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Director: Amosse Mucavelel Email: r.literatas@gmail.com l Maputo l Ano II l Edição: Nº. 60 l Setembro de 2013
“A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua: o reencantamento do mundo” Por: Aurélio Ginja Pág: 20 à 21
A Neve das Palavras Por: Maria João Cantinho Pág: 8 à 13
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Eventos
Receba às sextas-feiras Literatas em PDF e comenta sobre os assuntos retratados através do e-mail: r.literatas@gmail.com
Comissão Organizadora: Ana Cláudia da Silva Edvaldo A. Bergamo Lucia Helena Marques Ribeiro
II SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS DE LITERATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA: A poesia em Língua Portuguesa, ontem e hoje
Apoio:
09 e 10 de setembro de 2013
Auditório I - Instituto de Biologia
PROGRAMAÇÃO 09/09/13 – Segunda-feira Manhã 9h Abertura João Pignatelli – Camões I. P. Maria Isabel Edom Pires – Chefe do TEL Piero Sylvia Cintrão – Vice-Coordenador do Pós-Lit Edvaldo A. Bergamo – Coordenador da Cátedra Agostinho da Silva 10h Conferências I Coordenação: Edvaldo A. Bergamo (UnB) Rosa Martelo (Universidade do Porto - Portugal) Jorge Fernandes da Silveira (UFRJ)
Tarde 14h Mesa-redonda I: Às voltas com Camões Coordenação: Ana Cláudia da Silva (UnB) Adriana Araújo (UnB) Alexandre Pilati (UnB) Sylvia Cyntrão (UnB)
15h30 Coffee-break 16h Mesa-redonda II: A poesia brasileira em diálogo Coordenação: Ana Clara Magalhães Medeiros (UnB) Augusto Rodrigues (UnB) Jamesson Buarque (UFG) Julliany Mucury (UnB) 18h Encontro com o escritor Amosse Mucavele (Poeta Moçambicano)
Continuação Página 14
Editorial | Japone Arijuane
Palavras nos faltam Com palavras e por palavras nos entendemos, é óbvio!, Mas, antes que as mesmas palavras fujam-nos, queremos de forma artística e poética agradecer a todos aqueles que, directa ou indirecta, poética ou não, contribuíram para o sonho da antologia (A Arqueologia da palavra e Anatomia da Língua), tornar-se uma realidade. E confessar-vos que este foi o dia pelo qual nós lutamos, e continuamos a lutar. Juramos a nós mesmo que o dia P, por tão poético que foi o dia, nos faltaram as mesmas palavras para agradecer tanta gente que se fez presente no Centro Cultural Brasil-Moçambique (CCBM), para testemunhar o nascimento da mais pura e nova saga de palavras poeticamente ricas que reúne e unem uma toda comunidade (CPLP) e não só, visto que há textos na antologia de outros quadrantes, mas tecidos pela essa mesma língua de Camões. Nesta edição, bastante esperada e por nós sofrida, sofrida por problemas de várias ordens, desde a organizacional, motivacional e com mais ênfase a tecnológicos; queremos, compartilhar alguns momentos do lançamento e como também compartilhar com o nosso público, leitor exigente, o desabafo de uma geração que se faz a custa do nada. O nada que é a cultura, a literatura particularmente, neste quadrante sul onde nos localizamos. Nada! Meus confrades, nesta edição número 60, marca a fase de uma luta, luta contra o tempo e a tecnologia. Pois que não podemos é negar que houve um atraso influenciado por estes dois motivos, e que além de agradecer, queremos nos desculpar pelo mesmo tempo e a tecnologia que nos foge. Nesta edição, como já o disse, nos encontramos em momento de reforma, e como sabem todos momentos de reforma podem muito bem ser momento de crise. Crise esta que nos abalou e continua nos atormentando de forma exterior, pois interiormente continuamos os mesmos, os mesmos activistas literários. Para não ficar aqui a falar o que muitos podem não entender, convido-vos a ler e a partilhar a novíssima saga, nutrida de dois grandes ensaios, um sobre a antologia, esse filho que cuja procriação nos responsabilizamos, na visão do Professor Aurélio Ginja e outro da Professora Doutora Maria João Cantinho intitulada “A Neve das palavras”, sobre o Paul Celan. E a sua poesia, como é óbvio. Boa Leitura!
Ficha técnica
Centro Cultural Brasil-Moçambique | Av. 25 de Setembro, Nº 1728 | Maputo | Caixa Postal | 1167 | Email: r.literatas@gmail.com | Tel. (+258): 82 27 17 645 | 82 35 63 201 | 84 07 46 603 Movimento Literário Kuphaluxa | www.kuphaluxa.blogspot.com | www.facebook.com/movimento.kuphaluxa
DIRECTOR Amosse Mucavele | amosse1987@yahoo.com.br Cel: +258 82 57 03 750 | +228 84 07 46 603 EDITOR Japone Arijuane| jarijuane@gmail.com | japomati75@hotmail.com Cel: +258 82 35 63 201 CHEFE DA REDACÇÃO Nelson Lineu | nelsonlineu@gmail.com Cel: +258 82 27 61 184 CONSELHO EDITORIAL Amosse Mucavele | Jorge Muianga| Japone Arijuane | Mauro Brito. REPRESENTANTES PROVINCIAS Dany Wambire - Sofala Lino Sousa Mucuruza - Niassa Jessemuce Cacinda - Nampula
COLABORADORES Moçambique: Carlos dos Santos, Matiangola Brasil: Rosália Diogo Marcelo Soreano Pedro Du Bois Samuel Costa Portugal: Victor Eustaquio Angola: Lopito Feijóo Cabo Verde: Filinto Elísio PAGINAÇÃO & FOTOGRAFIA Eduardo Quive PERIODICIDADE Quinzenal
COLABORAM NESTA EDIÇÃO: Angola João Maimona, José Luís Mendonça Victor Burity da Silva Luísa Fresta Brasil Osmar Casagrande José Geraldo Neres Alexandre Guarnieri Geórigio Rios Cláudia Falluh Balduino Ferreira Portugal Maria João Cantinho Moçambique: Lily dos Amures
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Paginação: Japone Arijuane & Amosse Mucavele
A revista Literatas é uma publicação electrónica idealizada pelo Movimento Literário Kuphaluxa para a divulgação da literatura moçambicana interagindo com as outras literaturas dos paises da lusofonia. Permitida a reprodução parcial ou completa com a devida citação da fonte e do autor do artigo.
Às segundas-feiras saiba quem é a personagem da semana em: http://revistaliteratas.blogspot.com
Personagem | Diálogos
João Maimona-Angola
Amosse Mucavele-Moçambique
Carlos Drummond de Andrade
VIII No meio do caminho tinha uma pedra C.D.A
É útil redizer as coisas as coisas que tu não viste no caminho das coisas no meio de teu caminho.
coloquei inúmeras pedras no caminho para esquivar do amor sentei a beira do rio sem o anzol com os olhos pesquei toda a dor escondida no corpo das pedras
Fechaste os teus dois olhos ao bouquet de palavras que estava a arder na ponta do caminho o caminho que esplende os teus dois olhos. Anuviste a linguagem de teus olhos diante da gramática da esperança escrita com as manchas de teus pés descalços ao percorrer o caminho das coisas. Fechaste os teus dois olhos aos ombros do corpo do caminho
José Luis Mendonça-Angola
POESIA VERDE
para Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade-Brasil
“No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra...”
No meio do caminho nunca houve uma só pedra As pedras nascem na boca e a boca é o seu caminho Das pedras que comemos as cidades ainda falam pelos cotovelos da noite Não eram pedras eram pedras com cabeça tronco e sexo Pariram fábricas de pedras montadas sobre língua E as pedras comeram a pedra que restou no meio do caminho
04 | 19 de Setembro de 2013
Questão de Fundo
Grupo de doutorandos da Universidade Federal de São Carlos-Brasil
Juvenal Bucuane, Aurélio Furdela, Anna Rizzi e Nelson Lineu e outros
Convidados
Japone Arijuane e a mesa de honra
Convidados
Lucilio Manjate, Aurélio Ginja, Juvenal Bucuane e outros 05 | 19 de Setembro de 2013
Questão de Fundo
Lilía Momplé , Emmy Xyx e outros
Mauro Brito e Convidados
Amosse Mucavele e a Professora Dra. Lanie Millar da University Of Oregon-USA
Nelson Lineu
Japone Arijuane, Lilía Momplé e a Professora Dra. Lanie Millar da University Of Oregon-USA
Convidados 06 | 19 de Setembro de 2013
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Livros
A intensidade do “acaso caos” Ricardo Bezerra-Brazil
Não sou crítico literário, pois admiro o que escreve o Escritor Hildeberto Barbosa Filho. Porém, ao fim da leitura de um livro, quando este arrebata as emoções, fazendo com que a circulação sanguínea alcance níveis que proporcionem a erupção vulcânica, materializada no suor que inunda o corpo, dando sensação térmica aparente de larva que consome tudo por onde passa, sinto uma necessidade extrema de externar, na escrita, o que senti com aquela leitura, eternizando o meu pensar. Ao ler “acaso caos” de Bruno Gaudêncio, poesias, onde prefiro extirpar esta conotação de “jovem poeta” ou de que “está maduro no exercício poético”, já que entendo que todos que escrevem são poetas, independente da idade, porque o sentir poético depende do olhar à escrita, do gosto por determinada leitura e, também, do momento em que o leitor está para ler. Augusto dos Anjos ao ter sua morte anunciada foi dito que nada havia se perdido, enquanto poeta. Quem o disse, para não exaltar seu nome, deve está revirando a cova! A intensidade do “acaso caos” começa pela sua inclusão em seis dos poemas apresentados, destacando-se o que atribui o título do livro, fls. 45, desta edição lida, onde a imagem do amor e seu conflito são permeados pelo relacionamento a dois, usando o autor “nós”. Esta reflexão nos conduz ao estudo numerológico do seis, onde é perceptível no citado poema que o autor se identifica muito mais com “nós” do que o “eu”, colocando a sua preocupação com o bem estar das pessoas, visivelmente percebido na relação exarada pelo autor. O “acaso caos” em seis poemas do autor condiz com o seu perfil pessoal para o numerológico, por ser o número indicado aos Mistérios Maiores, do amor-sabedoria e da glória. Cultura é algo que já não mais se questiona neste Campinense arretado! Ele vem aprimorando-a a cada dia; até mesmo pelo seu caráter, digno de uma personalidade humana integrado pelos veículos da matéria: físico, vital, emocional e mental. Aliado a isto, completa-se com o espírito. Algumas virtudes do número seis, tais como: Sentimentos de Amor, Fraternidade, Paz, a Incansável busca de Deus, responsabilidade, teimosia, disposição, dar e ser conselheiro, ser sonhador, magnetismo, atração, simpatia, amizade, beleza, pureza, sensibilidade, companheirismo, compaixão, acolhedor, são visivelmente encontradas na leitura de “acaso caos” e, até mesmo, no próprio ser Bruno Gaudêncio. O autor confiou no “acaso” e venceu, sendo imprevisível, sem refletir pelas conseqüências e que na probabilidade lançou o “caos” como forma de manejar as palavras e fazer com que elas fossem ingeridas pelo leitor causando-lhe uma revolução interna, reflexiva.
Bruno Gaudêncio surge como a natureza divina de “caos”, a primeira divindade a surgir no universo, de difícil entendimento, quando na verdade esta leitura é mudança de idéia. O “Itinerário da desordem interna” é a própria estrutura da divindade. A mais antiga das divindades. Pai de Tártaro (abismo), Gaia (Terra) e Eros (cupido - o mais belo entre os deuses). Significa o vazio original do universo. O trajeto numerológico e divino do autor é um olhar diferente onde o poema é vida, vagando no vazio do caos, onde a “Retina” demonstra uma sensibilidade do poeta e sua pintura estética da poesia como a razão de tudo, onde tudo pode; até mesmo superar a razão. O abismo “bruniano”, nesta ótica e leitura pessoal, compreende uma sonoridade neste “ossos” que habita na casa eterna como um grande enigma da vida. Como tratar o tema? Sutilmente Bruno Gaudêncio nos transporta a uma nova leitura dos nossos ossos. E esta sonoridade tem leitura similar em “pequena canção do caos”, levando à Terra um propósito momento de que o vazio foi extirpado. A narrativa mística, divina, entendida na leitura ganha corpo em “geolírica” por entender a divindade Terra na sua essência de “alma”, possível de se livrar do caos humano, através da poesia. Ler Bruno Gaudêncio e colocar no papel a visão numerológica e mística da sua poesia, na noite de São João, onde a fogueira queima vida outrora, dando vazio ao universo, é de se ter “a urgência do vento” para que o nevoeiro exalado seja substituído pelo sonho do poeta em ter seus olhos coloridos por nuvens que não brincam de sol.
