Editorial A Revista Vide História nasceu da necessidade de um espaço para reflexões sobre o fazer historiográfico. A intenção é se afastar cada vez mais do formato acadêmico dos textos de História e exercitar novas formas de escrever a História e perceber a sua escrita e suas análises. O anseio por novos horizontes de escrita fez com que nós, interessad@s pelas reflexões históricas, propuséssemos um espaço para refletir como podemos pensar a vida e as nossas práticas mais cotidianas a partir da História. Entendemos que este espaço que estamos inaugurando com este número é parte de nosso esforço de pensar e exercer nosso ofício. Aqui tentaremos aproximar o fazer historiográfico daquel@s que não necessariamente estudam História, mas que se interessam por essa área. Esta é uma revista de História, portanto, seus textos tem a pretensão de falar sobre temas diversos em uma perspectiva da História. Temos a pretenção de conciliar as discussões de teoria e metodologia da História durante a escrita e organização da revista, mas esta não é uma revista acadêmica, é um esforço intelectual para propagação e estudo de uma forma diferenciada de escrita e crítica de História. Esperamos que você goste.
Nos textos da Vide História utilizaremos o símbolo “@” para substituir as indicações de masculino e feminino quando fizermos generalizações de grupos humanos. Um exemplo: todos será escrito “tod@s”. Isso tem o objetivo de contemplar aos diversos gêneros ao mesmo tempo ao invés de considerar o gênero masculino como aquele que generaliza a humanidade.
Equipe Vide História
Imagem da Capa: Ladrilhos Epígrafe da capa: Keith Jenkins - A História Repensada
A Revista Vide História foi licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição - Uso Não-Comercial - Obras Derivadas Proibidas 3.0
Quem faz a Vide História? Textos: Gleidiane de Sousa Ferreira, Leandro Maciel Silva, Marcos Luã A. de Freitas, Rafael Parente Araújo, Ramona Jeronimo Pinheiro e Tuan Roque Fernandes. Projeto Gráfico: Marcos Luã Contato: revistavidehistoria@gmail.com Os textos assinados são de responsabilidade d@s suas/seus autor@s, todos os outros são da Vide História.
Índice História Realidades discursos e representações
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Meu corpo me pertence? 6 Resumo Machado de Assis Historiador - Sidney Chalhoub
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Modernidade e Pós-modernidade O filme “Um homem sério”
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@ autor@ e o texto A escrita da História e a Subjetividade
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O contador de histórias 19
Vide História
História
Realidades, discursos e representações
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uando estudamos História na escola somos inculcad@s a entendê-la como uma disciplina que tem por objetivo narrar os fatos passados como eles realmente aconteceram. Quando chegamos à universidade e estudamos História, somos inculcad@s a entendê-la como uma ciência que estuda o passado através de documentos (dos mais variados possíveis) e que narra uma possibilidade de acontecimento que deve, através do esforço d@ historiador@ em construí-la, com auxílio de ferramentas teóricas e das fontes, ser o mais próximo possível a uma realidade pretérita. Durante a maior parte de nosso estudo formal, na escola e na universidade, entramos em contato com um paradigma que diz, de uma forma ou de outra, que a História é uma disciplina/ciência que lida com a possibilidade de narrar ou aproximar-se da verdade sobre os processos e fatos do passado. A reflexão que pretendo trazer aqui é sobre a possibilidade de apreensão, de escrita e de construção de uma determinada realidade (verdade) dos fatos e processos do passado. 4
Parece-me que a realidade, enquanto espaço/tempo do vivido, está contida unicamente no instante em que ocorre, isso porque, toda tentativa de lembrar/resgatar aquele momento está ligada aos processos da memória, esta construída pela linguagem, pela História. Portanto, toda vez que temos uma visão de nosso passado, estamos apenas recolhendo da memória (e de vestígios, também construídos) o resultado de uma realidade já modificada pela cultura, pelo social, pela mentalidade, pela História, pelo tempo. Na verdade, não estamos mais naquela realidade, pois a realidade em que estamos recolhendo esse resultado também influencia a própria memória, ou seja, a realidade também é construída por realidades recontadas do passado, seja pela História ou mesmo pela memória. Desta forma, como podemos, como historiador@s, escrever o mais próximo possível de um passado (realidade passada) se ele nos chega já modificado? Nos documentos encontramos um refúgio, mas eles também são produtos de um processo de construção de memória e de História, de discurso sobre um tempo, sobre um
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fato, sobre um processo, sobre o passado. Toda tentativa de “guarda” de uma realidade nada mais é do que uma construção de discurso sobre aquela realidade, é uma representação da realidade, não ela mesma. Como podem os documentos e vestígios, então, nos servir como base para uma tentativa de aproximação à realidade pretérita? Penso que eles não servem para isso, mas sim para nos dar subsídios na construção de outros discursos sobre o passado, realizado no marco da nossa própria realidade, também construída. Não podemos reconstruir o passado como ele realmente foi, podemos apenar construir uma determinada imagem sobre os discursos que nos chegaram do passado, já modificados (uma nova representação), e estudar sua transformação pela cultura, pelos interesses, pelo tempo, pelo desgaste físico, pelo esquecimento, pela memória. Realidades, discursos e representações se sobrescrevem mutuamente, e ao
mesmo tempo, durante o transcurso do tempo, não é possível separá-los, pois estão imbricados. Ao escrever História, temos que ter consciência que de o processo que desencadeamos é sempre de construção de discursos e representações, não de realidade(s), pois a realidade é o espaço/tempo do vivido. Estamos sempre, construindo um discurso sobre outro, discursos sobre pessoas, sobre coisas, sobre pensamentos, sobre práticas sociais. Não estamos construindo uma realidade sobre pessoas, sobre coisas, mas representações dos discursos passados sobre elas. Fazer História é construir seu próprio discurso (já condicionado por seu próprio espaço/tempo) de um amontoado de discursos disperso pelo tempo na memória das pessoas e na materialidade do mundo.
