THE PRESIDENT

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Edição 27 • dezembro 2016 • flávio rocha

THEPresident Edição 27 dez/jan/fev 2017

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flávio rocha

CEO do Grupo Guararapes

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editorial

O

empresário Flávio Rocha, presidente do Grupo Guararapes, dono das Lojas Riachuelo, uma dos gigantes do varejo brasileiro, é um homem de opinião própria. Enquanto a maioria de seus pares e concorrentes não se cansa de reclamar das condições adversas do mercado e coloca o pé no freio dos investimentos, a Riachuelo viu suas vendas crescerem 6% no primeiro semestre de 2016 – e o faturamento superar R$ 6 bilhões nos últimos 12 meses. O número de lojas distribuídas pelo Brasil chegou a 290, das quais 30 inauguradas de um ano e meio para cá. Num ano terrível como foi 2016, as opiniões de nosso entrevistado de capa levam à reflexão. Rocha foi durante 17 anos deputado federal. Começou no PL, esteve em outros partidos – inclusive no PRN, de Collor – e voltou ao PL. “Recomendo a todos os empresários ter alguma forma dessa vivência política”, diz, salientando que a empresa deseduca em muitos aspectos. “Ela é monarquia, enquanto a política é república, levada às últimas consequências.” Segundo ele, a empresa privada impõe uma deformação. “Você pode tudo: ‘Pinte essa parede de vermelho’, ‘Ponha essa mesa para lá’, ‘Você está demitido’”, exemplifica. “Na política, não. É um jogo de xadrez mais fascinante e complexo, onde todas as peças são movidas de modo democrático pelo convencimento.” Um dos porta-vozes do liberalismo econômico no país, Rocha diz textualmente que ninguém defende a ausência de Estado e que os liberais mais entusiasmados chegam ao Estado mínimo. A este caberia gestão da moeda, justiça, polícia, além de arcar com o custo de saúde e educação. “Mas não deve gerir saúde e educação”, afirma. “Ao geri-las, o Estado se atrapalha.” Finalmente, nestes tempos de tempos de Lava Jato, sobre empresários que mamam nas tetas do Estado, ele diz ser completamente diferente de Marcelo Odebrecht ou de Eike Batista. “Sou um empresário de mercado”, esclarece. Para ele, trata-se de outra estirpe, com outro padrão moral, outro sistema de incentivos, de estímulos. “O empresário de conluio é uma deformação.” Boa leitura, boa reflexão e avante em 2017.

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expediente

the president Publicação trimestral da Custom Editora edição 27

publishers André Cheron e Fernando Paiva

REDAÇÃO Diretor editorial Fernando Paiva fernandopaiva@customeditora.com.br diretor editorial adjunto Mario Ciccone mario@customeditora.com.br redator-chefe Walterson Sardenberg So berg@customeditora.com.br Repórter Juliana Amato julianaamato@customeditora.com.br ARTE editor Guilherme Freitas guilhermefreitas@customeditora.com.br assistente Raphael Alves raphaelalves@customeditora.com.br prepress Daniel Vasques danielvasques@customeditora.com.br PROJETO GRÁFICO Alessandro Meiguins e Ken Tanaka COLABORARAM NESTE NÚMERO Texto André Borges Lopes, Eça de Queirós, Eugenio dos Santos, Jaime Spitzcovsky, Joaquim Ferreira dos Santos, Luiz Guerrero, Marcello Borges, Marion Frank, Nelson Letaif, Nina Horta, Roberto Muggiati, Ronaldo Bressane e Silvana Assumpção Fotografia Brian Flaherty, Pedro Dimitrow, Marcelo Spatafora e Maurício Nahas Tratamento de imagens Felipe Batistela ilustração Guilherme Freitas e Raphael Alves Revisão Goretti Tenorio Capa Flávio Rocha, fotografado no Centro de Distribuição da Riachuelo, em São Paulo, por Pedro Dimitrow THE PRESIDENT facebook.com/revistathepresident @revistathepresident www.customeditora.com.br

PUBLICIDADE Diretor executivo André Cheron andrecheron@customeditora.com.br diretor comercial Oswaldo Otero Lara Filho (Buga) oswaldolara@customeditora.com.br Gerente de Publicidade e Novos Negócios Alessandra Calissi alessandra@customeditora.com.br executivOs de negócios Northon Blair northonblair@customeditora.com.br Bruna do Vale brunadovale@customeditora.com.br ANALISTA DE MAILING Marcia Gomes marciagomes@customeditora.com.br ADMINISTRATIVO/FINANCEIRO Analista financeira Carina Rodarte carina@customeditora.com.br Assistente Alessandro Ceron alessandroceron@customeditora.com.br REPRESENTANTES REGIONAIS BBI Publicidade – Interior do Estado de São Paulo Tel. (11) 95302-5833 Tel. (16) 98110-1320 / (16) 3329-9474 comercial@bbipublicidade.com.br GRP – Grupo de Representação Publicitária PR – Tel. (41) 3023-8238 SC/RS – Tel. (41) 3026-7451 adalberto@grpmidia.com.br CIN – Centro de Ideias e Negócios DF/RJ – Tel. (61) 3034-3704 / (61) 3034-3038 paulo.cin@centrodeideiasenegocios.com.br Tiragem desta edição: 8.500 exemplares CTP, impressão e acabamento: Log&Print Gráfica e Logística S/A Custom Editora Ltda. Av. Nove de Julho, 5.593, 9º andar – Jardim Paulista São Paulo (SP) – CEP 01407-200 Tel. (11) 3708-9702 ATENDIMENTO AO LEITOR atendimentoaoleitor@customeditora.com.br Tel. (11) 3708-9702

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sumário

© reprodução

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22 VISÃO

63 black book

28 AUDIÇÃO

80 estilo

Sucesso nas telas, a atriz francesa Eva Green permanece um enigma

Três momentos na vida de Chet Baker. E uma dúvida: afinal, ele se matou ou foi um acidente?

32 OLFATO

Chega o fim de ano e, com ele, as lembranças de aromas dos antigos Natais

36 PALADAR

A fruta mais consumida no mundo é exaltada na cultura: Sua Excelência, a banana

40 TATO

A tatuagem vive grandes dias, 5.300 anos depois da primeira de que se tem notícia

44 adega

Quem disse que o gim estava fora de moda? Que saiba: ele fez um retorno triunfal

48 capa

O mercado autorregulável é a profissão de fé de Flávio Rocha, do Grupo Guararapes

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© Brian Flaherty

dezembro 2016

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Lançamentos do Salão de Genebra, o novo Calendário Pirelli e viagens pelo mundo

Esnobismo mesmo é discutir por décadas e décadas a origem desta palavra

100 116 vento

A queda de um Boeing na Amazônia, em 1952, foi explorada de modo polêmico

122 mulher

Giu Bontempi não viveu os anos 1970. Mas soube revivê-los como raras modelos

86 perfil

130 luxo

94 memória

136 viagem

100 motor

148 artigo

104 velocidade

154 THE PRESIDENT

Ele é o último escritor beat. Mas, aos 97 anos, Lawrence Ferlinghetti virou pintor

Ascensão e glória de um jeito muito brasileiro de fazer jornalismo: a coluna social

De cara nova, o Suzuki New Vitara oferece muitas possibilidades de customização

Capaz de desafiar Ferrari e Porsche, o Model S, da Tesla, chega ao Brasil

La Prairie, conhece? Esse spa suíço é como o seu país: belo, discreto e eficientíssimo

Um ensaio fotográfico revela a Havana por trás da cidade que pranteou Fidel

Quem ousa ocupar o Afeganistão colhe os mesmos fracassos dos ingleses no século 19

Donald Trump odiou a foto de sua papada. Resultado: ela se espalhou pelo planeta

110 garagem

Novidades de Ford, Mercedes, Porsche, Maserati, Brabus e Chrysler

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136 © maurício nahas

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Renato Parada

colaboradores

CAPA

Visão

OLFATO

ronaldo bressane

NINA HORTA

Eva Green tem o prenome da primeira

As crônicas sobre culinária desta mineira

CartaCapital, Época e Forbes Brasil.

mulher. E o sobrenome da cor de

de BH são deliciosas. Disso sabe muito

Jornalista de justificada fama na área

seus olhos. Ao escrever sobre a atriz,

bem o público cativo que acompanhada a

de negócios, também teve longa

contudo, Bressane evitou esses clichês.

ex-dona de buffet, formada em educação

experiência no mundo corporativo, como

É sempre assim com este criativo escritor,

pela USP, desde que publicou a primeira

diretor de comunicação da multinacional

jornalista, tradutor, roteirista e professor

delas na Folha de S. Paulo, lá se vão

Braskem. Foi o nosso escolhido para

de escrita criativa. Um homem de sete

mais de 25 anos. Para esta edição, ela

entrevistar o empresário Flávio Rocha.

instrumentos. Se isso não fosse um clichê.

rememorou aromas dos antigos Natais.

TATO

Adega

PERFIL

Trine Prahm

nelson letaif Ele fundou três revistas conceituadas:

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SILVANA ASSUMPção

marcello borges

Marion Frank

“Sempre quis fazer uma tatuagem, mas fui

Não foi à toa que o escolhemos para

Vivendo no momento em San Francisco,

adiando”, confessa esta versátil jornalista

escrever dois textos. Um sobre a volta

na Califórnia, a experiente jornalista

carioca, radicada há três décadas em São

triunfal do gim. Outro sobre a história,

surpreendeu-se ao saber que o poeta

Paulo, onde trabalhou em revistas como

muito britânica, do esnobismo. Marcello

Lawrence Ferlinghetti morava sozinho na

Exame e CartaCapital. Depois de escrever

é anglófilo de carteirinha e professor

cidade, aos 97 anos. Decidiu procurá-lo.

um texto sobre tattoos, para esta edição,

de charutos e bebidas destiladas da

“Sempre fui fã de seus versos”, diz. O

ela tomou a decisão. Vai, enfim, fazer a tal

Associação Brasileira de Sommeliers.

resultado é um texto envolvente que leva

tatuagem. Só falta escolher o desenho.

E, acima de tudo, um bon vivant.

o leitor ao mundo do último dos beats.

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Leo Aversa

colaboradores

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memória

Velocidade

Joaquim Ferreira dos Santos

Luiz Guerrero

andré borges lopes

Dono de um dos textos mais saborosos

Ele escreve como poucos sobre os mais

Ainda garoto em Uberaba (MG), seu

da imprensa brasileira, este carioca da

diversos assuntos. Mas quis a paixão

sonho era ser médico. Desistiu para

Penha acaba de lançar Enquanto Houver

pelos motores a explosão que o atual

estudar história e jornalismo. Consultor

Champanhe, Há Esperança, uma biografia

diretor de redação da revista Car and

em tecnologia editorial e gráfica, é um

do jornalista Zózimo Barrozo do Amaral.

Drive firmasse uma longa e bem-sucedida

apaixonado por aviação. “A miopia me

Um dos personagens, por sinal,

carreira na imprensa automotiva. Neste

impediu de tirar brevê”, conforma-se o

do texto que escreveu sobre a notória

número seu assunto é o carro elétrico

autor do texto sobre a rocambolesca

evolução do colunismo social no país.

Tesla Model S. E seu motor sem explosão.

queda de um Boeing no Brasil de 1952.

VIAGEM

ARTIGO

ARTIGO

VENTO

maurício nahas

eça de Queirós

JAIME SPITZCOVSKY

Fotografando para publicidade, este ex-

Ele foi, sem dúvida, o principal escritor

Antes de se tornar colunista da Folha

estudante de medicina (largou a Santa

português do século 19 – e um dos

de S. Paulo, o paulistano da zona leste,

Casa no terceiro ano) já abocanhou três

maiores de toda a literatura mundial –,

apaixonado por animais de estimação, foi

Leões de Prata, dois de Ouro e um de

autor de romances como Os Maias. Nesta

correspondente do jornal em Moscou

Bronze, no Festival de Veneza. Eclético,

edição, recuperamos um aspecto pouco

e Pequim, ao longo de “sete cabalísticos

também faz editoriais de moda, portraits

conhecido, hoje, de sua obra: as crônicas

anos”. Expert em política internacional,

e fotos de viagem. Como as de Cuba, que

sobre política internacional, com um

escreveu sobre a situação no Afeganistão,

lhe renderam livro e exposição.

texto de 1880 sobre o Afeganistão.

fazendo contraponto com o texto de Eça.

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visão

POR Ronaldo bressane

esfinge fatal A sex symbol francesa Eva Green é um enigma que se esconde à frente de todos

E

xistem poucas experiências no cinema moderno tão intoxicantes quanto assistir a Eva Green se comportar mal. Ela é a fêmea fatal que une admiradores homens e mulheres, uma Bond girl que come Bond no café da manhã, que fala na língua dos demônios e liquefaz semideuses só com o olhar. A francesa de sotaque britânico é dona de um dos rostos mais icônicos do século 21. Esculpido em ângulos retos, é um rosto inteligente, atento e antigo, de alguém que já tivesse visto de tudo. Talvez o enigma comece em seu jeito de olhar oblíquo e sombreado, como se olhasse um tantinho acima do objeto que observa, um gato que observa algo que não conseguimos ver por trás de nós – escorridos lateralmente a lápis, seus olhos grandes e alongados espelham nossa própria crueldade e desfaçatez para com o mundo. A cor desses olhos de musa do pintor Gustav Klimt varia entre o azul, o verde e o turquesa, e parece ter nascido antes do rosto (os olhos nasceram e ficaram esperando o corpo, descreveria Manuel Bandeira). Sublinhado pelas sobrancelhas retas

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que caem suave e repentinamente, seus olhos oferecem uma feição tão cativante quanto gélida. Seu nariz semita é comprido, fino e levemente arrebitado; o queixo é triangular, simétrico. Seus lábios são carnudos e sinuosos, compassivos e cruéis como os da amante que enfia um punhal no peito de seu homem enquanto o monta. “Eu era muito tímida – aliás ainda sou – e minha escola me forçou a ter aulas de teatro quando eu tinha 12 anos porque acharam que seria bom pra mim. Minha mãe foi atriz, mas ela parou quando virou mãe, e sempre me disse que era um trabalho cruel. Fui estudar artes cênicas, mas pensando em ser cineasta. Quando comecei a atuar, me senti viva. E cá estou.” Eva Green nasceu há 36 anos em Paris, sob o signo de câncer, loura – pinta os cabelos de negro desde o teatro. Ela já sonhava em trabalhar com o diretor Tim Burton desde criança, assim como tinha em seu quarto retratos de seus ídolos supremos: Jack Nicholson, de O Iluminado, de Stanley Kubrick; e Marlon Brando, de Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci. Seu pai, o franco sueco Walter Green, é dentista, e a

Em Sin City: matadora

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visão

Com Garrel e Pitt em Os Sonhadores

“Sou um paradoxo: tão tímida e ao mesmo tempo me exponho para milhões de pessoas”, diz a atriz, que já rodou várias cenas em que aparece gloriosamente nua, transformando-se em sex symbol sua mãe, a franco argelina Marlène Jobert, de origem judia sefardita, teve uma bela carreira. Ela estrelou o filme Masculin Féminin, de Jean-Luc Godard, e outros clássicos da nouvelle vague, até parar de atuar para criar Eva e sua irmã gêmea não idêntica, a loura Joy. “Eu não era popular na escola”, Eva relembra. “Era uma geek total. Ficava vermelha e paralisada só de o professor me perguntar alguma coisa.” Em 2003, depois de ser indicada ao prêmio Molière por alguns papéis no teatro, debutou em Os Sonhadores, de Bernardo Bertolucci. Tendo como pano de fundo as manifestações estudantis de Maio de 68 em Paris, Os Sonhadores segue Eva e Louis Garrel, um casal de gêmeos incestuosos que são

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apaixonados por cinema. A dupla convida o americano Michael Pitt para ficar com eles em seu apartamento enquanto os pais estão viajando. Em várias cenas Eva está gloriosamente nua, o que se tornou uma constante em sua carreira e a tornou uma sex symbol planetária. “Sou um paradoxo: tão tímida e ao mesmo tempo me exponho para milhões de pessoas”, comenta. “Não entendo direito como isso funciona. Acho que preciso fazer terapia”, brinca. Há uma cena que deveria ser colocada em uma cápsula do tempo e enviada ao espaço sideral para que os seres de outros sistemas recordem desta civilização. Para que se lembrem de que na Terra houve uma civilização que deu ao universo Eva Green. É

aquela cena em que a atriz, de longas luvas negras e saia branca, emerge do corredor escuro dentro de seu quarto cor-de-rosa (“Que escultura eu sou?”, ela pergunta a Pitt, deitado em sua cama), ao som dos Doors (“I’m the spy in the house of love/ I know the dreams that you’re dreaming of”). Depois de emular uma perversa Vênus de Milo, ela senta-se tranquilamente, sorrindo, em cima da cara de Pitt. E sussurra com sua voz grave: “Não posso parar você de fazer isso, não tenho braços”. A grande amor de Bond

– Sou o dinheiro – diz Vesper. – Cada centavo dele – rebate James. – Espero que você tenha dado um inferno aos seus pais por este nome. Sua beleza é um problema. Imagino que você tema não ser levada a sério. – Isso é o que qualquer um com

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Ela apareceu com o ex, Ewan McGregor, em Sentidos do Amor. Ao lado, em 300 e Casino Royale

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visão

Em Lar das Crianças Peculiares, ela viajou no tempo

metade do seu cérebro diria a uma mulher atraente. Em Casino Royale, de Martin Campbell, Eva Green redesenhou o papel do 007 sendo a Bond girl quintessencial: a ambígua e enigmática agente secreta Vesper Lynd, única mulher por quem o agente secreto se apaixonou de verdade. Não é exagero dizer que Daniel Craig teria fracassado caso não contracenasse com uma mulher como Eva Green. Vesper é alvo da mais famosa fala escrita por Ian Fleming, “The bitch is dead”, dita por um frio 007 depois de descobrir ter sido traído pela agente que roubou o dinheiro do MI6 para salvar um ex-namorado. “Você pensa em mulheres como prazeres disponíveis em vez de buscas significativas”, a personagem diz a Bond em dado momento, soando como uma maldição: depois de Vesper, 007 se torna um mero mulherengo. Embora Fleming não tenha tido a sorte de conhecer Eva Green, quem sabe sonhasse com ela quando batizou sua

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mais famosa personagem – Vesper, que significa véspera, é também o nome da Estrela da Tarde, Vênus, que, de manhã, ganha o nome de Lúcifer. Eva emergiu de novo no mainstream em 300: Rise of an Empire, de Zack Snyder, como Artemisia, eclipsando aquele mar de testosterona grega na primeira aparição, e claro que não é por causa dos brincos gigantescos que usa. “Ela é muito corajosa, obcecada com dinheiro e poder. Nunca se desculpa por seu comportamento – e eu gostaria de ser um pouco assim como ela”, Eva disse, candidamente. Em outra quentíssima cena de sexo, contracena com o sortudo Sullivan Stapleton, opondo os seios nus a um de seus olhares mais malvados. Em Sin City – Uma Mulher Por Quem Morrer, de Robert Rodríguez, ela mais uma vez usa a nudez como arma para seduzir e matar. “She builds you up to just put you down, what a clown” (“Ela te ergue apenas para te colocar para baixo, como um palhaço”),

cantaria Lou Reed. O cartaz do filme, que mostra sob um vestido translúcido seus seios à prova de teste da caneta (você coloca uma caneta sob eles e ela sempre cai), foi proibido. Um sofrido Josh Brolin se abre todo: “She owns me, body and soul”. Você simpatiza e entende a dor do cara. No recente Lar das Crianças Peculiares, Eva é uma diretora de orfanato que viaja no tempo, fuma cachimbo, transforma-se em falcão e cuida de crianças com poderes especiais. “Eva não é alguém que você saca de cara”, diz Tim Burton. “Há algo de reservado e misterioso nela que não é comum em sua idade e hoje em dia”, derrama-se o apaixonado diretor. O poeta paulista Fabrício Corsaletti tentou captar a musa em um poema prosaico de Ensaios Sobre Seu Corpo: “Prometer levar Eva Green a Picinguaba/ onde o mar é verde como os olhos de Eva Green/ agora sim mostrar para Eva Green os poemas que fiz para Eva Green/ depois voltar ao hotel com Eva Green/

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Penny Dreadful: a bela virou bruxa

massagear os pés de Eva Green/ e deixar que Eva Green durma tranquila então abrir a janela e tomar uma dose de uísque/ olhando as estrelas e relembrando a infância/ e sentir a maresia invadir o quarto e a cama/ onde Eva Green dorme de lado com minha camiseta/ e esfrega um pé no outro enquanto sonha”. Mesmo se estiver totalmente nua na tela, Eva mais desvenda do que oferece, e nunca sabemos o que ela está realmente pensando. O vinho da sexta-feira

Eva Green encontrou um papel à altura na série de terror Penny Dreadful, em que protagoniza a bruxa Vanessa Ives, impenetrável ao mesmo tempo que porosa a espíritos e felizes lobisomens. “Sempre penso: não dá pra ficar ainda mais sombrio”, brinca. “Mas você nunca conhece essa personagem mesmo que ela preencha completamente a sua cabeça.” Contracenando com Doutor Frankenstein, Dorian Gray

“Eva não é alguém que você saque de cara”, derrama-se o apaixonado diretor Tim Robins. Ele acrescenta: “Há algo de reservado e misterioso nela que não é comum em sua idade e hoje em dia” e Drácula, possuída por demônios, girando os olhos para dentro e falando em várias línguas, Eva nos cativa para sempre na trama escrita por John Logan e ambientada na Londres vitoriana, cujos episódios terminam ainda mais assustadores do que os anteriores. “Ser possuída, às vezes, é libertador”, diz esta bruxa, que, apesar da origem judaica, diz não professar nenhuma religião. Eva foi mais longe do que nunca em Penny Dreadful, evoluindo em todos os graus possíveis entre o sensual e o mal. “Na primeira temporada, aprendi algo de latim, árabe, alemão e lingala, um dialeto congolês. Mas aí alguns linguistas criaram a língua ‘verbis diablo’, então agora misturo tudo e abaixo minha voz uma oitava”, explica. “Representar Vanessa é como tomar uma droga. Às

vezes exaustivo, mas sempre triunfante. Prefiro personagens como ela a papéis leves. Tem algo físico nisso que é muito divertido. Mas é tão intenso que depois de filmar vou pra casa, deito com uma taça de vinho e mal consigo me mexer”, diz Eva, cuja visão de sexta-feira perfeita é beber um vinho ao pé da lareira enquanto lê um romance fantasioso do espanhol Carlos Ruiz Zafón. Avessa a eventos sociais, Eva nunca se casou e esconde tão bem a vida pessoal que apenas desconfiamos de seus namorados – Orlando Bloom, Ewan McGregor, Johnny Depp e, dizem as más línguas, Tim Burton. Não se sabe. Talvez esta reclusa musa passe as noites nua, bebendo, conjurando e amando espíritos antigos. Com Eva Green, nunca se sabe. P

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audição POR ROBERTO MUGGIATI

Na trilha de Chet Baker Três encontros com o grande trompetista: em Florença (1961), Londres (1963) e Rio de Janeiro (1985)

O

novo filme sobre Chet Baker, Born to Be Blue, me fez lembrar o velho amigo do trompete. Nossos caminhos se cruzaram pelo mundo, de 1961 a 1985 – um quarto de século de uma intensa relação entre música e jornalismo. A primeira vez que vi Chet foi sob o teto do Tribunal de Apelação de Florença. Eu iniciava minha viagem de férias na Itália. Sexta-feira, 8 de setembro de 1961, li num jornal sobre a audiência e compareci à sessão, aberta ao público. Meu primeiro Chet, sem trompete: reservado, envergando um paletó, na companhia do advogado, diante de uma solene bancada de juízes. Cumpria pena de um ano, sete meses e dez dias no cárcere de Lucca, cidade natal de Giacomo Puccini. Mais um imbroglio de Chet na busca por anfetaminas e estupefacientes para preencher seu imenso vazio existencial. O promotor público, na proximidade de Chet, não se conteve: “Rosto de anjo, coração de demônio”. A apelação não foi acatada pelos meritíssimos togados e Chet voltou à prisão. Mas teria a pena reduzida e deixaria a masmorra de Lucca antes do Natal de 1961.

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Fevereiro de 1963. Eu estava morando em Londres e Chet também, com a mulher inglesa, Carol, que o amparou no pesadelo italiano. Aquele foi realmente o inverno da nossa desesperança. No livro The Neophiliacs/A Study of the Revolution in English Life in the Fifties and Sixties, Christopher Booker evoca: “A extraordinária natureza do ano foi anunciada e agravada na Grã-Bretanha por três meses do pior inverno registrado em mais de 200 anos, trazendo caos e paralisia a quase todo campo de atividade humana. Sobre Londres, o fog pairava como uma mortalha, combinando com a neve para dar à cidade um ar de irrealidade fantasmagórica”. Booker batizou 1963 de “The Year of the Death Wish” (“O Ano da Ânsia de Morte”). A poeta americana Sylvia Plath, que morava em Londres, suicidou-se enfiando a cabeça no forno em 11 de fevereiro. Chet se matava mais lentamente. A lei britânica protegia os viciados. Podiam se drogar legalmente com receitas do seu terapeuta (sua médica era Lady Isabella McDougal Frankau), enquanto faziam tratamento de desintoxicação. Baker ganhou algum dinheiro vendendo a história de sua vida para os tabloides britânicos

(matérias sensacionalistas como “Trinta mil buracos de inferno no meu braço”, escritas por um ghost writer) e frequentou o “carrossel da meia-noite de Piccadilly”. Ficavam ali as farmácias abertas 24 horas e, como a validade da receita começava à meia-noite, não havia um segundo a perder. Comprada a droga, era correr para se picar nos toaletes do metrô. Dividindo agulhas de injeção com estranhos, Chet contraiu uma infexão que causou septicemia. Foi hospitalizado. Depois, se meteu em tanta encrenca que até a complacente Grã-Bretanha o deportou para a França. Eu o ouvi uma noite no clube de jazz Ronnie Scott’s, com um chapéu branco e sandália de couro com meias de lã, no melhor estilo dos turistas alemães. No intervalo, abordei-o de leve, comentando que a primeira vez que o vira fora no Tribunal de Florença. Ele balançou a cabeça e disse: “Yeah, what a drag, man!” (“É, que chato, cara!”). O mesmo comentário que fizera quando soube que seu pianista italiano, Romano Mussolini, era filho do Duce: “É, cara, que Um solo em Milão. Ele morou na Itália, até de modo compulsório. Esteve preso

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audição

© Bob Willoughby/Redferns

Encarcerado em Florença e ensaiando em Londres. Sempre uma vida turbulenta, prejudicada pelo consumo de drogas

Chet gostava de escalar paredes. Há quem acredite que sua morte, ao cair do segundo andar de um hotel, tenha ocorrido justamente por ter tentado subir até o seu quarto pelo lado de fora do prédio chato o que fizeram com seu pai, não?”. (Benito Mussolini foi linchado numa praça de Milão ao fim da guerra.) Vinte e quatro anos menos um mês depois daquele dia em Florença, tive a oportunidade de uma entrevista exclusiva com Chet Baker. Conversamos durante uma hora à beira da piscina do Hotel Nacional do Rio de Janeiro, no dia 8 de agosto de 1985. Chet era a grande estrela da primeira edição do Free Jazz Festival e enfrentou o tête-à-tête com uma paciência zen. Comecei lembrando seu encontro com Charlie Parker na Califórnia: uma fila de trompetistas fazendo teste para o quinteto de Bird. Parker pergunta: “Tem um Chet Baker por aí?”. Os dois tocam alguns compassos de um standard e de um blues e Bird, satisfeito, diz: “Acabou a audição”.

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“Era protetor, nunca deixava ninguém se aproximar de mim, principalmente traficantes”, Chet me contou. “Eu tinha 22 anos. Ele tentava me poupar. Passávamos muito tempo juntos, rodando de carro por L.A. Descobri que era um homem muito doce e nada complicado.” O famoso pianoless quartet de Gerry Mulligan e Chet Baker nasceu por acaso: “Gerry veio de Nova York e queria formar um grupo. Tinha uma namorada metida, que se gabava de ter introduzido as maracas no jazz... Criou confusão e o ensaio foi desmarcado. Recomeçamos sem ela e sem o pianista e vimos que não precisávamos de pianista. Ficamos um ano num clube de L.A., gravamos dois álbuns e fomos eleitos os melhores do ano – ele no sax barítono, eu no trompete”. A dupla lendária só durou um ano.