*Escritor/Poeta/Advogado Instituto Histórico e Geográfico Paraibano Academia de Letras e Artes do Nordeste Brasileiro- Núcleo da Paraíba Academia Paraibana de Poesia Livro: ACASO CAOS - poesia Autor: Bruno Gaudêncio Editora: Editora IDEIA - 2013
07 | 19 de Setembro de 2013
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Ensaio
A Neve das Palavras
Maria João Cantinho
“O poema, sendo como é uma forma de aparição da linguagem, é por isso de essência dialógica, o poema pode ser uma garrafa lançada ao mar, abandonada à esperança - decerto muitas vezes ténue - de poder um dia ser recolhida numa qualquer praia, talvez na praia do coração. Também neste sentido os poemas são um caminho: encaminham-se para um destino (…) para um lugar aberto, para umtu intocável…” Paul Celan, “texto de agradecimento do primeiro prémio recebido, em Bremen”, 1958, in Arte Poética - Meridiano e outros textos, ed. Cotovia, Lisboa, 1996. “Só mãos verdadeiras escrevem poemas verdadeiros. Não vejo nenhuma diferença de princípio entre um aperto de mão e um poema”. Paul Celan, “Carta a Hans Benderm”, in Arte Poética - Meridiano e outros textos, ed. Cotovia, Lisboa, 1996. O que mais nos impressiona, na abordagem da vida e obra de Paul Celan foi o modo trágico como o poeta assumiu a responsabilidade da sua época. Por isso, o fascínio de que se revestiu deve-se a essa dupla dimensão, entre o poeta que ele foi, no “limiar do emudecimento” e o ser humano, profundamente consciente da sua época e do seu tempo, tendo pago caro essa factura com os dissabores que isso lhe trouxe. Uma abordagem clara e rigorosa do homem, nas suas várias facetas, exige, por isso, a separação das “águas” entre a lenda em que ele se transformou e o homem (de uma fragilidade comovente) propriamente dito. Edith Silbermann [1], amiga de juventude de Paul Pessakh [2]Antschel - nome verdadeiro de Celan - , refere esses aspectos que foram desvirtuados na sua biografia. Paul Antschel nasceu em 23 de Novembro de 1920, em Czernowicz, Bucovina (na Roménia). Filho único, Paul tem, desde cedo, o objectivo de ir para França estudar. E, de facto, parte em 1938, mantendo-se dois anos em Tours, a estudar medicina. É dessa data que nascem os primeiros poemas. Ela dá conta de um jovem ávido e iconoclasta, que defende corajosamente os seus ideais. As leituras de Marx e Nietszche, a par da poesia alemã, sobretudo Hölderlin e Rilke, mas também Goethe e Schiller, Heine, Trakl, Kafka, Hofmannsthal, entre outros, desenvolveram no poeta um gosto pela política e simultaneamente pela literatura. Para o grupo de jovens que acompanhavam Celan, a língua francesa “era a mais bela língua do mundo” [3]. Liam Mallarmé, Valéry, Apollinaire, Baudelaire. Paul traduziu também sonetos de Shakespeare, poemas de Yeats, Apollinaire, entre muitos outros. Foi por este caminho que ele chegou à poesia. Em 1940, começou a estudar russo e, nessa altura, começa a traduzir SergeïLessenine. A armada vermelha ocupa, entretanto, a sua cidade. Durante esse período, que vai de 1940 a 1941 (aquando das ofensivas de Hitler e recuo dos russos), os judeus não ousavam mostrar-se e revelar a sua religião, os seus costumes. Todavia, o irreverente Paul Antschel não se escondia e afrontava corajosamente esse medo. Como o relata Edith Silbermann, Paul adorava chamar a atenção sobre si próprio, o que lhe traria grandes desilusões. É a partir de 1941 que os judeus são “empurrados” para o gueto, pelos alemães. Num dia em que ele sai miraculosamente de casa, antecipando o perigo e refugia -se, graças à sua amiga Ruth Lackner, numa fábrica de cosméticos, aguardando a chegada dos seus pais. Porém, a mãe de Paul negou-se, dizendo-lhe: “Não podemos escapar ao nosso destino”. Nesse ano de 1942, os alemães prenderam os seus pais, que foram levados para um campo de concentração e, no espaço de alguns meses, ambos assassinados. Pouco tempo depois, o próprio Celan alista-se num campo, em Tabaresti, na Roménia, onde se sente mais seguro do que na sua cidade. O trabalho duro que aí realizava deixava-lhe tempo, porém, para ler e escrever, para traduzir, vivenciando a miséria, o desastre e a destruição, à sua volta. Temas como “a morte na neve” serão um dos mais recorrentes da sua obra poética, testemunhando a tragédia dos judeus e, sobretudo, a dor da morte dos seus pais. O frio glacial, as pegadas e vestígios que se dissipam na neve são essas tantas formas metafóricas de exprimir a morte, metáforas que se apresentam de modo constante na sua poesia. A derrota dos alemães, em 1943, estava, todavia, tão próxima que se permitiu aos residentes de Tabaresti o regresso às suas cidades e Paul regressou, então, a Czernowitz. Na Primavera, os soviéticos entravam, pela segunda vez, na sua cidade. Paul avistava um novo período menos cruel. Evitou, por essa altura, a entrada no exército russo, com alguma ajuda, pois a guerra ainda não havia terminado. Em compensação, trabalhou como ajudante numa clínica psiquiátrica, onde se encarregava de tratar os soldados soviéticos com feridas na cabeça e em estado de choque.
Portugal
Para ganhar dinheiro, realizava traduções para ucraniano, num periódico local. Reuniu, nessa época, um conjunto de 93 poemas dactilografados e entregou uma outra colecção escrita à mão à sua amiga Ruth Lackner, para que ela os fizesse chegar a Bucareste e os entregasse ao poeta Alfred Magul-Sperber. No Outono de 1944 retoma os seus estudos de inglês, na universidade que foi reaberta pelos soviéticos e entregou-se à leitura de escritores hebreus. Após o término da guerra, alguns deportados voltaram dos campos e, entre eles, encontrava-se o seu amigo, o poeta Immanuel Weiglass [4]. Nessa época, Paul supunha que o seu tio, Bruno Schrager, tinha ficado em Paris, mas veio a constatar que o seu nome constava dos desaparecidos em Auschwitz, o que veio reacender o seu trauma. Começou, então, a escrever a primeira versão do poema “Fuga da Morte”, o poema que o celebrizou e que tantos dissabores lhe traria, numa polémica questão levantada por Theodor Adorno. Teve uma primeira publicação, em língua romena, no número de Maio de 1947, numa revista de Bucareste, Agora, graças à tradução do seu amigo Petre Solomon. Paul Antschel muda, então, o seu nome de Antschel para o anagrama Celan, que viria a conservar ao longo de toda a sua vida. Felstiner dá conta do acontecimento terrível que parece estar relacionado com o poema, de forma mais directa. Num panfleto escrito por KonstantinSimonov, datado de 29 de Agosto de 1944, sobre o campo de extermínio de Lublin, o autor contava que durante os trabalhos no campo eram tocados tangos e fox-trots. Na revista romena, onde foi publicada a primeira tradução do poema, sob o título “Tango de Morte”, um ano antes da publicação do original, uma nota de apresentação dizia que o poema publicado era construído a partir da evocação de um facto real. Um grupo de prisioneiros, nesse campo, era obrigado a cantar canções nostálgicas enquanto os outros abriam valas comuns. Mas existe, ainda, uma outra fonte de informação, a qual dizia que, num campo próximo de Czernowitz (a cidade de Paul Celan), um comandante das SS obrigava violinistas judeus a tocar um tango, enquanto eram cavados túmulos e decorriam marchas, torturas e execuções. Um dia, o comandante disparou contra toda a orquestra. Música e morte entretecem-se, na poesia de Celan, evocando a atmosfera lírica de Schubert - A Morte e a Donzela - ou de Mahler, de Brahms e do Requiem Alemão, numa tentativa de harmonizar a mais dolorosa e insustentável vivência. Celebração, não da morte, mas daqueles que pereceram nos campos de morte, sob as condições mais desumanas que é possível imaginar-se e a dilaceração surge, de forma sublime, no poema “Fuga da Morte”: Leite negro da madrugada bebemos-te de noite bebemos-te ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite bebemos e bebemos cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro Margarete escreve e põe-se à porta da casa e as estrelas brilham assobia e vêm os seus cães assobia e saem os judeus manda abrir uma vala na terra ordena-nos agora toquem para começar a danço O tema da “dança da morte”, a atentar nas palavras de E. Silbermann [5], já o havia preocupado antes. Celan conhecia bem os “Simulacros da Morte” de Hans Holbein e a tradição da dança macabra, nos poetas alemães e no imaginário medieval, onde a vida é de tal forma precária que o tema da “dança com a morte” assume uma visibilidade que o homem contemporâneo consideraria insuportável. Por outro lado, a questão prende-se igualmente ao problema da língua alemã. A língua em que Celan escrevia era a alemã, a mesma que os “mestres da morte” usavam. Essa terrível contradição - a de escrever numa língua que era a da sua mãe e também a dos seus carrascos - ocupava-lhe permanentemente o espírito e transformou-se numa das suas obsessões fundamentais e que se exprime da forma mais intensa na sua poesia, introduzindo nela uma profunda crispação:
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Ensaio (…) Mãe, eles escrevem poemas. Oh, mãe, quanto chão do mais estranho dá o teu fruto! Dá esse fruto e alimenta os que matam! (…)[6] Quando Derrida [7], fala da experiência da morte em Celan, refere -se, também, ao aspecto da morte, tal como ela é vivida na experiência da língua: “Parece-me, a cada instante, que ele deve ter vivido esta morte. De muitas maneiras. Deve tê-la vivido por toda a parte onde sentiu que a língua alemã era morta duma certa maneira, por exemplo pelos sujeitos da língua alemã que fizeram um certo uso dela: ela é assassinada, morta (…) A experiência do nazismo é um crime contra a língua alemã. O que foi dito em alemão sob o nazismo, isso é uma morte. Há outra morte que é a simples banalização, a trivialização da língua alemã, não importa quando ou onde. E, depois, há uma outra morte que é aquela que não pode chegar à língua por causa daquilo que ela é, isto é: posta em letargia, mecanizada, etc. O acto poético constitui, então, uma espécie de ressurreição: o poeta é alguém que tem a tarefa permanente, numa língua que nasce e ressuscita, não de lhe dar um aspecto triunfante, mas despertando-a como se desperta um fantasma: ele desperta a língua e para tornar viva a experiência do despertar, do retorno à vida da língua [sublinhado meu], é necessário estar próximo do seu cadáver.” Ele, igualmente, a tarefa da rememoração enquanto alvo da sua escrita. Esta experiência do limite da linguagem, de que tão bem falam Steiner (LangageetSilence) e Agamben (v. LeLangageet la Mort), Blanchot (sobretudo no livro que é dedicado a Celan, LeDernier à Parler) aproxima Celan da experiência poética de Hölderlin [8], também ele no limiar do perigo. A visão corrosiva de Celan está próxima, igualmente, da visão benjaminiana do perigo que sofre, a cada instante, aquele que lida com a linguagem e a tarefa alegórica. Mais ainda, ela aproxima-se de Benjamin, no que se refere à tarefa da rememoração, tema por excelência do pensamento hebraico, tomado na sua mais ampla dimensão e que se articula com a da temporalidade do poema. Ambos comungaram da questão da cesura e do limite do dizer, com Ainda que esse alvo se colocasse, no caso de Celan, no cerne do paradoxo da insustentável experiência dos campos. Alegoria e rememoração são pólos constitutivos da poesia de Celan, no sentido em que a única experiência possível de rememoração e de luta contra o esquecimento só pode ser levada a cabo pelo gesto redentor da escrita. No caso de Celan, é na e pela linguagem poética que ela se opera. Ainda a esse propósito, cito o notável estudo de António Guerreiro, consagrado a Celan, “Paul Celan e o Testemunho Impossível” [9]. António Guerreiro fala na tarefa trágica da poesia, no autor, definindo-a como o “limiar do emudecimento” [10]. No texto Arte Poética, Meridiano e outros textos, Paul Celan cruza o seu pensamento com o de Heidegger e Lévinas, numa tentativa de (re)definição do “ser do poema”, que nos remete para a dificuldade do poeta. “O poema mostra, e isso é indesmentível, uma forte tendência para o emudecimento.” Nesse texto extraordinário, pela sua clareza, Celan dá conta da natureza da poesia. O poeta é dominado por esse pathos que é a experiência da linguagem, naquilo que nela confina - e com ela se entrelaça, obviamente com a existência da realidade. António Guerreiro sublinha-o, dizendo: “E porque essa língua não está disponível desde logo, não existe senão através da experiência que leva o poeta ao encontro dela, ela é única.” Celan recusa, aqui, a ideia de uma correspondência poema-realidade, o que nos conduziria, aos seus olhos, a uma visão mimética e empobrecida da realidade.
