Editorial Estamos muito felizes em lançar o terceiro número da Revista Vide História. Fruto de um grande esforço intelectual e físico, este número traz como tema a Mídia. A partir dele, tentamos trazer reflexões que levassem em conta a amplitude, a diversidade e o alcance das Mídias existentes nesse início do Século XXI. Claro, não poderíamos falar de todas, mas procuramos abordar aspectos que pudessem ser vistos nas diversas mídias, de eletrônicas à impressas. Sempre buscando falar de temas relevantes numa perspectiva da História, as discussões apresentadas aqui tentam enfrentar o senso comum e explicitar questões que nos levem a refletir nossa relação com os meios e os conteúdos das mídias que dispomos. Nesse sentido, buscamos explorar algumas questões por meio de artigos, e também atra-vés de imagens e poemas. Enfim, neste número, buscamos refletir e problematizar, incentivando você a uma leitura cada vez mais crítica das mídias, inclusive da nossa. Esse é o momento, aproveite, comece por aqui. Esperamos que você goste. Equipe Vide História
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Nos textos da Vide História utilizaremos o símbolo “@” para substituir as indicações de masculino e feminino quando fizermos generalizações de grupos humanos. Um exemplo: “todos” será escrito “tod@s”. Isso tem o objetivo de contemplar aos diversos gêneros ao mesmo tempo ao invés de considerar o gênero masculino como aquele que generaliza a humanidade.
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Mídia
Índice 4
O que vende a mídia? 6 da tarde “E se...”
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Ou a imaginação no ofício d@ historiador@
Tempestade
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“Criando” o caso
Comunicação de massas e “comoção nacional”
Tirinha
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Por um riso revolucionário 21
A Democracia da TV
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A mídia e as “massas”
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As construções de Caravaggio 32
Vide Sugestão
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Vide História
Mídia
Mídia: Meios Fins
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O que vende a mídia?
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ma empresa sempre vende um produto. Pode ser um serviço ou um bem. De consultoria a sapatos, o que se faz é vender. Porém, o que vendem os veículos de comunicação de massa? Como empresas, eles vendem algum tipo de produto. Mas qual? Podemos rapidamente pensar que eles vendem informações, ou o próprio “meio”, como é o caso dos veículos de comunicação impressos (jornais, revistas, etc), que vendem o “meio” em que estão impressas as informações: os jornais e as revistas propriamente ditos. Mas quando uma empresa vende um produto (ou vários) ela obtém seus lucros dessa operação; porém, sabemos que os veículos de comunicação, de uma maneira geral, não se mantêm exclusivamente pela venda direta de seus “meios”. Então, o que mais eles vendem? Espaço publicitário! Até aqui nenhuma novidade. Mas podemos pensar de outra forma. O que os veículos de comunicação vendem é: “audiência”. Ou melhor: eles vendem leitor@s e expectador@s para seus anunciantes, pois se o veículo tem pouca
audiência, não é interessante para um anunciante comprar um espaço publicitário. Portanto, quanto mais gente comprando ou recebendo o produto do veículo, mais caro fica o espaço publicitário. A conta é simples. Para os veículos impressos, os produtos que disponibilizam ao mercado são tanto o “meio” (para @s leitor@s) quanto a audiência (para os anunciantes). Veículos como as emissoras de televisão e rádio, não vendem o “meio”, mas sim a audiência, pois você não paga para receber o sinal de rádio ou TV (no caso das TV’s abertas). Hoje em dia, é cada vez mais comum os veículos de comunicação, jornais, emissoras de TV, rádios, portais de notícias, dentre outros, terem como fonte de renda a “venda da audiência” na forma de espaço publicitário. Porém, nem sempre os veículos de comunicação tiveram essa forma de “negócio”. Esse modelo foi mais desenvolvido no século XX e toma proporções cada vez maiores nesse novo século, em que a tecnologia permite formas cada vez mais amplas e variadas de se “vender audiência” e disseminar as informações. Durante muito tempo, leia-se desde a invenção do jornal, até o sé-
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Vide História culo XIX, o espaço publicitário passou de nenhum, para modesto. Durante o século XX, e hoje, esse mesmo espaço passou a ser hegemônico. Não no sentido de que os meios de comunicação só veiculam publicidade (ainda que alguns estejam quase nesse nível), mas que o espaço publicitário passou a ter um papel cada vez mais
Exemplo de espaço publicitário junto à título de matéria Reprodução: Jornal O Povo - 23 de outubro de 2012
decisivo dentro do “meio” de comunicação, sendo a principal fonte de renda dos “veículos”. Por exemplo: durante o século XIX, os jornais viviam primordialmente da venda dos exemplares, através da venda avulsa ou por meio de assinaturas, o que diversas vezes possibilitou que muitos periódicos se mantivessem pelo interesse que @s leitor@s tinham nos temas discutidos e nas notícias veiculadas. As ideias feministas, os periódicos envolvi6
dos com o abolicionismo no Brasil, os fascículos operários do início do século XX são alguns exemplos dos que tiveram sua disseminação garantida pela simpatia e contribuição do público leitor com as temáticas abordadas. A venda de audiência ou não existia, ou era um complemento na renda do “veículo”. Já no século XX e nos dias atuais, essa venda passou a tomar o lugar da venda direta do “meio” no quesito retorno financeiro, transformando os “meios” de comunicação em formas de venda de audiência. Isso se deu, inclusive, pela forma com que os investimentos em comunicação, especialmente aos chamados de “massa”, aconteceram no Brasil. Vinculados a grupos privados, e à figuras empresariais – como no caso de Assis Chateaubriand que foi um dos maiores investidores na comunicação no Brasil e criador da primeira emissora de TV brasileira –, beneficiados pela política dos diversos governos (de Vargas aos militares), os “veículos” de comunicação ganharam essa configuração: grandiosos, poderosos e monopolizadores. Assim, para quem o veículo de comunicação produz o seu produto final (jornal, revista, programação de TV)? Para sua audiência, ou para seus anunciantes? Tendo em vista a fonte
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Vide História principal de renda dos “veículos” de comunicação, podemos pensar que é mais importante a venda da audiência do que do “meio” diretamente ao consumidor. Claro que deve haver um equilíbrio nesse processo, pois se um veículo tem pouca audiência, deverá cobrar pouco pela audiência, portanto, deve manter uma audiência satisfatória para garantir que seus anunciantes possam se interessar. Porém, como medir o alcance dos veículos de comunicação para determinar quem pode cobrar mais por uma audiência maior? Os institutos de pesquisas então aí para dar “uma força” aos veículos de comunicação. Diga-se de passagem, alguns deles são dos mesmos grupos empresariais; de maneira que nós, consumidores, não temos como saber se o “veículo” é mais comprometido com seus anunciantes ou conosco. Para, além disso, é importante ter em mente que, no Brasil, o principal anunciante é o setor público, principalmente o Governo Federal e Empresas Estatais, de tal forma que a verba pública para anúncios é gasta, principalmente, nos “veículos” que possuem maior audiência: Grupo Globo, Grupo Folha, Grupo Estado, Grupo Abril, dentre outros. Assim, podemos imaginar
