos ou códigos que nos permitem identificar a sua identidade. O que contrasta com a actuação dos actores-bailarinos deste Niketche Musical. A actuação do elenco composto por Ademar Chaúque, Sharon da Cruz, Calisto Muchanga, Donia Tembe, Mário Cumbana e Denise Mondlane, bailarinos da Associação dos Atletas de Dança Desportiva, esteve repleta de belíssimos números de dança de salão que, apesar de ter feito vibrar o público que aflui em massa ao espectáculo, contrastou com o contexto moçambicano em que a trama está inserida. Sente-se uma falta de coerência entre a linguagem do texto e a da representação. Enquanto o texto invoca constantemente aspectos da cultura moçambicana, o espectáculo esforçou-se em exibir expressões de dança e música estrangeiras, como o tango, na sua representação. São quase raros os momentos em que se tocou e dançou ritmos nacionais, o que empobreceuo trabalho inspirado numas das maiores obras de expressão da moçambicanidade. Niketche, nome duma dança sensual da província da Zambézia, executada por mulheres, depois de se ter metamorfoseado em romance, tem sido uma das obras literárias moçambicanas mais adaptadas nos últimos tempos, dentro e fora do país. E em cada adaptação nos revela a sua significação infinita. Não só nos conta uma história de poligamia, como retrata uma infinidade de situações que discutem a tradição e a diversidade cultural moçambicana.

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TEATRO

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ARTES PLÁSTICAS MATIANGOLA

As cores são o silêncio em movimento*

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Em cada tela que pinto pinto-me primeiro, represento o meu eu e dos que me circundam e só de pois parto para o enigmático.”

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ARTES PLÁSTICAS MATIANGOLA dizer que “ em cada tela que pinto pinto-me primeiro, repre- sento o meu eu e dos que me circundam e só depois parto para o enigmático”. E sobre as cores, sempre vivas, vermelho, amarelo, verde e preto, Mankew simples- mente remete-nos para a sua escola de ar- tes. A vida são palavras e verbos, e as cores são a natureza. Não há nada a esse respeito a dizer, as cores são o silêncio em movi- mento”. “Existem nas minhas telas duas mulheres e um homem. São o meu mundo represen- tado em cor. A pintura é isso. Poesia no silêncio. E essas personagens representam o meu imaginário, o princípio e o fim. O caminho.” Parámos e olhámos, um homem e duas mulheres. Duas palavras e um verbo. Um poema e duas estrofes. Instantaneamente, uma curandeira transpôs a fronteira que ali se formava e disse: “As duas mulheres rep- resentam a maça e o homem o rebento que delas emerge”. Pura ficção e imaginação, nenhuma cu- randeira ali estava. Simplesmente dev- aneávamos por um mar sem porto. Então Mankew disse: “Pinto o silêncio e a solidão. Pinto a ausência e a essência. Pinto as pala- vras e os verbos. Pinto os rios e as bugan- vílias que dali emanam”. As duas mulheres representam o eu – o princípio e o fim – e o homem, o futuro da linhagem.” Tinham-se passado duas horas desde a nossa chegada. Estávamos inebriados, eu e o meu colega de ofício. Despedimo-nos de Mankew e partimos. Entrámos no chapa e fomos recebidos pelos odores e suores das eternas sovaqueiras escaldadas de tan- to suar. Odores que nos transportaram e acompanharam a Patrice Lumumba. * O conteúdo desta reportagem é meramente fictício, não vinculando a opinião do artista plástico Mankew.

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13h00, partímos do terminal do Patrice Lumumba. Em bronzeamen- to estão todos os passageiros dentro do mini-bus. O sol escalda e a temperatu- ra atinge 39º célsius. Torrentes inteiras de suor perfilam pelos corpos que se entre- entregam perante os movimentos brus- cos de aceleração e desaceleração que o motorista impõe à viatura. Ao todo somos 23 passageiros apinhados nochapa. “Gado para o matadouro”, gritam as crianças em movimentos tresloucados. Estamos na Manduca, um engarrafamen- to ali se instala, o motorista acciona o re- produtor. Ecoa Mamana is baby. Todos entramos no ritmo, balançamos para um e para o outro lado. Acrobacias sucedem- se em mecânica descompassada com os restantes veículos. O nosso carro dança. É a engrenagem que o nosso driver impõe. Alterna a música, coloca General Music, tinho la goolide lita dhiwa e missava. De súbito invade o lado oposto e acelera o car- ro. Buzinadelas e apupos misturam-se com a algazarra dos transeuntes ali defronte do hospital. O nosso carro segue tranquila- mente, apenas o calor e o suor teimam. 20 minutos depois, estamos no mítico bairro de Xipamanine. Seguimos a marcha por terra batida que contrasta com o ar que ali sopra. Uma pequena ventania e uma enorme torrente de areia toldam-nos a vista e a memória. E mais um pouco passámos por uma igre- ja. Crentes exaltam Jeová e suam celestial- mente ao encontro do divino. São 13h30, chegamos ao nosso destino. Tocámos a campainha, um homem sexagenário e si- sudo atende-nos. “Vieram cultivar o meu silêncio, há bastante que esperava por vocês. Entrem”. Já lá instalados, entre telas e quadros, en- tre palavras e silêncios, notámos que há ali algo de místico entre as telas e o artista, entre os silêncios que projecta e os perso- nagens que sempre vivem nas suas telas. Mankew começa por