“a realidade é o espaço/ tempo do vivido”
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Meu corpo me pertence?
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omeço esse texto com algumas pequenas historinhas. Certo dia uma amiga me diz: “Estava caminhando na rua quando um velho começa a dizer um monte de palavras ´sem vergonhas` na minha direção, palavras extremamente vergonhosas, então peguei minha sandália e bati no velho pra ele criar vergonha na cara.” Outra historinha interessante, que pude presenciar, se passou quando estava numa fila em um dos terminais de ônibus de Fortaleza, quando no momento em que a fila caminhava para o ingresso ao ônibus, um homem, aproveitando-se da sua proximidade com uma moça muito bonita que vestia um grande decote, utilizou-se do momento de tumulto da subida para passar a mão nos seus seios. A única coisa que não esperava o agressor era que o marido da moça também estava próximo e que presenciava toda a cena, terminando numa grande confusão. Essas experiências são por demais recorrentes nas vidas das mulheres e são vivenciadas de diferentes formas, como uma sensação de agressão, vergonha ou mesmo como 6
uma maneira de envaidecimento. Mas, apesar das diferenças, é bem verdade que os flertes e cantadas são indícios das relações de desejo, das diferenciações de comportamentos entre homens e mulheres, do simbolismo das vestimentas e principalmente de uma noção de acesso e pertencimento dos corpos através das palavras e gestos. Ora, sabemos que todas essas coisas não existem por acaso, mas que são frutos de longos processos históricos. Os inocentes flertes, as cantadas e até mesmo as violências físicas sexuais são muitas vezes justificadas por quem as praticam e por quem as presenciam, como uma reação às condutas fora de um padrão moral das pessoas que a recebem. Num texto sobre as mudanças de comportamento no início do século XX no Rio de Janeiro, o historiador Tiago de Melo Gomes escreveu sobre como o impacto das mudanças dos comportamentos ocorridas nesse período - como os novos cortes de cabelo, as novas tendências de moda, os novos espaços de trânsito nas cidades - alteraram as relações de erotização do corpo entre homens e mu-
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lheres no espaço urbano. “Mas aquela mocinha... Já passou... É estampa só! Modelo clássico de certas virgens contemporâneas, olha os homens com descaso, requebra os quadris, numa lúbrica provocação e sente-se com orgulho mulher para toda uma raça ao imaginar os desejos que provoca com a seminudez do corpo e o requebro musical das ancas. A natureza deu-lhe a estampa da mocidade, mas a civilização, roubando-lhe a alma terna e ingênua, essa cuja vida efêmera não devia passar das ilusões platônicas do amor, precipitou-lhe o despertar do instinto e fá-la pensar antecipadamente na caça ao homem, matando-lhe assim todos os sonhos castos da puberdade. O espetáculo que elas em conjunto apresentam no salão é desolador, é triste, é profundamente imoral.”
Nesse trecho, o jornalista analisado pelo autor, ao falar do requebrado e da seminudez da jovem mulher, expressa uma forte imagem de erotização desses novos modelos de comportamento trazidos e possibilitados pela “civilização”, comportamentos esses daninhos a uma sociedade de boa moral, capazes de desvirtuar a tal mocinha de “seus sonhos castos da puberdade”. A grande questão exposta nesse texto se dá na consciência da moça em relação aos efeitos sedutores provocados pelos seus
gestos. Ao analisar processos-crime da cidade de Fortaleza no mesmo período, é recorrente na observação de crimes sexuais e defloramentos, a culpabilização das mulheres devido a sua “adesão” a essas modernas formas de comportamento. Roupas menores, atitudes despojadas, passeios na cidade, participação em festas e bailes foram utilizados como justificativas para a isenção da culpa de homens que cometeram algum crime contra a honra das mulheres. A possessão física ou pela palavra estava ligada, nesse contexto, a uma ressignificação da própria participação das mulheres no espaço urbano que até então lhes era extremamente limitado, e passa a ser algo de grande evidência e visto como uma ameaça. Dessa forma, a diferenciação entre as mulheres de acordo com as suas atividades, comportamentos, cor e classe social se tornou necessária para uma convivência transparente no “quem é quem” no espaço das cidades. E hoje, são as mulheres vistas como provocadoras do “acesso ao seu corpo”, seja por intermédio da palavra ou da força física? Ainda são presentes diferenciações entre as mulheres, baseadas em critérios
“o espaço urbano ainda está imbuído de um campo simbólico onde a rua é espaço e lugar do masculino” 7
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morais ou comportamentais? E são apenas mulheres as vítimas desses acessos? Me parece ainda bastante recorrente a noção da figura bíblica da Eva, a mulher provocadora, que leva os homens a cometerem loucuras, em contraposição às mulheres de condutas contidas e de forte recato. Essa noção é ainda, uma forma bastante viva de códigos morais surgidos quando da ameaça da participação das mulheres no espaço público, e uma tentativa de diferenciação entre mulheres de boa e de má conduta. A existência de mulheres autônomas, livres para vestir-se e comportar-se à sua maneira ainda é um desconforto na nossa sociedade, passível de ridicularizações e violências, principalmente quando esses comportamentos se relacionam com uma conduta erotizada dos gestos. Nos deparamos frequentemente com a ideia de que as mulheres, ao utilizarem determinadas roupas, ou comungarem com determinados comportamentos, pedem para ser provocadas na rua. Não raras vezes, essa noção de acessibilidade sexual está ligada também a condutas homofóbicas e racistas, haja visto que muitos homossexuais e pessoas de