O poeta é o que luta por ir, com os meios de que dispõe, ao encontro da realidade, através da linguagem. Assim, a ideia de um correlato entre a palavra poética e o real é algo que não existe como um dado previamente estabelecido. Este correlato pode existir ao nível da linguagem enquanto forma de comunicação (e isto não passa de uma hipótese), mas nunca ao nível do “dizer poético, onde persiste inevitavelmente uma irredutibilidade entre a palavra e o real. A concepção mimética (e aristotélica) da poesia e da linguagem é, assim, repudiada por Celan. Por outro lado, a ideia de univocidade do poema caminha, par a par, com a afirmação anterior. Tal é essa ideia da univocidade do poema, quando o poeta afirma: “O poema é solitário. É solitário e vai a caminho. Quem o escreve torna-se parte integrante dele.”[11] Aquele que o escreve e o poema, embora sejam realidades díspares, na sua essência, confundem-se numa outra realidade, que é a do poema. Celan, não apenas recusa o mimetismo, como recusa igualmente o bilinguismo da língua [12], reafirmando a sua univocidade. Deste modo, tempo e poesia encontram a sua articulação no topos do poema e essa temporalidade é, na sua expressão mais vívida, a experiência da lin-
“vai ao encontro da língua com a sua existência, ferido de realidade e em busca de realidade.”[13] guagem, no sentido em que o poeta
Como quem lança uma mensagem numa garrafa, dirigindo-se essencialmente a um “tu apostrofável”, o tempo do poema confunde-se com aquele que o escreve, como o afirma Celan, absorvendo-o [14], mas sustenta-se na frágil linha que se liga ao Outro, lugar onde o Eu se dissipa, libertando-se de si próprio. Neste modo de pensar reconhecemos o próprio pensamento de Lèvinas, entendendo-se o poema, não apenas como o tempo da “respiração” [15], como também o da direcção, o pôr-se a caminho do Outro, “falar em nome de um Outro, quem sabe se em nome de um radicalmente Outro.”(p. 55). No vaivém do Eu para o Outro, o poema auto-sustenta-se na velocidade da respiração ou caminho, através da linguagem. Peter Szondi, amigo de Celan, compreendeu bem essa tripla e essencial função do poema, que ele tão bem analisou em vários dos seus poemas: “linguagem como figura, direcção e respiração.” Esta caminhada para o Outro corresponde a um reconhecimento do instante desse encontro e as ressonâncias que, aqui, se ouvem, além de Adorno, evocam, também, Schleiermacher, Lèvinas, Martin Buber e Rosenzweig [16]. E nesse instante do encontro não há a mínima certeza nem qualquer apoteose, mas o que João Barrento designa por uma “imperceptível mudança de respiração”, o que atesta uma escuta do Outro e do mundo, dando-se num lugar que é já um impossível caminho, para parafrasear a expressão de Celan [17], onde as utopias se transformam em tal:
“(…) encontro alguma coisa que me consola um pouco por, na vossa presença, ter percorrido este caminho do impossível, este impossível caminho. Encontro aquilo que une e como que conduz o poema ao encontro. “O impossível caminho de encontro ao outro” constitui-se como o paradoxo e, enquanto tal, é condição alegórica da poesia - sobre o qual assenta toda a poesia de Celan. J. Barrento [18] defende que a ancoragem da sua poética já não é o romantismo nem a ontologia de Heidegger, “em que a figura do «Autêntico» tem ainda um papel central.” Quando, nesse contexto da relação com o Outro e na caminhada para ele, Celan fala do poema autêntico, ele afirma: “Só mãos verdadeiras escrevem poemas verdadeiros. Não vejo nenhuma diferença de princípio entre um aperto de mão e um poema.” [19] O poema, de acordo com Celan, na sua obscuridade e complexidade, é autêntico. O ofício do poeta constitui-se, como o afirma Celan na Carta a Hans Bender, de acordo com a condição necessária da verdade e do caminho para o Outro. A relação que Celan, nessa carta, estabelece entre “ofício de mãos” e “construção do poema” revela, também, a íntima articulação entre a realidade e a poesia.
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Ensaio A construção do poema obedece à sequência dialógica do Eu com o Outro, do poeta com a Verdade. Porém, essa caminhada, do poema impossível que “fala em nome do outro” é, na sua contradição íntima, uma caminhada na direcção do abismo. Transforma-se no “poema absoluto” que não existe ou na “magestade do absurdo” [20]. E este absurdo é a lei do poema, tal como o é da tragédia, na desmedida que é a paradoxal fonte de criação poética. Somos levados à conclusão de que a configuração do encontro com o Outro é necessária, na poética de Celan e, para tal, evoque-se aqui a forma do des-inter-esse de que João Barrento [21] nos fala, de forma pertinente. Corresponde essa caminhada impossível a uma superação das poéticas do “hermetismo mais puro”, assim como Lèvinas a efectua da fenomenologia e da ontologia. A sua poética não é da “simples ordem de compreensão com os meios da linguagem, é antes anterior a todas as formas de compreensão imediatamente humanas (do verdadeiro humano): o encontro com o Outro” [22]. Procura uma outra linguagem, que se construa como a verdadeira língua, capaz de ultrapassar os limites da linguagem. Poderíamos aí perceber a busca de Celan por uma ideia da criação da “nova” palavra ou palavra poética, a partir de uma relação intensificada entre o hermetismo e a cabala. Todavia, se é possível falar da magia da palavra em Celan, esta magia, no dizer de Yvette Centeno [23], é uma “magia de inversão” [24], pois “a palavra não cria, a palavra reduz ou aniquila”. Como em Lèvinas (e também em Buber), a presença incontornável do Outro é o ponto arquimediano da sua poética que, embora não se lhe dirigindo, o contém. Daí que exista e, sobretudo, preexista uma dimensão ética que lhe é inegável. Como Barrento o assinala [25], será possível colocar a poética de Celan sob a forma de uma “poesia das vítimas”? Ou, para utilizar a expressão benjaminiana, como “salvação dos vencidos da história”? É justamente por isso que nos encontramos no limiar da mudez. “É impossível resistir ao apelo, à convocação imperativa do rosto do Outro, rosto sem rosto, porque, para Lèvinas, ele está para além das formas plásticas. Então, o poema enquanto acontecimento não é um acto da vontade que parte do sujeito, mas, antes, qualquer coisa a que o seu autor se submeteu, como que convocado por um chamamento. “O apelo do outro é irresistível, avassalador”[26], algo que se abate sobre o poeta que, assim, se vê absorvido pelo poema, tornando-se “parte integrante dele.” Esta é a dimensão ética [27], na qual enraíza profundamente Celan, tomando Lèvinas como seu mestre de pensamento, ainda que não fale dele. Por isso, emergindo da fissura da linguagem, o poema corresponde à abertura do caminho por entre os limites da linguagem, no limiar da experiência do emudecimento. No magnífico prefácio que João Barrento faz à sua tradução de Sete Rosas mais Tarde, estabelece uma relação íntima e indissociável entre uma poética que - paradoxalmente - se alimenta dessa “relação constante com o Outro” e, em si mesma, tende para o emudecimento radical, que é da ordem de uma poética do inefável, a que preside uma simultânea sacralização e violentação [28] da palavra poética. Esta dupla dimensão opera sobre a poesia de Celan uma tensão que se manifesta no modo como a antinomia a dilacera. Os poemas de Celan querem dizer o horror extremo e o desabar da esperança através do silêncio. Por isso, o seu conteúdo, como o nota A.Guerreiro [29], citando Adorno, “torna-se negativo”. Esse niilismo cósmico de que Yvette Centeno [30] dá conta, um niilismo que “anula o tempo e as suas fracturas”, que faz cessar toda a capacidade de nomear e recuar a existência “para o abismo da essência não-diferenciada” parece converter-se na força motriz do poema, numa proximidade com a mística da negação de Jacob Böhme. Como a autora o afirma, “Não há salvação possível na obra de Celan, que não aponta caminhos, não filosofa, apenas lambe feridas que não cicatrizam mais.” Não existe qualquer apaziguamento nessa poesia de um hermetismo que revela um mundo irreversivelmente contaminado, destruído. O hermetismo - e o cabalismo - da sua poesia reforça, através das suas imagens, esse esvaziamento do mundo e, ao mesmo tempo, permite a acentuação da intensidade dramática do real. Veja-se, por exemplo, no paradigmático poema “Cristal”: Não busques nos meus lábios a tua boca, Nem diante do portão o forasteiro, Nem no olho a lágrima. Sete noites mais alto muda o vermelho para vermelho, sete corações mais fundo bate a mão à porta, sete rosas mais tarde rumoreja a fonte. De uma forma admirável, Yvette Centeno analisa os elementos herméticos e cifrados, nesta poesia. Tudo, nesta combinação dos elementos sete, noite, rosa e coração, remete para a morte, alegorizando-a. E a morte que, aqui, é alegorizada é a de Israel, pois a rosa representa o estado de Israel. Podemos dizer que, embora exista uma alquimia entre a cabala e o hermetismo,
Como o afirma, ainda, a autora, “Com Paul Celan habitamos o silên-
cio. O silêncio do tempo, o silêncio do espaço entre as palavras” [32]. Mas este silêncio não se situa no coração da plenitude e sim no domínio do exílio, do fragmento, da impotência. É um mundo de desespero e ausência de amor, da redenção, que aí ressuma. Mesmo quando uma fímbria de luz persiste debilmente, ela não faz senão acentuar o negrume e o caos do seu universo. Uma irreversível fractura [33] persiste, contaminando tudo. E a poesia de Celan é o lamento ou o requiem por esse mundo que se sabe irremediavelmente destruído. O que nos sobra são as testemunhas impassíveis e silenciosas, que se exprimem nas metáforas recorrentes: as árvores, a neve, onde se dissipam as pegadas dos que nela pereceram, um olho (o olho do tempo) cego e que nada vê nem reflecte nada, o cabelo que sobrou, as cinzas. Na sua demanda de silêncio, a palavra poética sofre a erosão e a degradação, desarticula-se, torna-se inerte e o sentido morre, dando lugar ao absurdo. Perde, assim, a sua organicidade, numa implosão da linguagem que a desintegra. O desespero fala mais alto e não existe para o homem, neste mundo, qualquer redenção possível nem nenhuma lei salvadora [34]. Ainda que Celan tenha consciência de que o regresso à teologia hebraica poderia fornecer-lhe a âncora salvadora e, assim, poderia proteger-se e acolher-se no abrigo dessas categorias, ele não crê e afasta-se voluntariamente, atestando o mais virulento pessimismo e exprimindo a vertigem niilista. Tal como em Lèvinas, também o rosto e o poema - no caso de Lèvinas é o discurso filosófico - estão ligados entre si. É na representação simbólica do
O Rosto do Poema: ares de família e responsabilidade da poesia face ao Outro
rosto que se “diz” o poema. O rosto não é “visto”, o rosto fala. “O sentido é o rosto de Outrem e todo o recurso à palavra se coloca no frente a frente original da linguagem” [35]. É este confronto com o Outro que fundamenta a linguagem e que lhe confere a significação. Por isso, o discurso (no seu caso, a poesia) não pode deixar de ser dialógico, postulando o encontro o “lugar” da linguagem poética. Nesta medida, Celan rejeita a postura hermética e também o formalismo. “Discurso é «resposta» e «responsabilidade», e esta é para o filósofo e o poeta, o fundamento da «relação autêntica»” [36]. Esta comunidade entre Lèvinas e Celan [37], a de um discurso da «relação» ou no caso de Celan - de uma poética da «relação», revela-se de forma admirável no verso “Sou tu quando sou eu”. Como A. Guerreiro afirma, “a situação da poesia de Paul Celan é a de
pós-catástrofe, palavra de sobrevivente que luta contra a ameaça do emudecimento” [38], transportando consigo a experiência da dor, entendida como experiência do choque (Erlebnis). Não por acaso Celan vê em OssipMandelstam (poeta vencido pela história, morto nos campos gelados da Sibéria) uma profunda coincidência com a sua poética. Por essa mesma razão, ele saiu profundamente ferido pela afirmação de Adorno. Numa carta que Celan escreve a familiares, residentes em Israel, datada de 1948 e citada por John Felstiner, Celan afirma: “Não há nada no mundo
que possa levar um poeta a deixar de escrever, nem mesmo o facto de ser judeu e o alemão a língua dos seus poemas.” A coragem do poeta reside, precisamente, no modo como assume em si a configuração desse paradoxo: se, por um lado, ele vai à procura do Outro e caminha para ele, nada recusando (tal como o herói trágico se sabe impedido de recusar o destino); por outro, tem de lutar contra os limites que lhe são impostos pela linguagem. Não se conforma com a mudez que pesa sobre a História como uma maldição, mas “morde o destino” e a dor de dizer o insustentável. Ele é tomado por um imperativo ético de dizer o “indizível” e é nessa medida que o lirismo (falo de lirismo no sentido em que Philippe LacoueLabarth o tomou) de Celan atinge os seus contornos mais pungentes. A Noite das Palavras Noite das palavras - vedor no silêncio! Um passo e outro, ainda, um terceiro, cujo vestígio a tua sombra não apaga:
porém, a palavra poética é, na sua poesia, uma aniquilação ou uma negação que apenas o silêncio liberta.[31]
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Ensaio a cicatriz do tempo abre-se e afoga a terra em sangue os dogues da noite das palavras, os dogues atacam agora bem dentro de ti: celebram a mais selvagem sede, a mais selvagem fome… Paul Celan, “Noite das Palavras”, in De Limiar em Limiar. Rejeitando a “mística” de Auschwitz e defendendo Celan, Giorgio Agamben[39] recusa a “indizibilidade” que lhe é conferida por Adorno [40]. Agamben reconheceu, contra a brutalidade da afirmação de Adorno, a poesia de Celan como a mais “poderosa refutação” das teses contra a indizibilidade do extermínio. Mesmo quando ela se configura de forma pungente no poema “Uma canção do Deserto”: “Pois mortos estão os anjos e cego ficou o Senhor na região de Acra”. Curiosamente, Peter Szondi, amigo de Paul Celan, revelou [41] que Adorno projectava, até ao final da sua vida, escrever um ensaio sobre Celan, o que permite deduzir que Adorno retrocedeu no seu veredicto sobre a poesia e acreditava, mesmo, que Celan derrubava o seu enunciado. Via-se, assim, obrigado a reformulá-lo, dizendo que “os autênticos artistas do presente são aqueles em cujas obras se repercute o extremo horror” [42]. Contornando a questão e abrindo a possibilidade de uma estética da pós-catástrofe, Adorno parece, não ter negado, mas antes superado o que dissera antes, levantando o interdito que lançara sobre a arte e a poesia. Adorno compreendeu, então, claramente que o sofrimento não suporta o esquecimento. Ainda que esse ensaio não tivesse existido, Adorno consagrou uma parte da sua Teoria Estética ao que ele considera “o mais significativo representante do hermetismo da lírica contemporânea” [43] (tema que, desde o início da recepção crítica de Celan, sempre esteve presente). Porém, Adorno retoma o tema do hermetismo em Celan, de forma diversa e, como o afirma este autor [44], a “opacidade” da poesia de Celan adquire uma transparência que tem a sua génese na vergonha da dor e na impossibilidade de dizer o horror. O silêncio dos poemas de Celan, na sua óptica, atinge o seu paroxismo precisamente porque eles querem dizer o horror extremo e que se aproxima, também, do “afundamento da aura” de que Benjamin dá conta na experiência baudelaireana, ao referir a distinção entre Erfahrung (experiência autêntica) e Erlebnis (experiência vivida do choque). A abissal diferença entre a autenticidade do Aqui e Agora do acontecimento dissipase sob o efeito da repetição do tempo e da mecanicização. Tal como em Baudelaire, o lirismo de Celan é um lirismo sem aura e que desconhece as correspondências do lirismo romântico. Se a primeira versão do poema “Fuga da Morte”, que apareceu no primeiro livro (A Areia das Urnas), ainda trazia em si o selo de uma transfiguração lírica, no entanto, Celan tentará, posteriormente travar a sua circulação. A declaração, feita por ele, numa entrevista, em Bremen, por altura da cerimónia da entrega do prémio, dá a compreender a sua reserva: “No meu primeiro livro (…)estava ainda a transfigurar as coisas - algo que não voltarei a fazer.” [45] No ano seguinte, em 1949, era publicado o livro Grelha de Linguagem, que terminava com o poema “Stretto”, que, de acordo com Szondi, era o exemplo mais acabado da via para a qual Celan se tinha, desde sempre, orientado. Considerado, por muitos estudiosos, como uma nova versão de “Fuga da Morte”, não existe nele qualquer concessão à mimesis, nenhuma concessão ao que se entendia, anteriormente, por transfiguração lírica da realidade. A atentar nas palavras de Szondi, a este respeito, “a poesia deixa de ser mimesis, representação: ela torna-se realidade” [46]. A ideia de “paisagem-texto”, como o refere Szondi, “para onde o leitor
é transposto sem possibilidade de sair porque deixou de haver um fora e um dentro, um antes e um depois, é da maior importância para avaliar o alcance deste poema de Celan”. A realidade configura-se como algo a ser conquistado[47] e “o lugar a partir do qual o poeta se orienta e projecta a realidade é a própria linguagem”.