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Nito Zay

Monumento em homenagem aos guerreiros da Segunda Guerra Mundial, Praรงa dos Trabalhadores, Maputo


POETA MILITAR

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AUTORETRATO

Hoje li um poema sem vírgulas. Que bela atitude de sentir, sem dar-se o tempo de olhar o sentido. Escrever um poema sem nódoas de vírgulas; é sentir sem parar; é esmagar nos carris do verso a síntese. Não há síntese num poema sem vírgulas. O tempo é um poema com três vírgulas: passado, presente, e futuro, quem o escreveu? Tudo que penso é sempre em pensamento recto, nunca penso com vírgulas Vírgulas fecundam a síntese E eu não gosto de síntese. Gosto de pensar e no fim achar o pensamento passatempo de quem não tem alma e nada pensa. Ainda bem que tenho alma e penso Ainda bem que não tenho alma e penso que tenho alma Não gosto de pensar e sentir em retalhos por isso as vírgulas não me interessam. AO ZAO, KALINDA E VERME Poetas, meus poetizadores, sinto-me quase um velho. Já não sei respirar a dor duma poesia boa na chaminé da carne. Agora escrevo simples. A cada grão de segundo, descubro-me dormindo de cansaço com uma chave de palavras enferrujada, como um operário sobre a relva do verbo. Faço meus sonhos, bebo a nona sinfonia de Beethoven e leio sem parar as linhas de tédio que o poeta Sapalla deixou-nos. Todo dia ao fugir das grades da cama minha filha, com seu olhar enfeitado de lentes, pergunta-me: “Pai, e o meu poema?”. E eu digo: “a tia poesia hoje não veio e acho que nunca mais virá”. Minha filha olha-me e de tristeza recita-me versos paralelos de Noémia de Sousa.

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Há quem diga que o sorriso duma criança acende a vela da esperança; e há quem diga que a esperança é a última coisa a morrer, mesmo a enterrando com pás leves e salgadas dos olhos. Eu vivo buscando a esperança no escuro vazio que se solta dentro de mim, como a cortina da noite. Minha camisa desabotoada içase ao abalo de medo que bate no coração e move a última taça de sangue que ainda me escorre. Uma cerveja, um amigo e um bom livro de filosofia constituem, hoje, a aliança que une os três pedaços de mim: saudade, tédio e cansaço. Viro Poeta, quando as águas da existência atiram-me, como lixo marítimo, à costa seca do meu nada! Escrever poemas? Come On! A minha mão estremece e não chega ao papel. A mesma mão, que hoje, já não me leva ao papel, ao computador, levanta-se para cumprimentar o ardina que passa pela rua carregado de jornais amargos. REGRESSAR Às vezes abre-se, como uma porta de uma cela, uma vontade molhada pelos ares de regresso… regressar ao cais da partida e com ligaduras de certeza abortar a jangada de partida. Barquear sobre as águas que afogaram a infância, e como um Judas civilizado, dar ao tempo o abraço da traição. Regressar aos passos da bengala… E desenhar sobre o caminho as duas pegadas dos pés e uma da bengala.

A HORTA Ao acordar depois da minha xícara de chá, vou cuidar da minha horta. Colho e semeio. Vou pôr uma gota de vírgulas sobre as palavras tristes e surdas, vou regar a prosa que cresce timidamente ao lado da poesia que plantei ontem. Oh! Alguns passarinhos gostam de estar na minha horta. Instalam-se sobre os ramos de um verso inacabado e põem-se a cantar a música que sangra dos livros que ainda não li. QUERO UMA OUTRA VIDA… Quero uma outra vida… Uma vida que faça da morte, seu berço de descanso diário; e não esta cobarde, sem mercúrio nas veias, que se desfaz em pó quando a morte espreita pelas janelas do vento. Uma vida justa, que nos leve todos na mesma arca, sem uns cuspindo sobre o osso e outros, vermes, lambendo o osso em sonhos. Não quero uma vida falsa! Sem rosto, como aquela que se canta em sinagogas; vida reservada aos honestos, que porém, baila sobre o luxuoso brilho de estrelas e nuvens. Quero uma vida boémia! Que amanheça partindo taças de amor num bar qualquer; sem máscara na mão para usar ao domingo no altar do Senhor. Uma vida que pela manhã, ainda com a ressaca dormindo-lhe os olhos, reconheça-me e diga: Bom dia…! Como vai a vida? Quero uma vida sem noções trigonométricas! Que não passe o tempo medindo os ângulos do passado, do presente e do futuro; mas, que faça desses ângulos um só; o de hoje, agora. Não quero essa vida presa em leis morais, mas sim, uma vida com moral sem lei. Quero uma vida decrescente: que comece da velhice à infância.

