CUBA SOZINHA
CAROLINE FORMENTON
CUBA SOZINHA
CAROLINE FORMENTON
CUBA SOZINHA
CAROLINE FORMENTON
www.carolineformenton.com
Fotos e Textos Caroline Formenton Gomes Projeto gráfico/Tratamento de imagens Revistaria Edições Customizadas Revisão Scritta Consultoria
“A liberdade custa muito caro e temos ou de nos resignarmos a viver sem ela ou de nos decidirmos a pagar seu preço”. José Martí
AGRADECIMENTOS Não sou ligada a nenhuma religião e não sou frequentadora de nenhuma igreja ou templo, porém não me considero uma pessoa totalmente descrente ou cética. Acredito que há uma força maior que nos governa e que nos influencia de alguma maneira. E é a essa força que eu quero agradecer em primeiro lugar. Por ter permitido a realização da viagem, por ter feito com que tudo, até os momentos ruins e difíceis, fossem de grande valia para a construção desse trabalho. Quero agradecer também aos meus pais que nunca deixaram de acreditar em mim e no meu potencial, patrocinando a viagem e todos os custos desse livro e me dando todo o apoio necessário para continuar acreditando no projeto, mesmo quando as ideias e os ideais se confrontavam. Sem a base educacional e de amor, realizar esse projeto e me lançar sozinha num país desconhecido e totalmente diferente do nosso não seria possível. E agradeço a toda minha família e amigos pela paciência e pela compreensão nos momentos de ausência, impaciência, intolerância e rabugice. Agradeço ao meu orientador, Maurílio Laua, pela paciência e confiança depositada em mim. Por todos os conselhos, suges-
tões e criticas. E, principalmente, por sempre me estimular e acreditar no meu potencial. Ao professor João Rangel, pelas dicas e por me mostrar um pouco mais do universo dos fotógrafos que estiveram em Cuba. Ao professor Silvio Costa, pelo entusiasmo em todas as conversas. Por todas as deliciosas aulas de sociologia. A todos os professores da Universidade de Taubaté. Sem eles não seria possível ter a bagagem necessária para a realização desse projeto. À Sofia Reis que, com sua ajuda despretensiosa, me auxiliou conhecer os cubanos certos. Ao Julio Costantini, que, mesmo não tendo conhecido pessoalmente, foi uma das pessoas que mais me ajudaram em Havana. Ao Eduardo Carvalho por me “apresentar” à Ilha através de Fernando Morais. À Raquel Cunha pela confiança em me emprestar seus equipamentos e pelas dicas que foram de grande valia e utilidade. À Natalia Yoshida pelo incentivo e inspiração através de Maria Betânia e Omara Portuondo.
Ao Wagner Rosa, por toda criatividade, talento e por todos os conselhos na parte gráfica e “artística” do trabalho. À Bianca Justiniano que, mesmo de última hora, aceitou meu pedido para a correção e organização dos textos. Ao Lucas Justiniano, por me “apresentar” à José Martí. À Isadora Cruciol, por me ajudar nas pesquisas. Agradeço à Denise Guerra, por sua boa vontade, gentileza e paciência comigo. Pela ajuda, pelos passeios, por mudar sua rotina ou me incluir nela. Por me apresentar aos seus amigos. Por todo o carinho. Pelas fotos e pelos papos que me “abriram a cabeça” e que me fizeram entender melhor o regime dos Castro. Por me permitir entrar em sua realidade e, assim, agregar muito ao trabalho. Agradeço à Yaima Bacallao, Geraldine Orta Ramiréz, Caterine Ribas Hermelo, Milena, Julio, Caridad Hernandez Laza, Yesniel Moreno Zdez, Carlos Quintela, Roberto Morejon Rodriguez, Ismael Perdomo e todos os outros cubanos aos quais não fui apresentada formalmente ou que não me recordo dos nomes, mas que tornaram a experiência muito enriquecedora e única. Sem essas pessoas, minha visão teria ficado limitada.
Sem as conversas e sem todo o aprendizado que obtive com eles, com certeza esse projeto não seria possível. Agradeço à Johanna Pola Ofarril por abrir as portas de sua casa e me receber com tanto carinho, alegria e entusiasmo. Pelo suco de manga e pelo arroz com feijão que me fizeram lembrar da minha infância. Pela confiança e cumplicidade. Por me ensinar tanto sobre sua cultura e seu povo. E, principalmente, pela felicidade, pela energia do bem e pelo apoio. E, por último, agradeço à Abel Ernesto Rubio Estrada, meu grande amigo e grande fotógrafo, eu não tenho palavras para agradecer tanta dedicação e empenho. O que eu posso dizer é que sem ele eu não teria chegado aonde cheguei. Não teria conseguido as imagens que consegui e que tanto enriqueceram esse trabalho. Agradeço a sua paciência ao tentar me ensinar um pouco mais sobre fotografia. A sua generosidade, qualidade que aprendi a admirar ainda mais graças a ele. Agradeço por ter me mostrado uma Havana que eu nunca imaginei ter acesso. Pela confiança em expor sua opinião sobre o governo e o regime dos Castro e por me fazer enxergar outra realidade. Por ser meu amigo. Amigo que quero levar para a vida toda.