como esses “veículos” se digladiam para obter os gordos recursos publicitários do Estado. E de onde provém a força de um “veículo” de comunicação senão de seu poder perante à sua audiência? Portanto, passamos de consumidores dos produtos midiáticos à fonte do poder político dos principais “veículos” de comunicação. Existe alguma alternativa a tudo isso? As mídias sociais, os blogs, os sítios de mídia independente, são exemplos de “veículos” de comunicação que, pelo menos em teoria, estão postos para uma participação cada vez maior de todos nós: seja dando audiência ou contribuindo. A democratização da internet, e o desenvolvimento das chamadas “mídias alternativas” possibilitam hoje uma subversão da “mão única” das discussões encabeçadas pela grande mídia, fazendo críticas, chacotas, possibilitando outras versões, e muitas vezes, sendo utilizadas como fonte. Felizmente, concomitante aos grandes monopólios, a possibilidade de observar, registrar, significar, narrar e divulgar, passa, cada vez mais, a ser uma ferramenta de conquista de direitos e de cidadania.
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6 da tarde
Deu a hora! Saiu apressado, bateu o ponto, marcou um encontro p’ro dia seguinte, deu uma de ouvinte do velho no ônibus, chegou em casa, pegou a toalha, comeu um biscoito, sentou no sofá e ligou a TV.
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“E se...” Ou a imaginação no ofício d@ historiador@
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“Na experiência cotidiana, em vez de um determinismo absoluto ou de uma pura contingência, verifica-se uma mistura de dosagens variadas que vão da verdadeira previsibilidade à imprevisibilidade, passando por todos os graus do provável e do possível.” Paul Lacombe
uando estou às vésperas de uma viagem, sempre vem aquele frio na barriga, aquela ansiedade, aquela atenção redobrada. Quem pode prever como será uma viagem? Será boa? Haverá algum contratempo? Por mais bem organizado que eu esteja, sempre há a possibilidade de esquecer algo importante, sempre há a possibilidade de acontecer algum acidente. Mas não pense, leitor@, que sou do tipo pessimista. Não. A imprevisibilidade nos vem para o bem e para o mal. E se alguém interessante aparecer? Se eu puder fazer algo que sempre quis fazer e nunca tive a oportunidade? São possibilidades. Viagens são sempre carregadas desse clima de incerteza e é por isso que são tão enriquecedoras e divertidas. Pois bem, esta imprevisibilidade é sentida com um pouco mais de força justamente quando estamos numa situação de distanciamento do nosso cotidiano. É claro que todo dia sofremos com os imprevistos, bons e
maus, mas, mesmo assim, quando estamos num ambiente que nos é familiar, temos uma impressão mais forte de segurança, como se tudo estivesse sob controle. Conhecemos bem os lugares pelos quais circulamos, as ruas mais perigosas do nosso bairro, os desníveis ou buracos nas calçadas da vizinhança, o batente mais alto daquela padaria... As situações parecem ser mais calculáveis, os “acidentes” parecem ser mais evitáveis, e, se vierem a acontecer, mais facilmente resolvíveis. É o conforto da previsibilidade. Acontece que, muitas vezes, mesmo não estando em um ambiente estranho, somos repentinamente retirados do nosso conforto. Algo não calculado acontece e, no momento seguinte ao choque do acidente, nos encontramos, pasmos, recalculando tudo. O que havia ficado fora da conta naquele instante? O que nos havia fugido aos olhos e ouvidos? Assim que encontramos este fator surpreendente, o batizamos: Causa. Para discutir esta questão das
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Vide História causas, o historiador Marc Bloch, no livro Apologia da História, supõe um acidente fatal: um homem que anda por um atalho de montanha, tropeça e cai de um precipício. Qual a causa dessa morte acidental? Qual o fator inesperado na situação? A resposta poderia ser simples: o tropeço. Se ele não tivesse tropeçado, não teria morrido. Mas a questão das causas é um pouco mais complicada do que isso porque a realidade possui uma complexidade extraordinária. Segundo Marc Bloch “A realidade nos apresenta uma quantidade quase infinita de linhas de força, todas convergindo para o mesmo fenômeno.” Assim, desde a gravidade da terra (sem a qual não haveria a queda) e as movimentações geológicas (que fizeram aparecer o precipício), até o motivo, talvez econômico, político, ou médico, que o fez pegar aquele atalho naquele dia e tropeçar naquela pedra, empurrada para ali dias antes por um@ transeunte despretensios@, são fatores que exerceram influência para que o acidente acontecesse. @s químic@s sabem que sempre que juntarem o elemento A com o elemento B, num mesmo ambiente, nas mesmas condições, em quantidades exatas, sempre obterão o resultado C. Já @s observador@s e analistas de situações e processos sociais e culturais, não podem ter tanta certeza assim. A desafortunada personagem de Marc Bloch, numa estra10
da percorrida por muit@s, foi a única a cair no precipício. Vári@s estiveram sob as mesmas influências - a gravidade, o precipício, a pedra no caminho e tudo o mais – e saíram iles@s. Todos os fatores foram absolutamente necessários para que a situação se desse da forma que se deu, mas, mesmo agindo todos juntos, não determinaram de forma absoluta o resultado final. A personagem poderia, assim como tod@s @s outr@s que passaram por ali, ter sobrevivido. Poderia, mas não sobreviveu. E aí é que está o interessante. Para entender o acontecimento, no caso a queda, acabamos por pensar nas diversas possibilidades que estavam postas naquele contexto. Foi neste sentido que o historiador francês Antoine Prost lançou a questão: “Será possível compreender porque as coisas aconteceram dessa forma, sem nos perguntar se elas poderiam ter ocorrido de outro modo?” Ou seja, é possível chegar a alguma conclusão sem recorrer à imaginação? Era justamente sobre essa operação imaginativa que eu falava mais a cima quando afirmei que no momento seguinte ao choque do acidente, nos encontramos, pasmos, recalculando tudo. Este recalcular é o confronto entre o que aconteceu e o que poderia/deveria ter acontecido, e são justamente os pontos de divergência entre estas duas realida-
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Vide História des que chamamos de causas. E se a pedra não estivesse lá? E se não houvesse motivos para percorrer aquele caminho naquele dia? E se não houvesse uma montanha entre o ponto de partida e o de chegada? E se... E se... E se... A Superinteressante, uma revista muito conhecida e bastante lida, principalmente pelo público mais jovem, mantém há alguns anos uma coluna justamente com este nome: “E se...”.
