Revista OOH!

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01 Revista OOH! [ ruminações sobre cultura e arte ]

JUL-AGO-SET 2014



[ooh!]

JUL-AGO-SET 2014


Revista OOH! [ruminaçþes sobre cultura e arte] revistaooh@gmail.com


EDITORIAL

Em “O Perfeito Cozinheiro das Almas Deste Mundo” o poeta Oswald de Andrade deu origem, a meu ver, ao primeiro ‘fanzine’ da história; veja essa nota de Mário da Silva Brito: “De 30 de maio a 12 de setembro de 1918, Oswald de Andrade compõe, com amigos, este livro. Trata-se de um grande caderno de duzentas páginas, medindo trinta e três centímetros de altura por vinte e quatro de largura, que se transforma num diário dos frequentadores da garçonnière, provida de fonola e alguns discos, que Oswald mantém à rua Libero Badaró , n°67, 3° andar, sala 02. No enorme caderno, escrito a tinta roxa, verde e vermelha, ou à lápis às vezes, há de tudo: pensamentos, trocadilhos, reflexões, paradoxos, pilhérias com os habitués do retiro, alusões à marcha da guerra, a fatos recentes da cidade, a autores, livros e leituras, às músicas ouvidas (das eruditas às populares), a peças em representação nos palcos de São Paulo, às companhias francesas em turnê pelo Brasil. Há mais, porém: há colagens, grampinhos de cabelo, pentes, manchas de batom, um poema pré-concreto de Oswald, feito com tipos de carimbo, cartas de amigos grudadas em suas páginas, afora charges da imprensa com legendas adaptadas para zombarias com os integrantes do grupo, enigmas pitorescos, recortes de jornais e, soltas entre as páginas do caderno, flores murchas e uma pequena bandeira norte-americana de seda.” – na introdução de “O Perfeito Cozinheiro das Almas Deste Mundo”, da Biblioteca Azul da Editora Globo, 2014. Pois bem, é assim que passo em revista esses nossos tempos, com este meu caderno de recortes, estas memórias roubartilhadas com minúcia, que talvez busquem menos a novidade que a sutileza, vez que novidade por novidade temos escolhido as reminiscências, o autor bom e novato (ou o experiente fazedor de tinta fresca) realizando arte, boa arte, que é e sempre foi a mesma, ontem, hoje e amanhã. Mas quem decide o que é bom? Ao longo deste caderno vamos buscar essa resposta, já adiantando – atrapalhado contador de histórias que sou – que falhamos em responder, mas fizemos jus à viagem.


As páginas a seguir são um convite, uma provocação e uma celebração. Nada aqui será formal, no sentido acadêmico. Nossa preocupação é criar efervescência através de ideias, imagens, conceitos, recortes. As fontes estão citadas, mas não esmiuçadas. Tudo é remix. É como se você embarcasse numa viagem por uma cidade desconhecida, e fosse se interessando por aquilo que vê pela janela, algumas vezes com mais tempo para contemplar, outras vezes com aquele desconforto de quem passou por algo maravilhoso, mas não sabe o que é, onde fica, como chegar novamente ali, mas sabe que há pistas brilhantes no caminho. E são essas imagens, sons, palavras, que ficam na nossa cabeça, como a poeira de estrelas da qual são feitos os nossos sonhos e as nossas criações futuras. Num universo onde tudo é notícia, o desafio já não é promover o acesso à informação, mas selecioná-la de forma inteligente. A Revista OOH! é uma nave que suavemente deslizará por muitos assuntos, sem parar, sem deter-se para o mergulho profundo que o leitor, nosso querido ‘oohnauta’, terá que empreender por conta própria em territórios que vão muito além da revista. Não temos a expectativa de reinventar a roda. Tudo o que você verá por aqui poderia ser encontrado em qualquer lugar, bastando procurar direito. E muito do que você verá talvez nem esteja disponível ainda para o grande público, não nos moldes tradicionais do que se espera encontrar numa revista de arte: boa parte do nosso conteúdo é garimpada virtualmente nas redes sociais, esta nova Caixa de Pandora, onde o belo e o terrível convivem, não sem atrito, mas certamente com grande poder de mistura entre si. O formato não é novo – nem quer ser – e prioriza uma conversa franca, sem mediadores, sem pausa para propaganda, num círculo virtuoso de informação relevante e descomplicada, plural, como num bate-papo entre intelectuais, atores, diretores, pintores, arquitetos, fotógrafos, cineastas, enfim, entre curiosos em geral, mas com o impacto da vertigem: aqui nada se explica. Sentir a revista é tarefa do leitor, do observador. As edições (se houverem, queiram os deuses e quem sabe quais outras forças ocultas) serão trimestrais, o conteúdo publicado não precisa ser inédito, e a partir de cada número publicado a revista como um todo fica disponível para leitura e compartilhamento gratuito, criando um senso de valor agregado aos autores escolhidos para compor este panorama, que devolve ao experiente formador de opinião e ao neófito promissor em sua área de atuação o valor perdido nas relações onde o dinheiro compra o talento e o reduz a mera mercadoria. O conceito gráfico da revista é simples e direto: branco, limpo, dando ênfase ao conteúdo na linha das publicações da Dinamarca, Suécia e Japão, clara inspiração deste projeto. As páginas não são numeradas, reforçando a circularidade dos assuntos, numa proposta de fazer o leitor adiantar ou retroceder a leitura como desejar, e, sobretudo fazer suas próprias


anotações mentais e físicas, definir caminhos, percursos, alternativas, ideias. Ao longo desta publicação passearemos por paisagens tão diversas quanto interessantes, desafiando você a conhecer melhor e saber mais, usando o nosso trampolim, digo, nossa revista, como ponto de partida para saltos maiores, mais ousados, e definitivamente particulares. A novidade está em juntar essas coisas no mesmo lugar, tirando-as do seu nicho original e restrito, para publicá-lo numa revista marginal, não comercial, dando sentido e unidade a um grupo de coisas que, até então, parecia não ter qualquer afinidade, e que talvez nem tenha mesmo, mas ficam lindas sob a insofismável bandeira do caos. Fique atento, há beleza no aleatório. Fique atento, nada é aleatório. Como revista eletrônica (cheia de vontade de ser impressa, mas por você, aos poucos ou de uma vez só, da forma que quiser) a Revista OOH! faz um clipping do mundo ao nosso redor, desejando ser o ponto de partida de uma aventura diferente, bonita, produtiva, instigante, mas sobretudo – é meu dever de editor e curador avisar – sem cinto de segurança e sem passagem de retorno. Boa viagem!

Marcelo Sousa Editor



As Ruínas Circulares Jorge Luis Borges “And if he left off dreaming about you...” (Through the Looking-Glass, VI)

Ninguém o viu desembarcar na unânime noite, ninguém viu a canoa de bambu sumir-se na lama sagrada, mas daí a poucos dias ninguém ignorava que o homem taciturno vinha do Sul e que a sua pátria era uma dessas infinitas aldeias que ficam rio acima, no flanco violento da montanha, onde a língua zenda não está contaminada do grego e onde é rara a lepra. O que é certo e seguro é que o homem pardo beijou a lama, subiu a margem sem afastar (provavelmente sem sentir) as sanguessugas que lhe dilaceravam as carnes e arrastou-se enjoado e sangrando, até ao recinto circular dominado por um tigre ou um cavalo de pedra, que teve outrora a cor do fogo e agora a da cinza. Essa arena é um templo que os antigos incêndios devoraram, que a floresta pantanosa profanou e cujo deus não recebe as honras dos homens. O forasteiro deitou-se sob o pedestal. Só o despertou o sol alto. Verificou sem assombro que as feridas haviam cicatrizado; fechou os olhos pálidos e adormeceu, não por fraqueza da carne, mas por decisão da vontade. Sabia que esse templo era o lugar referido para o seu invencível desígnio; sabia que as árvores incessantes não tinham conseguido estrangular, a jusante, as ruínas de outro templo propício, também de deuses incendiados e mortos; sabia que a sua obrigação imediata era o sono. Por volta da meia-noite acordou-o o grito inconsolável de um pássaro. Marcas de pés descalços, uns figos e um cântaro avisaram-no de que os homens da região lhe tinham espiado com respeito o sono e solicitavam o seu amparo ou temiam a sua magia. Sentiu o frio do medo e procurou na muralha dilapidada um nicho sepulcral e tapou-se com folhas desconhecidas. O desígnio que o guiava não era impossível, se bem que sobrenatural. Queria sonhar um homem: queria sonhá-lo com uma integridade minuciosa e impô-lo à realidade. Este projeto mágico esgotara o espaço inteiro da sua alma; se alguém lhe perguntasse o seu próprio nome ou qualquer pormenor da vida anterior, não seria capaz de responder. Convinha-lhe o templo desabitado e desmantelado, porque era um mínimo do mundo visível; a vizinhança dos lenhadores também, dado que estes de encarregavam de prover às suas necessidades frugais. O arroz e os frutos do seu tributo eram pasto suficiente para o seu corpo, consagrado à única tarefa de dormir e sonhar.


Ao princípio, os sonhos eram caóticos; pouco depois, foram de natureza dialética. O forasteiro sonhava-se no meio de um anfiteatro circular, que era de certo modo o templo incendiado: magotes de alunos taciturnos fatigavam os degraus; as caras das últimas filas pendiam a muitos séculos de distância e a uma altura estelar; mas viam-se com uma precisão absoluta. O homem dava-lhes lições de anatomia, de cosmografia, de magia: os rostos escutavam com ansiedade e tentavam responder com entendimento, como se adivinhassem a importância daquele exame, que deveria redimir um deles da sua condição de vã aparência e o interpolaria no mundo real. O homem, no sonho e acordado, considerava as respostas dos seus fantasmas, não se deixava enganar pelos impostores, adivinhava em certas perplexidades uma inteligência crescente. Procurava uma alma que merecesse participar no universo. Ao cabo de nove ou dez noites compreendeu com certa amargura que nada podia esperar dos alunos que aceitavam passivamente a sua doutrina, mas sim dos que arriscavam, às vezes, uma contradição razoável. Os primeiros, embora dignos de amor e de afeição, não podiam elevar-se a indivíduos; os últimos preexistiam um pouco mais. Uma tarde (agora também as tardes eram tributárias do sonho, agora só estava acordado umas horinhas ao amanhecer) despediu para sempre o vasto colégio ilusório e ficou apenas com um único aluno. Era um rapaz taciturno, azedo, desordeiro às vezes, de feições afiladas que repetiam as do seu sonhador. A brusca eliminação dos seus condiscípulos não o desconcertou por muito tempo; os seus progressos, ao fim de poucas lições particulares, conseguiram maravilhar o mestre. No entanto, aconteceu a catástrofe. Um dia o homem emergiu do dono como de um deserto viscoso, fitou a vã luz da tarde que começou por confundir com a da aurora, e compreendeu que não tinha sonhado. Durante essa noite toda e todo o dia, abateu-se sobre ele a intolerável lucidez da insônia. Quis explorar a floresta, extenuar-se; só a custo conseguiu pela cicuta uns quantos lampejos de sono fraco, riscados fugazmente por visões de tipo rudimentar: inaproveitáveis. Quis voltar a reunir o colégio e mal articulou umas breves palavras de exortação, logo este se deformou e se desfez. Na sua quase perpétua vigília, lágrimas de cólera queimavam-lhe os velhíssimos olhos. Compreendeu que a tarefa de modelar a matéria incoerente e vertiginosa de que se compõem os sonhos é a mais árdua a que se pode entregar um homem, embora penetre todos os enigmas da ordem superior e da inferior: muito mais árdua que tecer uma corda de areia ou que cunhar o vento sem cara. Compreendeu que era inevitável um fracasso inicial. Jurou esquecer a enorme alucinação que o desencaminhara ao princípio e procurou outro método de trabalho. Antes de experimentá-lo, consagrou um mês a recuperar as forças que lhe gastara o delírio. Abandonou toda a premeditação de sonhar, e quase a seguir foi capaz de dormir um razoável bocado do dia. As raras vezes que sonhou durante esse período, não ligou aos sonhos. Para retomar a tarefa, esperou que o disco da Lua ficasse perfeito. Depois, à tarde purificou-se nas águas do rio, adorou os deuses planetários, pronunciou as