PREFÁCIO Cuba é fascinante por todos os aspectos. Seja pela rica história revolucionária, seja pelas contradições que o regime provoca no meio da sua sociedade. Esta intrigante equação é que levou Caroline Formenton à Ilha de Fidel para construir esta rica obra. Vivi em Cuba em 1989. Retornei lá em 1994 e 1996. Portanto, há muito tempo me desliguei da Ilha e de seus personagens. Mas não perdi a admiração por eles, que fique claro. No final da década de 80 o governo cubano começou a enfrentar o que eles chamavam de “período especial”, um eufemismo para a crise que se avizinhava. A União Soviética começava a reduzir os subsídios que mandava à Ilha e o Leste Europeu – com seus países socialistas – dava os primeiros sinais de saturação com o regime. Em 1996 andei pelas ruas de Havana em pleno “Él apagón”, plano de racionamento de energia que deixava não só as vias públicas, mas também as residências às escuras. É preciso lembrar que o Brasil também viveu este problema. O fato é que a Ilha de Cuba foi o sonho de muitos revolucionários mundo afora. Da emblemática figura de Che Guevara ao sonho de uma nação sem explorados e exploradores guarda-se uma distância muito grande do mundo real. Partes dos problemas podem ser justificados pelo enfrentamento com o Império que impede o livre comércio da ilha com o mundo. Este trabalho tem o mérito de buscar entender como as novas gerações encaram o regime que já dura 50 anos. E como eles aplacam suas necessidades. Fez-me lembrar Jacob, um rapaz contra-revolucionário que falava fluentemente o português e que ficara meu amigo durante a minha estada em Cuba. Jacob tinha os mesmos sonhos de jovens que vivem em um país capitalista. Hoje não sei como estará ele. Portanto, este trabalho, além de recobrar minhas memórias sobre a Ilha, oferece ao leitor um registro importante para entendermos que não existe regime perfeito. E que a sociedade que sonhamos deve começar pela atitude individual. Hasta la victoria siempre!, digo a você Caroline. MARCELO PIMENTEL
INTRODUÇÃO Cheguei em Cuba no dia 27 de julho de 2009, um dia após as comemorações dos 50 anos da Revolução. Impossibilitada de chegar antes para acompanhá-las de perto, decidi fazer um registro fotográfico do que “vem depois”. Cuba viveu um momento muito interessante em termos políticos este ano. Comemora-se 50 anos da Revolução, mas sem o lendário Fidel Castro no poder. Barack Obama, presidente eleito dos Estados Unidos, inimigo nº 1 do país, esboça uma possível abertura para diálogo com o governo cubano. Apesar de socialmente os problemas vividos pelos cubanos continuarem os mesmos, há algo novo no ar e que me interessou bastante: os jovens. Distantes dos ideais da Revolução que são tão marcantes em seus pais e avós, muitos deles que conheci nessa viagem a uma das ilhas mais isoladas do planeta sonham com um mundo novo. Acessam a internet, veem as novelas brasileiras, ouvem música norte-americana e querem saber o que existe além do mar do Caribe. E eu, que estou do outro lado do mundo, queria conhecer pessoalmente as histórias de um lugar que parou no tempo. O foco deste trabalho foi a capital Havana, onde busquei ter contato apenas com o povo local. Nesse retrato bastante particular do cotidiano de pessoas de minha faixa etária, procurei entender melhor o mundo pelos olhos de quem vive a vida de uma maneira simples, isolada das influências e das possibilidades oferecidas pelo mundo moderno, “capitalista”. Despretensiosas, minhas observações podem até parecer ingênuas aos mais críticos. Mas meu objetivo foi justamente este: tentar recuperar num povo que vive o idealismo ao extremo, apesar de todas as contradições e tristezas disso, um meio termo entre este mundo consumista em que vivemos, justo no momento em que o capitalismo entra em colapso. CAROLINE FORMENTON
PARAISÓPOLIS Quem nasceu até a década de 1980 e teve algum contato com as cidades do interior talvez entenda melhor essas observações pessoais sobre Havana. Paraisópolis é uma cidade do sul de Minas Gerais, onde passei parte das férias de minha infância e onde meus avós vivem até hoje. E a capital cubana trouxe à tona lembranças que acreditei estarem esquecidas.