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cor negra tem de tolerar piadas e ridicularizações quanto aos seus corpos e comportamentos simplesmente por transitarem pelas ruas. As questões étnicas são talvez o que há de mais elucidativo quanto à explicitação de uma cultura erótica no Brasil que ainda tem a figura do negro, e principalmente da negra, vinculada à noções de despudor, malícia e promiscuidade. Por fim, acredito que o espaço urbano ainda está imbuído de um campo simbólico onde a rua é espaço e lugar do masculino. Penso ser de grande importância problematizar e desnaturalizar essas relações de desejo e pudor, de forte sustentação machista, onde o gênero masculino entendendo-os aqui como as figuras viris e de sexualidade instintiva - tem a propriedade dos corpos estranhos e feminilizados, pois passam a ser naturalizados num campo simbólico, seus instintos e sua superioridade do ser masculino, legitimando uma série de interferências de apropriação e de violências.
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O trecho citado está em: Cadernos Pagu n 23 Jul/ Dez 2004. Página 137. Massais, mulatas, meretrizes: Imagens da sexualidade feminina no Rio de Janeiro dos nos 1920.
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Resumo Machado de Assis Historiador Sidney Chalhoub
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esde algum tempo a historiografia tem discutido a uso das obras literárias enquanto fontes para a escrita da História. Essa discussão perpassa uma série de novos problemas teóricos, pois pode nos levar a pensar sobre a própria História enquanto ciência na medida em que as fontes para seu estudo e escrita saem do eixo do factual, do provável, do verossímil, e encontram-se com a ficção. O problema que se abriu desde a incorporação da literatura como fonte histórica vem sendo resolvido aos poucos e me parece que já se consolidou como uma tendência na historiografia, principalmente com a
base teórica de alguns importantes pensadores que influenciaram essa utilização, como Foucault e Saussure, para citar os ícones. Em seu livro, Chalhoub utiliza a literatura de uma forma que me parece ir além das práticas mais comuns de utilização de obras literárias, elas me parecem ser muito mais do que fontes históricas, são mesmo escritos históricos, visto que a partir das análises feitas pelo autor, aos poucos constrói-se para o leitor a perspectiva de que Machado poderia sim ser um historiador, um historiador do tempo presente a ele próprio ou do tempo imediatamente anterior, pois através de seus personagens, Machado constrói a sociedade patriarcal, seus vícios, seus problemas, sempre ligados ao período histórico em que estão enquadrados. O nome do livro guarda muito dessa ação de Chaloub, pois já indica o rumo que tomará o texto à medida que avança nas reflexões a partir de diversas obras de Machado. Ao ler, nos deparamos com muitas perguntas: será que Machado realmente fez um trabalho de historiador em seus 9
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romances e contos? É possível que um romance seja a própria escrita da história? Era deliberada a ação de Machado em contar a “História” da sociedade patriarcal através da literatura? Respostas para tais perguntas são difíceis de responder e o autor se esquiva delas, porém nos deixa pistas para podermos refletir sobre as obras de Machado e sobre as ações do chefe da Segunda Seção da Diretoria de Agricultura do Ministério da Agricultura do Império. No primeiro capítulo, “Paternalismo e escravidão em Helena”, Chalhoub começa a analisar as obras de Machado percebendo como o romance foi construído de forma que a ideologia senhorial posta no século XIX e construída desde muito, estava claramente exposta aos olhos atentos de qualquer leitor e que Machado teve a preocupação de manter a cronologia como uma espécie de linha guia que indicava o momento histórico a ser relacionado com as ações de senhores e dependentes. Fica evidente em Helena e Estácio o caráter histórico das personagens vistas como tipos que representavam determinada parte da sociedade patriarcal escravista. No capítulo seguinte, “A política cotidiana dos dependentes”, Sidney entra mais fundo na sociedade patriarcal quando passa a estudar, sempre a partir de Machado, as tensões existente na relação entre senhor(es) 10
e dependente(s). O paternalismo da sociedade senhorial é o alvo principal de seu estudo neste capítulo, pois é a partir dele que a sociedade e as relações nela se constituem. “Há elementos suficientes em Machado para fundamentar uma definição convencional, por assim dizer, de paternalismo: trata-se de uma política de domínio na qual a vontade senhorial é inviolável, e na qual os trabalhadores e os subordinados em geral só podem se posicionar como dependentes em relação a essa vontade soberana.”