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POESIA

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POESIA

KUPHALUXA NÃO FUI

Na nossa edição passada, publicámos e assinámos erradamente o poema do poeta Hermínio com o nome Jaime Muanguambe. Porque estamos conscientes do erro que cometemos, publicamos, nesta edição, na íntegra, o poema e assinamos devidamente. 1. “Para um viajante das almas” Deita as pedras de ouro nas goelas capitais dá-te aos santos do orvalho a manhã serena brilha-te à aurora que nela tudo cabe à laringe leva o sorriso que é a linguagem de todos do ouro, abstenha-te é um presente das trevas. 2. ... e todos falam-na. A morte não nos é vontade é a saúde imposta: galguemos a palavra na mestria de sua arte morta por quem não o sabe fazer. 3. Prosa/Poesia Não dá à poesia o entendimento a razão muito menos a lucidez. A prosa já se encarregou disso. 4. “ Aos políticos da metafísica.” Se finjo a monotonia busco abster-me de vós. “Prepararei uma sala de visitas toda falsa de mim” Convidarei-vos a entrar e seremos humanamente correctos. 5. “... na tentativa de dizer-lhe” O poeta desenha a palavra na perspectiva de um refugiado de emoções.

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Num mundo imaturo Hermínio Alves

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AFRICANA dizes que me querias sentir africana, dizes e pensas que não o sou, só porque não uso capulana, porque não falo changana, porque não uso missiri nem missangas, deixa-me rir… mas quem é que te disse?! Só porque ando de “Levis, Gucci ou Diesel”, não o sou… será? Será que o meu sentir passa pela indumentária? Ou que o serei pelo sangue que me corre nas veias, negro, árabe, indiano, essa mistura exótica, que me faz filha de um continente em tantos onde todos se misturam, e que me trazem esta profundidade, mais forte que a indumentária ou a fala, e sabes porquê? Porque visto, falo, respiro, sinto e cheiro a África, afinal o que é que tu saberás? O que é que tu sabes? Deixa-me rir… deixa-me rir… Sónia Sultuane

Não fui fraca quando deixei para trás as minhas companhias de infância, da juventude para vir ser segunda esposa sua; Não fui fraca quando em tudo que ordenavas obedecia; Não fui fraca quando enfrentei guardas penitenciários para te proteger da corrupção; Não fui fraca quando por um instante deixei de lado o meu trabalho para aturar - te enquanto gemias na cadeia; Não fui idiota quando entreguei-te a minha conta salarial para o sustento da tua família na altura que mortalmente acidentaste um menor de idade; Não fui estúpida quando da boca da tua amante – mulher, escutei que os filhos que tem são fruto da vossa imundice de baixo do meu nariz; Não fui nem sou cega quando na minha ausência rebolas na nossa cama com outras mulheres e tens como guarda espiã a empregada que contratei para substituir minhas mãos domésticas no momento que me ausento em busca do pão para o nosso sustento; Agora quero que saibas que não estou sendo fraca quando me fodes pensando noutra mulher; Não estou sendo fraca quando recebes ligações ao meio da noite e me abandonas para servi-la; Não estou sendo fraca quando te escuto tentando reduzires me a pó diante de outras mulheres; Não fui parva quando te amei. Patuxandre 76

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KUPHALUXA

SE ME QUISERES CONHECER Se me quiseres conhecer, estuda com olhos de bem ver esse pedaço de pau preto que um desconhecido irmão maconde* de mãos inspiradas talhou e trabalhou em terras distantes lá do Norte. Ah, essa sou eu: órbitas vazias no desespero de possuir a vida. boca rasgada em feridas de angústia, mãos enormes espalmadas, erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça, corpo tatuado de feridas visíveis e invisíveis pelos chicotes da escravatura... Torturada e magnífica. Altiva e mística. Africa da cabeça aos pés — Ah, essa sou eu! Se quiseres compreender-me vem debruçar-te sobre minha alma de Africa, nos gemidos dos negros no cais nos batuques frenéticos dos muchopes na rebeldia dos machanganas na estranha melancolia se evolando... duma canção nativa, noite dentro... E nada mais me perguntes, se é que me queres conhecer... Que eu não sou mais que um búzio de carne onde a revolta de África congelou seu grito inchado de esperança.