A análise acutilante de A. Guerreiro dá-nos a compreender que estamos diante de uma reinversão do suposto aristotélico da mimese e que coloca questões fundamentais com as quais se debate a literatura contemporânea. O poema, para Celan, “não transfigura, não poetiza”. É necessário, para entrar neste universo, onde as palavras mordem o insustentável horror sem o embelezar, fazer um exercício de abstracção sobre a poética de Celan, fechada sobre si. Szondi, não apenas um crítico admirável, mas profundo conhecedor da poesia de Celan e seu amigo próximo, refere um fechamento no “universo hermético do simbolismo”, que se vai acentuando a par desse percurso para um silêncio cada vez mais obstinado e irreversível. Estudos realizados como os de Szondi, em particular, vieram iluminar a poesia de Celan, mostrando que, apesar do seu contexto histórico e político - circunscrevendose à sua época - não deixa de lado uma dimensão fundamental e reflexiva, que suscita contornos interessantes e questões pertinentes no quadro das poéticas contemporâneas. O facto de Celan ter traduzido poetas importantes e marcantes, na sua época, parece ter-se convertido num ponto a favor para a prática reflexiva e estética. Saliente-se o texto O Meridiano como aquele que mostra, na sua essência, o que pensa Celan acerca da poesia e da arte em geral. Trata-se de uma experiência de confronto consigo própria. É precisamente nesse estatuto que ela obriga a “uma revisão de todas as aporias e interditos”[48]. Saliente-se, como já foi referido, a experiência da poesia como um “compromisso com a verdade”, tão irrefutavelmente expressa na sua afirmação de que “poemas verdadeiros se escrevem com mãos verdadeiras”. E, desse ponto de vista, parece-me ser fundamental a compreensão da poesia de Celan, na sua autenticidade: enquanto tarefa de luta contra o esquecimento, como rememoração ou salvação dos “vencidos da história”. Como outros sobreviventes do Holocausto, a questão da rememoração coloca-se como o eixo fundamental da obra. E, nesse sentido, mais do que matéria de reflexão estética, a poesia de Celan coloca-se no centro das questões éticas do século XX. Trata-se de questionar a impossibilidade de esquecimento do mal, na sua banalidade, para parafrasear Hanna Arendt, tal como ele ocorreu, nos seus contornos mais insustentáveis. Uma tarefa que se constitui como um baluarte contra o silêncio da história. Confinando, na sua radicalidade, com a loucura e o emudecimento. Tome-se o poema “Argumentum e Silentio”: Acorrentada entre o ouro e o esquecimento: a noite. Ambos a desejaram. A ambos se ofereceu. Põe põe tu também ali o que amanhecerá com os dias: a palavra sobrevoada de estrelas, submersa pelo mar. A cada qual a sua palavra. A cada qual a palavra que cantou para ele, quando a matilha o atacou pelas costas A cada qual a palavra que cantou para ele, petrificando. A ela, a noite, sobrevoada de estrelas, submersa pelo mar, a ela, ganha pelo silêncio, a quem não gelou o sangue quando o dente venenoso atravessou as sílabas. A ela a palavra ganha pelo silêncio. Contra as outras que breve prostituídas pelos ouvidos dos verdugos também escalarão o tempo e os tempos dá por fim testemunho (…)
O estilhaçamento da palavra nasce desse confronto persistente com o silêncio que confina com ela. Como o afirma A. Guerreiro, a poesia de Celan, não apenas confina com o emudecimento, no seu limite, como igualmente se confronta com a ausência de ilusão e de esperança. Nesse sentido, ela “é remetida para a pura imanência das palavras sem garantia, isto é, para a própria matéria da língua” que fez a travessia dos acontecimentos e que renasceu disso. O facto de confinar com o silêncio, numa poética do inefável, faz com que muitos estudiosos aproximassem Celan de Hölderlin, esse poeta extraordinário e paradigmático, que atravessou a noite da loucura com a frágil luz das palavras. Porém, Celan rejeitava o formalismo de Hölderlin, em que o queriam encerrar. Afirmava a Solomon a convicção de que todos os poemas haviam sido escritos numa relação directa com a realidade, de acordo com as palavras de Felstiner.
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Ensaio Todavia, se os seus poemas se suportam nesta relação directa com a realidade, não é possível lê-los [49] como se lê, em geral, a literatura que testemunha, de acordo com o modelo da chamada “literatura dos campos”. Há uma componente de subjectividade que é anulada, atenuada e não é possível reconhecer-se um lirismo confessional, de que Celan se afasta com veemência. Esse mesmo lirismo que Adorno condena no seu veredicto, daí que a interdição tenha ferido sobremaneira Celan. A poesia não se limita à descrição dos factos e a testemunhá-los, ainda que haja (como o defende Celan) uma relação directa com os acontecimentos. Ela opera sobre a matéria um efeito criativo, que faz nascer uma outra realidade. Uma autonomia subsiste no coração desta transformação, que permite os elementos conheçam uma nova ordem, uma ordem de pertença, num outro contexto, na linguagem. Esse modo de operar exige uma reinversão da própria linguagem, uma “ruptura” com a linguagem, “que tem de ser vista na sua relação com o abismo, aberto pelos acontecimentos da história”, como o refere A. Guerreiro [50]. Daí que esta reinversão se faça na direcção do hermetismo, como salienta, a este propósito, Adorno: “No representante mais importante da poesia hermética da lírica alemã contemporânea, Paul Celan, o conteúdo experimental do hermetismo inverteu-se. Os poemas de Celan querem exprimir o horror extremo através do silêncio. O seu próprio conteúdo torna-se negativo. Imitam uma linguagem aquém da linguagem impotente dos homens, e até de toda a linguagem orgânica, a linguagem do que está morto nas pedras e nas estrelas.” [51] Esta linguagem que privilegia o inanimado e que caminha do horror ao silêncio, Adorno reconhece uma transformação a que chama a “transição para o anorgânico”. Como já o referimos, o processo está próximo daquele que Benjamin identifica em Baudelaire, reconhecendo o “afundamento da aura” e das correspondências entre os seres. Tudo aparece, assim, morto e destituído de sentido, nesta linguagem, que se configura como um balbuciar emergente [52], numa nova ordem da realidade linguística. Esse radicalismo de Celan é, sem dúvida, a principal característica da sua poesia, levado ao seu extremo, na perda total do último reduto do homem: a sua humanidade, no confronto com a ausência de Deus. Leia-se o poema “Salmo”, em A Rosa de Ninguém [53]: Ninguém nos moldará de novo em terra e barro, ninguém animará pela palavra o nosso pó. Ninguém. Louvado sejas, Ninguém. Por amor de ti queremos Florir. Em direcção a ti. Um Nada fomos, somos, continuaremos a ser, florescendo: a rosa do Nada, a de Ninguém (…) O caminho de Paul Celan é de uma radicalidade assombrosa, se compararmos o seu percurso a outros poetas como OssipMandelstam ou René Char, a Henri Michaux, Yves Bonnefoy ou, ainda, tantos outros poetas contemporâneos, que viveram igualmente a tragédia dos campos de extermínio. E este trilho amaldiçoado pela mudez aparece cada vez mais pejado de escombros e ruínas, num crescendo que atinge o desespero dos seus últimos poemas. Talvez nenhum poeta tenha encarnado a tragédia da linguagem como Celan, nem mesmo Hölderlin (apesar da loucura, a luminosidade persiste na sua poesia). A vida de Celan mediu-se pela areia da linguagem, que lhe escorria entre os dedos, intangível realidade ou devastada paisagem, para sempre perdida. A sua recusa do lirismo (que Adorno não terá compreendido, inicialmente) está relacionada com a recusa da ilusão, com o imperativo ético de fincar a poesia na realidade. Ironicamente, para aquele que recusava o lirismo, a sua única forma de habitar a linguagem radicava na experiência poética e, por isso mesmo, recusava a narrativa e a ficção, que considerava como uma espécie de degradação da linguagem. Aqui, a contradição atinge o seu clímax. A poesia é o espelho cego de uma experiência insustentável, mas que se deseja na sua pureza, na transparência e na dizibilidade possível da linguagem. Ela, poesia, é vivida como “experiêncialimite”, à qual Celan sucumbirá. Leia-se o seu último poema: Vinhateiros escavam o relógio das horas sombrias cada vez mais fundo,
tu lês, os Abertos trazem a pedra atrás do olho, ela te reconhecerá, no dia do Sabbath. A Rememoração Possível Este é o olho do tempo: Olha de través sob um sobrolho de sete cores. A sua pálpebra é lavada com fogo, a sua lágrima é vapor. A estrela cega voa para ele e derrete na pestana mais ardente: o mundo aquece e os mortos brotam e florescem. Paul Celan, “Olho do Tempo”
Poderemos definir a poesia de Celan como um cântico de redenção? Se existe, na sua poesia, uma réstea de luz, ela exprime -se nesse desejo, profundamente alegórico, de tentar “restaurar” o sentido, numa ordem diversa do plano dos factos vivenciais e insustentáveis do extermínio. Redenção, também, da língua, essa língua que é a da sua mãe e, simultaneamente, dos “mestres da morte”. Redenção como rememoração, naquele sentido em que se toma a rememoração, não como memória, mas (re)construção da memória, no sentido em que Benjamin o toma, na análise sobre o texto proustiano e a alegoria de Baudelaire: “a rememoração representa esse gesto (…) do poeta que leva a cabo a cabo a alegoria, como bem o nota Walter Benjamin, distinguindo claramente rememoração de memória quanto às funções respectivas de cada uma, seguindo as pisadas da teoria psicanalítica e, em especial, de Theodor Reik: a memória (…) «tem por função proteger as impressões, a rememoração visa desintegrá-las. A memória é essencialmente conservadora, a rememoração é destrutiva»” [54]. O tema da rememoração é essencialmente uma das questões judaicas mais profundas e pertinentes. Lembro apenas, entre muitos outros, os notáveis estudos de Michael Löwy, GershomScholem.[55] Se tomarmos como ponto de partida as investigações freudianas e, sobretudo, o tema do recalcamento, é possível estabelecer claramente a distinção entre o que é da ordem da memória (a memória inconsciente) e a estrutura que assenta na base do procedimento alegórico e que, no seu essencial, o explica: a rememoração [Eingedenken]. Rememorar a experiência vivida deve ser entendido como o gesto que simultaneamente leva a cabo a destruição dos elos orgânicos e, contrariamente, encerra em si uma pretensão redentora, essa a verdadeira finalidade da poesia de Celan. Daí, tornam-se claras as palavras de J. Barrento quando fala, no que se refere à sua poesia, de uma concomitante sacralização e violentação da palavra poética. Este gesto é, por excelência, correspondente ao olhar alegórico, que nasce do (re) conhecimento dessa violência dilaceradora que habita o cerne das coisas, da visão terrível do dente da morte roendo o vivo. No poema “A morte é uma flor”, Celan alegoriza a morte através da imagem de uma flor, uma flor que “só abre uma vez”. Trata-se de um mundo de uma beleza terrível, onde os mortos “brotam e florescem”. Morrem para a vida, florescendo para a linguagem poética, a única capaz de resgatar a experiência do horror, pela via da rememoração. Um arrepio de assombro percorre-nos diante dessa imagem de irreversibilidade e impotência alegórica. O contraste do belíssimo verso “E vem, grande mariposa, adornando caules ondulantes” com a iminência da morte confere-lhe um tom profundamente pungente e dilacerador. É nesta violência lírica da palavra que cintila o esplendor da poesia de Celan, mesmo se turvada pelo negro sol da melancolia.