Muito se fala sobre Cuba. Conversando com quem conhece sua história, com quem se interessa por sua política ou com quem já esteve na Ilha, ouvimos falar mais sobre seus aspectos negativos do que positivos. Exceto pelos comunistas ferrenhos, ouve-se muito também sobre os resultados ruins do governo de Fidel. Se formos seguir à risca a máxima que diz que “a primeira impressão é a que fica”, preocupando- nos apenas com o aspecto estético e tendo um olhar superficial sobre Havana, seria possível, para nós “capitalistas” com uma condição de vida razoável, ficar ali durante um fim de semana ou menos. Os serviços nos hotéis e nos restaurantes são bastante precários, o transporte público deixa a desejar e não há opções de lazer. Talvez a chave para se adaptar a uma realidade diferente da sua seja tentar esquecer hábitos e costumes de nossa rotina para mergulhar na do outro sem preconceitos nem exigências. Foi o que fiz na maioria das vezes em que estive com os amigos cubanos no decorrer de minha viagem. A cada casa em que era convi-
dada a entrar, considerava mais uma conquista de intimidade e de confiança que tornou a experiência especial e inesquecível. E o mais incrível desse “mergulho” foi que, surpreendentemente, voltei às raízes da Paraisópolis de minha infância, na casa dos meus avós. Cuba fechou-se totalmente para o mundo na década de 1950 e, além dos carros e dos prédios mal conservados, alguns hábitos e tradições dessa época permaneceram. Sabe aquela coisa da mãe pedir para filha, que ainda é uma menina, ir comprar pão na padaria perto de casa no fim de tarde? A filha se atrasa, mas a mãe não se preocupa com a violência, com assaltos, com sequestros relâmpagos ou coisas do tipo. Apenas fica brava pois, com certeza, ela se atrasou porque encontrou algum amigo no meio do caminho. Não são todas as casas que têm televisão, na verdade a maioria tem, mas nem todas funcionam. O que acontecia no Brasil, na década de 1950, quando as televisões começaram a invadir as casas? Os vizinhos que tinham TV abriam suas portas para os amigos na hora da novela ou
do futebol. Pelo menos foi assim que me contaram. Em Cuba, novela brasileira passa dia sim, dia não, em revezamento com a cubana, e a maioria das pessoas para o que está fazendo para assistir. Quem estiver com a TV quebrada bate na porta do vizinho e é recebido com carinho. Quando era criança, as bonecas Barbies e os video games já existiam, e lembro ouvir o lamento de meus avós e de meus pais sobre esses novos brinquedos, que não estimulavam a criatividade das crianças. “Que judiação”, diziam. Nas ruas de Havana, vemos garotos montando carrinhos de rolimã e meninas brincando de pega-pega e de esconde-esconde. Quando enjoam da brincadeira, inventam outra. Talvez o que mais marque e relembre a infância seja a comida caseira “de vó”. É o que todos dizem. Aquele chazinho feito com erva-cidreira recém-colhida da horta ou do jardim, o arroz e o feijão com temperinho caseiro, aquele suco feito com fruta natural. Em Havana, minha amiga cantora me convidou para um jantar em sua casa. Ali, naquela casa com móveis antigos, a TV passando a
famosa “corrida de arroz”, o cheiro de alho e cebola refogando na panela, o suco de manga na mesa e o calorzinho do fim do dia me fizeram lembrar de minha avó e sentir uma grande saudade dela. Essas situações são raras no meu dia a dia e acredito que no da maioria dos cidadãos do mundo globalizado e capitalista, que estão sempre correndo. A comida é congelada, vai do freezer para o micro-ondas, as crianças ficam em frente ao computador ou à televisão. As tradicionais reuniões de família aos domingos são cada vez mais raras. Enfim, os prazos a serem cumpridos importam mais do que a qualidade de nosso tempo. Talvez pela falta de perspectiva no futuro, os cubanos saibam viver melhor o presente do que nós. Ter parado na década de 1950 e estar isolado do resto do mundo faz de Cuba um país atrasado e pobre. Mas seus cidadãos são um exemplo, que vão além do desempenho na medicina e no esporte, reconhecidos mundialmente. Os cubanos são um exemplo do saber viver. De serenidade. De paciência. Eles têm muito a nos ensinar, assim como nossos avós.
CUBA SOZINHA O que é diferente pode ser excitante, mas igualmente assustador. Porém, minha missão de explorar a cidade não me dava outra opção, senão a de encarar as ruas daquele mundo estranho aos meus olhos e minha experiência de vida, sozinha.