artigo de maio de 2011 “E se os impostos não existissem?”, no qual se afirma que “O pessoal faria justiça com as próprias mãos. Pena de morte e castigos físicos seriam corriqueiros, já que faltaria dinheiro para manter cadeias.”. Há nesses artigos um uso da história bem interessante de se analisar. Embora não sejam historiador@s, o objeto dest@s escritor@s é o mesmo: o passado e o presente de
“@s historiador@s tem por ofício desnaturalizar as experiências e representações socioculturais” É uma coluna que tem como objetivo a construção teórica de um presente diferente do nosso, um presente modificado por uma alteração hipotética do passado. Por exemplo, há um artigo da revista de Junho de 2011 que tem como titulo “E se Tancredo não tivesse morrido?”. Segundo o autor desse artigo, se o ex-presidente não houvesse morrido, o Brasil e @s brasileir@s estariam numa situação bem diferente: “A família brasileira teria a tão sonhada casa própria e andaria de Gurgel.”; “Lula teria assistido de longe à visita de Obama ao Brasil.”; “Sarney teria mais tempo para se dedicar à sua outra carreira: a literária.”; etc. Outros artigos também trazem afirmações no mínimo curiosas, como o
sociedades humanas. Pressupor que a historia não necessariamente segue um único caminho, que poderia ter seguido outros, é o que dá sentido à estes artigos e é também o que dá sentido à uma parte considerável dos trabalhos dos atuais “historiadores de ofício”. Porém, é importante notar que algumas diferenças são gigantescas. Por exemplo, @s historiador@s tem por ofício desnaturalizar as experiências e representações socioculturais. Pensar que não necessariamente as coisas deveriam ter acontecido da maneira que aconteceram, e que não somos hoje, nem nunca fomos, o resultado de um processo completamente inevitável, é se distanciar de uma visão determinista da história.
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Vide História Em boa parte dos artigos da Superinteressante a visão é consideravelmente diferente. Lendo-os, ficamos com a impressão de que, já que a tal mudança hipotética não aconteceu de verdade, a realidade hoje é exatamente como deveria ser, as coisas se processaram exatamente como deveriam se processar. Inclusive os resultados das mudanças hipotéticas imaginadas na revista, são determinadas por uma única causa, uma única mudança. A postura determinista neles, não é suprimida por esta operação imaginativa. Outra questão é que nos trabalhos historiográficos, salvo em raríssimas obras, não se faz predições nem se constrói realidades inteiras como nos artigos da Superinteressante. Como eu tentei explicar no início do texto, a questão das causas é muito complexa. Muitas forças atuam na construção de um acontecimento simples. A possibilidade de alguém conseguir pensar em todas essas forças ao mesmo tempo e compreender o que elas produziriam, é um trabalho que beira o absurdo. As realidades construídas nos artigos “E se...” ignoram essas milhares de outras forças atuantes. Por exemplo, a nossa relação com a morte e com a pena de morte e a nossa aversão à sua completa normalização, é resultado de processos socioculturais e
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subjetivos supercomplexos, que incidem em milhares de outras questões culturais, sociais, políticas e econômicas de nossa realidade. Estes artigos da Superinteressante fazem uma operação semelhante à do químico que eu falava mais acima, pensando os processos históricos enquanto uma cadeia de ações e reações quantificáveis e reproduzíveis. @s historiador@s tem que fazer o caminho precisamente inverso: olhar o “resultado” já finalizado e depois procurar pelos elementos constitutivos desse acontecimento. A Superinteressante é um veículo de informação importante para o público mais jovem há décadas e gera interesse justamente por trazer um conhecimento científico num formato mais acessível. Mas é de se questionar que, no esforço de simplificar a comunicação com o público, se prejudique a qualidade desse conhecimento. Não busco aqui deslegitimar os esforços e as tentativas dos indivíduos não profissionalizados na área da História de produzir conhecimentos sobre o passado. O uso da história por não historiadores é completamente válido, porém há o problema do uso mal feito e até irresponsável de certas operações científicas.
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Tempestade
A correnteza é poderosa. Desocupados, cheios do que fazer, sobem e descem milhares de vezes, navegando e reclamando, embasbacados com a própria fraqueza. Acorrentados aos assentos, presos pelos olhos e pelos ouvidos, assistem e alimentam o caos violento, tentando ser alguma coisa, sabe-se lá para quem...
