entre(tanto) revista nu #45 marรงo 2019
3,5 euros
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Entre(tanto) revista nu #45 Março 2019
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Onde está a Escola? Cláudia Ribeiro, Francisco Paixão e Inês Saraiva
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A forma segue a formação Lara Reis
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Invadir Inês Saraiva
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Alexandre Alves Costa Cláudia Ribeiro, Ivan Brito e Paula Chaves
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“Basta! Pum! Basta!” Cláudia Ribeiro
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Escola: entre o dinamizador pedagógico e... a nossa casa Carolina Coelho
artigo gráfico
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“Arquitectura na Ruína 2.0”
enviados nu
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Au Revoir, Nevoeiro Carolina Ramos
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Seja realista, exija melhores condições Paula Chaves
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Ecos Nuno Santos
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Bruno Gil Cláudia Ribeiro e Lara Reis
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Um Início Flávia Bellesia
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Cultura, Informação e Arquitectura Francesco Benatto
1º ato
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Requalificação da Sala dos Alunos Bárbara Batista e Guilherme Falcão
contaminações
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Preguiça António Carvalho
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Às vezes, mais vale estar calado Francisco Paixão e Hugo Silva
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Isto não é uma instalação Cláudia Ribeiro
editorial
entrevista
à conversa com
a nu
Capa Sem título #12, Série Capela
Diretora Cláudia Ribeiro Sub-Diretora Inês Saraiva Editores Cláudia Ribeiro, Francisco Paixão e Inês Saraiva Editor gráfico Hugo Silva Redação António Carvalho, Catarina Jegundo, Carolina Ramos, Cláudia Ribeiro, Coling Lima, Flávia Bellesia, Francesco Benatto, Francisco Paixão, Hugo Silva, Inês Saraiva, Ivan Brito, Lara Reis, Marina Almeida, Nuno Santos, Paula Chaves Colaborações Alexandre Alves Costa, Bárbara Batista, Bruno Gil, Carolina Coelho, Guilherme Falcão
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Cláudia Ribeiro, Francisco Paixão, Inês Saraiva Alunos de dissertação do dARQ
Onde está a Escola?
editorial
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Onde estão os agentes interessados e interessantes, motivados e motivadores? Onde estão as buscas descomplexadas pelo conhecimento e a capacidade de ir além do expectável?
Sem diálogo e sem intervenção, a escola é nada mais do que o seu espaço físico: paredes que não ecoam nada são para além de estrutura. Numa escola – espaço tão intensamente dos alunos – é preciso que estes não sejam meras entidades passageiras conduzidas cegamente por premissas nunca questionadas:
Numa escola, esta mutação permanente parte da vontade de lhe pertencer, de partilhar e de comunicar. No espaço onde habitam estas premissas, surgirá o espaço para falhar e, consequentemente, o espaço para aprender.
Multifacetada e multidisciplinar, a arquitectura revela complexidade na transmissão dos conhecimentos a si inerentes. A sua vinculação a determinados e variados contextos obriga a uma adaptação e atualização permanentes – seja da disciplina, do seu conhecimento e da sua prática, seja da reflexão e do ensino.
“Mas antes, oh musa, é bom que se saiba de antemão que há assuntos de que não falaremos.” 1 Não falaremos da arquitectura como arte nem da sua aproximação à engenharia. Não falaremos do egocentrismo de alguns egos. Não falaremos de outras escolas de arquitectura
a nossa casa, a nossa musa: o claustro. Este espaço que nos alberga e que tanto nos protege e abriga como nos faz voar; um lugar de trocas e vivências, um espaço para pertencer, deixar marcas e recolher memórias – a verdadeira escola!
Era sobre isto que queríamos falar… Falar sobre tudo: questionar tanto quanto reivindicar; tanto falar sobre o espaço e sobre as pessoas, como sobre os malditos bancos ou o romance; discutir a própria revista e perceber a relação entre teoria e prática; questionar a Escola de Coimbra, enquanto se celebra o ensino. Queríamos falar sobre tanto que ficámos entre tudo isto. Mas nunca esquecemos o nosso ponto de partida,
Onde está a rebeldia de uma geração vasta de pensadores inocentes e crentes na utopia de um mundo melhor? Onde está o tempo para questionar Onde está a Escola?
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Miguel Borges. Odisseia, série televisiva, episódio 1, RTP. 2013 Idem
e de um manifesto futurista de revolta e indignação. Voltam as janelas, regressam os grandes planos. No fundo, a vontade é a mesma e dessa nunca nos conseguiremos libertar. Falaremos da vida e do que está para além dela. Falaremos de preguiça e dos caminhos até casa. Falaremos do início e de como tudo poderia ter começado.“E não falaremos de mais nada a não ser o [que nos surgiu como] essencial! E o essencial é ter (…) o vento no pensamento!” 2
Falaremos de Porto, Lisboa, Coimbra e o mundo. Falaremos de escola com palavras roubadas ao Costa. Falaremos de interação social e incitaremos o ativismo pedagógico. Falaremos de turismo e cidade na universidade. Falaremos de outros mundos e de outras vontades. Falaremos do que precede a forma
como comparação entre diferentes realidades. Não falaremos do fim da arquitectura, porque esta será eterna enquanto o Homem dure… Não falaremos da juventude na batota, nem dos cotas na tasca. Não falaremos daqueles que não quiseram ser ouvidos nem dos que tardaram em calar.
artigo
A forma segue a formação Lara Reis Aluna do 2º ano do dARQ
Formar, tal como indica a sua etimologia (formare, verbo latino que remete ao substantivo forma), trata-se do ato de atribuir forma, moldar, podendo a palavra ser utilizada numa grande amplitude de contextos, entre eles, no campo lexical de educação. A escola, seja ela relativa ao ambiente de formação ou a um modo de fazer algo, seguido por um determinado grupo e transmitido através de gerações, ocupa um papel fundamental na modelagem de princípios e métodos de uma disciplina. Aqui, a disciplina em questão é a arquitectura que, devido à extensão do seu campo de conhecimento e de atuação, revela-se interdisciplinar, o que lhe possibilita ser ensinada através de diversos viés, nos quais alguns
Em escolas de arquitectura não é difícil ver o estudo do urbanismo ser tratado como uma disciplina à parte, que deve receber mais atenção apenas pelos profissionais da área. Concomitantemente, valida-se a premissa de que considerar o espaço envolvente no processo compositivo de um projeto é o suficiente para que se obtenha uma arquitectura consciente do espaço urbano em que se insere. Não tirando a importância de tal preocupação projetual, o estudo do urbanismo aponta para uma relação mais enraizada com a arquitectura. O que aparenta ser uma relação exclusivamente espacial, na qual um edifício é arquitectura e um conjunto deles configura uma paisagem urbana1, na realidade também se mostra
conhecimentos são priorizados em detrimento de outros. No entanto, tais conhecimentos cujo aprofundamento parece opcional, são por vezes definidores do senso crítico das futuras arquitectas e arquitectos. Um dos casos é o do ensino do urbanismo.
determinante quanto ao funcionamento das cidades, como aponta Aldo Rossi: “algumas ideias de tipo puramente espacial modificaram de maneira notável, em formas e com intervenções diretas ou indiretas, os tempos e os modos da dinâmica urbana”2.
