Editorial Esta edição nº1 da Revista Vide História continua, como a anterior, como um espaço de exercícios para o desenvolvimento de novas reflexões e escritas sobre a História. Exercer nosso ofício de historiador@s, refletindo historicamente sobre os mais diversos temas, continua como meta, assim como se distanciar da escrita meramente acadêmica, fadada às regras de formatação e à um círculo fechado de leitores. Nesta edição, o tema escolhido foi os “Usos da História”. Questão abstrata, que por poder ser evocada dentro dos mais diversos assuntos, nos pareceu bem pertinente, possibilitando escrever sobre política, cultura, historiografia, etc. sem se distanciar muito da vida cotidiana d@s leitor@s não-acadêmic@s. Agradecemos a atenção e os comentários d@s leitor@s da edição anterior e esperamos que tenham uma nova boa leitura. Equipe Vide História
Fotos desta edição são da Revista Vide História ou como indicado.
Nos textos da Vide História utilizaremos o símbolo “@” para substituir as indicações de masculino e feminino quando fizermos generalizações de grupos humanos. Um exemplo: “todos” será escrito “tod@s”. Isso tem o objetivo de contemplar aos diversos gêneros ao mesmo tempo ao invés de considerar o gênero masculino como aquele que generaliza a humanidade.
Expediente Conselho Editorial: Gleidiane de Sousa Ferreira, Leandro Maciel Silva, Marcos Luã A. de Freitas e Tuan Roque Fernandes. Projeto Gráfico: Marcos Luã Contato: revistavidehistoria@gmail.com
A Revista Vide História foi licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição - Uso Não-Comercial - Obras Derivadas Proibidas 3.0
Os textos são de responsabilidade da equipe Vide História.
Índice Usos do Passado
Historiografia
Poesia O 11 de setembro e os usos da História Outros olhares Bolívia
A História como campo de lutas
Quem detém o passado?
4 6 7 9 12 15
Vide História
Usos do Passado Historiografia
E
nganam-se os que acreditam que o passado está morto e que os acontecimentos só podem ser compreendidos de uma só, e verdadeira, maneira. Se os fatos e os acontecimentos não pudessem ser revistos e interpretados de outra forma, não existiria a História. A História, área do conhecimento que tem o passado, o tempo e as ações humanas como objetos de estudo, não é uma ciência pura, livre dos usos políticos e ideológicos. A História é um campo de disputa, onde se disputam os discursos sobre o passado. Mas os historiadores não detêm o monopólio de estudar e interpretar o passado, muitos outros profissionais e curiosos podem se aventurar pelas ações humanas no tempo. O que há em comum diante de todos os interesses pelo passado é uma vontade de Verdade. Mas de que Verdade estamos falando? Aquela única e essencial aos fatos? Não. Estamos falando das Verdades que interessam às disputas do presente. A História, por vezes, foi usada (e ainda é) para servir aos projetos do presente – para o futuro. No século XIX, diversos Estados europeus e o Estado 4
brasileiro almejaram a constituição de uma nação - uma relação de identidade entre as pessoas que compunham cada Estado, um sentimento de nacionalidade em defesa da Pátria. Mas o processo de constituição da Nação tinha alguns elementos importantes. Um deles era a diferenciação. Portanto, as pessoas poderiam se definir pelo que não eram. No entanto, era preciso também reforçar o sentimento de pertencimento, e uma das estratégias foi a de instituir um passado comum às pessoas que compunham o Estado, tornando-as irmãs históricas. Poderíamos falar ainda de instituir uma língua comum, mantida pela Educação, estipular uma religião ou a busca/demarcação pelos limites territoriais, etc. Essas estratégias colaboraram para uma identidade nacional dos Estados. O nacionalismo é uma marca dessa época, e a história colaborou para esse processo. A quem serviu o nacionalismo? Pensemos. A história serve, portanto, aos interesses políticos dos grupos e instituições. Não é incomum ouvirmos nos discursos políticos referência ao passado, servindo aos mais diversos interesses do político, desde reforçar uma postura conservadora
Nº 1 – Ano 2 – Janeiro de 2012