“Gerry pegou um flagra de droga e foi para a cadeia. Quando saiu, éramos superfamosos, com um cachê altíssimo, mas ele não queria me pagar um centavo a mais. Aí formei o meu próprio grupo. Hoje ele é casado com uma condessa italiana e se dá ao luxo de escolher quando e onde trabalhar. Suas chamadas telefônicas são filtradas pela família, que o protege. Ele gosta das coisas assim, é o oposto de mim.” E Chet o cantor? “Comecei a cantar antes de tocar trompete. Minha mãe me levava a concursos de calouros nas rádios de Los Angeles. Em um deles, consegui o segundo lugar.” Chet fez um balanço da vida: “Tenho 55 anos e ainda estou gravando, tocando. Faço as pessoas felizes com minha música. No palco, nunca perco a concentração, o fio da meada, e sempre tento tocar algo diferente. Embora toque os mesmos temas, toco de um modo diferente”. Em agosto daquele mesmo ano de

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Roberto Mugiatti e o trompestista no Rio de Janeiro, em 1985, quando Chet tinha 55 anos – e aparentava muito mais

1985, Chet teve uma overdose no hotel Maksoud Plaza, em São Paulo. Viera à cidade para um show no Palace. Quem o salvou foi o médico Walter Almeida, contratado para tratar dele em tempo integral. Três anos depois de tocar no Brasil, Chet Baker morreu em Amsterdã, às 3h10 da manhã de sexta-feira, 13 de maio de 1988. Scott Fitzgerald escreveu que “não existe segundo ato nas vidas americanas”. Ele gostava de citar um poema de San Juan de la Cruz: “Na verdadeira noite da alma são sempre três horas da manhã, dia após dia”. O corpo de Chet foi encontrado diante do Hotel Prins Hendrik, próximo à estação ferroviária de Amsterdã, com ferimentos fatais na cabeça, tendo caído aparentemente de uma janela do segundo andar. Heroína e cocaína foram encontradas no quarto e também em seu corpo. Não havia sinal de luta e a morte foi dada como acidental. Uma placa na fachada do hotel o homenageia e o quarto 210 passou a ser chamado de “Quar-

to Chet Baker”. Chet se jogou ou caiu acidentalmente? Existe outra hipótese, ignorada pela maioria. Sem chave, com a portaria do pequeno hotel fechada às 3 da manhã, teria tentado subir ao quarto pelo encanamento pluvial. Ágil e generoso

Cito antecedentes: na primavera de 1983, decidido a morar em Amsterdã, Chet alugou um quarto no apartamento do trompetista Evert Hekkema. Na biografia No Fundo de um Sonho: A Longa Noite de Chet Baker (Companhia das Letras, 2002), o autor, James Gavin, relata: “Pouco depois de se mudar, deixou as chaves da casa dentro do carro e esqueceu onde havia estacionado. Tocou a campainha da vizinha de baixo. ‘Olá, meu nome é Chet Baker’, disse educadamente. ‘Moro no andar de cima e esqueci minha chave.’ Com permissão dela, atravessou o apartamento até o beco dos fundos. A vizinha observou

atônita enquanto Baker escalava as sacadas dos fundos até o apartamento de Hekkema, onde entrou pela cozinha. ‘Ela disse que ele subiu como um gato’, lembrou o holandês. ‘Chegou lá em cima em poucos segundos.’” Quando narra a morte de Chet, Gavin escreve: “Muitas pessoas concluíram que Baker tinha perdido a chave do quarto e procurou escalar a fachada do hotel e reentrar pela janela, caindo durante a tentativa. Certamente ele havia provado sua agilidade felina no passado...” Chesney Henry Baker, Jr. morreu com 58 anos – pouca idade para os padrões de hoje, mas uma eternidade levando em conta seu estilo de vida (ou seu estilo de morte). Mais do que qualquer outro músico de jazz, deixou uma obra imensa. Generoso, Chet às vezes nem sabia que o estavam gravando nas apresentações que fazia nos clubes de jazz ao redor do mundo. Tocar e cantar sempre foi sua paixão maior. P

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olfato POR Nina horta ilustração Raphael alves

Cheiro de Natal No fundo da memória, os aromas começam a emanar quando o fim do ano se aproxima

É

impossível falar do paladar e se esquecer do nariz, dos olhos, dos cheiros. Um não existe sem o outro. E, com o tempo, com tantos anos de vida, vai-se misturando tudo, os brilhos, o gosto, as texturas, os barulhos repetidos. Sabem como me sinto ao tentar lembrar do gosto da vida que passou? Como um caleidoscópio daqueles lindos, coloridos, que misturam as cores e os formatos para nossa alegria. Não vamos falar nas madeleines de Proust para não cair em lugares-comuns, mas pensar que ele escreveu toda aquela obra por causa de biscoitinhos assando, não é incrível? É como a descrição feita por um psicólogo russo, Alexander Luria, sobre

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o caso de um paciente seu que tinha a melhor memória de que jamais se teve notícia no mundo. Transformava sons em imagens visuais e não tinha uma linha separando a audição da visão e do paladar. Sentia o gosto das palavras. Escolhia o que ia comer em função do nome da comida, do som. Quando lhe diziam que maionese era um molho gostoso, não acreditava. O “z” arruinava o gosto com seu som perfurante e oleoso. Agora, se lhe servissem um molho de ovo, tudo bem. Era sempre uma confusão na sua cabeça assolada por tantas associações. Um sofredor. Via cores nos sons, sons nos sabores, gosto das cores, cheiros de texturas. “Ele sente sons uniformes e finos e cores ásperas. Tonalidades salgadas e cheiros brilhantes, claros ou cortantes.” Todos os sentidos funcionavam ao mesmo tempo, e o que caísse ali não era possível deletar. Ficava na caixa de saída, na de entrada, ou até na lixeira, mas com a associação apropriada vinha à tona. “Reconheço uma palavra não apenas pelas imagens que ela evoca, mas por todo um complexo de sentimentos que

desperta. É difícil explicar, não é uma questão de visão ou audição, mas uma espécie de sentido geral que possuo. Geralmente experimento o gosto de uma palavra.” Nosso exemplo de cliente foi tomar um sorvete e a vendedora foi malcriada com ele. Bastou isso para que visse carvão e cinzas saindo da boca da moça. Jogou o sorvete fora. Fez uma associação das palavras rudes dela com bondes barulhentos. Desistiu de comer. Tive um buffet por 30 anos e sabemos disso, intuitivamente. Temos que começar a cutucar o paladar da noiva com palavras. Passamos os dias a elaborar cardápios que atenuem com palavras o excesso de temperos, ou excitem o apetite com acompanhamentos cintilantes e crocantes. Vamos dar o exemplo da papoula. É dessas palavras que alimentam as fantasias, subjugam a imaginação. O estalar dos “pês”, os “as” bem claros, abertos e esticados, entremeados apenas pela gravidade soturna do “ou”. Não se assustem com os cardápios, são mera sedução.

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olfato Quando nosso paciente ouvia música, sentia as notas na língua e achava que modificavam completamente o gosto da comida. Chamava os donos do restaurante e explicava que a música não poderia ser aquela. O dono, antes de fazer a harmonização com a comida, achava mais fácil desligar.

jantares simples e repetidos, os mesmos sabores adquirindo grandeza pela repetição uniforme. Não satisfeitos com as cestas que cheiravam a riqueza e vidas poderosas, as firmas muitas vezes tocavam a campainha, apressadas, e deixavam um bicho vivo nos nossos braços urbanos.

As cestas de brindes chegavam anunciando as festas, com bebidas e bombons, cerejas ao marasquino e presuntos espanhóis. Só aquilo dava para enlouquecer, uma variedade jamais comida no dia a dia Que gosto teriam as coisas mais estranhas, a vida permeada de sabores, além da canja da mãe, o gosto da madrugada, de leilão de antiguidade, de uma rosa quase preta, de desfile de moda, mercado de flores, cigarras alvoroçadas, festa no clube, defesa de tese no departamento de filosofia da USP, exposição de cachorros na Água Branca, a quinta sinfonia de Mahler, baile funk no Palmeiras, caneta BIC prata? As minhas lembranças mais fortes são as natalinas, lembranças que a cada ano se transformam nesse caleidoscópio brilhantemente misturado. Não existe gosto sem um cheiro nem um cheiro sem gosto. Embrulhou-se tudo no passado e no presente, entretecido e confuso, um paraíso artificial. Um sentido geral comandado pelos cheiros, assim estaria bem? Primeiro as cestas de brinde, que chegavam anunciando as festas. Eram só duas, mas poderosas, com bebidas e bombons, e cerejas ao marasquino e presuntos espanhóis. Só aquilo dava para enlouquecer, uma variedade jamais comida em casa, de almoços e

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Quem se lembra do bacorinho rosado, abraçado no meio das galinhas alvoroçadas carregadas como crianças, não mais assustadas do que quem as carregava, e principalmente o peru, soberbo, esticando o pescoço e gorgulhejantes exclamações nas mãos do mais urbano e desajeitado dos pais? E, principalmente, aquele galo, soberbo. Esticando o pescoço a pique de construir uma madrugada. Tudo isso misturado tinha cheiro de festa viva. Não contente com os eflúvios e barulhos e presenças desses bichos, minha mãe, eu e um motorista saíamos atrás de palmeiras altas onde se aninhavam cachos de coquinhos. Aquilo era o ó do Natal. Pintávamos os cocos com spray prateado.

Primeiro experimentamos o dourado mas não ornou e então eram os jornais sobre a mesa, os cachos de coco, babosas, tudo prateado. Cheiro forte de tinta, mas bom, durava até o Ano-Novo. Na verdade, os cheiros que se gravaram no cérebro para sempre eram dos bichos que se ofereciam, mortinhos pela nossa própria mãe. O peru primeiro cheirava a vinha d’alhos, e quando voltava da padaria, onde ia assar com seus companheiros de infortúnio, era uma gula marrom, crocante e estalando. A certa altura, influenciadas pelos americanos e suas revistas coloridas (lembramos do cheiro das revistas, também), começamos a juntar frutas às farofas, e o abacaxi era bom, cheirava diferente e doce; as cerejas não tinham cheiro mas eram a doçura do paraíso, escuras, quase tão escuras e saborosas quanto as tâmaras ainda quase frescas. Era cheiro e gosto de festa, era isso. Ah, como sabiam bem! Misturados, todos se sentiam vivos, partícipes, sem a consciência do perigo absurdo de estar vivo. Os perus e os porquinhos e as galinhas não nos ensinavam nada,

“As minhas lembranças mais fortes são as natalinas.” Nina Horta

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“O gosto é autoadquirido e é impossível ensiná-lo.” Condillac

morriam com o segredo da vida e da morte. Além de tudo eram dias de mundo feminino. Quem embebedava o peru e fazia um círculo à volta dele? Quem descascava o camarão e podava as alcachofras? E o difícil doce de figo com nozes? Os homens ostentavam uma cara feliz de agradados e mimados, fazendo pequenos serviços que não valiam de nada ou uma eventual ida ao mercado em busca de azeitonas, quando se julgavam merecedores de uma medalha de ouro. Nessa época cheiravam a loção de barba, desciam as escadas chamados para as ceias, às vezes como os três reis magos, já carregando embrulhos de presentes. Não tenho coragem de dizer que todos os nossos paladares sabiam discer-

nir o que era ou não era bom. Só havia prazer, que fosse subjetivo o paladar, que cada um sentisse o gosto que lhe calhasse, mas tudo aquilo irmanava a família e os amigos próximos num encantamento que tinha muito cheiro e muito gosto. Ah, e a delícia de não se pensar em calorias, nem em glúten. Pensávamos que tudo brilhava e era bom e era bonito. Que encantava e que tínhamos fome e tínhamos sede. Condillac já dizia no Tratado das Sensações: “O gosto é autoadquirido e é impossível ensiná-lo”. Deve ser por precisarmos dele desde a tenra idade. E, pensando bem, por que comemos? Por estarmos com fome, porque o corpo precisa de nutrientes, porque temos desejo de comer simplesmente, pelo prazer que a atividade dá. Esse último motivo é o que varia, de

pessoa a pessoa. Mas todos esses fatores também estão atrelados à genética e às influências do ambiente. Alguma coisa temos em comum. Do ponto de vista da evolução preferimos o gosto doce. Por quê? Quer dizer maduro, no ponto ótimo de ser comido. Mas, aí, tudo se complica de novo, qual o doce que preferimos? Quanta coisa sobre as quais nunca pensamos! Qual seria outro fator determinante para a intensidade do gosto? O número de papilas em nossa língua. Naquele momento do qual me lembro tanto, sem papilas, sem DNA, sem ambiente, irmanados diante das velas, éramos apenas uma família como as outras, irmãos em paz, ricos de amor e significado, unidos pela festa, por seus sons e gostos doces e salgados e cheiros inebriados de significado. P

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paladar POR EUGENIO DOS SANTOS colagem guilherme freitas

Sua Excelência, a banana Ela é a fruta mais consumida no planeta e espalhou-se na cultura. Mas corre risco de vida

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uando publicou A Volta ao Mundo em 80 Dias, no ano de 1872, Júlio Verne descreveu a banana em detalhes. Muito natural. A fruta originária da Ásia era então desconhecida na Europa. O visionário Júlio não previu, porém, que em um século a banana se tornaria, de longe, a fruta mais consumida no planeta. São 100 bilhões de unidades ao ano, produzidas em todas as regiões tropicais, em mais de 130 países. Não faltaram, claro, predicados para essa gloriosa ascensão. A banana é fácil de plantar e de colher. Tem um ciclo de produção rápido e barato, que pode se iniciar ou terminar em qualquer estação. Isso a torna uma fruta muito acessível – sim, continua saindo por preço de banana. Eis aí um dos principais motivos de ter se transformado em recurso essencial para as áreas de fome endêmica. A ONU considera a banana um dos quatro alimentos de origem vegetal mais importantes para a humanidade. Está

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em boa companhia: os outros três são o arroz, o trigo e o milho. Como diz a marchinha “Yes, Nós Temos Banana”, de João de Barro e Alberto Ribeiro, “banana menina, contém vitamina, banana engorda e faz crescer”. E pode ser consumida até verde. Nesse caso, é rica em amido e tem composição nutricional semelhante à das batatas. E também deve ser preparada tal como elas: cozida, assada ou frita. Uma vez madura, o amido se transforma em açúcares. E a banana se torna levemente doce, hidratante, com 75% de água, mas, ainda assim, rica em fibras, hidratos de carbono, sais minerais e vitaminas A, B, C e E. Um alimento reforçado, com alto poder calórico. Além de excepcional fonte de potássio, responsável por manter a pressão arterial. Por essas e por outras, existe a crença de que era a banana – e não a maçã – o fruto do Jardim do Éden. Daí seu nome científico ser Musa paradisiaca – ou Musa do Paraíso. A primeira descrição conhecida da

fruta está em um texto budista, de 600 a.C. Também é citada no célebre poema religioso indiano “Mahabharata”. Os partidários da tese de que a banana foi o genuíno fruto do pecado original se baseiam, entre outras referências, em suas múltiplas vantagens em relação à maioria das frutas. Não precisa ser lavada, não requer trabalho para descascar e é facílima de comer: não tem caroços ou fiapos e nem suja as mãos. Lembrando, ainda, que seu caule e folhas já eram utilizados como fibra para tecidos de alta qualidade no Japão e Nepal do século 13. Trazida pelos colonizadores portugueses três séculos depois, logo se adequou à culinária brasileira. Das cerca de 100 variedades, cinco são cultivadas por aqui: banana-da-terra, prata, ouro, maçã e nanica. A da-terra, maior e adstringente, é mais consumida no Norte e Nordeste. A nanica, no país inteiro. Em comum, uma e outra acompanham pratos salgados. Da feijoada ao virado à paulista. Do tutu mineiro ao barreado paranaense. Em todo o litoral, ainda, a Tarsila do Amaral e Andy Warhol estão entre os artistas plásticos que se inspiraram na banana

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paladar banana vai bem com peixes, ladeada pelo pirão e a farinha. Alguns, por sinal, são cozidos na folha de bananeira. No Sudeste, o prato caiçara ficou conhecido como azul-marinho. Também chamada de banana-d’água, a nanica não é a mais consumida apenas no Brasil. Conhecida no exterior por cavendish, representa 90% da produção

Para evitar a catástrofe, os cientistas trabalham em duas frentes: desenvolvem antifungos e procuram o aprimoramento genético. Tomara que acertem a mão. Um mundo sem bananas seria bem mais pobre – e não só no sentido estrito da palavra. A banana, afinal, está tão espalhada na cultura quanto nas gôndolas dos supermercados.

O gesto de dar uma banana, muito ofensivo, é difundido nos quatro maiores países latinos do Velho Continente: Itália, França, Espanha e Portugal. Sabe-se lá como, também pegou no Leste Europeu mundial de bananas. Foi introduzida apenas na década de 1950, como resposta ao mal-do-panamá, um fungo que dizimou a variante mais consumida até então, a gros michel, assim como, mais tarde, diminuiu a produção da banana-maçã. O grande perigo: pesquisadores alertam que novas mutações fúngicas passaram a atacar também a cavendish. Daí o risco de a popular nanica ser inviabilizada em larga escala em cinco ou dez anos. Yes, podemos não ter mais bananas. “O problema é que não temos outra variação da banana que seja imune e possa substituir a cavendish”, admite Gert Kema, especialista da Wageningen University and Research Centre, na Holanda.

As referências mais óbvias aludem à forma fálica da fruta. Vem daí o gesto de dar uma banana, muito ofensivo nos quatro maiores países latinos da Europa que o difundiram: Itália, França, Espanha e Portugal. Sabe-se lá como, também invadiu o Leste europeu. Que o diga o atleta polonês Wladyslaw Kozakiewicz. Na Olimpíada de Moscou, em 1980, ele foi impiedosamente vaiado pelo público russo antes do último salto. Ainda

assim, manteve a concentração, ultrapassou o sarrafo e, por fim, dedicou uma sonora banana à torcida. Doce vingança. Derrubando governos

Referências ao formato da banana são muito comuns. Na canção “Mellow Yellow”, o cantor inglês Donovan menciona uma “electrical banana” como eufemismo para vibrador. Muito antes disso, Carmen Miranda criava, em 1938, seu visual de frutas para o filme Banana da Terra, ainda no Brasil. Nada, claro, tão ousado quanto a sequência dançante que comandaria cinco anos mais tarde em Entre a Loura e a Morena, nos estúdios da Twentieth Century Fox. O jornal Chicago Reader perguntou, desconcertado: “O que você pode dizer sobre um filme que apresenta 60 garotas acenando bananas gigantes?”. Já o sóbrio New York Times comentou que os números musicais pareciam “provir diretamente de Freud”. Entre as imagens mais exploradas da banana está aquela do disco de estreia do grupo nova-iorquino Velvet Underground, em parceria com a cantora Nico, de 1967. O desenho original, de Andy Warhol, trazia um adesivo que, destacado, revelava a fruta sem casca, em cor de carne. Ao lado, a frase “peel slowly and see”– ou “descasque lentamente e veja”. Em 2012, 45 anos depois do lançamento do álbum, os membros remanescentes do banda moveram um processo por utilização indevida da imagem. Isso porque a Fundação Andy Warhol havia licenciado a banana em vários produtos, como capas de iPads e iPhones, sem auHollywood virou tropical em Entre a Loura e a Morena. A plateia da Olimpíada de 1980 ganhou uma banana

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A United Fruit, ironizada por Woody Allen em Bananas, agora é Chiquita. E brasileira

torização. Um ano depois, as partes entraram em acordo e o processo foi arquivado. No Brasil, a banana ficou identificada, também, com movimentos artísticos do século passado. Uma folha de bananeira aparece na tela modernista Antropofagia (1929), de Tarsila do Amaral, e bananas estão até na pintura pré-modernista Tropical (1917), de Anita Malfatti. No tropicalismo, movimento que revisitou os modernistas, a partir de 1967, a banana aparece já na capa do primeiro álbum solo de Caetano Veloso, assim como na letra da canção “Tropicália”, que brinca com a imagética kitsch dos trópicos. Se ninguém sabe quem inventou o gesto de dar uma banana, a expressão pejorativa república de bananas tem autor e data. É da lavra do jornalista (criador do primeiro jornal Rolling Stone, em 1894) e escritor americano O. Henry, que a criou em 1904. Referia-se a Honduras, onde morou, mas a carapuça serviu para diversos países da América Central e Caribe, com suas monoculturas, governos oligárquicos, corrupção generalizada e subserviência a companhias americanas. O. Henry assombrou-se com o poder da United Fruit Company, empresa de produção e comércio de fru-

tas tropicais – em especial, bananas e abacaxi –, capaz de derrubar governos nos países em que atuava e alçar à presidência cínicos ditadores alinhados aos seus interesses. Sem efeito psicoativo

Gabriel García Márquez trata das práticas da empresa no romance Cem Anos de Solidão. Woody Allen também explorou o tema em Bananas, filme de 1971, no qual vive um sujeito pacato que se apaixona por uma ativista política, se envolve em uma revolução e torna-se presidente ditador de San Marco, um fictício país centro-americano. Uma curiosidade: a United Fruit passou ao controle da família Bush, mudou o nome para Chiquita e, por fim, foi adquirida pelo consórcio formado pelos grupos brasileiros Safra e Cutrale. Enquanto isso, na China, região de origem da fruta, ela também acabou ganhando uma conotação pejorativa. É usada para designar orientais muito

ocidentalizados, que seriam amarelos por fora e brancos por dentro. Nada a estranhar. A banana está por toda parte. É ingrediente-base de uma das mais tradicionais sobremesas da terra do Tio Sam, a banana split; e até protagonista de série infantil de TV, Bananas de Pijamas. Nos idos da contracultura correu o boato de que a casca da fruta seca seria alucinógena, quando fumada. A origem foi um artigo de 1967 publicado no jornal alternativo Berkeley Barb. Repercutiu e foi circulando. A intenção dos jornalistas, bem no espírito da época, era gozar o departamento antinarcótico do governo e tentar que reprimisse o consumo de bananas. O boato voltou a circular nos anos 1980, a partir de entrevistas do grupo punk The Dead Milkmen. Desta vez, a Food and Drug Administration (FDA) resolveu investigar. Não, nada consta. Fumar casca de banana seca não é alucinógeno. O efeito psicoativo não pode estar listado entre as sortidas propriedades da fruta. P

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POR SILVANA ASSUMPÇÃO

Velha inscrição A tatuagem existe há milênios. Mas, claro, nunca esteve tão por cima quanto hoje

U

ma das marcas da vida urbana do século 21 é figurativa mesmo – e não em sentido figurado. Vivemos cada vez mais rodeados de corpos tatuados, este traço da identidade pós-moderna. Talvez seja mais difícil encontrar nas grandes cidades alguém sem nenhuma do que com alguma tattoo, mesmo que pequena. Mas ainda em meados do século passado o estranhamento do corpo muito tatuado inspirava fantasias como a coletânea de contos de ficção científica The Illustrated Man (1951), de Ray Bradbury, que virou filme em 1969, protagonizado por Rod Steiger. Em cada um dos 18 contos da obra, uma das tatuagens que recobrem toda a

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pele do “homem ilustrado” ganha vida e a história começa. Muita reflexão já foi feita sobre nossa relação simbólica com este que é o maior órgão do corpo humano e última fronteira que o delimita. Supõe-se que os homens têm

se marcado para fins ritualísticos ao longo de toda sua existência sobre a Terra, ou seja, 10 mil anos ou mais. Mas, como a pele raramente se encontra preservada em fósseis, as mais antigas marcas corporais consideradas como tatuagens datam “somente” de 5.300 anos. Foram encontradas em Otzi, o Homem de Gelo, descoberto em 1991 nos Alpes. São 14 conjuntos, a maioria de linhas pretas curtas e paralelas, que se acredita terem sido feitos esfregando fuligem sobre a pele e depois a perfurando para a penetração do material. O estudo do esqueleto de Otzi revelou degenerações ósseas nas regiões das marcas. Uma suposição é que O “homem ilustrado”, de Ray Bradbury, anteviu os corpos muito tatuados de hoje

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tenham sido sequelas de tratamentos para aliviar a dor. Se assim for, essas “tatuagens” fugiriam às finalidades rituais comuns às culturas do planeta que têm nelas uma arte e técnica milenar – como a chinesa, a egípcia, a japonesa, a indiana e a polinésia. Só há pouco, e no interior da cultura ocidental, a tatuagem deixou de ser exclusivamente cerimonial ou signo de pertencimento a algum grupo, muito embora ainda tenha também esse último papel, a exemplo de tribos e gangues urbanas. À parte essas, não há mais, de modo geral, idade, crença, ideologia, grupo ou classe social que limite o universo da tattoo. Ainda que persita algum preconceito aqui e ali,

iconográficas pela internet, como lembra o jovem tatuador paulistano Lúcio Emilio Cancian, de 25 anos, que exerce sua arte na charmosa barbearia D.O.C, em Pinheiros. Foi esse Big Bang cultural que impulsionou toda uma nova geração de desenhistas para a carreira de tatuador, permitindo executar belos desenhos mesmo antes de desenvolver um estilo próprio. Neste último caso estão, entre outros, grandes tatuadores paulistanos como João Chaves, que trabalha também em Pinheiros e se distingue pelos traços finos e padrões geométricos, e Mauricio Teodoro, mestre no estilo oriental com estúdio fechado na rua Augusta. Teodoro foi um dos pioneiros da tatu-

O mais antigo ser humano tatuado da história, até onde sabe a ciência, viveu há 5.300 anos nos Alpes. Pesquisadores presumem que suas tattoos eram sequelas de um tratamento contra dor herança dos tempos em que a tatuagem era coisa de marujos, marginais, prostitutas e atração de shows de horrores em parques de diversão, já não existe ambiente social ou profissional em que ela seja proibitiva. Até nas telas do cinema ou da tevê qualquer personagem, desde que seja urbano e contemporâneo, pode exibir as tattoos reais dos atores que os interpretam sem prejudicar a ficção. Big Bang cultural

Uma das razões de tamanha expansão foi a explosão de tattoo shops em todas as cidades do mundo. Ela acompanhou os avanços técnicos que permitem realizar desenhos precisos com o mínimo de dor e máxima segurança para a saúde. Também foi decisiva a facilidade de acesso à referências O ritual de desenhar no corpo é comum até a tribos brasileiras

agem no Brasil. Trabalhou com o decano Sérgio Leds, talvez o mais renomado tatuador do país. É dono do Led’s Tattoo, no bairro de Moema, que funciona há mais de três décadas. Hoje com 54 anos, Leds começou a tatuar ainda adolescente, quando a tatuagem ganhava força na Califórnia. “Foi na época em que Don Ed Hardy [uma lenda da tatuagem americana, que ainda tem seu estúdio em São Francisco] trouxe para os Estados Unidos os primeiros tatuadores japoneses com suas artes maravilhosas”, diz. Mesmo nos EUA ainda eram escassas as referências para a criação de tattoos. Uma das primeiras tatuagens a virar assunto em jornais foi, por exemplo, a de Janis Joplin, feita em 1970 e desenhada por ela mesma: um bracelete florentino. Imaginem-se as dificuldades no Brasil. “A gente tinha que viajar para fora para conseguir séries de tatuadores mais

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© Murillo Mendes

tato

Sérgio Leds é um dos mais cultuados tatuadores brasileiros

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antigos”, recorda-se Leds. “As revistas de motociclismo eram a grande referência.” Outro polo importante da tatuagem no país sempre foi o Rio de Janeiro. Ali, Leds trocava experiências e conseguia materiais. Vários dos tatuadores brasileiros que mais admira trabalham no Rio, como Ganso e Silvio Freitas, no mesmo estúdio em Copacabana, e Mario Vitor, em Jacarepaguá. Outra importante contribuição de Leds foi a organização, durante 20 anos, de convenções de tatuagem no país, que desde 1994 passaram a fazer parte do calendário internacional. Graças a elas há muitos tatuadores brasileiros respeitados em outros países, incluindo César Mesquita, Tutty Serra e Rodrigo Souto. O trio criou em Londres o estúdio Black Garden Tattoo. Na via contrária, o canadense Cody Philpott, de 31 anos, trabalha no Brasil há poucos meses ao lado de Cancian na barbearia D.O.C. Ele aprendeu a tatuar observando o trabalho feito nele mesmo ao longo de dois anos em que morou no Japão para ser tatuado pelo lendário Gakkin. Alguns outros cobrões da arte são o suíço Filip Leu, a estrela da família de tatuadores The Leu Family, o japonês Gotch, de Quioto, lembrado por Cody, e a californiana Kari Barba, citada por Leds. Diga-se que tatuagem não é coisa barata. Custa em média, em São Paulo, de R$ 300 a R$ 500 por sessões de três horas. Cody, por exemplo, mesmo afirmando que Gakkin foi generoso com ele, estima ter uns US$ 10 mil estampados na maravilhosa arte em preto e branco feita pelo japonês em seu corpo, que o “veste” de ombro a ombro, peito e costas, e

desce até o meio dos antebraços. Foi no século 16 que marinheiros começaram a trazer a tatuagem para o Ocidente, sobretudo como recordação de viagens pelo Pacífico Sul. Particularmente o povo maori, nativo da Nova Zelândia, tem uma tradição riquíssima nessa arte, que cobre seus corpos e também os rostos. A própria palavra “tatuagem”, em suas várias versões ocidentais como o inglês tattoo, o alemão tätowierung, o francês tatouage, o dinamarquês tatovering, o espanhol tatuaje, o russo taty e assim por diante, surge no século 18 derivada do termo polinésio tatau, que significa “escrita”. Em seu diário o célebre capitão inglês James Cook (1728-1779) fez várias referências a tatuagens tribais usando a palavra polinésia ou sua forma oitocentista em inglês, tattow. É mera coincidência que o sentido do tato, tão associado à prática da tatuagem, seja expresso em português e outras línguas latinas por palavra quase idêntica, já que ”tato” e suas variantes derivam do latim tactus (toque). Até a mãe de Churchill