sílabas lícitas de um nome poderoso e adormeceu. Quase imediatamente, sonhou com um coração a bater. Sonhou-o ativo, quente, secreto, do tamanho de um punho, de cor escarlate na penumbra de um corpo humano ainda sem cara nem sexo, com minucioso amor sonhou-o durante catorze lúcidas noites. Noite a noite, percebia-o com uma evidência cada vez maior. Não o tocava: limitava-se a testemunhá-lo, a observá-lo, talvez, e corrigi-lo com o olhar. Percebia-o, vivia-o, de muitas distâncias e de muitos ângulos. Na décima quarta noite roçou a artéria pulmonar com o dedo indicador e a seguir o coração todo, por fora e por dentro. O exame deixou-o satisfeito. Deliberadamente não sonhou durante uma noite; depois, tornou a pegar no coração, invocou o nome de um planeta e empreendeu a visão de outro dos órgãos principais. Em menos de um ano chegou ao esqueleto, às pálpebras. O inumerável cabelo foi talvez a tarefa mais difícil. Sonhou um homem inteiro, um mancebo, mas este não se levantava nem falava nem podia abrir os olhos. Noite após noite o homem sonhava-o adormecido. Nas cosmogonias gnósticas, os demiurgos amassam um encarnado Adão que não consegue pôr-se de pé; tão inábil, tosco e elementar como esse Adão de pó era o Adão de sonho que as noites do mago tinham fabricado. Uma tarde, o homem destruiu quase toda a sua obra, mas arrependeu-se, (Mais lhe valeria que a tivesse destruído.) Depois de ter esgotado os votos aos nomes da terra e do rio, caiu de joelhos aos pés da imagem que talvez fosse um tigre e talvez um potro, e implorou o seu desconhecido socorro. Nesse crepúsculo, sonhou com a estátua. Sonhou-a viva, trêmula: não era um atroz bastardo de tigre e potro, mas ao mesmo tempo essas duas criaturas veementes e também um touro, uma rosa, uma tempestade. Este múltiplo deus revelou-lhe que o seu nome terrestre era Fogo, que nesse templo circular (e noutros iguais) lhe tinham prestado sacrifícios e culto e que ele magicamente animaria o fantasma sonhado, de modo que todas as criaturas, salvo o próprio Fogo e o sonhador, o pensaram um homem de carne e osso. Ordenou-lhe que, depois de instruído nos ritos, o enviasse para outro templo desmantelado cujas pirâmides persistem a jusante do rio, para que alguma voz o glorificasse naquele edifício deserto. No sonho do homem que sonhava, o sonhado acordou. O mago executou as ordens. Consagrou um prazo (que no fim durou dois anos) para lhe descobrir os arcanos do universo e do culto do fogo. Intimamente, custava-lhe separar-se dele. O pretexto da necessidade pedagógica dilatava dia após dia as horas dedicadas ao sonho. Também refez o ombro direito, porventura deficiente. Às vezes inquietava-o uma impressão de que tudo aquilo já tinha acontecido… Em geral, os seus dias eram felizes; ao fechar os olhos pensava: Agora vou estar com o meu filho. Ou então, mais raramente: O filho que gerei espera por mim e não existirá se eu não for ter com ele.


Gradualmente, lá o foi habituando à realidade. Uma vez mandou-o colocar uma bandeira num píncaro distante. No outro dia, flutuava a bandeira no cume. Tentou outras experiências análogas, cada vez mais audaciosas. Compreendeu com um certa amargura que o seu filho estava pronto para nascer – e talvez até impaciente. Nessa noite beijou-o pela primeira vez e enviou-o para o outro templo cujos despojos branqueavam rio abaixo, a muitas léguas da inextricável floresta e de pântanos. Mas antes (para que ele nunca soubesse que era um fantasma, para que se julgasse um homem como os outros) infundiu-lhe o esquecimento total dos seus anos de aprendizagem. A sua vitória e a sua paz ficaram turvados pelo desgosto. Nos crepúsculos da noite e da madrugada, prostrava-se diante da figura de pedra, talvez imaginando que o seu filho irreal executava rito idênticos, noutras ruínas circulares, rio abaixo; de noite não sonhava, ou sonhava como o fazem todos os homens. Apercebia-se com certa palidez dos sons e formas do universo: o filho ausente alimentava-se dessas diminuições da sua alma. O desígnio da sua vida fora preenchido; o homem persistiu numa espécie de êxtase. Ao fim de um tempo que certos narradores da sua história preferem calcular em anos e outros em lustros, à meia-noite acordaram-no dois remadores: não conseguiu ver as caras deles, mas falaram-lhe de um homem mágico num templo do Norte, capaz de andar sobre o fogo sem se queimar. O mago lembrouse de repente das palavras do deus. Lembrou-se de que, de todas as criaturas que compõem o globo, o fogo era a única que sabia que o seu filho era um fantasma. Esta recordação, que o descansou ao princípio, acabou por atormentá-lo. Receou que o seu filho meditasse nesse privilégio anormal e descobrisse de qualquer modo a sua condição de mero simulacro. Não ser um homem, ser a projeção do sonho de outro homem, que humilhação incomparável, que vertigem! Qualquer pai se interessa pelos filhos que procriou (que permitiu) numa simples confusão ou na felicidade; é natural que o mago temesse pelo futuro daquele filho, pensando entranha a entranha e feição a feição, em mil e uma noites secretas. O fim das suas reflexões foi brusco, mas anunciaram-no alguns sinais. Primeiro (ao cabo de uma longa seca) uma remota nuvem numa colina, leve como um pássaro; a seguir, para os lados do Sul, o céu com a cor rosada das gengivas dos leopardos; depois as fumaradas que enferrujaram o metal das noites; depois a fuga pânica dos bichos. Porque se repetiu o que acontecera há muitos séculos. As ruínas do santuário do deus do fogo foram destruídas pelo fogo. Numa madrugada sem pássaros, o mago viu abater-se sobre as paredes o incêndio concêntrico. Por um instante, pensou refugiar-se nas águas, mas logo compreendeu que a morte vinha coroar a sua velhice e absolvê-lo dos seus trabalhos. Caminhou ao encontro dos círculos de fogo. Estes não morderam a sua carne, acariciaram-no e inundaram-no sem calor e sem combustão. Com alívio, com humilhação, com terror, e compreendeu que ele próprio também era uma aparência, que outro estava a sonhá-lo.


Mercado Vintage


Paulo Leminski


Andy Warhol


Ferreira Gullar

MADRUGADA Do fundo de meu quarto, do fundo de meu corpo clandestino ouço (não vejo) ouço crescer no osso e no músculo da noite a noite a noite ocidental obscenamente acesa sobre meu país dividido em classes.


Tristán Nigro Estou lá agora, só porque lembrei esses caminhos. Aqui estou pousado na aba de uma lembrança que voou. Cá me encontro no perdido momento entre a foto e o fato. Note, antes do 'click' do dedo do fotógrafo na máquina que ali não está, um teto-chão de nuvens desenrola o matiz do retrato: rege o contrato sobre as almas que explodem de alegria ou implodem-se com calma, que vivos ou mortos, de fato, somos todos fetos.

O que é mais real, pra você: O céu ou o chão? O olho que vê o prédio ou a própria construção?


Roberto Pinetti


Jerry Liu



Prometheus: - 'Graças a mim, os homens não mais desejam a morte.' Coro das Ninfas: - 'Que remédio lhes deste contra o desespero?' Prometheus: - 'Dei-lhes uma esperança infinita no futuro.'

[Prometeu Acorrentado, de Ésquilo. Ano 5 A.C.] [Tradução de J.B. de Mello e Souza, 2005. Ebooks Brasil]


Ferreira Gullar

NÃO HÁ VAGAS O preço do feijão não cabe no poema. O preço do arroz não cabe no poema. Não cabem no poema o gás a luz o telefone a sonegação do leite da carne do açúcar do pão O funcionário público não cabe no poema com seu salário de fome sua vida fechada em arquivos. Como não cabe no poema o operário que esmerila seu dia de aço e carvão nas oficinas escuras - porque o poema, senhores, está fechado: “não há vagas” Só cabe no poema o homem sem estômago a mulher de nuvens a fruta sem preço O poema, senhores, não fede nem cheira.


Julie Andrews





Demétrios Galvão no jardim dos verbos indefinidos i nomes anônimos nos corpos dos angicos brancos : reticências abissais como relâmpagos perdidos dentro de interrogações meridionais .

ii descascar o casulo que contêm abismos quânticos

para comer o pesadelo das borboletas catatônicas


com a boca invisível da alma .

iii na vila dos morcegos a 3ª pessoa depois do ninguém esconde-se atrás de metáforas obscuras : escadas sob a maré levam ao ninho dos peixes voadores .

iv no jardim do verbo indefinido hecatombes constroem flores de urânio : o vento contém ecos subterrâneos .


Emma Parker




Felipe Stefani A CATEDRAL SUBMERSA (d’aprés Mallarmé) De uma imprecisão sonora o arco de um pássaro baila no ar da tarde. Dos degraus de uma estética vasta a dança primordial de um poema na leveza que antecede a arte. O poema emerge dessa amplidão migrante, de um transbordar que navega e busca em si mesmo o seu mar. Trai o reino em silêncio e reverbera em liberdade o acaso do seu gesto.