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Essa relação direta entre a arquitectura e a dinânica urbana é apresentada por Jane Jacobs em “Morte e Vida das Grandes Cidades” a partir de um conceito central que consiste na vigília da rua por parte dos seus habitantes e transeuntes - conceito denominado pela autora como olhos da rua. Tal vigília que, segundo Jacobs, resulta na melhoria da segurança local, é descrita como produto de um desenho urbano e uma arquitectura que estimulem a ocupação do espaço
e o urbano no seu currículo. Faz-se essencial que o urbanismo seja abordado na esfera teórica e prática desde o começo do curso, período em que os primeiros conceitos perante a prática arquitectónica e a definição de métodos são consolidados. Assim, a escola assumiria a importância de um maior aprofundamento de questões relativas ao urbanismo para a formação de arquitectas e arquitectos com responsabilidade social.
público, seja esta uma ocupação física ou através do ato de observar as ruas do interior dos edifícios. A partir dos estudos de Jane Jacobs, Jan Gehl desenvolve a dimensão arquitectónica do assunto, apontando maneiras de fazer com que os edifícios estabeleçam um maior diálogo com a rua. Para isto, defende que os edifícios sejam sempre projetados de modo a respeitarem a escala humana e a considerarem as implicações que o objeto arquitectónico trará para o seu contexto urbano. Estes princípios deveriam ser amplamente estimulados na formação de qualquer arquitecto através de um modo de projetar que, entre outras coisas, se preocupe em garantir a manutenção da relação visual do interior do edifício com a rua. Defende ainda que se destine uma atenção especial aos pisos mais baixos do edifício – transição entre o dentro-fora, o privado-público –, onde há um maior potencial de gerar sombra, de proteger o transeunte da chuva e de moldar o espaço urbano, tal como as paredes definem as sensações geradas em determinado ambiente interno. Deste modo, as pessoas poderão se sentir mais acolhidas e seguras para ocupar as ruas e se deslocarem a pé ou de bicicleta, meios de transporte mais sustentáveis e que permitem a existência de um maior contacto com a rua. Com isto, garante-se um ambiente urbano mais seguro, saudável, sustentável e vivo, onde, consequentemente, se obtém um maior bem-estar social. Tendo em vista o poder de influência sobre a dinâmica urbana e social que a arquitectura tem, evidencia-se a importância das escolas moldarem adequadamente o modo de pensar arquitectura dos seus alunos. Estes não deveriam, ao projetar, elaborar formas que se limitem a funcionalismos, mas também considerar questões para além dos limites do lote, conscientes de que a vida acontece do lado de dentro e de fora do objeto arquitectónico. Neste sentido, a escola deveria refletir a dimensão da interação entre a arquitectura
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Gordon Cullen. Paisagem urbana. Edições 70, 2006. Pág. 135 Aldo Rossi. Arquitectura da Cidade. Edições Cosmos, 2001
Pág. 6 Zobeida, Cidades Invisíveis, Karina Puente Pág. 7 Cidade para Pessoas, Jan Gehl
5 km/h
60 km/h
Aberto
Fechado
Interativo
Passivo
Interessante
Monótono
Variado
Uniforme
Vertical
Horizontal
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artigo
Invadir Inês Saraiva Aluna de dissertação do dARQ
Quando falamos de escola, é presumível uma introspeção acerca da experiência individual vivida, e talvez, se distanciada, uma reflexão crítica. Por ser um tema tão familiar, torna-se difícil de abordar. Para além disso, é um termo tão abrangente que contém nele diferentes planos - teórico, físico, espacial e temporal, que se intersetam com esferas distintas. Uma dessas esferas é a da cidade, à qual está subentendida a importância da componente físico-espacial de escola: o espaço que a envolve. Estamos perante duas esferas abrangentes - a escola e a cidade -, que se sobrepõem incondicionalmente, nem que seja pelo lógico facto de que a escola ocupa fisicamente espaço da cidade. Assim sendo, poderíamos afirmar que a escola, como equipamento urbano, estabelece relações de continuidade, complemento ou oposição com a envolvente - “pressupõe-se uma certa dialética entre uma presença da instituição na cidade, ainda como um corpo fisicamente forte, distinto, identificável no tecido urbano, e por outro lado, uma penetração dos (…) serviços urbanos - sejam de trabalho, sejam de tempos livres - no espaço social das escolas.”1 Além da consciência urbana, física e social, a pedagogia inerente aos termos universidade e escola deve também fomentar a atuação junto da comunidade onde está inserida, usando a instituição como um meio. Faz parte dos estatutos de escola/universidade: formar, educar, promover respostas e debates adequados aos problemas atuais do mundo, prestar serviços e contribuir para o desenvolvimento urbano, social, económico e cultural da sociedade. Em último recurso, as escolas e universidades devem ser ferramentas de democratização das burocracias na atuação direta com a comunidade, ou seja, 8
deve “reconhecer-se que o sentido em que se desenvolve a universidade é o da criação de uma imagem modelar da «Cidade»”2. A vida universitária é mais do que “uma réplica da vida da sociedade em que se insere”3, o estudante é imperativamente participante ativo na vida da cidade onde estuda e, portanto, é mediador entre a escola e a cidade. Ainda assim, a universidade deve possibilitar e fomentar esta permeabilidade na promoção de comunidade e cidadania. Coimbra, por ser a primeira cidade portuguesa - e única até 1911 -, a instituir uma universidade, é rotulada como a Cidade dos Estudantes. Desta forma, está confirmada a consequência direta pelo facto de existir uma universidade num núcleo urbano. Nuno Portas refere-se à Universidade “como um meio social que se distingue, que tem uma autonomia relativa, no interior da cidade”4. Contudo, apela a “relações de troca extremamente apertadas, das quais o imiscuir do «edifício universitário» na própria cidade é, de certo modo, uma consequência prática e, ao mesmo tempo, uma expressão algo simbólica.”5 A Universidade de Coimbra tendenciosamente caminha para se encerrar em si, isolando-se, aos poucos, da relação imediata com a cidade. Não será então contraditório afirmar-se tal pensamento sobre uma das universidades mais visitadas da Península Ibérica? Ora, cada vez mais assistimos a uma Universidade que se deixa contagiar pelo turismo e pelos visitantes e que se distancia das contaminações urbanas e comunitárias. Afinal onde está a génese de ‘comunidade’ e ‘associação’ da universidade? Serão os turistas tão ativos e importantes para o desenvolvimento - urbano, social, cultural e local como os estudantes? O fluxo de turismo aumentou desde que o conjunto urbano Universidade de Coimbra, Alta e Sofia foi, em
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entrevista
Alexandre Alves Costa Cláudia Ribeiro, Ivan Brito, Paula Chaves Alunos de dissertação e aluna do 4º ano do dARQ
Uma escola alguma vez o será até alguém afirmar ‘é agora!’, como terá, um dia, afirmado o Professor Alexandre Alves Costa. Num tom terno e hábil, a entrevista trata de alguns aspetos intrínsecos ao ensino da arquitectura e aos atuais paradigmas que vão para além deste claustro onde os arquitectos se formam.Trata-se, então, de uma interessante perspetiva de que, para além da concretização de espaço, é necessário definir o que se idealiza para uma escola.