Vide História até estabelecer uma crítica para promover as mudanças pretendidas pel@ candidat@ ou partido. O argumento histórico é uma estratégia de convencimento dos mais usuais, ele serve aos conservadores, liberais, religiosos, cientistas, revolucionários, etc. dependendo dos seus interesses. Mas também pode estar descolado de uma ideologia. Estão difundidas imagens históricas por toda a sociedade, imagens que foram forjadas historicamente por
ponto de vista do que ele representa num caso concreto, mas pensá-lo na sua natureza histórica, daí as noções de passado agirem sobre essas reflexões. Mas voltemos ao discurso histórico dos historiadores, este possui um aspecto que temos de destacar. Esse discurso se constituiu historicamente como um discurso autorizado sobre o passado. Muitos dos intelectuais que foram reconhecidos como historiadores
“Os historiadores escrevem história influenciados pelo momento em que vivem, com as pressões que sofrem.” historiadores e demais profissionais da educação, por cientistas, pela religião, pela mídia, etc. Essas noções do passado também são usadas como argumento de convencimento. Elas estão mais próximas do que imaginamos. Estão na mídia, na escola, na Política, nas Religiões, nas conversas de bares, etc. Poderia dizer que está em toda relação estabelecida entre duas pessoas que se propuserem arguir sobre um assunto, tentando o convencimento da outra parte problematizando-o. Refletir sobre determinado assunto representa relativizá-lo não só do
profissionais no século XIX, por exemplo, tinham a missão de representar o passado tal qual ele aconteceu. O positivismo era a sua influência direta. A história escrita sobre uma revolução era o próprio fato em forma escrita. A história escrita (historiografia) sobre um evento substituía o próprio evento. O discurso histórico foi entendido como uma superposição dos eventos do passado. Era a verdade sobre o passado por similitude. Mas os discursos sobre história do século XIX também não estavam imunes às intenções
Nº 1 – Ano 2 – Janeiro de 2012
5
Vide História políticas de quem os proferiram. Isso porque a História detém a marca do momento em que é pensada, e esse momento é regido por idéias políticas, econômicas, ideológicas, sociais, etc. Os historiadores escrevem história influenciados pelo momento em que vivem, com as pressões que sofrem. O seu lugar social no presente é que marca o seu interesse pelo estudo da história, assim todo trabalho de história é um discurso sobre o passado marcado pelo presente. A Historiografia se consolida como o campo do conhecimento da História interessada em perceber como esta foi (e é) pensada e praticada nos seus tempos e sociedades, portanto defende que a História possui uma historicidade, porque nem sempre foi entendida e/ou praticada da mesma maneira. A Historiografia estuda a própria ciência da História, ou seja, os discursos produzidos e/ou mantidos pela História em cada tempo e lugar, marcados pelos interesses de cada momento. A Historiografia está atenta aos usos do passado, e aos seus discursos - pela História.
O tempo, a história, a vida e o mundo
V
6
Nº 1 – Ano 2 – Janeiro de 2012
O tempo passa ligeiro e torna o mundo mais cheio de histórias As histórias passam o tempo e tornam o mundo mais cheio de vida A vida passa e torna, o mundo, mais longe.
Vide História
O 11 de setembro
e os usos da História
N
o último 11 de setembro pudemos assistir a uma série de rememorações sobre os atentados sofridos em 2001 pelos Estados Unidos, por grupos tidos como “terroristas” na geopolítica mundial. Pôde-se ver no entorno dessa data, uma quantidade enorme de pronunciamentos sobre o acontecimento, suas implicações nas relações políticas, econômicas e na sua importância para o mundo. Frequentemente, essa data nos foi apresentada e rememorada na grande mídia, como a data do maior atentado da “história”, como “a maior tragédia dos últimos tempos”. Variadas organizações e veículos de comunicação evidenciaram uma perspectiva importante sobre esse acontecimento: vincular os atentados ao Wall Trade Center como um acontecimento que faz parte da história e da memória mundial. Em vários países do mundo, governos, organizações não governamentais, associações e inúmeras pessoas independentes, fizeram homenagens, minutos de silêncio e expressaram de alguma forma um respeito pela data e pelos acontecimentos. Porém, essa vinculação e apropriação da data 11