Beatriz Bajo PÃO dias de trigo são mastigados com os dentes insanos das tardes quentes como o despetalar dos ossos, quase roídos quando há mais esconderijos do que óculos escuros o olhar é um grão a ser colhido no seio do solo, no sol do futuro cada mordida no dia transfigura-se em amarelo maduro




Marcelo Sousa Impublicados Republicáveis

Pepe Mujica A GRANDE ENTREVISTA QUE NÃO SAIU

Não sei se isso é sorte ou azar: conseguimos entrevista por email (e depois um breve colóquio em Rincón del Cerro) com o presidente José Mujica, do Uruguai. Enviamos quinze perguntas, na expectativa de receber ao menos dez respostas. Recebemos todas. Ótimo! Passamos por dois assessores e meia dúzia de aspones, e conseguimos sobreviver com bom resultado. Mas aí, ao revisar o conteúdo pra fechar a matéria, o desconforto... Era tudo muito interessante, as respostas muito bem articuladas e sinceras como esperávamos, mas aquela sensação de 'déja vu' não me deixava prosseguir. Então fui ao oráculo, digo, ao Google. Pesquisei uma dezena de entrevistas de Mujica em vários idiomas, e para o meu desespero todas as perguntas e respostas são muito parecidas. Mujica é um homem simples, sábio, reservado, mas bonachão, que comanda o Uruguai como quem toca um negócio de família. E isso é muito bom, acreditem! Esse é o segredo do sucesso das primeiras entrevistas, e o fracasso de todas as posteriores. José Alberto Mujica Cordano, ou Pepe Mujica, não é um esquerdista


típico. Ex-guerrilheiro tupamaro, está longe de ser autoritário, defende a meritocracia, a economia de mercado, odeia assistencialismos – mas os usa por achar que ainda são necessários - e não olvida as questões sociais, engajando grandes esforços para solucioná-las. O presidente não é unanimidade em seu país, mas parece ser fora dele. O Uruguai é pequeno, mas não é uma republiqueta. Longe disso. Lá vive-se bem, com um conceito diferente do viver bem que temos por aqui. Há ricos e pobres, mas essa diferença nos pareceu menos pungente, para o bem e para o mal.


O presidente, um velhinho de boina, fala mansa e olhos meio chorosos, não acredita em polêmicas e factóides, não alimenta sonhos utópicos, não promete colocar seu país no G8 ou no G20, e aparentemente em nenhum outro grupo, pois prioriza o bem-estar social real em detrimento da mera "sensação de melhoria" que muitos aplaudem por aqui; e acha exagerado que a imprensa vizinha o veja como um sujeito 'sui generis' por suas posições políticas, sociais, econômicas, e até religiosas. Mujica tem batalhado contra a indústria tabagista, e instou o presidente americano Barack Obama a fazer o mesmo, rebatendo as críticas quanto a sua política de controle da venda e do consumo de maconha. Ele realmente acredita que organizar o acesso pode resolver o problema do tráfico e da violência. Sobre isso, apenas o tempo poderá dizer. Mas as frases de Pepe Mujica se tornaram “trending topic” no mundo. Muitas delas inventadas, outras parecendo que foram... “Esta velha é pior que o caolho”. A insólita frase foi disparada pelo presidente uruguaio em alusão à presidente argentina Cristina Kirchner e seu marido, morto em 2010, o ex-presidente Néstor Kirchner, que tinha o estrabismo (e não era propriamente “caolho”) como uma de suas mais famosas marcas físicas. Mujica, conhecido por seus comentários sinceros – geralmente fora de protocolo – fez estas declarações durante uma reunião com o prefeito da cidade uruguaia de Florida e outros políticos em 2013. Mas, não percebeu que os microfones estavam ligados e que a imprensa reunida no lugar ouviu suas observações sobre a dificuldade nas relações do Uruguai com a Argentina. “O caolho era mais político… esta velha é mais teimosa”, acrescentou Mujica em relação ao casal Kirchner. O presidente uruguaio também indicou que sempre que precisa resolver algo com a Argentina precisa pedir ajuda ao Brasil. “Não vou dar bola nem percorrer o mundo esclarecendo coisa alguma”, disse Mujica aos jornalistas minutos depois, quando soube que sua frase havia sido ouvida. Mujica adora um bom vinho, mas bebe pouco, quase nada. Vive como sempre viveu, e lembra sem mágoa (mas com pesar) dos anos em que esteve preso, tendo como único amigo um rato de esgoto e algumas formigas. São suas palavras: “Se você fica sozinho por muito tempo, e recebe a visita de qualquer criatura ínfima, você vai saber valorizar essa vida. Se você passa muito tempo em silêncio, ouvindo, percebendo, auscultando, vai perceber que até as formigas tem algo a dizer... e nós precisamos ouvir, pra não enlouquecer.” Pepe é fã de churrasco, e de vez em quando fuma um cigarrinho feito com palha que ele mesmo prepara. Palha mesmo. Diz estar velho demais para as drogas. Mora numa casa simples, mas confortável, com alguns cães e gatos, uma pequena lavoura, um trator, uma lambretta e um fusca azul. Quando fica doente, vai ao hospital público da província e enfrenta a fila como todos os outros uruguaios. Eis aí um presidente “sui generis”, como os próprios uruguaios gostam de dizer, algumas vezes criticando, outras elogiando.


O presidente gosta de passear pela internet, mas odeia responder o correio eletrônico: única "mordomia" que se deixou ter, um secretário para esse tipo de coisas... José Mujica, conhecido em seu país simplesmente como “Pepe”, defendeu a descriminalização da maconha em seu país, mas diz que para tudo há ordem, e há lei. Tudo muito interessante pra nós, mas tão batido para ele (e para o resto dos uruguaios) que as respostas acabam sendo as mesmas, como um pai acaba respondendo ao filho mil vezes a perguntas como 'de onde vêm os bebês' ou coisa parecida. As primeiras respostas são desconcertantes, maravilhosas, mas após responder tantas vezes às mesmas questões com palavras diferentes, corre-se o risco de ter respostas medianas, ou enfadadas, pra não dizer enfadonhas.

Não crê no conformismo crônico de que reformando o capitalismo a sociedade tenha muito futuro. Propõe caminhar no sentido de construir outra coisa, evitando-se, no entanto, a colisão "porque o choque é sacrifício humano". Deixa claro: “Não é possível substituir as forças produtivas de um dia para o outro, nem em 10 anos. Ao mesmo tempo em que lutamos para transformar o futuro, há que se fazer andar o velho porque o povo tem de viver". Não crê que o mais importante, no processo de mudanças, sejam as relações de propriedade. "O fundamental são as transformações culturais, e estas levam muitíssimo tempo". Um claro acento gramsciano, assimilado nos seus 15 anos de cárcere, 78 anos de vida. "Aqueles que como nós não podemos comungar filosoficamente com o capitalismo estamos cercados de capitalismo em todos os usos e costumes de nossas vidas, de nossas sociedades" - constata Mujica. Ensina aos pares de esquerda: "O pensamento de esquerda está se refugiando na América Latina. Só não cremos que


podemos tocar o céu com as mãos, nem que construir uma sociedade mais justa e mais livre seja coisa de uma só geração. O desafio é bravo. Há quem ainda siga com aquilo que dizíamos nos anos 50 do século passado. Não assimilaram o que se passou no mundo e por que se passou". Resta a amplitude da política, a paciência da política, transformar o mundo trincheira por trincheira. A mídia sugou o velho Pepe Mujica o máximo que podia, deixando o homem simples e tranquilo sem ter mais novidades a contar. Mil desculpas, presidente! Vamos guardar a matéria para a posteridade, nos nossos arquivos não publicados. Mujica, o mestre, saberá nos perdoar, aliás, algo me diz que até responderia assim, se fosse menos cortês: - Presidente, podes conceder uma entrevista a uma revista brasileira? - Filho, o que quiseres saber, procure no Google. Eu assino embaixo.


Andy Warhol


Demétrios Galvão PARA UMA CRIATURA ENCANTADA vol. 5 hoje o carteiro entregou infâncias na casa do poeta. era cedinho quando inaugurou existência cremosa fez apostas e arremessou expectativas gastou verbo edificando mansidão – seu perfume é como o som perdido que enche a casa. é de uma timidez imperial carrega um mapa de 2 pintores – encontro difícil de avaliar sabe um pouco sobre receitas, vive pela cozinha entre temperos – seu mundo é vocabulário em aprendizagem. não manipula números, mas inventa sorrisos particulares desde muito cedo aprendeu a domesticar cactos provinciano é seu esconderijo infantil: o casulo mimético – seu rosto é lua-cheia-de-poesia. não tem tias ou avós, pertence a uma família incomum do pai, herdou os sons graves e, da mãe, o gosto pelo efêmero: são gestos refinados e aconchegantes – sua herança é um limiar tênue na percepção. é sempre mais afável pela manhã momento em que enterra segredos em cofres vigiados por bromélias e ensaia uma virgindade aristocrática sem tradução – sua beleza é violência estalando pelas praças luminosas.

em seu canto arrebata o sentimento das palavras e lança: “a felicidade é uma invenção macia”.



Marcílio Godoi TRAMA o brim brinca, a seda se dá. o voal voa ao ninho o linho o ensaboa. a lã se lança ao veludo com tudo. musselinas e gabardinas passeiam, meninas. as cambraias se espraiam e mesmo na lona algo dão. e você vem à tona por panos quentes em meu coração?


Julie Sarloutte


Eric Lafforgue





Marcos Caiado

CRテ年ICA DE UM AMOR LOUCO

fomos desfeitos um pelo outro.


Catherine Lavigne




Pedro Castello

CURARE procuras, procuras, procuras curas para curares todos os males: curare acurado veneno paralisa dores arranca tua carranca procuras, procuras, procuras curas mas, se ĂŠ a sĂŠrio que envidas vida torna tuas chagas sagas encara tuas escaras tua face crua claramente ex-cura


L´Arte Lombarda di Milano

“Gatos Instruídos Na Arte De Captura Do Rato Por Uma Coruja” Ano 1700. Óleo sobre Tela. 110.5 x 83,5 cm.


Christiana Nóvoa

O MORCEGO como um anjo cego pela claridade de outras alturas mais amenas eu me apego à gravidade a duras penas



Ricardo Domeneck

"¿Tú también crees que la vanguardia fue un afrodisíaco para la tradición?"


Dilka Bear




Daniela Reetz

Nem todo sorriso é azul. Há os que permanecem depois dos anjos. Os rosas e os arpejos acordam em minha pele. Os cinzas me esqueceram um copo de gelo. Não há sinfonia de estrelas sem vermelho. As notas vibram nas cordas tensionadas sob teus dedos. De cor. Teu timbre me escolhe. Nem todo azul sorri. Há os que viram céu. Púrpuras. Violetas. Magenta. Tonalidades entre o infinito e o alado. Lúmen. Alúvio. Luminárias. Só tua voz faz música.