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Enquanto membro das Comissões Instaladoras dos cursos de arquitectura nas Universidades do Porto e mais tarde de Coimbra, o Professor representa, desde então, uma figura essencial para a criação das bases caraterizadoras do ensino das duas escolas. Podendo uma escola de arquitectura seguir um rumo influenciado por variadíssimos métodos e princípios, quais foram os objetivos primordiais traçados aquando da formação do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra? Eu sou da seguinte opinião: as escolas de arquitectura, estejam onde estiverem, apresentam uma base comum que tem que ver com a metodologia do ensino de arquitectura, e tanto faz que estejam em Braga como em qualquer outro lugar - é igual. É preciso adquirir um conjunto de conteúdos, sobretudo os instrumentos de trabalho necessários para projetar e ter uma ideia do que é fazer um projeto e, para além disso fazer alguma formação paralela complementar - e aí sim, podem existir diferenças. Eu diria que a estrutura fundamental do curso é projeto e desenho, e aí não foi procurada nenhum especificidade em Coimbra. O que foi procurado em Coimbra foi encontrar gente capaz de iniciar um curso de arquitectura com alguma competência, isto é, que fossem de facto professores e não estagiários. Por outro lado, houve também um interesse em constituir uma espécie de lugar de encontro de arquitectos do norte e do sul - uma vez que havia uma certa separação entre os arquitectos do norte e do sul -, que poderiam eventualmente trazer idiossincrasias diferentes em relação ao curso. Verificou-se, no entanto, que a questão entre os professores do Porto e Lisboa não era questão nenhuma: a questão era fundamentalmente entre as duas escolas - era mais institucional do que pessoal.
Do ponto de vista estrutural, penso que não há diferença entre os cursos de arquitectura. Os cursos de arquitectura são todos iguais e têm objetivos muito próximos, portanto não vejo razão nenhuma para que haja diferença. Existem, no entanto, algumas especificidades que eu penso que decorrem da localização e da relação da escola com o território onde está inserida, diferente de escola para escola. A escola tem sempre uma função de intervenção pública, e nesse aspeto é muito marcada também pelos problemas do lugar onde está inserida.Também a nível da construção se encontram especificidades: provavelmente há um sistema construtivo que é universal, que se constrói desde a China até Portugal, mas existirão certamente sistemas estruturais locais que são bastantes interessantes de recuperar e renovar. Também a nível da História da Arquitectura existe de certeza uma especificidade: cada país tem a sua História e uma forma de resolver ou de entender a História universal. Fora isso, é a mesma coisa. O Mies Van der Rohe é o Mies Van der Rohe na China, no Japão ou em Portugal. Considera, agora com algum distanciamento, que o Departamento de Arquitectura (dARQ) conquistou os objetivos traçados e responde, atualmente, às ambições iniciais? Acredita que essas condicionantes de que fala se mantêm, ou que existem alterações com o passar dos anos? Acredito que não existam alterações. Caso existam, no meu ponto de vista, existem mal. As alterações importantes nas escolas advêm de muitas condicionantes. Em primeiro lugar, em Portugal aumentaram imenso o número de estudantes. O território português está coberto com escolas e isso é uma novidade. Outra condicionante tem que ver com o crescimento das próprias escolas que já não adotam um ensino tão personificado e pessoal. O aumento do número de alunos criou situações 11
artigo
“Basta! Pum! Basta!”1 Cláudia Ribeiro Aluna de dissertação do dARQ
A reflexão sobre escola de arquitectura carece, por si só, do entendimento de um organismo que depende, a priori, de um conjunto de fatores tão vastos quanto variáveis. A escola, enquanto organismo que se quer vivo, apresenta em si todas as capacidades de estimular confrontos e relações, numa constante discussão das suas formas de ensinar e aprender. Deste modo, deverá ter em si a capacidade de desencadear dinâmicas diversas, evolutivas e críticas, capazes de a caracterizar como um todo. A escola depende, desde logo, do seu contexto físico, seja este um vazio livre para ser atravessado, um espaço fragmentado que, de forma autónoma, se estende pelo vazio, ou um claustro dependente das ações que decorrem no seu interior. O edifício escolar apresenta-se, deste modo, como uma variável capaz de “responder e, acima de tudo, melhorar o processo de aprendizagem”2, traduzindo-se num elemento “relevante para as ações e resultado que proporciona”3. Por sua vez, deverá ser capaz de propiciar conformemente a agregação e um conjunto de relações verticais e horizontais, propensas ao debate, discussão e pensamento crítico. De igual modo, depende dos agentes que intervêm no seu espaço - entendido como algo que vai para além de uma dimensão física -, influenciados por um conjunto de pressupostos específicos, externos à escola, sejam estes sociais, culturais ou temporais. “A performance da escola atinge o seu máximo quando existe o diálogo, quando existe o debate, quando existe a opinião, quando existe a comunicação, quando a escola vive e quando dessa vivência uma geração desponta”4 e, nesse sentido, deverão os agentes da escola ser capazes de propiciar o encontro, as relações e trocas, evitando a indiferença, apatia e a consequente estagnação da escola. Caso contrário, concretizar-se-á apenas e nada mais do que somente uma simulação de escola. 12
O incumprimento destas premissas, implicará uma escola estagnada, que não fará jus a uma disciplina em constante movimento - tal como arquitectura o é. Assumimos facilmente qualquer premissa como imperativo categórico - seja na sala de aula, nos corredores, ou nas conferências em que “é tarde para abrir a discussão ao público”5. E se, num dia, as escadas monumentais são palco da reivindicação dos seus agentes - que entoam pela cidade as suas inquietações de forma determinada e objetiva -, no outro, voltamos à tão habitual e consentida condição de alunos pouco interessados e professores pouco empenhados. Importa realmente preencher o espaço da escola se não o conseguimos, de facto, enriquecer? Importa realmente adotar uma postura passageira e invisível, quando a escola se potencia através de buscas descomplexadas e perspetivas que vão para além do óbvio? É imperativo ocuparmos o espaço da escola; não sermos indiferentes. Uma escola que consente deixar-se representar pela indiferença, é uma escola que não o é6. Uma escola deveria congregar vozes; motivadas por impulsos, por desejos... mas nossas. Tão nossas que não se calem. Vozes que nos levem mais longe; que não nos deixem adormecer - e que, através delas, possamos também desenhar. A escola é [a voz] dos alunos. Basta que os alunos a queiram como sua.