À parte a antiga tradição marítima, é comum imaginar que a tatuagem só tenha deixado o submundo das zonas portuárias e se popularizado no Ocidente a partir da metade do século 20, de início como um dos signos do inconformismo beatnik e suas tribos de motociclistas, nos anos 1950 e 60. Mas pelo menos um século antes já houve outra grande corrida para

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Os desenhos dos maoris da Nova Zelândia: tradição

Em plena Era Vitoriana, no século 19, a aristocracia britânica começou a exibir tatuagens. Quem iniciou a onda foi o filho da própria rainha Vitória, que se tornaria o rei Eduardo 7º George 7º e Janis Joplin eram fãs das tattoos. Abaixo, o Black Garden, estúdio brasileiro em Londres

fazer-se tatuar entre as classes sociais mais altas. A onda surgiu em plena Inglaterra vitoriana com o filho da rainha Vitória e futuro rei Eduardo 7º. Aos 20 anos, em 1862, o então príncipe de Gales recebeu sua primeira tatuagem numa visita a Jerusalém: cinco cruzes de Jerusalém feitas pelo artista Francois Souwan em seu braço. Vinte anos mais tarde, já rei, seus filhos duque de Clarence e duque de York, este o futuro George 5º, foram tatuados durante uma viagem ao Japão por recomendação do próprio pai, que orientou seu tutor a levá-los ao tatuador Hoti Chiyo. Na ocasião, os irmãos fizeram dragões no ombro. Na viagem de volta, passaram por Jerusalém e receberam as mesmas cruzes feitas no pai, pelo mesmo artista. Foram suas primeiras tattoos. Ambos foram tatuados tam-

bém por Tom Riley e Sutherland Macdonald, pioneiros da arte na Inglaterra. Seguindo o exemplo real, a paixão pela tatuagem de mestres japoneses espraiou-se entre os oficiais de Marinha e do Exército britânicos, e depois pela alta sociedade europeia e americana. As mulheres também aderiram à mania, entre elas a mãe de Winston Churchill, a americana Lady Randolph Churchill, que ostentava uma cobra enrolada no pulso. O trabalho dos mestres orientais era o mais valorizado, mas em toda parte surgiram tatuadores ocidentais com iconografias novas, hoje um patrimônio vintage que alimenta o estilo de tatuagem Old School. As tattoos têm cumprido, enfim, o destino de toda moda: surgir, decair e ressurgir, num renascer periódico. Mas aqui estamos nós, no século 21, acreditando que fomos nós, com nossa incrível rede de informação global, que inventamos mais essa. P

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adega

Por marcello Borges ilustração guilherme freitas

A ressurreição do gim Quando ninguém mais esperava, a antiga bebida amada pelos britânicos se reinventa e seduz as novas gerações

trono em 1688, resolveu liberar a destilação

Contando apenas o ano de 1721, os

digma? No mundo científico,

de bebidas. Mais: incentivou o genever de sua

britânicos consumiram 14 milhões de litros

dizem que é preciso esperar os

terra natal como substituto para o brandy da

de gim. Na época, as destilarias chegavam às

“donos” do paradigma vigente

França, país então inimigo. Guilherme não

centenas. Em 1726, havia mais de 1.500 delas

morrerem para instalar um novo. No caso

fez por menos. Taxou o brandy pesadamente,

em Londres, e mais de 6 mil lugares em que o

do gim, não se chegou a tanto. O truque

tornando-o proibitivo. Sem alternativa, as

gim podia ser adquirido. Em meados daquele

para inovar foi introduzir matérias-primas

classes menos favorecidas da Inglaterra

século, quando o furor abrandou, a qualidade

radicalmente diferentes, além de embala-

começaram a produzir sua própria versão do

da bebida melhorou, passando a ser produzi-

gens atraentes. Não tardou para que outros

genever, chamando-a de gim.

da em destilarias profissionais. A Gordon’s,

seguissem o pioneiro. Estamos falando de

por exemplo, fabricante de um dos gins mais

uma revolução silenciosa no mundo do gim,

inglesa, bastante diferente do genever. O ori-

iniciada com o britânico Hendrick’s, lançado

ginal holandês tem teor alcoólico mais baixo

em 1999. Mas antes disso muita água que

e acentuado aroma de malte. Além disso, não

antes e depois da Lei Seca (1919-1933), o

passarinho não bebe rolou.

se presta para coquetéis, devendo ser bebido

gim foi protagonista da primeira coisa que o

puro e refrescado. Já o London Dry Gin se

presidente Frank Delano Roosevelt fez após

século 16. Foi ali que o médico e químico

adequa à perfeição aos drinques. Até para

revogá-la: preparou um dry martini. Aliás,

alemão Franciscus de La Boë criou o elixir

diluir sua forte carga alcoólica, que – hic! –

ele protagonizou outro momento inusitado:

genever à base de especiarias, em especial

pode avançar dos 40% aos 50%.

na Conferência de Ialta, na Crimeia, em

As origens do gim estão na Holanda do

tradicionais e antigos, surgiu em 1769. Muito consumido nos Estados Unidos

o zimbro, um diminuto fruto esverdeado

fevereiro de 1945, quando se encontrou com

originário da Toscana. Acreditava-se que a

Churchill e Stálin para decidir o fim da Se-

bebida teria propriedades medicinais – so-

gunda Guerra Mundial, queixou-se da falta

bretudo digestivas e diuréticas –, tornan-

de limões para adicionar twisties no seu dry

do-se muito popular. Seu nome deriva do

martini. No mesmo dia, Stálin mandou

ingrediente principal, pois o zimbro é chamado em latim de juniper, que virou genever na Holanda e genièvre na França. Quando o holandês Guilherme III, príncipe de Orange, invadiu a Inglaterra e assumiu o

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É bom que se frise: o gim é uma bebida

vir um limoeiro da Geórgia por avião. Por que, afinal de contas, uma bebida que agradava a tantas gerações foi perdendo o poder de sedução? Exatamente por isso. Churchill, Roosevelt e Stálin: antes do dry martini

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C

omo você rompe um para-

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Adega Dorothy, Fitzgerald e vários lançamentos que, é bem provável, eles gostariam de conhecer

Os mais jovens passaram a considerar o

de fato radicalizou: meteu pepino e pétalas

rafa que também evoca as velhas boticas.

gim “coisa de gente mais velha”. Mesmo

de rosas no blend, conferindo-lhe um toque

Imagine agora um gim feito em... Di-

coquetéis tradicionais como o gim-tônica e

refrescante e ligeiramente floral. A garra-

jon, na França, por ninguém menos do que

o dry martini, em particular, ganharam essa

fa do Hendrick’s, aliás, remete às origens

Gabriel Boudier, mundialmente famoso

pecha. Era urgente o surgimento de um gim

farmacêuticas da bebida. Podia parecer um

pelo Crème de Cassis que granjeou à em-

com visual e aromas atualizados. Só assim

pesadelo para os bartenders, mas ficou bacana

presa a Légion d’Honneur. Pois a empresa

voltaria a instigar na moçada a reverência que

nas prateleiras do bar.

lançou em 2008 o Saffron Gin. O nome trata de um de seus ingredientes princi-

a velha bebida merece. Diga-se em favor do gim que ele tinha tudo para ressurgir. Bastava a vontade dos

pais, o açafrão, rara especiaria derivada de

A partir do Hendrick’s surgiram várias

uma flor. Ainda assim, o aroma predo-

produtores. Ao contrário de muitas outras

marcas. Outras reformularam suas fór-

minante vem do zimbro e do coentro – e

bebidas, impedidas de mudar por normas de

mulas ou o visual. Eis o caso da Beefeater

não do açafrão. Outro gim internacional, o

denominação de origem ou outras limita-

– criada em 1876 e cujo nome homenageia

Tonka – lançado no final de 2014 – recorre

ções, o gim carece de obrigações. A rigor, a

os membros da Yeoman Guard, os guar-

como componente inusitado a uma fava,

única delas é a presença das bagas do zimbro.

diões cerimoniais da Torre de Londres. A

o cumaru brasileiro, mais utilizado nas

No mais, a utilização das ervas e especia-

fábrica lançou o Beefeater 24, depois de

indústrias de cosméticos e de móveis.

rias, que os ingleses chamam de botanicals,

18 meses de intensa experimentação. Por

estavam liberadas. Elas podem ser alcaçuz,

fim, chegou-se a uma fórmula que, além

ca aromas como baunilha, amêndoas

pimenta-do-reino, coentro, cascas de frutas

do zimbro, inclui cascas de laranja-azeda,

amargas e outros ingredientes, num total

cítricas, amêndoas, flores e outros tantos

limão e toranja, amêndoas amargas, raiz

de 23. É produzido – imagine!– perto de

ingredientes. Aliás, cada destilaria tem sua

de angélica, alcaçuz, coentro, chás verdes

Hamburgo, na Alemanha. Também das

própria receita, guardada com mais zelo do

chineses e japoneses. Já dentre as muitas

terras germânicas vem o Elephant Gin,

que as joias da coroa britânica.

marcas novas, ganha destaque o Monkey

produzido com 14 ingredientes botânicos

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provenientes da África, como você deve ter

que chegou a ser considerado o melhor gim

toques terrosos e de frutas vermelhas, com

imaginado. Entre eles, o fruto do baobá,

do mundo pelo Wall Street Journal. A fábrica

um quê de amêndoas. Tudo isso numa gar-

cauda-de-leão (uma erva, não o rabo do

Pois então veio o bendito Hendrick’s,

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Chegou o Gin Bus

Com 47% de teor alcoólico, evo-

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bichano), gengibre e pimenta-branca. O mix único confere a esse gim uma rica palheta aromática. Até com toques de pinho

Dorothy Parker e F. Scott Fitzgerald estão entre os diversos escritores americanos que apreciavam o gim e o incluíram não só na derramada dieta pessoal como também na sua literatura

da montanha. O Elephant Gin tem rótulo G&T, impossível. São Paulo tem até um bar

a criação de um dia especial: 19 de junho é

com esse nome: o G&T Bar elenca 19 versões

o Martini Day (não me pergunte o porquê,

novas destilarias continuam surgindo na Grã

desse drinque. Jamie Oliver faz o seu ultimate

sorry). Sua receita é simples: segundo

Bretanha. Várias são pequenas, com produ-

gim-tônica com o copo quase cheio de gelo,

o manual da International Bartenders

ção artesanal. Disso resultou também uma

lima ou limão siciliano (dependendo se o

Association (IBA), são seis partes de gim

inebriante movimentação cultural. Vem daí o

gim é suave ou encorpado), um shot de gim, o

para uma de vermute seco. Despeje os

Portobello Star Bar Ginstitute (o nome é uma

dobro de tônica e voilà!

ingredientes no mixing glass com cubos

manuscrito e outras bossas. Irresistível. Com o interesse renovado pela bebida,

de gelo. Mexa bem. Filtre numa taça de

delícia), com o objetivo de estudar a história da bebida. Detalhe: o bar da instituição foi

O dry martini é muito simples

martíni. Esprema o óleo da casca de limão

listado como um dos 50 melhores do mundo

Já o Gin Rickey, mencionado por Scott

ou decore com uma azeitona.

em 2016. Aproveitando a onda, a Hendricks

Fitzgerald em The Great Gatsby, também vol-

Muitos, porém, usam uma proporção

reformou um ônibus de dois andares e botou

tou à moda. Leva gim, lima, club soda e gelo:

bem menor de vermute. (Eu, por exemplo.

para rodar o Gin Bus. O veículo percorre o

Com um olhar relutante sobre o ombro, a crian-

Deve ser por isso que minha garrafa de Noilly

centro de Londres enquanto você degusta a

ça bem-educada segurou a mão da babá e foi levada

Prat parece uma starlet com um tomara que

bebida acompanhada de macarons de pepino.

através da porta, justamente quando Tom voltava,

caia, ou seja, a linha da bebida está sempre

Aliás, se degustações são a sua praia, eis

precedendo um empregado que transportava quatro

pouco abaixo do ombro.)

uma dica. A melhor maneira de comparar

tilintantes copos de Gin Rickey, cheios de gelo.

marcas diferentes de gim é servir as bebidas à temperatura ambiente, diluídas na mesma quantidade de água. Com isso, destacam-se tanto as virtudes quanto os defeitos do spirit. Mais inglês do que o gin and tonics, ou

Seja como for, cuidado com o número de

Gatsby pegou um drinque.

martínis. Dorothy Parker, a grande contista

– Sem dúvida, parecem bem gelados – disse ele,

e crítica literária americana, ganhou ainda

visivelmente tenso.

mais fama por este poema: I like to have a

Bebemos em goles longos e sedentos.

martini/ Two at the very most/ After three I’m under

Popularíssimo, o dry martini motivou

the table/ After four, I’m under my host.

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No novo centro de distribuição, em Guarulhos (SP)

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capa POR Nelson letaif retratos pedro dimitrow

Um homem de opinião Primeiro empresário a defender o impeachment, Flávio Rocha, CEO do Grupo Guararapes, dono da riachuelo, tem convicção de suas bandeiras: a livre iniciativa, o Estado mínimo e a popularização das grifes

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capa

O

empresário Flávio Rocha, CEO do Grupo Guararapes, é uma exceção. Enquanto a maioria de seus colegas e concorrentes não se cansa de reclamar das condições adversas do mercado e coloca o pé no freio dos investimentos, a Riachuelo, uma das empresas do grupo, viu suas vendas crescerem 6% no primeiro semestre de 2016 e o faturamento superar R$ 6 bilhões nos últimos 12 meses. O número de lojas distribuídas pelo Brasil chegou a 290. E 30 delas foram inauguradas de um ano e meio para cá. Tal ritmo de expansão se deve em parte ao processo de inclusão social e acesso ao crédito vivido pelo país nos últimos anos. Mas quem imaginar que Flávio seja grato aos governos do PT por isso está enganado. Na sua opinião, esse fato foi decorrência da “revolução do varejo” que varreu o mundo nos últimos 50 anos e tardou a chegar ao Brasil devido, entre outros fatores, à alta informalidade do nosso varejo e à inflação descontrolada. Para ele, as gestões do PT só abreviaram o que seria “um século de inclusão em uma década de prosperidade”. Com a autoridade de quem foi um dos primeiros grandes empresários a se manifestar publicamente pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff – o que lhe custou até referências preconceituosas na imprensa por sua origem nordestina –, Flávio encara com cautela os desdobramentos da Lava Jato. Não que seja adversário da operação. Ao contrário. Mas acha um equívoco resumir os problemas atuais da política brasileira a uma questão de polícia, “de tirar os bandidos e colocar os mocinhos” no poder. Para ele, é preciso mudar o sistema e, sobretudo, acabar com o inchaço do Estado – este sim responsável por “produzir bandidos em massa”. Ferrenho defensor do livre mercado e do Estado mínimo, Flávio se declara simpatizante do Partido Novo, de inspiração liberal, e muito feliz com a vitória em primeiro turno do também

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empresário João Doria à prefeitura de São Paulo, para quem promoveu um jantar de apoio em sua casa ainda em dezembro de 2015. Isso chegou a causar até uma “saia justa” doméstica com sua mulher, Cláudia, uma bem-sucedida designer de joias que inicialmente considerava favorita a candidatura de Marta Suplicy, sua cliente. Aos 58 anos, Flávio acha que a experiência parlamentar o tornou um empresário melhor. Como deputado federal pelo Rio Grande do Norte no decorrer de 17 anos, participou da elaboração da Carta de 1988, a chamada “Constituição Cidadã”, que consagrou princípios opostos aos seus. Também se iludiu com a candidatura Fernando Collor à presidência da República, mas depois acabou votando pelo seu impeachment, e ele próprio quase concorreu à sucessão em 94, até que seu partido, o PL (Partido Liberal), optou por apoiar Fernando Henrique. De volta aos negócios, Flávio se empenhou em modernizar o conglomerado iniciado em 1956 por seu pai, Nevaldo Rocha, e um tio a partir da Tecelagem Guararapes, levando às últimas consequências o modelo de organização integrada e horizontal, que vai “do fio à última prestação do financiamento”, nas palavras do atual presidente. Como herdeiro de um império, Flávio não precisaria trabalhar tanto, mas até seus momentos de lazer são quase extensão dos negócios. Na hora sagrada dos exercícios matinais diários na esteira, ele quase sempre aproveita o tempo para se informar ouvindo palestras do TED, da Casa do Saber ou entrevistas gravadas da TV. No resto do dia, seu companheiro inseparável de trabalho é um enorme iPad Pro, que ele consulta com frequência, para tirar dúvidas. Suas recomendações de leitura costumam ser muito práticas, a exemplo de A Ordem Mundial, de Henry Kissinger, seu atual livro de cabeceira. Quanto às férias, em geral são esticadas das viagens a trabalho. Em especial das feiras de moda em Paris, Milão, Nova York e Londres.

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Aos 58 anos, sempre um liberal

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capa Quais são suas lembranças mais remotas da infância?

Nasci no Recife, de onde saí com poucos meses. Minhas primeiras lembranças são do nosso período em Natal. Meu pai já era mais industrial do que comerciante. O motivo da nossa mudança do Recife para Natal, por sinal, foi buscar melhores condições de implementação da operação industrial. Era uma vida confortável, não vou negar. Não tive a experiência de dificuldades. Mas era uma família muito comum. Eu, o mais velho de três irmãos. Quando e por que vocês se mudaram para São Paulo?

Eu estava com 8 anos. Meu pai já tinha a visão de transformar a empresa regional em empresa nacional. A indústria vendia para o Brasil todo e tudo acontecia a partir de São Paulo. Algum professor ou professora mexeu com a sua cabeça, serviu de inspiração?

Sim, a professora Cristina, minha primeira professora em São Paulo, no Colégio Dante Alighieri. Eu ainda estava muito desambientado, desarvorado. Acho que essa fragilidade me levou a criar vínculos muito fortes com ela. O Dante Alighieri já era então uma das escolas preferidas da elite paulistana.

Era um dos melhores colégios da cidade. Lembro de um certo bullying pelo meu sotaque de nordestino. Na época, a miscigenação cultural não era tão grande. Eu me sentia um alienígena no Dante. Você se retraía com a dificuldade de integração ou a enfrentava?

Eu era muito tímido, muito retraído. Fiquei ainda mais recluso e acho que isso também exacerbou o meu lado cê-dê-efe.

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Sempre que saía a cadernetinha de nota, eu era o primeiro, segundo ou terceiro melhor aluno. Teve um mês em que um tal Eduardo Pereira Lara ganhou o primeiro lugar. Foi um trauma para mim. E motivo de ainda mais bullying. Isso o impedia de se aproximar das meninas, de namorar?

A timidez atrapalhava, mas acho que era mais próprio da idade. As meninas de 13, 14 anos só olhavam para os de 18. Que idade você tinha na época da

Já pilotou em pista de corrida?

Não, o carro era mais um meio de afirmação junto ao público feminino. Não era uma paixão técnica. Apesar de bom aluno, você teve a sua fase drogas, sexo e rock’n’roll?

Não. Mas teve muita balada. Com 17 e 18 anos, vivi intensamente a fase da boate Hippopotamus. Depois veio o Gallery. Era uma coisa obrigatória. Eu saía quase todas as noites. Você tinha consciência do que se

primeira namorada?

passava nos porões da ditadura?

No edifício onde eu morava, na avenida São Luís, centro da cidade, já rolavam uns flertes. Mas minha primeira namorada firme veio quando eu já tinha uns 17 para 18 anos. Antes disso, com 15 anos, minha família havia se mudado para a alameda Franca, nos Jardins. A gente morava numa cobertura, no 19º e 20º andares. Embaixo, no 18º, morava o [João Carlos] Di Genio, [dono do Colégio Objetivo e da universidade UNIP], que fazia umas festas de arromba. Ele era terrível!

Na GV ainda existia alguma célula, pessoas que se contrapunham à ditadura. Mas já era o final dos piores tempos do regime militar. Eu não vivi muito esse clima. Dizem que um jovem que não foi de esquerda não tem coração. Mas não tive a minha fase de esquerda. Desde cedo ficaram muito claros para mim o funcionamento e as vantagens do livre mercado, de poder gerar e distribuir riqueza.

Isso combinava com o seu temperamento?

Eu tinha senso de responsabilidade. Depois de certa idade, se arrefeceu um pouco. Ainda estava na fase cê-dê-efe quando fiz o vestibular, no segundo científico [atual Ensino Médio]. E para surpresa de todo mundo entrei na Getulio Vargas, que tinha o vestibular mais concorrido para a área de administração. Meu pai cometeu a irresponsabilidade de cumprir uma promessa e me deu uma Maserati. Uma Maserati Merak, coisa única na época. Você fez alguma maluquice com a Maserati?

Andava a 300 por hora na rodovia Imigrantes.

Por que você não concluiu o curso de administração?

Eu me arrependo disso todos os dias. Me envolvi precocemente com o trabalho e, quando isso ocorreu, a vida real parecia muito mais fascinante. Era na época da Pool, marca de moda jovem que lancei. Eu faltava às aulas para viajar e montar a máquina dos representantes. Isso acabou me desestimulando. Faltava um ano quando saí da GV. Havia concluído quase todas as matérias até o terceiro. Houve pressão da família para que assumisse os negócios?

Não. Minha família tem parte da culpa, porque não teve a firmeza de dizer: “Não, você vai acabar o seu curso”. Hoje, há uma idealização errada de que a parte acadêmica não é importante. Uma visão romântica

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baseada em gente de sucesso que abandonou a universidade, como Bill Gates, Steve Jobs, Mark Zuckerberg e outros drop-outs. Mas não quero nem de longe insinuar esse mau conselho. Concluir o ciclo acadêmico teria sido muito importante. Como foi o seu início no grupo?

Desde 14, 15 anos, eu já saía do Dante e vinha para cá, tinha a minha salinha. Na época, a empresa mantinha uma fábrica em Mossoró (RN), que utilizava as sobras de tecidos e fazia um produto desejado e competitivo. Era uma camisa do tipo uma manga amarela, a outra azul. Um grande sucesso popular. Eu cuidava da distribuição. Nossa operação de varejo eram as lojas Super G, da Guararapes, que foi pioneira, a primeira franquia brasileira. Chegamos a ter 300 lojas Super G. Isso permitiu ocupar o espaço do Centro-Sul. E estimulou a aquisição da Riachuelo. Ao deixar a faculdade de administração, você tinha um projeto?

Sim, de uma marca de jeans. A gente começou com o projeto da Pool, que evoluiu dentro de uma empresa própria que eu criei. Era uma empresa de licenciamento bem abrangente. Os contratos envolviam um amplo pacote de serviços. A Guararapes era um licenciado para jeans, mas chegou a haver 30 outros licenciados. Foi nessa época que começou a parceria com o Ayrton Senna?

Exatamente, nos tempos da Pool. Foi uma grande irresponsabilidade que deu certo. Em 1982, entrou certo dia lá um menino com cara de choro, acompanhado do Armando Botelho, um amigo da família que fazia as vezes do empresário dele. O rapaz tinha sido campeão mundial de kart, talvez a categoria mais competitiva do automobilismo. Ele já tinha traços

de genialidade e estava para assinar o contrato com uma escuderia inglesa de Fórmula 3. Afirmava com certeza que ia ser campeão mundial de Fórmula 1. Todo mundo achava que ele era louco, mas falava com uma firmeza muito grande. E eu, irresponsavelmente, me comprometi com o que seria 30% da verba para a propaganda daquele ano. Embarquei no projeto. O valor que eu tenho registrado na memória é algo em torno de US$ 100 mil. Aí, no meio do contrato, o Banerj, outro patrocinador do Ayrton, quebrou, caiu fora e a gente teve de fazer outro aporte. Mas a essa altura eu

grande fatia do mix eram tecidos a metro. Mas o objetivo da Guararapes era transformar a Riachuelo num canal auxiliar de escoamento dos seus produtos industrializados. Na época, uma loja Riachuelo média tinha de 200 a 300 metros quadrados de área de vendas. Com o advento do shopping center, ela foi gradualmente evoluindo e ganhando o formato de âncora, crescendo para 2 mil metros de área e aumentando a parcela do mix para moda. O legado que minha geração recebeu foi uma belíssima operação têxtil, a maior confecção do Brasil, acoplada à operação de tecelagem

“Quando entrei, muito jovem, na Getúlio Vargas, que tinha o curso mais concorrido de Administração, ganhei uma Maserati. Eu dirigia a 300 por hora na rodovia imigrantes”

tinha percebido que automobilismo era um grande negócio. A Pool já era então top of mind. Fazia três minutos de publicidade no Fantástico todas as semanas. Tinha tudo a ver com sua paixão pela velocidade?

Sim. Depois da Maserati tive um Porsche 928, que foi uma experiência traumática. Comprei com o primeiro dinheiro que ganhei na Pool. Na época, meu pai passava umas temporadas grandes em Miami, aonde chegou a notícia de que eu tinha comprado o Porsche. O carro era um espetáculo, com motor dianteiro e tudo. Ele não gostou nada da ideia e falou que se eu não devolvesse o carro isso me custaria muito caro. Embora fosse um gasto feito com meu próprio dinheiro, pensei bem e devolvi o carro. Uma grande frustração. Na época, vocês já haviam comprado a Riachuelo. Qual foi seu papel na modernização do negócio?

Quando adquirimos a Riachuelo, a

propriamente dita, a Guararapes. Além da rede Riachuelo, que já estava em todas as regiões, e mais tarde na área financeira. O que a nossa geração fez foi transformar essa operação fatiada, na qual as empresas buscavam sua sobrevivência entre as quatro paredes dos seus negócios, no que hoje é moderno: formato integrado, horizontal, que transforma os enormes conflitos entre os elos da cadeia têxtil em sinergias, quando coloca tudo embaixo do mesmo guarda-chuva acionário. A ideia era eliminar o conflito por margem de lucro entre os elos da cadeia?

Era esse o objetivo. Cerca de 90% do tempo era gasto em quedas de braço intermináveis tratando de preço de transferência. Aos olhos do executivo das Confecções Guararapes, a solução de todos os seus problemas era vender por 1 real mais caro para a Riachuelo e comprar o tecido por 1 real mais barato da Guararapes Têxtil. Não

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capa é piada. Se ele conseguisse isso, o impacto no seu bônus era muito maior do que qualquer ganho de eficiência. Isso exacerbava os conflitos de visões entre o varejista e o industrial. A indústria quer grandes lotes econômicos, uma cartela de cores pequena, um produto simples, que dê produtividade. Já o varejo quer variedade, uma extensa cartela de cores, um produto detalhado, rebuscado. Essa visão foi intuitiva ou você foi lapidando com o tempo?

Tive uma experiência em Harvard quando fiz um ano sabático na década de 1990. Lá conheci melhor o potencial de uma descoberta já mais antiga, mas que estava então mostrando para o que servia: o leitor de código de barras, que trouxe um

federal. Foi um processo gradual. Quando vi, estava no meio da confusão. Não houve uma motivação maior?

Sim, a [Assembleia Nacional] Constituinte, que criou uma mobilização nacional. Foi um aprendizado fantástico. Recomendo a todos os empresários ter alguma forma dessa vivência política. Porque a empresa deseduca em muitos aspectos. Ela é monarquia, enquanto a política é república, levada às últimas consequências. Acho que, se hoje vejo as coisas de modo diferente, mais de baixo para cima, devo a esse período na política. A empresa privada impõe uma deformação. Você pode tudo: “pinte essa parede de vermelho”, “ponha essa mesa para lá”, “você está demitido”, “você está admitido”. Na política, não. É um

“Ao estado cabe a gestão da moeda, justiça e segurança. Além de arcar com os custos da saúde e educação. mas sem geri-las, pois acaba se atrapalhando quando trata disso”

novo papel para o varejo, viabilizando o fornecimento de grandes redes e fazendo migrar o comando que estava no QG da indústria para o comércio. Percebi que a gente tinha em casa um laboratório ideal para construir uma cadeia integrada. Voltei com essa ideia de transformar a visão fatiada, segmentada, que ainda hoje é a predominante na cadeia têxtil. Antes disso você passou por uma experiência política. O que o levou a essa decisão?

Nessas minhas idas e vindas a Natal, houve a aproximação com o Zé Agripino [José Agripino Maia], que era uma promissora liderança. Ele era prefeito e candidato ao governo do estado. Mas não houve um dia específico em que eu resolvi, de uma hora para outra, ser candidato a deputado

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jogo de xadrez mais fascinante e complexo, em que todas as peças são movidas de modo democrático pelo convencimento. Não tem essa coisa de cima para baixo. Depois da Constituição de 88, o governador de Alagoas Fernando Collor despontou nacionalmente. Ao menos no discurso, a plataforma dele parecia sintonizada com a sua. Foi o que o seduziu no Collor?

O Roberto Campos falava que Collor é um bipolar: varia do mais brilhante dos estadistas ao mais provinciano dos coronéis. O que me fascinou nele foi a visão de abertura da economia, de defesa da livre iniciativa, de quebrar monopólios e protecionismos. Mas, ao mesmo tempo, Collor foi vítima de uma figura, o Paulo César Farias, que fez muito mal, estimulou o lado

dele mais mundano. Isso o afetou muito. Você acabou indo para o partido do Collor, o PRN.

Eu coordenei sua campanha no Rio Grande do Norte. Ele me convidou e aceitei. Chegaram a ser amigos?

Nunca muito próximos, mas quando ele morava em São Paulo me convidou algumas vezes para jantar na casa dele. Quanto tempo durou o fascínio?