tu lês, o Invisível desafia o vento,
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Ensaio Notas: [1] «Rencontre avec Paul Celan», in Revue Europe, nº 861-862, Janvier, Fevrier, Paris, 2001. [2] «Pessakh», o seu prenome, em hebreu significa «a boca que relata». [3] Ibidem, p. 10. [4] Edith Silbermann, no seu artigo « Rencontreavec Paul Celan», in Europe, pp. 12, 13, refere que o poema “Fuga da Morte” se relaciona intimamente com as descrições que Weiglass fazia a Celan das condições de vida dos campos. [5] Op. Cit., p. 13. [6] A Morte é uma Flor, p. 33. O “fruto” aqui simbolizado é a língua alemã que, por sua vez, é a língua dos carcereiros. [7] Entrevista concedida a EvelyneGrossman, a 29 de Junho de 2000, in Europe, p. 90. [8] NellySachs apelidou-o de Hölderlin contemporâneo. [9] Guerreiro, António, O Acento Agudo do Presente, edições Cotovia, Lisboa, 2000. [10] P. 31. [11] Meridiano, p. 57. [12] Idem, v. p. 69: “Não acredito que haja bilinguismo na poesia. Falar com língua bífide - isso sim, existe, também em diversas artes ou artifícios da palavra e dos nossos dias, especialmente naqueles que, numa feliz concordância com o respectivo consumo cultural, sabem estabelecer-se, de forma tanto poliglota como policroma. Poesia - essa é a inelutável unicidade da língua.” [13] Idem. P.34. [14] Idem, p. 57. [15] P. 54, “Poesia: é qualquer coisa que pode significar uma mudança na respiração.” [16] Martin Buber e Rosenzweig constituem os sistemas mais aceites do pensamento judaico contemporâneo que Celan conheceu bem. Essa ligação à tradição judaica é cada vez mais profunda na sua obra, o que conduz a poética de Celan à dificuldade da interpretação, onde o pensamento judaico aparece cifrado e metaforizado. [17] V. Meridiano, p. 63. [18] V. Meridiano, posfácio, p. 80. [19] V. Meridiano, p. 66. [20] V. op. cit., p. 79. [21] Op. Cit., p. 80, “relação necessária na ordem do ente e de saída da ordem do Ser, da ontologia abstracta e neutra. [22] Idem. [23] Sete Rosas mais Tarde, p. XXI. [24] Esta magia de inversão é tematizada por Adorno, em Teoria Estética, p. 354. [25] Meridiano, p. 81. [26] Ibidem, p. 82. [27] Numa passagem do Meridiano, Celan escreve: “Vivemos sob céus sombrios e…existem poucos seres humanos. Talvez por isso existam tão poucos poemas”. Esta passagem estabelece uma relação imediata entre a dimensão ética e a poesia, de que Celan tinha uma verdadeira consciência. [28] Como o afirma Barrento, na p. XXXII, citando o texto Meridiano, “A esta utopia da linguagem, que num mesmo lance sacraliza e violenta a palavra poética, chamará Celan o «poema absoluto», o poema que não existe nem pode existir, o lugar onde todos os tropos e metáforas são levados ad absurdum” [29] Op. Cit., p. 47, 48. [30] Prefácio à tradução de Sete Rosas mais Tarde, ed. Cotovia, p.XIX. [31] A ideia de um silêncio como “elemento místico fundamental de toda a revelação possível” parece constituir-se como uma ideia subjacente à poética de Celan. Esta concepção não é nova e conhece o seu pleno desenvolvimento na mística da Antiguidade tardia, com os gnósticos e o cristianismo. Ver, a este propósito, a obra de Agamben, LeLangageet la Mort, pp. 115/117. Podemos encontrar o desenvolvimento deste tema na obra de Steiner, A Torre de Babel, ed. Relógio d’Água, Lisboa, 2004, no capítulo consagrado ao gnosticismo. [32] V. p. XXV. [33] E que é também a fractura da linguagem, exprimindo essa irreconciliação. [34] E aqui podemos remeter o leitor para a questão do absurdo da lei em Kafka, também ele tentado pela teologia hebraica, mas, ao mesmo tempo, reconhecendo a impossibilidade da salvação humana, neste mundo, dominado pelo absurdo das leis e convenções. [35] V. Totalidade e Infinito, ed.70, Lisboa, 1988, p. 185.
[37] Refira-se a presença do pensamento de Martin Buber, também, no modo como Celan o incorpora na sua poética. [38] P. 36. [39] Na sua obra O que resta de Auschwitz. [40] É preciso que se entenda bem a posição de Adorno, que rejeita o facto de que o horror se transfigure em princípio de prazer estético. [41] V. O Acento Agudo da Actualidade, ed. Cotovia, Lisboa, 2000, p. 44. [42] Ibidem, citado por A. Guerreiro, p.44. [43] P. 44. [44] Teoria Estética, p. 354. [45] O Acento Agudo da Actualidade, p. 51. [46] Ibidem, p.51. [47] Arte Poética, p. 34: “O poema(…)vai ao encontro da língua com a sua existência, ferido de realidade e em busca de realidade.” [48] A.G., op. Cit., p. 57. [49] Veja-se, a este propósito, as notáveis considerações de A. Guerreiro sobre a “ilegibilidade” da poesia de Celan, em que se tecem comparações com o pensamento da “legibilidade”, no pensamento hassídico de Martin Buber e a poesia de Hölderlin. [50] Op. Cit., p. 65. [51] Teoria Estética, edições 70, Lisboa, s/d, p. 354. [52] É nesta medida que se coloca, também, o problema da “ilegibilidade” da poesia de Celan, onde a morte da aura e das correspondências entre os seres e a sua organicidade dá lugar ao estilhaçamento e à fragmentação da linguagem, colocando como prementes a questão da afasia e do emudecimento. [53] A Morte é uma Flor, p. 103. [54] Cantinho, Maria João, O Anjo Melancólico, ed Angelus Novus, Coimbra, 2002, p. 105. [55] Tema que tem por fundamento uma raíz teológica tradicional, no pensamento judaico. Veja-se as obras de Michael Löwy, L’Avertissement de l’Incendie, Revolução e Utopia.
______________________________________________________________ Bibliografia: Adorno, Theodor, Teoria Estética, edições 70, Lisboa, s/d. Adorno, Theodor, Notes sur la Littérature, ed. Flammarion, Paris, 1984. Agamben, Giorgio, Quel che resta di Auschwitz, Turim, BollatiBoringhieri. Blanchot, Maurice, Le Dernier à Parler, Montpellier, Fata Morgana. Celan, Paul, Arte Poética. O Meridiano e Outros Textos, tradução de João Barrento, ed. Cotovia, Lisboa, 1996. Celan, Paul, Sete Rosas mais Tarde, tradução de Yvette Centeno e João Barrento, edições cotovia, Lisboa, 1993. Celan, Paul, A Morte é uma Flor, tradução de João Barrento, edições cotovia, Lisboa, 1998. Derrida, Jacques, Schibboleth pour Paul Celan, ed. Galilée, Paris, 1986. Felstiner, John, Paul Celan. Poet, Survivor, Jew, Yale, Yale University Press, N.Y., 1995. Lacoue-Labarthe, Phillippe, La poésie comme Expérience, Paris, Christian Bourgois, 1986. Estudos colectivos: RevueEurope, nº Janvier- Février, Paris, 2001.
Ler, ler, ler e sempre ler...
[36] Meridiano, p. 83.
Ler com amor a leitura 13 | 19 de Setembro de 2013
Espaço dedicado a divulgação de escritoires emergentes. Envie os seus textos (poesia, conto, romance) para análise através do e-mail: r.literatas@gmail.com
Comissão Organizadora: Ana Cláudia da Silva Edvaldo A. Bergamo Lucia Helena Marques Ribeiro
Apoio:
10/09/13 – Terça-feira Manhã 10h
Conferências II Coordenação: Lúcia Helena Marques Ribeiro (UnB) Ana Mafalda Leite (Universidade de Lisboa - Portugal) Carmen Lúcia Tindó Secco (UFRJ) Tarde 14h
Mesa-redonda III: Grandes poetas portugueses Coordenação: Sylvia Cyntrão (UnB) Alexandre Bonafim Felizardo (UEG) Ana Laura dos Reis Corrêa (UnB) Hermenegildo Bastos (UnB) 15h30 16h
Coffee-break
Mesa-redonda IV: Traduzir-se: línguas e paisagens Coordenação: Junia Barreto (UnB) Cláudia Falluh (UnB) Henryk Siewierski (UnB) Lucia Helena Marques Ribeiro (UnB) 18h
Encontro com o escritor
14 | 19 de Setembro de 2013
Leia os poemas da semana às terças feiras em: www.revistaliteratas.blogspot.com Você também pode publicar. Envie-nos o seu poema pelo e-mail: r.literatas@gmail.com
Poesia MALDIÇÕES DE MORTE
/[ todo corpo ]\
VAZIO SINGULAR
[Tradição oral Umbundu, Angola]
Sid Summers - Brasil
Zetho Cunha Gonçalves - Angola
Alexandre Guarnieri - Brasil
1. das treze articulações primárias, sete expandem da linha dos ombros (braços abaixo/ a cabeça acima do pescoço), há outras seis partindo dos quadris (pernas/ sexo sob o degrau da cintura), nas vértebras, onde, invariavelmente haverá hérnia, pilhas de anéis lhe atravessam na transversal (do crânio ao cóxi, pelo meio), encapsulam ageléia eletrificada na medula, feita desde o feto no eixo estrutural deste esqueleto; (no hinduísmo, cada chakra receberia na coluna, a chave-mestra de sua própria fechadura); esse homem-móbile suspende, em trânsito, carnal o óbice de sua própria transitoriedade; se livre, seu complicado equilíbrio é dinâmico, há dispositivos antipânico, simetrias (são contra-pesos os ossos por dentro, as câmaras hiperbáricas onde o sangue se tranca, em caixas outro fluido chacoalha, o que os músculos ocultam sob o couro exterior, e como JavacheffChristo faria noutra escala, seus embrulhos com cordas e tecido, de Botero a Giacometti, há um aspecto familiar e reconhecidamente humano recobrindo tudo); no cerne de cada complexa célula cabe o germe, desta moradia viva com endereço fixo: o corpo como logradouro
CORPO
DE
FESTIM
(lançamento
em
2014)
Porque a sua beleza nos ofusca, escavemos a terra – lá, onde ninguém nos veja. − Que seja aberta uma cova, mais funda que o mais alto de nós. − Que se jogue para dentro uma agulha, um machado precioso. − Que alguém (ele, cuja beleza nos ofusca) os vá resgatar. Porque a sua beleza nos ofusca, escavemos a terra – lá, onde ninguém nos veja.