A princípio, caminhar pelas ruas de Havana é uma aventura. Uma expedição em terras completamente diferentes e estranhas das já conhecidas. Acho que há no imaginário dos que querem conhecer Cuba uma imagem do que é a Ilha. No meu existia. Acho que é a mesma sensação de quando lemos um livro e depois vemos sua adaptação nas telas do cinema ou no palco de um teatro. Geralmente, é diferente do que criamos em nossa imaginação. O cenário, os personagens, o figurino... diferente. Assim que cheguei a Havana, resolvi caminhar pela vizinhança de Vedado, bairro onde fiquei hospedada. Já era noite e não me senti muito à vontade para uma longa caminhada. Passei em frente ao Cine Yara, o cinema mais tradicional da cidade, e o filme que estava em cartaz era Vicky, Cristina, Barcelona, de Woody Allen. Em frente ao cinema, fica a famosa sorveteria Coppelia, que serviu de cenário a um filme cubano, também bastante conhecido, Morango e Chocolate. Havia muitas pessoas andando pelas ruas, sentadas no ponto de ônibus ou nas calçadas, conversando sem preocupação. Havia pouquíssimos carros e a temperatura era agradável. No dia seguinte pela manhã, encorajada pela luz do sol, fui até a avenida beira mar e conheci o famoso Malecón. O mar era diferente do que imaginei. Era azulmarinho e muito limpo. O céu também muito azul, mas alguns tons abaixo do escuro mar de Havana. A sensação que me domina é a de que é feriado ou domingo. Era uma terça-feira e a falta de carros, trânsito e buzinas me incomodou um pouco. Acho que estamos acostumados
com o caos e ele acaba governando nossas vidas, nossas rotinas. Sem ele, me senti vazia, sozinha. Vedado leva esse nome devido ao fato de que, no século XVI, a fim de ter uma visão total da aproximação de piratas, ficou proibido construir casas e ruas na região. Hoje não há nada de “vedado” ali – é o bairro mais movimentado depois de Havana Vieja, além de ser o centro político e cultural de Havana, onde ficam os principais hotéis, restaurantes, cinemas, teatros, escritórios e ministérios. Curiosamente, o nome da maioria dos restaurantes dessa área foi inspirado na novela brasileira “Vale Tudo”, em que a personagem de Regina Duarte abre um restaurante chamado “Paladar”. Uma refeição que inclui um prato feito com carne bovina ou suína, frango ou peixe, mais uma bebida e um sorvete de sobremesa não passam de 3,50 CUCS, equivalente a U$3,50. Em Vedado, também vemos muitas casas com suas grandes entradas em estilo colonial. Se houvesse investimento e conservação, com certeza a beleza da arquitetura cubana se destacaria. Podemos ver essa conservação em algumas ruas de Havana Vieja, centro histórico de Havana e que foi declarado Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO em 1982. O contraste que existe nesse bairro é o maior que se vê em toda a cidade. Nos quarteirões que ficam mais próximos ao mar e onde estão os famosos restaurantes Bodeguita del Medio ou o Floridita,vemos prédios recém restaurados e com a pintura em perfeito
estado. Se andarmos apenas um ou dois quarteirões em direção à cidade, essa realidade se modifica completamente. Os prédios são aqueles que não veem uma mão de tinta há anos e que, inclusive em alguns casos, correm o risco de desabamento. Na Plaza das Armas, o comércio direcionado ao turista é abundante. Há uma feira diária de artesanato onde encontramos o resultado da criatividade do povo cubano. Ímãs de geladeira e porta-copos feitos com rótulos de cerveja, cigarro e charutos cubanos, vasos de cerâmica, redes e roupas de crochê, camisetas e boinas com a figura de Che Guevara, leques de madeira, entre outros artigos são vendidos ali. Outro comércio que ajuda muito na renda familiar cubana é o dos sebos. Livros de José Martí, Fidel Castro, Che Guevara, guias turísticos em diversas línguas, livros de fotografia etc. são vendidos com os mesmo preços das lojas das ruas de Havana Vieja. Mas os vendedores sempre dizem que seu preço é o melhor. Ao caminhar pelas ruas do Prado e de Centro Havana, não vemos grandes diferenças em relação aos outros bairros. Pela noite, vemos as portas das casas abertas e as famílias assistindo à TV ou ouvindo música. As crianças andam pelas ruas, jogam bola e brincam com total liberdade. Além da música cubana, podemos perceber a inevitável invasão e influência estrangeira. Em alguns bares, há grandes aparelhos de televisão com clipes de bandas, como os porto-riquenhos do Calle 13 e também a norte-americana Beyoncé cantando em espanhol. Quase sempre cruzamos com devotos da Santería,
crença africana mais difundida e que apresenta semelhanças com o Candomblé. Podemos identificá-los melhor quando estão “dedicando o ano ao santo”, pois se vestem de branco dos pés à cabeça. Embora o regime comunista dos Castro declare que Cuba é um país ateu, o catolicismo dos conquistadores espanhóis ainda está presente na vida da população junto às religiões afrocubanas. As “tiendas”, lojas cubanas, concentram-se em Havana Vieja. O comércio nacional é bastante restrito, não há o apelo ao consumo do mundo capitalista. As vitrines são bem mais vazias das que vemos no Brasil, por exemplo. Parece que houve uma mega liquidação que acabou com os estoques dessas lojas. As farmácias também são assim. Suas dezenas de prateleiras, quase todas vazias. Conheci uma senhora que estava com a mãe adoentada precisando de fraldas geriátricas, esse é um dos artigos que não existe mais na Ilha. Ela me contou que, há alguns anos, esse tipo de fralda era encontrado por preços absurdos, mas que hoje nem mesmo assim. Ela conta com a solidariedade de amigos estrangeiros quando vêm visitála. Perguntei se não teria como enviá-las pelo correio e o que ela disse foi que não há segurança nenhuma de que chegariam ao seu destino. Depois de alguns dias caminhando pelas ruas da capital de Cuba, a visão muda. Familiariza-se, identificase, solidariza-se cada vez mais. A cada esquina, a cada cubano, a cada passo que se dá, aprende-se e ganha-se algo novo.