Até as evidências de que o lado do PC Farias do Collor havia prevalecido sobre o outro. Acabei votando a favor do impeachment. Na época, Collor sabia que a minha grande bandeira parlamentar era o imposto único. No fim, ainda me chamou, deve ter feito isso com todos os deputados, e falou explicitamente que, caso eu votasse contra o impeachment, ele enviaria ao Congresso a medida provisória instituindo o imposto único. Não sei se ele ia conseguir cumprir, mas a tentativa de conversão do meu voto foi por aí. Como aconteceu de você quase disputar a presidência da República em 1994?

Eu já havia voltado para o PL. O Álvaro Valle me estimulou a ser candidato. Em virtude de uma disputa acirrada com outro pretendente, o brigadeiro Ivan Frota, houve uma prévia dentro do partido e eu ganhei. Fiz dez meses de campanha. Uma bela experiência. Andei uns 500 mil quilômetros pelo Brasil. Por que desistiu?

Foi criado na época um bônus eleitoral, uma das piores ideias que já existiram para financiar as campanhas. Não dava possibilidade a nenhum tipo de abatimento tributário. A campanha começou e ninguém vendeu nenhum bônus eleitoral. Até que a Folha de S. Paulo mandou um jornalista falar

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arquivo pessoal

Em dia de festa, com os pais (Nevaldo e Eliete) e os irmãos (Elvio e Anne)

com um assessor meu fazendo-se passar por um dirigente de associação comercial no interior de São Paulo, dizendo que era um grande entusiasta da campanha, do imposto único, que queria ajudar comprando R$ 70 mil de bônus eleitorais. Estava começando o horário gratuito e eu aceitei. Ele falou: “Olha, tenho vários outros amigos que também estão engajados na campanha. Você podia me dar mais R$ 70 mil em bônus para eu vender e depois eu trago aqui o dinheiro?”. Concordei. No dia seguinte, a Folha estampou que nós estávamos superfaturando o bônus eleitoral. Uma coisa sem pé nem cabeça. Não iria servir para lançar qualquer abatimento fiscal. Então veio um linchamento moral. O PL acabou apoiando o Fernando Henrique, que já estava em primeiro lugar nas pesquisas. O governo FHC, social-democrata, mereceu seu aplauso ao promover a arrumação das contas do Estado com a lei de responsabilidade fiscal?

O Fernando Henrique foi o mais

próximo de um estadista que nós tivemos. Ações como essa lei têm um efeito de longo prazo. Basta analisar a degradação do valor fundamental da responsabilidade fiscal que aconteceu no país recentemente. Na hora é só alegria, gasta-se dinheiro para aquecer a economia, mas a conta vem depois com juros e correção monetária. O FHC foi o inverso, pagou um alto preço por ações como responsabilidade fiscal, como o saneamento dos bancos estaduais, arcando com um custo de popularidade imediato para consertar o país para o futuro. Um passo fundamental para isso foi o Plano Real, que exigiu uma intervenção do Estado forte na economia. Você o assinaria?

Mesmo o mais ardoroso defensor do Estado mínimo sabe que a gestão da moeda cabe ao Estado – talvez no futuro o bitcoin vá fazer isso melhor do que o Estado e o libere dessa função. Ninguém defende a ausência de Estado. Os liberais mais entusiasmados chegam ao Estado mínimo.

Cabe a ele gestão da moeda, Justiça, segurança, além de arcar com o custo de saúde e educação. Mas não deve gerir saúde e educação. Ao gerir, o Estado se atrapalha. A inclusão das classes C, D e E no mercado de consumo, da qual a Riachuelo se beneficiou, é mérito do PT?

A inclusão nada deve ao PT. A única interferência do Estado nesse processo foi transformar o que deveria ser um século de inclusão numa década de prosperidade. Tem muitos pretensos padrinhos políticos nessa transformação da pirâmide em losango. Mas a responsável foi a revolução do varejo, que transformou vários mercados relevantes no mundo e não chegava ao Brasil porque aqui havia 75% de clandestinidade econômica no varejo. Essa revolução pressupõe um varejo organizado, gerencial, formal. Que vende com nota e registra funcionário. Foi quando se iniciou uma tempestade perfeita de formalização, que nada tem a ver com o PT, mas com a nota fiscal eletrônica, que é estadual, o

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capa spread fiscal, a substituição tributária e a disseminação dos meios eletrônicos de pagamento, além do controle da inflação. Isso fez com que em dez anos o Brasil se formalizasse a uma velocidade fantástica. O PIB de 2003 a 2013 tinha crescido 40%. O varejo avançou 120%, mas o varejo de alta performance subiu de 800% a 1.000%. Então se formaram as novas locomotivas da cadeia de suprimentos – Casas Bahia, Riachuelo, C&A. Foi isso que levou à democratização do crédito. Este sim é o grande fator de inclusão. Os bancos só sabem emprestar para outros bancos e para grandes empresas. Qual o papel do Bolsa Família nessa equação?

Começou um programa bem-intencio-

lismo para o capitalismo tornou a terra irrelevante, porque antes as grandes fortunas eram dos grandes senhores feudais, o capital está se tornando irrelevante. Fenômenos como o Uber e Airbnb tornam o capital totalmente irrelevante. Agora é o talento, a informação que contam. Isso tem a ver com sua decisão de abrir fábrica no Paraguai, que veio se somar às de Natal e Fortaleza?

Um trabalhador paraguaio ganha 50% a mais do que um brasileiro, mas custa 30% a menos. A tributação é baixíssima. O ambiente de negócios, ótimo. Tudo isso torna o produto mais competitivo. O Paraguai tem a vantagem de ter custo chinês com lead time, com tempo logístico, de Santa Catarina. Nosso dilema era comprar

“Sou completamente diferente do Marcelo Odebrecht

Há planos de expansão internacional para outras áreas?

Nós somos a maior empresa de moda do Brasil com 2% de marketing share. Tem aí muito terreno para avançar. Por que você simpatiza tanto com o Partido Novo?

Ele é tudo em que acredito. Não tenho filiação, mas torço muito. É o partido que faltava. Eu me sentia um órfão ideológico porque, apesar de existirem trinta e tantos partidos, o nosso cenário político parecia com o nome daquele livro. São 50 tons de vermelho e cor-de-rosa. Não tinha um azul-clarinho. Agora tem o Partido Novo, existe alternativa. O resto é tudo estatizante, todos querendo Estado grande para poder oferecer cargos e comprar votos. E que tal o pânico dos políticos

e do eike batista. sou um empresário de mercado. é outro

com a Lava Jato?

padrão moral. o empresário de conluio é uma deformação”

Temo que o pior aproveitamento que a gente pode fazer dessa crise é imaginar que a questão é policialesca, eminentemente ética. Se essa for a leitura, que basta tirar os bandidos e colocar os mocinhos, teremos uma guerra interminável de arapongas para lá, gravação para lá e delação premiada. Isso não tem fim. Não adianta ficar prendendo os bandidos num sistema que produz bandidos em massa. O sistema, o tamanho do Estado, é um convite à corrupção, é o seu hábitat natural. É como se você estivesse num ambiente infestado de moscas, com um presunto dependurado na janela, e você ocupado em espantar as moscas. Vai ficar espantando para o resto da vida. Tem que tirar o presunto, ora essa. O livre mercado tem os próprios mecanismos de depuração natural. O capitalismo de conluio ou de conchavo é um subproduto, um tumor resultante do Estado inchado.

nado, inclusive com o Fernando Henrique. Mas degringolou para uma ferramenta eleitoreira, sem preocupações de criar a rota de saída. José Dirceu disse com todas as letras: “Isso aí vai nos dar 40 milhões de votos”. Qual sua visão sobre o movimento sindical brasileiro, tanto o dos trabalhadores quanto o patronal?

Nas sociedades em que as relações entre capital e trabalho se deram da forma mais livre, as conquistas foram muito maiores. O que garante conquistas não é pulso de ferro do sindicalista. Mas sim a prosperidade, o capitalismo – prefiro dizer livre mercado, capitalismo é expressão marxista. Aliás, a grande palavra que eu aprendi esta semana é “talentismo”. Da mesma forma que a migração do feuda-

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empregador do Paraguai.

da China e ter de fazer programações seis meses antes e não ter o tempo de reação para repor com agilidade. Ou comprar daqui e pagar mais caro. O Paraguai tem a feliz combinação dos dois, é o melhor dos mundos. Tem velocidade de reposição (que é fundamental em moda), baixo custo de produção e energia elétrica barata para fins industriais. A operação no Paraguai pode aumentar?

No Paraguai é só produção. Hoje, representa 1,5% do que a gente vende. É uma operação piloto, absorvendo muito do que era feito na China. Quantas pessoas você emprega lá?

Por enquanto umas 500, mas isso pode crescer. Na hora em que representar 5% ou 10% das nossas vendas, já seremos o maior

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1. Aos 8 anos, já em São Paulo; 2. O casal José Agripino Maia apadrinhou seu casamento; 3. Na Maratona de Nova York, em 2000; 4. Uma pose com os filhos

fotos: arquivo pessoal

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É preciso deixar espaço para o saudável capitalismo de mercado, com todos os seus freios e contrapesos. Ele se regula automaticamente.

quando topa com um mendigo na rua?

Ao ver vários empresários graúdos envolvidos com a Lava Jato, inclusive banqueiros, você não sente constrangimento em pertencer à classe patronal?

Sinto. Mas sou completamente diferente do Marcelo Odebrecht ou do Eike Batista. Sou um empresário de mercado. É outra estirpe, outro padrão moral, outro sistema de incentivos, de estímulos. O empresário de conluio é uma deformação. O que um liberal como você pensa

Como é possível inserir uma pessoa

inclusão total da humanidade. Alguns de seus detratores dizem

como essa, alheia a tudo, num mundo

que você defende o Estado mínimo,

de prosperidade?

mas na primeira oportunidade re-

Há 250 anos a humanidade tinha 90% de excluídos como esse mendigo. Isso perdurava nos 40 mil anos anteriores da história da humanidade. Tomando como marco do capitalismo moderno a obra de Adam Smith e o início da Revolução Industrial, a partir daí essa curva que era mais ou menos plana entrou numa guinada ascendente e em apenas 250 anos esses números se inverteram. Com mais alguns anos de bom funcionamento do binômio democracia/leis de mercado, vamos ter a

corre ao BNDES para obter financiamento para o seu grupo. Não é uma contradição?

Não há contradição. As regras do jogo são dadas pelo Estado brasileiro e cabe aos players jogar de acordo com elas. No decorrer de grande parte da história da empresa, nossa política era ter endividamento bancário zero, inclusive do BNDES. Cinco anos atrás convencemos meu pai a recorrer ao banco para acelerar nossa expansão. A presença do BNDES permitia aos nossos

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capa concorrentes ter de 2% a 3% menos de custo de capital. Sem dúvida o BNDES é um instrumento importante de crédito, uma fonte de capital de longo prazo. Mas eu tenho uma discordância. Na hora em que um banco de fomento começa a atropelar as decisões do mercado, a exemplo da política dos campeões nacionais, cria-se uma grande distorção. Essa política é de uma arrogância absurda, uma afronta do governo à sabedoria suprema do mercado, que é quem elege os campeões. O resultado desastroso nós estamos vendo agora. O novo prefeito João Doria tem uma visão da economia similar a sua. Você enxerga semelhanças entre o seu perfil e o dele?

Ah, sim. Aliás, no dia 15 de dezembro

Na última hora, ainda chegou o governador Alckmin, que não estava nem sendo esperado – para variar, estava em cima do muro. Ele saiu do muro nesse dia e fez um discurso entusiasmado. A partir daí, a candidatura deslanchou. Qual o posicionamento de mercado da Riachuelo?

Nosso propósito é democratizar o acesso à moda. Há uma fronteira entre a moda popular e a moda popularesca?

Eu não faria a seguinte colocação preconceituosa: a moda, quando consumida por poucos, é chique, mas quando muitos têm acesso é popularesca. Discordo. O direito à moda já é uma conquista. Está acontecendo nitidamente no nosso setor. A

“O maior distribuidor de roupas do país não somos nós e nem a Renner. É a Infraero. No brasil, quando A moça fica grávida, pega um avião para fazer o enxoval em miami”

de 2015, eu fiz em casa o primeiríssimo jantar de apoio a ele. Isso provocou até uma crise familiar lá em casa, porque no dia 10 falei para minha mulher, que é designer de joias: “Cláudia, você não sabe, eu combinei de fazer um jantar aqui para o João Doria”. Ela disse: “Você está louco? Você vai se queimar. Ele não vai ganhar de jeito nenhum. Além do mais, a Marta é uma das minhas melhores clientes. Ela vai ser eleita prefeita e vou me queimar com ela”. Respondi: “Eu sempre te consulto, mas desta vez não estou te consultando. Eu já assumi esse compromisso”. No fim, a Cláudia me ajudou. Eu convidei 200 empresários. No dia do jantar, só 20 haviam confirmado. Passei o dia no telefone. Ela também, no telefone, implorando. No fim, apareceram 150 e o Doria deu um show ao microfone.

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gente vê com muita alegria, porque mais do que ninguém sabe o poder transformador, inclusive na autoestima das pessoas, quando elas são tocadas pela varinha mágica da moda. Ficam mais felizes. Passam a gostar mais do que veem no espelho. Isso traz melhoria da qualidade de vida para as pessoas. É evidente. Qual é o seu público-alvo?

Resolvemos chutar o balde desse dogma da segmentação. Segmentação é coisa que a gente aprende na faculdade, na primeira aula de marketing. O nosso modelo de negócios permite alargar infinitamente esse universo porque, apesar de os bolsos serem diferentes, as aspirações são cada vez mais homogêneas. Simplesmente tiramos isso do nosso mapa. Acabamos de receber uma pesquisa feita por um grande

instituto para um banco de investimentos. Pela primeira vez, estamos liderando com larga margem na classe A e na classe D. Passamos a Renner. Estamos empatados com ela na classe B. Na C, a Renner está um pouquinho na frente. Isso confirma o que um fato concreto já apontava em 2013, quando a gente quebrou um recorde com 35 inaugurações. A 34ª inauguração foi na rua Nova de Recife, que é um formigueiro humano, talvez uma das ruas de comércio popular de mais baixa renda do Brasil. Aquela loja é belíssima. São 3 mil metros de área de venda. Quebrou o recorde de vendas em inaugurações. Uma semana depois, inauguramos outra na esquina da Oscar Freire com a Haddock Lobo, em São Paulo. Uma loja com metade da área, 1,5 mil metros, no ponto mais high end do mercado brasileiro, arrebatou o recorde da rua Nova. Essas lojas têm perfis muito diferentes?

Perfis de públicos diferentes, mas o mesmo mix, os mesmos preços e que fizeram grande sucesso nos dois extremos. Isso mostra que esse modelo, primeiro, tem forte apelo. Escala é a grande mágica para você conseguir ter moda com preço baixo. E forte apelo de velocidade, que ninguém tem no topo da pirâmide. O consumidor moderno de moda morre de tédio quando entra numa Gucci, numa Prada e vê uma coleção que já está por lá há quatro meses. Nós lançamos 200 modelos por dia, 48 mil modelos por ano, um recorde mundial. E qual é o chamariz para fazer a classe A comprar?

Temos uma estratégia de parcerias de longa data. Somos pioneiros. Um jornalista me perguntou quando a gente lançou a coleção Versace em 2014: “Vocês estão fazendo como a H&M?”. H&M é a gigante

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fotos: arquivo pessoal

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1. Com a mulher, a sogra e o papa João Paulo 2º; 2. Ao lado de Donatella Versace; 3. Palestra em Foz do Iguaçu; 4. No Jaburu, com Michel Temer

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sueca que atua em 80 países do mundo e também faz essas parcerias. Começou 20 anos depois da gente, em 2000, quando fez a primeira parceria, que se tornou histórica, com o Karl Lagerfeld, com quem a gente também também se aliou este ano. Fazia 20 anos desde nossa primeira parceria com Ney Galvão, estilista da Bahia. Essa é uma prática que leva às últimas consequências a nossa missão: pinçar os objetos de desejo mais inacessíveis, próprios do cliente mais sofisticado, e, ainda que por um período de tempo limitado, levá-los a dezenas de milhões de consumidores. Foi um trabalho de convencimento, de conseguir demolir o preconceito que também atinge parte

2

4

dos designers. Como os grandes estilistas reagem quando vocês o convidam?

O Oskar Metsavaht, da Osklen, por exemplo. Quando fiz o convite ele falou: “Ah, me dá um briefing. Como é que é? Nunca criei para esse público aí. Eu só vendo nas minhas lojas Osklen”. Eu respondi: “Olha, crie como se fosse para o seu cliente mais exigente da loja de Ipanema ou da Oscar Freire”. Foi exatamente o que ele fez. Eliminou essa linha imaginária: “Ah, vou criar para o público de baixa renda”. Qual sua opinião sobre os seus principais concorrentes, como Pernambucanas, Renner e Zara?

O nosso principal concorrente é a clandestinidade. Ainda hoje uma autoridade federal me perguntou quem é o principal distribuidor de roupas no Brasil, nós ou a Renner? O maior distribuidor é a Infraero. A Infraero coloca no mercado brasileiro mais peças de roupas que os seis maiores players somados. A moça fica grávida, vai para Miami fazer seu enxoval. Todo mundo quando precisa pega o avião e vai para Europa, Estados Unidos. Em épocas de câmbio favorecido, isso se agrava. Apesar de tudo, temos uma relação maravilhosa entre os concorrentes. Inclusive estimulada pela nossa entidade, o Instituto para o Desenvolvimento do Varejo – IDV, que

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capa proporciona um convívio muito civilizado entre os associados. Nosso varejo têxtil está evoluindo para um nível de competitividade internacional. A Renner e a Zara se viabilizaram no Brasil mais rápido que o esperado?

Olha, nem tanto. O business plan da Zara era ter 40 lojas no Brasil em dois anos. Ela já está há 15 anos por aqui e só agora completou as 40 lojas. Isso pela dificuldade do ambiente de negócios brasileiro. Eles reconhecem que encontraram um terreno pantanoso aqui. Entre outros fatores, a complexidade da burocracia, o fato de o Brasil estar sempre entre os 20 piores ambientes de negócio do mundo. Contribuiu para isso a acusação de ter fornecedores que utilizavam

optou por não produzir mais no Brasil. O grande perdedor é o trabalhador. Uma empresa como a Apple serve

petir em maratonas?

Quem entra na minha sala vê um quadro com o retrato do Steve Jobs. Um amigo me deu de presente para eu parar de falar do Steve Jobs. Costumo dizer que nós queremos ser a Apple da cadeia têxtil. Para entender é preciso fazer um paralelo com dois grandes gênios empresariais, Bill Gates e Steve Jobs. São dois modelos opostos. O modelo de Bill Gates é mais ou menos parecido com a cadeia têxtil tradicional, fatiada, com um monte de gente inteligente, mas cada um pensando numa estreita fatia do processo. Na Apple não existem essas fatias, está todo mundo pensando holisticamente. A inova-

Preciso me preparar uns dois ou três meses antes. Já corri duas. Agora, depois que li o depoimento de um cientista de que o próximo gargalo da longevidade vão ser as articulações e que os maratonistas comprometem suas articulações, tenho procurado outras atividades. Você pode cuidar de sua capacidade aeróbica, vascular sem tanto impacto nas articulações.

do steve jobs. Foi um amigo que me deu de presente. costumo dizer que queremos ser a apple da cadeia têxtil”

Estamos falando de empresas absolutamente éticas, tanto a Zara quanto a Renner. Essa questão do trabalho escravo tem fundo ideológico no sentido de denegrir e atingir empresas seriíssimas no que elas têm de mais valioso, que são as suas marcas. É lamentável. Propositalmente a legislação brasileira criou um vácuo sobre a definição do que é trabalho escravo, tornando-a totalmente subjetiva. Tão subjetiva que alguém pode definir como condições sub-humanas de trabalho e jornada extenuante a falta de papel higiênico no banheiro ou uma hora extra de um trabalhador comissionado que ficou um pouco mais para realizar uma venda de uma tela de plasma na véspera do Natal. Isso tem criado problemas não apenas para as empresas. A Zara, por exemplo,

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Ainda está em condições de com-

como inspiração para você?

“Quem entra na minha sala vê um quadro com o retrato

mão de obra servil?

vezes dá para praticar um pouco de windsurfe e stand up paddle.

ção na Apple não está no engenheiro lá na Foxconn, na China, que produz o aparelho. Está no “nerdezinho” lá do genius bar que compreendeu a dificuldade do cliente e vai inserir a inovação no produto. Você tem fama de ser uma pessoa

Qual é o seu lazer?

Gosto muito de ler, ver vídeos, documentários, sou consumidor voraz das palestras do TED. Li e prefaciei o Capitalismo Consciente, do empresário John Mackey, um dos livros que mudaram minha cabeça. Também participei da nova edição de 30 anos do lançamento de A Meta, de Eliyahu Goldratt, o guru da teoria das restrições, muito presente no nosso modelo de negócios. Um livro que me impressionou bastante nos últimos meses foi Sapiens, uma Breve História da Humanidade, do Yuval Harari. É muito bom. Ele analisa a evolução do pensamento humano. Pelo visto, suas preferências lite-

vaidosa, procede?

rárias são quase que uma extensão do

O que se chamava de vaidade no passado hoje está mais ligado à autoestima, de gostar de si mesmo. Eu me cuido, inclusive em relação à forma física. De manhã, o primeiro horário é sagrado: das 7h às 8h é minha hora de ginástica. Às vezes, quando consigo voltar mais cedo do trabalho, faço esteira ou dou umas braçadas na raia de natação lá em casa. No fim de semana, quando é possível, a gente pedala e faz umas corridas na praia de Laranjeiras, que é um lugar de vida bem saudável. Outras

trabalho...

A Meta não deixa de ser um romance, assim como A Revolta de Atlas, da Ayn Rand, um romance maravilhoso que me impressionou muito, ambos com um fundo ideológico muito presente. Gostei muito do livro Sonho Grande, sobre os fundadores do Grupo Garantia. A biografia do Steve Jobs é outra leitura maravilhosa. Também gosto muito de seriados. Um dos últimos que vi foi Homeland, sobre a CIA, o favorito de Barack Obama. Acho que é só isso que

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Ele pensa em moda para todas as classes

tenho em comum com ele. Onde prefere passar as férias?

Na minha atividade, as fronteiras entre trabalho e lazer são tênues. Normalmente as minhas férias são extensões das minhas viagens profissionais, como visitas às feiras de moda de Paris, Milão, a convenção da National Retail Federation, em Nova York. Mas a gente arranja tempo para esquiar na neve em Aspen ou Vail, por exemplo. Vale ou não a pena investir em cultura no Brasil?

Nosso propósito de dar acesso à moda nos levou a investir em arte e cultura. Do ponto de vista da última linha do balanço certamente há investimentos mais rentáveis, mas traz retorno para a imagem do grupo e, do ponto de vista de dar um presente à nossa base, nada é tão gratificante. Quais são seus restaurantes pre-

Fasano, como Gero e Parigi. Num dia especial, qual seria o vinho recomendado?

Acabei de concluir minha adega, uma surpresa feita por minha mulher, que tocou o projeto. Sou bem eclético em matéria de vinho. Para acompanhar churrascos, os californianos são muito bons, mas para uma data especial não há nada melhor do que um Bordeaux ou um Borgonha. Minha adega é bem diversificada. Tem espanhóis, italianos da Toscana e do Piemonte, porque gosto de uma boa massa. Qual a sua palavra favorita?

Além de amor, que move a todos nós, propósito. E uma palavra desagradável?

Do que você não gosta?

Tédio. É uma coisa horrível. Que outra profissão exerceria?

Engenheiro ou arquiteto. Gosto de ciências exatas, de criação, de formas, de realizar projetos. Que profissão não exerceria nem obrigado?

Advogado, com todo o respeito a essa importantíssima categoria. O advogado vive dos conflitos, das polarizações, o que não combina comigo. Quanto mais você crê no livre mercado, menos judicialização é necessário. Se o céu existir, o que você gostaria que Deus lhe falasse na sua chegada?

Egoísmo.

“Bem-vindo, você foi aprovado.”

Qual é o seu som favorito?

Afinal, quem é Flávio Rocha?

A batida do coração da mulher amada.

diletos?

Qual som ou ruído você detesta?

Há 40 anos sou frequentador assíduo do Rodeio. Costumo ir ao La Tambouille desde os tempos do Giancarlo Bolla. Dos mais recentes, gosto do Maní e do Naga. Isso sem falar dos restaurantes da família

O toque do celular. Qual seu palavrão preferido?

Não gosto de palavrão. O que o excita?

Desafio.

Um sonhador, que se tornou uma pessoa melhor quando descobriu qual é o seu melhor sonho. Quando descobre o motivo pelo qual veio ao mundo você se transforma, e eu sou um perseguidor desse sonho que hoje abrange muita gente. P

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viag e n s r e ló g i os hoté i s c h a m pa n h e pire lli

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Dubai Royal Mirage

M

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sem cerimônia

ais descontraído que outros

cúpulas, palmeiras e gramados espalhados

Mirage até exagera. Tem uma praia parti-

resorts da rede One&Only, o

pelo complexo, que engloba três unidades

cular de 1 quilômetro de extensão e mais

Royal Mirage gosta de cativar

distintas. A primeira, The Palace, como o

de 10 alqueires de jardins.

pela simpatia – e pela surpresa. A chegada

nome sugere, é um palácio com entrada

Antes de sair para drinques ou para

do hóspede é anunciada por um gongo de

privativa. A segunda, a Arabian Court, com

jantar, conheça os serviços do One&Only

bronze. E um cordial cartão em português

jardins e fontes, oferece todos os quartos

Spa, com banhos turcos ou massagens. O

– o diretor de quartos é da cidade do Por-

de frente para o mar. Por fim, a Residence

Pedi:Mani:Cure:Studio, do podólogo Bas-

to – dá as boas-vindas aos brasileiros.

& Spa tem apenas 32 quartos e 18 suítes,

tien Gonzalez, e o Zouari Hair Salon são

Localizado a poucos minutos da Ma-

com sala de jantar exclusiva para os hós-

ótimos para dar uma boa esticada.

rina Dubai, nos Emirados Árabes, o Royal

pedes. Os itens de toalete são Blenheim

O complexo tem oito restaurantes e

Mirage tem a arquitetura inspirada no

Bouquet, da marca inglesa Penhaligon’s. Se

diversos bares, como o Celebrities e sua co-

estilo romântico da velha Arábia: arcos,

o hóspede não abre mão de privacidade, o

zinha europeia clássica. Almoços ou lanches

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rápidos podem acontecer no restaurante flutuante Eauzone, com decoração que se mescla bem com a marina. E que belíssima vista ele oferece! À noite, vale ir ao The Jetty Lounge, que une arquitetura árabe com decoração moderna, além de uma bela carta de drinques bem preparados. Depois, escolha o Tagine, um restaurante marroquino com pratos típicos e atmosfera idem. Outras opções? Pense no Nina, com culinária indo-europeia, ou no Olive, com sabores mediterrâneos. Se quiser gastar energia, o resort acena com campo de golfe e toda a estrutura para esportes aquáticos e surfe, ao lado do deserto. Dubai vai bem além da sombra e da água fresca (ou do champanhe). (Marcello Borges) oneandonlyresorts.com

O conforto é tamanho (até com praia particular) que dá vontade de hospedar-se neste hotel por 1.001 noites

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one world

Rumo aos quatro cantos do planeta

Dar uma volta ao mundo nunca foi tão fácil. Com uma única passagem aérea é possível viajar para vários continentes

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sabores exóticos e experiências

U

cidades. Para montar o seu roteiro, basta sele-

únicas. Quem nunca fantasiou dar a volta ao

cionar destinos em todos os continentes, o que

mundo? Pois esse é o momento de se permi-

ajuda a optar pelas escalas e calcular as tarifas.

tir viver essa aventura. A aliança aérea One

Depois, eleja os trajetos com base no número

m bilhete e mil possibilidades: cul-

precisar comprar voo por voo e nem se preo-

turas diferentes, paisagens remotas,

cupar com o deslocamento entre as grandes

World interliga 14 companhias, com acesso a

de continentes: três, quatro ou seis. A tarifa

mais de mil aeroportos em cerca de 150 paí-

Global Explorer permite desfrutar o mundo

ses. A passagem de volta ao mundo, conhecida

ao máximo, percorrendo todos os continentes

como RTW (Round The World), é um bilhete

(incluindo o de origem do viajante), enquanto a

com diversos voos comprados de uma vez. O

tarifa One World Explorer é mais flexível, cal-

tíquete liga trechos que permitem ao viajante

culada a partir das distâncias entre um ponto e

contornar o globo, saindo e retornando de um

outro. O preço, portanto, depende bastante

mesmo ponto. No caso da One World, o pas-

do roteiro traçado, do número de trechos e

sageiro pode customizar o roteiro, escolhendo

das companhias aéreas escolhidas. Se o traje-

os países e lugares que deseja conhecer.

to passa por aeroportos estratégicos ou tem

Se o problema for tempo para planejar a

menos escalas, sai mais barato. Para se ter uma

viagem, essa é a sua passagem. Você não vai

ideia, um bilhete com 16 trechos (o número

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Quatro cidades bem distantes umas das outras que podem ser visitadas em uma única viagem: Sydney, Moscou, Los Angeles e Tóquio

máximo permitido no pacote) pode custar

permitindo que o viajante se programe à me-

cerca de US$ 5 mil. Basta dividir o valor pelo

dida que prossegue a viagem.

número de voos para ver como cada um deles

Quanto à duração da aventura, ela não

custa pouco, se comparado a uma ida e volta

precisa se limitar a 80 dias, como no livro clás-

São Paulo-Bangcoc, na Tailândia, por exemplo.

sico de Júlio Verne. Mas tem uma regra: deve

A tarifa também leva em conta a classe

durar no mínimo dez dias e no máximo um

em que o passageiro vai voar. O cliente fiel

ano. Portanto, o roteiro precisa ser decidido

de uma companhia aérea membro da One

no momento da reserva, a partir das empresas

World pode ganhar pontos e desfrutar de

aéreas que integram a aliança. No site da One

prêmios e privilégios oferecidos pela aliança.