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“Criando” o caso Comunicação de massa e “comoção nacional”
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“O próprio do acontecimento moderno encontra-se no seu desenvolvimento numa cena imediatamente pública, em não estar jamais sem repórter-espectador nem espectador-repórter, em ser visto se fazendo, e esse “voyerismo” dá à atualidade tanto sua especificidade com relação à História quanto seu perfume já histórico.” Pierre Nora
o mundo em que temos cada vez mais sofisticadas formas de comunicação, é muito comum nos depararmos com a ideia de que os veículos de comunicação, principalmente os de massa, possuem uma influência em nossa sociedade que lhes tornam capazes de eleger políticos, condenar suspeitos, indicar a moda, etc. Cada vez mais, temos a impressão de que a mídia pode fazer o que quiser. Essa sensação é uma característica do nosso tempo (leiase séculos XX e XXI), pois temos que lidar cada vez mais com um número enorme de veículos e de meios de comunicação que nos trazem uma enxurrada de novas informações, em “tempo real”. Assim, é fato que a mídia de uma forma geral possui um grande poder, pois ela possui os meios para levar à maioria de nós informações e ideias que utilizamos diariamente. 14
Porém, me parece algo pretensioso entendê-la como uma força que nos torna literalmente, desculpe a ambiguidade, expectadores. Será que não somos mais capazes de decidir com base em outros referenciais que não aqueles disponíveis ou propagados na mídia? Será que as referências que nos chegam através dela são completamente assimiladas por nós, sem sofrer nenhum tipo de influência das ideias que já possuímos? Penso não ser possível responder afirmativamente à primeira pergunta. Como seres culturais, possuímos um repertório imenso de referências que nos servem para tomar decisões, construir ideias de certo e errado, formar uma identidade cultural, etc. Não somos uma folha em branco onde se pode escrever o que quiser. E por isso também não podemos responder sim ao segundo questionamento, pois
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Vide História não sendo uma folha em branco, as ideias e referências que nos chegam por meios da mídia são confrontados com as ideais e referências préexistentes em nós. É preciso admitir, porém, que apesar de não sermos uma folha em branco, também não somos um diamante, de difícil lapidação, por isso retemos uma série de novas ideias e referências que vem da mídia, mas que são fixadas de formas diferentes, pois precisam “dialogar” com as que já temos. Uma série de exemplos recentes pode ser evocada para alimentar esses questionamentos. O caso Nardoni é um exemplo extremo. Ficamos boquiabertos com a forma como a mídia divulgou o caso: em uma série intensa de matérias, a mídia passou a tentar identificar os “porquês” e “comos” do evento. A imprensa agia como se ela tivesse o papel de trazer ao “júri” popular os elementos necessários para o julgamento, como se esse papel não fosse restrito aos órgãos da justiça (polícia e sistema judiciário Para além da resolução do caso, que é trabalho da justiça (apesar de bastante influenciada pela “comoção nacional” e o apelo das empresas de informação) o que importa para este texto é a repercussão que o caso obtém na mídia de uma forma geral. Numa rápida busca pelo sobrenome “Nardoni” no
Acervo Online da Folha de São Paulo, é possível dimensionar o número de resultados que se obtém desde 29 de março de 2008, o dia em que o caso ocorreu. Somente no mês de abril de 2008, temos 121 páginas em que o sobrenome Nardoni aparece, não computadas as repetições. Depois disso, são poucos os meses em que não é veiculada nenhuma notícia acerca do caso. A partir dessas constatações, podemos pensar sobre esse caso, que é apenas um exemplo dentro de muitos outros que mostram a ação da mídia em casos de “comoção nacional”. Temos, grosseiramente, duas possibilidades de explicação, cada uma com suas nuances: 1º- a mídia criou o caso Isabella Nardoni para obter mais audiência; 2º - a sociedade tem interesse nesse tipo de notícia e a mídia fez apenas o papel de informadora da sociedade. Porém, para esse texto, as duas possibilidades serão entendidas como parte de um todo mais ou menos homogêneo. Como dito anteriormente, elas foram grosseiramente divididas, pois são parte de um mesmo processo e só podem ser classificadas sob o risco da grosseria, pois apesar da produção das notícias estar diretamente ligada ao que terá mais audiência, a predileção do público por determinados temas também está ligada ao que
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Reprodução: Jornal Folha de São Paulo - 31 de março de 20
é regularmente veiculado, ou àquilo que é considerado excepcional (como o caso Nardoni), de forma que elas ocorrem e se influenciam mutuamente. A divisão posta anteriormente serve mais a uma explicação didática do que propriamente a uma visão exata do processo. Podemos identificar os aspectos que representam essas possibilidades em diversos momentos da repercussão do caso na mídia. Observando o volume de notícias e algumas informações logo nas primeiras matérias, podemos perceber a “criação” do caso pela imprensa, quando diariamente noticia o trabalho da polícia e faz a divulgação das hipóteses levantadas pela investigação. A primeira matéria da Folha de São Paulo saiu dia 31 de março de 2008, com o título “Menina morre após cair de prédio em SP”, ocupando meia página e dividindo o espaço com uma propaganda, no caderno Cotidiano. O jornal apenas informa o ocorrido e explicita as primeiras versões, divulgadas pela polícia. No dia seguinte, já aparece na primeira página, com o título “Menina achada morta em SP foi asfixiada, 16
indicam exames”, porém sem muito destaque, pois aparece na forma de uma chamada para uma matéria e duas notícias sobre o caso, desta vez, ocupando praticamente toda a página 3 do caderno Cotidiano. A matéria principal apresenta uma foto da menina com a mãe e um “infográfico” com a versão do pai de Isabella sobre o fato. As outras duas notícias dão conta da delegada que chamou o pai da criança de assassino (com o título “Na saída do DP, delegada chama pai de me-
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008.