O HAVANÊS Em minhas andanças pela cidade, descobri histórias de um povo amável e sofrido, mas lutador assim como o brasileiro... Antes de chegar a Cuba, conversei com algumas pessoas que já haviam estado na ilha. Perguntei sobre tudo. Ao mesmo tempo em que minha curiosidade queria ouvir e registrar tudo o que eu estava ouvindo, tinha um lado meu que queria chegar lá livre, sem a impressão nem a opinião de ninguém. Porém, a curiosidade venceu. E fui para lá querendo desconstruir alguns mitos para poder construir os meus próprios. Ouvi dizer que o povo cubano é alegre. Ouvi também dizer que eles são sofridos. Acho que todos os povos têm suas idios-sincrasias e contradições. Os cubanos não são exceção. Talvez o adjetivo que mais se encaixe para definir os cubanos, mais especificamente os havaneses, seja simpatia. Não estou falando das pessoas que trabalham com o turista, dos recepcionistas dos hotéis nem dos que trabalham em agências de turismo, ou seja, aqueles que deveriam ter na simpatia sua ferramenta de trabalho, mas que nem sempre a têm. Falo da simpatia genuína dos que estão nas ruas. No entanto, todos são desconfiados a princípio. E a máquina fotográfica intimida ainda mais. Mas confesso que o passaporte de ser brasileiro ajuda a abrir caminhos. A primeira coisa que eles comentam com grande entusiasmo quando falo que sou brasileira é sobre as nossas novelas. Todos elogiam muito. As que estavam passando eram Mulheres Apaixonadas e Cabocla, a segunda numa espécie de “Vale a pena ver de novo”. A novela é uma forma de entretenimento bastante apreciada entre os cubanos. Homens, mulheres, idosos e crianças, todos falam e sabem sobre as novelas. Havana tem um cheiro característico. É o cheiro do tabaco. Não são todos que fumam charuto, mas a grande maioria fuma cigarro e o cheiro está em quase todos os lugares. Não existe lugar proibido para fumar. Em restaurantes, hotéis, bares e até dentro do aeroporto as traga-
das são permitidas. José Serra e sua lei antifumo teriam uma grande rejeição entre os cubanos! A ilha localiza-se no Caribe e faz calor a maior parte do ano. Assim como as televisões, quando os aparelhos de ar-condicionado quebram, há certa dificuldade para consertá-los. Ou seja, são raros os locais em que eles existem e que funcionem adequadamente. Ninguém re-clama. Muitas mulheres usam o leque para se refrescar, o que dá ao ambiente um toque de charme. Assim como na década de 1950...
Homens e mulheres As mulheres são vaidosas, como em qualquer lugar do mundo, estão sempre arrumadas. Conversando com as cubanas, percebo uma vaidade mais descompromissada do que a nossa. Elas dizem que precisam emagrecer ou engordar de uma maneira muito menos neurótica da que nós falamos. Elas se aceitam. Querem mudar uma coisa ou outra, aqui e ali, como qualquer mortal. São mais divertidas e mais leves. Talvez por serem menos influenciadas pela ditadura da moda que assombra o mundo ocidental. Mas a vaidade feminina de nada vale se não houver o galanteio masculino. Eles “mexem” e chamam as que passam sob seus olhares. Usam uma maneira muito peculiar para paquerar. Fazem o mesmo som que fazemos para chamar os gatos, algo como o “psi-psi”. Fazem isso para chamar o garçom também, o que acaba sendo engraçado.
