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Maputo | Ano II | Nº 51 | Fevereiro de 2013
Angola | Brasil| Moçambique
As pontes (des)constituídas
Sumário
O entendimento brasileiro e português do texto africano Lourenço do Rosário | Pág. 05 - 06
“Moçambique é um país em que os poetas lêem os poetas” Carmen Tindó | Pág. 10 - 13
Lopito Feijóo & Luís Patraquim | Pág. 07 - 09
Poesia de Hirondina Joshua: viagem, memória e reflexão
Entre Moçambique e Angola: “Esta espécie de virar de costas... não é bem um virar de costas”
Lua Nova | Pág. 14 A relação entre o tempo e espaço em “O Sol nas Feridas” de Ronaldo Cagiano Resenha | Pág. 20
O papel do romancista na evolução da literatura nos PALOP Artigo | Pág. 21
Editorial
Reflectir sobre fronteiras visíveis
E
ntão não cerremos o debate iniciado. Porque as fronteiras no mundo existem. Na edição 51, uma espécie de reinício, reinventamos um tema que andou pelos debates nos bares, encontros académicos e discretos, entre amigos, escritores entre vários. Adaptamos do I Colóquio ―Encontro dos Brasileiros com a Literatura Moçambicana‖, evento que teve lugar em Novembro de 2012 em Maputo, onde vários estudiosos de literaturas africanas de língua portuguesa das universidades brasileiras estiveram na ―cidade das acácias‖ para discutir as pontes que a arte construiu: vir ver (viver) de perto a vida literária moçambicana, discutindo temas mais pertinentes, obras e autores de eterna presença. Desse encontro que decorreu na Universidade APolitécnica dirigida pelo Prof. Drº Lourenço do Rosário, personagem que também é parte deste debate agora trazido pela ―Literatas‖, pode não ter surtido efeitos imediatos, mas pensamos que o princípio foi instituído, pelo que nos resta o avaliar das questões debatidas e outras, que surgiram dessa ―provocação‖ dos brasileiros. Uma iniciativa que se adianta como simbólica em que as nossas literaturas, tão próximas, tão relacionadas podem se desmistificar. Sobre essas possibilidades chamamos a professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Cármen Lúcia Tindó Secco para nos falar. Tindó foi para além das relações sistemáticas/históricas entre Brasil e Moçambique, preferiu ir ao cerne da questão. Entender ou explicar o mistério da poesia moçambicana a que tem se dedicado a compreender desde 1993. Portanto, em duas décadas de trabalho estamos perante aquela que diz sem receio que ―Moçambique é um país de poetas‖ e mais, os poetas moçambicanos lêem-se entre si, seja obedecendo a hierarquia das gerações ao paralelismo que se vive. Uma visão que traz uma outra perspectiva ao debate que se instalou sobre a poesia (nova) feita em Mo çambique em que poucas vezes se estabelece esse cordão umbilical com os nossos mais velhos. Entre o entender expressado por Lourenço do Rosário sobre as razões do Brasil associar-se, diga-se, sem desdém, à Literatura Moçambicana e africana de língua portuguesa no geral, estão no facto de: a posição de congénere em termos de história dos dois países (ambos colonizados pelo Portugal e o Brasil tendo uma grande presença de cultura afro) e o facto de os próprios escritores moçambicanos expressarem várias vezes serem consumidores do conteúdo literário brasileiro e de sofrerem influência da contagiante escrita desse país das américas. Embora, como o diga Rita Chaves, professora da Universidade de São Paulo, na vida política brasileira tenha havido, por muito tempo, o desejo deste unir-se ao norte do seu continente. Agora as coisas podem estar a mudar com o efeito do mandato do presidente anterior. A cooperação sul-sul passa a ser por instinto e afinidade. Rita Chaves, reitera a importância da vontade política para que a cultura exerça a força que tem, em vez do cenário em que os artistas entre si unem os braços e, por inconveniência política, as fronteiras barrarem o entrecruzar natural, sanguíneo e histórico dos povos. A questão das dificuldades tidas pelo Brasil para o acesso a obras de autores moçambicanos entra em cena. Mas não só há dificuldades para levar o livro moçamb icano ao Brasil como há para levar à Angola e vice-versa, dois países tão próximos, tão intimamente unidos pelas suas histórias e estórias! Lopito Feijóo falou com Luís Carlos Patraquim sobre essa ―aparente‖ desconstrução das pontes entre Angola e Moçambique prejud icando o intercâmbio cultural entre as duas partes. A ―lusofonia‖ esse termo que provoca outras reflexões, (também pertinentes) faz parte deste debate. Por isso em duas edições que se seguem haverá espaço onde debateremos as fronteiras que se impõem desde ao termo ―lusofonia‖ com mais personagens envolvidas.
Boa Leitura
Ficha técnica
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DIRECTOR GERAL Nelson Lineu | nelsonlineu@gmail.com Cel: +258 82 27 61 184
COLABORADORES Moçambique: Carlos dos Santos
EDITOR Eduardo Quive | eduardoquive@gmail.com Cel: +258 82 27 17 645| +258 84 57 78 117
Brasil: Rosália Diogo Marcelo Soreano Pedro Du Bois Samuel Costa
CHEFE DA REDACÇÃO Amosse Mucavele | amosse1987@yahoo.com.br Cel: +258 82 57 03 750 | +228 84 07 46 603 CONSELHO EDITORIAL Eduardo Quive | Amosse Mucavele | Jorge Muianga| Japone Arijuane | Mauro Brito. REPRESENTANTES PROVINCIAS Dany Wambire - Sofala Lino Sousa Mucuruza - Niassa Jessemuce Cacinda - Nampula REVISÃO LINGUÍSTICA Jorge Muianga
Portugal: Victor Eustaquio Angola: Lopito Feijóo Cabo Verde: Filinto Elísio
COLABORAM NESTA EDIÇÃO: Angola Adriano Botelho de Vasconcelos Brasil Diego Mileli, Neide Medeiros, Rubervam Du Nascimento
Guiné - Bissau Frederico Matos Cabral Portugal Evandro Morgado Timor Leste Palmira Marques São Tomé e Príncipe
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PAGINAÇÃO & FOTOGRAFIA Eduardo Quive PERIODICIDADE Quinzenal
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A revista Literatas é uma publicação electrónica idealizada pelo Movimento Literário Kuphaluxa para a divulgação da literatura moçambicana interagindo com as outras literaturas dos paises da lusofonia. Permitida a reprodução parcial ou completa com a devida citação da fonte e do autor do artigo.
Às segundas-feiras saiba quem é a personagem da semana em: http://revistaliteratas.blogspot.com
Personagem | Brasil
Ronaldo Wernek O mar em mim (fragmento) aquele centro de mar maraltoceano mar do meio mar de dentro o mar-sea aquele mar preso num peixe o mar daquele fish aquele mar onde the sea grows old in it céu e sal e sol de uma só vez sol insólito luz luz luz pus que solapa o mar turquês o mar de marianne moore na linha do horizonte o mar bifronte incêndio de escamas onde um peixe-chama
R
onaldo Werneck nasceu em Cataguases-MG e morou por mais de 30 anos no Rio de Janeiro. Jornalista, colaborou com vários jornais e revistas cariocas (Jornal do Brasil, Pasquim, Diário de Notícias, Última Hora, Revista Vozes, Revista Poesia Sempre - Biblioteca Nacional). Desde 2001 é Assessor de Comunicação e Editor de Textos da Fundação Cultural Ormeo Junqueira Botelho, em Cataguases, e Diretor de Comunicação do Cineport, Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa.
Poeta, tem nove livros publicados: Selva Selvaggia (1976), pomba poema (1977), minas em mim e o mar esse trem azul (1999), Ronaldo Werneck Revisita Selvaggia (2005), Noite Americana/Doris Day by Night (2006), Minerar O Branco (2008), o ensaio Kiryri Rendáua Toribóca Opé – humberto MAURO revisto POR ronaldo WERNECK (2009) e os livros de crônicas Há Controvérsias 1 (2009) e Há Controvérsias 2 (2011). Em 2001, gravou em show ao vivo o cd Dentro & Fora da Melodia/Que papo é esse, poeta?
azul verdeazul azul cinzazul trama de prata o peixe tece no ar o mar que nele envelhece e sacode em mim tardo e triste sim-sim the fish não pode the fish reviver in it revolver seu próprio fim
Rio de Janeiro, 1997 de Minas em Mim e o Mar Esse Trem Azul, 1999
Editor de Suplementos Literários, ensaísta, tradutor e crítico de literatura, cinema e artes plásticas, tem textos e artigos publicados em vários veículos da mídia. Desde os anos 1990, assina a coluna "Há Controvérsias", publicada em vários blogs e no Jornal O Liberal, de Cabo Verde. Produtor Cultural, foi um dos realizadores dos dois Festivais Audiovisuais de Cataguases – Música e Poesia (1969/1970) e Coordenador da Exposição Os Mineiros do Pasquim, em 2008.
04 | 01 de Fevereiro de 2013
Questão de Fundo
O entendimento brasileiro e português do texto africano
E
m última análise há um mistério na escrita de um autor africano. Nesse seguimento, interpretar esse texto, escrita e forma de contar expresso na Literatura Africana, ascende os dons da academia. Entre as escolas que se aproximam de Moçambique, está a portuguesa e a brasileira em que a sua visão, leitura e interpretação do texto africano tem duas vertentes, uma antónima da outra. Quem o diz é Lourenço de Rosário a quando da realização do colóquio “Encontro dos brasileiros com a Literatura Moçambicana” em Novembro de 2012 em Maputo.
Eduardo Quive - Moçambique
O que estará de trás da distância que a própria cultura moçambicana, no geral, cedeu de Portugal a favor do Brasil? Lourenço do Rosário, estudioso de literaturas africanas e portuguesas entende que a razão pode ser maior que a própria posição dos académicos da área das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa no Brasil e no Portugal. O segredo está na história dos três países. É que, de acordo com do Rosário, os estudos literários sobre Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, tem origem fora da universidade quer em Portugal, quer no Brasil. Só mais tarde é que Manuel Ferreira (no Brasil, Fernando Mourão) lançou o primeiro mestrado na área no início da década de 80 na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, por isso ―deve-se à universidade portuguesa o início do estudo sistematizado destas matérias ainda no decorrer da década de 80, tendo como espaços destacados a própria Faculdade de Letras de Lisboa, a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa – em que a Fernanda Cavacas foi uma das frequentadoras desse mestrado - , na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra – do professor Pires Laranjeira - , e na Faculdade de Letras da Universidade do porto – com o professor Salvado Trigo.‖ Foi também na década de 80 que alguns doutoramentos apareceram ou tiveram início. Hoje pode se falar da existência de uma escola portuguesa sobre essas matérias, embora possa ainda notar-se correntes divergentes em algumas questões. ―Na mesma época, mais precisamente entre os finais de 1980 e princípios de 90, no Brasil, os estudos das Literaturas Africanas de Língua
Portuguesa, ganham o impulso e os primeiros estudiosos dessas literaturas se deslocaram da área das literaturas portuguesa ou brasileira e outras áreas destacando professores como Fernando Mourão, Laura Centil, Benjamim Abdala, que foram os primeiros divulgadores e teimosamente, depois no Rio de Janeiro a Laura Padilha que induziu a muitas outras.‖ Nesse ritmo surgem a partir dos meados da década de 90, os primeiros mestres e doutores em que também começam a produzir estudos sistematizados. ―Lembro-me que quando fui em 1990 dar o primeiro curso de Literatura Africana em Minas Gerais, levava comigo a primeira edição do ―Vozes Anoitecidas‖ de Mia Couto. E Mia Couto era um ilustre desconhecido no Brasil, passados cinco ou sete anos, o Mia Couto era uma constelação no Brasil. De facto nessa altura a Literatura Africana teve um grande impacto‖ conta Lourenço do Rosário refere que os estudiosos africanos precisam entrar nos passos já dados e dar seguimento. O professor entende que há duas linhas de força que permitem perceber o que é relevante no estudo das literaturas africanas vindo da universidade portuguesa ou brasileira. ―Sem considerar eventuais linhas de impercepção, os estudos vindos da universidade portuguesa, privilegiam ainda o processo identitário, numa perspectiva do processo de autonomização face ao modelo português, com a busca de recursos estéticos que afastam dos cânones literários usos, buscando legitimidade através da transgressão linguística de retorno a hábitos orais e de utilização de termos não canonizados no universo literário português. Quer isto dizer que os estudos assim estruturados, ainda privilegiam a linha de dissidência colonizado, colonizador, colonizado independente, utopia, realidade, ordem e desordem. O olhar continua a ser a partir do ponto de vista da ordem
05 | 01 de Fevereiro de 2013
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Questão de Fundo colonial que historicamente se desagregou. É como se o mito de império ainda influenciasse eufórica ou disforicamente a abordagem destas matérias.‖ Por outro lado, disse Lourenço do Rosário, que o olhar brasileiro tinha que ser necessariamente diferente, tendo como a razão para esse ―descompasso‖ o facto dos próprios escritores africanos mais representativos, declararam aptas vezes que se inspiraram nos escritores brasileiros para escreverem as suas obras. Por outro lado a formação da nacionalidade brasileira, também ela, de origem colonial em que a componente africana era intrínseca, permite um posicionamento diferente. Assim ―a universidade brasileira oferece-nos estudos que parecem privilegiar o ponto de vista da diáspora, a postura da produção do conhecimento na área das ciências humanas tendo como o sedimento a visão da diáspora, coloca-nos sempre o seguinte problema, o sujeito que efetua o estudo olha para o objecto que estuda, como fazendo parte de si próprio, simplesmente, fora do tempo e fora do espaço. Assim ele vai procurar demonstrar um conhecimento imanente, daquilo que constitui seu objecto de estudo procurando emparceirar o sujeito que de outro lado procura efectuar o mesmo trabalho.‖ ―Quer isto dizer que a busca do seguimento da diáspora vem, essencialmente, procurar encontrar uma consonância, de vozes entre si e o outro porque em algum momento foram um só. A minha apreciação é que o estudo da universidade brasileira, o estudioso, é como se ele próprio se transformasse, no outro. Estudasse o sentimento do outro da mesma forma. Não cria esse distanciamento que encontro nos estudos da universidade portuguesa.