Christiana N贸voa

O TROPEL

cavo intervalos em tempos novos como cavalos pisando em ovos



Tristán Nigro Impublicados Republicáveis

A estranha história real de Alice no País das Maravilhas “Como um dos maiores livros infantis de todos os tempos pode ter sido fruto de uma relação doentia...” Quando Lewis Carroll escreveu “Alice no País das Maravilhas” em 1865, ele provavelmente não imaginou que o seu trabalho iria reverberar ao longo do tempo para se tornar um ícone cultural. Sua obra germinou homenagens inspiradas como ilustrações pouco conhecidas de Salvador Dalí e adaptações cinematográficas, como a última de Tim Burton , foi leitura formativa para o pioneiro da tecnologia Alan Turing , e permanece como um dos mais amados livros infantis de todo o mundo. Aliás, uma das abordagens mais interessantes do livro é o tema de “Alice no País das Maravilhas e Filosofia: Cada Vez Mais Curiosos”, delicioso e esclarecedor livro de Blackwell que discorre sobre Filosofia e Cultura Pop, que já havia nos dado pérolas como ‘Arrested Development’ e ‘Filosofia: Um Grande Erro’. A antologia de ensaios pede a dezessete pensadores contemporâneos para examinar o clássico de Lewis Carroll através da lente de Filosofia, explorando temas tão diversos como drogas, sonhos, lógica, sexo, percepção, escapismo, além de uma viagem sobre o que a Rainha Vermelha pode nos ensinar sobre estratégia nuclear. Meu ensaio favorito, intitulado "Seis coisas impossíveis antes do café da manhã," vem no capítulo sobre lógica. Nele, George A. Dunn e Brian McDonald escrevem: “Quando se trata das curiosas condições do País das Maravilhas, os esforços de Alice para fazer sentido são um pagamento absurdo e com juros. Mas isso é porque o absurdo é apenas provisório, apenas na superfície, sob a qual um investigador diligente como Alice é capaz de discernir as perfeitamente inteligíveis, embora inesperadas, regras de causa e efeito.” [...] “Uma vez que Alice aprendeu quais são essas regras, ela pode contar com elas para operar com confiança (nem sempre com segurança, é verdade) sobre como as leis


da natureza agem em nosso mundo. Elas só parecem sem sentido para nós, porque a nossa experiência do mundo é na superfície e, deste lado do espelho estamos sobrecarregados com uma série de preconceitos sobre o que pode e o que não pode, por exemplo, ser feito de maravilhoso tomando poncho quente, ou comendo cogumelos selvagens.” [...] “Devemos dar todo crédito a Alice, que não hesita por um momento em descartar seus preconceitos quando se depara com situações que patentemente deveria refutar. Ao fazer isso, ela exibe uma prontidão admirável a encontrar a realidade em seus próprios termos, um elenco receptivo de espírito que muitos filósofos incluiriam entre as mais importantes "virtudes intelectuais" ou traços de caráter que auxiliam na descoberta da verdade.”

Ilustração de “Alice in Quantumland: Na Allegory In Quantum Physics”, do cientista Robert Gilmore


Os demais ensaios em ‘Alice no País das Maravilhas e Filosofia: Cada Vez Mais Curiosos’ oferecem insights sobre tudo, desde contratos sociais para o pós-feminismo até falácias lógicas, abrangendo escolas de pensamento tão variadas como Aristóteles, Sócrates, Hobbes, Wittgenstein e Derrida. Como a duquesa observou atentamente, "tudo tem uma moral, mas só se você quiser encontrá-la." Esse é o ponto de partida para estudar um dos aspectos mais obscuros da personalidade de Lewis Carroll: sua fixação por crianças, e sua relação com a menina Alice, que resultou num dos livros mais lidos de todos os tempos.


Em 4 de julho de 1862, o jovem matemático Charles Dodgson , que viria a ser mais conhecido pelo pseudônimo literário de Lewis Carroll, seguiu em uma agradável travessia de barco o com um pequeno grupo de amigos, indo de Oxford para a cidade vizinha de Godstow, onde fariam um piquenique com chá à margem do rio. Junto com Carroll estava o reverendo Robinson Duckworth e três meninas - Edith (8 anos), Alice (10 anos), e Lorina (13 anos) - irmãs de outro amigo seu, Harry Liddell, que não pôde ir ao passeio porque teve de trabalhar. Encarregado de entreter as jovens, Dodgson imaginou uma história sobre um mundo fantástico cheio de personagens estranhos, e nomeou sua protagonista de Alice. Sabe-se que Lewis Carroll continuou a história tempos depois, em visitas regulares que fazia ao seu amigo Harry. E foi a pequena Alice Liddell quem mais se interessou, pedindo ao escritor que transformasse a história em livro, para que ela pudesse mostrar às suas amiguinhas e ler com elas. Dogson, reservado, demorou a atender ao pedido, mas depois cedeu, e entregou à menina um manuscrito sob o título de “As Aventuras de Alice Under Ground. O historiador Martin Gardner escreve em “The Annotated Alice” originalmente publicado em 1960 e revisto em uma edição definitiva em 1999: “Uma longa procissão de encantadoras meninas (sabemos isso porque o escritor fotografou muitas delas) passeou pela vida de Carroll, mas ninguém jamais tomou o lugar de seu primeiro amor, Alice Liddell. "Tive algumas dezenas de amigos-criança desde o seu tempo", ele escreveu para ela após o casamento, "mas eles têm sido uma coisa bem diferente.”

Na foto acima, Alice foi vestida de mendiga por Carroll, para essa fotografia feita em 1858


Os manuscritos de Lewis Carroll também foram objeto de estudo para George MacDonald, que escreveu a seguinte anotação: “Ele costumava ler para os seus próprios filhos com um fascínio notável, e acreditava que Alice era sua obra prima. Tanto que se debruçou várias vezes sobre a obra para revisá-la, chegando ao texto final com o nome de ‘As aventuras de Alice no País das Maravilhas’ onde foi adicionada a famosa cena do chá do Chapeleiro Maluco e onde o gato Cheshire ganhou o dobro do tempo na história, comparado com as páginas dedicadas a ele no manuscrito que ele tinha originalmente enviado para Alice Liddell.” Em 1865, John Tenniel ilustrou a história e que foi publicada em sua primeira versão. Gardner relata esta anedota curiosa da colaboração: “Fotos de Tenniel de Alice não são fotos de Alice Liddell, que tinha cabelo escuro cortado curto com franja reta na testa. Carroll enviou Tenniel uma fotografia de Maria Hilton Badcock, outra amiga da criança, recomendando a ele usá-la como modelo. Ao que parece o ilustrador relutou antes de aceitar a mudança, seguindo uma suspeita de que o autor queria despistar certas acusações, ou mesmo causar ciúmes na pequena Alice.” “Mr. Tenniel é o único artista que desenhou para mim, que resolutamente se recusou a usar um bom modelo, e declarou que não precisaria mais de um. Não entendo seus comentários sobre eu sofrer algum problema científico, que ousou até dizer que era matemático, pois segundo ele eu teria dificuldade em considerar variações de simetria, tamanho... Atrevo-me a pensar que ele estava enganado e que por falta de um modelo, ilustrou a minha 'Alice' totalmente fora de proporção, com a cabeça decididamente muito grande e os pés decididamente muito pequenos.” Ao que parece Carroll realmente se apaixonou pela menina, mas não sabemos até que ponto essa dedicação foi em termos práticos. A família de Alice parecia não fazer objeção, apesar dos preocupantes indícios deixados no livro, onde sem grande preocupação há personagens fumando, bebendo álcool, e tendo “bad trips” ou “acid dreams”. Hoje, sabendo detalhes sobre a história, creio que podemos concordar com o ilustrador, que retratou uma menina bonita, mas tratada de forma pouco natural pelos que a cercavam, onde seu rosto enorme simbolizava uma impossibilidade de se esconder desse tratamento, e seus pés pequenos a pouco ou nenhuma habilidade para fugir.


- Como a duquesa observou atentamente: "Tudo tem uma moral, mas só se você quiser encontrá-la."



Victor Heringer

Então, arte. Aquela coisa esquecida atrás da TV, perto da espada-de-são-jorge (contra o mau olhado), embaixo da samambaia. Aquilo que o mendigo da sua rua faz quando não está conversando com os presidenciáveis. Os anos felizes acabaram. Os anos tristes acabaram. Somos a última geração que aproveitará os mimos do mundo moderno. Nossos filhos não herdarão a chuva ácida, a Black Friday, o cartão de ponto nem a bicicleta elétrica. Só o fim nos une. Foi sempre contra o fim que cantamos, escrevemos, pintamos, ∞. Foi sempre contra a morte que erguemos arranha-céus e inventamos o trem. Contra o apocalipse, nossas ilhas utópicas. Contra a morte, nossas árvores genealógicas. Mas as árvores estão com os dias cortados e as ilhas, caras. Acabou a ciranda das revoluções e contrarrevoluções. A morte do indivíduo acabou. Acabaremos juntos. Agora todos sabem como se sentia Augusto dos Anjos.


O tempo já não é uma linha reta. A história deixou de ter futuro linear. Adeus, seta envenenada do Progresso: tiro n’água. Este é tempo líquido, tempo enchente, tempo tudo. A vanguarda, nossa velha amiga, acabou. É hora de tirar (respeitosamente, funeralmente) nossos quepes de ‘vã-guardinhas’, estão abafando nossas cabeças. Só os míopes tentam assumir a dianteira de um tempo que não tem frente. Tempo enchente, tempo tudo. Se nada é novo debaixo do sol, inventar um sol novo de novo. Contra o fim do tempo, aprender a maleabilidade do tempo d’A montanha mágica de Mann, monta magi mann, mo má mann, MOMAMÃ. Todas as poéticas são possíveis. Não haverá mais nada de novo debaixo do sol, tudo está disponível. Dos desenhos nas cavernas ao gif, não há interdições. Salvar tudo, lembrar tudo o que fizemos, a arte no fim do mundo é o domínio público. Amar as digitais engorduradas que deixamos nos objetos, todos os fonemas, todos os ritmos (sobretudo os inumeráveis!). Amar: renovar significado. É uma tarefa impossível, falta tempo para tanto: aí reside a nossa tragédia. (E nem isto é novidade.) Tudo o que foi nosso nos interessa. Os acumuladores, Bispo do Rosário, Horst Ademeit, o espólio perdido de Vivian Maier, os arquivistas, os catadores de papéis, os museólogos, os ratos de sebos, os colecionadores de areia. Abertos à pluralidade das poéticas, sim, mas obrigados a inventar a pluralidade dos modos de vida. No more hippie business: sobrevivência. Momamã, Pachamama. Contra a estagnação de/numa só linguagem. Contra a colonização da língua pelo musgo. Contra a hora marcada para trazer seu amor em três dias. Contra o varejão das almas, do coração e da cabeça. Contra o moinho de gastar gente. Contra a ironia penteadinha, pela flor multipétala do Não que é Sim. Contra toda paródia que se contenta em reciclar o que devia ser revivido. Contra o pop paralítico, pelo popapocalíptico. Contra o catastrofismo molenga, contra o protagonismo burocrático, contra o derrotismo do derrotado. Momamã, Pachamama se pergunta e se nenhum homem fosse mesmo uma ilha? Momamã, Pachamama. Pelos escritores que não se aguentam no papel. Pelos performadores que não se aguentam no grito. Pelos dionisíacos que não se aguentam no clichê. Pelo etcétera que não se aguenta e vai. Alegria, gente. Coragem. Já está acabando.


RozĂŠlia Medeiros


Redmer Hoekstra


Gregório Duvivier

Erguer antes de tudo uma parede – a parede no caso é importantíssima, pois as janelas só existem sobre paredes, as janelas sobre nada são também nada e não são sequer vistas. Em seguida quebrá-la até fazer nela um grande buraco, não maior que a parede, pois precisamos vê-la, nem menor que seus braços – as janelas sobre as quais não se pode debruçar não são janelas, são buracos. Pronto. Ou quase: agora basta construir um mundo do outro lado da parede, para que possas vê-lo, emoldurado.