nina de ‘assassino’) e outra da defesa, por parte do avô e da mãe, aos acusados. Nos dias seguintes, foram divulgadas uma enxurrada de matérias sobre o caso, além de várias sobre a vida pregressa do pai. Apenas com os primeiros dias de notícias, é possível identificar que o jornal Folha de São Paulo deu bastante ênfase ao caso, dedicando boa parte do seu caderno Cotidiano, apresentando as diversas versões sobre o ocorrido, dando destaque especial às suspeitas contra o pai e
a madrasta e as ações da população em geral contra os acusados. É interessante notar que o caso jornalístico começa com uma notícia cuja forma parece ser mais uma nota sobre um incidente fatal (menina morrer ao cair de prédio), passa a ser um exemplo da violência da nossa sociedade, e depois, provavelmente com a “comoção nacional”, torna-se um caso de violência brutal contra um ser indefeso, um exemplo de desumanidade. Então, o jornal parece entender que deve dar mais atenção e divulgar cada vez mais informações, sejam diretamente ligadas ao caso ou sobre a vida pregressa do pai e da madrasta. Notícias como a veiculada na página 4 do caderno Cotidiano do dia 4 de abril de 2008, mostram uma tendência do jornal a criar possíveis respostas para confirmar as acusações contra o pai de Isabella, a notícia se intitula “Bancado pelo pai, Nardoni queria ser policial”. Aqui podemos ver o jornal mostrando a índole do acusado sob a ótica de vizinhos e conhecidos, que o caracterizavam como “playboy simpático”, “briguento”, “mal pagador”,
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Vide História etc. De tal maneira, que um indivíduo com esses “atributos” facilmente poderia ser identificado com uma pessoa capaz de cometer o crime de que era acusado. Assim, é possível perceber a forma como o jornal constrói os culpados da morte da criança, desprezando inclusive informações divulgadas pelo próprio jornal de divergências nas períReprodução: Jornal Folha de São Paulo - 4 de abril de 2008. cias, dentre outras. Não quero aqui afirmar que caso foi divulgado: levado pelas ina mídia condenou os acusados, mas vestigações policiais, pelo posicioquero deixar claro alguns aspectos namento do jornal e pela “comoção” que ajudam a explicar a repercussão da opinião pública. que o caso teve nacionalmente. Não O caso Isabella Nardoni é um posso descartar, inclusive, a influêngrande exemplo de como os meios cia da “opinião pública” sobre os de comunicação de massa tem formeios de comunicação, neste caso a ça para divulgar ideias e, ao mesmo Folha de São Paulo, para indicar um tempo, é o espaço em que o repercaminho a ser seguido pelas reportório cultural da sociedade aparece, tagens, criando uma espécie de “faprincipalmente aqueles aspectos lar o que as pessoas querem ouvir”. que são mais difundidos entre as diIdentificar o pai como mal pagador, versas posições socioeconômicas: por exemplo, é um recurso que cria a honra dos compromissos, o lugar uma repulsa moral da população primordial da família, a fragilidade em geral para com ele, dialogando das crianças, o horror à violência, o com a concepção de moralidade e preconceito com o diferente, o comde hombridade difundido na nossa portamento moral. Ao mesmo temcultura. Como se alguém que não po em que o jornal informa o caso, honra seus compromissos fosse cacria opiniões sobre ele, indica respaz de matar outra pessoa. Assim o postas e culpados. 18
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Exemplos como o tratado neste texto nos mostram o papel cada vez maior que possui a mídia de massas no nosso cotidiano. Ela tem a força de trazer ao nosso dia a dia casos que, talvez, nunca teríamos contato de outra forma, e que acabam por nos entrelaçar socialmente, seja emitindo opiniões sobre o caso, seja indo protestar em frente ao Fórum onde ocorre o julgamento, etc. Da mesma forma, ela dialoga com nossos anseios, preconceitos, religiões e posicionamentos políticos, pois de outra forma não conseguiria nos comover ou nos instigar a querer obter
mais informações. Por fim, é importante que tenhamos claro que esse processo de produção da informação que leva em consideração e que, ao mesmo tempo, forma a opinião pública, tem a força de produzir os acontecimentos, que acabam por tornaremse históricos quando entram no repertório da memória e da história coletiva. Casos mais recentes como o dito mensalão, por exemplo, nos permitem ver como a história é construída nas páginas dos jornais, na tela das TV’s e computadores, nos sons do rádio. Cada vez mais estamos diante da história no seu fazer-se, somos testemunhas dos acontecimentos que a formam. A história contemporânea é marcada pela figura do repórter e da testemunha, ou seja, pela mídia e seus expectadores, nós, transformados imediatamente em testemunhas. Podemos dizer sobre um caso veiculado na imprensa: eu me lembro, ou eu estava lá.
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Tirinha Por André Dahmer
www.malvados.com.br
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Por um riso revolucionário Por Cintia Lima Crescêncio
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riso habitual é insosso e o riso constante é insano, afirmava o poeta Victor Hugo no século XIX. Hoje, cabe a pergunta: seria o riso da contemporaneidade insosso e insano? Em tempos de exaltação do que se convencionou chamar de politicamente correto, paralelo a uma curiosa emergência e afirmação do stand up comedy no Brasil, esse questionamento parece pertinente. Enquanto a vigilância moral condena piadas com pessoas pobres, negras, indígenas, homossexuais, entre muitas outras, essa modalidade da comédia, que vem se fortalecendo no país há alguns anos, tem eleito como principal alvo de zombaria esses mesmos sujeitos que o politicamente correto tem procurado poupar. As mulheres, um dos principais alvos desse tipo de humor, merecem destaque, visto que, não só ocupam poucos espaços profissionais nesse meio, como são o objeto preferido de zombaria. A disputa, de ordem discursiva, visto que o que está em jogo não é apenas a abordagem, mas principalmente a linguagem, se estabelece em um ter-
reno imerso nos conflitos e nos argumentos duais. Se as pessoas defensoras do politicamente correto afirmam que a linguagem violenta, comediantes de stand up afirmam que fazer rir é um direito e que as piadas não devem ser levadas a sério, pois são apenas brincadeiras. Afastada desse debate que envolve os mais diferentes níveis da mídia, a disciplina história, de maneira geral, tem mantido relativa distância do riso ou de tudo que faz rir na sua constituição, seja na produção acadêmica, que tem circulação mais limitada, seja na produção de livros didáticos ou paradidáticos, estes sim de ampla circulação. Com exceção das charges e tirinhas que frequentemente ilustram episódios considerados históricos nos livros distribuídos nas escolas, o riso como tema a ser debatido pela história ainda é uma conquista a ser angariada. No duelo sério versus cômico, um binarismo que precisa ser repensado, a história assumiu o lado do sério e não tem dado muita atenção ao riso, este que promove desconforto, reflexão, indignação e, principalmente, reação.