―Outra questão que carece de apreciação e aprofundamento, prendese com a utilização da teoria literária existente para produzir as teorias de análise e crítica de texto literário africano, em particular o de língua portuguesa. Relactivamente aos aspectos mais pacíficos há um consenso de conhecimento de que quais factores históricos que determinaram a sua génese, de que elementos, necessitou o texto literário africano para estruturar o seu percurso e desenvolvimento, quais as suas marcas distintivas face aos cânones quer da literatura portuguesa, quer da literatura colonial e de como buscou paradigmas para procederem aproximações. Isso é suficiente para garantir a universalização do seu corpo, por isso a literatura moçambicana é tão importante como a literatura francesa, do meu ponto de vista. Estamos no contesto da universalidade, produzimos a nossa literatura.‖ ―No entanto no que tange aos recursos retóricos, estilísticos, e outras características da sua singularização, há pontos que merecem ser revisitados. Nós, os docentes das literaturas dos países africanos, não devemos ignorar a importância que possuímos na formatação desenvolvimento e consolidação do instrumento que estudamos, nós os africanos nas universidades africanas, somos muito mais importantes que os brasileiros nas universidades brasileiras e portuguesas, de ponto de vista de impacto social. Na medida em que nós é que constituímos uma espécie de faróis de algo que está a ser construído e ao mesmo tempo estamos a estudar. Naturalmente que o impacto de estudos literários africanos numa universidade brasileira será dentro do universo só daqueles que estão interessados pela literatura africana no Brasil. Em Portugal é igual. Mas nós não, para além dos que estudam a literatura africana, temos a nossa volta os próprios escritores, a própria sociedade e o mundo,
nós os africanos nas universidades africanas, somos muito mais importantes que os brasileiros nas universidades brasileiras e portuguesas, de ponto de vista de impacto social Não admiro o relactivo atraso em que a universidade portuguesa entrou nestes estudos, nem o facto de terem vindo da área de literatura brasileira e portuguesa, havia a necessidade de se criar o distanciamento necessário para que a ciência pudesse entrar.‖ ―Tirássemos os sentimentos, fizéssemos o distanciamento. Se os estudos produzidos na universidade portuguesa privilegiam essencialmente o corpo textual, o fundamento produzido pela universidade brasileira privilegia a alma do texto, porque esta é a postura de elemento da diáspora, a procura da identidade, que o façam retornar no tempo e nos espaços perdidos em algum momento.‖
A atitude do estudioso africano perante Brasil e Portugal ―Se os estudos da universidade portuguesa lidam predominantemente com o império, privilegiando assim os pressupostos coloniais, os estudos da universidade brasileira lidam com o mito do eterno retorno, privilegiando, sobre tudo, a visão pan-africanista da terceira geração que vai ao encontro da proclamação da era do renascimento pan-africano tão em voga hoje em África. Por isso, grande parte dos estudiosos africanos que hoje lidam mesmo com estas matérias, nas próprias universidades africanas tendo vindo ou tendo sido formados na universidade brasileira ou portuguesa, podem representar a síntese desses dois olhares, completando, o vértice do triângulo que falta construir.‖ ―A sugestão que deixo é que esta questão deve merecer uma reflexão mais aprofundada de modo a que o corpus teórico já produzido, encontre alguma rede em que possa sustentar-se e não cair em vazio. Portanto é uma tese que apresento e que me parece que se pode aprofundar.‖
O texto literário africano segundo Portugal e Brasil o papel do académico africano e o impacto da sua crítica em África
incluindo os próprios políticos.‖
Escrita africana: perigos iminentes ―No universo em que a crítica literária é incipiente fora das academias tudo quanto dizemos e escrevemos tem um grande impacto nos nossos discentes, no público, nos escritores e na sociedade em geral. A existência de num determinado modelo como sendo um ponto forte das características dessa literatura, pode levar a que toda uma geração de aspirantes a escritores, recorra a esses modelos acabando por criar não uma corrente literária, mas um bando de plagiadores de estilos. Mais grave ainda é ver escritores com algum renome já inebriados pelo êxito se auto plagiarem não progredindo mais, nem surpreendendo já, isto é um problema que nós vivemos aqui, em moçambique pelo menos, já conversei com alguns escritores dizendo-os ―muda, dá a volta‖.‖ ―No que diz respeito à transgressão da Língua, por exemplo, como estética e a singularização e símbolo de distanciamento de paradigma do português, julgo começar a haver consenso de que já passou da moda a sua importância. Mesmo a existência que alguns têm feito de que com este recurso se estará a dar voz aos personagens que representam a realidade duma língua, outra, dentro da língua portuguesa, não deve merecer já atenção em dissertações, monografias ou capítulos de tese. Esta é a minha posição. Já ouve tempos em que de facto Fernanda Cavacas trabalhou Mia Couto, précriações, provérbios, etc, mas neste momento penso que já não é matéria para considerar algo importante para os nossos escritores recorrerem como instrumento estético de distanciamento à literatura portuguesa.‖ ―Neste momento os escritores africanos não devem pensar que se não transgredir a língua, não estão a ser autênticos. Isso vai nos permitir destrinçar entre aqueles que para trás transgrediram conscientemente – temos exemplo do próprio Luandino Vieira – tendo contudo o bom domínio da língua e aqueles outros que por mão domínio se escondem hoje nessa maneira de escrever.‖
06 | 01 de Fevereiro de 2013
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Entrevista
Entre Angola e “Esta espécie de virar de costas... não é bem um virar de costas” Moçambique:
Conversa entre os poetas angolano Lopito Feijóo e moçambicano Luís Carlos Patraquim Lopito Feijóo, em Odivelas (Portugal)
Em breves linhas deixo aqui o perfil do nosso interlocutor deste prazeirento bate-papo ocorrido em Lisboa, no Solar dos Galegos ao Largo da Santa Casa da Misericórdia ao cair da tarde de um dia de certa pressa e alguma ânsia no pacote pois o Luís Carlos estava aviado e de malas feitas para mais um regresso às singulares praias do Índico. Ele mesmo que é natural de Maputo onde nasceu em 1953. Jornalista, guionista, cronista e autor de uma reconhecida obra poética . Além de poeta (Monção, A Inadiável viagem, Lindemburgo Blues, Pneuma, entre outros...) sempre colaborou na imprensa moçambicana e portuguesa(A voz de Moçambique, A tribuna, Kuxa Kanema, Publico, Jornal de Letras) e foi funcionário do Instituto de Cinema e da Agência de Informação de Moçambique. Foi coordenador da Gazeta de Artes e Letras da revista Tempo em 1984/86 tendo logo após fixado residência em Portugal onde se aventurou na escrita dramática tendo assinado algumas peças. Consultor para a lusofonia no já extinto programa Acontece e comentador na RDP-África recebeu em 1995 o Prémio Nacional de Poesia de Moçambique. Eis então a amena e reg(r)ada conversa mantida, entre nós, ao sabor de um frito chouricinho de vinho e outros entretantos secretos ...de trazer água na boca de quem com certeza se vai deliciar com o simples papo cujo registo transcrevo:
L.F.-Dada a tua experiência e os tempos de tarimba jornalística peço que comeces por fazer uma distinção entre o jornalismo e a literatura. Entre a escrita jornalística e a escrita literária...
L.C.P.-Há uma fronteira entre a literatura pura e dura (e assim posso exprimir-me!) e a escrita jornalística. Sem dúvidas! O jornalismo vive de alguma contingência mas eu estou convencido que o grande jornalismo comporta, implica e contempla também uma dimensão literária. Lembro-me daquilo que é, digamos, a obra maior do trabalho jornalístico que é a reportagem. A reportagem que é de uma área próximo de nós que usamos uma língua neo-latina que é o português. A reportagem de Gabriel Garcia Marques, por exemplo, com o ―Relato do Naufrágio― que é uma grande reportagem, antes dele ser o escritor e o contista que conhecemos. Faz ali também literatura, portanto, para um verdadeiro jornalismo...mesmo a notícia que obedece às regras de Quintilhano, do lide jornalístico, já implica uma grande preocupação de rigor de texto que não sendo literatura no sentido de criação metafórica com outro tipo de dimensões e de liberdades já implica uma preocupação com a linguagem à que a literatura também está obrigada, portanto, havendo fronteiras, são fronteiras que se diluem. Outro género jornalístico que todos conhecemos de grandes autores é a crónica. Basta citar em termos angolanos um Ernesto Lara filho, em termos brasileiros basta citar Ruben Braga, Carlos Drumond de Andrade e tantos outros... e a crónica que é vista como um género menor é um género literário que é visto simultaneamente nas circunstâncias de jornal mas que é também literatura. Portanto, eu penso que o verdadeiro e grande jornalista tem também dentro de si preocupações literárias e não me esqueço daquilo que Ernest Hemingway disse uma vez quando trabalhou, em miúdo, como repórter no Kansas City Star, à respeito das 110 regras do estilo desse jornal que foram para ele a sua aprendizagem do escritor que veio a ser.
07 | 01 de Fevereiro de 2013
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Entrevista L.F. - Agora vamos falar um bocadinho dos teus primeiros contactos com a literatura e com os escritores angolanos...
L.F.- Já agora podes referir-te com maior incidência à geração de 70 que é mais ou menos a tua?
L.C.P. - São antigos, como é óbvio, e inclui obviamente a poesia de Agostinho Neto concomitantemente com a descoberta da poesia de José Craveirinha, do Rui Nogar e de tantos outros. O contacto com os cadernos IMBONDEIRO e CAPRICÓRNIO, Luandino Vieira... depois a geração que se revela com Pepetela e Manuel Rui e depois a geração dos mais novos onde estás tu também, aqueles cadernos que se publicaram em Angola do Geraldo Bessa Victor que apesar de um certo formalismo do ponto de vista ideológico (...mas não era isso o que me importava!), na altura o mais importante é que eu estava interessado em conhecer.
L.C.P.-Eu ia chegar lá começando pelo David Mestre que para além de um grande amigo é uma figura fundamental na renovação da poesia angolana e na exigência e no rigor da crítica em Angola e na divulgação dos autores angolanos também. David é uma figura maior com Rui Duarte de Carvalho e mais um ou outro pois, no âmbito da poesia, não são assim tantos os que conheço.
Essa relação existe e percebe-se que sendo países com óbvias diferenças, e isso é normal e natural, haviam pontos de contacto que continuam até hoje e , portanto, temos vivências que não sendo iguais são parecidas e depois, escrevendo em português apesar de termos outras línguas nos nossos países... escrevendo maioritariamente em português e fazendo cada um de nós as suas experiências em português, não deixa de se perceber correlações que existem e universos que são próximos. Imaginários e problemáticas culturais e de buscas identitárias e de afirmações.
Estou-me a lembrar de um dos livros que me deu mais gozo de ler e que é uma verdadeira obra prima da literatura angolana que é o MESTRE TAMODA e num outro registo o QUEM ME DERA SER ONDA do Manuel Rui. Isso para me referir a pessoas que já pertencem a uma espécie de cânone literário angolano. E não é necessário me referir às gerações mais novas onde estás tu e o controverso Agualusa ou seja lá quem for.. e eu aí não tenho medo das palavras porque acho que um escritor é um escritor e as outras dimensões são outras dimensões e isso é o que é interessante e que faz a dinâmica de uma literatura. E nesse sentido Angola tem muitos nomes para apresentar e já não preciso estar aqui a fazer a História da literatura angolana indo até lá mais para atrás.
Tenho até uma particularidade interessante com o David Mestre. Eu conheci o David, sendo eu um garoto que estava a trabalhar na VOZ DE MOÇAMBIQUE, quando o Eugênio Lisboa entra pela redacção e diz que tinha acabado de receber uma carta de um presídio de Luanda, de um jovem poeta angolano que queria entrar em correspondência com ele e que era o David. O Lisboa começou a falar connosco sem nos revelar o conteúdo da carta –que era pessoal-, mas começou a falar do poeta que era jovem e com quem começou imediatamente a corresponder-se pelo que penso haver um acervo guardado sobre isso e espero que esteja bem guardado por quem o tem. Daí para frente dá-se a independência e é o António Ole que uma vez vai a Moçambique e me leva autografado o livro
DO CANTO À IDADE do David. Foi uma grande emoção para mim que depois vim a conhecê-lo já aqui em Portugal onde tivemos um convívio de compinchas mesmo!