* Maconde — uma das etnias de Moçambique. Noémia de Sousa

Sons em uníssono A mão que me lê ganha no espelho a pupila de uma luz imensa no fundo da concha. É o que se me vê(m) além da cotilédone da pele: sons ruidosos em uníssono. Tânia Tomé

SEGREDO NOS TEUS OLHOS Desfolhei o livro desses teus olhos meigos E li neles esse teu olhar tocante Alimentado por uma voz da madrugada

APRENDI a indicar ao vento onde me deve levar quando me dei conta que as palavras se plantam umas às outras a mim só cabe regá-las A MINHA ESPERA não foi construída pela paciência é um dom por mais que demore sei que o silêncio vai acontecer e vou pertencer às palavras Nelson Lineu

Pesquisei neles esse tal mistério do amor Que se segreda entre os ouvidos E se mastiga em dentes acariciadores Tirintintim Tirintintim Tirim-tim-tim… Ouvi neles esse som imitativo Que se faz trombeta e cria a música Numa estrela que brilha na escuridão Abri o livro, Abri o livro Li! Li esse teu bafo, meu amor!

Pinto de Abreu

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PROSA&CONTOS

RONALDO CAGIANO (*)

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O PROFETA O campo de batalha revela ao homem somente a sua loucura e desespero, e vitória é uma ilusão dos filósofos e doidos. “O som e a fúria” William Faulkner

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le era parascavedecatriafóbico (do grego, triskadekafobia, aquele que tem medo de sexta-feira 13), mas quando indagavam a respeito de sua incrível capacidade de memorizar, armazenar na cabeça todos os telefones da cidade, arquivo ambulante da inteligência municipal, a rapidez com que respondia de cor e salteado as datas fúnebres das famílias de Cataguases, o ce-pe-efe e o erre-gê daquela gente toda, sua quilométrica coleção de dígitos assimilados por neurônios tão receptitvos, a resposta já estava na ponta da língua,

vulcânica, tão simples e cristalina era como o foram um dia as águas do velho rio Pomba:

eu sou como o Águia de Haia, o Rei Sol nunca me apanhou na cama. O homem atrás dos

gestos maquinais reverberando nas manhãs e tardes da cidade seus aforismos, epitáfios, súmulas jurídicas, receituários sob a égide dos genéricos, frases que celebrizaram gentes de antanho, cacoetes de dar dó...

dimetilaminofenildimetilpirazolona e em sua lucidez manietada pelas incontáveis drágeas que trazia nos bolsos de uma calça, surrada e sebenta, como um uniforme de amanuense – mantinha-se sob psicotrópicos que um dia, na infância remota,


Delenda Cartago! E depois viriam as cusparadas intermináveis, as mãos costurando num ar gestos incompreensíveis, o repetido e estudado rilhar de dentes estourando mecanicamente na tarde e o velho passeio de pedras portuguesas brancas e pretas acabava todinho lambuzado e tantas foram as vezes em que anciãos caíam e víamos suas pernas enfraquecidas e mãos coadjuvadas por bengalas ancestrais perderem o equilíbrio e quedarem sobre o mar de saliva que inundava o chão, numa sucessão horrorosa de tombos que levaram tantos senhores e senhoras (que passeavam pelas manhãs quentes da cidade) a quedas bruscas e tombos homéricos.

Enquanto o mundo gira, a Lusitana roda O homem que não saía da praça, que não ia a outro lugar, que não passava do lado de lá da ponte velha, que não conhecia o asfalto, que se negava a ver o mundo novo e informatizado, mas não abandonava sua pantomima

meu filho, a crase não foi feita para humilhar ninguém, mas para ser usada, pergunte ao Gradim declamava sem errar os Salmos e os Provérbios, toda a poesia de dores e sombras de Augusto dos Anjos, mas não tolerava que lhe chamassem O Profeta. Era como desferir-lhe o golpe fatal, tornava-se iracundo, nauseava-se, mordia os dedos, e numa sequência espasmódica e nevrálgica de surtos, repetições e sincronizada esquizofrenia, o original nunca se desoriginaliza, endireitava as meias, cuspia de lado, rodava em círculos e dava um último galope até o banco que circundava a árvore mais antiga da praça  habitat de vetustas preguiças, já debilitada pelos parasitas  e ali permanecia calado, martirizado pelas zombarias, e sob o efeito de