World, dá para simular os roteiros. As informa-

Outra vantagem do bilhete de volta ao mun-

ções sobre as regiões continentais, rotas e es-

do é que as datas dos voos podem ser altera-

calas ajudam a planejar a viagem e se certificar

das sem taxa, desde que haja disponibilidade.

de que, afinal de contas, o mundo é menor do

Após o primeiro voo internacional, é possível

que parece. Melhor dar uma volta.

deixar os próximos com a data em aberto,

www.oneworld.com

Companhias aéreas que integram a aliança One World: Airberlin, American Airlines, British Airways, Cathay Pacific, Finnair, Iberia, Japan Airlines, LATAM, Malasya Airlines, Qantas, Qatar Airways, Royal Jordanian Airlines, S7 Airlines, Srilankan Airlines Exemplos de roteiros oneworld: Seis continentes – Madri - Nova York - Chicago - Miami - São Paulo - Santiago - Auckland - Sydney - Cairns - Tóquio - Hong Kong - Doha – Joanesburgo - Cidade do Cabo - Londres - Zurique - Madri Quatro continentes – Cairns - Brisbane - Singapura - Hong Kong - Tóquio - Helsinque - Dusseldorf - Londres - Nova York - Toronto - Los Angeles - Sydney - Cairns Três continentes – Los Angeles - Tóquio - Hong Kong, - Kuala Lumpur - Doha - Moscou - São Petersburgo - Madri - Miami - Los Angeles

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A torre com o relógio do Balmoral: marco de Edimburgo

Escócia

Refúgios com charme Cameron House

padrão combina com paredes forradas com tecido, pisos de pedra, móveis de madeira es-

Paisagem espetacular, ambiente glamou-

cura e candelabros feitos de chifres.

roso, falcões adestrados e o uísque do Ca-

Os 132 quartos são britanicamente decorados. Há quatro restaurantes, sendo um com

pitão Haddock: bem-vindo ao hotel Came-

estrela Michelin. Sem esquecer os dois campos de golfe e o premiado spa. O cenário de Ca-

ron House. Destino chique e charmoso em

meron House inclui vista para o Ben Lomond, uma das montanhas mais queridas da Escócia.

West Dunbartonshire, entre as Lowlands e

Entre muitas atividades, o hotel oferece passeios de hidroavião, que decola do píer em

as Highlands, às margens do deslumbrante

frente à casa principal, e apresentações de falcoaria, quando as aves pousam na sua mão pro-

Loch Lomond, Cameron House é uma es-

tegida por uma luva de couro. O campo de golfe principal sedia campeonatos escoceses. No

capada perfeita a partir de Edimburgo (1h30

spa, a incrível piscina de borda infinita ao ar livre, no terraço, é um dos destaques.

de carro) ou Glasgow (30 minutos).

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Na gastronomia de Cameron House destaca-se Martin Wishart, premiado chef escocês

No fim de 2015, o hotel trocou de mãos

com uma estrela Michelin tanto em Loch Lomond quanto em Edimburgo. O Cameron Grill

em um negócio de 80 milhões de libras. O

também faz bonito. Difícil ignorar seu inesquecível bar de salmão escocês, com peixes defu-

novo dono é um fundo de investimentos

mados e curados na casa com beterraba, mel ou uísque.

americano que promete valorizar ainda

O Great Scots Bar oferece mais de 200 variedades de malte, incluindo produções

mais o scottish spirit local. O tartã está por

das destilarias locais. Entre elas está o Loch Lomond Original, uma homenagem ao

toda parte, das almofadas e dos tapetes nos

belga Hergé. O single malt batizado com o nome do lago aparece em algumas aven-

quartos às poltronas no Cameron Grill. O

turas de Tintim. Mas a Loch Lomond Distillery só surgiu anos depois das histórias em

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quadrinhos. Hoje a ficção tornou-se realidade e é possível brindar ao Capitão Haddock com a sua bebida preferida. Cheers! The Balmoral Antes ou depois da Cameron House, é fundamental passar uns dias em Edimburgo. The Balmoral é tão tradicional que, mais do que um hotel, tornou-se um marco turístico do centro da cidade. Desde 1902 moradores e visitantes acertam a hora pelo relógio da torre que chama a atenção no panorama. O relógio está sempre adiantado três minutos. Assim, ninguém perde o trem, pois a estação Edinburgh Waverley é logo ao lado. Além da história, da impressionante arquitetura vitoriana e da localização imbatível, no número 1 da Princes Street, entre a cidade antiga e a nova, The Balmoral coleciona prêmios depois de ter sido renovado em 2015. Number One, seu restaurante há 14 anos com uma estrela Michelin, assinado pelo chef Jeff Bland; um spa com uma deliciosa piscina aquecida de 15 metros, e belas fotos em preto e branco de cenas do ator escocês Sean Connery em 007 Contra o Satânico Dr. No (de 1962) pelas paredes dos 188 quartos e suítes (muitos com vista para o Castelo de Edimburgo) decerto contribuem para o prestígio do Balmoral, atualmente integrante do exclusivo portfólio Rocco Forte. Olga Polizzi, irmã de Sir Rocco, assina a decoração dos quartos e suítes. E foi em uma das 20 suítes que J.K. Rowling terminou de escrever a saga Harry Potter. (Carla Lencastre) luxuryscotland.co.uk/cameronhouse

Falconaria e vela: atrações do Cameron House

roccofortehotels.com/hotels-and-resorts/the-balmoral-hotel

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IMÓVEIS NO EXTERIOR

Morar bem em Lisboa

G

raças ao retrofit – a modernização

Chiado: prédio do século 16

de imóveis antigos ou fora das normas atuais –, adquirir um

pied-à-terre em Lisboa está cada vez mais

fácil. Que tal desfrutar dos serviços de um hotel 5 estrelas num palácio do século 16? Pois é o que acontece no Chiado, o bairro boêmio da capital portuguesa. São apartamentos de luxo de 50 m2 a 120 m2, no formato estúdio, dois ou três quartos e loft, com bela vista para o rio Tejo e para a cidade. A inauguração está marcada para o começo de 2017, e mais da metade das 53 unidades já foi vendida. Preços: entre 300 mil e 700 mil euros. * * * Célebre por sediar diversas embaixadas e a residência oficial do primeiroministro de Portugal (Palacete de São Lapa: palacete de esquina

Bento), o elegante bairro da Lapa abriga as ruínas de uma residência senhorial que passa por total reformulação. Trata-se de prédio do começo do século passado, com três pisos (térreo, primeiro e segundo andares, além das águas-furtadas) em terreno de 520 m2. A atual área privativa de 929 m2, após o retrofit que preservará a fachada do edifício e prevê a completa demolição das ruínas do prédio ao lado, saltará para 1.670 m2, com garagem para nove carros. Preço: 3,5 milhões de euros. Contato: Uli York – uliyork@gmail.com

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CHAMPANHE E CELEBRIDADES

CASAMENTO DE ESTRELAS

O

fama de ser o criador do champa-

de Dom Pérignon, Veuve Clicquot, Pommery

ção a essa linha é o Bollinger SPECTRE Crystal

nhe, no dia 4 de agosto de 1693. Na realida-

e Krug, com Bollinger ganhando a corrida no

Set, com embalagem de cristal Saint-Louis (do

de, sua principal contribuição foi a maneira de

número de aparições, a começar pelo roman-

grupo Hermès) com tampa metálica encimada

produzir champanhe blanc de noirs, algo que os

ce Os Diamantes São Eternos, de 1956.

por um polvo (símbolo do inimigo figadal de

monge do mosteiro beneditino de

que o espião saciava a sede. Em seus livros, Ian

bala, edições especiais e outros que fazem a

Hautvillers, Dom Pérignon, tem a

Fleming distribuiu com generosidade garrafas

alegria de colecionadores. A mais recente adi-

enólogos vinham tentando fazer sem sucesso.

Roger Moore foi o primeiro 007 a pedir

Bond), pesando mais de 13 quilos. Dentro dela,

A bebida ganhou fama entre reis, nobres

um Bollinger em cena, em Viva e Deixe Morrer,

uma garrafa do Bollinger R. D. 1988, um corte

e plebeus, com apreciadores como o czar

de 1973: “refrescada, com duas taças”. Com

de 60% de Pinot Noir e 40% de Chardonnay.

Alexandre II, da Rússia: para evitar que uma

Pierce Brosnan, Bond revela seu apreço por

É um champanhe em tiragem de apenas 307

bomba fosse posta numa garrafa da bebida

champanhe vintage, ao requisitar um Bollinger

exemplares, com preço final de US$ 9.500.

em seu Jantar dos Três Imperadores, em 1876,

1961. Dizem que o produtor da série, Albert

a maison Louis Roederer criou o Cristal, com

Broccoli, fez um acordo de cavalheiros com o

CHURCHILL

fundo chato e feito de vidro transparente (am-

gerente-geral da maison num jantar em 1978.

Outro personagem – este da vida real

bos, ao contrário das garrafas de champanhe

Desde então, a preferência pela marca tem

– intimamente associado à “bebida com es-

tradicionais). Esse champanhe pode ser consi-

sido uma constante nos filmes de 007.

trelas” é Sir Winston Churchill, sibarita inve-

derado o primeiro cuvée prestige da história,

A maison Bollinger não deixou barato e

terado que entre 1908 e 1965, ano de sua

conquistando celebridades do cenário hip hop,

produziu uma série de gadgets explorando

morte, espocou cerca de 42 mil garrafas de

como Sean Combs, e outros mais convencio-

a associação, como recipientes em forma de

seu vinho preferido. Ele dizia que “no suces-

nais, digamos. JAMES BOND

so, nós merecemos, Dom Pérignon, Churchill e 007: fãs

e na derrota, precisamos do cham-

Os fãs de James

panhe”. Atribuída a

Bond (um dos per-

Napoleão, a frase

sonagens mais asso-

celebrizou-se com

ciados ao champa-

o robusto primeiro-

nhe) conhecem de

-ministro britânico.

cor as marcas com

(MB)

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Caixas Bowers & Wilkins: design e qualidade

Som Maior

orquestra em casa

P

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Tecnologia e design para ver e ouvir com perfeição ioneira no Brasil na importação de equipamentos de alta

comercial da Som Maior, representante da marca. “Em casa ou no

qualidade, a Som Maior apresenta as melhores marcas in-

escritório, esse equipamento é fundamental para quem deseja ter o

ternacionais para consumidores brasileiros. Uma delas é

melhor som do mundo.”

a Bowers & Wilkins, principal exportadora de caixas acústicas da

Outra novidade da Som Maior é o SIM2xTV, projetor a laser

Grã-Bretanha e a número um em importações nos Estados Unidos.

da marca italiana Sim2, premiado pela inovação em telas gran-

Desde 1966, a busca pela perfeição da marca se reflete em caixas

des de alta performance. Perfeitamente integrado à decoração

acústicas pensadas para os ouvintes mais exigentes do mundo. Tan-

do ambiente, esse projetor combina a experiência de tela grande

to é que seus produtos são usados como monitores para gravações

com o dispositivo de exibição mais discreto já criado. A peça pode

profissionais, como nos lendários estúdios Abbey Road e Skywalker

ser posicionada a poucos centímetros de qualquer parede ou su-

Sound. Além da beleza das caixas de som, que faz delas verdadeiras

perfície plana vertical para transmitir com alta definição em uma

peças de decoração, o som produzido é rico em detalhes, clareza e

tela projetada de até 110 polegadas. Isso graças à tecnologia de ilu-

ausência de distorção.

minação a laser. Ela dispensa o uso de tela e permite ao aparelho

Uma das novidades da marca para 2017 é o 800 D3, o alto-fa-

transformar qualquer ambiente em um verdadeiro cinema. “Não

lante premium mais avançado já produzido pela B&W. “Ele foi lança-

é um simples projetor, pois a imagem é perfeita mesmo sem uma

do para comemorar o 50° aniversário da empresa e nasceu a partir

tela”, afirma Zattar. “Além de não ocupar espaço, o display pode

de exaustivos testes de audição, com rigor para avaliar o desempe-

ser transportado facilmente e tem um custo muito inferior ao de

nho de cada componente até encontrar a peça ideal para alto-fa-

uma TV com o mesmo tamanho da projeção.” (Juliana Amato)

lantes de funcionamento tridimensional”, conta Kahlil Zattar, diretor

sommaior.com.br

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O projetor italiano da Sim2 dispensa o uso de tela

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vacheron constatin

Patrimônio do tempo

A

apresentação de data é um dado comum no mundo da relojoaria. Mas esse amplo campo se estreita quando tratamos de uma indicação

retrógrada: quando tal dado é apresentado por um ponteiro em um arco graduado e, ao alcançar o final dessa graduação, retorna de maneira instantânea ao ponto inicial. O mercado se especifica mais ao adicionar uma indicação de fases da Lua e o Selo de Genebra, um certificado que atesta alta resistência, precisão e acabamento. Tais características estão no modelo Vacheron Constantin Patrimony Moon Phase Retrograde Date, que tem um movimento automático inteiramente desenvolvido pela própria companhia em sua manufatura, em Genebra. Ele é composto por 275 partes que, juntas, fornecem uma longa autonomia de corda, de 40 horas. O relógio está disponível com caixa de ouro branco ou rosa, ambas com 42,5 mm de diâmetro. A indicação

de fases da Lua é realizada em um disco elaborado pelo mesmo material da caixa, que entrega uma combinação delicada aos olhos. A versão de ouro branco é finalizada por uma pulseira de couro de crocodilo preto, enquanto o modelo de ouro rosa conta com uma pulseira do mesmo material em marrom. (Renata Bench) vacheron-constantin.com

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TAG heuer

Alta inteligência

A

lguns meses depois de mexer com as estruturas do univer-

de sua peça por um mecanismo suíço com função cronógrafo me-

so da alta relojoaria, o smartwatch TAG Heuer Connected

diante o pagamento de um valor adicional, reforçando a filosofia da

chega ao Brasil. Um relógio de uma marca tradicional suíça

companhia de possuir ‘um relógio para a eternidade’”, afirma Fred-

equipado com processador Intel e sistema operacional Android, do

dy Rabbat, CEO da 356 Distribuidora, responsável pela gerência da

Google, só poderia ser algo muito aguardado no mercado. “Havia

marca no Brasil.

uma tiragem inicial de 100 mil unidades no mundo e tivemos que

Quem adquirir o modelo Connected tem a possibilidade de es-

dobrar nossa capacidade de produção para atender à demanda do

colha, dentro do sistema do relógio, de pelo menos três opções de

mercado”, diz Christian Weissbach, CEO da TAG Heuer para Amé-

mostradores que nunca se apagam, mesmo no modo de economia

rica Latina e Caribe.

de energia: cronógrafo tradicional ou ainda com segundo fuso horá-

A peça utiliza a caixa de formato clássico de seus modelos

rio. Os detalhes e acabamentos de alta relojoaria também estarão

Carrera. São 46 mm de largura em titânio grau 2, que oferece

presentes. Eles incluem sombreamento e decoração do plano de

leveza e resistência, e um sistema operacional dos mais conheci-

fundo. São 4 GB de capacidade de armazenamento e uma bateria

dos e versáteis do mundo, que já conta com uma infinidade de

que tem autonomia para um dia inteiro de uso, com sincronização

aplicativos para os modelos “vestíveis”.

para smartphones Android ou iOS. (RB)

“Após dois anos de uso do relógio, será possível trocar o ‘miolo’

tagheuer.com

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montblanc

M

De volta às origens aterial muito usado nos primórdios da relojoaria,

movimento de fabricação própria MB M16.29, que se inspira no

o bronze tem voltado a aparecer em algumas

mecanismo de bolso 17.29 fabricado pela Minerva – manufatura

coleções das mais diversas maisons. A Montblanc

adquirida pela Montblanc e atual integrante da companhia.

não ficou atrás dessa retomada e apresentará, para o Salão

Sobre um mostrador champanhe, ponteiros estilo catedral

Internacional de Alta Relojoaria, que acontece em janeiro, em

banhados em ouro rosa entregam horas, minutos, pequenos

Genebra, na Suíça, novos modelos que integram bronze em sua

segundos e função cronógrafo com ponteiro de segundos

composição. O grande destaque dentre as novidades fica com

central e acumulador de 30 minutos na região de 3 horas do

o modelo 1858 Chronograph Tachymeter Limited Edition 100,

dial. Ativado, parado e reiniciado por um único botão integrado

uma edição limitada a apenas 100 unidades, com uma caixa de

à coroa, além da marcação de 30 minutos decorridos, o

44 mm de diâmetro elaborada em bronze, material que

cronógrafo ainda permite o cálculo da velocidade média

conquista uma pátina única de acordo com seu uso e também

transcorrida em um quilômetro com o taquímetro apresentado

o tipo de ambiente em que é mantido. Exclusividade pura.

na região periférica do mostrador. (RB)

Além disso, a herança da relojoaria clássica é trazida pelo

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montblanc.com

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panerai

Marinheiros

O

s novos Panerai Radiomir 3 Days Acciaio –

A caixa é feita de aço e abriga o movimento P.3000 de corda

47 mm se inspiram em modelos criados pela

manual e fabricação própria. De maneira objetiva, o usuário

própria companhia nos anos 1930. Eles eram

conta com a indicação clássica de horas e minutos com indi-

apresentados às autoridades da Marinha italiana, que

cadores em algarismos arábicos intercalados com bastões no

avaliavam os novos instrumentos para uso sob a água. As

tradicional mostrador em estilo sanduíche.

peças apresentam medidas robustas de caixa e ostentam

A novidade da companhia está em uma das duas opções

um bisel com 12 lados, além da gravação “Officine Panerai

de dial apresentadas. A primeira delas, simples, é preta.

– Brevettato”.

Já a segunda é um marrom sombreado que imita o efeito

O termo italiano Brevettato significa patente. Essa é uma

ocasionado pelos revestimentos luminescentes radioativos

referência à substância luminescente utilizada no mostrador

utilizados sobre os mostradores pretos na época. (RB)

e também à homologação das peças pelos oficiais militares.

panerai.com

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calendário pirelli

irretocáveis

A

43ª edição do Calendário Pirelli chegou para marcar época. O alemão Peter Lindbergh foi o escolhido para clicar os ensaios do ano de 2017. É a terceira

Julianne Moore: uma das 14 mulheres

vez que assina o famoso calendário da marca italiana. Nenhum outro chegou a essa marca. Outro destaque dessa edição é que Lindbergh confidenciou sua vontade de evidenciar uma beleza sem artifícios. “Numa época em que as mulheres são apresentadas pela mídia como embaixadoras da perfeição e da beleza, pensei que seria importante lembrar a todos que existe uma beleza diferente, mais real e autêntica, e não manipulada pela propaganda”, diz. “Uma beleza que fala da individualidade, da coragem de ser quem se é e da sensibilidade.” E é por isso que 14 mulheres conhecidas mundialmente – não apenas pela beleza – foram as eleitas para estampar as 40 páginas do calendário. Uma Thurman, Julianne Moore, Léa Seydoux, Penélope Cruz, Charlotte Rampling e outras atrizes internacionais – além de Anastasia Ignatova, professora de Teoria Política na Universidade de Moscou – posaram ao natural para as lentes de Lindbergh. A edição 2017 segue a ideia da versão anterior, assinada por Annie Leibovitz, de apresentar mulheres notáveis e promover uma ruptura com a tradição de explorar a sensualidade óbvia das personagens. Baseado em imagens P&B, as fotos anunciam um retorno ao natural com as retratadas sem maquiagem, sem retoques de Photoshop – e nada de biquínis. É uma mensagem de novos tempos, inclusive para o Calendário Pirelli. (JA) pirellicalendar.com

THE PRESIDENT BLACK BOOK Colaboraram neste número: Carla Lencastre, Juliana Amato, Marcello Borges e Renata Bench

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Restaurante Flemings.indd 79

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Estilo

Por marcello borges ilustração Raphael Alves

OU A ÂNSIA DE PARECER A expressão surgiu há mais de dois séculos. Ninguém sabe como. Mas todo mundo sabe quando alguém está esnobando

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estilo

Virgina Woolf não tinha medo de parecer esnobe

Q

uer um bom exemplo de esnobismo? O poemeto de Millôr Fernandes: “Esnobar/ É exigir café fervendo/ E deixar esfriar”. Outro? Pois bem, numa das cenas mais divertidas de Mr. Bean – O Filme, Rowan Atkinson entra em um avião e sacode seu bilhete de primeira classe diante dos infelizes que se acotovelam, tentando acomodar-se em seus assentos da econômica. Todo inglês tem um pouco de esnobe e Mr. Bean não é exceção. Há quem diga que exista uma reação em cadeia: passageiros da executiva esnobam os da econômica, os da primeira esnobam os da executiva e os donos de jatos particulares esnobam os usuários da primeira classe. Bem, nem todo mundo esnoba. Mas todo mundo sabe o que é esnobar. No entanto, poucos sabem que a palavra teve uma longa carreira semântica até chegar ao significado dos dias correntes. Segundo o dicionário Oxford, o vocábulo snob despontou ainda na segunda metade do século 18, na Inglaterra, a partir de um obscuro dialeto. Queria dizer apenas “sapateiro”. Nada além. Sua primeira expansão semântica, ainda de acordo com o Oxford, transformou-a em algo mais próximo de sua acepção atual: “pessoa que procura imitar aquelas de posição social econômica superior”. O pesquisador Douglas Harper, em seu dicionário de etimologia,

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concorda em linhas gerais com o Oxford. Mas acrescenta que, em 1831, a palavra snob havia deixado, entre os estudantes de Cambridge – seus maiores divulgadores –, de definir apenas “sapateiro” para abarcar toda “pessoa de baixa posição social”. Sabe-se lá como, apenas 12 anos mais tarde, esse conceito mudou para “pessoa de baixa posição social que imita vulgarmente as de classe superior”. O irrefreável dinamismo dos idiomas continuou agindo sobre o vocábulo. Assim, ele foi perdendo a acepção de trabalhador humilde para designar justamente o contrário: viventes de classes abastadas. Em 1911, no parecer de Douglas Harper, a palavra snob já era então registrada em seu sentido atual: “pessoa que despreza aquelas que considera inferiores em posição social, realização ou gosto”. Parece simples. Mas a verdade é que ninguém tem noção exata de como surgiu a palavra. As versões caminham do factível ao mais fantasioso. A mais divulgada delas, amplamente desmentida com vigor pelos filólogos britânicos, dá conta de uma distinção entre os alunos da aristocracia e da burguesia britânica, feita por um anônimo funcionário da Universidade de Oxford na terceira década do século 19. Ao fazer o registro dos alunos ricos, mas plebeus, ele anotava discretamente na ficha uma inscrição cifrada, para informar os mestres: S.nob. Era a abreviatura das palavras latinas Sine nobilitale, ou seja, sem nobreza. O ensaísta americano Jo­ se­ph Epstein, nascido em 1937, propõe uma origem totalmente distinta. No livro Snobbery, The American Version, ele sugere que a palavra snob poderia ter gênese escandinava. Eis o seu sentido A versão americana do esnobismo

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O assunto deu muito pano para manga – de punhos rendados

inicial: “idiota, com o conceito de impostor ou charlatão, que conta vantagens”. Flexível, Epstein admite, ainda, outra origem semântica. A palavra seria o oposto de nob, alguém com verdadeira posição e poder. Assim, o snob, por antonomínia, seria aquele que, não tendo nenhuma das duas, busca-as com ansiedade. Ainda que a origem da palavra continue sendo um enigma indecifrável pela etimologia, o assunto esnobismo sempre ren­ deu muito pano para manga – em especial mangas com punhos de renda. Entre os autores mais famosos a tratar do tema de­ certo está o inglês William Makepeace Thackeray (1811-1863). Ele chegou a publicar um compêndio sobre o assunto, em 1849: The Book of Snobs, by One of Themselves. Tradução: O Livro dos Snobs, por um Deles. Virginia Woolf, outra inglesa, também se considerava uma esnobe. E explicava: “A essência do esnobismo William Thackeray: very british & very snob

A escritora britânica Virginia Woolf se assumia como uma esnobe. E explicava: “A essência do esnobismo é o desejo de impressionar os outros”

é o desejo de impressionar os outros”. Claro que a Inglaterra, provável berço do esnobismo e seguramente seu maior criadouro, tinha de dar muito mais pitacos literários sobre a questão. Outro britânico, John Ian Robert Russell (1917-2002), duque de Bedford, escreveu, em 1965, o sutil The Duke of Bedford’s Book of Snobs. Nascido numa das mais aristocráticas famílias da Inglaterra (em suas palavras, sua família “se imaginava um pouco acima de Deus”), o duque teve a oportunidade de observar os pontos fracos de seus iguais e criticá-los impiedosamente. Com observações que visam proporcionar ao leitor uma visão de insider dos peers do Império, ele produz pérolas como “nunca se usa uma tiara num hotel” e trata do antiesnobe, “o homem que tem orgulho de sua origem humilde e se vangloria constantemente dela. O homem que não foi à universidade e considera esta a maior realização de sua vida”. Lembra algum brasileiro famoso? Pois é, ele é um esnobe às avessas. A França teve o irreverente Pierre Daninos (1913-2005), com fino traço e infelizmente pouco lido nas últimas décadas, criador de um ótimo personagem, o major Thompson. Ele é autor do tratado snobissimo, assim mesmo, só com minúsculas, tal como assinava o poeta americano e. e. cummings. Para Daninos, todo mundo é esnobe. Ao menos no sentido de querer parecer o que não se é. A capa da primeira edição do snobissimo, de 1964, esnobíssima, reproduz a treliça empregada na carroceria de autos como o Rolls-Royce ou Hispano-Suiza.

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estilo Marcelino de Carvalho era ligadíssimo em etiqueta

O jornalista americano dan Rather assim definiu o esnobe intelectual: “É aquele que escuta a Abertura Guilherme tell, de rossini, e não pensa no Zorro”

Americanos e canadenses, como seria de supor, não se comparam em esnobismo a britânicos e gauleses. Em seu Canadian Book of Snobs, a escritora Victoria Branden procura localizar o esnobe ao longo da história da terra do hóquei. Quanto aos americanos, um deles, o jornalista Dan Rather saiu-se com uma excelente definição de esnobe intelectual: “É aquele que escuta a Abertura Guilherme Tell, de Rossini, e não pensa no Zorro”. Na verdade, pouca coisa no mundo é mais esnobe do que o brinde tradicional de Boston – bastião americano dos WASP e, em especial, dos chamados brahmins, descendentes dos colonizadores irlandeses: “And this is good old Boston/ The home of the bean and the cod/ Where the Lowells talk only to Cabots/ And the Cabots talk only to God”. Em tradução livre: “E esta é a boa e velha Boston/ A casa do feijão e do bacalhau/ Onde os Lowells falam apenas com os Cabots/ E os Cabots falam somente a Deus”. Entre nós, Marcelino de Carvalho (1905-1978), irmão do Marechal da Vitória Paulo Machado de Carvalho e conhecido por seus manuais de etiqueta e crônicas da sociedade paulistana, escreveu Snobérrimo, declaradamente inspirado em snobissimo. O título? Marcelino conta que no Brasil (na década de 1960) era comum o sufixo snob “érrimo”, de “magérrimo” e “elegantérrimo”, para não falar do sujeito que queria ir a Ouro Preto para conhecer as obras do Aleijadérrimo... Esnobes, na versão brasileira

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Pelas definições apresentdas, podemos resumir: esnobe é (a) quem quer aparecer (na verdade, parecer sem ser); (b) quem segue os ditames do momento sem qualquer crítica; (c) quem menospreza os inferiores e admira os superiores, adulando-os. Alguns paulistas, infelizmente, parecem seguir a opção “c”. Encarapitados em seus genealógicos galhos quatrocentões, es­ nobam os imigrantes bem-sucedidos, oriundi, patrícios ou nisseis, e bajulam os poucos membros de sua – supostamente aristocrática – tribo que ainda não faliram ou decaíram desde a famigerada Crise do Café. Eis a lógica: tenho menos (poder, dinheiro, status, seja o que for) que você, mas sou melhor (porque cheguei primeiro e meus avós são nome de rua). Mas, se pensarmos bem, imigrantes somos todos nós, mesmo os descendentes dos povoadores de São Vicente e de São Paulo de Piratininga. Seus ilustres antepassados chegaram aqui no século 16, mas as Bartiras e Terebés já viviam havia séculos no planalto paulista. Em um mundo onde a ameaça de uma crise climática e energética paira sobre todos, ser esnobe é uma atitude absolutamente out, politicamente incorreta e arrogante. (A propósito, Morley Safer, jornalista canadense, disse que “arrogância e esnobismo moram em quartos contíguos e usam a mesma moeda”.) Estamos todos no mesmo barco, e não sabemos se o casco vai suportar por muito tempo. É por isso que o melhor é seguir o conselho do bom mestre Marcelino, que dizia, a título de conselho a seus jovens leitores: “Não seja snob... tenha sua personalidade. Faça com que os outros o aceitem tal qual você é... Seja simplesmente natural. Ouse ser P você mesmo”.