L.F.-Agora quero ouvir-te dissertar sobre algumas similitudes entre as nossas literaturas...
L.C.P.- Eu julgo que existem, sendo que Angola tem mais desenvolvimento. Há mais desenvolvimento mesmo no sentido da prosa. Não é aquela velha coisa clássica que chateia um bocadinho quando se diz que Moçambique tem poetas e Angola tem prosadores. Acho isso assim um bocado com pouco rigor. Há uma mesma circunstância histórica de afirmação identitária, de
08 | 01 de Fevereiro de 2013
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Entrevista combate cultural, sendo que aí Angola antecipa-se. O «Movimento Vamos Descobrir Angola» é anterior ao que está a acontecer em Moçambique nessa altura. Moçambique só surge mais tarde tirando «O Brado Africano», mas este é um período anterior que Mário Pinto de Andrade chamou ―o período dos pró-nacionalistas‖. Moçambique tem nomes que só se começam a revelar no princípio da década de 50 em que aparecem nomes
tucionais . Podemos falar agora de uma hipótese de saída desta «suposta» crise de relacionamentos político-culturais entre nós, para bem da posteridade ou em benefício das novas gerações...
L.C.P.- Tens toda a razão e da maneira como tens falado até noutras ocasiões, tenho a certeza que também estás de acordo comigo e que também criticas esta espécie de virar de costas que não é bem um virar de costas. É que isso não pode ser. Não pode nem deve acontecer, até porque isso é um absurdo porque, historicamente, todos sabemos que desde o processo da luta de libertação que essas ligações todas houveram e as figuras da literatura angolana e moçambicana, não só as que estiveram directamente ligadas à luta mas, também as que tinham uma atitude progressista e nacionalista se conheciam e são amigos e são irmãos até hoje. Irmãos amigos do peito como o António Jacinto, o Marcelino dos Santos, Agostinho Neto e todos outros doutras e mais recentes gerações. E todos são nomes da historicidade das nossas literaturas, povos e países.
como o de uma Noémia de Sousa, José Craveirinha, Virgílio de Lemos e Lilinho Micaia que era um dos pseudónimos do Marcelino dos Santos e Angola já tinha uma literatura que vinha lá de trás desde os finais do século XIX como muito bem sabemos. Em Moçambique ainda há pesquisas à volta disso e as vezes lá vamos descobrindo um ou outro nome. Todos aqueles nomes, sobretudo na prosa e também na poesia angolana, eram de uma dimensão de preocupações e até de afirmação dentro da língua portuguesa , com o mesmo tipo de pulsão e de necessidades de invenção identitária e de posicionamento político e cultural como nós estávamos a viver em Moçambique e penso que ambos os países não deixaram de ter sobre isso a influência do Brasil e até do anterior movimento literário brasileiro com Graciliano Ramos. As similitudes existem e são todas! Depois há as particularidades, obviamente, de cada um dos nossos países sobretudo por causa das línguas nacionais. Angola, particularmente, faz um registo sobretudo na poesia, de retradução da oralidade ou da oratura num sentido muito mais consequente e com mais preocupação do que Moçambique tem feito até agora. Moçambique, principalmente na área da poesia, ligou-se imediatamente a preocupações mais cosmopolitas. Nós não temos um Rui Duarte de Carvalho a fazer a poesia trovadoresca dos vários grupos nacionais que o país tem – prefiro a expressão grupos nacionais!-, e que Angola faz. Não temos o que a Ana Paula Tavares faz e tu mesmo também o fazes... e outros mais provavelmente o fazem. Neste aspecto Moçambique integra isso doutra maneira. Há ali um outro jogo de combinação poética diferente dessa retradução aproximada da tradição oral que os poetas fazem. Moçambique não tem um Óscar Ribas, por exemplo, na área do folclore, que é um termo um bocadinho pejorativo para mim... mas pronto! Moçambique não vai pela via dessa investigação profunda dos chamados usos e costumes, que é uma expressão também horrível mas... acabamos sempre por recorrer a estes termos e expressões que não nos servem! Moçambique tem umas coisas mas Angola nesse aspecto está muito mais desenvolvida. Isso é uma pura e grande verdade.
L.F.- Em tempos houve já muitos mais contactos pessoais e até insti-
Chegou a hora da construção da nação e é verdade que houve vicissitudes terríveis e em Angola ainda piores do que em Moçambique. As chamadas guerras civis. Isso atrofiou um bocadinho de tudo. Hoje vive-se um momento de mais afirmação que eu considero que é necessário que haja mais posicionamento para que não se esqueça a dimensão dessa ligação porque há uma posição estratégica para todos nós que passa pelo conhecimento mútuo das nossas literaturas e culturas pois se enriquecem mutuamente e depois porque somos países de língua portuguesa e isso é um dado que deve ser potenciado a todos os níveis. Ainda agora uma revista canadiana que é a MONOCLE trazia um grande dossier sobre a lusofonia (...que é outro termo que eu também não gosto!), falando sobre a importância estratégica, económica, política e cultural da língua portuguesa. Não é nada encomendado por alguém. É simplesmente a apreciação deles e a investigação dos canadianos e de quem para lá escreve em relação a isso. O que é preciso é saber que no meio de tudo isso há preocupações de desenvolvimento. Há vicissitudes políticas. Há o que se queira... há, a construção de um estado nacional mas, a dimensão cultural e estes elos não se podem perder e tem que haver uma materialização concreta – em formas concretas- de acontecimentos como festivais literários e residências literárias em Luanda ou em Maputo ou noutras cidades porque isso não pode acontecer só nas capitais. Tem de acontecer a circulação do livro. Os Ministérios da Cultura têm de pensar na circulação do livro entre nós. Não tenho nada contra Lisboa mas, não é preciso passar por Lisboa para que um livro de Luanda chegue e possa ser lido em Maputo. Hoje isso não faz mais sentido. Até temos voos directos. Porquê que o livro que sai em Luanda passa por Lisboa para chegar a Maputo? Tem de haver mais convívio e uma visão estratégica para isso pois se há dinheiro para tantas outras coisas –e algumas delas até são mesmo inúteis!-, tem que haver dinheiro para a cultura porque a área da cultura é fundamental. É o que perdura. É o que fica. É claro que se a pessoa não tiver pão ou mandioca para comer, ninguém vai pensar só em poesia, sem dúvidas. Mas todos nós, juntos, fizemos esta dimensão cultural , identitária, imaginada ou não mas vivenciada e até de linguagens. Esta gramática da criação é o que nos constitui e legítima e é o que permanece. O resto é a poética pois segundo o poeta alemão Holderlin, «o que permanece os poetas o edificam». Isso é fundamental porque países sem essa dimensão e sem essa circulação universalista, africana e no nosso caso de países irmãos porque o somos, deve acontecer sem clichés e deve ser uma preocupação política com visão cultural dos nossos governos e de nós escritores, com as associações, com a dinâmica da sociedade civil e com as editoras e outros interessados pressionando os governos.
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Entrevista
“Moçambique é um em país que os poetas lêem os poetas”
C
armen Lucia Tindó Secco é, sem dúvida, uma das estudiosas brasileiras da literatura moçambicana mais conhecidas em Moçambique, pois tem vários artigos publicados nos meios moçambicanos de comunicação, analisando profundamente as pegadas e os laços da poesia deste país. Na sua última estadia em Maputo – aquando da realização do I Encontro de Brasileiros com a Literatura Moçambicana – a “Literatas” teve o privilégio de conversar com a professora para auferir a sensibilidade do Brasil em relação à literatura de Moçambique. Dos temas atuais aos antigos, a professora Carmen Lucia Tindó Secco tem uma contagiante forma de falar de poesia, dizendo poesia. E dentre as várias conclusões, reitera que “Moçambique é um país em que os poetas mais jovens lêem os poetas antigos”. Citando dos mais velhos aos mais recentes poetas desta pérola do Índico, vai criando/buscando caminhos que dialogam com o Brasil, país que nos é familiar, encontrando-se tão perto, literária e culturalmente dos moçambicanos.
Eduardo Quive - Moçambique
Literatas: O que achou desse I Encontro Brasileiro com a Literatura Moçambicana?
Carmen Lucia Tindó Secco: Penso que esse I Encontro Brasileiro com a Literatura de Moçambique cumpriu o papel de demonstrar como diversos autores moçambicanos são estudados no Brasil, uma vez que vários trabalhos sobre obras e autores importantes da Literatura Moçambicana foram apresentados e estão publicados no livro Passagens para o Índico. No entanto, um encontro pressupõe dois lados e, sendo assim, é preciso que haja, agora, um Encontro Moçambicano com a Literatura Brasileira. Também senti falta, nesse I Encontro, de mais alunos das faculdade moçambicanas; o público foi muito reduzido e os professores e pesquisadores brasileiros falaram entre pares. Para que os resultados fossem mais efetivos, precisava ter sido feita uma maior divulgação que conseguisse reunir um público mais numeroso.
L: Tendo em conta o trabalho que a professora tem vindo a desenvolver sobre a Literatura Moçambicana que impressões têm sobre ela?
C.L.T.S: Moçambique já tem um sistema literário formado, não só na poesia como no romance. Moçambique começou com a poesia, de uma forma mais intensa. É um país de poetas – grandes poetas. Então, se olharmos para o passado, temos o José Craveirinha, o Rui Knopfli e outros. Antes do Velho Cravo, há o Rui de Noronha que já apresentava um olhar sobre Moçambique, uma poesia que revisitava mitos moçambicanos. Lembro o
poema Kenguelekezêêê! Este poeta é um precursor da poesia genuinamente moçambicana. Alguns de seus poemas já apontavam para aspectos culturais moçambicanos. Como o professor brasileiro Alfredo Bosi afirma em ensaios, a poesia tem várias faces: a poesia dos afetos, a poesia irônica, a poesia guerrilheira, a poesia da memória e, ainda, a metapoesia – aquela que reflete sobre a própria linguagem poética. Há representantes dessas várias facetas na poesia moçambicana. O próprio José Craveirinha apresenta várias dicções em sua poética: faz poemas de denúncia, critica ironicamente o colonialismo, se insubordina, mas também produz poemas de profundo lirismo, como os de seu livro Maria. Na vertente lírica que sempre atravessou o contexto literário moçambicano, destaco nomes de diversos poetas, entre os quais o de Virgílio de Lemos. Ele sempre escreveu poemas líricos, tratando dos desejos, do erotismo estético e dos sentimentos. Como ele, há muitos outros poetas: Heliodoro Baptista, Sebastião Alba, Eduardo White, Luís Carlos Patraquim. Foi despertada pela poesia deste último poeta que, em 1994, comecei a trabalhar com as literaturas africanas e, principalmente, com a moçambicana. O primeiro livro de poesias que analisei foi Monção, de Luís Carlos Patraquim. Até hoje, estudo bastante a poesia moçambicana. Gosto muito desta. Percebo que Moçambique é um país em que os poetas mais jovens lêem os poetas antigos. E essa prática de leitura também é encontrada na geração mais recente de poetas, da qual lembro os nomes de Mbate Pedro, Sangare Okapi, Adelino Timóteo, entre outros. Todos leram Rui Knopfli e José Craveirinha. De acordo com o ensaísta português Eduardo Lourenço, há três pilares sustentadores do contexto poético moçambicano. São três os anéis da lusofonia presentes na lírica moçambicana: José Craveirinha, Rui Knopfli e Virgílio de Lemos. Lourenço vê Craveirinha, Knopfli e Virgílio de Lemos como vozes tutelares, cujas poéticas deixaram muitos herdeiros.
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Entrevista Nas universidades, em geral, os estudantes preferem escrever dis-
haver um sistema literário consolidado em Moçambique. Evidentemente, há poetas grandes que já se afirmaram por um trabalho estético bastante elaborado; há outros que estão, ainda, em processo de crescimento, buscando novos caminhos poéticos.
L: Fala-se em dificuldade de acesso a livros de autores moçambicanos no Brasil. Como tem sido o seu trabalho?