um tabagismo compulsivo, suas contínuas baforadas construíam estranhos desenhos de fumaça no ar, que seus dedos pressurosos tentava desmanchar e a reboque dessas espirais dementes vinha uma sinfonia rouca, uma tosse encarcerada, interrompida por sofismas incompreensíveis, hipotenusa ao quadrado é igual à soma dos quadrados dos catetos, escarros que empesteavam o banco até ninguém mais poder sentar, mas o homem, dando azo a seus rituais histriônicos, a única coisa que separa o pedro dutra do mané peixoto é avenida que passa no meio, ali continuava, repetindo gestos desconexos sol com chuva casamento de viúva até parar de todo e, num átimo, chuva com sol, casamento de espanhol, quase que numa ensaiada imobilidade colocar-se, por intocáveis horas (ora quebradas por repentinos gritos metálicos, quase satânicos a varar a praça) a olhar fixamente as vitrines d’A Nacional e não tirava os olhos dali nem mesmo para ouvir o Zé Barbeiro descerrar a porta de aço de seu salão e mangar de seu ritual, até tu, ó Brutus?, nem se dava conta quando os cata-níqueis encostavam-se àquele ponto para a entrada e saída de passageiros, turvando-lhe a visão paralisada,paralelepípedos egonautas, em vós deposito a minha verdade conspurcada pela lâmina do destino, detida num ponto qualquer do seu universo metafísico, mas jamais ali. E quando a tarde se despedia com o bailado das andorinhas vespertinas que iam se aninhar nos galhos das árvores ribeirinhas no Beira-Rio, ele voltava para outra galáxia ninguém sabe onde, expelindo frases, excrementando acusações e ironias, desferindo putaqueparius à mancheia contra o mundo, as instituições, as pessoas, religião e ditadura são faces da mesma moeda podre, Grupo Escolar Coronel Vieira, entra burro e sai caveira, a única mineira que não dá é a loteria, no Brasil, a única coisa que pegou foi o horário de verão, até que na manhã seguinte seria visto novamente discursando em tom profético no centro da cidade, para curiosidade de uns e indiferença de tantos outros.

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, lhe receitara um psiquiatra de Barbacena –, ele não cansava de repetir, entre repentes filosóficos e surtos de megalomania (vocês são uns doentes, a biblioteca é a minha farmácia, onde encontro antídotos contra o tédio e a mediocridade) que o mundo acabaria no ano dois mil, fizesse sol ou chuva, ele ia para a Praça Rui Barbosa e ficava ali em frente ao Cine Edgard e despejava sua tempestade apocalíptica, num discurso quase sem fim, quilométrico, decorado, apenas uma pausa na ladainha, como uma fermata.

(*) Mineiro de Cataguases e mora em São Paulo. Autor, dentre outros, de “O sol nas feridas” (Poesia, Ed. Dobra, SP, 2012) e “Eles não moram mais aqui” (Contos, Ed. Patuá, SP, 2015).

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Amor, I love you

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ão te traí. Apenas aproveitei o 14 de Fevereiro para ser diferente. Foi, acredites, o único dia que me dediquei seriamente a não pensar em ti, nem em tantas outras mulheres que por alguns momentos as tenho amado. Só em alguns momentos. Pouca percentagem, já que quase sempre penso em ti, nos tantos nãos que me deste sem os dizer, mas fazendo-os. Não te traí, porque amor, i love you! Naquele dia, consagrado aos namorados, fui ver Carlota, a mulher do bairro da lata, que vive numa cabana cercada de bêbados que se torturam com secas que não precisam de gelo. Lá onde Zaida e Vanabela de Wizie são repetidos incansavelmente e, homens grudados a mulheres sem donos dançam acrobacias sexuais estimulados pelo álcool. Lá onde a polícia não chega para expulsar ou agredir os bêbados. Lá onde o medo é uma palavra esquecida

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e o que reina é apenas o sexo sem amor, a bebedeira até se cair ensopado nos vómitos e cheiro a mijo feito atrás de bancos improvisados, com uma tábua e blocos que sobraram numa construção não concluída. Lá, amor, a vida estagnou, não há sonhos, não há futuro melhor. Melhor, lá não há futuro. Desde que consigam uma bebida, uns rápidos momentos do sexo, depois voltam a reunir-se em volta de uma exportação para cantarem músicas seculares, dançarem Tsova Tsova ou Vanabela, e o futuro melhor está atingido. Os seus filhos não lhes pertencem, crescem sem conhecer os pais ou sem lhes ligar a importância, crescem sem esperança de um dia irem à escola. Mas isso não perturba a ninguém, porque a vida é simplesmente pobre para se preocuparem com os outros, até aqueles que nasceram deles ou delas.