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Vide História car o politicamente correto poupando sujeitos que sempre foram alvo da zombaria e do desrespeito sob a justificativa do humor, enquanto as mulheres são mantidas como objeto privilegiado de chacota? Alguns dos melhores exemplos para refletir sobre a ambivalência do riso, e sobre o papel desempenhado pelas mulheres em sua produção, podem ser enReprodução: ZIRALDO. O Pasquim, n. 588, 3 a 9 out. 1980, p. 8 contrados em charges e tirinhas que circularam durante as Diante disso, nesse texto predécadas de 1970 e 1980 em publicatendo refletir sobre o riso, tão conções brasileiras. Essas décadas, martroverso, e tão potencialmente subcadas pela violência da ditadura, mas versor e, principalmente, sobre as também pela emergência dos movimulheres e sua relação com o cômico mentos feministas no Brasil, tiveram que, historicamente, tem se construína imprensa alternativa e, eventualdo de maneira desigual. Se elas semmente, na grande imprensa, uma das pre foram o alvo preferido de piadas principais formas de divulgação de e charges desde o século XIX, quando ideias, seja de contestação, ou mesjornais publicizavam e ironizavam as mo de reforço de modelos. demandas do dito sexo frágil, elas A história da imprensa retambém estiveram afastadas dos monta ao século XV que teve na figmodos de fazer rir, isto é, da arte da ura de Johannes Guttenberg um dos caricatura, da comédia, da produção seus principais expoentes. Já no séde charges e tirinhas, um monopólio culo XVIII o processo de impressão masculino, com raríssimas exceções. móvel desenvolvido pelo alemão foi As mulheres seriam, portanto, incaaperfeiçoado e a técnica passou a ser pazes de fazer rir? Excluindo-se o “taexplorada para a impressão dos prilento” feminino na arte de ser alvo de meiros jornais. No Brasil a difusão da deboche, seriam elas essencialmente imprensa começou no século XIX, senmal-humoradas? Ainda, como expli22
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Vide História do que o período do Brasil República é demarcado como de forte ascensão na proliferação de jornais. É também no final do século XIX que as charges são difundidas como instrumento válido de reflexão política, sendo os jornais do período o seu principal meio de divulgação. O riso, portanto, foi explorado como ferramenta jornalística desde o século XIX. O final do século XIX e as primeiras décadas do século XX foram marcadas pela proliferação de jornais que, de maneira geral, tinham
sua vinculação política estampada logo abaixo do seu título. A pretensão de neutralidade e de imparcialidade prometida pela imprensa contemporânea, assim, foi um elemento que se construiu ao longo da história. Jornais operários, anarquistas e religiosos também circulavam nessas primeiras décadas do século. Nesse mesmo período emergia o que se convencionou chamar de 1ª onda feminista, movimento caracterizado pela reivindicação de direitos civis para as mulheres, dentre eles o di-
Reprodução: CIÇA. Brasil Mulher. Edição 11, 1978. P.11.
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Vide História Sexo (1862), Sexo Feminino (1863), A Voz Feminina (1901), O Nosso Jornal (1919) e O Voto Feminino (1929). Já depois da metade do século XX, entre as décadas de 1960 e 1970, a imprensa brasileira enfrentou novos desafios. O golpe de 1964 e o posterior Ato Institucional Número 5 obrigou jornalistas, jornais e revistas a se reinventarem, ocasionando a criação do que se convencionou Reprodução: ANGELI. Nós Mulheres. Março-Abril de 1987, edição 4, p. 5 chamar de imprensa alreito ao voto. O movimento, comternativa, chamada na época de impposto basicamente por mulheres rensa democrática. A imprensa alterde alto poder aquisitivo, foi um dos nativa foi criada com o objetivo maior principais alvos de deboche dessa imde se opor ao regime ditatorial civilprensa que, assim como a sociedade militar caracterizado pela opressão e civil, defrontava-se com o abuso da pela violência. existência de um grupo de mulheres Defensoras da democracia, organizadas exigindo a ampliação de as pessoas integrantes dessa imprendireitos. As “sufragetes”, como ficasa buscaram combater o conservaram conhecidas, foram alvo de piadas dorismo da classe dirigente daquele que questionavam suas sexualidades, momento. Jornais como O Pasquim suas vidas amorosas, enfim, os moti(1969), O Movimento (1975), entre vos que as levavam a movimentar-se muitos outros, tomaram para si a resde forma organizada e combatente. ponsabilidade de questionar e ridicuEssas mulheres, que tinham como larizar a situação política, econômica bandeira principal o voto feminino, e social do país. Os jornais alternatitambém exploraram a imprensa para vos, em sua maioria, sobreviviam de divulgar sua causa. Dentre os jornais assinaturas e circulavam de maneira dirigidos por mulheres que tinham o clandestina, ou seja, não tinham ausufrágio como mote, destaco: O Bello torização para serem vendidos. 24
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Vide História Diferentemente da grande cionários, sem objetivo de gerar lucro imprensa, sustentada pela publipropriamente, buscando apenas gacidade, muitas vezes bancada pelo rantir a publicação de seus próximos governo, a imprensa alternativa pronúmeros. curou manter-se alheia às amarras da O riso, e mais especificalegalidade. Entretanto, é importante mente, o riso que tinha como alvo as demarcar que as mesmas pessoas mulheres, nesses dois casos, não foi que integravam a grande imprensa nada generoso com as causas femifaziam parte da imprensa alternativa, nistas desse período, notadamente encontrando, talvez, nos jornais de nomeadas de 2ª onda feminista. As oposição, a liberdade editorial memulheres da 2ª onda lutavam pelo nos viável em jornais e revistas de direito ao corpo, ao prazer, a salários grande circulação que eram, em últijustos, pela valorização do trabalho ma análise, empresas que visavam o doméstico. Enquanto isso a imprensa acúmulo de capital. Millôr Fernandes, alternativa, profundamente sexista, por exemplo, colunista de humor da ocupava-se de ridicularizar um movirevista Veja (1968) por mais de uma mento social que, assim como seus indécada, entre os anos 1970 e 1980, foi tegrantes, não queriam nada além de um dos fundadores do alternativo O construir uma sociedade igualitária, Pasquim. justa e democrática. O progressismo Tr a d i c i o n a l mente a história da imprensa recente no Brasil costuma ser dividida nessas duas perspectivas: a existência de uma grande imprensa financiada por grandes empresários e mais atrelada às exigências governamentais; e a proliferação da imprensa alternativa, composta em grande parte por intelectuais de esquerda, por sindicalistas, por revolucionárias e por revoluReprodução: MILLÔR. Veja. São Paulo, Abril. n. 609, 7 mai. 1980, p.13. Nº 3 – Ano 2 – Novembro de 2012
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Reprodução: CIÇA. Mulherio. Junho-Julho de 1981, edição 2. p. 12.