Almada Negreiros. Manifesto Anti-Dantas. 1915 Carolina Coelho. Place and action: The school building as an enhancer of the learning process. 2017, p.314 3 Idem, p.316 4 Bruno Gil. Escola de Arquitectura: hoje. 2005, p.89 5 Luís Tavares Pereira. Mesa redonda dos Encontros de Arquitectura - Escola de Coimbra. 2018 6 Almada Negreiros. Manifesto Anti-Dantas. 1915. Adaptação de “uma sociedade que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi” 1 2
Pág. 21 Salão Caramelo. Fotografia de Vitor Nissida
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artigo
Escola: entre o dinamizador pedagógico e ... a nossa casa Carolina Coelho Professora auxiliar do dARQ
I. Entre... o(s) espaço(s) e a(s) vivência(s) “Porque a arquitectura é uma arte muito comprometida com a prática, com o real, com as necessidades sociais, políticas, económicas, etc. a arquitectura é obrigada a viver. E é obrigada a viver na sua relação com as massas. Embora se possa também dizer sobre a arquitectura, como disse o [Walter] Benjamin da arte em geral, que é uma forma artística que perdeu a aura. Hoje a arquitectura é muito mais frágil do que sempre foi, muito mais popular do que sempre foi, muito mais sujeita a todas as mudanças de estilo e de apreciação do que sempre foi, mas mesmo assim, como é feita para durar e é tão amarrada à realidade, liberta-se um pouco dos problemas exclusivamente metafísicos, por assim dizer, das outras formas artísticas.”1
da escola - palco e “contentor”5 - do ensino, mas sobretudo, potenciador de uma aprendizagem que se quer hoje mais activa, independente, construída também pelo aluno, individual e colectivamente, de forma criativa e questionadora. Mas é também esta crença profunda no engajamento e na nossa participação enquanto arquitectos com a sociedade, com o indivíduo e com a cidade, em suma, com a “batalha essa cuja vitória constitui um “sine qua non” da felicidade do homem”6; que procuro transportar para os homens e mulheres que estudam arquitectura aqui no dARQ, no âmbito das “Dinâmicas entre a concepção e fruição do espaço”, geradoras de variadas e promissoras propostas de trabalho e reflexão, com transversal sentido ético, social, material, cultural e profissional de comprometimento.
A relação intrínseca entre a arquitectura e as necessidades (“obrigações” e “aspirações”)2 a que responde, ou vivências que promove, é um tema enraizado na própria disciplina e na minha própria pesquisa pessoal e académica. Desde cedo, que procurei descortinar melhor o nosso papel enquanto “organizadores do espaço”3 e como este, do outro lado do espectro, era firmado pela sociedade. Daqui nasceu a Dissertação A Questão do Arquitecto - A sociedade portuguesa e o arquitecto, hoje, apresentada em 2008 no dARQ, que já se afirmava como um prenúncio de uma investigação posterior, necessariamente mais apontada, ainda mais perscrutadora do “inexplicável”, almejando a
II. Entre... o ensino e a aprendizagem
sua reflexão e avanço para um conhecimento mais “previsível”4.
mimetizando as relações sociais e afinidades familiares e emotivas, os rituais culturais, os estilos de vida e comportamentos, manifestos na sociedade em geral e que aqui estarão na base da formação das crianças e jovens.
É, assim daqui, decorrente a investigação no âmbito de Tese de Doutoramento sobre o espaço 14
Dentro deste contexto, revisitando a linha de pensamento de Karl Popper7, no que concerne o terceiro submundo enquanto o mundo das relações lógicas estabelecidas entre o espaço e a sociedade, esta pode ser, assim, transferida para o programa das escolas, lugar do ensino e da formação dos alunos. Basil Bernstein8, no âmbito da sociologia de educação, avança ainda, que a escola se evidencia como caso de estudo representativo desta relação,
De facto, a escola hoje, não pode ser encarada como o espaço da passiva transmissão de conteúdos. O ensino é complementado pelo conceito de aprendizagem, no sentido holístico e aglutinador de conteúdos didácticos, mas também de uma formação pessoal e social, disseminada na sala de aula, e ainda nos corredores, nos nichos, na sala dos alunos, ... na escola como um todo. Assim, os chamados “learner-centered environments”9 conferem a todos os espaços da escola o potencial de uma aprendizagem diligente, motivada, individual, acompanhada ou em grupo. Isto é sustentado também pela posição incontornável de Herman Hertzberger neste contexto, asseverando que “learning has to be more than just absorbing basic knowledge”10. Com efeito, as aulas em si, como momentos de aprendizagem, ganham o potencial de se estabelecer como uma panóplia de situações múltiplas de criação, descoberta, explicação e avaliação dos conhecimentos, espacializados de acordo com cada uma destas situações. Analogamente, a informalidade ganha terreno, físico e virtual, num paradigma dominado pela chamada “Net Generation”11, que se reúne, em momentos de co-presença e interacção, gerando
trocas, igualmente enriquecedoras, académica e socialmente, para a sua formação como pessoas e profissionais. Paralelamente, ao conceito de “ambiente educativo activo” de que a escola se reveste, a respectiva materialidade é assunto de natural debate e contemporaneidade. Com efeito, a literatura tem mostrado como robusta a hipótese de que as condições físicas do espaço de ensino se constituem como “variáveis mediadoras”12 e catalisadores da aprendizagem dos alunos e, em última instância, influentes do sucesso escolar13.