POLICARPO MAPENGO

Fui lá ver Carlota, a mulher com muito sexo sem amor porque eu tenho muito amor sem sexo. Não queria naquele dia estar constantemente a pensar em ti. Trazia nas mãos alguns ramos de flores que roubei por acaso, aproveitando-me da distracção de um florista da avenida. Não que eu a quisesse oferecer flores. Fiz isso porque queria oferecer alguma coisa a alguém, mas não a Carlota porque ela não cobra nada pelos seus serviços. Os homens lhe dão o valor que acham melhor e, depois de umas horas de sexo sem amor, ela sente a sua consciência tranquila por ter cumprido um dever, por ter ajudado alguém. Fica com a mesma sensação de ter participado numa causa nobre. Não lhe ofereci as flores, ela recebeu sem nenhum interesse, como se fosse a coisa mais normal um homem entrar com ramos de flores nas mãos. Não as levou às narinas para apreciar o aroma. Não sabia que aquele era dia dos namorados. Também lá onde ela vive, amor, os dias não têm nenhum significado, ficam à espera que anoiteça para se esconderem numa cabana ainda não ocupada à espera do dia seguinte. Deixou as rosas caírem no soalho de terra batida, na mesma indiferença com que me recebeu. Primeiro foi ela quem as pisou, ainda com a mesma indiferença e depois eu imitei o seu gesto sem me aperceber que as machucava. A sua boca cheirava à cerveja podre do dia anterior, misturada com o cheiro de cigarros sem marca, oferecidos por diversos homens que passaram por lá, ou pelos seus companheiros da bebedeira nos bares senta-baixo. Nos arredores, um velho aparelho de rádio tocava incansável Vanabela. A música saía lenta, semobedecer à rotação animada de

Wizie. Umas vozes, bêbadas, ignoravam-na e, também com uma rotação cansada e lenta, cantavam Hi Dakwi Ndjane de Tinito. Ali, naquele quarto, sala, copa e cozinha, que cheirava a suor de décadas que teimava em permanecer entre as quatro paredes, a procriar-se como fungos, nós trocávamos as nossas mercadorias — sexo (ela) e amor (eu) —, éramos dois rejeitados pelo mundo naquele dia dedicado aos namorados. Dois desconhecidos cúmplices na mesma solidão de fazer sexo sem amor ou de ter tanto amor sem sexo, na ilusão de uma eterna esperança. Podes crer amor, não te traí. Fugi da miragem que me tem acompanhado desde que te conheci. Fui embora da realidade que as boas maneiras me obrigam a seguir mesmo que isso me custe a felicidade. Tive que ir para lá, entregar-me àqueles braços que já abraçaram tantos homens do mesmo jeito que a mim. Que as suas mãos percorreram caminhos do meu corpo sem nenhuma surpresa, não porque já lá estive uma vez, mas porque não lhe causava surpresa. Só isso. Namoramos nessa solidão, sem poemas de amor. Também não nos faziam falta. Inventámos carícias e abraços do mesmo jeito que se fez ao longo dos séculos. Depois nos cansámos daquela farsa. Levantei-me, recolhi a minha roupa, passei, apanhei a minha rosa e olhei para ela. Voltas? Perguntou-me à espera que dissesse não. Fiz-lhe a vontade. Não! -Espero que me esqueças. Suplicou-me. Disse-lhe que sim. Fechou-me a porta na cara sem nenhum ressentimento. Também fui-me embora sem nenhum ressentimento, deixando-a com tanto sexo sem amor, levando comigo tanto amor sem sexo…

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PROSA&CONTOS

GANHANGUANE MASSEVE

Perda!

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Os cabelos cheios confundiam-se com toneladas de algodão que faziam caminhos infinitos de terra queimada sobre a cabeça pequena.”

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À beira da estrada, uma chapa velha e bastante corroída indicava ao todo 2,5 km de estrada que cobriam a costa marítima em direcção à cidade, pelo menos 1,5km até ao bairro dos pescadores, onde a vida cansava menos de tanta fome. A criatura seguiu a estrada sob comando do estômago. O corpo era magro e delicado, contando doze anos de idade, com gritantes e gigantescos olhos. Os cabelos cheios confundiam-se a toneladas de algodão que faziam caminhos infinitos de terra queimada sobre a cabeça pequena. O creme pálido da camisa, os calções jeans e os chinelos sujos e rasos revelavam pobreza absoluta.

O sol intenso raiava sobre os corpos esqueléticos dos banhistas e atraía-os enfadonhamente, ou para se afundarem em imensas ondas de água e sal, ou para descansarem o espírito na sombra da brisa do Índico. – Se um nativo tem swikwembo e mergulha na água do mar, os espíritos manifestam-se e levam-no para sempre. Uma multidão de gente entre turistas, vendedores e larápios oportunos aglomeravam-se à costa onde nasce o sol. Dumissane, o rapazelho, arrastava o corpo para frente e sorria, entre dentes, para si e para o mundo sem razão aparente. – Quando um maluco sorri falta razão aos homens. – As vendedeiras murmuravam palavras entre si e, lá no instinto materno, choravam amargamente a tragédia de perder um filho para a rua. O sorriso do rapaz amenizou-se dando lugar a uma voz límpida:

– Titia, estou pidir água.