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perfil

Por marion frank retratos Brian Flaherty

Silênciopoético A visão está por um fio. O fôlego, também. Mas o poeta e pintor Lawrence Ferlinghetti, aos 97 anos, resiste, sozinho, à passagem do tempo

One grand boulevard with trees With one grand café in sun With strong black coffee in very small cups. One not necessarily very beautiful Man or woman who loves you. One fine day. (1)

H

á um corredor – uma das fronteiras do mundo por onde ele diariamente transita, com cuidado, do escritório ao quarto de dormir, banheiro e cozinha, que tem a largura do imóvel (e status de sala de visitas, dizem os amigos). O apartamento, modesto, vive na penumbra. A luminosidade do sol perturba quem enxerga cada dia menos por causa de glaucoma. Há livros, livros e papéis, um aparelho (pequeno) de TV e uma lente de aumento ajustada à tela do computador. Sem ela, Lawrence Ferlinghetti, 97 anos, jamais conseguiria acompanhar o que acontece além do seu universo particular. O coração falhou anos atrás, implantaram um marca-passo e hoje, além do andar arrastado, ele respira com grande dificuldade. Mas a cabeça de um dos mais populares poetas americanos, responsável pela difusão do movimento de contracultura beat dentro e fora dos Estados Unidos, continua um azougue. O filho, Lorenzo, de voz afável, confirma ao telefone: “It’s a young mind in an old body”. Foi em 1956 que Ferlinghetti, servindo-se de sua então recém-criada editora (e livraria) City Lights Books, em San Francis-

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co, decidiu publicar “Howl” (“O Uivo”), poema libertário e sexualmente transgressor de Allen Ginsberg, enfrentar o establishment (que taxou de imediato a obra de pornográfica, obrigando o editor a se defender em tribunal, apelando à liberdade de expressão) e assim dar impulso a um renascimento da literatura americana e da defesa dos direitos civis no país. Casado, pai de duas crianças, Lorenzo leva a vida de surfista e arborista em Bolinas, distante meia hora de carro de San Francisco. Várias vezes por semana, porém, ele cumpre o ritual de ir até o endereço em North Beach, onde seu pai mora há mais de 30 anos, desde o falecimento da mãe de Lorenzo, Selden “Kirby” Smith (de quem Lawrence já estava separado, mas mantinha bom relacionamento; do casal também nasceu Julie, que vive com o marido em Kentucky, no Leste americano). A cada visita cuida de tudo o que se relaciona ao lugar, das compras à comida, afora o afeto a quem se sente muito ligado. “Meu pai é um tipo independente e vai ser assim até o fim”, diz, tentando justificar a ausência de alguém por perto 24h por dia. Quando vai embora, o silêncio retorna, imperioso. Nada de visitas. Só as palavras continuam, imagina-se, borbulhando na mente (e no espírito) do ilustre morador. E as cores também. O que poucos sabem, americanos incluídos: Lawrence Ferlinghetti tornou-se pintor respeitado no cenário internacional das artes plásticas. Sua mais recente exposição, que destacou a última tela que produziu, no início de 2016, em tons cinza (e outras, de 1992, coloridas), agitou a galeria Rena Bransten, em San Francisco, até meados de outubro. “Ele veio para a abertura, em julho, foi adorável...”, lembra Rena, a proprietária. “E, apesar dos problemas que enfrenta, um martírio para quem sempre se expressou pela pintura e pela poesia, não demonstra ter pena de si mesmo de jeito algum.” Ferlinghetti pinta em big scale, um estilo abstrato que às vezes incorpora frases de conteúdo político – “never the third world war!”, por exemplo. “Como pintor, é bastante expressivo”, comenta a galerista. “Mas o que mais gosto é essa ênfase de se deixar levar pelo que existe por dentro, caso contrário – já ouvi ele dizer... –, nada de bom irá surgir”. Na Itália, terra de origem do seu pai, Carlo Ferlinghetti (que Lawrence não chegou a conhecer), sua pintura faz o maior sucesso, com direito a mostras em vários

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O último dos beats mora sozinho, em San Francisco

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perfil museus. Como explicar a desinformação no país natal? Rena tem a resposta na ponta da língua: “Os americanos parecem acreditar que se você é poeta, bem, então é isso o que você é e nada mais”. E dá um sorriso, irônica. The world is a beautiful place To be born into If you don’t mind happiness Not always being So very much fun If you don’t mind a touch of hell Now and then Just when everything is fine Because even in heaven They don’t sing All the time. (2)

Constantly risking absurdity and death Whenever he performs Above the heads of his audience The poet like an acrobat Climbs on rime To a high wire of his own making. (3)

foto © City Lights

Ele escreve como se estivesse conversando ao redor da mesa de um bar. Há mesmo quem siga os versos com a ponta do pé, pois o ritmo é forte e lembra jazz – a partir de um tema, Ferlinghetti segue o coração, improvisando longamente (os versos aqui em destaque são quase sempre pequenos cortes de poemas). “Penso que o fato de ser pintor ajuda a entender como ele sabia usar as palavras para colorir situações”, acrescenta Rena Bransten. Anos atrás, em entrevista ao jornal SFGate, Ferlinghetti admitiu que era “mais fácil delirar com a pintura por ser instan-

tânea – um livro significa dois anos de trabalho ao passo que um quadro, olhe, eu consigo tê-lo em um dia”. Se frequentou escola de belas artes em algum momento de sua narrativa? Nada. “Pintar deve ter sido uma expressão quase física para ele, as pinceladas fortes ajudando na criação artística”, acredita Rena. Fato é que o autor de dezenas de livros de poesia, romances e peças teatrais, entre eles, A Coney Island of the Mind (Um Parque de Diversão na Cabeça, L&PM Editores), coletânea poética que já vendeu um milhão de exemplares em nove idiomas desde o lançamento em 1958, sempre se recusou a ser entendido como um dos primeiros poetas beats, mas sim “o último dos boêmios”, reforça o amigo Jack Hirschman. Poeta e comunista, como faz questão de se apresentar, 82 anos (“muito bem vividos”, garante, divertido), Hirschman chama a atenção para o que há de “popular no trabalho poético de Ferlinghetti, que registra até de modo jornalístico o que acontece em um determinado momento ao seu redor”. Curiosidade 1: tanto um quanto outro se aproximaram de uma redação durante as trajetórias acadêmicas; Lawrence, após se formar em jornalismo na University of North Carolina, foi trabalhar no jornal estudantil Daily Tar Heel; e Jack, aluno do curso de artes na City University of New York, foi copy boy da Associated Press. Curiosidade 2: Ferlinghetti, que serviu a Marinha do seu país durante a Segunda Guerra Mundial, concluiu os estudos na Sorbonne em Paris, com doutorado sobre o pintor inglês William Turner (1950); e Jack, que defendeu tese sobre Finnegans Wake, a obra-prima de James Joyce, na University of Indiana (1961), foi declarado persona non grata no mundo acadêmico dos EUA por seu posicionamento ativo contra a Guerra do Vietnã. “O fato de termos PhD nos tornava próximos, éramos os únicos com esse tipo de experiência em contato com os beats”, reflete Jack sobre o início do movimento, em San Francisco. “Também havia muita droga, muito álcool... e homossexualismo, o que não era definitivamente a nossa história, porque sempre gostamos, Ferlinghetti e eu, de mulher.”

Há três décadas, na sua editora, que relançou suas obras e publicou Allen Ginsberg

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...E tinha tudo para dar errado! A história pessoal de Lawrence Ferlinghetti é um filme razoavelmente noir, de audiência garantida. Ele nasceu em 1919 numa família numerosa que vivia em Yonkers, no estado de Nova York. Órfão de pai ainda bebê, perdeu a mãe (Clemente Mendes-Monsanto, de origem sefardita,

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Ele estava na Normandia no Dia D, que garantiu o mundo livre

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perfil ou ainda judaico-portuguesa) pouco depois, internada por problemas mentais. Foi parar num orfanato; parentes depois o levaram para a França, daí ter sido o francês o primeiro idioma que aprendeu. De volta aos EUA, ficou sob a responsabilidade de uma tia, que trabalhava como governanta para uma família endinheirada, em Bronxville (NY). O tempo passou, mas não muito. Um dia, a tal tia sumiu – e quem de fato acabou cuidando da educação do menino foram os Bislands, a quem ela prestava serviços. Ferlinghetti teve assim a sorte de contar com suporte financeiro para estudar em ótimas escolas, do ginásio à universidade. Quando a Segunda Guerra Mundial estourou, alistou-se na Navy. Passou por poucas e boas, como a de ter vivido o Dia D dos aliados na Normandia, e desembarcado em Nagasaki, pouco depois de a cidade japonesa ter sido alvo da bomba atômica. “Virei pacifista na hora”, disse ele em mais de uma entrevista. Anos depois, aproveitando o apoio do governo americano de bancar os estudos dos seus soldados, concluiu a vida acadêmica em Paris. Foi quando se encantou com um tipo de livraria comum na Cidade Luz, que atraía os frequentadores a gastar o tempo lendo o que lhes apetecia, instalados em poltronas no seu interior. Quando voltou aos Estados Unidos, deu as costas para Nova York, apostando em San Francisco. E foi na terceira pessoa – como ressaltou Bill Morgan, no livro The Beat Generation in San Francisco - a Literary Tour –, que declarou seu amor pela cidade do Pacífico desde o primeiro contato, em 5 de janeiro de 1951; ele vinha de Oakland e atravessava a baía de ferry: “(...) uma cidade mediterrânea, com casas pequenas e brancas nas colinas, brilhando com a luz do sol de janeiro – essa luz especial de janeiro em San Francisco, tão diferente da luz perolada da Paris amada pelos pintores. Foi o primeiro a sair do ferry, sem nenhuma ideia de onde ir (...). Ele andou e andou e andou naquele dia, e ficou com a impressão de que os nativos tinham mentalidade insular, considerando-se primeiro ‘sanfranciscanos’, em uma ilha que não era necessariamente parte dos Estados Unidos”. Aceitou trabalhos aqui e ali até se associar a uma

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revista, de nome City Lights, origem da livraria City Lights Book Shop (1953), na Columbus Avenue, o coração de North Beach. Em sua mente, luzia o desejo de recriar o ambiente parisiense tão amado de leitura. Mas foi além: para tornar os livros acessíveis ao maior número de pessoas, Ferlinghetti criou a City Lights Pocket Books (1955), que imprimiu e vendeu a primeira série de livros de bolso nos Estados Unidos – no caso, a coletânea de poesias Pictures of the Gone World, de sua autoria, que custava US$ 1 dólar. “Lawrence é uma referência na cultura deste país por ter revolucionado o mercado editorial com os pockets books”, afirma Jack Hirschman. “Foi desse modo que ele conseguiu dar voz aos poetas e escritores beats, que surgiam naqueles anos 50...” Caso de Jack Kerouac, William S. Burroughs e do próprio Ginsberg, que contaram com o apoio irrestrito de um editor desde as primeiras linhas. Transcorridos mais de 60 anos de funcionamento no mesmo endereço, livraria e editora são referência mundo afora. “O nosso negócio vai melhor do que nunca”, diz Paul Yamazaki, o mais antigo funcionário. “É a minha vida, um casamento que funciona há 45 anos”. Responsável por selecionar os títulos a serem impressos, ele lida em média com mil obras por ano, de inúmeras procedências. “Seguimos ao pé da letra a filosofia de trabalho de Lawrence, a de vender livros que incitem o pensamento criativo”, sintetiza. O que significa, às vezes, não colocar à venda o que é considerado best-seller por parte do público. “Somos independentes, mas jamais descuidamos do aspecto financeiro da empresa.” Yamazaki conheceu Ferlinghetti em 1971, quando rolava muita quebradeira nas ruas de San Francisco contra a Guerra no Vietnã – por conta dos distúrbios, Paul foi parar na cadeia. Comunista, só teria a pena comutada se pudesse comprovar um posto de trabalho. Um amigo intercedeu a seu favor, pedindo emprego ao dono da City Lights Bookstore. Sem fazer a menor ideia de quem se tratava, Ferlinghetti disse sim, livrando Yamazaki da prisão. “A história é bem reveladora do temperamento dele, de uma generosidade a toda prova”, diz. I am a lake upon a plain. I am a word in a tree. I am a hill of poetry. I am a raid on the inarticulate. I have dreamt that all my teeth fell out But my tongue lived to tell the tale. For I am a still of poetry. (4) O livro de Bill Morgan tem um fio condutor interessante, aproximando o leitor dos caminhos trilhados pelos beats e associados, seus endereços de lazer e trabalho, afora moradias, por North Beach – o bairro-síntese da San Francisco livre, boêmia. A uma distância de metros, por exemplo, quem estava lendo na City Lights aproveitava o menor pretexto para tomar copos no Vesúvio Bar, ou então atravessava a Columbus Avenue para ir até o Caffe Trieste, em rua paralela, bebericar um expresso e discutir os rumos do

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© Stacey Lewis

Ferlinghetti já pintava quando conheceu os amigos Yamazaki e Hirschman

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perfil

A City Lights e um postal-poema

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mundo (ou da noitada desregrada) entre inúmeros cigarros. Em horário de almoço, ainda hoje é grande a probabilidade de se encontrar Jack Hirschman, incansável, vendendo o periódico mensal People’s Tribune, de ideário comunista, em frente ao famoso café (preço: US$ 1). “É um lugar maravilhoso. Já escrevi centenas de poemas e traduzi outros tantos ali dentro”, revela Hirschman (que domina vários idiomas – incluindo o russo). Nas paredes do Trieste, há fotos da clientela, como a de um jovem Francis Ford Coppola, em frente à máquina de escrever (várias cenas de O Poderoso Chefão foram redigidas dessa forma, ele acomodado em sua mesa favorita, ao fundo); e de um sorridente Lawrence Ferlinghetti, preparando-se para apagar as velas do bolo de aniversário, em 2002. Conta Morgan que Ferlinghetti colecionou endereços bairro adentro, como o do apartamento na Chestnut Street, onde viveu de 1953 a 58. “Parecia uma caixa de lápis de cor. A mulher, Kirby, pintou de cores vivas os ambientes do andar superior. A cozinha era em tom verde para combinar com o abacateiro dos fundos. A sala de jantar, em amarelo brilhante e o corredor, de um vermelho forte.” Ferlinghetti ia a pé para a sua livraria, quase sempre em companhia do cachorro Homer. A raça? “Um ‘cockapoolie’”, descreveu o poeta, pois “a frente era de collie, o chassi, de poodle, e o traseiro de cocker”. Na rua onde mora atualmente, a Francisco Street, ele podia ser visto, em julho pas-

sado, caminhando bem devagar até o café-mercearia de Eddie, o italiano da esquina. Só para devorar um “combo”, o sanduíche onde cabe de tudo um pouco, de salame a ovo. Era verão e Ferlinghettti se protegia da luz, sentando-se à sombra. “Um sujeito formidável”, confirma Eddie, que não vê mais seu cliente há meses. Esta repórter, que conseguiu descobrir o número exato do seu apartamento, no início de outubro, teve o privilégio de passar cinco minutos ao seu lado – e ponto final. Aliás, o último contato que ele teve com a imprensa brasileira foi por telefone com a Folha de S. Paulo (meados de setembro). Com jornalistas do seu país, a última declaração também aconteceu por telefone, “Bravo, Dylan!”, ele disse à AP por ocasião do Nobel de Literatura outorgado ao cantor e compositor americano. A respeito da eleição de Donald Trump para a presidência do seu país, Ferlinghetti não emitiu uma palavra sequer. Anarquista convicto, que recusou receber prêmio internacional de poesia no valor de US$ 60 mil dólares, em 2012, por ter sido em parte financiado pelo governo ultraconservador da Hungria, deve estar se contorcendo até agora. “It’s getting darker”, confessou para o amigo Hirschman dias atrás. Em 24 de março de 2017, Lawrence Ferlinghetti fará 98 anos. P

(1) Recipe for Happiness Khaborovsk or Anyplace; (2) The World is a beautiful Place; (3) Constantly risking absurdity; (4) Autobiography (1) “Um grandioso bulevar com árvores / um café grandioso ao sol / com café preto forte em xícaras minúsculas / Alguém não necessariamente muito lindo, / Homem ou mulher, que te ama / Um belo dia.” Tradução de Nelson Ascher (2) “O mundo é um ótimo lugar / pra se nascer / se não te importa que a felicidade / nem sempre tenha / muita graça / se não te importa um quê de inferno / de quando em quando / justo quando tudo vai bem / pois nem mesmo nos céus / se canta o / tempo todo.” Tradução de Nelson Ascher (3) “Correndo risco constante / de absurdo e morte / toda vez que atua em cima / das cabeças da audiência / o poeta sobe pela rima / como um acrobata / para a corda elevada que ele inventa” Tradução de Eduardo Bueno e Leonardo Fróes (4) “Sou um lago na planície. / Sou uma palavra / numa árvore, escrita numa árvore/ Sou uma montanha de poesia. / Uma blitz no inarticulado. / Sonhei / que todos os meus dentes caíram / mas a língua sobreviveu / Para contar a história. / Porque sou um silêncio / poético”. Tradução de Eduardo Bueno e Leonardo Fróes

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memória

Por JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS*

das dez m a is aos dem a is De como o colunismo social se transformou de “coisa de veado” em jornalismo de primeira linha

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© Agência O Globo

Maneco Muller, ou melhor, Jacinto de Thormes

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anuel Bernardez Muller vinha de uma família de diplomatas, sócio do finíssimo Country Club, em Ipanema, e frequentador dos melhores salões da sociedade carioca, uma turma que o tratava carinhosamente por Maneco. Era um homem culto e crítico das ridicularias da vida. Quando Prudente de Moraes, neto, diretor do Diário Carioca, o jornal mais avançado do Rio de Janeiro, lhe propôs em 1946 o cargo de colunista social, Maneco se espantou: “Mas, Prudentinho, isso é coisa de veado!”. Acabou aceitando, mas protegeu-se do ridículo criando um pseudônimo. Assinaria o trabalho como Jacinto de Thormes, personagem de Eça de Queirós em A Cidade e a Serras. O da literatura queria a modernização do modo de vida de Portugal; o Jacinto de Thormes do jornalismo buscaria a modernização daquela “coisa de veado”. A coluna social visitaria outros salões além dos alimentados com o doce enjoativo dos petit fours dos batiza-

dos e a lavanda de limpar a ponta dos dedos das festas de casamento. A partir de Jacinto, esse tipo de jornalismo ficaria ao lado do samba, da prontidão e de outras bossas como mais uma das coisas nossas. O colunismo social já estava espalhado pelos jornais e revistas com suas chochas coberturas de irrelevâncias. O colunista dos Diários Associados era Gilberto Trompowsky, que assinava G. de A. (todo mundo ficava constrangido com a ocupação e queria se manter na sombra do pseudônimo). Seus personagens eram nobres do império passado. G. de A. borrifava as descrições com alfazema do início do século, como neste exemplo tirado da edição de dezembro de 1937 da revista Ilustração Brasileira: “Nos salões senhoriais da sra. baronesa de Bonfim grupos elegantíssimos se encantam com o ambiente arranjado com infinito bom gosto e, principalmente, com o ar de bondade que irradia da sra. baronesa de Bonfim, figura ilustre de uma ilustre família, que habituou todo o grand monde carioca às suas recepções, notáveis pela sua elegância e grande distinção (...) Atenciosa e encantadora, a srta. Maria José Lynch e suas irmãzinhas oferecem deliciosas gourmandises”. “Coisa de veado” total. O escritor Lima Barreto, um suburbano defensor dos arruinados, que usava um português sem preocupação em ser raffiné, classificava aquilo de “bobagem”. Em 20 de outubro de 1911, escreveu sobre esses ricos e seus colunistas na Gazeta da Tarde, do Rio. “Julgam que as suas

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festas íntimas ou os seus lutos têm interesse. Os jornais deviam transformar-se em registros de nomes próprios, pois só os pondo aos milheiros é que teriam uma venda compensadora. A coisa devia ser paga e os diários não desapareceriam. Não se compreende que um jornal de uma grande cidade esteja a ensinar às damas e aos cavalheiros como devem trazer as luvas, como devem cumprimentar e outras futilidades. Se há entre nós sociedade, as damas e cavalheiros devem saber estas coisas. Que dirão os estrangeiros, vendo pelos jornais que não sabemos abotoar um sapato?” As colunas sociais moviam-se inúteis com suas dicas de etiquetas civilizatórias e a infindável relação dos nomes de quem havia tomado chá anteontem – ah, se cada nomeado pagasse um tostão, como recomendava Lima Barreto, os jornais conseguiriam superar, um século depois, até a concorrência digital! Mesmo ressabiado e com medo do que fossem falar nas rodas de fofoca (afinal, ele lutava boxe em academia), Maneco foi o primeiro colunista social moderno. Do sofá de couro vermelho da boate Vogue, no Leme, olhava o café-soçaite, o ajuntamento dos ricos que imitavam os ricos do

Com Ibrahim Sued, a coluna social passou a ser uma das seções mais lidas. Um sopro de reino encantado em meio às notícias do dia a dia

cinema e, também cansados dos salões, saíam de casa para badalar. Maneco não adulava quem oferecesse gourmandises, não chamava ninguém de “meu querido”. Em 3 de fevereiro de 1950, escreveu sobre o empresário que comandava o Quitandinha Palace: “O senhor Joaquim Rolla ficou meio atrapalhado para apresentar os três forasteiros. Finalmente puxou do caderninho e foi lendo com boa pronúncia chinesa: senhor Hsi-Jui, senhor Yen Chu

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© folhapress

MEMÓRIA

Bomba! Bomba! Ibrahim Sued, o Turco, chegou para inaugurar uma nova era

Tang e sr. Pin-Yuan Tang. O sr. Rolla tem cada amigo!”. Maneco Muller penteava o cabelo com gomalina, sublinhando as calvas que em 1946, aos 23 anos, começavam a riscar sua cabeça com severidade dramática. Insinuava um quê de Nick Holmes, o detetive americano dos quadrinhos. Na boca carregava um cachimbo com jeito de Sherlock Holmes. O desenho de seu rosto, que encimava a coluna no Diário Carioca, ficaria para sempre como a personificação do homem elegante brasileiro. Além de um texto ótimo, de frases curtas, falava do que ia na praia, no futebol. Valorizou boêmios e mulheres bonitas. Abria o caminho para que, em 1953, Ibrahim Sued estreasse no jornal O Globo com a sua “Reportagem social” e radicalizasse o processo. As festas e etiquetas continuariam entre os sueltos, mas quem mandava agora era a notícia. Política, economia, comportamento, fofoca, administração da cidade e também a exaltação das “bonecas e deslumbradas” (o termo é seu, assim como “bola preta”, “geração pão com cocada” e dúzias de outros). Tudo cabia no balaio servido ao leitor. As novidades dos costureiros de Paris agora disputavam espaço com o decreto que o ministro assinaria no dia seguinte, informação que Ibrahim podia ter conseguido num jantar black-tie. Ele falava com Carmen Mayrink Veiga e com os generais da ditadura militar. Sem preconceito. O colunista não era mais um rico noticiando os seus pares, mas um repórter. Ibrahim, filho de libaneses, estudou até a metade do segundo grau e, ao contrário do bem nascido Maneco Muller, não tinha onde cair morto. O Turco, como o chamavam só os muito próximos (o homem era um furacão mal-humorado), passou anos da juventude descolando rango de favor nas noites chiques. Dormiu em pensões do Catete. Foi office boy, caixeiro de loja de roupa masculina e dúzias de outros biscates até que, em mais um bico, trabalhou de

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As colunas de Ibrahim e Maneco: desbravadoras

madrugada no laboratório da fotografia de O Globo. Fotografou o deputado Otávio Mangabeira de um jeito maroto, dando a impressão de que o político beijava submisso a mão do general americano Dwight Eisenhower. Foi um escândalo, deu primeira página e Ibrahim decolou pelas redações do Rio. Tinha a seu favor a boa estampa, um protótipo do moreno-alto-bonito-sensual. Com esse cartão de visitas, já circulava com desenvoltura pela pérgula do Copacabana Palace. Seduzia uma grã-fina aqui, arrumava uma mesa para filar o jantar ali mais adiante. O self-made man em pessoa. O sucesso do novo colunismo social de Jacinto e Ibrahim foi tamanho que o compositor Miguel Gustavo preparou para o Carnaval de 1956 a marchinha “Café-Soçaite”. Dizia: “Doutor de anedota e de champanhota/ Estou acontecendo no café soçaite/ Só digo ‘enchanté’/ Muito ‘merci’, ‘all right’/ Troquei a luz do dia pela luz da Light/ Agora estou somente/ Contra a Dama de Preto/ Nos dez mais elegantes eu estou também/ Adoro River Side/ Só pesco em Cabo Frio/ Decididamente eu sou gente bem/ Enquanto a plebe rude na cidade dorme/ Eu ando com Jacinto/ Que é também de Thormes/ Terezas e Dolores falam bem de mim/ Eu sou até citado na coluna do Ibrahim/ E quando alguém pergunta como é

Tavares de Miranda em uma festa em Ourinhos (SP); fã de gravatas-borboletas

que pode/ Papai de black-tie jantando com Didu/ Eu peço outro uísque, embora seja pronto/ Como é que pode?/ Depois eu conto”. Nada como uma marchinha de Carnaval para explicar em português claro e sapeca as ramificações entre a sociedade carioca e a sua imprensa. Em três minutos, ficou explicado que o café-soçaite era a oportunidade de um “pronto” com o Ibrahim Sued jantar com o empresário de armamentos Didu de Souza Campos e virar gente bem. Como é que pode? Ora. A grana agora não estava só no banco, mas também no nome colocado por um amigo influente na lista de convidados, na beleza de uma mulher ou na desenvoltura coloquial do cidadão. O capital do café-soçaite não era só a grana: ter borogodó valia ouro. Conto de fadas com gente real

A família Guinle, notabilizada antes pela construção de portos, usinas e estradas, surgia nas colunas do café-soçaite catapultada por novos valores. Os negócios estavam decadentes, mas um dos seus filhos, Jorginho Guinle, virara playboy internacional e conquistara Rita Hayworth. Essa era a nova fortuna: ter informações para trocar e até mesmo arriscar um palavrório entre o francês e o inglês. Principalmente, e é o caso de Ibrahim, muita esperteza, muito “merci” e “all right”. Ouvir atento, silenciar surdo quando preciso e ser elogiado por Tereza de Souza Campos, a mulher do Didu. É o mundo “enchanté” do “depois-eu-conto” (um bordão de Jacinto) e do descanso na River Side, a residência de verão do casal Leda e Vicente Galiez, na serra de Petrópolis. A coluna social passou a ser uma peça fundamental na produção de um jornal e uma das suas seções mais lidas, um sopro de reino encantado no desfile de páginas com crimes e políticos corruptos. Na Folha de S. Paulo, brilhava o jornalista José Tavares de Miranda. Sempre de gravata-borboleta, dava a impres-

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MEMória

Zózimo na redação do Jornal do Brasil

Zózimo foi o última palavra em colunismo. Reduziu as notas a um mínimo de linhas, com um humor preciso e antológico

são de que a usava também para vestir as palavras. Dépassé. O Rio de Janeiro estava na vanguarda. Ibrahim dava asas à imaginação para se fazer notar na multidão de colunistas que transformava a imprensa numa espécie de escavação arqueológica grega, tamanha a quantidade de colunas. O tom descontraído de noticiar o café-soçaite era na medida para mostrar que o grand monde pomposo já era. Havia muitos ricos. Ostentavam tanto charme que revistas como Sombra e Rio Ma-

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gazine dedicavam-se apenas ao carnê social da turma. Jacinto inventou a lista das Dez Mais Elegantes, publicada sempre no primeiro dia do ano. Uma das vencedoras, no início dos anos 1950, foi apresentada assim: “Enquanto os negócios do seu esposo crescem, a senhora Nelson Caldeira (nascida Cristiane Florence Perin) dedica-se a decorar a nova residência de verão em Guarujá e escolher, com a mesma eficiência e bom gosto, os vestidos que vai usar. A senhora Caldeira este ano foi assunto dos jornais paulistas depois que presenteou seu cão de raça com um colar de pérolas durante um jantar. Ela está em Paris, fazendo compras”. Os elogios de Jacinto podem ferir suscetibilidades das feministas do século 21. Hoje, desmoralizariam as eleitas e elas consultariam advogado sobre a possibilidade de processar o autor. Nenhuma trabalhava. Ainda não era de bom-tom mulher casada frequentar escritórios. Mas a culpa não era dos colunistas, muito pelo contrário. Eles colocavam na cabeça dos leitores a capacidade de sonho, de que havia uma casta que não parecia se preocupar com essa coisa de ir ao açougue, passar horas em ônibus e reclamar do custo de vida. O colunista social vendia a vida que poderia ser e está sendo – pelo menos para alguns. Um conto de fadas com gente real. O sonho, o Vale de Prazeres

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em substituição ao Vale de Lágrimas bíblico. Falavam de divórcio, de hábitos mais ousados que chegavam com visitantes estrangeiros – e, ça vas sans dire, ao jeito afrancesado da cultura que dominava a época. Foram importantes fontes de divulgação de hábitos modernos. O fim do glamour

Zózimo Barrozo do Amaral foi o último grande nome do gênero. Filho da alta classe média carioca, bonito, elegante e bem relacionado, estreou uma coluna com seu nome em 1969, no Jornal do Brasil. Se Jacinto tinha bom texto, se Ibrahim acrescentou a busca da informação, Zózimo era tudo isso e deu arte final à fórmula de colunismo reduzindo as notas a um mínimo de linhas. Sempre buscava o humor. Algumas notas foram parar em livros de melhores frases (“O problema de Brasília é o tráfico de influência, enquanto o do Rio é a influência do tráfico”). Em seu posto no JB, encontrou o Rio já sem o glamour dos anos dourados, sem o título de capital federal e com as suas principais famílias em crise financeira. Tony e Carmen Mayrink Veiga, heróis das notinhas desde o tempo de Ibrahim, acostumados a receber príncipes e milionários, um dia receberam a visita da Polícia Federal – e os homens da lei não estavam de olho no caviar. Levaram toda a pinacoteca e mais os carros para saldar dívidas do empresário. Ser rico e alardear isso, depois dos punks, de Bangladesh e da moda do jeans rasgado, foi deixando de ser uma coisa de bom gosto. Exibir joias e jantares nababescos a poucas quadras da favela virou coisa de emergente da Barra da Tijuca, de Val Marchiori e Donald Trump. Ninguém queria se misturar a isso. Cada vez mais as pessoas realmente elegantes chamavam Zózimo num canto e pediam, por favor, para poupá-las da publicação. Daniel Más, no Rio, e Telmo Martino, em São Paulo, nos anos 1970, ajudaram a esculhambar o gênero com muito veneno. Se no início era “coisa de veado”, coluna social passou a ser politicamente incorreta num mundo pautado pela miséria, guerras e atentados.