da imprensa alternativa esbarrava em um machismo extremado que não poupava as feministas e os movimentos dos quais elas faziam parte. A grande imprensa, quando não cerrava os olhos para a causa feminista, servia também de meio difusor de estereótipos que apontava as feministas como mulheres feias, lésbicas e mal-amadas. As mulheres que se identificavam com a causa, portanto, encontravam-se envoltas no conservadorismo do regime, no conservadorismo dos integrantes da imprensa alternativa e no conservadorismo da própria sociedade civil, ainda muito resistente àquele movimento. Charges e tirinhas produzidas por Ziraldo, Henfil, Jaguar, alguns dos principais nomes da charge ainda hoje, circulavam tanto na grande im-
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prensa, quanto na imprensa alternativa, ridicularizando o feminismo, reforçando as mulheres como objetos sexuais, elaborando um chamado às mulheres que se sentiam tocadas pelo feminismo para serem novamente recolhidas ao lar. A zombaria, no seu aspecto mais perverso, era acionada na desqualificação dos movimentos feministas do período. Mas as feministas assistiram a esses eventos negando o direito ao riso? Não, muito pelo contrário. Embora a historiografia tradicional da imprensa afirme considerar a imprensa feminista como integrante do que se convencionou chamar de imprensa alternativa, ela tem dado pouco valor ao significado das publicações feministas no período. Entre as décadas de 60 e 90 estima-se
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que mais de 70 periódicos feministas circularam no Brasil e, alguns deles, chegaram a manter uma coluna periódica de humor. Em periódicos alternativos feministas, como o Brasil Mulher (1975), o Nós Mulheres (1976), o Mulherio (1981), o riso assumiu o seu caráter subversor e revolucionário. Nas páginas desses periódicos, charges e tirinhas com traços profissionais, como os assinados por Ciça, uma das poucas mulheres no ramo, bem como desenhos simples, muitas vezes sem autoria, o riso foi acionado com o objetivo de denunciar a violência doméstica, a desigualdade sala-
rial, o desrespeito ao corpo, a dupla jornada de trabalho. Nos periódicos feministas o riso não reforçava modelos, celebrava a revolução. Hoje a insanidade do nosso riso tem anulado seu potencial subversor e contestador. A prevalência do riso que fere, em detrimento do riso que faz refletir, tem nos guiado em direção a uma cegueira política e social aliada a um desespero que descamba na exaltação do politicamente correto. É tempo sim de refletirmos sobre os desdobramentos da piada e da chacota na constituição de subjetividades, bem como na própria valorização e legitimação de movimentos sociais, contudo, também é tempo de nos apropriarmos do riso como arma revolucionária capaz de desestabilizar machistas, racistas, homofóbicos. Charges e tirinhas, com cores, traços simples e diálogos rápidos, são um meio privilegiado de reflexão e os jornais, assim como as revistas, são juntamente à internet um dos seus principais difusores. É tempo de fazer rir, mas também é tempo de ponderar e de explorar os diferentes usos do riso e de seus difusores.
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A Democracia da TV Maria, cê já foi votar? Não, votei não, nem vô votar! Mas mulher de Deus, tem que votar..... Cê num viu a mulher na televisão falando que é votando que a gente muda as coisas? Que nós somo cidadão.. num sei quê...
Pois olhe..., um dia eles dizem que os políticos são ladrão, que são chei das falcatrua, dos esquemas e das máfias, e depois querem que a gente vote neles de novo?!?! Num gosto disso não. Tô cansada dessas ladroage ....
Aí depois você fica reclamando... se num vai votar, então depois não pode dizer nada...
Mulher, deixe de besteira....eles dizem que a gente tem que votar nos candidatos pra fazerem as coisas pela gente, e depois mandam a gente fiscalizar os afazeres dos candidatos.... Depois eles roubam a gente, a culpa ainda é nossa, que num vota direito, que num vai atrás...Se eu tivesse tempo pra tá fiscalizando político, eu mesma ia lá e dava minha opinião das coisas e pronto! Quando o pessoal num gosta do que eles tão fazendo, e vai lá falar mal, fazer aqueles protesto, levam tudo porrada, eles tudo acham ruim.... Caio mais nessa não besta! Diz isso não mulher, tem sempre os que são bomzim...! E tem? Onde é que eles tão, que eu ainda num vi? Na televisão, né?!? Só se for... porque na televisão tudo é lindo... todo mundo tem direito a um mundo perfeito... depois...vai cobrar o mundo perfeito pra vê o que você ganha? Muita chibata!!!!