Duas vendedeiras que se entretinham na arrumação


GANHANGUANE MASSEVE

para a venda entreolharam-se. A implicada sacou do coleman uma garrafa de água gelada, já a esgotar-se, entregou-lhe e disse: – Não é “pidir”, meu filho, é pedir! O miúdo abanou a cabeça em sinal de concordância e no terceiro “gualo” da garrafa plástica esgotou o conteúdo, fintou a sede psicológica e seguiu estrada. E as vendedeiras comentavam: – Eh!...he! Amiga, você viste aquilo? – O quê? – O miúdo amiga. É molwene. Só pode ser, daquele jeito! Só pode ser! – É verdade, só pode ser mesmo. É com certeza mais um que a estrada vai cuidar. Que pena! A vida é difícil agora...é a pobreza absoluta. - Pobreza absoluta? - Indagou a companheira – um dia vi o presidente na televisão a falar disso, mas não entendi, o que é.

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– Epa! Então, não sabe amiga? A senhora, envergonhada, meneou a cabeça. – Pobreza absoluta é quando até falta pão e água e comida para as crianças em casa. - Ah é? - É amiga. O silêncio interveio por instantes. – Mas os meus filhos não vale a pena amiga, eles não fugiriam de casa nem que faltasse ar para respirar – virou o rosto para a companheira sentada ao seu lado e rematou: – e os seus filhos amiga? – Meus filhos? – Inclinou a cabeça para o lado, cobriu o rosto com a palma da mão como uma criança ferida na monótona brincadeira de infância e, por fim, segredou amargamente: – Não sei. A empatia governava o sentimento altivo da sua companheira de venda que lhe enxugava o rosto encharcado em lágrimas com a ponta da capulana.

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LITERATURA INFANTIL

ARNALDO MOSSE

Criançarte

Ler, brincar, aprender

Ler e saber

Histórias infantis

Advinhas 1.Existe uma bola redonda à sua volta de cor branca, rodeada de pelos que abrem e fecham-se e por vezes sai água de dentro dela. É o olho. 2.Qual é a coisa qual é ela que nasce em pé e morre deitada. É a chuva. 3.Qual é a coisa qual é ela que quando está prestes a morrer beija a mãe. É o palito. 4. Qual é a coisa qual é ela que está sempre molhada e serve para saborear. É a língua. 5. Qual é a coisa qual é ela que é nome de uma mulher que quando tiramos as primeiras duas letras iniciais fica o nome de um homem. É Isabel ( Is- Abel)

Curiosidades Climatologia Moçambique:

de

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_ A maior parte do território moçambicano localiza-se na zona Intertropical.

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_ Na região sul a seca é mais prolongada que na zona norte.

Antigamente o Crocodilo e o Macaco eram amigos. Certo dia, o macaco pediu ao crocodilo que lhe levasse ao colo para atravessar um rio, uma vez que o macaco não sabia nadar. O crocodilo aceitou o pedido do seu amigo macaco, tendo, em seguida, iniciado a viagem de travessia para outra margem. Entretanto, no meio do rio e o macaco já no colo do crocodilo, este lamenta a fome e da preferência a carne, pedindo ao seu amigo macaco para lhe comer. Eis que o macaco, responde dizendo que eram amigos e perguntou – lhe donde provinha uma ideia estranha como aquela... O crocodilo respondeu - lhe que estava com fome e apetite e que naquele momento precisava de comer uma carne saborosa. O macaco pediu ao crocodilo que lhe levasse a outra margem e lá havia uma sala para comer, ao que ficaria mais gordo e daí poderia – lhe comer boas gorduras e saborosas. Pois isto, o crocodilo aceitou a proposta. Todavia, o macaco ao chegar a outra margem pulou do colo para o mato dizendo ao seu amigo que deveria ficar na margem do rio até ao seu regresso. O crocodilo aceitou a recomendação do macaco, tendo ficado na margem do rio, só que o macaco nunca mais voltou. É por isso que até aos dias de hoje os crocodilos ficam nas margens dos rios à espera dos macacos, acabando, deste modo, devorando qualquer animal que se aproxime à margem do rio.