“Malemolência” O professor de sociologia da UNITAU, Silvio Costa, disse-me que Havana lembrava Salvador, na Bahia, mais especificamente o famoso bairro do Pelourinho. Concordo com ele. E não só em relação à arquitetura dos dois lugares. O havanês lembra muito o soteropolitano. Percebo isso andando pelas ruas e sentindo certa
“malandragem” no ar. A senhora idosa me pede dinheiro e diz que tem uma doença raríssima. Outra mulher que passa no momento faz uma cara de reprovação e me aconselha a não dar nenhum dinheiro. “Ela bebe!”, comenta. Quando subi pelo elevador Lacerda pela primeira vez até o Pelourinho, senti-me desconfortável com a abordagem quase agressiva dos rapazes que vendem as famosas pulseiras do Senhor do Bonfim. Em Havana, não houve nenhum momento de tal desconforto, mas há a “malandragem” e a “malemolência” do baiano no ar. É aquela abordagem bastante fraterna e familiar que nos engana.
Moeda, transporte e saúde Existem duas moedas que circulam em Cuba. O CUC, que também é chamado de peso convertido e que tem o mesmo valor do dólar americano e do peso cubano. Um CUC equivale a 25 pesos cubanos. O salário da maioria dos cubanos é pago em pesos cubanos. Os que trabalham no ramo hoteleiro e turístico têm acesso ao CUC devido às gorjetas que recebem dos hóspedes e dos turistas. A princípio, fica meio complicado entender as duas moedas e tentar fazer a conversão. Depois de algum tempo, tudo fica claro e percebemos o valor do baixo salário cubano. Alguns serviços, como o transporte publico, só aceitam pesos cubanos. Os ônibus, quase sempre lotados, nem param para os turistas. Outro meio de transporte muito utilizado são os táxis comunitários, que funcionam como as vans aqui no Brasil. A diferença é que os táxis são os carros da década de 1950 e que poucos estão bem conservados. Pedir botella, ou pedir carona, também é comum. Devido à falta de combustível e à escassez no transporte público, essa é uma forma de transporte bastante difundida na Ilha. Percebi que as farmácias têm mais espaço vazio do que medicamentos. Um dos meus amigos precisou de
serviço médico no meio da madrugada, e como sua casa era perto do posto de saúde, ele foi caminhando até lá. Ao chegar, encontrou o médico dormindo e não foi muito bem atendido, além de ter sido receitado com remédios que não encontrou nem na primeira nem na segunda farmácia que procurou. Percebi muitas semelhanças com o atendimento médico público do Brasil ao ouvir essa história.
Solidariedade, sorte, orgulho e amizade Tive sorte na minha experiência cubana. Fui sozinha e tive a felicidade de conhecer as pessoas certas. Certas no sentido de me ajudarem e de me mostrarem uma Havana que eu não teria conhecido sem eles e sem sua solidariedade. Todos que conheci me abriram as portas de suas casas e me receberam como se fôssemos amigos de infância. E sempre quiseram deixar muito claro que não faziam nada daquilo por interesse. Ao conversar com os amigos dos amigos dos amigos, percebi que o jovem cubano é politizado, é culto. O jovem cubano lê, é interessado e curioso. É possível, inclusive, sentir certa vergonha e embaraço em relação à nossa juventude das festas “raves” e “ecstasys”. O jovem cubano quer expressar-se e quer ter voz. Talvez ainda seja cedo para falar tudo que querem. Mas esse dia chegará. Há esperança na fala e na atitude deles. A impossibilidade de sair da Ilha faz com que a mente deles viaje por meio de nossas histórias e experiências. Receber-nos é receber o mundo. E, talvez por isso, nos recebam tão bem e de coração tão aberto. Fazer esse trabalho já fazia muito sentido para mim devido ao fato de estar conhecendo e tendo a chance de mostrar o meu olhar sobre uma realidade tão diferente da nossa, da minha. Depois de ter conhecido todos os cubanos que conheci, esse sentido aumentou ainda mais.
O QUE TEM DEPOIS DAQUELA PORTA? Descobri que nem só de romantismo e idealismo vive a Ilha mais isolada do mundo politicamente.
Cuba tem diversos problemas. A falta de comércio com o mundo torna a Ilha um país isolado, atrasado e precário em serviços e em produtos industrializados e de primeira necessidade. Falta é a palavra que impera sobre todas as outras quando falamos sobre Cuba. Porém, a ausência mais grave não é a de papel higiênico nem a de sabonetes, mas a de liberdade, de falta de comunicação. O cubano é curioso de uma maneira geral. Há os jovens que querem conhecer o mundo, que gostariam de, ao menos, ter a opção de escolher entre ficar ou sair da Ilha. Os mais velhos, os contemporâneos da Revolução, já parecem não fazer tanta questão. Conheci um dos mensageiros do hotel “Habana Libre”, o Sr. Vivir, de mais ou menos 75 anos. Ele me disse que gosta tanto de viver em Cuba que sua mulher já está nos EUA há cerca 25 anos, e ele não pensa em encontrá-la. “Se quiser, ela que volte”. Para os jovens que querem sair da Ilha, o primeiro obstáculo não chega nem mesmo a ser o visto de saída do país e o de entrada em qualquer outra nação, por incrível que pareça. O problema é o salário médio que eles recebem. Com em média 10 dólares
por mês, fica impossível fazer economias e juntar o suficiente para comprar uma passagem aérea. Sair de Cuba pelo mar, em lanchas, e arriscar suas vidas evidentemente não é o que a maioria deseja. Os jovens não querem olhar para trás e verem que deixaram suas famílias e, o mais triste, que não poderão voltar a hora que quiserem. Ouvi de um dos jovens que conheci, o fotógrafo Abel Ernesto, de 35 anos, que ele queria viajar pelo mundo, atravessar fronteiras e ter novas experiências, trabalhar no que for para um dia voltar e morrer em Cuba. “Aqui é meu lar, onde eu quero estar no fim da minha vida”, disse.