A partir desta definição as ações e os pensamentos das personagens se constroem, sempre para reforçar a ideia de que esse pensamento era o mantenedor daquela sociedade escravista em que o próprio escritor vivia. No terceiro capítulo, Ciência e ideologia em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Chalhoub trata das questões relativas ao pensamento senhorial e o pensamento científico do século XIX. Parece claro para os autores a relação entre as duas coisas, visto que Machado demonstra situações em que essa relação se põe à mostra. Sidney procura esmiuçar essas situações de forma que possamos mais uma vez perceber que Machado estava escrevendo sobre o seu tempo, sobre a construção ideológica que matinha aquela sociedade em pé, que justificava as diferenças entre homens, que mantinha indivíduos
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fora da esfera humana e que pouco a pouco foi se enfraquecendo. No último capítulo, “Escravidão e cidadania: a experiência histórica de 1871”, finalmente Chalhoub faz o seu trabalho de historiador, ou seja, desta vez passará ele mesmo a analisar fontes, demonstrar situações, por problemas, indicar respostas, construindo assim seu próprio discurso. Nos capítulos anteriores era como se analisasse a obra de um historiador sobre o “Tempo Saquarema”; neste capítulo derradeiro faz-se a diferença entre o historiador Chalhoub e o historiador Machado. Na verdade, este capítulo trata do tempo em que Machado era funcionário e escrevia seus trabalhos, assim a afirmação do título do livro vai se reafirmando página a página, pois Sidney nos mostra que as ações de Machado enquanto romancista condizem com suas ações enquanto funcionário público, cidadão do Império. O trabalho historiográfico de Chalhoub neste livro está intrinsicamente ligado à vida e obra de Machado, já que ele e sua literatura são ao mesmo tempo referência e fonte.
Sua obra é a construção de um historiador que não o era academicamente, mas que soube, através da sua escrita, da sua visão sobre os fatos e de sua posição social, escrever sobre a sociedade, sobre o pensamento, sobre a ideologia daquele tempo em que ele mesmo estava inserido; um verdadeiro trabalho de historiador, pois construiu um discurso sobre o passado (em geral muito próximo). O livro Machado de Assis Historiador é uma provocação àqueles que pensam e que escrevem a História, pois indica reflexões que levam ao pensador, dúvidas e problemas quanto ao próprio fazer historiográfico. Será mesmo que a História consegue se aproximar do passado através das fontes? As fontes podem dar veracidade ao texto historiográfico? O quê, afinal, diferencia o fazer literário e o fazer historiográfico? Será a História somente um tipo diferente de literatura como indica Hayden White?
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Citação encontra-se nas páginas 46-47 do livro.
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Modernidade e pós-modernidade O filme Um homem sério
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m toda boa história, ou pelo menos na grande maioria delas, existe um problema inicial que joga as personagens envolvidas numa direção completamente imprevisível. O cotidiano é chacoalhado repentinamente por um divórcio, um encontro, uma morte, um roubo, um engano etc. que gera um conflito, seja ele amoroso, político, moral, existencial ou outros tantos possíveis. As personagens, então, são obrigadas a reagir, na tentativa de resolver o problema e retornar à normalidade. Os irmãos Coen, que desde meados dos anos 80 vêm criando, produzindo, dirigindo e editando seus próprios filmes, consolidando a cada obra o status de duas das principais cabeças entre @s cineastas contemporâne@s, em um de seus últimos filmes, Um Homem Sério (A Serious Man, EUA, 2009), resolveram arruinar a vida de um judeu, chamado Larry Gopnik, com um mar de problemas. Em Um homem sério, Larry Gopnik precisa lidar com problemas, digamos, cotidianos: uma mulher infiel, uma filha obcecada pelo próprio cabelo, um filho que o perturba por causa da televisão, um irmão doente, viciado em jogos e completamente 12
dependente, um aluno corrupto etc. São problemas que vemos todos os dias, seja na televisão ou em experiências de pessoas mais próximas. Larry é um homem comum, um típico homem da classe média com um emprego, uma família, uma vida social respeitável e que se esforça para manter-se dentro da moralidade e da lei. As coisas parecem estar em sua ordem natural, bem no lugar onde deveriam estar, perfeitas e certas, mas tudo isto acaba se mostrando muito frágil. Um homem sério é iniciado com uma pequena história de terror, um prólogo, sobre um casal de judeus que, tarde da noite, recebe a visita de um homem idoso que, segundo a mulher, era na verdade um dybbuk (uma espécie de espírito maligno que se apossa de cadáveres). Resumindo, a mulher enfia um picador de gelo no peito do velho, e este simplesmente levanta e vai embora, reclamando da recepção violenta e nos deixando sem uma resposta clara sobre quem ou o que ele é e, conseqüentemente, sobre o que realmente aconteceu ali. Esta história, mesmo que não interfira de fato na narrativa do filme, a posteriori nos ajuda a fazer algumas reflexões sobre ele.