LITERATURA INFANTIL

ARNALDO MOSSE

Histórias infantis O Porco e o Milhafre

O porco era grande amigo da ave de rapina, o milhafre. Certo dia, o porco ficou entusiasmado por ver o seu amigo, o milhafre, a voar e a pousar na terra e resolveu conversar com o milhafre para lhe dar a conhecer que ele também gostaria de fazer o mesmo. O milhafre disse ao porco que, sendo amigo, gostaria também de o ensinar a voar para permitir que passeassem juntos no espaço. O milhafre disse ao porco que deveria arranjar penas de galinha ou de outros pássaros e alcatrão e colar-se ao corpo para assim conseguir voar. O porco acatou a ideia e fez – se o trabalho e mais tarde começaram a voar juntos. Um dia que fazia muito calor, o porco e o milhafre, já no percurso de voo, o alcatrão que ligava as penas do porco começou a cair um a um, tendo o porco caído pelo focinho, ficando com a boca empenada. Todos os porcos apresentam – se com o focinho redondo diferenciando – se dos outros animais quadrúpedes.

Usa a tua criatividade para pintar o coelho. Pinta com várias cores para colorir.

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Jogo de dedos

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Marcos Vieira - O Mito da Luz

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VAGENS

MATIANGOLA

O regresso do xibalo pleno comício enquanto Governador disse que em Patoguestão a população já não pronunciava o verbo fome; de rompantemente, surgiu o ministro que revelou ser bom e vantajoso o uso dos mayloves, pois representavam e mostravam o quão os Patoguestaneses valorizavam a vida animal, sobretudo dos bovinos. Tratava-se, segundo aquele ministro, de uma forma que até agregava valor à cadeia de turismo nacional. Havia que explorar o transporte de gado humano. E, no entanto, o homem ia cada vez mais ficando elástico. Agora, já não eram 23 milhões de Patoguestaneses, a cifra estimava-se em 25 milhões e, à medida que o número de população aumentava, também aumentavam os seus patos. 25 milhões. E lá estava o homem todo toldado de tanto pensar na sua criação. Nisso o país foi mergulhando cada vez mais no abismo. A gula do Tio era imparalela que até alugou panças e pescoços dos vizinhos para embutir cada vez mais patos no seu insaciável intestino delgado. Foi então que o homem decidiu endividar os patoguestaneses sem a devida autorização dos mesmos. Mandou “manguitos” para a Assembleia da República e para o Tribunal Administrativo. Oculto a dívida a bem da Nação de Heróis. Inventou uma tal de Ematum, comprou uns barquitos para pesca de atum, só que como não havia o tal peixe, no lugar do mesmo começou a pescar os seus próprios patos. Entupiu-se da sua carne preferida e resvalou-se ao silêncio. E como hobby, o Tio ia distribuindo alguns ossos aos seus sequazes que se lambuziam inebriadamente e cantavam hossanas e aleluias, rindo-se incessantemente daqueles que acreditavam que o xibalo era coisa do passado. Só me restar dizer: “país do pandza, país do pandza… eehh djooo”.

litetatas

Agora, o xibalo já não é da cor branca e já não veste e nem precisa de cipaios, isso é coisa do passado. O dono do xibalo de hoje fuma cachimbo, bebe whisky e como lazer cria patos. Dizem que até criou um país chamado Patoguestão e chama-se Tio Patinhas. Reza a história que o Tio Patinhas enriqueceu graças à sua criação estratosférica de patos, numa altura em que “nenhum Patoguestanês”, curiosamente, tinha poder de compra e tão menos se exportava patos no país. E lá se foram os anos sob sua governação e direcção. Patoguestão registou “avanços assinaláveis”. Os seus habitantes tornaram-se mais pobres; o custo de vida disparou; secas e chuvas tornaram-se regulares; sequestros instituíram-se; assassinatos sacralizaram-se e tornaram-se oferendas para o Senhor; igrejas milagrosas e messiânicas habitaram os bolsos dos seus habitantes; uma guerra sangrenta iniciou-se; valas comuns começaram a pulular; e nisso o Tio Patinhas começou a rebentar a garganta de tanto comer Patos e quem ousasse contrariá-lo era imediatamente exilado da Pátria de Heróis. Dois famigerados amigos seus, um tal de Gabry e Edsy criaram uma corja de “paneleiros” para cantarem hossanas e aleluias ao Chefe Grande em cada estação radiofónica e televisiva e/ou escrita, a custa de alguns ossitos de pato. Para se livrar de discursos e ideias contrárias às suas, Tio Patinhas decidiu iniciar o divisionismo no seu país. Primeiro disse que havia uma tal geração que devia virar qualquer coisa para qualquer sítio sem se saber ao certo para que lado virar; depois criou um tal grupo de Patoguestaneses de gema e genuínos, colocando nitidamente a existência de duas espécies de cidadãos no seu território: os de gema e genuínos; e os de não gema e não genuínos; de seguida a sua afilhada querida, uma tal de Lucy, decidiu apelar à população a tirar proveito dos derivados de pato, ao que se seguiu uma saga ininterrupta de comes e assados. Então o seu marido, de bochechas cozidas e venerado consumidor de whisky, criou o verbo fomer. Em

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