Meios de comunicação “antigos” e “novos” Na televisão cubana, além das novelas brasileiras e das nacionais, vemos também shows de músicos cubanos, enquetes como “povo fala” sobre o uso de camisinha, palestras sobre nutrição, incentivo ao turismo, comerciais dos aquários de Santiago de Cuba, anúncios de troca de casas, alguns poucos jornais com notícias locais. E que só falam bem do governo, claro. Em Cuba não existem bancas de jornal e revistas. O Granma é o jornal oficial do Partido Comunista, com ti-
ragem de aproximadamente 400 mil exemplares diários. Há também o semanário sindical, Trabajadores. Tudo controlado pelo governo, ou seja, não entram em nenhum meio de comunicação oficial matérias, artigos, crônicas ou qualquer outro tipo de texto que fale mal do governo, que expresse a dura realidade vivida pelo povo cubano. A internet acaba sendo o único meio de acesso e de expressão a alguma opinião diferente da do Partido Comunista. Com ela, os cubanos têm acesso ao “nosso” mundo, ao que acontece fora da Ilha. Porém, não são todos os cubanos que têm condições e até mesmo acesso a computadores e a internet. Ao trocar telefones e contatos com alguns cubanos, ouvi às vezes pedidos de desculpas, dizendo que eles ainda não tinham e-mail e que o telefone ainda era a melhor maneira de contatá-los. Os que têm e-mail e acesso a internet correm o risco de serem rastreados a qualquer momento pelo governo. Existe um departamento que faz esse rastreamento aleatório aos e-mails dos cubanos, “suspeitos” ou não. Mesmo com todas essas restrições, a internet é o meio de comunicação e de expressão mais democrático que existe na Ilha.
Talvez “democrático” não seja a palavra mais adequada para definir a internet cubana. A blogueira Yoani Sánchez, de 34 anos, escreve diariamente no blog Generación Y, criado por ela e um dos primeiros em Cuba. Yoani fala sobre o cotidiano do povo cubano, a falta de liberdade, a escassez de produtos de primeira necessidade, entre outros assuntos “polêmicos”. O blog está com acesso bloqueado há mais de um ano para quem tenta acessá-lo de Cuba. Infelizmente, não consegui contato com Yoani, e quando pergunto às pessoas se alguém a conhece ou se já leram seu blog, ninguém confirma, e o assunto é rapidamente deixado de lado. Quando estava no aeroporto José Martí, em Havana, voltando ao Brasil, alguns amigos cubanos foram encontrar-me para se despedirem. A pergunta que mais me marcou em toda a viagem veio do fotógrafo Abel Ernesto, ao me acompanhar na fila da Polícia Federal. Ele olhava para a porta que ficava depois do guichê, onde os passaportes são carimbados, e me perguntou: “O que tem depois daquela porta?” A pergunta, não tenho dúvidas, é a mesma de muitos cubanos.
Crianças em San Francisco, Lleguipon “Quero leite tia!”