Claudia Tonelli

A singeleza (a delicadeza), perdoem-me os “vanguardistas outsiders”, esta acabará por virar transgressão. [Meus olhos andam ávidos por levezas em meio a tempos tão densos.]


Tarsila do Amaral




Elisa Lucinda O MAIOR ESPETÁCULO DA TERRA

O pássaro voa sobre o céu aberto, várias alturas ousadas alçam muitas aves. Algumas, riscando o mar brincam de aeroporto e decolam nas ondas das águas e dos ares. Mas há asas e voar não é perigo; É mais que isso, voar é no corpo do pássaro uma forma de pensamento. Poderia citar todos os animais e seus lugares de existir e tudo seria admissível na linha do seu ir e vir.

Mas o homem não. Sem garantia, se equilibra no fio do seu pensamento, sem que tenha asas, voa, e sem limite de aventura, até da natureza caçoa.

Equilibrista, se apodera dos seus sonhos e de suas inesperadas iscas e vai rebolando no bambolê das pistas. Elabora, passa o mundo em revista, mas seu conteúdo chora, porque tem medo do risco. O risco !


Logo o risco, meu Deus, que é pai de tantas vitórias sobre tantos reclames. Bailarino do arame, homem que se consome no erro crasso da mesquinharia, da mentirosa segurança de que o mundo é sempre reto e as coisas, imutáveis, certinhas e sem alquimias. Mas diante do susto da mutante verdade, se equilibra no andaime que construiu e que sem sua criativa ousadia, jamais existiria.

Trapezistas de trapézios inusitados, nos vemos na mão do destino como se dele não fossemos também autores. Senhoras e senhores da jornada geramos no mundo nossa ninhada e com ela o nosso projeto, nossa luta, porém é certo que nos volta com força bruta o ordinário fato de não pensarmos no que virá depois do nosso simples ato. Porque pertence ao homem a habilidade de ser sujeito transformador, de realizar todo dia o seu show de competência, engolindo o fogo do orgulho, se esquivando do atirador de facas, domando os problemas que rugem podando o pelos da Dona Insegurança, essa mulher barbada.

Mas, respeitável público, o show não pode parar.


Às vezes dói viver, às vezes dá preguiça de continuar, quando nos esquecemos que somos os construtores do tal arame onde andamos quando nos esquecemos que somos o motorneiro, o piloto, o barqueiro, o motorista e o garoto que gira o pião, que chuta a bola, que mira o gol, que gira o leme, que conduz o trem, o diretor e o ator que apresenta este espetáculo. Poderoso é o homem com seus esclarecimentos sobre o evento vida, poderosa é a vida sobre o homem que não a tem esclarecida.

Para o homem basta um dia. Um dia de coragem. Um dia de luz. Uma atitude pode mudar a qualidade do seu trabalho, do seu cotidiano, e da sua história. O seu relógio pode ser o tempo que não desperdiça glórias, liberto de auto-piedades, com faróis que o projetem para além das idades, que o homem arquitete pilares brindando à realidade vindoura, que a chuva de aplausos ou vaias, fertilizem novos frutos seguindo a lógica da lavoura: o que cresceu? o que é que eu faço? o que tenho que molhar sempre? o que é que eu levo? o que é que eu passo? Não disfarço: O homem é o dono do homem


Deus é cúmplice no livre arbítrio do picadeiro desse espaço.

Escolhe o alvo, o salto e os movimentos no desprendimento que precisará para atirar-se nos braços do outro, na confiança no trapezista ao lado. Mágico, com surpresas únicas na cartola, com o suprimento intransferível de ser original e não simples cópia, reprodução, papel carbono de mais um animal, em um segundo ele muda tudo. De lenço para pombas, de pequeno para colossal.

Acrobata, dono do seu corpo no mundo Malabarista, com uma civilização de pratos nas mãos e nos ares, esse homem escolhe a fera: pode levar ética ao circo ou apodrecer preso, como um mico, e sem ela.

Contorcionista, se digladia entre a angústia, o medo, a depressão, a paralisia dos quais


só o seu talento o salvaria e o salvará: Ergue-se então este homem flexível e não mais adia. Ao contrário, se apropria de seus reais valores, suas oportunidades, sua criatividade, sua alegria.

Aqui está o homem: ave rara de todos os céus, soberano sujeito de suas possibilidades, criança sorridente, domador de seus passos e ao mesmo tempo palhaço estendendo seus sublimes braços, tentáculos no universo, sobre a lona dessa esfera, para ser, se quiser, o maior espetáculo da terra.



Claudia Tonelli

Ele não estava em uma caixa. Era um pássaro cinza em minha janela, logo pela manhã, contrastado com o azul quente e causticante de mais um dia quente e causticante. Eu me sentia cinza como as penas daquele pássaro que cantava incessante. Ele, irremediavelmente cinza, estava ali, levando-me sonoridades de um dia novo. Talvez um convite à coragem, talvez um pouso incauto, talvez acaso. E eu, que para não ser cinza, me remedio de formas várias. Tomo pílulas, banhos. Canto mantras. Calo, choro, tento danças. E o pássaro voa e canta, sem saber-se cinza. Tão livre que nem carece de espelhos. Por um momento, invejei o pássaro, eu que me escondo nas cores (às vezes). Sinto-me um tanto farsa. Mas sei que há uma honesta tentativa de riso. Para bom (re)começo, basta.


Allan Sieber


Mercado Vintage


Thamar de Araújo BÚSSOLAS O tempo. Que divido em linhas imaginárias, como Tratados de Tordesilhas. Múltiplos. Os pêndulos, a inalcançarem as guias. Lúcidos. Os ventos, a inalterarem as vistas. Pudicos. Ordinárias, as vias são extensões das minhas sinas. Súbitos, os desejos fingem calmarias. Lúdicos.

[Em meu mar, há explosões todos os dias. Últimos.]


Gregório Duvivier

Receita para um dálmata (ou Soneto branco com bolinhas pretas) Pegue um papel, ou uma parede, ou algo que seja quase branco e bem vazio. Amasse-o até que tome forma de um animal: focinho, corpo, patas. Em cada pata ponha muitas unhas e em sua boca muitos dentes. (Caso queira, pinte o focinho de qualquer cor que pareça rosa). Atrás, na bunda, ponha um fiapo nervoso: será seu rabo. Pronto. Ou quase: deixe-o lá fora e espere chover nanquim. Agora dê grama ao bicho. Se ele rejeitar, é dálmata. Se comer (e mugir), é uma vaca que tens. Tente outra vez.


CĂŠsar Santos







Ana Marques Gastão

VENS DE NOITE NO SONHO Vens de noite no sonho sem pés entre páginas de gasta paciência quando a música findou e teu sorriso se desfez como um grão de pólen. Vens no veneno oculto de meus dias no silêncio dos meus ossos devagar arrastando em queda o nosso mundo. Vens no espectro da angústia na escrita inquieta destes versos no luto maternal que me devolve a ti.


Catarina Nunes de Almeida

EM SEARA ALHEIA O verão não tinha limites. A mulher lidava com a casa pele com pele, andava todos os dias muito de noite, dias e dias de noite na roda dos fetos toda dentro do verão sem nenhum tornozelo de fora. Era o verão em hora de ponta, a mulher arrastava-se dentro da mulher. Os dias só faziam sentido existindo noites, as noites só faziam sentido trincando nêsperas e bordando palavras que dessem sombra no ventre. Uma noite, a mulher bordou a palavra mulher e deitou-se de bruços. Era quase luz quando a primeira letra se ergueu. E sem que houvesse tempo de escolher canção e vinho à altura dessa primeira letra saiu o corpo íngreme arado, torrencial, do que havia de ser o anjo.


Roman Shatsky


Pablo Neruda ALGUNAS BESTIAS Era el crepúsculo de la iguana. Desde la arcoirisada crestería su leengua como un dardo se hundía en la verdura, el hormiguero monacal pisaba con melodioso pie la selva, el guanaco fino como el oxigeno en las anchas alturas pardas iba calzando botas de oro, mientras la llama abria cándidos ojos en la delicadeza del mundo lleno de rocio. Los monos trenzaban un hilo interminablemente erótico en las riberas de la aurora, derribando muros de polen y espantando el vuelo violeta de las mariposas de Muzo Era la noche de los caimanes, la noche pura y pululante de hocicos saliendo del légamo, y de las ciénagas soñolientas un ruido opaco de armaduras volvía al origen terrestre. El jaguar tocaba las hojas con su ausencia fosforescente, el puma corre en el ramaje como el fuego devorador mientras arden en él los ojos alcohólicos de la selva. Los tejones rascan los pies del río, husmean el nido cuya delicia palpitante atacarán con dientes rojos. Y en el fondo del agua magna, como el círulo de la tierra, está la gigante anaconda cubierta de barros rituales, devoradora y religiosa.



Vicente Huidobro Arte Poética Que el verso sea como una llave Que abra mil puertas. Una hoja cae; algo pasa volando; Cuanto miren los ojos creado sea, Y el alma del oyente quede temblando. Inventa mundos nuevos y cuida tu palabra; El adjetivo, cuando no da vida, mata. Estamos en el ciclo de los nervios. El músculo cuelga, Como recuerdo, en los museos; Mas no por eso tenemos menos fuerza: El vigor verdadero Reside en la cabeza. Por qué cantáis la rosa, ¡oh Poetas! Hacedla florecer en el poema ; Sólo para nosotros Viven todas las cosas bajo el Sol. El Poeta es un pequeño Dios.


Chico Buarque

E do amor gritou-se o escândalo Do medo criou-se o trágico No rosto pintou-se o pálido E não rolou uma lágrima Nem uma lástima Pra socorrer. E na gente deu o hábito De caminhar pelas trevas De murmurar entre as pregas De tirar leite das pedras De ver o tempo correr. Mas, sob o sono dos séculos Amanheceu o espetáculo Como uma chuva de pétalas Como se o céu vendo as penas Morresse de pena E chovesse o perdão. E a prudência dos sábios Nem ousou conter nos lábios O sorriso e a paixão. Pois transbordando de flores A calma dos lagos zangou-se A rosa-dos-ventos danou-se O leito dos rios fartou-se E inundou de água doce A amargura do mar. Numa enchente amazônica Numa explosão atlântica E a multidão vendo em pânico E a multidão vendo atônita Ainda que tarde O seu despertar.




Marcílio Godoi VINTE ANOS HOJE não estão no álbum escapam às fotografias mesmo a lembrança não pode tudo abrigar. não moram no bilhete dobrado nas palavras mais doces ou quentes nem vão na pedra do anel. não constam dos livros dos registros oficiais se apagaram não se apegaram ao medo. não estão na dispensa no sal das receitas nos vinhos, carinhos líquidos, no lençol. não estão em contratos nos segredos nas viagens ao Peloponeso não ficaram por lá. nossas mais belas histórias de amor habitam o instante fugaz de nosso último beijo. ali, sim, está guardado reunido, renovado, afirmado na fragilidade dessa caixa invisível, o agora em que enlaçados bailamos na direção inexata do futuro.