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O filme todo, como sugere o prólogo, gira em torno desta questão da incerteza. A todo momento, as personagens se questionam sobre o porquê das coisas, mas o que parece é não haver uma resposta: as coisas estão simplesmente acontecendo.Larry se esforça sinceramente para ser um homem bom, um homem sério, mas seu esforço parece ser completamente ignorado pela sua família, pela sua sociedade e até mesmo por HaShen (Deus). Quando ele começa a supor que sua boa conduta talvez não tenha sido boa o suficiente, o “rabino júnior” insiste que o que está errado não é a situação, mas sim a forma como ele a percebe, a sua perspectiva. Assim, com seu ponto de vista relativizado, o personagem segue sem saber o porquê e nem mesmo o quê realmente está acontecendo. Os irmãos Coen brincam até com as certezas d@s espectador@s sobre o filme. Quando parece certo que o “homem sério”, do título do filme, é o Larry Gopnik, @s personagens apontam o Sy Ableman, o amante da mulher de Larry, como
o “homem sério”, correto e justo da história. Quando não há mais dúvidas de que Larry Gopnik está no fundo do poço, completamente derrotado, o seu irmão, num momento de profundo desespero, nos mostra que, para ele, na verdade, Larry é um vencedor, um homem que tem tudo o que precisa para ser feliz. A história mal tem uma conclusão, acaba do nada, não só sem a resolução definitiva dos problemas, como com mais problemas aparecendo. Quando, de repente, num corte abrupto, aparecem os créditos, nossa cabeça racional se sente agredida, sem chão, sem respostas. “Pós-modernidade...”, pensei assim que terminei de assistir o filme pela primeira vez e, de fato, a utilização feita da idéia de incerteza não se aproxima muito das pretensões de racionalização defendidas e desenvolvidas no que se convencionou chamar de Modernidade. Não estou falando de técnicas, composições ou mesmo de escolas cinematográficas, estou falando do conteúdo, da trama. Ora, a paisagem que se cria é a de um mundo no qual os acontecimentos são autônomos, no qual não existem relações de causas e conseqüências. No desenvolvimento da trama, não há uma explicação aparente para a dinâmica dos processos nos quais as personagens estão inseridas. E, principalmente, a realidade parece estar a todo o momento completamente dependente dos diversos pontos de 13
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vista. Ela é fluida e incerta, como as perspectivas. Para o historiador Alun Munslow, na historiografia, os debates entre o moderno e o pós-moderno se travam principalmente sobre a “possibilidade de termos um conhecimento genuíno do passado real”. O filme, parecendo negativo sobre esta questão, se aproxima d@s pensador@s pós-modern@s que acreditam que a linguagem, ao invés de corresponder diretamente ao real, o cria e o representa. Para el@s, a linguagem é um fluxo contínuo, sem significado fixo, que é construída e desconstruída ad infinitum. Essa incerteza da linguagem, para el@s, só nos possibilita chegar a conclusões indeterminadas sobre o real, seja ele presente ou passado. O filme, neste sentido, parece ser bem coerente com este pensamento, insistindo na fragilidade dos pontos de vista, das certezas, deixando-as em xeque em vários momentos. Mas podemos utilizar outra perspectiva: a proposta do filme pode ser a de criar uma representação de uma realidade pretérita objetiva, reconstruível e explicável, o que o aproximaria dos paradigmas da modernidade, da racionalização. No final do filme, vemos evidenciada uma bandeira dos EUA que está prestes a ser arrancada por um furacão. É uma explicitação do paralelo que deve ser feito entre a trama 14
e a sociedade norte-americana, onde tudo parece um modelo a ser seguido. A vida de Larry Gopnik, a meu ver, seria então uma alegoria crítica aos problemas da sociedade norteamericana e mais precisamente fala sobre a “inesperada” situação da crise financeira de 2008/2009. Cada um dos problemas que aparecem são simplesmente problemas “normais”, corriqueiros nesta sociedade, não têm nada de inesperado: valorização das aparências, apego a supérfluos, moral sexual, vício, corrupção etc. e principalmente a hipocrisia, que faz com que tod@s pensem/pareçam estar dando o melhor de si, seguindo à risca um modelo correto: “Arlen, eu não sou um homem mau. Eu não sou. Eu fui ao Aster Art só uma vez. Eu vi o Pecado sueco. E nem mesmo era erótico. Apesar de ter sido de alguma maneira...”. Para mim, o filme pode ser lido como uma crítica à sociedade norteamericana e uma crítica muito cheia de certeza, capaz de dar, metaforicamente, explicações para a dinâmica dos processos nos quais os personagens estão inseridos, e de alavancar apenas um ponto de vista como correto, jogando aos outros a alcunha de ilusão. Larry Gopnik é, para os Coen, a sociedade norte-americana, que jurava ser um modelo, mas era hipócrita e ruiu sobre suas fracas ilusões.
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@ autor@ e o texto
A escrita da História e a subjetividade Velásques - Las Meninas (1656)
“O pintor (...) é perfeitamente visível em toda a sua estatura; de todo modo, ele não está encoberto pela alta tela que, talvez, irá absorvê-lo logo em seguida, quando, dando um passo em sua direção, se entregará novamente a seu trabalho; sem dúvida, nesse mesmo instante, ele acaba de aparecer aos olhos do espectador, surgindo dessa espécie de grande gaiola virtual que a superfície que ele está pintando projeta para trás. (..) Como se o pintor não pudesse ser ao mesmo tempo visto no quadro em que está representado e ver aquele em que se aplica a representar alguma coisa. Ele reina no limiar dessas duas visibilidades incompatíveis.” Michel Foucault
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nicio esse texto fazendo referência a imagem e as primeiras passagens de Foucault, em “As Palavras e as Coisas” (1966). São impressões sobre o quadro Las Meninas, de Velásques. O que Foucault chama atenção e o que servirá para a minha argumentação é a presença de Velásques no quadro ou a representação de seu trabalho exposto diretamente.