III. Entre... o claustro e cada um de nós Todas estas questões até aqui afloradas ganham ainda maior substância quando nos referimos a alunos de arquitectura, aos alunos do dARQ, cuja motivação, pro-actividade e vontade de conhecimento é encorajadora para todos nós que ocupamos esta casa. Para além do perfil dos alunos ser mais perscrutador e voluntarioso, o que despoleta mais
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artigo gráfico
Manifestação Arquitectura na Ruína 2.0. Fotografia de Francesco Benatto 16
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enviados nu
Au revoir, nevoeiro Carolina Ramos Aluna de dissertação do dARQ
Refletido numa outra existência se reverá um ser, uma matéria. Concretamente, poderá ser no ponto onde duas realidades se confrontam, onde se percebe do que comungam e o que as distingue, que mais francamente se consegue descodificá-las. Referenciando a arquitectura nesse contexto, é plausível aferir que, porventura e necessariamente, um cruzamento não será instintivo. Porém, na partilha de conhecimento e intenções de desenho, espaço e forma, na comparação de perspetivas e de vivências, recai um exercício de compreensão pessoal e conceptual, que procura situar e entender a posição das ideologias no todo da Arquitectura. As bases desta disciplina – linha, traço, intenção – são e serão as mesmas; todavia, é na sua transmutação e desdobramento que se releva o quão paradoxalmente ela consegue ser abrangente e restrita, simples e complexa; sobretudo e sem dúvida, o quão plural é. Numa extensão da confrontação à escola, uma eventual clareza da sua existência assumir-se-á com a passagem direta por outras formas de estar, ensinar e apreender; de ver o mundo e de se deixar por este ver, in loco, onde quer que ele seja. Porém, a total compreensão do que é a materialização da escola não é tangível, mas há uma nébula que nessa hora se desvanece. Cultivar o conhecimento arquitectónico e cultural toma-se por perentório; a ignorância mais não é que inimiga da evolução. Perceba-se, há mais na arquitectura que as matérias ou ideias de projeto que ilustremente se discutem ao longo de cinco anos numa única escola, que tão bem num canto da europa fazem sentido, mas que deslocadíssimas seriam noutro contexto da esfera terrestre. Não quer isto dizer, claro está, que se pretende dominar tudo o que existe, nem que arquitectos e arquitectura prendam por uma total adaptabilidade geográfica e cultural – convenha-se, nem tal sequer se conotaria como positivo, como, na 18
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artigo
Seja realista, exija melhores condições Paula Chaves Aluna do 4º ano do dARQ
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Maio de 1968 ficou marcado na História como o mês em que a classe estudantil francesa convocou o país para uma das maiores mobilizações já vistas. O sistema educacional francês estava estagnado há várias décadas, o que desencadeou uma crise. A insatisfação perante o plano curricular crescia juntamente com a taxa de desemprego no país, o que atormentava os universitários que não tinham perspetivas de um futuro estável. Além disso, os protestos políticos dos alunos eram duramente repreendidos em várias universidades do país. Em 22 de março, os estudantes da Universidade de Nanterre deram início à ocupação de espaços de administração da Universidade. Os envolvidos foram ameaçados de expulsão, o que mobilizou estudantes de outras faculdades. A ação estudantil tomou enormes proporções. Desde o dia 3 até o dia 10 de maio foram organizadas diversas manifestações nas ruas, mais de trinta mil estudantes e vários professores marcharam pacificamente pelas ruas de Paris. No dia 10 de maio, milhares de trabalhadores das classes operária e média assalariada entraram em greve e ocuparam os locais de trabalho. Até ao fim daquele mês a greve dos trabalhadores chegou a mobilizar dez milhões de pessoas. As bandeiras levantadas pelos manifestantes exigiam questões pontuais, desde a reforma curricular, até às questões de grandes dimensões políticas, como o fim da Guerra do Vietname e a demissão do então presidente francês, Charles de Gaulle. Além disso, o movimento teve um forte cunho filosófico com lemas como “Seja realista, exija o impossível”, que tornou evidente o caráter poético, artístico e expansivo dos seus protagonistas. Meio século depois, Maio de 68 é ainda um glorioso exemplo de como a classe estudantil tem em si a incrível capacidade de mobilização. Fazer parte de um movimento estudantil é engajar-se na luta por uma realidade mais justa. O movimento não é um fim em si mesmo, mas sim um ponto de partida na busca de mudanças, na medida que expressa a insatisfação, e torna-se veículo de demandas. É ainda um longo arco temporal que separa 1968 e 2018, no entanto, uma coisa é certa: a ideia de coletividade é intrínseca a qualquer tipo
de movimento social. A pluralidade é, por si só, algo muito complexo, por isso, a divergência de ideais é muito comum. Deve-se encontrar a síntese e os pontos principais indicados pela vasta maioria para que a luta avance, evitando que as discordâncias se tornem um obstáculo inultrapassável. Imaginemos uma situação hipotética em que um determinado grupo de estudantes está albergado num edifício que oferece riscos diários à sua integridade, seja esta moral ou física. Neste exemplo específico, a luta por melhorias é regada de discordâncias internas relativas às estratégias e demandas específicas, intercalada por aulas, exames e entregas. Geração após geração, estes estudantes herdam as reivindicações por um espaço de trabalho mais digno. Década após década, embora com algumas melhorias, o departamento destes estudantes permanece esquecido no campus de uma das universidades mais turísticas do mundo. Um dos argumentos utilizados para calar as reivindicações dos estudantes assentam em premissas como “muito já foi feito” ou ainda “O Departamento já esteve muito pior”. Mas será isso suficiente? Se a luta segue presente, então também está o problema. Cada geração que passou neste hipotético Departamento de Arquitectura da hipotética Universidade de Coimbra fez uma enorme diferença. De facto, muito já foi feito, e sim, o Departamento já esteve muito pior, porém, ainda não é o suficiente e está longe de ser visto o que esses hipotéticos estudantes seguem reivindicando. Um estudante pode muito facilmente sentir-se demasiado pequeno e inofensivo num contexto académico hierarquista. No entanto, a História testemunhou diversas mudanças conseguidas por “meros estudantes”, que não se contentaram com as justificações oferecidas por “meros superiores”. O movimento estudantil deve, então, manter-se firme! Deve contemplar as experiências dos seus antecessores e aprender com eles. Estudantes mobilizados conseguem mudar a realidade em que estão inseridos por isso: seja realista, continue exigindo.
Pág. 34 Demonstration in the Quartier Latin in Paris, 1968. Caroline de Bendern holds a Vietnamese flag on the Boulevard Saint-Michel. Fotografia de Jean-Pierre Rey
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artigo
Ecos Nuno Santos Aluno do 4º ano do dARQ
Ilustração de Bárbara Silva
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Sentado fumo um cigarro Descanso os olhos, sinto-me cansado... Enquanto, nesta noite sem fim À luz da lua ouve-se um fado A ti! Que resistes e manténs abrigados Os seres, Que vivos, se vão mantendo acordados. Por entre velhos estiradores Já espreita o sol, vivaças cores! E naquele silêncio nostálgico Contemplamos, nós aprendizes Essas pavorosas cicatrizes Que esculpem esse rosto heráldico. Ecos de um claustro Que nos contam histórias Onde cresce uma família Onde nascem as memórias. 23
à conversa com
Bruno Gil Cláudia Ribeiro e Lara Reis Alunas de dissertação e do 2º ano do dARQ
Enquanto atual professor do dARQ, o convidado revisita o ser estudante e esclarece a sua postura face à escola. Desde o romantismo da sua constante mutação até à frieza da sua rigidez institucional, encontram-se na escola momentos que requerem disponibilidade, interesse e participação por parte de todos os seus agentes - sejam estes alunos ou professores. A conversa aborda a importância do tempo e do espaço da escola enquanto somatório de experiências e vivências que marcam diferenciados e distintos percursos.