Vista noturna da cidade, pela varanda do Habana Libre Hotel, em Vedado
Parados no tempo. Havana Vieja
Lleguipon, San Francisco
A mesma vista durante o dia
Cenas do cotidiano. Bairro do Prado
Artistas se apresentando no centro artístico em Vedado
Sem engarrafamento e buzinas todos os dias parecem feriado na cidade
Crianças se divertem pelas ruas de Centro Havana
Armazém em Havana Vieja
Brincadeira de rua em Lleguipon
Comprar um sorvete importado pode chegar a custar quase um terço do salário de um cidadão cubano
Ruas de Havana Vieja
As ruas de Havana pelo olhar do motorista
Ruas de Centro Havana
Ernst Hemingway, Nobel de literatura em 1954 morou no último andar desse hotel durante alguns anos. Depois se mudou para uma casa em estilo colonial no bairro de San Francisco. Hoje o local abriga um museu dedicado à sua vida e obra
Subsídio alimentar. La bodega. São em locais como esse que a população se abastece com a cesta básica racionada entregue pelo governo. Ela abrange toda a população, mas dura menos de duas semanas. Cada cidadão tem uma espécie de carnê que é carimbado toda vez que o alimento é retirado, para haver o controle. Segundo o Granma, mesmo não sendo suficiente para todo o mês, o governo gasta anualmente mais de 800 milhões de dólares na cesta básica familiar
Avenida beira mar. Malecón
Feira livre em Vedado
Em Havana, existem os táxis comuns, com taxímetro (que quase nunca são ligados, os preços são pré-combinados) e os táxislotação. É mais barato e por isso o mais utilizado pelos havaneses
Táxi estacionado em frente ao Hotel Nacional em Vedado
Fachada de prédio em Havana Vieja
Cena cotidiana na favela popularmente conhecida como Lleguipon, no bairro de San Francisco
Porta de ambulância vira portão de casa em Lleguipon
Lleguipon, San Francisco
Em troca, podem pedir dinheiro, sabonete, roupas, chinelos, enfim, tudo que falta em Cuba O filme “Morango com Chocolate” aborda o tema da homossexualidade em Cuba. Fala sobre preconceito e discriminação na Ilha que parou na década de 1950. Achei curioso andar pelas ruas de Havana e ver um travesti andando no meio da rua. Talvez haja uma tolerância maior às minorias do que vemos documentado em filmes, livros e reportagens
Sem a opção de sair do país para viajar ou fazer intercâmbio, as festas de debutantes ainda são tradicionais entre as meninas que fazem 15 anos. Elas se vestem como noivas para essa ocasião.
Cena cotidiana em Havana Vieja
Jornal O Granma. Leitura é popular entre os idosos
Moradora de Havana Vieja
Tente tirar uma foto dessas senhoras sem dar nada em troca. Posar para turistas é o ganha-pão delas, e elas fazem esse trabalho muito bem
Diversas religiões coexistem em Cuba. Sobreviveram tanto o catolicismo dos conquistadores espanhóis como os cultos dos escravos africanos. A crença afro mais popular é a Santería, ou Regla de Ocha. O aspirante a sacerdote deve se submeter a uma semana de intensa cerimônia, e durante um ano tem de se vestir de branco, manter os pés e cabeça cobertos, entre outras regras estritas de conduta. [Eles também não podem ser fotografados, mas descobri isso tarde demais]
Cena de uma escola em Havana Vieja. Vazia, devido ao período de férias. Mesmo antes da Revolução, o país já era um dos que apresentavam os menores índices de analfabetismo da América Latina. A blogueira cubana, Yoani Sanchez defende que a questão principal hoje não é a taxa de alfabetização, e sim o que os cubanos irão ler depois de alfabetizados. Ela diz que na sala de aula de seu filho de 14 anos, “há seis fotos de Fidel Castro e tudo que se ensina nas escolas é o marxismo, o leninismo, essas coisas. Não se sabe o que acontece no resto do mundo.”
“A Idade de Ouro”, como no livro de José Martí
Bandeira hasteada em frente ao Hotel Nacional
Abel Ernesto e Roberto Morejon, ambos fotógrafos e editores, numa tarde de trabalho na Agencia Cubana de Notícias.
Sebo na Plaza das Armas em Havana Vieja. Livros de José Martí, o grande pensador que inspirou os revolucionários Che e Fidel são facilmente encontrados
Ministério Del Interior. Escultura de Che Guevara é ponto turístico em Havana
Monumento aos heróis da pátria no Museu da Revolução
Casa de Abel Ernesto Tribuna Anti Imperialista ou Monte das Bandeiras Negras, localizada em frente à sede da Oficina de Interesses dos EUA. Cada bandeira representa os 138 anos de luta ininterrupta contra o imperialismo, que começou em outubro de 1868 com a batalha pela independência. Talvez seja a maior representação do repúdio do governo cubano aos EUA
A comemoração dos 50 anos da revolução é relembrada em todo lugar
As pessoas encontram maneiras diversas de celebrar os 50 anos da revolução cubana. Seja com tinta ou com um simples pedaço de papel colado na parede
Malecón. O calçadão à beira mar tem uma extensão de aproximadamente 7 km e passa pelos bairros históricos da cidade como Centro Habana, Prado e Vedado. Sua localização privilegiada de frente para o mar e com a cidade de fundo faz dele um local popular entre os jovens namorados
Talvez nenhum outro lugar represente a poesia de Havana melhor do que o Malecón
Trompetista no fim de tarde do Malecón
CUBA SOZINHA
28 de julho. Dois dias após as comemorações dos 50 anos da revolução. Palanque montado perto do Malecón
VERÃO DE 2009
CUBA SOZINHA VERテグ DE 2009
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