C.L.T.S: Tive muita sorte, porque viajei a Portugal em 1994; a Angola, em 1997; a Moçambique, em 1999; assim, pude adquirir muitos livros. Quando comecei em 1993 – completo, em maio de 2013, 20 anos a trabalhar nessa área das literaturas africanas – , consegui algumas obras publicadas pelas Edições 70. Estive aqui, em Maputo, em 1999, para o lançamento de Negra Azul e Ilha de Moçambique, de Virgílio de Lemos. Fui eu quem, nessa ocasião, fez a apresentação do Virgílio de Lemos. Agora, em 2012, quando a profa. Rita Chaves apresentou o livro A Dimensão do Desejo, do Virgílio de Lemos, fiquei emocionada, porque sabia da vontade de o autor ter o reconhecimento público de sua obra, lida e analisada por importantes ensaístas da literatura de Moçambique. Também sabia da alegria que sentiria o Virgílio ao ouvir seus poemas declamados por poetas das atuais gerações. Fiquei com pena de ele não poder estar presente, uma vez se encontrar hospitalizado, muito doente. sertações e teses sobre obras em prosa, porque muitos consideram difícil trabalhar a poesia. Eu, entretanto, amo a poesia, sou uma entusiasta, acho que a palavra voa na poesia. Penso que consigo contagiar vários alunos com meu encanto pela poesia, pois tenho vários orientandos que trabalharam e estão trabalhando obras de poesia. Uma aluna estudou Craveirinha; outra, Guita Júnior. Há duas, no momento, trabalhando a obra do Rui Knopfli; outra estuda a poesia toda de Luís Carlos Patraquim; uma outra se dedica à obra da angolana Paula Tavares. Outra aluna escreveu sua dissertação e a sua tese sobre a poesia do angolano João Maimona. Um outro mestrando estuda a poesia de Glória de Sant´Anna. Há uma orientanda mais antiga que estudou a poesia de Eduardo White em diálogo com a pintura de Roberto Chichoro; uma outra se debruçou sobre a poética de Virgílio de Lemos. Já orientei tese sobre escritoras caboverdianas, como Vera Duarte, Dina Salústio, etc. É claro que oriento também alunos que escolhem obras de ficção, entre as quais as do Mia Couto, João Paulo Borges Coelho, Paulina Chiziane, Ungulani Ba Ka Khosa, Pepetela, Manuel Rui, Boaventura Cardoso, Agualusa, Ondjaki e outros. Eu procuro trabalhar também com vozes atuais da poesia, como, por exemplo, a do Adelino Timóteo. Observo que há poetas moçambicanos, hoje, que inovam, mas não se esquecem do legado deixado pelos mais velhos. Lembro que Patraquim, em Pneuma, faz um balanço da poesia moçambicana, celebrando o que herdou poeticamente dos poetas anteriores a ele. Quanto aos novos poetas, entre os quais Sangare Okapi, percebo, em seu livro Pelos mesmos barcos, uma presença intertextual de vozes líricas que cantaram essa ilha mágica, considerada o ―Muipithi‖ dos poetas. Muipithi, pássaro típico local, que originou o primeiro nome dessa ilha.
Em 1999, consegui levar de Maputo muitos livros, até dos mais jovens. Foi com esse material que organizei a Antologia Poética do Mar em Moçambique com os meus alunos. Foi uma publicação apenas para as minhas aulas, sem fins lucrativos. Nessa antologia, já fui incluindo poetas novos. Há, no entanto, até hoje, dificuldades enormes de fazer a circulação, no Brasil, dos livros publicados em África. Mas, quando a gente tem uma luta grande, um compromisso, quando isso nos afeta profundamente – e a minha atual pesquisa é, justamente, sobre os afetos –, as ideias e ações em que acreditamos ganham força e contagiam. Na Faculdade de Letras da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), onde trabalho até hoje, foi realizado, em setembro de 2001, um Colóquio sobre a Ilha de Moçambique. E, na minha Universidade, na área das Literaturas Africanas, eram só duas professoras. Porém, os alunos e alguns professores de Literatura Portuguesa ajudaram e foi um sucesso o evento. Foi escolhida a Ilha de Moçambique por ter sido a primeira capital de Moçambique e por lá terem estado o brasileiro Tomaz António Gonzaga, Camões, Jorge de Sena e outros poetas. Esse encontro foi realizado em setembro de 2001. Houve verbas e puderam ser convidados importantes nomes da cultura moçambicana: o historiador António Sopa; o sociólogo José Luís Cabaço; os poetas Virgílio de Lemos, Luís Carlos Patraquim, Nélson Saúte; Gemuce, o pintor da ilha; as pesquisadoras Ana Mafalda Leite e Rita Chaves, entre outros nomes. Foi também convidada a escritora Lília Momplé, mas, infelizmente, não pôde estar presente. As comunicações apresentadas nesse Colóquio sobre a Ilha de Moçambique foram publicadas no número 03 da revista Metamorfoses, pela antiga Editora Caminho, de Lisboa. Nesta edição, além de enriquecedores
Todos esses poetas e obras até aqui mencionados comprovam já
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Entrevista textos, há belas fotos da Ilha de Moçambique e pinturas desta, feitas pelo artista plástico Gemuce. Esse número da revista esgotou rapidamente. António Sopa e Nélson Saúte foram convidados especiais, pois a ideia do Colóquio surgiu a partir de uma obra organizada pelos dois: A Ilha de Moçambique pela Voz dos Poetas. O evento foi uma celebração da poesia moçambicana, com a presença de vários poetas moçambicanos que cantaram a ilha.
L: Francisco Noa fala da tendência de “invasão” na poesia moçambicana. Temos, aliás, a tendência do Oriente, como escreve Eduardo White. Encontra essa viagem ao Oriente em suas leituras sobre a poesia moçambicana?
C.L.T.S: Encontro sim. Eu sinto o Oriente presente não só na literatura moçambicana, mas também dentro de Moçambique. Desde os sabores, por exemplo: o açafrão, o ―curry‖, entre outros temperos árabes, indianos. Em Maputo, anda-se nas ruas e se encontra um muçulmano, uma mulher com vestimentas árabes. Eduardo White escreveu Janela para o Oriente, metáfora de Moçambique, país banhado pelo Índico, voltado para o Oriente. Fiz parte de uma Banca Examinadora de uma tese de Doutorado
sentimento, mas como aquilo que abala, que faz estremecer interiormente o ser. Roland Barthes, no livro O Rumor da Língua, define a poesia como esse rumor, como aquele tremor da língua que encanta. Para alcançar tal efeito, o poeta tem que lapidar o verbo, trabalhá-lo esteticamente. A poesia não pode ser feita em linguagem transparente, tem que haver um labor com a palavra. Como diz Maria Teresa Horta, uma das ―Três Marias‖, na poesia a palavra voa. O poeta diz coisas que a gente sente e conhece, mas o faz de forma inovadora. O conselho que eu dou aos poetas mais jovens é que sempre trabalhem a palavra de uma forma inaugural. Devem usar metáforas e outras figuras de linguagem, explorando a dimensão simbólica do verbo criador. A poesia é enigma, tem que desafiar o leitor, instigando-o a decifrá-la. A poesia pode estar em toda parte; ela é múltipla, multifacetada. É aquilo que abala, que faz o leitor levantar os olhos do papel e refletir sobre a vida. Há um livro do Todorov, traduzido para o português, que se intitula Literatura em Perigo. Essa obra aborda, justamente, como, em muitas universidades, hoje, diversos professores acabam usando tanta teoria, que engessam a poesia, limitando as leituras e interpretações. Todorov defende que o importante é a poesia tocar o coração das pessoas e as tornar mais humanas. Para ele, a poesia não deve assumir um viés político-partidário, pois não deve servir a uma causa externa. O poético, o literário deve sempre trabalhar com a imaginação criadora. A liberdade do poeta tem que ser cultivada para que a poesia, cada vez mais, voe e faça os leitores pensarem, imaginarem, sentirem.
A poesia é enigma, tem que desafiar o leitor, instigando-o a decifrá-la. A poesia pode estar em toda parte; ela é múltipla, multifacetada. É aquilo que abala, que faz o leitor levantar os olhos do papel e refletir sobre a vida. que comparava a escrita de Eduardo White com O Livro do Desassossego, de Bernardo Soares. Esse desassossego também está na poesia de White que acaba de publicar A Escrita Desassossegada. Esse Oriente poético e metafórico funciona como uma magia que desassossega também a alma do poeta que está sempre a procurar as múltiplas identidades de sua pátria formada por uma forte hibridação de culturas. Eu vejo que tal mestiçagem em Moçambique é muito enriquecedora; é uma forma de ser. Quando falo em mestiçagem, penso em termos culturais e não apenas étnicos. Eu sou uma professora brasileira e ―vivo com o coração em África‖. Mas o meu olhar é diferente, acho que sou capaz de entender de outra forma questões que são muito moçambicanas e que devem ser discutidas por vocês, moçambicanos. Eu sou uma estrangeira, embora tenha essa afinidade grande com a poesia de Moçambique. Diferentemente de outros países onde o Oriente é mais um recurso retórico e estilístico, aqui, em Moçambique, penso que ele está dentro das paisagens culturais locais.
L: Há um debate quase que incendiário sobre o atual estágio da poesia moçambicana; alguns alegam que vai mal e outros que vai bem. Seja como for, a questão é: o que considera um bom poeta e uma boa poesia?
C.L.T.S: Olha é tão relativa essa questão da beleza... Há um provérbio, muito usado no Brasil, que diz: ―mulher e chita não tem feia nem bonita‖.
L: Nota alguma influência brasileira na poesia moçambicana? Que comparação pode fazer em relação a esse aspecto?
C.L.T.S: Não gosto da palavra influência. O que vejo são intertextualidades. Por exemplo, entre Glória de Sant´Anna e Cecília Meireles há alguns pontos em comum: a musicalidade, ―o mar absoluto‖, o lirismo, o silêncio. Também entre Eduardo White e Carlos Drummond de Andrade, encontram-se algumas semelhanças. O próprio White confessa sua sedução por Drummond, tendo declarado, em entrevista a Michel Laban:
Carlos Drummond de Andrade é o poeta que mais me toca porque consegue trabalhar a violência da realidade com toda a beleza e a seriedade com que os olhos de um poeta podem ver essa realidade. Estou-me lembrando do poema do distribuidor de leite, do menino que morre com um tiro, onde o sangue se cruza com o leite derramado. Isso é o Brasil _ mas é toda essa violência do Brasil dita com poesia.E mais me toca profundamente porque é também o que eu procurei no País de mim: foi falar do amor, mas não do amor desajustado da realidade _ quer dizer, o amor que a gente foi capaz de fazer, fomos capazes de dar e de receber, mesmo na realidade violenta que foi a guerra no nosso país. Aí eu aprendi muito com o Mestre Drummond de Andrade. De facto.
Eu penso que há o lado do afeto; este, não considerado como
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Entrevista e o último insone povoa a noite de pensamentos grávidos num silêncio de rãs a tisana do desejo (...)
(PATRAQUIM, Luis Carlos. Monção. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 27)
Embora anuncie a chegada da "monção" e a "morte do Adamastor", metáforas da Independência e do fim dos tempos coloniais, o sujeito poético, intertextualizando seus versos com os de José Craveirinha e Carlos Drummond de Andrade, sabe que ainda é preciso exorcizar o medo, há séculos, instalado em Moçambique. Consciente das mutilações físicas e mentais sofridas por grande parte do povo moçambicano, aponta para a premência de se restaurarem as emoções individuais bloqueadas pelos anos de arbítrio exacerbado, exaltando, então, a importância de cantar o amor, o desejo, os sonhos, a imaginação.
(LABAN, Michel. Moçambique: Encontro com escritores. Porto: Fundação Engenheiro António de Almeida, 1998. v. III. p. 1203)
Carlos Drummond de Andrade foi e continua a ser uma marcante referência para a poesia africana em língua portuguesa. Nos anos de luta pela libertação em África, os poemas de Sentimento do mundo, José e A Rosa do povo se tornaram paradigmas para uma geração de poetas comprometidos com o social, com a denúncia da "noite fascista" a "dissolver os homens e as palavras". Era "tempo de divisas/ tempo de gente cortada, de mãos viajando sem braços" (DRUMMOND). Era "tempo de meio silêncio/ de boca gelada e murmúrio/palavra indireta, aviso/ na esquina./Tempo de cinco sentidos/ num só" (DRUMMOND). Assim como Drummond acusou a ditadura brasileira do Estado Novo, poetas africanos também criticaram o autoritarismo dos tempos salazaristas. O poeta moçambicano Luís Carlos Patraquim, por exemplo, embora pertença a um período posterior, tendo publicado seu primeiro livro Monção em 1980, alude a essa época de censura e medo em seu país, no poema "Metamorfoses":
A poiesis de Patraquim é carnívora, prenhe de metáforas insólitas que deixam sangrar a memória. Seus poemas trazem à tona nódoas que aviltaram o oceano Índico pelo comércio árabe e pelo tráfico de escravos feito por portugueses, mas resgatam, também, sinestesicamente, o paladar de temperos fortes, como o caril e o açafrão, os quais deixaram seu sabor impresso na pele cultural moçambicana, além da sensualidade de tufos e alcatifas persas, cuja maciez despertou desejos amortalhados na terra marcada pelo entrecruzamento de diferentes culturas. Os ventos índicos portam o sopro das "mil e uma noites", vencendo, desse modo, a morte social pelo acordar da imaginação fraturada pela miséria, pela fome e pela guerra. Por intermédio do recurso à metalinguagm constante, o discurso se erotiza; a plasticidade verbal se intensifica e a poesia se transforma em paixão, em "escrutínio de um sexo fundo com palavras". Nesse aspecto sua poesia se aproxima da lição drummondiana: "penetra surdamente no reino das palavras" (DRUMMOND). O constante labor em relação ao verbo poético, a busca permanente da beleza estética não são, no entanto, as únicas afinidades entre esses poetas. Eles operam também com uma poiesis de sonhos, amores e ―relembranças‖, procurando, no passado, imagens antigas, essenciais à recomposição da fraturada identidade. Como sonhadores à deriva, reinventam a poesia da realidade. Penetram nos desvãos das palavras, recriando a linguagem em combinações inusitadas, devolvendo ao humano a capacidade de voar e imaginar.