Jane Birkin




Tristán Nigro

LUCIDEZ A sombra mesmo quando iluminada é sombra ainda. Quando há luz sobre ela sua forma se esconde mas não finda.


Akitaka Ito







Amado Nervo

COBARDÍA Pasó con su madre. ¡Qué rara belleza! ¡Qué rubios cabellos de trigo garzul! ¡Qué ritmo en el paso! ¡Qué innata realeza de porte! ¡Qué formas bajo el fino tul... Pasó con su madre. Volvió la cabeza: ¡me clavó muy hondo su mirada azul! Quedé como en éxtasis... Con febril premura, «¡Síguela!», gritaron cuerpo y alma al par. ...Pero tuve miedo de amar con locura, de abrir mis heridas, que suelen sangrar, ¡y no obstante toda mi sed de ternura, cerrando los ojos, la dejé pasar!


Design de Interiores







Roberval Pereira

NUDEZ Não quero ser simples. Uma flor não é simples: é uma flor. E não cede.



Pare. Pense. Procure no Google.


Molotov DYI



Lila Jang





Marcelo Sousa [Rio de Janeiro, 04 de julho de 2014 20h:41m]

Há necessidade de repetir e repetir, e reviver, e remoer, e mastigar novamente essas palavras feitas de açúcar e mágoa. Conto de memória; o que é reinventar versões já reeditadas de fatos que, na foto, dificilmente podem ser ignorados. [É tudo verdade, mas nem tudo aconteceu.]

(...)

Naquela manhã em Vladivostok perdi mais do que tinha, e desde então segui adiante em vertiginosa carreira: descalço, leve, levíssimo das coisas deste mundo, mas com o peso de universos interiores sobre minhas costas marcadas.

Vi outonos coloridos rastejando sobre montes calvos. Surpreendi verões irascíveis escalando a crista de ondas geladas. Mas as primaveras e os invernos, trago-os dentro de mim.

As rosas de Salamanca, tímidas e murchas, espalhadas por todos os canteiros que ladeiam a metrópole ainda são infinitamente mais vermelhas que as daqui.

Nas coxas das negritas de Havana enrolei o fumo de uma utopia perfumada com Cravo da Índia, Alecrim de Lyon, Lima da Pérsia e o mel de vulvas noviças molhadas pelo orvalho do Caribe.


Mas onde encontrar margaridas mais morenas e palmeiras assim invencíveis? Entre os carros pretos de Dublin vi passar as bicicletas vermelhas mais bonitas emolduradas pela crueza os rastros de pólvora e os estilhaços de vida e neve, de vida e neve, de vida e neve. As olivas gigantes da Grécia, na planície salpicada de verdes de todos os tons azeitam o fim da tarde com seu perfume agridoce. Os olhos azuis das loirinhas de Praga refletem casarios velhos como o bem e o mal do mundo sob telhados ungidos de prata, lápis-lazúli e ocre. E o sexo perfumado de âmbar-gris numa viela onde os gatos reinavam absolutos: pretos, brancos, cor de mostarda, sal-e-pimenta, todos devidamente pardos sobre os telhados de Turim. Mas onde encontrar margaridas mais morenas e palmeiras assim invencíveis? No Zaire contei sementes coloridas em cordões cheirando a primavera e suor no colo nu de matronas de peitos murchos e virgens com pele de seda e petróleo. Ouvi o mestre do canto chamar a alvorada sobre os casebres mouriscos onde a meia-lua de pedra vigiava atenta e pesarosa os mendigos invisíveis da bela Marrakesh. Pisei descalço as táboas de madeira rosada do templo onde dezenove mil Budas sorriam displicentemente e serenamente balbuciavam verdades há muito tempo ignoradas que os monges de olhos riscados e pele de pergaminho liso em Kyoto guardavam entre as sobrancelhas pretas desgrenhadas. Nas festas do Soho conheci línguas de ácido que me lamberam a alma com os carinhos mais vorazes e sob as luzes que piscam velozes no céu de Manhattan


perdi meus primeiros anos de maturidade, como um menino. Mas onde encontrar margaridas mais morenas e palmeiras assim invencíveis? Não planejo resistir a todos os vícios, nem enfrentar todos os demônios de cara limpa e mãos vazias. Não conto os giros da terra. Mas devia ter contado moedas e medos. Sua falta hoje me condena, e eu sorrio. Todo abismo merece um sorriso. Os círculos de poesia no Leblon. As rodas de samba em Madureira. O peixe com molho de côco no Vietnam. A aguardente cheirosa com larvas de cor fucsia numa esquina de Tegucigalpa, debaixo da goiabeira. A moça feia de Zurich, a boca vermelha, as coxas tectônicas, a forma biônica dos seios pequenos sob a rubra sombra das macieiras. Volto sem perceber pertencimento. Não tenho amigos nem inimigos, e isso me desespera. Minha amada já me tem como perdido enquanto procuro minha presença, minha sanidade, em distantes quimeras. - Em algum lugar no tempo a minha terra não-prometida aguarda esses meus ossos cansados de vagar. Nada lembrado pode ser mais cruel que as memórias que inventamos. [Mas onde encontrar margaridas mais morenas e palmeiras assim invencíveis?]



Jaqueline Musial


David Longo


The Holstee Manifesto


Ronald Augusto A FALÊNCIA DA POESIA E DO CRÍTICO MORALIZADOR Embora o exercício da crítica literária – que não é senão uma forma de fazer relações sígnicas e de interlocução parcial a partir de um objeto verbal construído seja sob que motivação social, individual ou metafísica, enfim, desde os contornos de uma objetividade em perspectiva ou, ainda, desde uma subjetividade tornada precisa: o poema mesmo, coesão fundo-forma–, enfim, embora essa crítica me interesse muito, sei que se trata de um texto segundo, subsidiário, uma forma discursiva circunscrita a margear os rastros da linguagem do poeta (se não soasse retrô eu poderia dizer genericamente “do artista”, envolvendo outros modos de expressão, mas esse comentário se restringe, infelizmente, às coisas da poesia). Talvez me acusem de reducionismo, mas, encurtando o caminho, prefiro concordar com a ideia de que a crítica é tão-só mais uma forma de paratexto, ou seja, no sentido em que, segundo Gérard Genette, “o ‘paratexto’ consiste em toda série de mensagens que acompanham e ajudam a explicar determinado texto – mensagens como anúncios, sobrecapa, títulos, subtítulos, introdução, resenhas, e assim por diante” (apud Umberto Eco). Anoto à margem: o paratexto ajuda tanto a explicar, como a enublar determinado texto ou evento. Assim, não pretendo aqui dar corda à metacrítica, já que se levarmos a sério a crise de nervos da poesia contemporânea, devemos supor que a crítica que lhe segue embarcou em idêntica canoa que está a pique. Portanto, mesmo que o metapoema (crítico em relação ao poema-ele-mesmo) às vezes nos pareça intolerável por sua excessiva reflexividade, a metacrítica (que põe em causa a crítica-ela-mesma), dentro dessas condições e, talvez, a contragosto do nosso apetite, também tem a sua razão de ser. Mas, isto, desde que o herói que a coloca em movimento – o metacrítico – se aproxime da persona do moralista imaginado por Nietzsche, isto é, o sujeito (o crítico literário) que entende a moral (os critérios estáveis da qualidade literária) como algo a ser interrogado, um problema, algo que pode ser posto em questão. Para nós, o moralizar tout court (o esforço do analista fiel à Literatura, sim, com maiúscula) soaria imoral; um índice de sua falência intelectual. De outra parte, entendo que ao falar mais uma vez, ainda que lateralmente, a propósito de alguns dos dilemas da poesia de agora-agora, não será estranho que a crítica receba por contiguidade aquilo que ela merece. A remissão algo nostálgica a um “senso crítico” e ao “arsenal de qualidades que ele exige”, bem como postular a “importante reverberação social” provocada pela atividade crítica quando exercida nesses moldes paradigmáticos já perdidos no tempo, enfim, essa crítica que “ajuda a fundar civilizações” pode ser interessante, mas, por


enquanto, não é possível. Alguém acrescentará que a crítica não tem a menor obrigação de ser interessante. Certo, a crítica pode prescindir dessa obrigação, mas não de outras hipóteses de leitura, onde estão implicadas, inclusive, as condições culturais do presente. Qual a crítica possível a ser oferecida diante de um presumido panorama de irrelevância? Há pouco, podia-se defender a ideia de que o leitor moderno estaria aferrado a um estado, não digo racional, mas, no mínimo, vigilante relativamente – ou em resposta – a uma “entrega incondicional” que se lhe cobrava durante o ato de leitura. Não obstante o conceito de leitura de prazer, o leitor (da alta literatura?) confinaria com o especialista e não passaria de um árduo degustador dos melhores ou piores vinhos: estaria apto a enfrentar qualquer desafio. Nas mãos deste sujeito cultivado, amante da beleza difícil, as supostas tortuosidades da poesia seriam superestimadas de maneira a fazer mais impressionantes suas qualidades intelectuais e sua hiperestesia. Esse leitor decisivo teria condições de mimetizar os ademanes do crítico. Uma sorte de mentor e guia na selva selvagem da escritura criativa. Mas esse leitor-modelo, escada do poeta-crítico, cuja raridade prefigura a sua extinção, não passa de uma metáfora acadêmica. A literatura, hoje, quer se apresente na web, quer se fixe no suporte tradicional do livro, não suporta mais uma leitura lenta e sobrecarregada com as resistências desse leitor difícil e refinado. Resta-nos essa literatura varejista à caça de leitores-seguidores, mas que prescinde da releitura com desdém soberano. A capacidade de fazer relações críticas, de pôr as coisas em relação, no entanto – se leitores, poetas e críticos ainda a possuem –, se esgarça com rapidez à medida que subsome ante essa pastosa recepção temperada com a acídia menos burra do que traiçoeira. E todos, no trato e no traquejo com esse acervo de textos imperitos (inclusive com alguns que talvez sejam de sua própria lavra), percebem que tal capacidade já se perde por entre os seus dedos. O ambiente já não faz questão deste tipo de intervenção problematizadora. Na verdade, o fato de não possuí-la lhes infunde até um fustigante alívio, pois se sentirão incompetentes, impedidos de emitir qualquer consideração sobre o valor destas obras suportadas pelo publicitário de plantão. Quando a análise sai de cena o que ocupa o seu lugar? Neste momento em que também a crítica se apresenta irrelevante, pois a carta de alforria segundo a qual “praticamente não há mais maus escritores, tampouco escritores geniais” (graças a uma série de “fatores virtuosos” tais como, entre outros, a democratização da cultura, os blogs literários, o aquecimento econômico, as pequenas editoras) transforma em anacronismo o debate que tenta colocar a produção presente numa perspectiva crítica. A mera publicação de um livro por uma editora competente na publicidade do seu produto confere ao autor a condição de vencedor. E isso já é o bastante para que a seguir, perante a opinião do sistema, a obra justifique sua aparição ou consiga dar alguma satisfação no que concerne à qualidade artística ou literária de que certamente carece, pois do contrário dispensaria a publicidade indecorosa. De outra parte, quanto mais poderosa é a casa editorial do escritor, menores são as chances de que qualquer crítica que venha à tona não seja tachada de revanchista ou invejosa. Parece não haver argumentos pertinentes — e sequer impertinentes — contra o ‘fait accompli’ dessa consagração meramente editorial (resultante da publicação, às vezes, de duas ou três obras de péssimo nível) com que se tenta calar uma análise crítica possível.