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Em 1998, quando ingressou no Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra (dARQ), quais eram as suas expectativas iniciais enquanto aluno para esta escola de arquitectura? As minhas expectativas estão agora um bocado filtradas por aquilo que já vivi entretanto... Eu considero o modo como cada aluno chega aqui muito importante, seja pela sua procura, pela sua vocação, seja pelo background que cada um traz e que deve ser trabalhado, isto é, nós devemos participar na nossa própria aprendizagem com esse background. Para mim, desde logo, existiu uma paixão imensa pelo desenho, não só o desenho do edifício mas pura e simplesmente o ato de desenhar. Eu considero sempre que a mão deve ser um prolongamento muito direto daquilo que nós pensamos, seja na escrita, seja no desenho... Em relação à escola em si, é um mistério porque o edifício em si para mim era algo difícil de compreender. Todos nós temos uma sensação de chegar aqui e pensar se nos vamos dar bem, porque este é um edifício já com tanta história, tão marcado... Mas depois percebemos que existe uma cumplicidade muito grande que ele tem, associada ao facto de congregar as pessoas, que eu considero muito importante, principalmente no primeiro ano. Depois, a escola em si, se tiver atividade e se for intensa, certamente fará desse primeiro ano o mais importante do curso. Ao longo desse primeiro ano há uma introdução a uma cultura com a qual não estamos habituados e, por isso, parece-me que existe ali, em muito pouco tempo, a introdução de uma ideia, de um olhar, de um saber ver que nos marca. Por isso, esta é uma cultura arquitectónica que é inicialmente muito vaga mas que, ainda assim, não precisa de grandes conteúdos para nós criarmos afinidades
com ela. Com o tempo ela vai-se construindo... Uma escola de arquitectura onde os alunos apenas cumpram aquilo que é a dita base do curso, pode revelar uma indiferença e apatia em relação ao mundo exterior. Neste caso, a escola aproxima-se de uma obrigação em alcançar determinados objetivos, mais do que um espaço que promova a criação e proatividade fatores chave na profissão do arquitecto. Não será então uma escola sem reação por parte dos alunos uma escola inexistente? Nós só podemos ser criativos e críticos se tivermos o outro lado e, por isso, considero que há um saber que temos de partilhar e que nos é relativamente dado. Em primeiro lugar, nós temos de saber trabalhar com o que os alunos nos trazem e, a partir daí, eles próprios devem sentir-se autónomos e essa autonomia deve ser enquadrada em algo que seja comum entre todos. Aí, sim, nós podemos começar a ser críticos porque se o fazemos ao contrário, provavelmente nunca sairemos como arquitectos. Por isso, temos de perceber exatamente que a arquitectura mexe com determinado conhecimento - com o qual nós temos de lidar. Ao mesmo tempo, a cada ano que passa, pode também existir um desenvolvimento paralelo. Por exemplo, em Projeto e em Teoria não é interessante que correspondam a visões totalmente articuladas, mas pretende-se que sejam uma postura crítica do conhecimento que se está a ter de uma em relação à outra. Nós em Teoria podemos estar a dar-vos a visão mais canónica e em Projeto estarem a fazer a personalização dessa visão mais canónica, e vice-versa. No entanto, há um construir, seja em Projeto ou Teoria, de um modo de ver próprio que deve ser comunicável e interpretável por todos. Se queremos ser arquitectos
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artigo
Um Início Flávia Bellesia Aluna do 4º ano do dARQ
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A entrada na universidade representa, muitas vezes, um momento de emancipação pessoal. Repentinamente, espera-se que passemos a ser maduros o suficiente para decidirmos “Vou ser arquitecto!” e assim, com apenas uma frase, determinarmos o nosso futuro. A realidade deste percurso, porém, nem sempre é assim tão linear, e ouso dizer que muito frequentemente não o é. Para mim não foi, de facto, pois quando cheguei ao momento de tomar esta decisão disse “Vou ser engenheira!” e aqui estou eu no curso de arquitectura. Contudo, este não deixa de ser um momento chave nas nossas vidas: deixamos de ser crianças para nos tornarmos pessoas independentes – ainda que nem sempre financeiramente – que têm o livre arbítrio e, ao que parece, o dever de tomar decisões para uma vida inteira. Este torna-se um momento ainda mais significativo quando envolve uma rutura geográfica e emocional, quando nos mudamos de cidade ou de país para prosseguirmos o nosso percurso académico na universidade e deixamos para trás a família e os amigos – o nosso porto seguro.
Rapidamente, ao mesmo tempo em que tecemos uma rede de apoio que nos permite persistir e progredir, descobrimos professores que nos inspiram e áreas que nos motivam. De repente, o conhecimento torna-se infinito e o tempo finito demais. Surge então um impasse: parece que nunca conseguiremos aprender o suficiente. Ainda hoje me questiono se serei tão capaz quanto os meus heróis da arquitectura, que surgem aos poucos através do estudo de projeto, história, teoria e tantas outras matérias.
É o início do eu adulto.
Encontramos a nossa verdadeira emancipação.
Adiciona-se ainda a este turbilhão de mudanças uma nova forma de ensinar e, sobretudo, uma nova forma de aprender: o aprender fazendo. Logo à partida é um corte entre os métodos utilizados nos níveis académicos antecedentes e os utilizados na universidade. Para quem nunca lidou com este método, é como um “soco na cara”: sentimo-nos perdidos, parece que não aprendemos nada, que apenas fingimos que o fazemos. No primeiro ano do curso fiz a minha primeira direta1 como resultado
Todavia, tal libertação vem com um preço: sermos responsáveis por nós. Possuímos agora um meio de adquirir o conhecimento que objetivamos e a sua base é, acima de tudo, o esforço pessoal em aprender e não só o esforço de terceiros em ensinar. Aprendemos a ser autodidatas. Acredito que valha a pena pagar o preço por tamanha independência, pois passamos a possuir uma ferramenta que serve não só para o projeto de arquitectura, mas para a vida. E, quem sabe, no final deste processo e com toda a
deste sentimento de desorientação - foi o desfecho de semanas de estagnação do trabalho por não entender nem como fazê-lo e nem por onde começar.
bagagem conquistada, possamos dizer:
Porém, tudo na vida requer tempo para a adaptação.
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Com calma é possível subir nos ombros de gigantes. O conhecimento é, de facto, infinito e jamais conseguiremos dominá-lo no seu todo. O que cabe a nós é procurar conhecer um pouco de tudo e muito do que admiramos. Então o aprender fazendo deixa de ser complicado e revela-se proveitoso, traz consigo um mundo de possibilidades que está tão perto quanto o nosso querer e a nossa disposição de fazer e de aprender. É a confirmação de que dependemos maioritariamente de nós.