Georgio Rios - Brasil
Além, a movimentação dos olhos panorâmica adentrando casa, gaiola habitada por cactos trino de pássaros na sala, gastas, pequenas patas em pegadas anunciam o gato ido, a pouco proliferação de telhados folhas infestando as orbitas, vazio singular.
2. − Ó Escorreito, a nossa agulha caiu na cova. − Caiu na cova, ó Escorreito, o nosso precioso machado. Temos que os resgatar, ó Escorreito, temos que os resgatar − a nossa agulha, o nosso precioso machado, ó Escorreito −, antes de voltar para casa, com nossos feixes de lenha à cabeça!...
Lily dos Amures - Moçambique
In: Rio sem margem: Poesia da tradição oral, 2011
Cresço nas noites (Des) cresço quando não tenho Desisto.
15 | 19 de Setembro de 2013
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Poesia Meu poema
PALAVRAS CAMINHAM SOBRE A ÁGUA
Japone Arijuane-Moçambique
José Geraldo Neres-Brasil
Meu poema não se ouve nem se faz ouvir
Traz nos olhos: um beija-flor, e no outro: o vazio mais profundo que um homem pode acreditar.
cabisbaixa passa
Nunca se depara com pedras ou conhece o cheiro do concreto. Às vezes, sentado. Às vezes
despercebido
caminha com a elegância dos dias escuros. Chamam-no: Morte. Nunca sorri para uma criança,
sem cor nem
jamais deseja-lhes má sorte. Sem saberem: cria peças de orvalho, esconde pelo caminho. Às vezes
amor só na dor
há manchas vermelhas pelo corpo. Nada pede a ninguém.
dor de não ser. Um pássaro se aloja no olho, vazio, dois dias: penas marrons levadas pelo vento. Ele trabalha a Meu poema
madeira, dá brilho no metal. Às vezes a rua dá-lhe teto. Às vezes o frio e a chuva curvam-lhe o
não se vê
corpo. O orvalho trabalha. Nome nenhum. Nada. Na madeira não há descanso. As pedras e as
nem se faz ver
pequenas peças caminham pelo vento.
é vazio e esquecimento desfeito de coisas
O beija-flor entra no outro olho.
lembradas no final lustro Inédito, do livro “Um pedaço de chuva no bolso”.
Meu poema não se vê vazio e silêncio consorciado. Meu poema Fede e fere no sonho abortado de um invisível futuro cidadão.
In ʺA Metafísica da Vertingem Diáriaʺ
16| 19 de Setembro de 2013
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Conto EMA, A MENINA QUE ANDAVA TRISTE
- Então não quero ser crescida madrinha, quero ser pequenina sempre, para ires comigo todos os dias, depois ficas cá fora a espera que o sino toque, eu venho a correr para te abraçar e irmos as duas para casa, almoçar, comer a sopinha, posso, não posso madrinha? - Olha Ema, vou contar-te uma coisa, verdadeira, de quando era pequena também, assim como tu:
Victor Burity da Silva -Angola
E
ma, uma menina morena, pequena, não usa tranças sem nelas colocar uma rosa que brilhe, ao longe, quase parecendo no seu rosto existir o sol, robusta e coxas gordinhas. A menina é triste, não sabe da mãe e chora todos os dias. Vive com a madrinha que desde quando ainda só tinha meses de idade, que passou a ser a mãe, pela manhã bem cedo, vai acordá-la para a levar à escola e ela, sem um sorriso, levanta-se, vai para o quarto de banho lavar o rosto, e ver-se ao espelho. Dirige-se depois à cozinha onde tem já o pequeno-almoço pronto, toma o seu leitinho, não muito quente, pois ela não gosta do leite quente, vive numa cidade quente, saboreia com apetite o leite e mastiga lentamente um pão com manteiga, os seus olhos fundos, negros, na vastidão do rosto, os lábios carnudos, mastiga. - Quem fez este pão madrinha? Pergunta a Ema com uma voz distante, muito fininha. - Foi o padeiro Ema. Respondeu a madrinha. - O padeiro? Quem é ele? De novo a menina. - O padeiro é um senhor, que usa uma bata branca, que se levanta sempre muito cedo, muito cedo mesmo, aliás, ele levanta-se quando nós nos deitamos, para pudermos ter a esta hora, todos os dias, um pãozinho para comer, para todas as pessoas no seu pequeno-almoço terem como nós, um pão. Tentou a madrinha explicar-lhe. - E ele fica triste madrinha? Pergunta a menina. - Não Ema, ele fica feliz por puder fazer uma coisa tão importante para as pessoas todas, para as crianças todas, isso já o faz sentir-se feliz, sabes?
Na aldeia onde a madrinha nasceu e cresceu, não tinha pai, a minha mãe era muito pobre e tinha de sair cedo de casa todos os dias, e eu, ia com as outras meninas, assim pequenas também, para a escola, quer chovesse muito, quer chovesse pouco, e lá íamos todas juntas, fizesse frio ou calor, e a sala onde a madrinha tinha aulas, não uma sala assim como a tua, era em baixo das arvores, sentados no chão, e a professora ficava em pé a ensinar os meninos todos daquele tempo, a ler e a escrever, não podíamos ter medo porque éramos fortes, não tinha quem me levasse à escola e tinha de ir mesmo assim, sabes Ema, e depois, a madrinha cresceu e mudou de escola, e na mesma, ia sozinha ou com as outras meninas, colegas da escola, da nossa escola onde o tecto eram as copas das arvores, não tinha medo Ema, era forte, tinha que ser forte. - Eu também sou forte madrinha, mas tenho medo sabes porquê? A madrinha de Ema fechou os olhos enquanto caminhavam, iam as duas numa passada meio acelerada, escutava a menina que tinha uns olhos fundos e tristes, cabelinho preso por duas transas, uma de cada lado da cabeça, e em cada uma das transas, uma rosa pequena, que por um elástico se prende ao cabelo, num brilhante colorido, que balouçam, que bamboleiam a cada passada, como quem se agita sob um vento forte, e para dentro a madrinha sentia o suor, esperava sempre uma pergunta mais forte de Ema, que, como todas as crianças desta idade, a frescura mental surpreende, ilumina como um sol que nos abrilhanta a vida, o dia, a tarde, conta-nos como se os seus raios nos tocassem e dessem também a mão, seguissem connosco este caminho de todos os dias, pela manhã, a caminho da escola, depois, à hora do almoço até casa, almoçar, conversar, e depois juntas brincar ao esconde-esconde. - Sabes madrinha, os outros meninos, quem vai buscá-los é sempre a mãe, e a mim és sempre tu, não é? Mas escuta, és a minha madrinha e não és minha mãe porquê?
De mãos dadas com a sua madrinha Ema segue agora a caminho da escola, que fica do outro lado do bairro onde vive. Nem sempre o dia está como hoje, onde se sente a despontar um belo sol, ao fundo, pelas frinchas dos edifícios que dividem o espaço disponível, até conseguir ver-se o sol, a abrir, a abrir pequeno como as pessoas, que quando nascem são também pequenas e vão depois crescendo, até ficarem grandes como o sol da hora do almoço. - Assim gosto mais madrinha, com sol, porque com a chuva o meu laço iria estragar-se, e eu chorava. Diz entretanto a Ema, depois de uma pausa em que observava o sol que nascia lentamente, na caminhada que faz, longa, pela manhã, ter que atravessar tantas ruas e por baixo de imensos prédios, e ela, com passos de gente pequena segue, de mãos dadas com a madrinha, as duas caminham no meio de conversas que sempre têm, atravessam pelas passadeiras das ruas, pela manhã que acaba de nascer também. - Quando eu for grande vens comigo à escola também, madrinha? - Quando fores grande vais sozinha Ema. - Não madrinha. Quero que vás sempre comigo, prometes? - Quando fores mais crescida, sabes, já a madrinha é muito velhinha, e não vai ter forças para ir contigo… - Oh… então vou deixar de ir a escola madrinha, vou ter muito medo de andar sozinha… - Não vais ter não! Vais ser uma menina muito forte, sabes? - Esta escola é para os meninos pequenos, madrinha, sabes? E quando eu crescer vou para outra escola, de meninos grandes, os meninos grandes vão sozinhos? - Sim, os meninos grandes vão sozinhos.
- Sabes Ema, todas as pessoas nascem, crescem, mas um dia, todas as pessoas partem para o céu, para junto de Deus, a mamã foi para o céu e fiquei eu contigo, depois da guerra, sabes, as coisas feias e más da guerra, levaram muitas pessoas desta vida, e a mamã foi uma delas, está no céu e continua a gostar muito de ti. Sou tua amiga, madrinha, mãe, e sou tão forte como tu és, brincamos juntas, saltamos a corda, comemos e dormimos juntas, é muito bom não é? Os pequenos olhos da menina viraram-se para o céu, o seu rosto, abria suavemente os lábios como que a querer perguntar alguma coisa, a madrinha disfarçava não estar a aperceber-se e pelo canto do olho, via o ar triste de Ema, que quase parecia estar a chorar, tentando no céu ver se estaria ali a sua mãe, lembrando-se do que a madrinha dissera, tinha que estar ali, numa janela no céu, logo os seus olhos iriam alcançá-la, pensava para dentro a menina pequena. E foram as duas, entraram na escola e a menina ficou na sala, um beijo uma na outra, até tocar o sino e irem depois as duas, em direcção a casa para almoçarem.
17 | 19 de Setembro de 2013
Conto - Esperas aqui por mim, madrinha? Esperas? - Sim Ema, espero até se ouvir tocar o sino e tu chegares, vai lá. E a Ema foi, com o seu rosto triste, escutar com atenção as coisas das aulas, aprender as letras, as palavras, o que lhe dizia a professora, sentou-se e lá ficou, até o sino para a saída tocar. O sino para a saída tocou, as crianças correm felizes, para o braço dos pais, das mães, e Ema, encontra os braços da madrinha, os mesmos de todos os outros dias, num abraço enorme, quente, feliz também, como o abraço da Yara em sua mãe, do Pedro em seu pai, o da Ema em sua madrinha, a madrinha que é sua mãe, quando não se tem mãe, e Ema sabe que não tem mãe, como os outros meninos, por isso é triste, mas sabe que amar é bom e termos quem nos ame é muito bom. Ema tem a madrinha que passou a ser a mãe que ela perdeu desde que a guerra de si a tirou. As duas seguem rumo a casa, debaixo de um sol imenso, no calor da cidade linda onde Ema vive com a madrinha que é a mãe, e Ema entende a cada dia que passa que não tem mãe mas tem a madrinha, que é a mãe, e cresce, e vai ser feliz, a menina que não tem mãe. - Sabes madrinha, a professora disse que há muitos meninos que ficaram sem mãe, como eu, como tu disseste, sabes, a guerra é uma coisa muito má, mata as pessoas e as crianças ficam sozinhas, sem pai, sem mãe, como eu fiquei, sabes madrinha?
E eu disse-lhe: não tenho a mama que foi para o céu e fiquei com a minha madrinha, que a mamã pediu para cuidar de mim, e ela gosta de mim. A professora disse que a vida anda muito depressa, sabes, sempre, e eu vou ficar crescida como tu madrinha, e ser uma senhora e não vou ter medo de nada, vou estudar muito, e ser uma menina linda, e sou, não sou madrinha? - Sim meu amor, esta é a nossa terra, onde nascemos, onde nasceste, onde a guerra matou muitas mamãs, papás, há muitos meninos como tu sabes Ema? E vão ser como tu, muito fortes para crescer e serem um dia pessoas importantes, pessoas que vão governar, ensinar, educar, e não vamos ter guerra nunca mais, e não vemos ter medo nunca mais. A madrinha ouviu tudo o que a menina dizia, sentiu tudo como se fosse ela a viver toda a dor de uma menina pequena, de transas, uma de cada lado da cabeça, não muito longas, mas muito lindas, ela gostava tanto das suas transas como a madrinha gostava dela. A Ema ia crescendo, estava a ficar uma menina grande, obediente, fazia tudo o que a madrinha lhe pedia, estudava, fazia os deveres, ajudava a madrinha a arrumar a cozinha depois do jantar, brincava um bocadinho até o sono chegar, pois, ia levantar-se muito cedo no dia seguinte, para ver de novo o sol brilhante, o céu azul, onde dorme em paz a mama, que a guerra tirou de Ema. - Vamos fazer um soninho Ema, vamos? - Sim madrinha, vamos. E foram, até de novo o novo dia. A menina que andava sempre triste, não mais é uma menina triste, sabe que a mamã está no céu e olha sempre por ela, a madrinha está sempre perto. A menina cresceu e entendeu. Não mais a menina é triste.
Literatura síria mortificada pelas bombas. A violência como essência do humano.