(...) quando o medo puxava lustro à cidade eu era pequeno vê lá que nem casaco tinha
L: Na pesquisa que diz estar a realizar em relação à questão dos “afetos”, quais são os textos e os poetas moçambicanos que analisa? E como é que se manifestam esses afetos nessas obras e autores?
nem sentimento do mundo grave ou lido Carlos Drummond de Andrade (...) mas agora morto Adamastor (...) falemos da madrugada e ao entardecer porque a monção chegou
C.L.T.S: Ainda estou a levantar textos e poetas. Trabalho os afetos não apenas como sentimentos, mas, sim, como potências que abalam e afetam os seres. Entre os poetas estudados, estão José Craveirinha, Virgílio de Lemos, Noémia de Sousa, Glória de Sant´Anna, Luís Carlos Patraquim, Rui Knopfli, Armando Artur, Eduardo White, Guita Jr., Sónia Sultuane, Mbate Pedro, Sangare Okapi, Adelino Timóteo. A pesquisa se encontra em andamento. É cedo para revelar resultados. Prefiro não adiantar as conclusões.
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Lua Nova Poesia de Hirondina Joshua: viagem , memória e reflexão Deixa-me ser o que eu sou.
Entre as ruas que te correm Passam rostos distantes Improvisados pelo vento Cantigas longínquas soam Directamente na minha lucidez cinzenta Não te consigo ver Estou presa em mim E com óculos gigantes vejo o Amor E isto não tinha que ser porque o Amor é cego E isto nem tinha que ser porque o Amor é cego.
Deixa-me exprimir tudo à minha maneira Não me peças para que melhor me entendas Olha-me apenas como sou, valho mais verdadeira Não procures em mim o que não entendas, compreendas. Olha-me levemente e verás-me pura e inteira Por mais razões e conclusões que despendas... Não sustentas a realidade verdadeira e derradeira Dizes-me mentirosa, falsa, espero que defendas. Que culpa tenho de falsa parecer se não sou, ou De saber fingir, mas representar pessimamente? Deixa-me navegar neste fingimento sem idade.
01.01.2012 Nuvens laranja. Matina dourada Lê-se o primeiro sol a nascer Mergulhado em versos de água Em mar transparente Voz de vento insinua-se na ponta da língua da brisa.
Quem finge permanece verdadeiro, verdadeira sou, Mas quem representa tem uma procura valente E, eternamente encontra novo ser, nova personalidade.
Sensações não se acabam de terminar. Primeiro sol a nascer, primeira vida a emergir na mesma vida de sempre...
Eduardo Quive - Moçambique
Quando se pari na poesia, Hirondina Joshua não se afaga em falatórios.
No primeiro livro aparece ao lado de outros nomes em revelação e na
Começa pelo essencial, o ofício de dizer como quem não consegue. O parto
última, onde se aventurou no conto, está entre as mais lendárias figuras da lite-
dessa poesia é a cesariana. Um parto de milhões de horas. Doloroso.
ratura nacional como Mia Couto.
Quando li a colecção dos 20 poemas que esta ―embrionária‖ poetisa
De imediato, voltei a reler Florbela Espanca, ―Livro de Mágoas‖ e Cecília
enviou-me, achei que fosse melhor esperar. Esperar que lesse mais vezes.
Meireles no seu livro ―Viagem‖. Há um encontro feminino, desassossegado e
Esperar que perdesse a astúcia a cada leitura que faria. Esperar para no fim
solitário na poesia Hirondina, uma iniciação num expressa poético mais profun-
dizer ―isto não é poesia‖. Mas quando li a resposta de ao ler a resposta de Afon-
do. A presença do ―eu‖ que nos leva ao envolvimento torna o seu texto numa
so Romano de Sant´Ana em ―O QUE É POESIA?‖ (Confraria do Vento/Calibán,
parábola. Há a inesperada vontade de reler, parar e pensar, na verdade, o
2009), quando se refere ao que um iniciante da poesia deve considerar no seu
maior desejo a que nos leva esta poesia lírica é da introspeção.
fazer poético, tive a certeza de que esperar, eu como leitor dessa poesia, seria forçar que o tempo leve o que ainda não se consumiu. De acordo com o poeta brasileiro que é também um dos mais destacá-
Hirondina Joshua, poetisa escolhida para inau-
veis críticos literários, um iniciante deve fazer e, passo a citar ―a mesma coisa
gurar este página
que qualquer iniciante em qualquer matéria ou profissão. Iniciar sempre, até o
que na primeira edi-
fim. Ou, no caso da poesia, desconfiar dos que oferecem a receita da verdadei-
ção de cada mês, na
ra poesia.
LUA NOVA, vai
Então, parti deste pressuposto no meu entender, inteligente, de um poe-
apresentar os mais
ta entre poetas. Nada mais eficaz, até porque como atesta o poema que inaugu-
―novíssimos‖ autores
ra este artigo, expressa com certeza essa veia literata desta que é um embrião
da poesia escrita
da poesia moçambicana.
nas nossas línguas
Hirondina Joshua, tão virgem aos olhos dos leitores de todo o mundo, participou apenas em duas colectâneas, nomeadamente ―Esperança e Certeza I‖ (poesia, AEMO, 2004) e ―A Minha Maputo é…‖ (Conto, Minerva, 2012).
Versos aos pedaços.
portuguesas. Ler Hirondina é desco-
Monções de silêncio, Momentos devagar. Entornam-se num pedaço do nada, Desviados num caminho perdido. Molhado, num sussuro qualquer, Uma sensação aberta, Num suspiro fechado, Uma saudade a doer em tudo que não te faz. Em tudo que és. Um vazio sorriso, Pensamento deserto, Céu sem côr e finito, Sentimento distante, Tudo isto me basta. Porque te sei fazer existir.
brir uma outra e nova poesia moçambicana a fluir nos braços do Índico.
Espaço aberto a escritores emergentes que não tenham um livro publicado ou que estejam em via de publicação do primeiro livro. Em toda primeira edição de cada mês será apresentado um novo autor entre poetas, contistas, romancistas entre outros. Se pretende revelar-se aqui baste enviar-nos um número mínimo de 10 textos (poesia/prosa) ou o excerto de romance/novela com um máximo de 10 páginas. Os textos em formato word até 2007 devem estar escritos na fonte “Times New Roman” e enviados para o e-mail: r.literatas@gmail.com . Com uma ou duas fotografias do autor em anexo. 14 | 01 de Fevereiro de 2013
Leia os poemas da semana às terças feiras em: www.revistaliteratas.blogspot.com Você também pode publicar. Envie-nos o seu poema pelo e-mail: r.literatas@gmail.com
Poesia 3
EQUÍVOCOS
POEGRAFIAS Jornada
Heliodoro Baptista - Moçambique
Os desertos nascem assim. Tempo houve de espigas ao sol. com seu espaço seco e também de chuvas. Mas a paisagem ficou a saldo, o saque reavivou a luxúria e transmudou homens em predadores.
Luís Carlos Patraquim - Moçambique
Si tivesse sentimentos Seria humano morto infeliz Nós os mortos não temos Sentimentos O possível e único sentimento Nos julga viver morte
Alguns acenam-nos á distância, outros não têm ainda rosto. Com astúcias, tumultos, originalidade ás vezes, reencontramos na dor de tantos a transparência de nossos tardios equívocos. 1987 In “ a filha de Thandi”
Amosse Mucavele - Moçambique
O paladar nos foge Sentimentos
Na maresia dos dias jorra-se o suor nas profundezas do oceano. E na muralha das noites descansam flores de aço nos calos das estrelas apagadas pela luz do fogo. Aqui as aves acendem o cigarro nos olhos do dragão molestado pela tempestade olímpica. E o fumo do cigarro descreve uma brecha no espaço azul do mar, onde os homens mergulham dentro das suas aflições a gruta da abolição da sua própria primavera.
O único aroma da terra Nossa única terra desprezível
Desejo sentimentos Desejo morte De sentimentos A vida dos viventes Assim povoar Povoamentos
Numa terra...
Rubervam Du Nascimento - Brasil
retrato(4)
17 aqui conservam casas suspeitas portas fechadas janelas semi-abertas Frederico Matos Cabral - Guiné-Bissau
Numa terra em que o professor não ganha
onde esticavam
Mas faz das suas aulas uma aliança,
escassos fios de sol
Numa terra em que o médico tenta salvar
para breves
E o estado procura matar,
passeios dos olhos
Numa terra em que o amigo é inimigo E o inimigo é amigo,
Adriano Botelho de Vasconcelos - Angola
as fotografias que tirámos não retratam o crescer das teias nas roldanas dos nossos dias por isso nos apressamos a mostrar aos amigos
Numa terra em que o sol é favor
de mulheres presas
E o escrivão é lavrador,
dia e noite até
Numa terra em que os homens são amigos da guerra
acabar a festa
E as mulheres vão de lenços contra o vento. Nessa terra,
fora e dentro delas
A felicidade é milagre, in “ Espólio”
E a paz (é) cheia de tempestade.
as minhas lágrimas, seguem o mesmo percurso que os pingos da chuva ao deixarem marcas nos vidros da janela do meu quarto; mas as minhas marcas estas não têm cura, não podem ser apagadas e embaciam os dias. in ―Emoções‖
15 | 01 de Fevereiro de 2013
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Crónica / Crítica
Quando amanhecer, vou chover em Moz com o primeiro...
O Pássaro de Fogo e outros contos populares da Rússia Neide Medeiros - Brasil
Matiangola
Crítica literária FNLIJ/PB
n_nhamposse@yahoo.com.br
O conto mente, mas nele está presente uma lição a toda boa gente.
D
S. Púchkin)
o poeta que sou, apenas as lágrimas transpiram o odor e o lacrimejar que as correntes das chuvas subjugam a nossa Maputo. A efervescência continua e, de vapor a vapor, a chuva vai semeando dor e temor sem odor. Inerte, e ao som das gaivotas que soçobram com as vagitempestades que atravessam o nosso Índico, projecto praias virgens nubentes de tanto estarem espamalhos a mil dedos. Praias que Custódio navega-as entaladas de excrementos e lixo que com elas transportam ao vil e colorido prazer das câmaras dos homens da pena. Praias virgens de tanto afundarem as nossas vaziedades e nulidades. Hoje, sem a cannabis e a blague, espumas que me transportam ao avesso, vejo rectas a espumar ondulações que não equilibram o mar. Vejo homens a soçobrar ao leme de uma embarcação sem nau. Vejo famílias hilariadas de tanto gritarem sem fôlego. Vejo chuva e pânico que tomam Maputo. Vejo dor e luto semeados sem o rufar das estrelas. E quando desisto, novamente cardumes de peixes ressurgem e dizem: This is the start. O exercício da racionalidade desapossa-se de mim e, quando no desespero, casas e homens são consumidos pelas torrentes novamente. Reparo e penso, só me resta uma merda de centímetro para ser engolido pelas águas, a minha casa está ali, à beira do vapor. O
E
ra uma vez... Havia um reino... Certa vez... assim começam muitos contos populares e infantis. Estas expressões remetem a um passado longínquo, a um tempo indeterminado. Os estudiosos da literatura afirmam que os contos que falam em fadas e reinos encantados estão intrinsecamente ligados aos contos populares. ―O Pássaro de fogo: contos populares da Rússia‖ (Ed. Berlendis Vertecchia, 2011), com tradução do russo por Denise Regina de Sales, ilustrado por Nikolai Troshinsky e comentário de Flávia Moino, apresenta seis histórias de Alexander Afanássiev. Afanássiev, por seu trabalho de pesquisa e recolha de contos populares da Rússia, é comparado aos irmãos Grimm. O grande mérito das histórias de Afanássiev é a preocupação em preservar a autenticidade popular dos contos russos. Denise Regina de Sales, a organizadora deste livro, foi repórter, locutora e tradutora na rádio Vox da Rússia, em Moscou, defendeu tese de doutorado na USP em Literatura e Cultura Russa e trouxe para o leitor brasileiro seis contos maravilhosos de Afanássiev traduzidos diretamente do russo. As bonitas e expressivas ilustrações do livro são do desenhista Nikolai Troshinsky que nasceu na Rússia, mudou-se ainda criança para Espanha e já ganhou vários prêmios internacionais na área de ilustração. Quanto à Flavia Moino, sua dissertação de mestrado em Literatura Russa (USP) versou sobre Afanássiev e o conto popular russo. Por essas breves informações, sentimos que estamos diante de uma obra de reconhecido valor literário e que exigiu a presença de especialistas da área.. O primeiro conto ―O pássaro de fogo e Vassilissa-Filha-de-Rei‖ fala sobre um reino muito distante, muito além da vigésima sétima terra, habitado por um rei forte e poderoso. O rei tinha um arqueiro que era dono de um cavalo mágico e com esse cavalo saía pelo bosque para caçar. Certo dia, o arqueiro deparou-se com uma pena dourada do pássaro de fogo, embora advertido pelo cavalo que não deveria pegar naquela pena, o arqueiro desobedeceu à ordem do cavalo e resolveu levá-la de presente ao rei. O rei agradeceu o régio presente, mas exigiu que ele trouxesse o pássaro inteiro com estas palavras: ―Se não o trouxer daqui minha espada, daí sua cabeça cortada‖. (2012: 6) O pedido foi satisfeito e o rei exigiu mais – agora ele queria uma noiva. Para conseguir realizar o novo pedido do rei, o arqueiro encontrou inúmeros obstáculos, mas contou com a ajuda da princesa Vassilissa e depois de muitos enfrentamentos viu a morte de perto, venceu os perigos e saiu vencedor. O compositor russo Igor Stravinsky compôs a música para um balé muito famoso chamado ―O pássaro de fogo‖ (1910). O enredo desse balé se baseia nesse conto e em outro conto de Afanássiev – ―Rei dos mares e Vassilissa, a Sábia‖ que também se encontra neste livro. O último conto – ―Vá lá-não-sei-onde, traga não-sei-lá-o-quê‖ é o mais longo de todos e apresenta afinidades com outros contos populares ocidentais. É rico em detalhes e diálogos.