Minha intenção é comparar o quadro à produção narrativa dos textos da história. Para isso compreendo que Las Meninas serve como uma “paisagem da história” (para citar John L. Gaddis), uma paisagem de como os textos da história são construídos e qual o lugar d@s autor@s nesses textos. Talvez nunca foi tão aceito na produção historiográfica que os tex15
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tos de histórias carregam as marcas subjetivas de suas/seus autor@s. Desde os autores historicistas do XIX como Droysen e Dilthey, que se utilizavam de uma perspectiva hermenêutica para compreender a história, até mesmo o próprio movimento dos Annales, que contribuiu sobremaneira para a escrita historiográfica do século XX, já havia a idéia de que a narrativa histórica é marcada pela subjetividade de quem escreve e do tempo histórico onde é/foi escrito. As novas compreensões da escrita da história, principalmente aquelas que se desenvolveram a partir da década de 1970 e foram intituladas de “a virada linguística”, defendem, em referência à Saussure, a “morte do autor”. Saussure afirmava que os indivíduos não são autores das afirmações que fazem, pois estão presos às estruturas das línguas e só podem se expressar no interior de suas regras. Embora os novos paradigmas linguísticos desconsiderem os vestígios de subjetividade, essa defesa está longe de se aproximar da que foi compreendida pelo Positivismo do século XIX, que defendia o afastamento da subjetividade em favor da objetividade na escrita da historia. O “texto positivo” não podia transparecer qualquer marca pessoal, a escrita científica tinha de ser impessoal para ser legítima. Essa compreensão foi desenvolvida a partir das idéias cien16
tíficas de racionalidade e empirismo desde o Renascimento e foi uma das principais características da emergente Ciência Moderna, que teve o seu apogeu na Europa dos séculos XVIII e XIX, influenciando o pensamento científico ocidental e as novas ciências. O empirismo só poderia se consolidar se com ele estivesse associado à idéia de lei geral, leis independentes da interferência/participação do pesquisador. As experiências poderiam ser apreendidas porque poderiam ser reproduzidas. Para representar o experimento, @ autor@ não poderia intervir, assim a própria descrição das experiências não poderiam conter marcas pessoais, subjetivas. A descrição do experimento tinha que ser perfeita, impessoal. Não deveria haver reflexão sobre o experimento, a Ciência Moderna se afastou cada vez mais da filosofia, da “divagação”, da reflexão pessoal. Era um conhecimento aposteriori, a partir do experimento. Entretanto, embora muit@s historiador@s sejam contrári@s ao paradigma positivista da escrita da história, continuam buscando uma suposta objetividade nos seus textos. Nós, historiadores e historiadoras profissionais, continuamos evitando as nossas marcas mais diretas de representação nos textos - por exemplo a escrita em primeira pessoa do singular, eu. Qual o lugar que ocupa-
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mos nas nossas narrativas? Será que, como Velásques, conseguimos aparecer diretamente nos nossos textos? O objeto de minhas críticas está direcionado para o fato da escrita da história continuar recorrendo às marcas impessoais. Marcadamente dois são os momentos em que a autoria de texto aparece mais claramente, na introdução e na conclusão. O corpo do texto têm outra característica principal, que é a impessoalidade ou mesmo a utilização do nós, numa
Assim os livros de história ganham caráter de verdade, é uma escrita suspensa, “sem autoria”. Na medida em que os fatos são descritos, a impressão é de que aquilo realmente aconteceu e que não tem interferência de quem o descreveu. Muitos estudantes que se utilizam de livros de história, por este e por outros motivos, tomam esses textos como verdade. É uma impressão de verdade. Uma das razões que o fazem acreditar é a não percepção de que alguém de “carne
“embora muit@s historiador@s sejam contrári@s ao paradigma positivista da escrita da história, continuam buscando uma suposta objetividade nos seus textos.” tentativa de, pela coletividade, legitimar as opiniões pessoais. O texto histórico recorre a marcas de prova/verdade bastante singulares, numa tentativa de diferenciação dos outros textos científicos e literários. Estas marcas são a referência, a nota e a citação. O texto científico de história se sustenta sobre esse pedestal para garantir credibilidade e legitimidade. Para além dessas marcas científicas, a utilização do nós caracteriza uma outra estratégia para o texto científico da história. Uma escrita não pessoal é tão mais próxima do ideal de escrita científica do que uma que exponha quem está escrevendo.