de setembro, e das consequências dos atentados nos Estados Unidos para o mundo se dão, por sua vez, numa hierarquização de acontecimentos e momentos históricos que também tiveram como marco o dia 11 de setembro, além de legitimar a também cruel atuação norte-americana pós-2001 na “guerra contra o terror”. Difícil seria imaginar uma rememoração de tamanha grandeza do Golpe Militar no Chile por Pinochet, no dia 11 de setembro de 1973, e que foi um marco dos tempos de repressão na América Latina, como algo para comoção mundial. Difícil também, seria imaginar um momento de comoção mundial pelas vítimas da guerra contra o terror Oriente Médio, ou de pensar que os atentados em Hiroshima e Nagasaki pudesse ser talvez a maior tragédia dos últimos tempos. Essa construção midiática desloca a influência norte-americana do plano econômico para o plano da história e da memória. A evidência na destruição, nas perdas familiares, no sofrimento e na dor d@s norteamerican@s, buscou desenvolver uma empatia com a “guerra justa” americana, e limitar a criticidade quanto ao sofrimento e à dor d@s milhões de árabes e muçulman@s que
Nº 1 – Ano 2 – Janeiro de 2012
7
Vide História foram alvo, direta ou indiretamente, da também massacrante política norte-americana nos últimos 10 anos. Nas narrativas da grande mídia, o ser humano que sofre, que tem perdas, e que se sacrifica pelos melhores valores para o mundo é sempre o norte-americano. O 11 de setembro de 2001 é relembrado sem considerar seu antes e depois, é enquadrado num acontecimento e desconsiderado todo o desembocar de eventos ocorridos em seu nome. Não objetiva-se aqui diminuir o sofrimento d@s norte-american@s mediante aos atentados, pois seria desnecessário falar da dor que estes causaram, mas de refletir o aspecto mundial dado a esse acontecimento e a apropriação da data como o marco de uma era de guerra contra o terror. Desse modo, os usos da história e da memória são fundamentais como parte da estratégia política de legitimação da atuação norteamericana pós 2001 até os dias de hoje. As constantes afirmações de que os atentados do 11 de setembro fundaram uma nova era rumo à democracia e contra o terror no mundo, imprimem percepções sobre a história desse acontecimento e demonstram um grande interesse em projetar no mundo uma influência e um envolvimento das pessoas numa identificação com esse processo como parte de sua história.
8
V
Outros olhar
C
aminhar pelo Centro de Fortaleza, capital do Ceará, pode ser um desafio. Quem quiser passear por esse espaço tem de se preparar para enfrentar uma série de obstáculos, desde buracos e desníveis nas calçadas até vendedor@s ambulantes. O Centro de Fortaleza tem uma peculiaridade, ele é ao mesmo tempo Centro histórico-turístico e Centro comercial. Essa característica marcou (e marca) diretamente vários aspectos sociais e visuais dessa parte da cidade. Na foto acima, se pode ver uma rua como outra do Centro de
Nº 1 – Ano 2 – Janeiro de 2012
res
Vide História
Fortaleza: movimentada, muitas lojas, pessoas caminhando, carros passando, etc. Mas há um aspecto que geralmente passa despercebido. Quem consegue prestar atenção aos detalhes da cidade na rotina do dia a dia? A proposta que quero lançar aqui é que nós tenhamos outra experiência ao andar pelo Centro de Fortaleza, experiência que não é normalmente experimentada pelos habitantes da Capital. Poucas vezes temos a noção de que as ruas do Centro são antigas, isso porque não conseguimos ver a historicidade que elas guardam. Basta mudar o ângulo de visão (levantar a cabeça), para que possamos visualizar outros aspectos das ruas: as fachadas de casas e prédio antigos. Fortaleza passa por um processo de revitalização do Centro, mas até agora poucos avanços foram conseguidos, isso porque muitos interesses estão em jogo, sobretudo das grandes lojas. Uma das principais medidas pretendida pela prefeitura é a revitalização das fachadas, proces-
so que envolve a retirada das coberturas das lojas e a recuperação das fachadas antigas.