“O melhor texto brasileiro em duas linhas”, definiu o colega Ancelmo Gois

Zózimo criou um jeito próprio. Tinha misturado de tal maneira as informações que ninguém o chamaria de colunista social. Gostava de fazer rir. Em 15 de abril de 1983 decerto conseguiu, com o estilo de sempre, “o melhor texto brasileiro em duas linhas”, como definiu o jornalista Ancelmo Gois. A nota intitulava-se “Infidelidade”: “Reflexão de uma senhora casada sobre a infidelidade conjugal: – Antes à tarde do que nunca”. Hoje, o colunismo social não existe mais nas páginas do melhor jornalismo. Mônica Bergamo, na Folha de S. Paulo, e Sonia Racy, no Estadão, são repórteres em busca de notícias. O mundo dos ricos perdeu o glamour e a capacidade de botar o leitor para sonhar – ou alguém quer ser igual à Narcisa Tamborindeguy? Zózimo, que morreu em 1997, estava mais uma vez certo ao explicar no início dos anos 1980 por que estava deixando o assunto de lado: “O novo-rico me incomoda muito, mas o novíssimo-riquíssimo me incomoda muitíssimo mais ainda”. P (*) Joaquim Ferreira dos Santos é autor do recém-lançado Enquanto Houver Champanhe, Há Esperança - Uma biografia de Zózimo Barrozo do Amaral, da Editora Intrínseca

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motor

Por mario ciccone

FORÇA

T O TA L O New Suzuki Vitara chega com versão turbo, 22 combinações de cores e tração 4x4 All Grip

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motor

Sistema All Grip permite superar terrenos irregulares e escorregadios

C

om a missão de continuar uma tradição de 28 anos, o New Suzuki Vitara manteve sua alma 4x4. Esse novo SUV não é apenas mais um rosto bonito na multidão de lançamentos do segmento. Ele conjuga boa performance em todos os terrenos, motor turbo (para a versão top), tecnologia de bordo interativa e bons índices de consumo. Equipado com motor 1.4L turbo, o Vitara 4Sport é o mais potente da família. Desenvolve 146 cv e entrega 23,5 kgf.m de torque. A união da injeção direta de combustível e turbo compressor aumentou a potência do motor, além da economia de combustível. A média de consumo é de 12,8 km/l (12,01 km/l na cidade e 13,67 km/l na estrada). A transmissão automática de seis velocidades, inclusive com paddle shifters, é para dar ainda mais esportividade na direção do SUV. Além disso, tem a melhor relação peso-potência da categoria, com apenas 8 kg/cv. A força desse modelo vem muito bem traduzida pelo seu novo design. As linhas do capô invadem a lateral e proporcionam um visual mais imponente. Os para-lamas, mais encorpados, revelam os músculos de um 4x4 com bom desempenho em todos os terrenos. Com um contorno vermelho, os faróis ganharam um toque mais so-

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fisticado. Para completar, o carro ganhou extratores de ar cromados, rack de teto prateado, maçanetas na cor do veículo e retrovisores com pisca incorporado e acabamento acetinado. Companheiro nas trilhas e no surfe, o Vitara é um grande aventureiro. Esse SUV vem brigar no segmento para ganhar espaço no mercado nacional. A nova família terá um bom leque de opções: 4Sport (1.4T AT e 1.4T All Grip), 4You (1.6 AT e 1.6 AT All Grip) e 4All (1.6 MT/AT). All Grip

Disponível nas versões 4You e 4Sport, o sistema All Grip proporciona quatro modos de condução: Auto (economiza combustível e muda de 4x2 para 4x4 automaticamente), Sport (mais esportividade), Snow/Mud (otimiza desempenho para pisos de baixa aderência) e Lock (4x4, pisos escorregadios e irregulares). O sistema interpreta o movimento do motorista e o escorregamento dos pneus. Ele permite distribuir a força para o eixo traseiro conforme a necessidade, inclusive com frenagem individual. Com isso, o motorista pode contar com o desempenho desse carro na cidade, no campo ou na praia. Se fosse numa pessoa, o sistema All Grip seriam botas estilosas que combinam

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Console tem tela de 10 polegadas touchscreen

com um SUV que não abre mão de se vestir bem ou de encarar a aventura de cada dia. Customização

O New Suzuki Vitara ganhou um novo guarda-roupa. Nesse banho de loja, o SUV tem um closet completo com opções de cores e acabamentos. Não é qualquer carro, ainda mais um 4x4, que consegue ser fashion e robusto ao mesmo tempo. Esse novo Vitara atende aos dois universos com a mesma excelência. “O Novo Vitara é um veículo moderno, versátil e prático para o dia a dia”, define Fernando Julianelli, diretor de marketing da Suzuki Veículos. As possibilidades de personalização garantem um bom leque de atrativos. Tal qual um blazer tailor made, o carro sai da concessionária como um produto único, à imagem e semelhança do cliente, que tem à sua disposição 22 combinações de cores de teto e carroceria, além de 53 acessórios. Entre eles, geladeira automotiva e suporte para bicicleta. “O Vitara tem tudo aquilo que os clientes modernos precisam: conforto, tecnologia, conectividade e desempenho”, garante Alexandre Zuccato, diretor de operações da Suzuki Veículos do Brasil. O interior da nova família do Vitara tem DNA esportivo. As costuras vermelhas no banco e volante dão o tom de pura adrenalina, especialmente com as molduras da mesma cor nos mostradores. Os pedais de alumínio dão o toque final desse ambiente que revela a alma do carro. Existem ainda dez opções de texturas para a moldura do painel, com versões de fibra de carbono e de aço escovado. A tecnologia de bordo é outro ponto forte. No console, a tela é

Vitara 4Sport tem motor turbo de 146 cv

Com tecnologia e Força, o novo vitara consegue ser, ao mesmo tempo, aventureiro e estiloso uma das maiores do mercado, com 10 polegadas. O usuário pode parear seu celular e utilizar Waze, YouTube, Facebook e outros aplicativos na tela grande (sempre com o devido cuidado com a segurança). O veículo ainda tem possibilidade de compartilhar a internet sem fio para os demais ocupantes. O volante ganhou ainda comandos de áudio, Cruise Control e Speed Limiter. Este último fundamental para evitar excesso de multas. O carro se mantém numa velocidade predeterminada, independente da pressão do pé direito no acelerador. P suzukiveiculos.com.br

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velocidade Por luiz guerrero

Eletrizante! Um esportivo totalmente elétrico, capaz de rivalizar com Ferrari e Porsche. Eis aí Model S, da Tesla, que acaba de desembarcar no Brasil

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O

primeiro Tesla a rodar no Brasil, um Model S, foi importado em 2014 pelo empresário Dimas de Melo Pimenta. Ele ficou impressionado com um fato comprovado: trata-se do mais rápido carro elétrico do mundo, capaz de encarar curva a curva um Porsche ou uma Ferrari. Até onde se sabe, o Model S de Pimenta ainda é o único automóvel da marca no país. Não por muito tempo: a Elektra Motors, de São Paulo, passou a trazer toda a linha do ousadíssimo fabricante americano e promete oferecer garantia e assistência técnica aos compradores. “Os modelos terão pronta entrega e, em caso de necessidade de reposição de peças, nosso escritório em Miami pode nos entregar no prazo de três a cinco dias”, informa a Elektra. A empresa também ressalva que não é representante da marca. Apenas um revendedor. Tudo é diferente quando se fala em Tesla. Até na hora de comprar. Não há revendas convencionais do fabricante nos Estados Unidos. Os pontos de venda resumem-se a uma sala em shopping centers, aeroportos e ruas de comércio, onde cabe apenas um carro. Nesses locais, o cliente escolhe modelo, cor, opcionais, faz o pagamento e espera pelo veículo encomendado no local que indicar. Uma das medidas do sucesso do Modelo S, lançado em junho de 2012, são as mais de 130 mil unidades vendidas até a metade deste ano em 15 países. Como se explica o fenômeno? O Model S não é um automóvel barato, mesmo para os padrões americanos: custa entre US$ 55,5 mil a US$ 121.500, dependendo da versão e

incluindo as taxas de entrega e os impostos. Como comparação, um Lexus GS a gasolina pode ser comprado nos EUA por cerca de US$ 45 mil. No entanto, a diferença entre ambos os modelos é que, além de luxo e conforto, o Modelo S oferece extrema eficiência e algo que um sedã de luxo convencional não pode proporcionar: o status dos tempos modernos. Estar ao volante de um Tesla se tornou símbolo de prestígio. Ao menos entre aqueles que têm sólidas preocupações ecológicas. Quando a Tesla Motors lançou seu primeiro carro, o Tesla Roadster, em 2008, os comentários eram de que se tratava de uma aventura de um grupo de cinco jovens do Vale do Silício, aquele pedaço do globo cultuado por nerds de todas as gerações. Nenhum dos cinco sócios tinha história na tradicional (e conservadora) indústria automotiva e, fora isso, o grupo encabeçado pelo investidor Elon Musk estava apostando em um projeto já testado, reprovado e desacreditado pelos grandes fabricantes – um carro 100% elétrico abastecido pelo sistema plug-in, ou seja, diretamente na tomada, como um barbeador elétrico. O Roadster era um conversível dois lugares montado sobre o chassi do britânico Lotus Elise, originalmente construído com motor a gasolina de quatro cilindros e, com seus 870 quilos,

Embora o carro tenha fonte de energia revolucionária, já vendeu 130 mil unidades em 15 países. Um sucesso e tanto

Em ação: um bólido politicamente correto

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velocidade

Abastecimento: demorado, mas simples

Embora seja um carro elétrico, o model s tem a elegância das linhas clássicas de um Jaguar um dos carros mais leves de que se tem notícia. Foi essa característica, o baixo peso, a propósito, que levou os fundadores da Tesla a eleger o Elise como ideal para receber um conjunto de baterias de íon de lítio, substância até então empregada para alimentar celulares e computadores portáteis. Com as mudanças no chassi e na carroceria, o Tesla ganhou 435 quilos, mas a potência saltou dos 136 cavalos do carro com motor a combustão para até 288 cavalos na versão elétrica. Dois aspectos chamavam atenção: a aceleração brutal (2,8 segundos para chegar aos 100 km/h), típica de superesportivos com motores beberrões, e a autonomia de 650 quilômetros (desde que fosse conduzido de maneira civilizada). O esportivo elétrico foi elogiado por todas as publicações – de automóveis e de tecnologia – não apenas pelo desempenho, mas pelo pioneirismo. A Tesla demonstrava que um carro pode ter excelente desempenho mesmo sem uma usina devoradora de gasolina de alta octanagem. Ainda assim, a iniciativa foi considerada uma aventura, a despeito das vendas de 2.450 unidades do Roadster em 30 países, a maioria delas na Califórnia e em Nova York, centros urbanos politicamente corretos. A produção do Roadster durou apenas quatro anos, de 2008 a 2012, tempo curto demais para os padrões da tradicional indústria. Mas quem disse que a Tesla era uma indústria tradicional? Os

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48 meses de desenvolvimento do esportivo elétrico deram a base para que a empresa criasse seu modelo exclusivo. E, assim, voltamos ao personagem desta história – o Modelo S, um sedã de quatro lugares, linhas marcantes e atual objeto de desejo da crescente classe média politicamente correta americana. Eficiência energética

Como o Roadster, o S quebrou os padrões estéticos que caracterizavam os carros elétricos. Repare no desenho dos elétricos dos fabricantes convencionais – repare em um Toyota Prius, para citar um exemplo. São carros exóticos, com recortes acentuados na carroceria como se tivessem sido esculpidos com ferramentas de carpinteiro para que adquirissem o formato de cunha. O S, ao contrário, conseguiu a mesma eficiência aerodinâmica, mas com a elegância das linhas clássicas de um Jaguar ou de um Maserati. E o mais surpreendente é que a façanha foi conseguida por um designer que não fazia parte do grupo de elite da indústria, o americano de Connecticut Franz Von Holzhausen, de 48 anos, contratado em 2008 da Mazda americana. Na época, ele dizia estar animado em fazer parte de uma startup porque só assim poderia trabalhar sem as amarras de uma grande corporação. Antes da Mazda, havia passado pela Volkswagen e pela General Motors. Sem as tais amarras, Von Holzhausen dedicou-se à arte de cortar o vento – e, com isso, conseguir menor resistência e, em consequência, melhor eficiência energética. Alguns exemplos: o para-choque dianteiro corpulento foi desenhado para desviar o ar dos pneus, enquanto a depressão nas laterais direciona o vento

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Além da chave que parece um smartphone, o Tesla tem um tablet de 17 polegadas incorporado ao console central. Tudo configurado pelo usuário

tesla, o original O nome Tesla vem de Nikola Tesla (1856-1943), o cientista sérvio que

para fora do alcance dos pneus traseiros. As maçanetas das portas são embutidas (elas emergem da carroceria quando você aproxima a mão delas) e os espelhos retrovisores são apoiados por finas hastes. Por fim, a grade resume-se a um filete que mantém fluente o fluxo de ar sob a plataforma. A arquitetura interior, igualmente concebida pelo designer, é aparentemente a mesma de um automóvel convencional. Mas no Tesla S o motorista controla a maior parte das funções – das mais corriqueiras, como abrir o teto solar, às mais complexas, como ajustar a suspensão – por meio do tablet de 17 polegadas sensível ao toque no centro do painel. É como operar um iPhone gigantesco. E, sim, o tablet pode ser configurado para mostrar apenas o que interessa ao motorista. Os poucos botões que você vê por dentro vieram da Mercedes-Benz e servem para abrir as janelas e ajustar os bancos. A combinação de couro, madeira, metal e fibra de carbono, materiais que decoram o interior, é mais comum em automóveis de luxo que em carros elétricos. Como o motor elétrico ocupa pouco espaço, o sedã pode contar com dois porta-malas, um dianteiro e outro traseiro. Como opção,

espalhou luz sobre a face da Terra com o seu sistema de corrente alternada. Prêmio Nobel de Física em 1912 junto com seu desafeto Thomas Edison, criador da corrente contínua, Tesla também desenvolveu a transmissão sem fio, base para a criação do rádio, o controle remoto e o radar, entre as mais de 700 patentes no campo da física e da eletrotécnica. Cidadão americano, é considerado uma das maiores personalidades do século passado.

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velocidade

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A autonomia chega a 500 quilômetros

o compartimento traseiro recebe até dois bancos extras para levar crianças. Uma inusitada solução que, no entanto, é proibida em alguns países. Outro opcional é o sistema de condução autônoma, em que o automóvel roda sem interferência do motorista. A Tesla Motors, que é tida mais como uma startup de TI que uma fábrica de automóveis, é a empresa que mais vem avançando nessa área. O Modelo S é vendido em quatro configurações, duas delas equipadas com um motor elétrico instalado entre as rodas traseiras. Mas a mais festejada é a P100D, com dois motores, um em cada eixo. Explica-se: é o sedã mais rápido da face da Terra. A aceleração de 0 a 100 km/h, em 2,5 segundos, supera a da maioria dos superesportivos peso-pena, à exceção de apenas dois carros que, no entanto, não são mais produzidos – o Porsche 918 Spyder (2,2 s) e da Ferrari LaFerrari (2,4 s). A marca é conseguida com o reforço do conjunto de bateria que atinge 100 kWh e custa US$ 10 mil extras e é alcançada no modo de condução ludicrous, como a Tesla ironicamente batizou o comando chamado de sport pelos fabricantes tradicionais. É de fato ridícula para um carro de mais de 2 toneladas de peso. Como isso é possível? Bem, ao contrário dos motores a combustão, que sofrem com a inércia dos componentes internos e le-

Hoje, nenhum outro carro de série acelera de 0 a 100 km/h em 2,5 segundos. Um recorde mundial vam alguns segundos para produzir força, o motor elétrico gera força de imediato. E, como é acoplado diretamente no eixo que faz a roda girar, não desperdiça energia. Um motor de alto desempenho gira em torno dos 8 mil giros por minuto; o motor elétrico do Modelo S trabalha a 18 mil rpm. Outro fator que contribui para o desempenho é o equilíbrio da carroceria: no Tesla, os módulos de bateria são distribuídos sob o assoalho e isso contribui ainda para reduzir o centro de gravidade do carro. A transmissão tem apenas uma marcha, além da ré. Se você dirigir o P100D civilizadamente, é capaz atingir autonomia de pouco mais de 500 quilômetros. A recarga pode ser feita em uma tomada doméstica ou, no caso dos compradores americanos, em uma das 750 estações montadas pela Tesla em todo o país. Leva, em média, dez horas para o, vamos dizer, abastecimento completo, ou quatro horas com o uso do carregador duplo opcional. P

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garagem

Por mario ciccone

Reforços

de peso Ford, Porsche, Mercedes, Maserati, Chrysler e Brabus se reinventam para ganhar as ruas com modelos novos, versões atualizadas e apostas ousadas

Para a Ford, um carro híbrido é mais viável para a realidade brasileira

Ford Fusion Hybrid

A

s grandes marcas não fazem escolhas aleatórias. Ao

premium, como Mercedes Classe C, BMW Série 3 e Audi A4. A Ford

apresentar o novo Fusion Hybrid, a Ford escolheu

gosta de contar vantagem, sobretudo em dois aspectos: consumo e

um trajeto no Rio de Janeiro, com final no Museu do

ruído. O Fusion faz 16,8 km/l na cidade e 15,1 km/l na estrada. E o ruí-

Amanhã. Nada mais sintonizado com o futuro para um automóvel ecologicamente correto. Além da eficiência energética, o carro

O Fusion Hybrid combina um motor 2.0 de ciclo Atkinson a

hóbrido vem sendo procurado por companhias para formar a

gasolina e outro elétrico com bateria de íons de lítio, recarregável. A

frota de seu board. Faz bem para a imagem corporativa e para

potência combinada é de 190 cv. “É um veículo que combina luxo e

representar o estilo de vida de seu presidente.

autenticidade para pessoas progressistas e sofisticadas com uma visão

A modalidade de carro híbrido foi considerada pela montadora

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do? Que ruído? O carro é tão silencioso que parece nem estar ligado.

de sustentabilidade”, diz Fernando Pfeiffer, gerente de produto da

como mais viável para o Brasil, em vez de um veículo totalmente elé-

Ford. “Tudo isso aliado à esportividade, que ajuda a atrair consumi-

trico. Isso demandaria uma infraestrutura de carregamento que o país

dores mais jovens e empreendedores conscientes de sua imagem.”

não tem. O novo sedã híbrido da Ford mantém em sua mira carros

ford.com.br

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Porsche Panamera

S

im, um Porsche pode usar black-tie. O Panamera é assim.

Turbo tem motor V8 de 4.0 litros e 550 cv. No velocímetro,

Ao se deparar com um modelo desses na garagem, até

pode superar a marca dos 300 km/h. Já a 4S vem com motor

os puristas ficarão balançados. Esguio, ele tem mais de

V6 biturbo 2.9 litros, de 440 cv.

5 metros. Ainda assim, mantém o jeito Porsche de ser cupê

As duas versões estão disponíveis nas lojas brasileiras,

esportivo com conforto de supersedã. Trata-se de um autênti-

juntamente com a outra estrela do estande da Porsche no

co Gran Turismo, que tem o mérito de manter a ligação visual

salão paulistano, o Cayenne S E-Hybrid. Ao estacionar o novo

com o clássico design do Porsche 911.

Panamera, o dono pode se sentir como se estivesse diante de

O Panamera chega imponente a qualquer compromisso

um peça para festa, no guarda-roupa. Irá combinar com o sapa-

na cidade. E, na estrada, consegue acelerar tal como um carro

to Ferragamo, o relógio Panerai mais sofisticado e o terno mais

esportivo. A nova geração apresentada no Salão do Automóvel

bem cortado. Decerto, o Panamera irá lhe cair muito bem.

de São Paulo chegou com duas versões: Turbo e 4S. A versão

porsche.com.br

Panamera, um Porsche que usa black-tie

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garagem

Mercedes CLA O cliente Mercedes é tido como conservador. Tal imagem, porém, está um tanto ultrapassada. Ficou tão para trás quanto alguém querer disputar uma aceleração com a nova Mercedes CLA. Recém-chegada ao Brasil, a nova geração desse sedã teve seu design atualizado, com a expressão mais jovial que a marca alemã quer mostrar a uma gama mais ampla de clientes. Jovens executivos e empresários bem-sucedidos antes dos 30 anos vão se sentir muito à vontade ao volante do CLA. A começar pelos recursos hands free, que permitem a integração do smartphone com os comandos do carro. No Brasil, o sedã chega em quatro versões. Duas delas, 200 ff Urban e 200 ff Vision, foram desenvolvidas especialmente para o consumidor brasileiro. São flex. Apresentam motor 1,6 litro turbo flex com 156 cv de potência. A terceira versão é o CLA 250 Sport 4MATIC. O motor é mais parrudo, com 211 cv, além de contar com tração integral. Já com a top de linha, o Mercedes-AMG CLA 45 4MATIC, o caso é mais sério. Tem sob o capô potência de 381 cv. Um dos mais potentes do segmento, o novo modelo tem câmbio de sete velocidade e vai de 0 a 100 km/h em 4,2 segundos. Tem velocidade máxima limitada eletronicamente a 250 km/h. Mesmo os mais motoristas mais velhos vão querer fazer alguma molecagem a bordo desse carro. mercedes-benz.com.br

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O novo Mercedes-Benz chega ao Brasil em quatro versões

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garagem Maserati Levante F-Pace, da Jaguar, já começa a ganhar mercado. Agora

C

conta a apresentação do conceito Kubang, exibido em 2011.

é a vez do Levante, da Maserati. Aos puristas, fica o

Com três opções de motor, o Levante irá honrar a tradição

mesmo espanto dos lançamentos das concorrentes. Para os

do Tridente de alto desempenho. Todas as versões terão

businessmen da marca do Tridente, é um caminho sem volta. A

motor V6 3.0, dois a gasolina (350 cv e 435 cv) e um a diesel

hora é de capitalizar a popularidade de um segmento que sofre

(278 cv). No interior, o couro prevalece. Além disso, o painel

menos com a crise: os utilitários de luxo.

é inspirado no carro-chefe da montadora, o Quattroporte,

ayenne e Macan, SUVs da Porsche, são best-sellers. O

O Levante também atraiu a curiosidade no Salão do

Esse projeto tem pelo menos cinco anos, se for levada em

com o velocímetro e o conta-giros separados por uma tela

Automóvel de São Paulo. Os visitantes estavam acostumados

de 7 polegadas, que mostra outros dados do carro. A Via

a sedãs, gran turismos e esportivos que levavam a marca do

Itália é importadora exclusiva da Maserati, junto com Ferrari,

Tridente na grade frontal. Basicamente, o novo SUV tem o

Lamborghini e Rolls-Royce. E já está esfregando as mãos

requinte habitual da Maserati, especialmente do sedã Ghibli,

esperando o sucesso do Levante no Brasil.

mas com dimensões bem maiores.

maserati.com

O novo SUV tem opções de motor a gasolina e a diesel

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Chrysler 300C

E

stá aí um carro presidencial clássico. Quando o Chrysler 300C chega em qualquer lugar, o público tem a certeza de que alguém com alto poder decisório está ao volante.

O novo sedã de luxo da montadora americana resgata traços do 300C original, concebido em 1955. A evolução do novo modelo tem dois caminhos: o design e o motor. Visualmente, o veículo ganha imponência. Isto se revela em todo o conjunto estético do carro. Da sua grade frontal e para-choque dianteiro às lanternas. Tudo ficou mais contemporâneo. Sob o capô, a montadora também oferece uma atualização do motor Pentastar V6 de 3,6 litros, com 296 cv de potência, 10 a mais do que a versão anterior. Além disso, o câmbio automático de oito velocidades garante uma aceleração fluida e alto desempenho. “Nosso novo 300 é projetado para recompensar os indivíduos que trabalham duro, oferecendo acabamento premium, luxo e níveis de qualidade de sedãs que custam muito mais”, afirma Al

Nova versão tem motor mais potente

A

Gardner, presidente e CEO da marca Chrysler. chrysler.com.br

Brabus C200

negociação foi longa, mas finalmente aconteceu. THE

km. Não foi necessário chegar a tanto para perceber as respostas

PRESIDENT foi a primeira revista brasileira a receber um

rápidas e a esportividade fora do comum para um sedã.

carro da Brabus em sua garagem. Em pouco mais de 24

O carro ainda ganhou spoiler dianteiro e aerofólio traseiro.

horas, ficou mais do que claro que toda a apresentação da importa-

Esses recursos não são apenas estéticos, são importantes para

dora exclusiva, a Strasse, não tinha uma vírgula de exagero. A marca

segurar o carro no chão em altas velocidades. A Strasse trabalha

Brabus é especializada em preparar automóveis da Mercedes. Os

com uma gama extensa de modelos. O top de linha é o S Coupé

carros ganham potência e itens aerodinâmicos. O C 200 Brabus

Brabus, que pode ser preparado para até 850 cv.

vem com motor turbo de 225 cv e capacidade de alcançar até 242

strasse.com.br

Mais potência e mais esportividade

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vento

por ANDRÉ BORGES LOPES

O PRESIDENTE CAÍDO Em 1952, a busca pelos destroços de um Boeing na Amazônia teve de tudo: intrigas políticas, disputas entre militares e até lendas de índios canibais e diamantes perdidos

O

tempo estava bom no Rio de Janeiro naquela segunda-feira, 28 de abril de 1952. Logo após as 23 horas, o ronco forte dos quatro motores de um Boeing 377 Stratocruiser anunciava sua decolagem rumo a Port of Spain, em Trinidad e Tobago, no Caribe – última escala do voo 202 da Pan American, que ligava Buenos Aires a Nova York. Com dois andares, o avião era um luxo. Seus passageiros dispunham de poltronas reclináveis, beliches a até de um lounge bar com janelas panorâmicas. O avião era uma exclusividade para quem podia pagar caro. Tanto

que a Pan Am deu a ele o apelido de O Presidente. No comando estava o capitão Albert Grossarth, um americano de 37 anos que morava no Rio e acumulava 8.452 horas de voo. Além de nove tripulantes, o Boeing levava 41 passageiros, contando dez americanos e treze brasileiros. Eles chegariam a Nova York 20 horas depois. Às 3h15, a uma velocidade de 500 quilômetros por hora, Grossarth comunicou pelo rádio a passagem pelo checkpoint de Barreiras (BA) e subiu para 4.420 metros de altitude. A comunicação seguinte, prevista para uma hora e meia depois, nunca aconteceu.