Zezinho chora sem desassossegar e o seu choro teletransportame para vagilatitudes das quais desperto e recordo-me que, hoje, o primeiro-ministro, num momento de calamidades e, ainda a mais, por ser médico, incredulamente visita redacções, quando as chuvas em Nampula, Zambézia, Manica, Sofala, Inhambane e Maputo criam caos, locais onde penso que devia dar a cara e mostrar o seu senso de sensibilidade.
Novamente vamos encontrar um arqueiro que trabalha pra um rei e é considerado o melhor caçador do reino. Todos os dias ele partia para caçar e sempre abastecia a mesa do monarca com aves. Um dia ele feriu a asa de uma rolinha e estava pronto para matá-la quando ouviu este pedido:
Repito, senso de sensibilidade. A não ser que, por detrás desta intenção, haja, verdadeiramente, uma real obscura intenção: abafar a sua pálida e silenciosa imagem perante a passada greve dos médicos nos media. Seja como for, só me restam a poesia e a chuva. O resto, já a anestesia engoliu. Até os tomates!
O arqueiro ficou admirado, já havia caçado e matado muitas aves e nunca encontrara uma que falasse. Satisfez o desejo da rolinha e mais admirado ficou quando ela se transformou em uma moça de beleza indescritível. Tempos depois, resolveu casar-se com a moça de bondade e beleza sem igual e passou a sofrer perseguições, inclusive pelo rei. Todos desejavam possuir aquela mulher bonita.
―- Ah fabuloso arqueiro! Não tire a minha vida, não me mande embora deste mundo de Deus: o melhor é me deixar viva, leve-me para sua casa, ponha-me na janelinha e fique observando: assim que perceber que vou cair no sono, no mesmo instante, bata a mão direita em mim com toda força, e terá muita sorte‖. (2012: p. 45).
Neste conto, há as transformações de objetos visíveis em invisíveis e vice-versa, características marcantes das culturas eslavas. Os contos de Afanássiev são cheios de aventuras, cenas mágicas e de muita emoção. Quando são narrados de forma oral prendem a atenção do leitor pelo clima de suspense e surgimento do inesperado.
16| 01 de Fevereiro de 2013
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Conto
Breve História da Humanidade
Diego Mileli - Brasil
E
m certo momento dos tempos, um bando de humanos que convivia em conjunto passeia por uma floresta. Um de seus integrantes tem à mão um cesto de maçãs. Neste instante o nº 2 do grupo lhe pede uma, como de costume. Porém, desta vez, o nº 1, que carrega o cesto, reflete: Por que eu, se sou do grupo o que corre mais rápido, deveria fornecer-lhe uma maçã se posso tê-las todas para mim? Ante este pensamento, nega o pedido e declara que, a partir daquele momento, todas as maçãs são dele e ninguém mais, senão ele, poderá usufruir delas. Assim, do egoísmo e de se crer melhor que os outros, surge a propriedade. O nº 2, absorto com a negativa inusitada, completamente enraivecido, saca seu tacape e golpeia o nº 1 na cabeça, tão rapidamente que não lhe permite correr, tomando para si o cesto. Agora, da propriedade nasce o roubo. Quando o nº 1 saca também o seu tacape preparando-se para o confronto que, em razão da equivalência de força de ambos, resultaria na morte de um deles e na impossibilidade de o vitorioso garantir a posse do cesto, o nº 3 interfere para mediar a situação. Esclarece o fato ao nº 1 e ao nº 2 e sugere dividirem o cesto de maçãs. Os dois concordam em fazê-lo. Então, o nº 3, tendo obtido sucesso em amansar o conflito, solicita a divisão do cesto em três como recompensa por ter evitado o trágico combate que resultaria na perda das maçãs pelos dois envolvidos. Creem correto, aquiescem e a divisão é feita. Desta forma, da possibilidade de prejuízo mútuo, devido ao poder igual entre as partes envolvidas, surge a justiça, e junto com ela, o judiciário com suas custas processuais, ou seja, a parte de maçãs que cabe ao nº 3. A partir deste momento, convencionarei chamar o nº 1 de propriedade, o nº 2 de roubo e o nº 3 de justiça, atrelando cada um às suas crianças e representando-as graficamente entre aspas. A esta altura da história, o nº 4, ao ver que tudo se acertou e todos foram contemplados com a possibilidade de desfrutar das maçãs, acreditando que o compartilhamento, como o era até há pouco, fora voluntário, aproxima-se dos três e requer sua parte, tendo, porém, negado o pleito. Indignado, lembrando do que aconteceu, decide seguir o exemplo do nº 2, ou seja, do ―roubo‖, e saca seu tacape. Todavia, agora o poder não é mais equivalente, pois seria necessário golpear três. Insistindo em negar ao nº 4 o acesso às maçãs, ―propriedade‖, ―roubo‖ e ―justiça‖ sacam seus tacapes e surram-no,
expulsando-o do convívio por sua ousadia em querer parte das maçãs para sua sobrevivência. Assim nasce a exclusão social, fruto da força da aliança repressiva do ―roubo‖, ―propriedade‖ e ―justiça‖, criando, com isso, uma coligação, o que viria a ser por eles chamado de ―polícia‖. Tendo se livrado do nº 4 pela exclusão social gerada pela força conjunta do ―roubo‖, ―propriedade‖ e ―justiça‖, ou seja, pela ―polícia‖, estes passaram a fazer uso dela contra qualquer um que se aproximasse e que cressem lhes ameaçar o direito. Ainda que essa impressão não tivesse qualquer relação com a realidade, agiam valiam-se preventivamente da polícia. Com isso, defendiam suas posses. Às vezes era possível até supor que agiam mais por prazer que por precaução. Entretanto, certo dia, acerca-se-lhes uma fêmea que, aconselhada pelo nº 4, ―exclusão social‖, que encontrara no caminho, ao contrário das outras das quais a ―polícia‖ deu conta, não queria participar da divisão das maçãs, aparentando somente estar interessada em conviver com eles e vale-se, para isso, da sedução. Após uma noite de satisfação sexual para os três, a fêmea acorda com todos lhe servindo maçãs. Da lascívia com ―propriedade‖, ―roubo‖ e ―justiça‖, encorajada pela ―exclusão social‖, surge a ―prostituição‖. Desde então, seguiram-se várias noites de prazer proporcionados pela ―prostituição‖, até que, ―propriedade‖, tal como fez com o cesto de maçãs no início da história da humanidade, declara que ―prostituição‖ é direito de uso somente dele. ―Roubo‖, também como no início da história, puxa seu tacape, sendo que, desta vez, antes do golpe, ―justiça‖ o convida a conversar em separado. Após longa conversa ―justiça‖ o convence a deixar ―propriedade‖ achar que tem ―prostituição‖ só para ele enquanto ambos encontram-se com ―prostituição‖ sem ele saber. Este entendimento de ―justiça‖ com ―roubo‖ eles chamam de ―traição‖. Ao retornarem, explicam para ―propriedade‖ que aceitam; acatam seu direito. Da união entre ―propriedade‖ e ―prostituição‖ surge a ―família‖, sendo esta a forma que vai se considerar como perfeita até os nosso dias atuais. E, do acordo entre ―justiça‖ e ―roubo‖, ou seja, da ―traição‖, para encontrarem-se com ―prostituição‖ sem ―propriedade‖, nasce, no mesmo instante em que o casamento, ato que constituiu ―família‖, o ―adultério‖. Desse modo, do egoísmo de ―propriedade‖ no seu desejo por posse; do vínculo entre ―roubo‖, ―propriedade‖ e ―justiça‖, gerando ―exclusão social‖, que encoraja a ―prostituição‖; do fato de ―propriedade‖ acreditar que ―prostituição‖ pode ser sua posse, criando a imagem da fêmea como objeto, desconsiderando todas aquelas que convivem com ―exclusão social‖ e sobrevivem do fruto de seu trabalho; do anseio de mais posses de ―propriedade‖ fomentando o surgimento de ―traição‖; da soma de tudo isso, nasce o que hoje conhecemos por ―sociedade‖.
*Publicado em “Pretérito Mais Que Presente” e será republicado em “Livro de Um Desconhecido”, previsto para o fim de 2012.
17 | 01 de Fevereiro de 2013
Outras Artes Matola: Cidade d´Arte*
Xitiku Ni Mbawula: a rua como espaço de divulgação e intervenção Eduardo Quive - Moçambique
Participação em espectáculos de grande envergadura; As pequenas concentrações de recreação e expressão musical de livre acesso. Como pode-se notar, adequar-se às condições possíveis, usar as pequenas influências locais entre amigos e animar o bairro, foi a varinha mágica que o Xitiku Ni Mbawula usou para que a sua música fosse conhecida. Mas que não nos esqueçamos, o talento e o trabalho, aposta no conteúdo e no método da sua transmissão, são factores mais valiosos para se chegar na boca do povo que verdadeiramente gosta de música. Porque a fama com qualquer ruído, como nos mostra a realidade em Moçambique, pode se ter com qualquer ruído que depois é atribuído o nome de qualquer estilo musical e promovido pelos mass Mídias. Mas esse é um outro assunto que precisa de um fórum próprio para o seu tratamento. Falemos da expansão do nome e da música do Xitiku Ni Mbawula e a influência que os mais jovens rappers tiveram e ainda tem deste duo.
Durante anos existiu o Xitiku Ni Mbawula. Entretanto, a verdadeira força sob a população de Patrice Lumumba e Singathela e, assumamos, de toda a Matola e Maputo, aos mais jovens no geral, a influência começa a ser forte no presente século quando três acontecimentos marcam o grupo: O forte aparecimento através da rádio, pelos programas Matolinhas¹ e Hiphop Time² da Cidade FM;
Usar a rua para divulgar a música Hiphop é um dado histórico. Até porque este estilo musical é desde sempre apelidado ―arte de rua‖ e nela, a rua, os rappers são mais livros de o fazer, cumprimento com seu papel primário: expressar-se. No caso do Xitiku Ni Mbawula, foi um acto de coragem, num bairro quase que com reacções imprevisíveis com a junção de culturas e que de repente se tornou num lugar onde os dias e a vida passa rápido. A agressividade do comércio com todos os espaços do centro do bairro ocupados em barracas e mercearias. Com o bazar a não fazer sentido com a saída dos vendedores de dentro para fora, onde originaram os famosos ―Dumbanengues‖³. Estes que por sua vez, deram fama à famosa Polícia Camarária, Polícia Municipal, por andar atrás do vendedores, muitas vezes espan-
* Este suplemento é criado alusivo ao 41º Aniversário da Cidade da Matola 18 | 01 de Fevereiro de 2013
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Outras Artes cando e destruindo os bens, em fim. Patrice Lumumba, aquele bairro pacato a ser um centro de conflitos pela moeda. Enquanto isso, o Singathela, bairro onde morra S-Gee, de umas machambas onde se tirava o amendoim e o milho, de onde vinham mangas doces, cajus e canhús, passou a ser um bairro onde a terra é rara para se morar. As construções não demoraram e, acompanhando isso, as necessidades típicas de uma população urbana, transporte, energia eléctrica, água e o comércio. Os do Patrice passaram a ser os citadinos e os de Singathela aquelas que estavam em reconhecimento da nova cidade. Uma união de dois músicos a enfrentar as mesmas realidades, seria um facto inédito na zona. Mais tarde, já com o desenvolvimento infra-estrutural, o mesmo Xitiku Ni Mbwaula que nasceu de uma utopia, veio a invadir as ruas, cantando na língua que todo o povo entende e em vários casos, contado histórias que todos vivem. Por tanto, há um território nessa música, há um desassossego, há um desejo, há um acontecimento, é poesia, é prosa. Xitiku Ni Mbawula. Todos querem ouvir as histórias contadas em volta da lareira. Aí vem os famosos jam sessions feitos na Rua ―U‖ e na barraca do Jasone. Curiosamente, os dois sítios são pontos fronteiriços entre Patrice Lumumba e Singathela. O despertar da partilha de territórios, afinal, os problemas são os mesmos. Tal como nos tempos em que surgem, finais dos anos 90, há um grupo de seguidores que surgem e que poderá em algum momento, terem sigo o mesmo aglomerado Xitiku Ni Mbawula antes até de se chegar a conclusão do nome do grupo⁴, há uma chuva de adolescentes e jovens que a partir de 2005 acompanham de uma forma atenta e mais activa os acontecimentos no envolta do grupo; as músicas são partilhadas de mão-a-mão, pessoa a pessoa, telemóvel a telemóvel, computador a computador. Enquanto isso, os free styles são também atentamente ouvidos, com o orgulho de se ouvir os nomes desses bairros a serem invocados pelos artistas. Há uma sede que aumenta cada vez mais. Estamos em 2008. Quando várias camisetas dos Xitiku Ni Mbawula são artisticamente produzidas e são explosivamente procuradas por um número considerado da juventude e adultos. Lembro-me que nessa altura, viveu-se uma grande euforia. Foram surgindo outros grupos, que iam estabelecendo o seu propósito e o seu sentido de ―rebeldia‖ e diálogo com o quotidiano cada vez mais árduo. Surge o Ndleleni⁵ Hiphop e Tsaka⁶, este último um projecto mais ambicioso, com um estúdio em funcionamento numa casa. Os dois grupos, reuniam artistas do rap composto por vários entusiastas, uns claramente inspirados nos jovens do Xitiku Ni Mbawula. O Ndleleni localizado no bairro onde mora S-Gee, Singathela mais actuante com regulares noites de espectáculos de rap no centro do bairro, onde chegavam a participar vários artistas da cidade de Maputo, usando a influência do próprio SG como factor de catalisação de nomes sonantes. Aliás, lembro -me de ter já visto os Timbone Ta Dja, um agrupamento da zona de Compone, arredores de Maputo. O Tsaka tinha a concentração de uma maioria adolescente na rua ―U‖, entretanto, com muitos constrangimentos estruturais e até do local onde faziam os espectáculos, uma vez que era uma zona residencial. Portanto, nota-se com veemência, a afluência dos suburbanos ao hiphop da sua própria zona, o Xitiku Ni Mbawula, tendo os grupos em surgimento, tido a força de dá-los, também, nomes em línguas nacionais e até, cantando
nas mesmas. Esse grupo passou a ser a figura de cartaz em quase todos os eventos, embora em muitos deles, como se certificava depois, não tenha tido se quer conhecimento. Mas o eco, foi crescendo certamente, por fora da Matola, com o grupo participando em grandes eventos da capital. Os aniversários do próprio programa Hiphop Time, era o ponto de maior concentração de fãs desse género musical e os Xitiku Ni Mbawula, com a sua singularidade e característica inconfundível, faziam o seu rap, com temas a mistura de suor, fúria e esperança, tudo no olhar atento ao quotidiano por si vivido, na Matola, no Patrice Lumumba, no Singathela e até pelo País.