Para a vida comercial do Centro, o aspecto histórico das fachadas não é relevante para as vendas. Poucas são as lojas que exploram ou valorizam as fachadas antigas, a outra grande maioria está mais interessada na praticidade das novas fachadas, que conseguem “dar um ar” de modernidade para as lojas. Mas podemos levantar outras questões para que as lojas façam isso. A primeira se deve ao fato de a grande maioria das lojas alugarem esses espaços, o que torna mais prático para o novo locatário apenas mudar a fachada. Segundo, é a propaganda pelas fachadas, quase obrigatória para a vida comercial das lojas. Mas a própria cidade de For-
Nº 1 – Ano 2 – Janeiro de 2012
9
Vide História taleza possui outro espaço onde a valorização das fachadas aconteceu. Os antigos casarões ao entorno do que hoje é o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura foram revitalizados e suas fachadas ganharam cores vistosas. O Projeto Cores de Fortaleza foi o responsável pela renovação, fi-
da para o turismo.” (O Povo, fev, 2000, p 5 e 6)
Essa intervenção se deu por diversos motivos, mas alguns nos são válidos nesse momento. O primeiro foi o de promover essa área da cidade, composto de grandes armazéns outrora utilizados Reforma/restauração dos casarões do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura - 1999 para o comércio, mas abandonados e com atividades comerciais de menor expressão. Mas essa promoção não tinha por fim revitalizar o comércio tradicional da região, e sim de promover outra atividade lucrativa na cidade, o Lazer. Mais do que atender a população de Fortaleza, o que Acervo Museu da Imagem e do Som - Ceará. Foto de Anastácia Capello Barroso estava em jogo era o fortalecimento do Turismo na nalizando a reforma em fevereiro de cidade, que tinha como projeto a 2000. “Vida Nova aos velhos casacriação do Centro Dragão do Mar e a rões”, essa foi a chamada da sessão revitalização do seu entorno. de Turismo do Jornal O Povo. Destaca O que nos interessa é ainda: pensar como o Turismo pode fazer “O antigo Outeiro da Prainha, que até uso da história, ou de um discurso o início do século XX movimentava sobre o passado para chegar aos a economia do Estado do Ceará com seus objetivos, que é a promoção e atividades do setor de exportação e consumo da cidade. Lembremos que importação de produtos agropecuários, apagou-se logo após a Segunda junto com a promoção da cidade, Guerra, e volta a iluminar-se agora o interesse é vender aspectos de com uma nova vida econômica voltasua cultura e história, por meio de 10
Nº 1 – Ano 2 – Janeiro de 2012
Vide História uma noção de tradição, folclore, artesanato, culinária, música, etc. São criados os vários “tipos” da cidade e da cultura de sua população para reforçar as suas características; são produtos turísticos, que podem ser vendidos. Ressalto, o Turismo é uma atividade lucrativa, e participa
Casas de Show), localizados ao redor do Centro Dragão do Mar, sejam revitalizados e explorados pelos seus aspectos históricos – e Turísticos. Temos, portanto, de exercitar outro olhar para a cidade, para que consigamos minimamente perceber espaços de valorização
“Olhemos a cidade que está diante de nós e percebamos os usos que fazem dela.” ativamente da economia das grandes cidades, principalmente da capital Fortaleza, e devemos desconfiar de sua supervalrização dos aspectos culturais desta cidade. Isso porque, (lembremos!), as mesmas noções de valorização do comércio que fazem com que uma parte da cidade, como o Centro, tenha as suas fachadas encobertas ou não exploradas faz com que os casarões (Restaurantes, Bares,
e desvalorização. Outro olhar é necessário para perceber os detalhes da cidade, que nos fogem pela rotina. A cidade está em movimento, e segue o fluxo dos interesses econômicos e sociais. Olhemos a cidade que está diante de nós e percebamos os usos que fazem dela.
Nº 1 – Ano 2 – Janeiro de 2012
V 11
Vide História
Bolívia
A História como campo de lutas
N
a Bolívia, ocorre desde o final do século XIX, um processo cada vez maior de atividades políticas indígenas. Por volta da década de 1950, um grupo de jovens intelectuais aimarás de La Paz criou uma espécie de grupo de estudos para ler e discutir a condição dos indígenas na Bolívia através da História escrita pelos brancos. Este foi o impulso para a criação do Movimento Katarista, surgido da visão de intelectuais indígenas que tomaram a figura de Tupaj Katari, mallku (liderança tribal, espécie de cacique), indígena que liderou o cerco a La Paz em 1881, como símbolo da resistência índia ao branco colonizador. Em verdade, a construção de um símbolo que tivesse a força para unificar as lutas indígenas que até então eram encaradas sob a designação mais que genérica de “camponesas” teve a importante contribuição dos estudos históricos, isso porque se tinha que demonstrar, de algum modo, como os indígenas das mais diversas etnias num determinado momento se mobilizaram para lutar contra um inimigo comum, o branco colonizador. Desta forma, a escrita dessa His12
tória contribuiu para a luta política. Neste caso, a História serviu como aporte material para criar um sentimento de pertencimento entre diversos povos que muitas vezes fazem parte da mesma etnia,
Manifestação contra o “Gasolinazo” em La Paz - Bolívia -
mas que ainda se entendem como camponesas, deixando de lado suas tradições organizativas originárias
Nº 1 – Ano 2 – Janeiro de 2012
Vide História em detrimento de uma organização posta pelo Estado boliviano desde os primeiros sindicatos camponeses no início do século XX. A História, como o fazer dos historiadores (profissionais ou não) serve, muitas vezes, de arma contra outras Histórias que criaram um determinado estado de coisas que num outro determinado momento passa a ser questionado.