e osso” o escreveu. É uma espécie de sacralização do texto por outras vias, que não a religiosa. Uma “sacralização” pela ciência. Talvez a defesa mais categórica para a utilização do nós nos textos científicos seja a de Umberto Eco, no seu Como se faz uma tese, tão lido pel@s estudantes de pós-graduação. Umberto Eco defende que o nós seja utilizado nos textos pelo fato da Ciência ser feita pela coletividade, portanto utilizar o nós é reconhecer que o trabalho que está ali escrito teve a colaboração de uma coletividade a ser reconhecida. Meu questionamento é o seguinte: o trabalho de pesqui17
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sa pode até ser feito por uma coletividade, mas o momento da escrita, o mais das vezes, é feito por uma só pessoa. Por mais que haja colaboração, as reflexões que são desenvolvidas num texto muitas vezes são pessoais – não é isto que é cobrado, uma contribuição da autoria? Por mais que haja uma participação, a escrita particular não é capaz de conter a dimensão da coletividade, ela sempre será pessoal, a não ser que o colaborador ou a colaboradora participe ativamente do momento da escrita. O autor não pode ser representante da coletividade, nem se colocar como tal, mas é isso que é feito numa escrita através do nós, como defende Umberto Eco. Chamo atenção para um exemplo escolhido aleatoriamente dentro das minhas últimas leituras. São passagens de José Murilo de Carvalho, em A Construção da Ordem. Por vezes o autor usa: faremos, analisaremos, estaremos, fizemos e partimos. Percebo que esses usos da primeira pessoa do plural podem ser problemáticos, porque mais do que apontar possibilidade e uma representação da coletividade eles tomam a coletividade para legitimar os posiciona-
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mentos pessoais. A representação da coletividade pretendida faz com que @s leitor@s também se calem aos argumentos propostos pelo autor, que tenta direcionar e condicionar a leitura pela tentativa de enquadramento dos leitores dentro da “coletividade” do nós. A leitura se torna passiva. O que deve ficar dessas observações é a capacidade, inclusive intelectual, de posicionamento pessoal na escrita da história. Devemos compreender que a coletividade faz parte do trabalho intelectual, mas esta não deve suprimir a pessoalidade que é a produção escrita. Os critérios de verdade, objetividade, racionalidade, a muito estão sendo discutidos e questionados. Em detrimento deles, outros se mostram indispensáveis para discussão: representações, imaginários, subjetividades. Os nossos textos, devem acompanhar nossas posições e escolhas teóricas, não só os processos metodológicos. Pensemos: não estaria o texto de história fadado ao formato científico que herdamos do século XIX, de racionalidade e objetividade? Quando pintaremos um quadro como Veslásques?
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O contador de histórias
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eôncio Umbelino nasceu no dia 01 de agosto de 1920 na Serra do Machado, distrito da cidade de Canindé, no interior do estado do Ceará. Membro de uma família composta de trabalhador@s rurais, ocupou-se desde cedo aos afazeres do campo, fazendo do trabalho o seu principal divertimento. Nasceu e se criou nas fazendas em que os pais cumpriam a função de “morador@s”. Eram responsáveis, portanto, pelas atividades de manutenção do lugar: cuidar dos animais (bois, vacas, carneiros, cabras, porcos, galinhas, etc.), trabalhar a terra (sendo a plantação compreendida como um meio de deixar a terra sempre produtiva) e cuidar da casa (evitando a deterioração). Leôncio, meu avô, sempre fez questão de contar longas e divertidas histórias que tinham marcado o seu passado e sua vida, principalmente aos netos que não tiveram a mesma criação, mesmo tendo nascido nas cidades do interior do Ceará. O efeito nostálgico de suas histórias fazia com que as minhas vivências na cidade grande (urbanizada) fossem
confrontadas com as histórias das mais diversas experiências que ele enfrentara no campo. A mitologia dessas histórias fazia com que elas ficassem mais impressionantes do que já eram. Era uma aproximação com um imaginário diferenciado, composto por uma religiosidade popular não centrada na Igreja e das aventuras heroicas tão difundidas pelos sertões nordestinos. Seu Leôncio não era exatamente um daqueles contadores de “história de trancoso”, termo equivalente a “histórias de mentiroso”, que faz referência, na maioria das vezes, àquelas histórias fantasiosas vividas nos sertões ou nas cidades e que atraia @s curios@s pelo seu caráter imaginativo (ficcional), e também pelo tom de suspense/terror da maioria destas histórias. Alguns elementos são comuns, mas não havia nas histórias do meu avô a deformação da realidade que era tão comum às histórias de trancoso: peixes enormes, força sobrehumana, etc. Meu avô recorria a uma série de elementos para (com) provar suas histórias, tornando-as mais aceitáveis (críveis), talvez não 19
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só para os seus ouvintes, mas para si mesmo. Um dos principais elementos de verdade utilizado com frequência pelo meu avô era a sua companheira de longa data e nossa querida avó, a Sra. Maria Rodrigues. Quase sempre a confirmação sobre determinados detalhes que precisavam de auxílio para se legitimar vinham da cozinha; parecia que ela sempre estava em alerta para apresentar o seu parecer. Ao longo dos anos, as histórias não mudavam, alguns detalhes eram acrescentados e outros não
choque cultural, proporcionado pelas mudanças geracionais, tenha sido vivido por muitas outras pessoas, num processo de transformação cultural em que as gerações anteriores passam seus valores e experiências para as novas gerações, compostas de filh@s e net@s. Nem sempre isso se dá de modo tranquilo e calmo, como supostamente aconteceu comigo e com alguns de meus/minhas irm@s e prim@s. Os choques por vezes são violentos e a circularidade cultural das gerações