Se até há pouco tempo a condição marginal da poesia, relativamente ao prestígio gozado por outras formas de linguagem no âmbito do embate cultural, obrigava o poeta a assumir uma postura de maior autonomia crítica que, por sua vez, envolvia também maior coragem intelectual e um ouvido sempre atento aos transes da diferença e da fragmentação do verdadeiro, agora, essa situação de patinho feio desencadeou no ânimo dos envolvidos (pobres vítimas) uma reação histérica cujo efeito gerou um sistema de autoproteção, uma reserva de mercado branca (ou nem tanto), light, porque parece ser “do bem”, pois se trata de preservar a poesia, já que, para todos os efeitos, o poeta “não se vende”. Os prosadores, ao menos, não inventam a sua relevância, delegam às editoras a prática dessa impostura. Os poetas, por sua vez, numa espécie de retranca mistificadora e endogâmica (reedição da sua sempiterna subalternidade junto à “república do poder”), alardeiam a excelência da própria produção tendo em vista a conquista de uma posição de influência dentro do sistema literário, ou o reconhecimento circunstante acompanhado das benesses de praxe, usando para tais fins os meios lícitos e ilícitos disponíveis. Toda essa competência poeticamente correta de que se ufanam – que, de resto, mal-esconde a mediocridade que os constitui, pois se comprazem na autopromoção e no elogio mútuo, reificando um desaprender na repetição, mas cum laude - é agenciada dentro dos estritos limites do contemporaneamente tolerável, onde “escolhas afetivas” são rebaixadas a essas formas edulcoradas e cínicas de comportamento próprias das “redes sociais”. Tudo é só curtição. Seus interesses coincidem com suas crenças. Ao contrário de alguns blogueiros e resenhistas do amiguismo que preferem manter silêncio sobre livros que não possam elogiar, entendo que a crítica é um gesto de comunicação, portanto, é um evento em que o leitor está necessariamente implicado. O leitor fecha, ou abre, dependendo do ponto de partida, o circuito dialógico. E o leitor (mesmo o mais ingênuo, raivoso ou chato) tem bastante a ver com o processo da significação, na medida em que, por dever do ofício, a recepção até pode ser transformadora. À liberdade de criação do autor, podemos propor uma equivalente liberdade de leitura crítico-seletiva que inere ao desejo de linguagem do leitor. A crítica não é senão um exercício de leitura. Uma leitura possível. O fracasso embutido no estilo da revanche.


Yao Feng O LOBO E AS OVELHAS As ovelhas não correram quando o lobo chegou apenas pararam de comer a relva para se per lar em parelhas como algodão semeado “Canícula! Que diabo de tempo!” – uivou o lobo, E as ovelhas despiram seus casacos de pele.


Graça Pires

O PERFIL DAS ÁRVORES DESAFIANDO O SOL Uma promessa na secreta aventura das sementes e o cheiro dos pomares alastra sobre a sede fendendo as bocas onde nascem as palavras da desordem e da festa. Quando as aves atravessam o gume do lume ateado à prenhez dos trigos enrodilhamos no rosto os traços da tristeza que nos arde no olhar. Só o perfil alongado das árvores desafiando o sol nos devolve a lembrança das cantigas à desgarrada, na eira, quando a debulha do milho se fazia com as nossas mãos predispostas a todos os afagos.


Eusébio Sanjane

HÁ UM HOMEM 1. Há um homem em cada noite, que se multiplica em suadas mãos para esmerar um corpo amado. 2. Há um homem que se dissolve em suspiros e queda fatigado nos teus braços a cada noite, mulher! 3. E no oficio árduo das madrugadas nasce um homem, um homem novo, um homem de mil e uma auroras assim como se plagiasse o resplandecer dos teus olhos, mulher, para cravar os astros de prazer. 4. Há um homem, mulher, um homem que sou, um homem que nasço, somente quando te amo.


Teresa Calderón NO TODO PUEDE SER EM ESTA VIDA Nada por aquí nada por allá y he aquí a un ser humano aprendió a batirse en aguas turbulentas después del triunfo de células sobre la nada y nada entre la nada abracadabra estilo mariposa saturnina lo importante es competir ¿Por qué el Ser y no más bien la Nada? se preguntan los ilusos elegidos a Ser Nada camino de la Nada ocus pocus trolerí trolerá Feto haciéndose a las aguas sobrevivió lombriz cigoto haciéndose hombre en el agua sobrellevando la carga centrifugado por la corriente cría que se duerme cría cuervos moisés salvado de las aguas amnióticas huyendo de la mismísima madre por la madre nueve meses después y al agua pato no hay tu tía despavorido a vivir el tiempo que te toca dolerí dolerá Y helo aquí nuevamente hombre al agua sin decir agua va a unirse al tercio del planeta sus tres cuartas partes que lo componen una triste anatomía la indumentaria trágica de carne y hueso el único cuerpo que traía consigo un traje de piel para cubrir las vergüenzas de sangre corriente y venas azules el amasijo que lo formó en la culpa y el pecado la pobre condición humana Lloraba a mares cuando llegó desnudo embarrado con las manos en la masa y un olor a manzanas penetrantes en la boca para vertirse en aguas más en aguas menos colándase por los nudos de la madera


el ataúd como chancho en el barro Hombre deshidratándose de pura finitud haciendo aguas regando las raíces río adentro por la laguna Estigia donde entra nadando estilo mariposa estilo anfibio a lo perro como un perro bien muerto para siempre trolerí-trolerá nada por aquí nada por allá Nada.



Curando uma ressaca... Na Roma Antiga Os antigos romanos, apaixonados por bacanais orgiásticos, por vezes, acordavam com a sensação de ter uma corrida de bigas acontecendo dentro suas cabeças. Para cuidar desse pequeno desconforto, Plínio, o Velho recomendava fritar um canário em óleo quente e engoli-lo (apenas a cabecinha já era o bastante) de cabeça pra baixo. O debate continua sobre se o pássaro era engolido sem penas ou inteiro, mas todos parecem concordar que mordiscar os ossinhos crocantes fazia você esquecer qualquer outra coisa.

Na Namíbia Na manhã após uma bebedeira daquelas, os namibianos costumam beber leite de búfala. Óbvio que na receita vai tudo, menos leite, quem dirá de búfala! Mas, por via das dúvidas, anote aí: creme de leite, rum escuro, rum temperado com noz moscada, licor de amarula e leite de coco. Parece que beber um copo (pois é, um copo inteiro) é a forma como os namibianos curam a ressaca, em primeiro lugar. Em segundo lugar eles procuram um hospital.

Em Porto Rico Supostamente, os bebedores em Porto Rico descobriram como evitar uma ressaca de forma simples e aromática. Antes de uma noite de indulgência, eles esfregam uma fatia de limão (ou lima) na axila de seu braço de beber. Você leu certo, basta esfregar limão debaixo do braço com que você vai segurar o copo. Ela supostamente evita a desidratação e livra o bebedor da dor de cabeça. Esqueceram de dizer que a gente troca de mão várias vezes durante uma noite de bebedeira, não?

No Japão Depois de muito sakê em um dos pequenos bares de Tóquio, os bebedores japoneses comem o “umeboshi”, uma conserva semelhante a uma ameixa ou damasco, muito seco, franzido de tão seco e azedo. Alguns usam o chá verde para misturar e ajudar a beber a coisa, tornando-a menos concentrada, mas ainda é terrivelmente azeda mesmo assim. Mas há pelo menos um pouco de ciência por trás disso um, como o sal na ameixa pode realmente ajudar a repor os eletrólitos esgotados, isso pode ajudar um pouco, um pouquinho, na ressaca. Mas colocar algo que é muito azedo em um estômago já azedo pela ressaca? Algo me diz que é melhor ficar com dor de cabeça.


Na Alemanha Uma bela tradição alemã é comer arenque enrolado em pedaços de pepino e cebola bem cedinho. Com o estômago vazio. Embora sofrendo o que os alemães chamam de "o choro dos gatos”, eles juram que isso é tiro e queda. Eu passo.

No Canadá Ah, o Canadá! Para coroar a última rodada da boa cerveja Labatt, os canadenses pedem uma tigela de batatas fritas grossas com pedaços de queijo coalho canadense, envolta em um molho saboroso com grãos de pimenta doce. Não é tão bom quanto parece. É melhor. É tão gostoso que ninguém se lembra de ter ressaca no dia seguinte!

Na Sicília Pênis de touro seco. Quer mastigar isso? Pois é, esse quitute siciliano está um pouco fora de moda, mas, no passado, os sicilianos com ressaca corriam para roer essa maravilha. A suposição era que ele restaura a sua virilidade. Ou talvez o seu cérebro simplesmente eliminasse a ressaca o mais rápido possível para que você pudesse se livrar o mais rápido possível da constrangedora sensação de estar chupando um pênis de touro...

No Haiti Alguns praticantes de vodu haitiano vão para a ofensiva com suas ressacas. Eles furam 13 espetinhos de cabeça preta na rolha da garrafa que fez isso com eles. Eu não sou nenhum estudioso do vodu, mas eu tenho que assumir isso é vingança contra a garrafa que trouxe ao pobre coitado essa terrível dor de cabeça. O que será que eles fazem com as tampas de rosca?

Na Turquia Sopa de tripas. É isso! As vísceras são cozidas com alho, cebola, e às vezes creme de leite. Hummmmm... Você pode até mesmo comer profilaticamente para prevenir uma ressaca iminente. Talvez haja alguma coisa de bom nesse prato, pois este também é um remédio popular no México e na Romênia. Passo, de novo.

Na Mongólia Depois de uma longa noite variando entre lutar e beber, os mongóis sacodem as teias de aranha da manhã com um coquetel feito de suco de tomate em conserva e olhos de


ovelha em conserva. Globos oculares em conserva com suco de tomate. Ok, nada a acrescentar.