Dezembro de 2010
O conhecimento Histórico embasa muitas das ações dos indivíduos, ainda que eles não tenham a noção
real de sua ação. Isso porque, tudo que fazemos está ligado com algum momento passado que vem se transformando a cada dia no curso de nossa História. Para o movimento indígena boliviano, ter uma História que os expõe como explorados e não mais como colonizados (como se tivesse sido feito um favor a eles) serviu para o fortalecimento das lutas contra a forma político-partidário e estatal que predominava na Bolívia, que os excluía por serem considerados infantis, sem maturidade política, devendo ser liderados por vanguardas esclarecidas, no molde marxista (para a esquerda) ou no molde nacionalista (para a direita). Hoje, após a subida ao poder de Evo Morales e do MAS (Movimiento al Socialismo) vê-se um predomínio cada vez maior de um discurso histórico e político que exalta as qualidades das culturas indígenas do país, entendendo-as como fundamentais para a construção de um país mais justo. Esse é um novo discurso que veio suplantar, pelo menos em parte, o discurso colonialista da elite branca e mestiça que tinha o índio como algo menor, o que também não quer dizer, que os discursos anteriores tenham sido esquecidos ou não tenham tido efeito sobre o atual discurso do governo dito indígena. A História nesse caso
Nº 1 – Ano 2 – Janeiro de 2012
13
Vide História serviu para consolidar, desconstruir e transformar discursos, posições políticas, ideologias e saberes. O governo Evo Morales está andando sobre uma linha tênue para manter-se no poder e levar a cabo as mudanças cobradas por índios e nãoíndios. O movimento social boliviano já demonstrou que não ficará calado
formada pelos departamentos de Beni, Pando, Santa Cruz e Tarija onde o movimento anti-Evo é mais forte), onde estão localizada a grande agroindústria exportadora boliviana e os principais opositores do governo, além da maior parte dos brancos bolivianos. A História, ou melhor, o discurso construído historicamente,
“A história, é um dos campos de lutas entre indígenas e não-indígenas.” frente às atitudes do governo que lhe desagradam, como ocorreu em janeiro de 2011, quando do aumento do preço dos combustíveis, que levou as pessoas às ruas de La Paz para protestar e pedir sua renúncia, e nos últimos meses do mesmo ano, quando o governo boliviano agiu com violência a uma manifestação indígena contra a construção de uma estrada. Ao mesmo tempo, a elite branca/mestiça também pressiona o governo para que faça mudanças que lhes interesse como, por exemplo, legislação mais branda para a agroindústria da Media Luna (Região
14
pode, ao mesmo tempo, ser utilizado por grupos diferente e obter resultados diversos. Os indígenas usam a história para legitimar suas reivindicações enquanto grupo explorado e para criar uma identificação geral entre as diversas etnias (ou nações, como eles preferem), da mesma forma como os brancos/mestiços utilizam a história para sustentar seu ideal de desenvolvimento e evolução. A história, é um dos campos de lutas entre indígenas e não-indígenas.
Nº 1 – Ano 2 – Janeiro de 2012
V
Vide História
Planeta Editora -Divulgação
Quem detém o passado?