O paradoxo do ressurgimento da ditadura do Egito, da libertação de seu velhíssimo ditador dos cabelos negros como a asa da graúna, parece ser mais uma mancomunação de múmias em um formidável sabah. Ela não invalidaria a própria destituição de Assad, agora, já que destoa dos sentidos primeiros desta infame primavera? Já a literatura síria, esta antiquíssima senhora, vestal onipresente apesar dos pesares, sempre foi uma literatura de resistência. Convido a todos a lerem a entreFonte:http://literaturamagrebinafrancofona.blogspot.com/ vista do poeta sírio Adonis, em http://www.france24.com/fr/20130220-syrie-regimebaas-assad-poesie-adonis-opposition-revolution Adonis, de son vrai nom Ali Ahmad Saïd Esber, déplore en outre que l’opposition soit si divisée et n’ait pas de projet pour le pays. Enfin, il dénonce l’influence des puissances étrangères sur le mouvement. "Je suis contre la destruction du pays que soutiennent certains pays araá quem diga que a violência é o cerne do humabes et européens, sans oublier Israël", affirme-t-il. no. E tem razão. Pobre de quem duvida: será "J’appelle l’opposition à adopter un projet clair basé sur le prinsua próxima vítima. cipe de laïcité" Essa violência alça graus tão intensos, a fúria encontra "Une vraie révolution porte le pays, embrasse le peuple. En um eco de tal modo tonitruante dentro dos corações e das Syrie, on ne voit que meurtres et destructions. Ceux qui se mentes que inflama as ambições, que por sua vez transdisent révolutionnaires détruisent aussi le pays", se désole le formam-se em vapores de mercúrio e colam-se a todos poète, longtemps exilé au Liban, qui vit en France depuis 1985. sem exceção. As ambições e a cupidez, por sua vez, "Depuis 1956, je n’ai eu de cesse de me battre contre ce régime saem ao encontro dos altos-fornos da expressão violenta, du parti unique qui, pour moi, s'apparente à une forme de relia qual se vê refletida nas chamas saborosas da cobiça e Damasco, Bab Tuma. gion, rappelle-t-il. Mais mon combat est toujours resté démocrada mentira e o resultado é o festim da ignomínia, regado a tique et non-violent", souligne-t-il encore. cálices ferventes de ódio, baixelas de maldade onde estão servidas crianças O fato é que não se consegue nada, ou quase nada sobre estes escritores. Muitos chamuscadas e finos guardanapos bordados a sangue civil. Está servido o ban- estão exilados, mas não mudos. quete da injúria, ao som da orquestração vampiresca mundial onuesca que É o caso de Khaled Khalifa que grita a altos brados: "o mundo inteiro é cúmplice ignora verdades e aplaude mentiras, não sem salivar diante do butim que se deste sangue derramado"... Exageros à parte, o tom de revolta e aflição é presente oferece às ambições ancestrais que circundam sua vítima servida nos samova- na literatura e nos escritores, principalmente neste autor de "Eloge de la haires da infelicidade: a própria Síria. ne" (Elogio ao ódio). Ele diz em carta aberta. E se a violência está no cerne, ela exigirá sua vítima sacrificial, e é o que a http://www.huffingtonpost.com/khaled-khalifa/syrian-revolution_b_1265563.html Síria representa neste momento. Incrustada que está no seio do oriente médio "Chers amis, écrivains et journalistes du monde entier, notamment en Chine et en ela surge como vítima expiatória, mas resta perguntar já sabendo a resposta, Russie, je tiens à vous informer que mon peuple est exposé à un génocide. ( portanto está estabelecida a antinomia) a quem interessa? Depuis une semaine les forces du régime syrien intensifient les attaques contre les Desviam-se os olhares da caldeirada fervente egípcia, à moda da casa, onde villes rebelles en particulier Homs, Zabadani, les banlieues de Damas, Rastan, primavera e ditadores borbulham misturados às vísceras faraônicas do desejo Madaya, Wadi Barada, Figeh, Idlib et dans les villages de la montagne de Zawiya. de dominação, e explode em um sem número e sem sentido para ocidente e Depuis une semaine et jusqu’au moment où j’écris ces lignes, plus de mille martyrs oriente de expressões violentíssimas, envolvendo milhões de pessoas calcina- sont tombés, dont beaucoup d’enfants, et des centaines de maisons ont été détruidas pelo ódio e pela revolta, pela esculhambação e pela desorientação que tes sur les têtes de leurs habitants." É isso, caros leitores, o desabafo e a tristeza desta que vos escreve diante das parece reinar neste momento no Egito. Está servido a makluba da violência, fatalidades que envolvem o mundo sírio. acompanhada de bolinhos de falafel amassados pela mão dos ditadores revisi- Para onde irão os cristãos sírios? Esta é outra história cruel de um trânsito e de tados, re-instalados e revividos. Porém a Síria e o que acontece por lá atual- uma diáspora milenar que parece não ter fim, entre povos irmãos e infinitamente mente, apesar da ira e da fúria reinantes, destoa, e sempre destoou do contex- intolerantes. Brasília, 24 de agosto de 2013. Cláudia Falluh Balduino Ferreira. to da primavera árabe, hoje, inferno árabe.
H
18 | 19 de Setembro de 2013
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Um homem de sucesso
C
ruzei-me com o homem, de fato e gravata criteriosamente escolhidos, sapatos Hugo Boss, cabelo cuidadosamente cortado a máquina zero. Inadvertidamente deu-me um ligeiro encontrão pelo qual se desculpou amavelmente e no instante seguinte ofereceu-me gentilmente uma bebida para se retratar. Parecia-me um cliché de comédia romântica e senti-me algo desconfortável, pelo que decidi recusar, educadamente, e sentar-me na esplanada esperando o casal de amigos que me tinha proposto jantar no Zodabar, numa noite de música ao vivo. Não voltei a prestar-lhe atenção para além do que o seu aparente estatuto merecia, mas fiquei alerta pelo rasto do seu Jean-Paul Gaultier. Escassos minutos depois chegaram os meus amigos, obcessivamente pontuais em encontros profissionais ou meramente sociais, em contraste evidente com o costume da terra. Cumprimentámo-nos efusivamente após o que, para minha grande surpresa, se aproximaram do elegante desconhecido que me sorriu, matreiro, e se antecipou: - Deixe-me apresentar-me- disse, num tom divertido- sou o Nilton, Nilton Fernandes. Fui colega do Gabriel, nos tempos da guerra, agora dedico-me aos negócios. Recompus-me em menos de um ai e iniciei uma conversa que foi fluindo agradavelmente entre todos os presentes. O jantar decorreu num tom ameno ao som da música ambiente e da cumplicidade que se foi estabelecendo. Tínhamos experiências parecidas, algumas vivências comuns, atitudes moldadas por uma educação baseada em princípios equivalentes. O Nilton revelou-se um cavalheiro ao oferecer o jantar e acompanhar o casal ao carro. Em seguida levou-me a casa no seu poderoso jeep, impecavelmente mantido e arejado. Um homem de sucesso, pensei, não há a menor dúvida.
Durante alguns meses mantivemo-nos afastados por contingências de trabalho de parte a parte. As notícias eram escassas e irregulares, mas soube que o Nilton tinha perdido grande parte do seu património e preferia manter-se isolado dos olhares de comiseração. Entre outras preocupações e ocupações, acabou o meu recente amigo por ficar semi-esquecido num lugar recôndito da memória até ao dia em que, anos depois, o encontrei, expondo a sua arte, numa feira de artesanato da ilha de Luanda. Estava envelhecido e claramente mais magro e tinha-se livrado, com vantagem, da sua aparência sofisticada e estereotipada de executivo bem-sucedido. A camisa de seda com que o tinha conhecido fora substituída por uma colorida camisa de mangas curtas, fresca e inspiradora, com motivos africanos, da qual nasciam, libertos, os seus braços magros e os seus dedos finos de artista. Os seus quadros revelavam uma personalidade inquieta e irreverente, o que chocava com a imagem que ostentava tempos atrás. Abraçámo-nos longamente e tomámos algum tempo para nós, durante o qual um colega se prontificou a tratar da venda dos quadros. - Quanto tempo, Nilton… - comecei, hesitante - Aposto que não me reconhecias, se não visses o meu nome na placa- brincou. Expliquei-lhe que tinha a impressão de conhecê-lo de novo. Que gostava do seu ar feliz e descomprometido, que o sentia com sangue novo. Curiosa, pedi-lhe que me explicasse a razão de tal metamorfose. Detalhou-me então todas as peripécias por que tinha passado durante o nosso afastamento: negócios ruinosos, sócios mal-intencionados, e a consequente queda financeira; a indiferença dos amigos, que deixaram de lhe telefonar, para logo a seguir passarem a não lhe atender as chamadas. O divórcio, que o tinha deixado sem casa, os dias em que dormiu no carro até que um antigo cliente se apiedou dele e o ajudou a reerguer-se, providenciando-lhe alojamento num anexo da sua casa, a troco de auxílio no atelier de pintura que mantinha a custo no Morro Bento. Disse-me então que tinha descoberto uma nova vocação e que tinha trocado a vida de homem de negócios pela de pintor e fotógrafo. - E rende?- perguntei- Consegues viver da tua arte? Sorriu-me bondosamente, passeou o seu olhar pelo mar azul até que me fixou e me respondeu com segurança – Como achas que eu vivia, quando me conheceste? Percebi que era uma pergunta de retórica e dei-lhe tempo para prosseguir o raciocínio ao seu ritmo.
Luísa Fresta—Angola
de homem de negócios pela de pintor e fotógrafo. - E rende?- perguntei- Consegues viver da tua arte? Sorriu-me bondosamente, passeou o seu olhar pelo mar azul até que me fixou e me respondeu com segurança – Como achas que eu vivia, quando me conheceste? Percebi que era uma pergunta de retórica e dei-lhe tempo para prosseguir o raciocínio ao seu ritmo. - Vivia atolado em dívidas, em negócios arriscados, que não chegavam para alimentar nem um décimo das extravagâncias da minha mulher. Não consegui manter o casamento, nem a casa, e aqueles que tinha na conta de amigos desapareceram assim que deixei de poder pagar-lhes jantares. Engoli em seco pensando que em algum momento aquela descrição também me poderia ter servido. - Não falo de ti, é claro…- sossegou-me, sorrindo – Tu procuraste-me e nunca te afastaste verdadeiramente de mim, sempre te interessaste, eu é que me isolei, precisava disso- A verdade é que todo aquele sucesso era apenas aparente: o dinheiro, as amizades, as gravatas… - E agora- perguntei- Sentes-te feliz com as tuas escolhas?
- Tenho a vida que quero- retorquiu sem hesitar. Pinto 14h00 por dia, viajo dentro de Angola, exponho, vendo, fotografo. Percebi quem são os meus amigos, reconquistei o respeito dos meus. Limpou as mãos sujas de tinta a um pano antes de agarrar o copo com que brindámos. - Acho que sou finalmente um homem de sucesso. Não voltei a vê-lo. Soube, muito tempo depois, que tinha fundado uma escola de artes para crianças e que as suas obras eram disputadas pelas mais influentes galerias de arte e colecionadores particulares.