————————————————— Glossário ¹Matolinhas – denominação de um programa da rádio ―Cidade‖ da capital
do país virado à difusão dos acontecimentos da cidade da Matola, desde a actualidade política, social, económica e principalmente artístico-cultural. No referido programa, foi criado a rubrica ―Top Matola‖ onde passavam, digamos, o melhor da expressão musical da Matola. ²Hiphop Time – programa radiofónico da rádio Cidade de Maputo. Pioneira entre os mídias, na divulgação deste estilo musical em Moçambique. Para além das regulares emissões aos domingos a tarde, promove grandes festivais de hiphop com participações internacionais. ³Dumbanengue – mercado informal, típico de zonas suburbanas. ⁴Fontes ligados à história do surgimento do grupo, informaram-me que a quando da junção desses jovens rappers a ideia de grupo era mais abrangente, chegando a atingir mais elementos. Aliás, o nome Xitiku Ni Mbaula terá se inspirado num programa de um programa da Rádio Moçambique denominado África Xitiku Ni Mbaula, certamente, com certo impacto nas comunidades. Acrescido a isso está o nome Dingzwai de um dos elementos do grupo que o terá adoptado tempo depois de ter mergulhado no mundo hiphop.
⁵Ndleleni – expressão em xi-ronga que quer dizer “no caminho”. ⁶Tsaka – expressão em xi-ronga que quer dizer “feliz(felicidade), alegria (alegre)”.
19 | 01 de Fevereiro de 2013
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Resenha
A relação entre o tempo e espaço em “O Sol nas Feridas” de Ronaldo Cagiano Eduardo Quive - Moçambique
A
penas o poeta sabe a dor do parto da palavra. Há, na verdade, dores que só o poeta as conhece. Mas há dores maiores, dores de carne, o fulgor do que a sociedade vive e padece. Isso remete-nos de imediato à uma dor física, eis porque Ronaldo Cagiano coloca-nos estendidos ao sol para assarmos e fermentarmos as dores que as grandes metrópoles enfrentam que sob caiem directamente ao cidadão. ―O Sol nas Feridas‖ em 63 poemas reunidos, entre a lírica amorosa e a crítica social, é a solução vista por muitos olhos, mas que só um poeta embondeiro, maduro e vivido sabe justificar a dor do corpo com a sagacidade que o assunto exige. Lembrar Maria Teresa Horta nestas alturas pode-nos ser uma saída mais eficaz para justificar o sentido desta análise. De acordo com a escritora portuguesa, a escrita e a vida caminham juntas ―tem que viver para se ser escritor‖ – diz ela. Em Moçambique, de onde me chegou o livro enviado atrevidamente pelo autor, sem temer os oceanos que o mesmo atravessaria desde o Brasil, há um outro embondeiro, Suleiman Cassamo, autor do clássico e símbolo nacional ―O Regresso do Morto‖, tornar-se-ia cúmplice da poesia deste ―velho poeta‖, pois disse uma vez que ―é preciso ter vivido para escrever‖. É o escritor, o poeta, e os seus devaneios; é o poeta, o cidadão e as razões da sua poesia missionária, não alheia aos mistérios do corpo. Ronaldo Cagiano sabe ser o que tem que ser na indagação e no desassossego a que a sina poética nos remete. Com a devida serenidade é lírico, cuida de si e dos seus sentimentos, mas com a incompreensão dos tempos é externo, exógeno, sente no lugar dos outros refém da engajada posição do poeta zelador e consciente de que ―o ofício da verdade é proibido pôr algemas nas palavras‖. Liberta-se e fala de sangue, abismos, precipícios, a gênese e o fim. Reinaldo Cagiano, este meu desconhecido poeta ―conta‖ na sua poesia convulsiva em ―O Sol nas Feridas‖ que ―entre a fuga/e os deslizes/ o poema vinga‖, mas mais do que esse olhar atento em ―Gênese‖, o encontramos a consciência e a saudade de algum tempo ao olhar já nós, atentamente o poema ―Escamas‖:
(…) A vida, em suas estranhas latitudes, território lisérgico onde dormiam meus fantasmas
hoje, planeta do qual não me escondo, catapulta-me sobre os abismos.
Ao a poesia de Cagiano, com certeza não se sairá sem se indagar: como esconder as ferias do sol, quando o meio mundo desconhece, o seu próprio paradeiro? E a poesia é chamada a tão estremo papel de contar o que todos sabem. A essa dura tarefa cabe ao poeta que poderá não ser compreendido. Sobre esse aspecto, Reynaldo Damazio já chama atenção na sua nota de leitura no livro ao dizer que ― o sentimento de impermanência e de precariedade ronda a poesia e exige do poeta uma tomada de posição, no sentido de enfrentamento das verdades provisórias.‖ É essa a posição que Ronaldo Cagiano escolheu tomar ao ver o que viu:
Enquanto o cortejo seguia alheio aos gestos automáticos das mãos que cerravam as portas
Outros continuavam a vida imunes à que passava, despojada de sua última chamada.
A cidade não seria diferente porque amanhã outras notícias viriam
É assim que Ronaldo Cagiano faz a relação dos males do seu tempo desde a nascença em Cataguases, Minas Gerais, passando por Brasília, onde formou-se em direito chegado à São Paulo onde reside e tem o seu trabalho. Mas não parou por aí escalou Buenos Aires, Teerã, Berlim, Pirapetinga, Lisboa, Paris, Adrogue, Alentejo, Morrinhos, Persépolis, Itabira, essas ―geografias do acaso/ no arremate dos acasos/ onde pululam pássaros aziagos/ e homens ensimesmados/ habitam cidades sem memória,/ cemitério dos vivos. É assim que o poeta faz a sua poesia, não omitindo o tempo e o espaço, numa forma perplexa de li dar com o texto que quer também contar histórias dos nossos dias. Uma poesia, que se pode dizer de combate aos males de hoje, inclusive a da falta de amor, saudade e das irmandades manobradas pelos contextos. Certamente seja por isso que até os males do passado são elementos indispensáveis dessa matéria concentrada nessa obra que pode-se chamar de antologia, onde o autor termina com uma pergunta, no mínimo socorrista ―Onde está Deus/ cujo poder não exercita?/ cuja vontade não realiza?/ cujas bênçãos nunca vêm?‖ pergunta o poeta, sabendo da ineficiência da sua função perguntativa. Pergunta para não dizer que não perguntou e que todos testemunhamos. Quem o responde?
já não é mais o cemitério onde cultivo desilusões
20 | 01 de Fevereiro de 2013
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Artigo
O papel do romancista na evolução da literatura nos PALOP Luís Fernando - Angola/Jornal Cultura
Q
uase me pergunto se ainda há pachorra para ouvirem esse tal que vem já com o fim da colheita a ver-se, com a lavagem dos cestos praticamente iniciada. Para agravar o meu destino, venho falar depois de o terem feito com a notabilidade que lhes é própria, dois ilustres moçambicanos chamados de propósito para darem ampla luminosidade à festa da nossa mais resistente associação amiga da Cultura. É um arrojo meu tentar acrescentar seja lá o que for ao que já disseram sobre José Luís Cabaço e João Paulo Borges Coelho. De qualquer maneira, ―kanimambo‖ aos dois, por se entregarem antes de mim ao ―fogo amigo‖, esperando vir a beneficiar do seu trabalho como desbravadores. Pois cá vamos para as nossas ideias sobre o papel do romancista na evolução da literatura nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. Constato pelas contas das leituras esparsas e das notícias episódicas dos jornalistas que a produção literária no universo dos PALOP anda de boa saúde, quer o que se avalie seja a poesia ou o romance, sem menosprezo para outros géneros como o conto, a novela ou a escrita dos dramaturgos. A começar, já é muito bom que seja essa a realidade dos factos, perante o impetuoso avanço do desinteresse pela leitura, um fenómeno pelos vistos transversal e que vai obrigar os nossos Estados, os nossos sectores da cultura, os nossos investigadores a desafios imaginativos para que as sociedades do futuro não venham a ser uma infeliz e deslustrada reprodução dos longevos habitantes das cavernas, recolectores de frutos, caçadores de mamutes, fornicadores inveterados e pouco mais! Como dizem que a moda e a História andam aos ciclos com vaivéns infalíveis, tenho medo que venhamos a ser substituídos (se calhar mais cedo do que se pensa) por gerações grotescas de trogloditas e mentecaptos olimpicamente alheados da festa da leitura. Retomando o fio, temos pois como primeira ideia a existência de uma literatura pujante, sólida, com sinais de uma produtividade a toda a prova, no conjunto das nossas cinco nações que se comunicam em português no continente africano. O bom momento da nossa literatura é resultado da contribuição efectiva dada por todos os que um dia nas suas vidas descobriram o secreto e irrecusável apelo que vem de dentro, para que mais do que os mundanos affairs comuns e correntes do quotidiano, a passagem pela terra faz mais sentido quando se pratica o dom da partilha. Escrever, na verdade, não é outra coisa senão entregar-se aos outros depois do egoísmo momentâneo e perdoável da produção. Sinto que há cada vez mais gente a interessar-se pela escrita. Ou seja, temos romancistas a reproduzirem-se quase como cogumelos em tempo de chuvas. Relativamente ao modo copioso como o romance vem reforçando o património intelectual dos nossos países, talvez valha a pena trazer à tona um punhado de perguntas que às tantas nos fazemos mas sem grandes preocupações com o que pode ser o leque de respostas correspondentes. Por exemplo, os romancistas estão mais motivados a escrever quando as sociedades em que vivem enfrentam tempos críticos como a guerra que por longo tempo nos acompanhou em Angola ou, pelo contrário, os tempos de acalmia, de paz, de sossego, sugerem mais temas, mais ideias, mais trabalho? A observação que mantenho da nossa realidade não privilegia nem um nem outro cenário. A ideia na qual acredito é a de que, basicamente, os romancistas estão activos a tempo inteiro e vão buscar ao estado da sociedade os temas inspiradores que depois trabalham segundo balizas ideológicas subjectivas e os seus próprios ritmos produtivos. A contribuição dos romancistas dos nossos países para o crescimento das respectivas literaturas é, claramente, muito presente. As sociedades africanas, ou seja, as nossas, têm a grande vantagem de não serem sociedades exauridas, exangues, recauchutadas nos modelos. Encerram um potencial de matéria virgem que é, na verdade, uma enormíssima dor de cabeça para os escritores, pois morrem de raiva pelo facto de os dias terem apenas 24 horas quando eles gostariam de dispor de mais tempo para trabalhar em tanta coisa que sabem estar à mão de semear. Escrever em África, como africanos e sobre questões africanas, é uma infinita bênção. Qualquer de nós que sucumbiu à tentação de seguir as peugadas do romance sente que ao escrever ajuda a mostrar o que somos, como vivemos, o que sentimos, ao que aspiramos e o que nos atormenta. Nos nossos países agimos como se, sobre os nossos ombros, repousasse o peso da estruturação da História e do adensar de outras disciplinas surgidas da necessidade natural de se perceber e debater a teia