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vento

Adhemar de Barros (em foto de 1962, com a mulher, Leonor) esteve por detrás de uma caravana para encontrar os escombros

Com o sumiço, teve início uma operação de busca que reuniu 40 aviões civis e militares e durou três dias de angústia até que os destroços fossem encontrados na serra do Tamanacu – divisa de Mato Grosso com o Pará. No dia seguinte, um avião da Força Aérea Americana (Usaf) transportava uma equipe para saltar de paraquedas no local. Mas não havia indício de sobreviventes. O Presidente tinha se desintegrado no ar. Árvores queimadas mostravam o enorme incêndio que se seguira. Não fazia sentido arriscar a vida dos paraquedistas americanos numa região tão inóspita. Melhor realizar a operação por terra. O desafio era gigantesco. O campo de pouso mais próximo ficava a 170 quilômetros, no povoado de Araguacema: uma pista de terra onde só desciam os rústicos Douglas DC-3. O ponto habitado mais perto estava a 65 quilômetros. Era uma aldeia de “índios mansos” em Lagoa Grande, à beira do rio Araguaia. Em conjunto, a Força Aérea Brasileira (FAB), a Pan Am e a Usaf ampliaram a pista em Araguacema para receber aviões maiores. Um cargueiro da Usaf trouxe um helicóptero Sikorsky H-5, desmontado, para quatro passageiros. Somente duas semanas após o acidente, no entanto, o aparelho ficaria pronto. Enquanto isso, um avião anfíbio Catalina fazia a ligação entre Araguacema e a base

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avançada de Lagoa Grande, de onde partiriam os grupos por terra. Sete horas de caminhada num pântano infestado por mosquitos levavam a um acampamento na “boca da mata”. Aí começava o pior trecho: 35 quilômetros de selva bruta, relevo acidentado, bandos de agressivos porcos queixadas, cobras, as temidas e carnívoras formigas-correição – e o temor de encontrar índios hostis. Revolta, populismo e diamantes

A lentidão aumentava a angústia dos familiares das vítimas, que cobravam agilidade e acreditavam em sobreviventes. Jornais e revistas queriam enviar repórteres, mas a FAB alegava não ter como transportá-los nem como acomodá-los. A oposição ao presidente Getúlio Vargas aproveitava para fustigar o governo. Era o panorama ideal para a ação de Adhemar de Barros. Depois de três anos (1938-1941) como interventor federal em São Paulo durante a ditadura Vargas, ele se convertera num político populista e fora eleito governador do estado para o mandato de 1947 a 1951. Ficou famoso pela alcunha “Rouba, mas faz”. Tendo eleito o sucessor, Adhemar – ele próprio piloto de avião – assumiu a presidência da Aerovias Brasil, da qual o governo paulista era sócio majoritário. Suas ambições, entretanto, eram maiores: sonhava com a presidên-

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cia da República e começava a fazer oposição a Vargas. gou a notícia-bomba: os paraquedistas da Força Pública pauPor meio do deputado estadual Juvenal Lino de Matos, um fiel lista haviam saltado na região. Na clareira que conseguiram aliado, Adhemar acusou o governo federal de descaso com as víabrir na mata, um triunfante Lino de Matos desembarcou timas. Deu incentivo à montagem de uma expedição paralela à da do Bell 47-E com a bandeira do Brasil nas mãos. FAB. Queria chegar primeiro ao local do acidente. Batizada de CaO diminuto helicóptero, no entanto, tinha dificuldaravana da Solidariedade, recrutou inicialmente paraquedistas civis des para operar no calor: penava para decolar com mais de “para fazer o que os norte-americanos não tiveram coragem”: saltar um ocupante. Sem equipamento adequado, a ideia de abrir na selva e socorrer possíveis sobreviventes. A Aerovias Brasil cedeum campo de pouso para os pequenos monomotores Piper ria dois aviões para o transporte dos voluntários – e, claro, um grupo Cub da expedição paulista não teve sucesso. A Caravana da Sode jornalistas. lidariedade estava presa na selva. Pior: longe dos destroços. A FAB foi contra o envio da expedição, mas, com apoio de Pior ainda: cercada por ferozes índios caiapós, de acordo parte da imprensa de São Paulo, a caravana ganhou paraquediscom os boatos. tas armados da Força Pública estadual e um helicóptero Bell 47-E Diante disso, a FAB decidiu avançar imediatamente por terra. para duas pessoas, pequeno e Começava a corrida para ver quem chegava primeiro aos destroços. Temia-se inadequado para missões de resque os paraquedistas paulistas, ao vasgate. A fim de estimular adesões, Duas equipes culhar o acidente, destruíssem evidêndivulgou-se o boato de que um pasdisputavam quem cias importantes para a investigação. sageiro do Presidente levava uma chegaria antes aos Assim, no mesmo dia em que partiu fortuna em diamantes contrabana expedição terrestre, o coronel Jorge deados, prêmio para quem chegasse destroços: uma Proença e investigadores da FAB seguiantes aos destroços. da força aérea ram até a clareira no helicóptero da Usaf, Na tarde de 7 de maio a FAB brasileira e outra junto com um grupo de americanos. ainda organizava o resgate por terapoiada por Adhemar O avanço era tão difícil que, mesmo ra quando o primeiro dos DC-3 da de Barros, que com o auxílio de guias locais, os camiAerovias aterrissou em Goiás tranhantes levaram três dias para vencer zendo voluntários paulistas. No dia pretendia se lançar seguinte, um segundo avião trouxe 30 quilômetros. O calor e a sede eram À presidência do país o restante do grupo e o helicópteintensos. As fontes de água, escassas. ro. Temendo ser mal recebidos em Bandos de queixadas obrigavam os hoAraguacema, os paulistas se estabemens a fugir para cima das árvores, onde leceram em Porto Nacional, à beira do rio Tocantins, onde tinham eram atacados pelas tais formigas-correição. A chuva deixava o chão apoio do prefeito. escorregadio. Lançadas dos aviões, as provisões ficavam presas nas copas das árvores, a 50 metros de altura. Queixadas, formigas e sede Dos quase 30 expedicionários que começaram a jornaEnquanto isso, a expedição FAB-Usaf-Pan Am, agoda, a maioria foi obrigada a regressar por conta de doenças ra engrossada e atazanada por um grupo de repórteres vindos ou ferimentos. Restavam apenas sete quando a coluna do Rio com apoio de um fazendeiro de Araguacema, aguarche­­ gou enfim à clareira dos paraquedistas de São Paudava em Lagoa Grande para abrir a picada rumo ao acidente. lo. Já estavam lá representantes da FAB, da Usaf e da Pan Am. Esperava ainda por um aparelho portátil de rádio e pela monMas cinco quilômetros morro acima ainda os separavam do tagem do helicóptero Sikorsky H-5. No dia 12 de maio, chelocal da queda.

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vento Entre os paulistas, a situação era pior. O que sobrava de valentia, faltava em experiência. O oficial comandante da Força Pública fizera ali seu primeiro salto de paraquedas. Muitos estavam pela primeira vez na Amazônia. Durante a noite, assustados com os ruídos, disparavam tiros e detonavam granadas para espantar animais e supostos índios selvagens. Com a falta de água, sobravam acusações de furtos de cantis. Para a expedição oficial, a situação ficou ainda mais dramática quando o Sikorsky H-5, da Usaf, apresentou falhas impossíveis de reparar naquelas condições. Era preciso realizar o mínimo de viagens, e com carga reduzida. Sem alternativas, restou negociar a colaboração da Caravana da Solidariedade. Trabalhando em conjunto, as equipes abriram uma picada até o alto da encosta – que os paulistas batizaram ironicamente de “Via Adhemar de Barros”. No local da queda, o cenário era desolador. Nada havia a fazer. Espalhados por três grandes áreas, jaziam irreconhecíveis os restos calcinados das vítimas. Enquanto os investigadores examinavam o que sobrara do Boeing, os demais juntaram os restos mortais. Pertences foram recolhidos e encaminhados aos familiares. Havia, sim, milhares de dólares em cheques de viagem. Mas os tais diamantes jamais apareceram.

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Granadas e tiros na selva

O governador paulista Lino de Matos participou das buscas

Gringos sequestrados

Conforme o trabalho era concluído, uma dúvida angustiava os paraquedistas: como sairiam dali? Ninguém queria encarar os riscos da volta pela mata, e o único transporte disponível era o avariado helicóptero da Usaf. A revolta tomou conta do grupo paulista ao perceber que os pilotos pretendiam evacuar apenas as equipes da FAB, da Pan Am e os investigadores americanos. Liderados por Lino de Matos e armados de metralhadoras, os praças da Força Pública aprisionaram os estrangeiros. O deputado determinou: “Os gringos só saem quando não houver mais brasileiros no acampamento”. Transmitida pelo rádio, a notícia correu o país. Em São Paulo, políticos e jornais travaram uma batalha de versões. Ademaristas defendiam a detenção dos americanos, a quem acusavam de ingratidão. Os adversários tachavam Adhemar de irresponsável, por não ter planejado o retorno dos paraquedistas da For-

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A já esperada constatação: não havia sobreviventes

ça Pública. Mais: afirmavam que Lino de Matos causaria um grave incidente diplomático. Irritado, o ministro da Aeronáutica, Nero Moura, ameaçou enviar paraquedistas do Exército para restabelecer a ordem. O problema foi resolvido com uma negociação. Scott Magness, do Departamento de Aviação Civil dos EUA, e o major Miranda Correa, da FAB, comprometeram-se a permanecer no acampamento até que a situação se esclarecesse. Assim, os americanos foram liberados. Acertou-se que o helicóptero levaria para a clareira equipamentos para abrir um campo de pouso para os monomotores Piper Cub da Caravana, que resgatariam os paraquedistas. Lino de Matos retornou a Porto Nacional de helicóptero, sob a ameaça de ser preso pela Aeronáutica. No final de maio – quando as revistas semanais já contavam as histórias e estampavam grandes fotos do local da

tragédia –, a Caravana da Solidariedade desembarcou no aeroporto de São Paulo, festejada pelos partidários de Adhemar. A queda do Presidente foi o mais grave acidente de aviação no Brasil até aquela data – e o pior em toda a carreira dos Stratocruisers. Um dos quatro motores do Boeing nunca foi encontrado. Ele provavelmente se desprendeu, após a ruptura de uma das hélices. O motor se desintegrou no ar, o avião entrou em parafuso e se incendiou. Todos tiveram morte instantânea. Lino de Matos conseguiu algum sucesso como político. Em 1955, elegeu-se senador por São Paulo e, meses depois, prefeito da capital. Teve de escolher entre os cargos e renunciou à prefeitura. Adhemar de Barros jamais realizaria o sonho da Presidência. Foi derrotado por Juscelino Kubitschek e, depois, por Jânio Quadros. Terminou cassado pelos militares após o golpe de 1964, do qual foi um entusiasmado apoiador. P

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MUlher

Por marcelo spatafora

Giu Bontempi revive o estilo de uma ĂŠpoca de sĂĄbados efervescentes e muito gelo seco

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mulher

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mulher

Modelo Giu Bontempi Assistente de fotografia Andrezza Silva Maquiagem e cabelo Marcos F. Rosa Produzido no estúdio da Daylight Produções Fotográficas

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O jardim interno. Onde está Cibele?

luxo

Por Fernando Paiva, DE MONTREUX

Na Suíça, a clínica de rejuvenescimento mais famosa do planeta se moderniza em todos os sentidos e oferece programas voltados ao combate dos males da vida contemporânea

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luxo

Suíte na Residence

A

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caminho de sua mesa na hora do almoço,

mata a charada: Cazaquistão. Aristocratas de um biliardário clã lo-

enquanto saboreia a espetacular visão dos Alpes,

cal ligado ao petróleo. Isso sem falar no presidente e no vice de dois

refletida nas águas transparentes do lago Leman,

países africanos, com as respectivas entourages, que você encontrou

repare: junto da mulher e de um casal de amigos,

assim que desembarcou da limusine na recepção da clínica La Prai-

está alguém que você provavelmente conhece

rie, em Montreux, Suíça.

dos jornais e da televisão. Sim, ele mesmo,

A história desse lugar mítico, capaz de

homem discreto mas simpático, ligado à

fazer qualquer mulher suspirar quando se

indústria e à filantropia, um dos bilionários

fala em rejuvenescimento e beleza, remonta

brasileiros. Figura obrigatória nas revistas

a 1931. Em 1º de abril daquele ano, o profes-

de economia e finanças quando se fala de

sor Paul Niehans, mente brilhante graduada

cimento, alumínio ou papel no país.

pela Universidade de Zurique, administrou

Você se senta. E, enquanto espera pelo

pela primeira vez células vivas de carneiro a

cardápio escolhido em seu quarto na noite

uma paciente em coma, acometida de téta-

anterior – mariscos marinados de entra-

no após a retirada da tireoide. A mulher não

da; carne de caça à moda austríaca, acom-

apenas recobrou a consciência, como viveu

panhada de legumes, nhoque, frutas secas

até 1962, aos 89 anos. Feliz com o resultado,

e legumes no vapor; iogurte orgânico de sobremesa –, você nova-

o médico passou a utilizar cada vez mais o processo. Ele pretendia

mente presta atenção. Dessa vez, nas quatro asiáticas belíssimas

contabilizar 5 mil casos antes de publicar um trabalho com os resul-

da mesa à sua esquerda. De nacionalidade indefinida, são com toda

tados para a comunidade científica.

a certeza avó, filha e netas. Não são chinesas nem japonesas, mui-

Em 1953, porém, o destino interveio. Niehans e equipe foram

to menos coreanas. Dias depois, num esforço de reportagem, você

chamados às pressas ao Vaticano, onde o papa Pio 12 se encontrava

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Sala oriental no Spa

praticamente à morte. Ao salvar o pontífice, fez com que o método das células vivas e o nome da La Prairie ganhassem o mundo. Artistas

Sala de tratamento

como Charlie Chaplin e Marlene Dietrich, políticos como o chanceler alemão Konrad Adenauer, aristocratas e soberanos passaram a frequentar o local, dando início a uma tradição que perdura até hoje. Em termos de hospedagem, a clínica se divide em três grandes blocos, todos conectados por túneis. A Residence, prédio original e de longe o mais charmoso, tem o encanto de um Grand Hôtel do começo do século passado. Tem-se a impressão de que a qualquer momento você vai encontrar Greta Garbo e John Barrymore nos corredores. No alto da colina, dominando todo o complexo, fica o Château, construção histórica dos anos 1800 totalmente restaurada em 2005. Finalmente, em estilo contemporâneo, o bem equipado Centro Médico, inaugurado em 1991 e reformado em 2006, abriga uma equipe de 20 médicos residentes e outros 50 associados. No total, são 59 quartos e suítes. A eles se junta o suntuoso Spa Médico, de linhas arquitetônicas arrojadas. É um dos melhores e mais premiados do mundo, com mais de 1.600 metros quadrados e a consultoria do inglês Nigel Franklyn, criador da marca The Spa Whisperer. “Nossa filosofia é oferecer um serviço completo para que o paciente possa não apenas viver melhor como envelhecer melhor”, resume o dr. José Lopez, peruano que exerce o cargo de diretor médico.

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luxo

Piscina coberta no Spa

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“O programa de revitalização tornou a La Prairie mundialmente

aliado onipresente nos últimos tempos. “A luz UV, ultravioleta, das

famosa”, explica o CEO Simone Gibertoni. “Mas desenvolvemos ou-

telas dos celulares e dos notebooks”, explica. “O ideal é ficar no míni-

tros, dirigidos especialmente às necessidades da vida contemporâ-

mo uma hora sem qualquer contato com ela antes de dormir.”

nea.” Há 12 anos na clínica, o dr. Olivier Staneczek fala do programa

“Infelizmente não temos genes que nos impeçam de comer de-

antitabagismo, uma das novidades. “Parar de fumar é dificílimo, re-

mais”, brinca a especialista em dietas Christine Droz, uma das

quer acompanhamento médico e psicológico constante”, diz o pneu-

responsáveis pelo programa de controle de peso. Ela esclarece que,

mologista. Segundo ele, bastam alguns drinques a mais para que a

entre outras causas da obesidade planetária, está o aumento das

tentativa vá por água abaixo.

porções de comida nos últimos 50 anos. “Um hambúrguer de 2016

“Fazemos um tratamento sustentável, que

tem quase três vezes o tamanho de um ham-

começa com uma semana de internação e que

búrguer de 1960”, compara. “E a quantidade

acompanhamos de maneira remota por me-

de açúcar recomendada pela Organização

ses – é uma espécie de pôquer, no qual damos

Mundial da Saúde, cerca de cinco cubos por

ao jogador as melhores cartas para vencer.”

dia, você encontra em qualquer lata de refri-

Entre elas está o uso da hipnose, a prescrição

gerante normal.”

de remédios de uso continuado e a realização

Especialista em dietética, a dra. Droz

de follow-ups minuciosos. “Houve um paciente

diz não confiar em dietas milagrosas ou

que rendeu mais de 180 páginas trocadas en-

emagrecimentos relâmpago. “O ideal é

tre mim e o médico dele”, conta. “Mas valeu a

perder de dois a três quilos por mês e seguir

pena, pois nossa taxa de sucesso é de 70%.”

uma fórmula simples: coma apenas quan-

Muitos procuram o lugar em busca de noites melhores. “Os es-

do estiver com fome.” Em suma: não faça como Cibele, que você

tudos comprovam: nos últimos 150 anos, passamos a dormir 90 mi-

fatalmente irá encontrar quando der um passeio entre os ciprestes

nutos a menos por noite – e 41% da população mundial apresenta al-

do jardim interno da La Prairie. Quem é Cibele? Ora, uma moça re-

gum problema nessa área”, esclarece Staneczek. Segundo o médico,

chonchuda. Imortalizada na estátua de bronze, original, assinada

o excesso de ruídos urbanos e a apneia do sono ainda ganharam um

por um certo Auguste Rodin.

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viagem

ensaio maurício Nahas

Desde a Crise dos Mísseis, em 1962, não se falava tanto da ilha, a “Disney das esquerdas”, segundo o jornalista Sérgio Augusto. O ano de 2016 foi o da reaproximação com os Estados Unidos, do show dos Rolling Stones, dos funerais do Comandante em chefe (que Fidel, ou melhor, Deus o tenha). Havana, sobretudo, vai mudar muito. Estes são retratos para se guardar

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d r i v e y o u r w o r l d

M i T R E V I S T A 6 2 d e z e m b r o 2 0 1 6

leia TaMbéM a MiT no TableT

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THEPrEsidEnT Edição 27 dez/jan/fev 2017

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CEO do Grupo Guararapes

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artigo

Por Eça de queirós e JAIME SPITZCOVSKY

Eça e o Afeganistão Em 1880, o escritor português já lamentava uma sina que se estende aos dias de hoje: as frustrantes campanhas militares no pobre, árido e obstinado país asiático

O

s ingleses estão experimentando, no seu atribulado império da Índia, a verdade desse humorístico lugar-comum do século 18: “A história é uma velhota que se repete sem cessar.” O fado ou a Providência, ou a entidade qualquer que lá de cima dirige os episódios da campanha do Afeganistão, em 1847, está fazendo simplesmente uma cópia servil, revelando assim uma imaginação exausta. Em 1847, os ingleses – “por uma razão de Estado, uma necessidade de fronteiras científicas, a segurança

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do império, uma barreira ao domínio russo da Ásia...” e outras coisas vagas que os políticos da Índia rosnam sombriamente retorcendo os bigodes – invadem o Afeganistão, e aí vão aniquilando tribos seculares, desmantelando vilas, assolando searas e vinhas: apossam-se, por fim, da santa cidade de Cabul; sacodem do serralho um velho emir apavorado; colocam lá outro de raça mais submissa, que já trazem preparado nas bagagens, com escravas e tapetes; e logo que os correspondentes dos jornais têm telegrafado a vitória, o exército, acampado à beira dos arroios e nos vergéis de Cabul, desaperta o correame e fuma o cachimbo da paz... Assim é exatamente em 1880. No nosso tempo, precisamente em 1847, chefes enérgicos, messias indígenas, vão percorrendo o território, e com grandes nomes de pátria, de religião, pregam a guerra santa: as tribos reúnem-se, as famílias feudais

correm com os seus troços de cavalaria, príncipes rivais juntam-se no ódio hereditário contra o estrangeiro, o homem vermelho, e em pouco tempo é todo um rebrilhar de fogos de acampamento nos altos das serranias, dominando os desfiladeiros que são o caminho, a entrada da Índia... E quando por ali aparecer, enfim, o grosso do exército inglês, à volta de Cabul, atravancado de artilharia, escoando-se espessamente por entre as gargantas das serras, no leito seco das torrentes, com as suas longas caravanas de camelos, aquela massa bárbara rola-lhe em cima e aniquila-o. Soldado da religião sikh no século 19

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Lord Lytton, o vice-rei da Índia (acima), empreendeu uma guerra que teve elefantes e mulas – e artilharia pesada. A vitória sempre se diluiu nos ventos e no terreno árido da região

© William Skeoch Cumming

Desenho retratando luta em Kandahar, no ano de 1880

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artigo

Ali Khan (acima) comandava o Afeganistão nos idos dos confrontos com os britânicos. À esquerda, um regimento local em dia de vitória

Milênios de batalhas: de Alexandre, o Grande, a soldados americanos e Al-Qaeda

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Foi assim em 1847, é assim em 1880. Então os restos debandados do exército refugiam-se em alguma das cidades da fronteira, que ora é Gasnat ora Candaar: os Afegãs correm, põem o cerco, cerco lento, cerco de vagares orientais: o general sitiado, que nessas guerras asiáticas pode sempre comunicar, telegrafa para o vice-rei da Índia, reclamando com furor “reforços e chá e açúcar!” (Isto é textual; foi o general Roberts que soltou há dias este grito de gulodice britânica; o inglês, sem chá, bate-se frouxamente.) Então o governo da Índia, gastando milhões de libras como quem gasta água, manda a toda a pressa fardos disformes de chá reparador, brancas colinas de açúcar e dez ou quinze mil homens. De Inglaterra partem esses negros e monstruosos transportes de guerra, arcas de Noé a vapor, levando acampamentos, rebanhos de cavalos, parques de artilharia, toda uma invasão temerosa... Foi assim em 47, assim é em 1880. Esta hoste desembarca no Indostão, junta-se a outras colunas de tropa hindu e é dirigida dia e noite sobre a fronteira em expressos a 40 milhas por hora; daí começa uma marcha assoladora, com 50 mil camelos de bagagens, telégrafos, máquinas hidráulicas e uma cavalgada eloquente de correspondentes de jornais. Uma manhã avistase Candaar ou Gasnat – e num momento é aniquilado, disperso no pó da planície, o pobre

exército afegão com as suas cimitarras de melodrama e as suas veneráveis colubrinas de modelo das que outrora fizeram fogo em Diu. Gasnat está livre! Candaar está livre! Hurra! Fazse imediatamente disto uma canção patriótica; e a façanha é por toda a Inglaterra popularizada numa estampa, em que se vê o general libertador e o general sitiado apertando-se a mão com veemência, no primeiro plano, entre cavalos empinados e granadeiros belos como Apoios, que expiram em atitude nobre! Foi assim em 1847; há de ser assim em 1880. No entanto, em desfiladeiro e monte, milhares de homens, que ou defendiam a pátria ou morriam pela fronteira científica, lá ficam, pasto de corvos o que não é, no Afeganistão, uma respeitável imagem de retórica: aí, são os corvos que nas cidades fazem a limpeza das ruas, comendo as imundícies, e em campos de batalha purificam o ar, devorando os restos das derrotas. E de tanto sangue, tanta agonia, tanto luto, que resta por fim? Uma canção patriótica, uma estampa idiota, nas salas de jantar, mais tarde uma linha de prosa numa página de crónica... Consoladora filosofia das guerras! No entanto a Inglaterra goza por algum tempo a “grande vitória do Afeganistão” com a certeza de ter de recomeçar daqui a dez anos ou quinze anos; porque nem pode conquistar e anexar um vasto reino, que é grande como a França, nem pode consentir, colados à sua ilharga, uns poucos de milhões de homens fanáticos, batalhadores e hostis. A “política”, portanto, é debilitá-los periodicamente,

com uma invasão arruinadora. São as fortes necessidades de um grande império. Antes possuir apenas um quintalejo, com uma vaca para o leite e dois pés de alface para as merendas de Verão... O texto em questão foi publicado originalmente com o título “Afeganistão e Irlanda”. Tomamos a liberdade de utilizar apenas a primeira parte.

E

ncravados na longínqua, mas estratégica, Ásia Central, os povos do Afeganistão construíram histórias de acirrada resistência a invasores. Elas são responsáveis por um epíteto que acompanha a região ao longo dos tempos: o cemitério de impérios. Das tropas de Alexandre, o Grande, no século 4 a.C., às de Obama, o guerreiro pacifista, nos dias de hoje, afegãos impuseram pesado sofrimento e derrotas também a soviéticos e britânicos. Nesse sentido, a crônica de Eça de Queirós que THE PRESIDENT apresenta nesta edição é exemplar. Publicada originalmente em 1880 – portanto, há mais de 130 anos –, quando os britânicos enfrentavam as durezas do Afeganistão, ela se revela terrivelmente atual. A fama de cemitério de impérios se solidifica à medida que Estados Unidos e a Otan – a poderosa aliança militar liderada por Washington – retiraram a maioria

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George W. Bush discursou na ONU contra o atentado às Torres Gêmeas, o maior ocorrido em solo americano. Abaixo, soldado afegão em exercício militar com artilharia pesada

O ex-presidente do Afeganistão Hamid Karzai, aliado americano contra Bin Laden, caçado por Obama

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de suas tropas de combate em 2014, sem conseguir alquebrar a insurgência do Taliban. Em 2001, o grupo fundamentalista abrigava o terrorista Osama Bin Laden. Por isso, depois dos ataques de 11 de setembro em Nova York e Washington, o então presidente, George W. Bush, ordenou o início de uma operação militar no Afeganistão, que se estende até hoje, apesar de antigas promessas de Barack Obama de terminá-la. O atual mandatário americano, que ora encerra seu mandato, teve de rever as intenções de uma retirada completa devido ao temor de o Taliban voltar a controlar a totalidade do território afegão. O governo local, apoiado por Washington, enfrenta a insurgência fundamentalista em um cenário de violência crescente, denunciada pela ONU ao apontar em 2015 um aumento de vítimas civis no conflito, em relação ao ano anterior. Estados Unidos e aliados europeus tentam oxigenar o debilitado governo do presidente Ashraf Gani, sediado na capital Cabul. Embora um dos países mais pobres do planeta, com uma economia de parcos recursos e muitas vezes apoiada na produção de ópio, o Afeganistão conta com localização estratégica. Trata-se de um corredor a ligar porções importantes do continente asiático. No século 19, o país compôs o núcleo principal do “Great Game”, como ficou conhecida a disputa por territórios na Ásia Central entre os impérios russo e britânico. Coube ao escritor inglês Rudyard Kipling, no romance Kim, de 1901, celebrizar a expressão. Interesses imperiais também

levaram sucessores dos czares a tentar fincar um pé em Cabul. O Afeganistão compartilha fronteiras com antigas repúblicas soviéticas, como o Uzbequistão e Tadjiquistão, e tal proximidade empurrou o líder soviético Leonid Brejnev a ordenar uma invasão em 1979, com intuito de garantir tranquilidade no front meridional. Na lógica binária da Guerra Fria, os inimigos de Moscou formataram uma aliança. Os mujahedin, combatentes afegãos, contaram com apoio logístico, financeiro e político de um trio de adversários da URSS: EUA, Arábia Saudita e Paquistão. Ironia da história, juntouse ao campo anticomunista um jovem saudita, de nome Osama Bin Laden.

Soviética. Portanto, o maior atentado terrorista da História, em 2001, tinha como um de seus objetivos provocar a esperada retaliação dos EUA, atraindo Washington para o “cemitério dos impérios”. Osama Bin Laden fracassou em seu objetivo. OS EUA não se desintegraram. Mas o Afeganistão e o Taliban, após mais de 14 anos de presença militar americana, continuam a dar dor de cabeça a estrategistas do Pentágono. O pântano para invasores se sustenta a partir de vários fatores. A topografia, por exemplo, com inúmeras cordilheiras e vales, guarda armadilhas para os estrangeiros. Com temperaturas extremas no inverno e verão, o clima

Depois de mais de 14 anos de presença militar americana, o Afeganistão e o Taliban continuam sendo uma grande dor de cabeça para os estrategistas do pentágoNo

Após uma década de combates sangrentos, o Exército Vermelho, outrora com a imagem de invencível, retirou-se sem alcançar vitória, sob a lógica reformista de Mikhail Gorbatchev, então no comando do Kremlin. Dois anos mais tarde, em 1991, a URSS se desintegraria. Bin Laden classificou a guerra no Afeganistão como o principal fator responsável pela derrocada do império criado por Vladimir Lênin e decidiu então voltar as baterias contra um novo inimigo: os EUA. Surgiu assim a Al-Qaeda. Para Bin Laden, o importante era atrair “tropas infiéis” para combater em solo muçulmano e fazê-las “sangrar até morrer”, como, acreditava o fundador da Al-Qaeda, teria ocorrido com a União

adiciona mais dificuldades a eventuais ocupantes. O cenário predominante de vilarejos e de população rural dificulta processos de ocupação militar, mais afeitos a controle de áreas urbanas. Características sociais, econômicas e culturais também contribuem para fazer dos afegãos adversários bastante temidos. A pobreza crônica gerou, por exemplo, tradições como a de armeiros pashtuns, a etnia mais numerosa, exímios copiadores de rifles importados. Já a escassez de munição obrigou caçadores afegãos a desenvolver mira certeira, para abater o alvo com apenas um disparo. A técnica, transportada para a guerra, contribui para aterrorizar invasores e forjar a fama de um país descrito como “cemitério de impérios”. P

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