“Por que duvidamos de relatos que aparentemente deformam a “realidade” e acreditamos tão prontamente nos relatos da História?” tinham a mesma importância para reaparecerem, mas uma coisa era certa, a confirmação daquela “voizinha” da cozinha entrando nos momentos mais críticos da narrativa. Através das histórias do meu avô pude perceber muito dos imaginários difundidos pelos sertões. Estes imaginários estão ficando cada vez mais escassos, dando lugar a novas histórias marcadas por uma sociedade televisionada, informatizada – “midializada”. A minha geração, nascida na década de 80, do século XX, pôde ter outras referências e uma percepção sobre a realidade muito diferenciada daquela do meu avô, ou mesmo dos meus pais. Talvez o 20
se dá de maneira problemática, ocasionando um afastamento/ negação de tudo aquilo que possa lembrar a geração anterior. A postura de “pré-conceito” das “novas” faz com essa circularidade cultural seja prejudicada, tornando as gerações passadas obsoletas ao invés de só “diferenciadas” das novas. Pode ser também problemática a estranheza das “velhas” às transformações de valores, comportamentos e atitudes que podem caracterizar uma nova forma de pensar o mundo e a vida, que são as marcas das mudanças geracionais e das transformações culturais mas sobretudo, da dinâmica histórica das transformações
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permanentes da vida. Meu avô talvez não saiba e nem entenderia a explicação de que as suas histórias tiveram um efeito marcante na minha vida, não só pelos ensinamentos que eu tirava de seus enredos, mas pela influência na futura preferência e vontade por estudar História. A palavra história pode ter vários entendimentos: primeiro, ela pode ser o conjunto de acontecimentos do passado; segundo, ela pode ser o relato desses acontecimentos; e terceiro, a História pode ser a área do conhecimento que a partir dos séculos XVIII e XIX se tornou “Ciência”. Para o historiador Reinhardt Koselleck, um estudioso dos conceitos, a palavra História se tornou ao longo do século XVIII um conceito singular coletivo, representando ao mesmo tempo tanto o conjunto de acontecimentos quanto os seus relatos. Quando entrei para o curso de graduação em História uma das primeiras lições foi de diferenciar as histórias, aquelas contadas pelo meu avô, da História pretendida pela academia. Demorou muito, o suficiente para minha formatura, para que eu percebesse que as histórias do meu avô não eram tão diferentes das histórias contadas pelos historiadores profissionais. Hoje, me esforço para perceber como, mesmo num discurso de histórias fantásticas, promovida por um não alfabetizado, é possível perceber
elementos de prova parecidos com os utilizados na historiografia científica. Não se trata de hierarquizar um e outro, mas de perceber elementos comuns que compõem o ato de narrar. Somos levad@s a “acreditar” no relato regular promovido pela historiografia, porque este se aproxima da nossa noção de realidade. Mas duvidamos de imediato de alguma distorção numa história vivenciada e/ou contada. Embora as dimensões sejam realmente antagônicas, por se tratar de linguagens diferentes, uma da fala e outra da escrita, e fazer uso de técnicas próprias dessas linguagens que marcam diferentemente a narrativa, o que se pretende tanto num quanto noutro é contar uma história e fazer com que @s leitor@s acreditem no relato. Somos convencid@s de que o jeito certo e verdadeiro é o da historiografia. Enquanto Ciência, a História defende para sua legitimação a valorização o seu método. E o método na História é tomado como capaz de tornar o discurso historiográfico legítimo, servindo ainda de indicador do modo “certo” de se narrar e compreender o passado. Um modo possível de se chegar a verdade de uma dada realidade. O caráter imagético e ficcional presentes no ato de narrar ainda são pouco reconhecidos pela História e tomados por muitos historiador@s como um risco a ser evitado. Como leitor@s 21
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e interessad@s em História, muitas vezes somos levad@s a achar que o método científico da História é suficiente para acreditarmos no quadro social que é desenhado e na história contada pel@s historiador@s. Por outro lado, não deixamos de estranhar os relatos fantásticos, mesmo que os seus/ suas narrador@s utilizem dos vários recursos de prova - os vestígios, perspectivas diferentes, relato de outras pessoas, etc. Acho que a estratégia é ter o mesmo senso de falseabilidade que adotamos ao ouvir histórias marcadamente ficcionais para lermos sobre História. Temos uma falsa noção de regularidade e normalidade ao lermos trabalhos historiográficos, mesmo aqueles que tratam do diferente e das diferentes sociedades. Essa regularidade é certamente um atrativo do método histórico. Será que esse relato organizado da historiografia não é uma estratégia de convencimento, tal qual o das outras histórias que se pretendem verdadeiras? Construímos a falsa impressão de conhecermos as sociedades e as
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pessoas que são apresentadas pela historiografia, será que podemos conhecê-las através de uma narrativa, de um relato, de uma “história”? Por que duvidamos de relatos que aparentemente deformam a “realidade” e acreditamos tão prontamente nos relatos da História? De uma forma ou de outra continuo gostando de histórias bem contadas, apesar de não acreditar em muitas delas me encanto com a capacidade criativa de seus contadores, tanto avôs quanto historiadores.
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“Todos os nossos conceitos sobre o desenvolvimento da História se encontram em crise. A vida desliza por entre as malhas das construções teóricas, escapa às classificações e nega a cada passo as generalizações e as sínteses. Sentir esta multiplicidade significa sentir o valor que para a vida tem a liberdade, que torna possível a variedade infinita.” Luci Fabbri, 1952
“De fato, na ciência social, em vez de trabalharmos com objetos reais, operamos sobre nossas representações dos objetos. Não vemos os homens, os animais, as casas que recenseamos; nem as instituições que escrevemos. Somos obrigados a imaginar os homens, os objetos, os atos e os motivos que estudamos. Essas imagens constituem a matéria concreta da ciência social, ou seja, o objeto de nossa análise. Algumas podem ser lembranças de objetos que observamos pessoalmente; no entanto, uma lembrança não passa de uma imagem. Na sua maioria, aliás, elas não foram obtidas por lembrança, mas são invenções à imagem de nossas lembranças, ou seja, por analogia com imagens obtidas por meio de lembrança.” Charles Seignobos, 1901