complexa das inter-relações humanas. Quando lemos Pepetela nas suas múltiplas entregas ficámos logo com um claro entendimento daquilo que estou a tentar teorizar aqui. O mesmo se dirá da linha de intervenção de Ismael Mateus, Manuel Rui Monteiro ou Aníbal Simões, valendo a extrapolação para Luís Bernardo Honwana, o moçambicano de quem a criançada em Angola leu ―Nós Matámos o Cão Tinhoso‖ nos tempos de ingênua e saudosa lucidez em que se acreditava que os nossos podiam merecer, afinal, um espaço e um lugar no contexto do ensino que nos fazia (e faz) falta; ou o incontornável Mia Couto, que carrega às costas, pode dizer-se, a palpitante história presente e sem esperar pelo amanhã esquivo, da vida dos moçambicanos; referência também, e pelas mesmas razões, ao cabo-verdiano Manuel Lopes, que nos legou os ―Flagelados do Vento Leste‖, escrito quando o arquipélago era ainda uma colónia de Portugal mas insubstituível na descoberta do Cabo-Verde real, com as suas calamidades, as secas, a vida em condições extremas num lugar agreste. Admitamos que não é uma mera retórica a contribuição do romancista na consolidação, fortalecimento e projecção da literatura nos PALOP. Nem é, muito menos ainda, uma simples pergunta que se formula para preencher mais um painel que debate e dá trabalho a dois, três ou quatro teóricos que se esfalfam em explicações: nada disso! O romance, felizmente, está presente na realidade dos nossos países como a panóplia de outras conquistas e degenerações próprias de um percurso de vida imparável. O que há é, de resto, uma indestrutível relação de causa e efeito: as sociedades produzem as sementes, o adubo, as mudas; os romancistas tratam de capturar essa atmosfera com o receio ancestral de se perder na voragem dos dias, e fazem os livros. Portanto, a hipótese improvável de que os romancistas deixem de cumprir com o seu papel de alimentadores da literatura nos nossos países só se daria se, por um qualquer eclipse existencial, as nossas sociedades se tornassem amorfas, deixassem de produzir eventos nos mais distintos campos da vida, numa palavra, se extinguissem como factores de transformação. Havendo países, havendo vida, havendo acção humana, os romancistas lá estarão eles sempre de ouvido arrebitado para servir a sua geração e as que virão, interpretando os fenómenos e fixando-os no papel dos livros. Não tenhamos pois o receio de que o que está a acontecer hoje diante dos nossos narizes (com a nossa contribuição consciente enquanto cidadãos ou na condição de impotentes observadores apenas) se perca no lusco-fusco do tempo. A classe dos escritores, ao longo da civilização humana, nunca se caracterizou pela distração nem pela preguicite. De tal sorte que, no caso dos nossos países, temos e continuaremos a ter preservado em livros o amplo e incrível caleidoscópio de fenómenos próprios da nossa evolução como comunidades. Os livros que lemos e leremos no futuro vão continuar a falar das dores da colonização como aqui mesmo neste evento da Chá de Caxinde tivemos testemunho, com a obra de Alberto de Oliveira Pinto ―Angola e as Retóricas Coloniais‖; do parto difícil que foram as nossas independências; da utopia dos primeiros anos, o sonho do céu e o paraíso depois de vencido o colonizador estrangeiro; da trapalhada risível que é a tentativa de nos tornarmos empresários ganhadores e novos ricos nos países que agora são efectivamente nossos pela legitimidade das independências; de tudo o que lhe está subjacente, as ―catanadas‖ entre ―iguais‖; as ostentações bizarras; o fausto patético das festas em sociedade, onde desfilam com ar triunfal caricaturas humanas de que os lúcidos se riem; o cancro da corrupção; dos que vão ficando pelo caminho, frustrados porque lutaram pela pátria mas a riqueza não os contemplou; das mulheres e homens astutos que alimentam os mais estranhos submundos, que tão bem os retrata o nosso Pepetela; dos mercadores que hegam de todo o mundo para iniciar entre nós os seus mundos, com fahitas que seduzem até meninos alimentados desde sempre com produtos da Nestlé; das novas fés e novas rezas que fecham ruas em bairros onde os nativos passaram quase à clandestinidade; dos doutorismos em voga, porque os diplomas pendurados na parede são uma mescla irresistível de fetiche e status; da enganosa felicidade dos jovens por cada vez lerem menos e renderem-se aos subprodutos de uma cultura que não é nenhuma; enfim, um universo vasto de retratos que só poderá produzir como resultado uma literatura evoluída porque densa, diversificada nos temas que aborda, extraordinariamente rica até pelos acasos do Destino! Saio de cena com um desejo impossível de reprimir, que é o de voltar a exaltar a capacidade de sofrimento da Chá de Caxinde, que todos percebemos que há anos que faz do deserto o seu lugar de pregação, mas não atira a toalha ao chão, não desiste, não desfalece, não se rende à tentativa silenciosa de se secundarizar a alma cultural de uma cidade como Luanda, que já foi lugar de fervorosas tertúlias e emotivas loas ao conhecimento e ao saber. Mantenham-se à tona, pois não há tsunamis que vos varrerão do mapa, enquanto acreditarmos todos que LER É UMA FESTA.
21 | 01 de Fevereiro de 2013
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Ideias Finais
Retalhos A crónica que nunca escrevi sobre meu pai
Livro: evolução ou revolução Evandro Morgado - Portugal
A
s tecnologias alteraram irremediavelmente o ritmo da sociedade e do mundo. A fluidez da informação é vertiginosa e exige ubiquidade, pelo que as caraterísticas atuais intrínsecas à informação exigem novos dispositivos de acesso e um novo modelo para a conceção e para a apresentação – esta tem sido uma das tarefas mais difíceis de cumprir neste processo de mudança de paradigma. A leitura num registo digital – tablets, e-readers, smartphones, entre outros – tomou as ruas e está a conquistar as salas de aula, as bibliotecas e outros espaços de acesso a informação. Esta ofensiva tecnológica, associada a outras tendências das tecnologias educativas e comunicacionais, tem estimulado a comunidade científica e escolar a repensar o conceito de sala de aula, o paradigma de ensino e de aprendizagem e a forma de proporcionar o acesso à leitura. Por outro lado, o tecido empresarial tem estado atento a esta tendência e tem apresentado lentamente novos produtos adaptados a esta metamorfose. Não obstante, a margem de evolução deste mercado é gigantesca, dado o seu estado de desenvolvimento. Os pedagogos, cientes dos riscos desta democratização relativamente à produção e ao acesso à informação, reconhecem as mais-valias dos novos padrões de produção e apresentação de conteúdos digitais: variedade de elementos gráficos, animações, hipertexto, ligação a matérias complementares, apresentação multimodal da informação, reciclagem de conteúdos, acessibilidade, omnipresença, preços normalmente mais baixos, entre muitas outras vantagens. Neste contexto, urge reconhecer as características do atual processo de comunicação e de acesso à informação e perceber a tendência evolutiva das tecnologias associadas, para reformular os processos de produção, apresentação e distribuição e deconteúdos. A evolução tecnológica a que temos assistido, sem prejuízo da que se antevê, tem dado estrutura ao conceito de sociedade de informação e, simultaneamente,tem levantado questões acerca da natureza, evolução, função e eventual extinção do livromaterializado na formacomo o vemos tradicionalmente – no papel. A WorldWide Web (WWW) tem ampliado a experiência do conteúdo digital em rede, proporcionando e potenciando a ubiquidade, a partilha, a interação,a intertextualidade e a hipertextualidade. É certo que, ao longo da história do livro e das formas de comunicação, registaram-se grandes transformações. A imprensa, por Gutemberg, revolucionou o acesso ao livro, mas não alterou a estrutura do livro que o códice introduziu. O próprio códice, enquanto evolução do rolo de pergaminho, não alterou os meios de produção de texto. Hoje, assistimos à revolução integral do livro enquanto conceito, já que decorrem transformações simultâneas em diferentes vetores: (i) modelos de produção de texto (ii) técnicas de reprodução de texto; (iii) recursos de divulgação; (iv) meios de disseminação; (v) forma e materialização do objeto. Segundo José Afonso Furtado (2002), estas alterações ficam a dever-se a três revoluções globais: técnica, morfológica e material: Mas hoje estas três revoluções - técnica, morfológica e material estão perfeitamente interligadas.‖ Essa singularidade leva a que enfrentemos uma crise nas categorias que têm permitido a nossa ligação com o livro e com a sua cultura. Por exemplo, (…) as que dizem respeito à propriedade e ao copyright, que se cristalizaram durante o século XVIII, encontram agora diversas dificuldades face às características do texto electrónico. Mas o mesmo se passa com a noção da identidade do livro, identidade que é simultaneamente textual e material. Até agora, os géneros textuais podiam distinguir-se imediatamente pela sua materialidade específica. ―Todos sabemos que um livro não é um jornal, que por sua vez também não é uma carta... Mas no mundo dos textos electrónicos esta diferença tende a desaparecer. (Furtado, 2002).
Eduardo Quive - Moçambique eduardoquive@gmail.com
N
asce o dia. É bom dia – mandam as nossas origens –
na dúvida do que os próximos tempos nos darão. Não importa.
Quando se acorda o dia é mesmo bom – bom dia! Meu pai sentado na sala, tão imóvel quanto seu corpo! Um televisor ligado a barrulhar, uma mesa dos anos 80 encostada a parede, rompe de quando em vez, a escuridão. Os ratos circulam sem temer. Uma secretária que apenas guarda um prato com a comida de ontem apodrecida. Um copo cheio de nuvens de poeira quase que cinzento. Um recipiente de dois litros contendo água quase aquecida pelo calor. De onde se encontra, contempla a luz do dia que vai buscando horizonte. Vê tudo de lá. As pessoas que da rua passam, seus filhos que não o saúdam, seus netos, galinhas, plantas, e a mafurreira. O seu desejo é de contemplar tudo isto de perto. Tenta se levantar. Força um movimento. Volta a cair na cadeira. Agora com a mão segura a secretária onde encosta uma parte do corpo. Agora com mais força se empurra o corpo para frente. Eis que consegue com mais sacrifício. Seu pé direito é aleijado. Sofre. A ferida verte sangue e pus. Às vezes caem, enquanto anda, bichinhos. Cheira a merda e se prolifera por toda a sala. Porém, quando a abre para a lavar, trata-a com gosto. Lambe-a. Acaricia-a. são os seus vermes. Seus males. Suas dores. Sua herança. Seu passado. Seu futuro. Uma ferida que se alonga pelo corpo. Dá alguns passos modestos. Tudo no reforço a moribundice. Contemplo-o. Olho sem piscar. Enfrenta cada paço com meta e desafio. É doloroso. Mas enfrente é o caminho. Só não sabe que os caminhos são vários. Ou há vida ou há morte neles. Desta vez escolhe o da morte. Galga com gosto. Antes caiu, levantaram-no, tomou o chá de silêncio. Calou-se. Gesticulou. Tudo se calou, apenas os olhos falaram. Mas como entender os desejos de um olhar? Como ouvir a voz que nos olha? Agora está mais imóvel ainda. Seu corpo quente e mais aquecido ao calor da urina na cama onde aguarda sua morte, arde. Saem-lhe feridas. É muita dor. Mas como expressar? Chora meu pai. Chora!. Não, os homens não chora. Não chora meu pai. Só os gestos dos que o vigiam tendem a comunicar. Há lágrimas. Há sorrisos desesperados. Há visitas de
O livro é ainda ícone de verdade, fonte de conhecimento – é lei, doutrina, política, história, literatura, saber – e espelho das criações e das invenções, o que lhe confere uma imagem de autoridade que torna difícil o processo de relação entre o conceito livro e a associação à sua imagem enquanto objeto. A destruição de um livro era a destruição do seu autor, pois enquanto objeto era o legado das suas ideias e da sua visão do mundo, fazendo o com que o livro se confundisse com o seu conteúdo.
última hora. Há amigos instantâneos. Padres e madres, ausentes. Minha mãe, reza. Reza, a sagrada tarefa das mulheres prestes a ser viúvas. Não é um exercício de pedir saúde. É uma preparação ao luto. Nenhuma lágrima contornará o percurso. O horizonte está a espreita. Agora é por todos conhecidos. Levá-lo à medicina 2? Não. É morte certa. Mas o que é morte certa? Ele já está morto. É tudo suspiro das almas. Os olhos ainda movem. As feridas ainda abrem-
Referências Bibliográficas Furtado, J. A. (2002). ―Livro e Leitura no novo ambiente digital‖ in Projecto Enciclopédia e Hipertexto. FCUL, Lisboa. Acedido no dia 2 de março de 2012 em http:// www.educ.fc.ul.pt/hyper/resources/afurtado/index.htm
se. Com sua única mão sobrada da paralisia já não pode acaricialas, beija-las, cura-las. Já não é vida. Morrer é solução – disse meu pai. Ninguém mais merece um eterno descanso.
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