Nos Estados Unidos Com tantas tradições culturais estranhas neste mundo excêntrico, você pode achar que o Tio Sam deve ter alguma ideia genial pra curar nossa bebedeira... Pois vá vendo... Ovos crus. Vamos começar com o Prairie Oyster, um remédio popular no oeste dos EUA. Há muitas variações, mas todos eles incluem molho inglês, molho picante, sal, pimenta e um ovo cru inteiro. Ingredientes opcionais incluem uma dose de vodca, ketchup ou suco de tomate e vinagre. Ah, e talvez salmonela. Suor. Algumas culturas nativas americanas, de acordo com a BBC, acreditam que você deve ir para uma corrida e se exercitar. Então basta lamber o suor de seus braços e cuspi-lo, se quiser. O exercício pode certamente ajudar a empurrar as toxinas através de seu sistema. A coisa lamber e cuspir? Deixe essa parte de fora. Eggs Benedict. Como a história conta, por volta do final de 1800, uma socialite com uma baita ressaca pediu ao restaurante do Waldorf-Astoria para montar este sanduíche louco com um ovo cozido, presunto e molho holandês em cima de um bolo Inglês. Não se sabe se curou a ressaca da moça, mas o prato ficou famoso e ganhou o mundo. Pellet. Nos dias selvagens do oeste, cowboys de ressaca costumavam tomar uma receita tiro-e-queda ensinada por um sábio índio: um chá feito de excrementos de coelho. É isso, algum índio safado disse aos cowboys que chá de merda de coelho era um santo remédio, e eles acreditaram! Na redação da Revista OOH! Há uma cura nesta lista eu posso garantir que funciona. Depois de uma noite de bebedeira, aqui está o que eu faço quando chego em casa: 1)

Beba muita água, o máximo possível. Se você se lembrasse de beber água entre uma cachaça e outra, não estaria precisando desses conselhos... mas vamos adiante.

2)

Tome uma pílula de Complexo B, pois o álcool esgota esse recurso do seu organismo e, acredite, ele é necessário nessa hora.

3)

Tome um par de comprimidos de Ibuprofeno ou Neosaldina e vá dormir.




Thamar de Araújo DANÇA Movem: as pontas dos dedos dos pés, num corpo deitado. As pontas dos dedos das mãos, num corpo cansado. A via expressa de nãos, num tempo magoado. [Uma valsa.]


Andy Warhol


Jorge Melícias 1. Sobre a imposição dos abismos encimarei os gárrulos. Erguer-me-ei das jugulares como a pura dicção do medo. 2. Descerei das canas para a rasura da redenção. No dorso o relâmpago como uma carena blasfêmia. E um amor profundo pela impiedade. 3. Caminharei entre os homens com um punção virado ao medo. As meninges recrudescendo nas navalhas como um apostema. Todo o metal sitiado pela injunção das ínguas.


Lee Jeffries






Ilka Brunhilde Laurito

FLASH Na rua anônima um homem acende o cigarro de outro homem: — Fogo, irmão? (Fogo irmão?) — Fogo irmão! No mundo em chamas a breve flama ecoa a luz do instante urbano: — Cessar fogo (Irmãos)


Lara Amaral CAI, CAI .

Fazer subir o balão de seda hipnotiza a levada do céu E se, quase noite, houver um pedaço de lua mais um resto de clarão horizontal na nuvem, e lá a forma arredondada tocar atingir seu ponto Ícaro e queimar-se na réstia de luz alaranjada Fica o céu inconsolável a fechar-se no quedar da noite Em tempo que não há anunciação há coisa mais triste que ver o balão cair?



Jorge Melícias

Por vezes estou sobre as facas como quem intenta. Outras é o metal que reverbera onde enlouqueço. Sei que o crime encerra a sua própria geometria: o golpe incide onde o erro é uma refracção. Abro na lâmina uma veia para correr. * Não há lugar para a repulsa: a lâmina corre no interior dos espasmos, afia-se a cada contracção. O gume é agora a partir de dentro. * Os instrumentos que podam esplandecem de loucura. Abrem as virilhas à soberba das facas. Irrompem do horror como um girassol cravado de esquírolas. * Sob a oxidação das córneas trabalham meticulosas ferramentas, os obsessivos alicates do remorso. Estou sobre as escoras da cegueira e alteio o propósito: matarei pelo cheiro.


Marcelo Ariel SEM SENHAS PARA AS CINZAS NA ÁGUA “ Das coisas lançadas ao acaso, a mais bela, o cosmo.” - Heráclito

1 A luz do ser é como a água também veio do Sol onde todos os planetas querem entrar Dentro do Sol O ser é imóvel como a gratuidade de um êxtase parecido com a respiração Fora do Sol o ser é móvel Tempo eternidade e tempo cronológico 2 A água é a Alma dentro do corpo Em um quadrado há um triângulo de fogo dentro do triângulo um eneagrama de ar Em nós a água é o que ama enquanto o ar pensa e a emoção é a chama


que o incêndio da morte alimenta A água é o que sonha o que o tempo desenha os círculos que somos criados pela pedra que afunda quando acordamos

3 O Eu é o vapor que se desprende do gelo: essa ilusão chamada identidade no fogo do Ser se dissolvendo Quando dizemos Eu a alma que é a água dorme e o que perdemos é a nuvem do que não sabemos

É música tudo o que a água pensa No rastro das nuvens se esconde a harmonia dessa sentença, mesmo na tempestade o relâmpago rasgando o ar é um silencioso canto mas o trovão, quer nosso despertar e fracassa, esse rugido estelar que acorda em nós, apenas medo e espanto, para a estrela retorna silente fúria que não compreende nosso pranto.


Mozileide Neri




Fabiano Calixto OBITUÁRIO LITERÁRIO COM FIGURAS DE GATOS E RATOS os ratos roeram a vida dos poetas – livres do peso das letras, os estetas em outras esferas escreverão, pois, no cavo, vácuo profundo, sem voz, à foice (esta persiana a zerar o ar dos distraídos), não mais poemas, já que lidos os labirintos, nada mais resta, nada, nem a quem se amar ou refutar, não esfria, nem aquece, a luta com palavras já não faz parte de paixões ou razões puras, nenhum alarde, nada de metáforas, nenhuma metonímia – a menina de lá não dá mesmo a mínima. os ratos, rudes e arrogantes orates, gorjeiam na goela os corpos dos vates e, ainda assim, nas estantes, talhados, ficam os poemas – como nos telhados gatos de gostos e colmilhos afiados, à leitura nasal do rastro dos ratos, vigiam venturas. de um pulo a outro salto, uma gangue de gatos retalha a noite com sangue de restos de ratos que das tripas, as tropas de versos, vazam as mais soberbas sopas.



Thamar de AraĂşjo


Rodrigo Madeira QUATRO PEÇAS PARA FERRUGEM

a) parafuso não de rosca soberba para chapas de metal. segurou quadros? fixou sextavado o esqueleto da cama? emprenhou porcas, coadjuvou dobradiças e roldanas? um tendão de aço que não vale nada sobre nada existirá sem qualquer bênção de deus centenas de anos

b) skol cerveja pilsen beijou os lábios da mulher no verão de 85? as axilas do tétano cheiram a ferro de sangue. esta veio dar na praia. quando o sol bate no único cm² ainda brunido e intato da folha-de-flandres brilha mais que diamante


c) quem já viu um arpão oxidado no meio de uma cidade sem praias?

d) o quarto objeto é um poema. não costumam ser inventariados em capões ou ferros-velhos comidos de ferrugem os poemas. mas ninguém o leu ninguém sequer o escreveu baldio sem o que ter sido ou dito ninguém diz: um poema! mais agora que a lepra do metal o faz – no chão vermelho ervas rasteiras do alfabeto – ainda mais patético e ilegível


Lara Amaral ESTOPIM Nunca sei o que será de mim Pista de mão dupla sem Desvio Caixa de música sem Corda No pescoço Dependurada Como argola que prende cortina Transparente Por um fio Enxergam-me através Sem desa(r)mar Como bomba de breve Pavio


Valter Hugo Mãe

A CAPITALIZAÇÃO DO AMOR não escondemos que aprendemos a capitalizar o amor, entregando amplamente os nossos melhores momentos às raparigas mais carentes. o amor, sabemos bem, é o caminho directo para a inutilidade, e nós procuramos as raparigas que mais rapidamente se inutilizem perante as coisas clássicas da vida. não nos queremos atarefar com a vulgaridade, e gostaríamos até de impregnar cada gesto com características alienígenas, mas o tempo escapa-se e o dinheiro também e, se só pensamos no amor, não temos como fazer de outro modo senão vendê-lo entusiasticamente, como fontes de trovões bonitos jorrando nas praças mais movimentadas das cidades. e as raparigas correm para nós urgentes e cheias de vida, férteis de tudo quanto o amor se abate sobre elas, uma alegria rica de se ver, e nós a balançar os braços para chamar a atenção de mais e mais e já nem sabemos como parar, como forças incontroladas, à semelhança de mecanismos ferozes da natureza, e só sairemos daqui quando desfalecermos de amor até pelas raparigas mais feias


Mรกscaras Steampunk





Thauan Raposo

Por que transamos? Teu corpo anuncia minha fome incoerente por estrelas e o gozo mel presenteado pelas flores, pelas abelhas. É o ponto de fusão da vida, o carma superado, o nirvana expandido, o machado no tronco da árvore. Teu corpo aliena as sinapses e brinca com os nervos ópticos. É o sonho que vara o corpo, a aflição sonora e redentora do seu gemido, a cama que vira um barco e cabelos que viram a noite. Teu corpo é o abismo dos anjos e a ressaca dos pequenos demônios que acordam comigo. Sorvendo em desejo, evaporando no calor do seu hálito onírico e na pressão de suas coxas tectônicas. A nossa nudez é um verso coletivo, uma declaração azul de amor a vida que se expande nas borboletas de vidro, nos gatos de porcelana, nos suspiros de Outono, no nosso reflexo escondido e na imortalidade desse encontro. Que haja amor nos dias...


Jorge Melícias Ergo-me da refrega e tomo posse sobre o exílio. Eu vi a minha mão em tudo o que se demarca da piedade. E comovi-me. * As pás do remorso não porfiam quando todo o gesto rasura a compaixão. É essa a minha arte: fixar sobre a paisagem o despojamento que o horror persegue. E que nenhum indulto ofusque o meu triunfo: eu a encimar o luto ponho grinaldas. * A deus a constância do medo, o modo como a temperança se divide pelo jugo. Eu exerço o flagelo. Calibro os dedos no horror. * O horror era então a sua própria liturgia. E a carne levedava com convicção nas lanças. Tempo de uma piedade sem reservas, anterior a qualquer axiologia. E sobre a paisagem ver não prodigava ainda a ritualização do remorso.


Margherita Vitagliano








Daniela Reetz

Nem toda palavra precisa de volume. Há as que se escondem entre o ontem e os azuis. Algumas murmuram tonalidades de branco. Outras demoram-se um pedaço de tempo nas bordas que expiram. Eu respiro todos os acentos. As folhas caem ao final do outono. Ou durante. Mesmo as de papel. Minhas flores chegam sem aviso. E permanecem asas. Talvez tenha prolongado algumas reticências no verso errado. Todo parágrafo inicia. Pétalas. Amplexos. Vermelhos. Sílabas. Voos. Gramatura. Tiaras. Elos. Toque. Nem todo volume precisa de palavras.



Erra agora. E mesmo que erre sempre, nunca será o bastante. Tudo é rascunho. Só morrer é definitivo. [Por enquanto.]



01 Revista OOH! [ ruminações sobre cultura e arte ]

JUL-AGO-SET 2014


Revista OOH! [ruminaçþes sobre cultura e arte] revistaooh@gmail.com



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