A
o passar por qualquer livraria dos shoppings ou aeroportos, certamente você encontrará na vitrine um livro do Laurentino Gomes: 1808, 1822. O autor é jornalista de formação, tendo trabalhado como repórter e editor para o jornal do Estado de São Paulo e revista Veja, além de ter sido diretor da Editora Abril. O que nos chama atenção em primeiro lugar é o sucesso editorial de 1808, chegando
a vender mais de 700 mil cópias em 2008. Duas perguntas inquietam @s historiadores de plantão: como um jornalista, escrevendo sobre um fato histórico, conseguiu vender tanto? E: @s jornalistas podem escrever sobre o passado? A primeira diferenciação, necessária nesse momento, é a de que Laurentino não escreveu história, ele escreveu sobre o passado. A associação entre história e passado há muito já é comentada entre @s historiadores. Para @s leitor@s do livro A Apologia da História ou O Ofício do historiador, de Marc Bloch, vale a lembrança que o autor dedica toda a primeira parte do livro diferenciando História e Passado. A História, para Marc Bloch, é a ciência dos homens no tempo, portanto, o elemento essencial ao trabalho d@s historiador@s é o tempo, a temporalidade – e sim, o passado também. Mas a História não está restrita ao passado, posto que as imposições do presente, ainda lembrando Bloch, é uma característica marcante nos trabalhos d@s historiador@s. É a partir do presente, que enxergamos o passado. São perguntas do presente que nos motivam esse olhar, que tenta perceber mudanças e permanências através do tempo.
Nº 1 – Ano 2 – Janeiro de 2012
15
Vide História Respondendo agora a pergunta: @s jornalistas podem escrever sobre o passado? Sim. Aliás, qualquer pessoa, profissional ou não, pode escrever ou lidar com o passado, e já o fazem: jornalistas, músicos, cineastas, pintores, advogados, etc. Contudo, dizer que esses profissionais podem interpretar o passado não é defender que el@s fazem história. Esta é uma área do conhecimento com métodos próprios e uma postura crítica e ética, muitas vezes,
peito ao conteúdo da obra avaliada. Cada área do conhecimento estabelece regras, nem sempre fixas, aplicáveis por todos os profissionais que a compõe, mas que funcionam como códigos internos de comunicação da área. São conceitos, citação de autores específicos, formatação do texto, utilização de estruturas como citação, notas, referências, etc. Assim, para olhares mais atentos, na maioria das vezes, conseguimos diferenciar rapidamente textos da história, da
“(...) Laurentino Gomes, definitivamente, não escreve história, no entanto, escreve sobre o passado.” diferenciadas de outros profissionais. Embora @s historiador@s não detenham o monopólio do passado, certamente el@s levam vantagem para com a História. Para a legitimação de uma obra sobre o passado como história, podemos estabelecer dois critérios. O primeiro, é externo a obra, que se dá pelo reconhecimento do autor pelos pares. O grupo profissional que forma cada área legitima ou não autor@s que se aventuram por searas diferentes da que estão habituados ou que não foram “formad@s”. O segundo critério possível é interno e diz res16
literatura, da sociologia, da filosofia, etc. – isso para citar áreas próximas. Dito isso, Laurentino Gomes, definitivamente, não escreve história, no entanto, escreve sobre o passado. Temos portanto que avaliar o seu trabalho desse ponto de vista, ou seja, da forma em que ele interpreta o passado e organiza a sua narrativa. Quais os riscos para um profissional como ele numa aventura por caminhos da história e de historiador@s? Eu diria que os riscos são os mesmos que de um(a) historiador(a) fazer reportagens diárias para um jornal ou revista. Ou melhor, de alguém que
Nº 1 – Ano 2 – Janeiro de 2012
Vide História se aventure num laboratório de Química ou Física, sem o conhecimento necessário para realizar as experiências. Ainda que não dominemos as técnicas de um determinado ofício, não conseguiremos satisfatoriamente agradar @s profissionais desse fazer. O problema de um(a) jornalista escrever sobre o passado é o despreparo para questões que são pertinentes aos historiador@s, que conseguiram por formação acadêmica ou pela prática, as técnicas necessárias para perguntar o passado, de extrair dos documentos não só o que é aparente, mas o que não está dito ali. O compromisso ético d@ historiador(a) também é um ponto importante, as ressalvas são sempre importantes no trabalho historiográfico pela complexidade com que o passado chega até nós, sempre fragmentário, incompleto. O compromisso de muitos profissionais historiadores impedem que títulos como os de Laurentino estampem seus livros, mas não é incomum aos editores e jornalistas. “1808: Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil”. Esse é o título do primeiro “livro-reportagem” de Laurentino Gomes, vencedor do prêmio Jabuti de literatura. Essa imagem desenhada pelo título é passível de crítica e historicização. Primeiro, ela dessa-