“Sou arquitecto!” com muito orgulho. Trabalhar/estudar geralmente 24h seguidas ou mais
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artigo
Cultura, Informação e Arquitectura Francesco Benatto Aluno do 2º ano do dARQ
Tendo em consideração as transformações sociais, económicas, políticas e culturais da sociedade, a prática da arquitectura hoje é dificilmente comparável à sua execução por figuras como Vitrúvio. No entanto, através do estudo de personalidades históricas é possível compreender muitos dos princípios da arquitectura. “Deverá ser [o arquitecto] versado em literatura, perito no desenho gráfico, erudito em geometria, deverá conhecer muitas narrativas de factos históricos. Ouvir diligentemente os filósofos, saber de música, não ser ignorante de medicina, conhecer as decisões dos jurisconsultos, ter conhecimento da astronomia e das orientações da abóbada celeste.”1 Retirado de “ Os Dez Livros de Arquitectura” de Vitrúvio - o tratado mais antigo sobre arquitectura do qual se tem conhecimento - a afirmação esclarece acerca de como a profissão de mestre de obras2 deveria, já no séc. I a.C., abranger todos os conhecimentos citados acima, demonstrando assim, a sua interdisciplinaridade. Esta característica contribuiu imensamente para a divergência da definição de arquitectura ao longo do tempo. Hoje, as diversas definições que existem sobre a disciplina, quando comparadas, revelam que definir o que é arquitectura é um esforço cultural dependente de filosofias, narrativas históricas, músicas, literaturas, etc. Assim, o estudo individual e aprofundado de outras culturas possibilita novas perceções sobre a profissão, e, em muitos casos, acaba também por colocar em perspetiva as limitações existentes em cada cultura - sejam estas provenientes de tabus, moralidades inconsistentes, preconceitos, entre outros. Tal estudo ganha uma relevância ainda maior quando ocorre pelo processo da viagem - diferente do estudo por 28
livros - que marca o indivíduo pela sua diversidade de sensações e momentos, sendo a riqueza da experiência o que a torna fundamental para a arquitectura. Um grande exemplo é Le Corbusier, arquitecto cuja vida fora marcada pelo tema e que é hoje uma figura incontornável da história da área. Para além da viagem, o estudo de outras culturas só é possível quando se possui acesso a informação, e na época de Vitrúvio poucos eram os indivíduos que tinham acesso ao tratado citado. A situação seria amenizada pelo surgimento de escolas de arquitectura, que, possuindo vários tratados, assim como diversos livros reproduzidos devido à invenção da imprensa, permitiriam que os seus alunos construíssem uma visão mais aprofundada, diversificada e rigorosa sobre a disciplina, mas ainda muito limitada. Atualmente, com a inédita facilidade de acesso a boa parte da produção cultural e intelectual sobre arquitectura - sendo ela histórica ou contemporânea, e indiscriminatória da posição geográfica ou de classe -, é possível afirmar que existe a possibilidade de elaborar uma visão ainda mais crítica e que engloba, como nunca antes, as diversas perspetivas desenvolvidas ao redor do globo. Essa visão mais ampla e inclusiva geraria, nada menos, que o surgimento de uma nova e estruturada maneira de se entender a disciplina, algo que por si já seria marcante, mas que também acabaria por influenciar nas possibilidades, já incontáveis, de se projetar.
M.J. Maciel. Vitrúvio: Tratado de Arquitectura. 3ªed. Lisboa, Portugal, p. 31 2 Designação de Arquitecto 1
All you touch and all you see Is all your life will ever be. Breathe (In The Air), Pink Floyd.
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1º ato
Requalificação da Sala dos Alunos Bárbara Batista e Guilherme Falcão Alunos de dissertação do dARQ
A Requalificação da Sala dos Alunos surgiu como uma necessidade aos alunos do Departamento de Arquitectura, que há muito batalham por espaços decentes à prática e pesquisa arquitectónica. Este espaço revelava-se, perante nós, disforme e com uma função pouco ou nada definida, cambaleando entre sala de refeições consoante a época do ano, entre pessoas que esperam desesperadamente uma atenção do Nina ou pessoas que fogem do furor da estufa e das intensas salas de projeto. Com materiais relativamente económicos, foi o nosso objetivo propôr um espaço organizado que pudesse recompensar as suas funções prévias de forma digna e limpa, conferindo ao espaço uma identidade fixa de refeição e trabalho produtivo.
conforme a necessidade. O módulo repete-se mais assertivamente na zona de refeições, servindo também o propósito de guardar lancheiras e sacos térmicos durante a hora de almoço. Este espaço seria assim dominado por uma simplicidade com cheiro a madeira, assentando o trabalho num tampo verde escuro que puxa pela psicologia humana, lido no córtex pré-frontal do nosso cérebro - parte responsável pela expressão, raciocínios complexos e tomada de decisões. Emanando a paz e tranquilidade da natureza, dá aso ao pensamento abstrato e criativo necessário e permite uma sensação de concentração, equilíbrio e harmonia. O expositor opcional, que infelizmente não teve a possibilidade de ser realizado, vinha trazer para a vida
Começando pelo espaço de trabalho, foi definido um módulo de prateleiras que se multiplica a cada par de pessoas com o propósito de guardar mochilas, e
uma utopia pessoal de um banco de livros que pudesse incitar uma troca cultural literária ou de desenhos entre alunos como um ‘bookcrossing’ e revelava-se como
qualquer outro material - possivéis de ser ajustadas
uma peça de (es)cultura perante os utentes do espaço.