- Quanto tempo, Nilton… - comecei, hesitante - Aposto que não me reconhecias, se não visses o meu nome na placa- brincou. Expliquei-lhe que tinha a impressão de conhecê-lo de novo. Que gostava do seu ar feliz e descomprometido, que o sentia com sangue novo. Curiosa, pedi-lhe que me explicasse a razão de tal metamorfose. Detalhou-me então todas as peripécias por que tinha passado durante o nosso afastamento: negócios ruinosos, sócios mal-intencionados, e a consequente queda financeira; a indiferença dos amigos, que deixaram de lhe telefonar, para logo a seguir passarem a não lhe atender as chamadas. O divórcio, que o tinha deixado sem casa, os dias em que dormiu no carro até que um antigo cliente se apiedou dele e o ajudou a reerguer-se, providenciando-lhe alojamento num anexo da sua casa, a troco de auxílio no atelier de pintura que mantinha a custo no Morro Bento. Disse-me então que tinha descoberto uma nova vocação e que tinha trocado a vida 19 | 19 de Setembro de 2013
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Livros/leituras
“A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua: o reencantamento do mundo” temperos , vivências, que colheu dos vários lugares onde se entranhou. Aurélio Ginja-Moçambique
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enho diante de mim, um livro nave, por onde se viaja por espaços sem fronteiras demarcadas, porque não há fronteiras, para o espírito humano. Faz bem receber entre as mãos uma antologia de poesia, que nos ajude a penetrar no que fica além, no que a linguagem
Em uns o leitor como nos alerta Paulo Seben encontrará a intrincadíssima sintaxe dos poetas livrescos e em outros a sabedoria e a linearidade da literatura oral, aliando o som e o sentido . Em uns a certeza de um percurso já firmado,em outros a surpresa de um primeiro contacto, a novidade de um novo arrojo formal ou temático. Esta proposta se revela importante porque vivemos num tempo de esquecimento da palavra, um tempoem que a linguagem se faz tão fragmentária nos telemóveis , nos ecrãs de televisão nos diálogos do dia a dia , que é um apelo a fim de pararmos , para que?Para lermos com inteireza, para testemunharmos o milagre da palavra encarnada na sua totalidade, na sua inteireza, no planeta da poesia. Importante, porque uma antologia de poesia põe-nos em contacto com novos autores nos faz descobrir ou redescobrir outros. Importante, porque nos ajuda a refazer a relação lúdica, com a palavra encantada. Importante, porque pode reorientar a nossa sensibilidade, para campos nunca antes aflorados ou no mínimo esquecidos. Importante pelo exercício de sedução, com que a poesia subverte a razão. Importante pelo cultivo da imaginação inventiva. Esta antologia assume importância didáctica também, pois serve para convocar os leitores a assumirem a mais urgente das tarefas o sentido inteiro do milagre da palavra. Como dizia o poeta Armando Artur na poesia a as palavras deixam de ser apenas sinais convencionais , para participarem , para se converterem elas próprias nas próprias coisas nomeadas. Esta antologia na sua diversidade (Moçambique, Angola, Cabo- Verde, Timor Leste, Finlândia, Portugal, Brasil , México, São Tomé, Guine- Bissau) convoca um outro tempo. Um tempo para que devagar , se possa fazer interiormente esse exercício de escavação arqueológica da palavra e de anatomia da língua , porque como dizia um grande pro-
humana quotidiana não logra penetrar directamente, porque a poesia é aquela arte que na palavra deixa grandes vazios de silêncio . Com a leitura de cada poema deste livro sabe bem sentir que a todos nós(pessoas, países , comunidades) somos um símbolo para significar algo que nós mesmos não sabemos o que seja como diria Guimarães Rosa. Sabe bem ter entre as mãos um livro , que nos convida à redescoberta da poesia , para educar e despertar a razão, a sensibilidade, a imaginação. Um livro que nos educa para as linhas e para as entrelinhas., para a dimensão realista e para a dimensão visionária, para o que se evidencia e para o que se oculta, na nossa existência . Um livro com poesia que nos leva a redescoberta daqueles delicados fios( invisíveis ao olho nu da razão) que nos ligam a nós mesmos e aos outros. Este livro , que leva a nossa razão ao reencontro do mistério, do inefável, do indizível, do sagrado. Na sua diversidade de textos aqui cada poema é uma central de energia . Com alto nível deconcentração e irradiação , que se manifesta com ritmos e imagens carregadas de energia afectiva , que despertam profundas ressonâncias. Por isso não é de espantar que o autor desta antologia confesse quão difícil foi para ele, fazer uma sinopse desta viagem na qual o leitor é o principal passageiro, quão difícilfoi reunir estes poetas de terras distantes que juntos residem nesta pátria que se chama língua portuguesa. Talvez ao tecer este projecto Amosse se interrogasse, como o arqueólogo Mário Lúcio Sousa : Quando e que uma asa sozinha/ fará uma borboleta, quando? Quando é que um lobo/ só pele/ fará o medo de toda a selva? A palavra não é apenas coisa que se diz, neste livro a palavra surge como uma liturgia que se celebra, um rito invocativo que se vive. Para se tecer a ponte na mesma viagem de ida e volta rumo à ventura de ummesmo milagre: fazer com que o sentido e o sentimento circulem entre as pessoas, entre as nações e no caso vertente a escala global. Por isso temos neste livro uma espécie de constelação, a escala global, de imagens, de sonhos, de afectos, que se movem, de ideias em balanço de dança, no palco em que o papel se converte. De uns autores podemos colher os frutos maduros de uma árvore enraizada na tradição literária comum com as suas linhas de continuidade e as suas rupturas , de outros a evidencia de que a língua feita um rio, vagou de casa em casa, de paisagem em paisagem, de latitude em latitude e se deixou atravessar no seu leito da diversidade de sabores,
fessor: um grande poema não se lê aos fragmentos. Exige um tempo para se ler com reverência. Porque a descoberta de um grande poema surpreende, converte. Revolve -nos a vida. Fulmina-nos de beleza. Este livro convoca-nos,
desafiando-nos a viver a vida e as palavras que a traduzem em estado de poesia. É um livro em cujos textos ocorrem variadíssimaso perações no corpus da língua o que requer lê-los com amorosa atenção, a fim de se fazer a captura inteligente das nossas razões e das motivações com que o jovem Amosse Mucavele os implantou nas páginas deste livro, a fim de descortinar as motivações por detrás do modo como os entrelaça .
20 | 19 de Setembro de 2013
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Livros/leituras Ao lê-lo, em pouco tempo, na diversidade temática e estilística depressa verificamos que não há assunto que não constitua um desafio tão antigo, quanto a própria vida. Tão prenhe deactualidade quanto os dilemas que enfrentamos aqui e agora. Com efeito,todos eles- cada um a seu modo-fazem jus a necessidade de recriar a vida através da palavra densa na sua forma e conteúdo , através da reinvenção criativa dos sentidos e dos sentimentos e pensamentos . É assim que, com o arqueólogo Marcelino Freire reconheço nele um verdadeiro inventário. Sonoro. Um testamento. Nada que se explique , pois como dizia outra dos arqueólogos (Delmar Gonçalves) a poesia não precisa de eco, pois ela própria é eco com a sua miraculosa melodia.
Um livro onde possamos ouvir o alerta profético de um arqueólogo (Guita.) segundo o qual iremos prestando conta ao destino ao rumo que traçamos/seguindo o curso do rio que escavamos à foz que encontramos. Um livro onde a viagem seja sempre como nos sugere outra arqueóloga ( Filipa Isabel) a da existência. Neste tempo em que pairam algumas sombras cinzentas, sobre as nossas mentes e o espectro do trovão belicista nos assombra , em boa hora, uma antologia de vozes múltiplas assim, ajuda-nos a assumir que não basta navegar num mar deinformações indistintas, não basta exercitar a arte de pensar com discernimento , é preciso reconhecer o outro ,aprender a viver com o outro, respeitar a sua diferença. Reconhecer nele o direito à existência, à voz, ao pensamento autónomo. Reconhecer
Nós , leitores , viajantes desta nau podemos entrar nele com um navio na língua , buscando dentro dele( com White) por exemplo,a natureza estimulante da paisagem que temos dentro, nele podemos seguir ao encontro de um mundo (com Ana Mafalda Leite) que se quer particular sem fronteiras pois ninguém sabe: onde terá começado a fronteira do dia com a noite? A fronteira da água com a terra? A do azul com o lilás? Um livro onde o leitor possa (com Leo Sidónio),cartar poemas de sal e sol e onde possa (com Danny Spinola) fechar os olhos/ e abri-los por dentro/para não nos perdermos/ no labirinto que somos.ou até (com Luís Ferreira) ser um pássaro alado/ que viaja no manto azul celeste/ até onde a face do céu/ levar o meu ser. Um livro onde( com Il
como o demostram estes textos, que partilhamos, como humanidade, sofrimentos e sonhos, signos esangue em comum. Unidade na diversidade. E necessário assumir,que para uma ética de reverência pela vida, a educação dos
sentidos é necessária, o pensamento simbólico é incontornável, e a poesia é vitalmente imprescindível Parabéns, alfaiate- mor, meu caro Amosse, por teres lutado contra hordas de vírus e piratas virtuais no teu computador batendo , rebatendo arrumando estes mais de cinquenta autores, ordenando-os amorosamente nesta Bonde) possamos sonhar outro dilúvio trazendo o resto da espécie salva na canoa de Noé. Um livro onde (com José luís Mendonça) possamos conceber a Teoria Económica do Afecto e dizer : O meu olhar comemora a acumulação primitiva / do capital afectivo quando desvenda / o potencial maritimo / da tua bunda onde se agitam, deuses instrumentais. Um livro onde nas horas de espera possamos (com Mia Couto) ter a tentação constante de relê-lo com a mesma saudade/ que a semente sente do chão .
arqueologia e costurando com a anestesia do verbo esta língua. Já agora inspirando-me no arqueólogo Marcelino Freire, desejo a todos os futuros leitores, náufragos como eu,a embarcar nesta mesma nau:Uma boa leitura. Uma boa expedição arqueológica. Uma feliz operação no corpo da língua. Uma boa viagem.
12 de Julho de 2013
21 | 19 de Setembro de 2013
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Última Estação
Da cultura do nosso quintal
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enho ouvido e visto tantos desencontros em termos de conceito de cultura, principalmente emitidos por gestores culturais, que resolvi me deter em suas considerações. E inicio essas considerações pelo âmbito mais amplo, considerando a amplitude das dimensões: temos a realidade “cultura” aplicada a várias dimensões, das quais pinço um elemento interdimensional, o “tempo” para observá-lo com maior acuidade. Desde a palestra Identidade cultural em um cenário pós-moderno, que proferi Osmar Casagrande-Brasil por primeira vez no Salão do Livro em 2011, na cidade de Palmas-TO, Brasil, venho afirmando que cultura é tudo o que engloba os saberes e fazeres do homem (e aqui estão todas as dimensões: a física, a mental, a emocional), no presente, no passado e nofuturo. Não abrirei considerações sobre os campos de aplicação da cultura (tecnologia, educação, arte, moral, lei e todo o cabedal deconhecimento e ação humana) para referir-me tão somente à problemática Milhares de anos-luz (em do tempo, pois esse é um ponto básico de engasgo na compreensão do termos de cultura) nos separam de povos que sequer adentraram o portal tecnológico significado de cultura. do cavalo-vapor e muitos mais ainda daqueles que sequer adentraram a idade dos O olhar que observa tão somente pela estreita frincha do passado costuma metais. observar como cultura, para o nosso gasto diário de política cultural, as realizações artísticas e/ou religiosas ocorridas há tempo suficientemente distante do hoje e que tenham conseguido permanecer como costume. Cá no Estado do Tocantins, Brasil, vemos essas expressões culturais reconhecidas nas cavalhadas, nos caretas de Lizarda, nas festas do divino com suas bandeiras, nos artesanatos indígenas, nos toques dos tambores, na sucia, nas
O hoje é uma realidade produzida por nós, humanos, em todos os setores de ação humana e em todos os quadrantes do planeta. É muito claro, portanto, que nós fazemos cultura. Produzimos cultura ao produzir o pensar; produzimos cultura ao avançar em técnicas; produzimos cultura quando inventamosmoda(o), coisa ou caso. Tudo isso é cultura. E precisa ser objeto do olhar dos responsáveis pelo desenvolvimento cultural deste bolsão cultural que agora é mais amplo e muitíssimo mais diverso, com o nome de Estado do Tocantins. Aqueles bolsões culturais, antes isolados pela realidade bárbara que se lhes impunha, agora se interconectam. Mais que isso: se plugam. E não apenas entre si, mas se plugam no contexto geral, na cultura do mundo, realidade muito mais ampla e complexa que o nosso quintal. Portanto, a cultura dohoje precisa tanto quanto a do ontem, de apoio e cuidado. Falta-nos ainda considerar o futuro nessa equação cultural do fator tempo ou equação temporal do fator cultura. Façamos isso. Quando nos detemos a considerar o futuro, damo-nos conta de que futuro é o que haverá de vir. Isto é o que a cultura de antanho nos sedimentou na compreensão, junto com outra assertiva, decorrente da ideologia da primeira: o futuro a Deus pertence. Mas não é assim. A segunda assertiva é nula porque a primeira é falsa, pois o futuro está sendo moldado, plantado, construído agora! E o fazer culturalno agora é nosso, do homem, como demonstramos ao observar o fator tempo na modalidade “hoje”. Colocar a metas de desenvolvimento cultural nas mãos de Deus é muito próprio dos dirigentes irresponsáveis para com o resultado do trabalho que têm a obrigação (moral, inclusive) de realizar. Além de dirigente, quem exerça tais funções há que ser diligente e minimamente observar, com acuidade e amplitude (é uma dicotomia real) o que é mesmo que significa cultura.
construções em estilo de época em cidades mais antigas como Natividade e Monte do Carmo etc. São valores identitários de bolsões culturais que temos o dever de preservar para que tenhamos viva a memória. O grande problema é que significativa parte dos operadores da coisa da cultura só enxerga a cultura por esse ângulo e nessa dimensão. Decorre daí um estrabismo temporal onde só se vê, como elemento de cultura, as práticas cabíveis nas possibilidades de expressão de um bolsão cultural circunscrito no espaço e no tempo. Os que observam por essa vertente estreita do passado surpreendem-se (e mesmo escandalizam-se!) quando se considera cultura uma ação humana com função no presente. Em sua compreensão estreita e estrábica a um só tempo, as ações culturais no presente devem ser uma repetição das afirmações culturais do passado. Não admitem o novo que comporta o novo; tão somente admitem o novo que comporta o antigo, como um filme feito na tecnologia das 3 dimensões, cujo tema e enredo sejam obrigatoriamente dos usos e costumes do tempo da onça.
Construamos, pois, nossa cultura, com a consciência de que somos todos responsáveis por ela e por nossos atos e suas decorrências. Lembremo-nos que nosso hoje é o futuro do ontem e se esse hoje traz as marcas da irresponsabilidade (com o planeta, com a flora, com a fauna, com o fogo, com o homem) é porque os povos que o construíram não tinham a devida responsabilidade com a construção de si mesmos.
O presente é o agir cultural no agora, no hodierno; é o saber e o fazer com as técnicas apuradas até o presente, sejam em quaisquer campos da ação humana, desde a tecnologia instrumental até a tecnologia de controle social.
22 | 19 de Setembro de 2013