craliza a imagem da família real portuguesa, um compromisso de alguns no século XIX, mas de muitos na República – a primeira. Segundo, porque ela cria estereótipos, caricaturas, que mais do que facilitar a compreensão dos eventos e das pessoas, as congelam com adjetivos fixos. Lembremos que pela efeméride de 2008, outras obras nos chegaram sobre a família real portuguesa. Delas, destaco e mini-série O Quinto dos Infernos, da rede Globo de televisão. A representação desses personagens caricaturais, satirizados na telinha, fez com que essas imagens substituíssem as pessoas. Assim, D. João era um glutão, sempre com uma coxa de frango à mão. D. João, a mesma pessoa que foi capaz de trazer a biblioteca real para o Rio de Janeiro e idealizador do Jardim Botânico. Mas voltemos a pergunta que talvez muit@s historiador@s fizeram e ainda fazem: como um jornalista, escrevendo sobre o passado, vendeu tanto? Não podemos explicar o sucesso, mas elencar alguns pontos relevantes para essa questão. Primeiro, Laurentino Gomes trabalhou em jornais e revistas e foi editor da Editora Abril, portanto conhece os mecanismos de divulgação e marketing do mercado editorial. Segundo, o livro foi lançado em 2008, efeméride que marcou os 200 anos da vinda da família real portuguesa para o Brasil. Ter-
Nº 1 – Ano 2 – Janeiro de 2012
17
Vide História ceiro, a chamada do livro, tão comum do mercado da informação, proporcionado pelo jornalismo. E por fim, a forma da escrita jornalística, na maioria das vezes atrativa aos leitor@s. Ao ler o 1808, conseguimos com muita facilidade avançar na leitura sem os entraves das citações, das orações subordinadas sucessivas, dos períodos longos, das notas de rodapé, das referências, etc. – sem a estrutura acadêmica da historiografia. Mas dessa característica, cabe uma crítica. Escrever bem é uma obrigação d@ escritor(a). Se o objetivo é ser compreendido, cabe ao escritor(a) o primeiro esforço, depois aos leitores o segundo, o da leitura atenta e compreensão. Mas no caso de Laurentino, o problema não é a boa escrita, uma escrita que proporciona uma leitura corrente, mas sim de como a estrutura das frases e a disposição das orações impedem, muitas vezes, análises mais profundas de determinado evento. A escrita “superficial” é característica do jornalismo,
18
pelo tempo que esses profissionais têm para colher as informações, produzirem seus textos e publicarem nos jornais ou revistas. Também pelo interesse de que o texto seja fácil de ser entendido. Aparentemente, isso não é um problema para @ jornalista. Faz parte do tipo de postura que el@s têm com a informação e dos mecanismos internos e externos que agem sobre el@s. Entretanto, quando as técnicas do jornalismo são usadas para investigar o passado, os problemas podem ser enormes, desagradando aquel@s que com o uso de outras ferramentas tem o passado como objeto, @s historiador@s. Apesar de @s historiador@s não obterem o monopólio do passado, faz parte de seu metier todos os cuidados necessários para com o uso do passado.
Nº 1 – Ano 2 – Janeiro de 2012
V
“
“(...) nesta altura, já fica claro que responder à pergunta ‘O que é a história’ de modo que ela seja realista está em substituí-la por outra: ‘Para quem é a história?’. Ao fazermos isso, vemos que a história está fadada a ser problemática, pois se trata de termo e um discurso em litígio, com diferentes significados para diferentes grupos. Uns querem uma história asséptica, da qual o conflito e a angústia estejam ausentes; outros, que a história leve à passividade; uns querem que ela expresse um vigoroso individualismo; outros, que proporcione estratégias e táticas para a revolução; outros ainda, que forneça base para a contra-revolução... E por aí vai. É fácil ver que, para um revolucionário, a história só pode ser diferente daquela almejada por um conservador. Também é fácil ver que a lista de usos da história á infinita, tanto pela lógica quanto pela prática. Afinal, que aspecto teria uma história com que todos pudessem concordar de uma vez por todas? (...) No romance de 1984, Orwell escreve que quem controla o presente controla o passado e quem controla o passado controla o futuro. Isso parece ser também provável fora da ficção. Assim, as pessoas no presente necessitam de antecedentes para localizarem-se no agora e legitimarem seu modo de vida atual e futuro. (...)” Keith Jenkins - A História repensada. p. 41
ISSN 2236-5443