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contaminações
Preguiça António Carvalho Aluno do 4º ano do dARQ
O carro é atualmente uma das tecnologias mais utilizadas: é um meio rápido e acessível de transporte, uma cápsula de privacidade que nos transporta para o exterior. Desde o último século a adesão ao automóvel teve um crescimento exponencial, massivo, e praticamente intolerável. Cada um tem o seu e, em conjunto, invadimos os espaços públicos das cidades. Consequentemente, as praças sofrem uma mutação funcional: deixam de ser espaços de agregação contínua e passam a ser rotundas ou parques de estacionamento. Estará a cidade em risco de se tornar um parque sobrelotado? No âmbito desta questão há vários fatores a ter em conta, sobretudo os que implicam aspetos ambientais; mas este artigo concentra-se numa questão profundamente arquitectónica, e então indissociável dos deveres sociais dos arquitectos – a paisagem urbana. Nesta reflexão procurei reprimir o meu repúdio maníaco por estes monstros mecânicos, ruidosos e poluentes, porque não posso, no entanto, deixar
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de admitir que são úteis – estaria a enganar-me se afirmasse o contrário. Mas a razão da minha crítica surge da nossa irresponsabilidade: o utensílio não tem consciência própria, portanto devíamos tê-la nós; no entanto, apesar da distância ser pequena, surgem inconveniências que acreditamos justificar a necessidade de usar adequadamente o carro: a ladeira demasiado íngreme, os autocarros sujos, preguiça para andar, etc. Os enxames fumarentos constituem ainda um dilema espacial. Para além de nos empurrarem contra as paredes das ruas estreitas, precisam ainda de espaço para estacionar, resultando na utilização inapropriada dos espaços públicos, indispensáveis para a vida em comunidade. Hoje, saio de casa em cima da hora com a minha cápsula, conduzo-a até à frente do edifício onde trabalho, e entro, à pressa, sem pisar uma pedra de calçada - isto é, se o parque já não estiver cheio. E mesmo que esteja ainda não aprendi a lição e amanhã volto com o carro. Não interessa onde o arrumo depois, qualquer canto serve. No largo da Sé Velha? Tem de servir para
alguma coisa! E ao subir as escadas monumentais - que me lembra porque é que preferia o carro -, sou privado da recompensa que a subida promete1; quase sinto pena dos arquitectos do Estado Novo que rasgaram a Alta: agora, em vez de ver a estátua de D. Dinis e, no plano de fundo, a Cabra, sou confrontado com uma muralha de máquinas e um exercício de agilidade, encolhendo a barriga
o sentido comunitário ao isolarmo-nos, tanto nos interiores como nas cápsulas: os espaços públicos parecem ser agora bancos cercados por estacionamento. Sinto que Coimbra é mais cidade nas saídas noturnas dos estudantes, pelo menos no sentido lato do conceito de polis: as praças enchem-se de vida, as pessoas misturam-se, e estas reuniões acontecem naturalmente; a maior parte dos estudantes vive em
para poder passar por entre os espelhos dos carros estacionados. Mas que importa? Que interessa para o meu quotidiano que o arquitecto tenha tido o cuidado de desenhar o espaço? Ao menos estacionei perto da faculdade!
proximidade, encontrando-se mais facilmente, e formam realmente uma comunidade.
No contexto de “estimar convenientemente o custo do serviço automóvel”2, Gabriel Dupuy refere o que eu considero a razão condutora da sua utilização excessiva: “Também aqui há que ter em conta dimensões não económicas da apropriação do automóvel, elemento de poder sobre o mundo, de poder sobre os outros, de domínio do espaço e do tempo, território personalizado. Estas dimensões foram evidenciadas pelos psicólogos e pelos sociólogos”3. Quem estaria agora disposto a abdicar deste utensílio, desta independência, desta liberdade? O nosso quotidiano pode ser na cidade, mas não a sentimos como uma comunidade: as pessoas trabalham dentro do escritório, estudam dentro da escola, vivem dentro de casa, e assim a cidade reduz-se às deslocações entre interiores; extinguimos
Questiono se esta corrida diária contribui para a nossa felicidade; valerá mesmo a pena viver fora do bulício do centro, se temos de perder tempo e dinheiro todos os dias na deslocação personalizada? Não seria mais vantajoso se desfrutássemos da cidade como uma polis, uma verdadeira comunidade interessada, que percorre a pé o espaço público – e que trata a cidade como tal e não como um conjunto de estradas?
“We can sense the joy of anticipation of running up a flight of steps, of the muscular effort to reach the higher level and the feeling of satisfaction when this is achieved.” Edmund Bacon. Design of Cities. Londres, Inglaterra: Thames and Hudson, 1995. p. 26 1
Gabriel Dupuy. O automóvel e a cidade. Lisboa, Portugal: Instituto Piaget, 1995. p. 45 3 Idem, p.45 2
Pág. 54 e 55 Ilustração do autor
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artigo
Às vezes, mais vale estar calado Francisco Paixão e Hugo Silva Alunos de dissertação do dARQ
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Fotografia do Arquitecto Pedro BrĂgida
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a nu
Isto não é uma instalação Cláudia Ribeiro Aluna de dissertação do dARQ
Chão do dARQ, após tempestade Leslie.
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Março 2019 ISSN 1645-3891
Morada Revista NU, Dep. de Arquitectura, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade de Coimbra, Colégio das Artes – Largo D. Dinis 3000 Coimbra Telefone/fax (dARQ) +351 239 851 350 +351 239 829 220 E-mail revista.nu@gmail.com Arquivo digital revistanu.net Impressão Nozzle Lda 1.ª Tiragem 150 exemplares
Esta publicação segue o Novo Acordo Ortográfico, com a exceção das palavras derivadas de Arquitectura.
#1 encruzilhadas #2 lugares #3 cidades #4 mecanismos #5 áreas de contaminação #6 imagem #7 desvios #8 tempo #9 sexo #10 ismos #11 tecnologias #12 onde está coimbra? #13 pecado #14 oposições #15 viagens #16 oriente #17 revolução digital #18 revistas #19 colagens #20 onde está portugal? #21 marginalidades #22 game design #23 brasil
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A Revista NU surge no ano letivo de 2001/2002, integrada no programa de objetivos do NUDA, o Núcleo de Estudantes de Arquitectura da Associação Académica de Coimbra (dARQ-FCTUC). O primeiro número, #1 Encruzilhadas, é lançado em Maio de 2002, e a NU torna-se, aí, uma revista periódica de reflexão e debate sobre temas relacionados com a arquitectura, que se propõe, essencialmente, como um pretexto de discussão e como uma ferramenta de aprendizagem para quem a faz e para quem a lê. Desde então já foram publicados mais de 40 números da Revista NU, assumindo-se como uma publicação de teoria e crítica focada em temas de interesse à produção arquitectónica mas também extra-disciplinar. Assim, aos textos de crítica produzidos pelos estudantes acrescentam-se inúmeras colaborações de nomes nacionais e internacionais ao longo dos anos. Em 2003 surge o número #12 onde está Coimbra? no âmbito de Coimbra Capital Nacional da Cultura comissariada por Jorge Figueira. No ano seguinte, a convite do Instituto das Artes, a Bienal Internacional de Arquitectura de Veneza conta com a presença da NU, com o número #20 Onde está Portugal?, integrado na representação portuguesa comissariada por Pedro Gadanho. Em 2007, o programa Gau:di, de apoio a publicações sobre arquitectura de vários países europeus, faz uma recolha a ser apresentada em feiras internacionais e inclusa numa antologia, e distingue a NU para representar a crítica portuguesa de arquitectura. Em 2012 é lançado o número #40 Entrevistas – Antologia Crítica 2002-2012 em pareceria com a Trienal de Arquitectura de Lisboa, como uma reflexão sobre os temas debatidos durante os primeiros dez anos da revista. 3
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