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A mídia e as “massas”
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primeira transmissão radiofônica no Brasil se deu em 7 de abril de 1922. Em pouquíssimo tempo essa mídia alcançou seu auge e marcou uma época, a camada “era do rádio”. Por décadas, era principalmente por esta mídia que se acompanhavam as questões políticas nacionais e internacionais, as notícias das guerras, etc. Também por ela, se consolidaram vári@s artistas - vozes influentes, que animavam o dia e a noite das pessoas em suas casas. Quem também se aproveitou das vantagens deste meio foi o “Estado Novo”, que sob a astúcia de Getúlio Vargas, se comunicou quase que diariamente com as “massas”. Com a chegada da televisão, aos poucos o rádio foi perdendo espaço, mas até hoje ele ainda resiste, inclusive se apropriando de espaços como o da internet. O desenvolvimento do computador e a criação da internet marcam outra etapa desse processo. Diferente das outras mídias, a internet tem um potencial democrático sem precedentes, diversificando e abrangendo outras mídias, tornandose no que hoje é chamado de “mídia convergente”, ou seja, aquela que
faz migrar e tornar quase dependes as outras mídias (jornais, revistas, rádios, tv’s). Se no rádio e na televisão, as “massas” foram pensadas e tratadas quase que exclusivamente como receptoras, na internet @s usuári@s podem intervir nas noticias e até reagir contra as manipulações no espaço midiático. Por isso mesmo, a internet se tornou um dos maiores espaços para intervenção política. Nela, os mecanismos de comunicações são descentralizados, fazendo com que o público também seja promotor e divulgador de notícias. Essa ampliação vem possibilitando grandes intervenções na vida política de nações do mundo todo. E é sobre esse assunto que eu quero tratar. Em dezembro de 2010 e nos primeiros meses de 2011, uma onda de manifestações abalou vários países árabes, sobretudo a Tunísia, a Síria e o Egito. A “primavera árabe”, nome dado a este período de manifestações, marcou a história política desses países (e do mundo). Nele, as ruas e praças foram recuperadas como lugares políticos e o povo manifestou publicamente sua indignação frente aos governos autoritários
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Reprodução: Placa: Obrigado Facebook. Egito, 2011.
e ditatoriais. O que quero destacar nesses acontecimentos é a utilização da internet e das mídias sociais (Facebook e Twitter). Se no memorável maio de 1968 os jornais e os panfletos foram decisivos para a promoção e divulgação das ideias democráticas e revolucionárias, hoje essas mídias não dão conta das exigências de uma comunicação que funcione em tempo real e tenha um alcance que vá além do bairro, da cidade, do país e do continente. Na Tunísia, onde começaram as manifestações, as ruas foram ocupadas para exigir a queda do presidente Zine el Abidine Bem Ali, que estava no poder há 23 anos. Os protestos ganharam força com a notícia da morte do vendedor de verduras tunisiano Mohamed Bouazizi, que se suicidou em protesto ao governo. Es30
sas e outras notícias foram divulgadas pelo analista político dos Emirados Árabes Unidos, Sultam Al Qassemi, que se tornou uma das principais referências sobre as revoltas na Tunísia e também no Egito. Pelo papel na divulgação desses acontecimentos, Al Qassemi foi eleito um@ d@s tuíteir@s mais influentes do mundo pela revista Time. No Egito, as revoltas se deram principalmente na Praça Tahrir, no Cairo, e as reivindicações eram por melhores condições de vida (moradia, emprego, melhores salários, liberdade) e pelo fim dos trinta anos de governo de Hosni Mubarak. Na maior das manifestações, mais de 1 milhão de pessoas ocuparam a Praça Tahrir, mobilizadas a partir das mídias sociais. No Egito, os serviços das operadoras de celular foram limitados e a internet bloqueada pelo Governo, que percebeu rápido a importância destes meios para os movimentos de contestação. Mesmo com dificuldades, a população continuou usando a internet como espaço de mobilização e divulgação das reivindicações na Tunísia, no Egito e também na Síria,
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Vide História contra o governo de Bashar al-Assad, e na Líbia, contra Muammar Khadafi. O Twitter e o Facebook promovem a circulação de informações produzidas de forma descentralizada que, em teoria, não estão restritas às barreiras territoriais das nações. Mas, como explica muito bem o filósofo esloveno Slavoj Žižec, por mais poderosas que sejam essas empresas, elas ainda não possuem forças suficiente para lidar com a pressão política de alguns Governos e acabam por se tornar armas potenciais contra su@s própri@s usuári@s. Os governos, principalmente os não democráticos, se interessam cada vez mais pela internet, pela quantidade de informações armazenadas nos sites de busca e redes sociais, e também pela possibilidade de controle sobre a comunicação entre os cidadãos. Além disso, é preciso chamar atenção para os mecanismos internos de controle e repressão nas redes
sociais, porque ela é mais um espaço social, munida de regras morais, criadas e gerenciadas por pouc@s. Dessa forma, não pode ser entendido com um espaço neutro. Não nos esqueçamos também que as mídias sociais são alvo das maiores agências de segurança (Interpol, CIA e FBI). Este espaço é cada vez mais mapeado e controlado. Mas a internet ainda é a mídia que oferece mais condições de manifestações democráticas, mesmo com o Facebook e Twitter. O uso dessas mídias se tornou um dos principais mecanismos de mobilização e comunicação, e por isso mesmo alvo de interesses diversos, tanto pelo público, quanto pelo Estado. Podemos até questionar os usos e a finalidade da internet, e das mídias sociais, mas é indiscutível a sua influência nas sociedades atuais.
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INDICAÇÕES: - Livro: Slavoj Zizek - Primeiro como tragédia, depois como farsa (Boitempo Editorial, 2011). - Especial Primavera Árabe (TV Cultura): http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=KOm2JhmbnI&noredirect=1 - Matéria: http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/18943/redes+sociais+foram+o+co mbustivel+para+as+revolucoes+no+mundo+arabe.shtml
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As construções de Caravaggio
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aravaggio é um mito. Literalmente. As discussões entre @s biógraf@s do pintor são marcadas por desencontros, ambiguidades e incertezas. Poucos são os registros de algo que tenha sido dito por ele; Muitos fatos afirmados por uns são desmentidos por outros; o método de trabalho ainda é um mistério: Ele realmente pintava olhando num espelho? Ele usava o conceito de câmara-escura, quase inédito naquele período? Nem sobre as datas @s biógraf@s entram em consenso, inclusive a de sua morte. Dono de uma obra cuja importância e genialidade, hoje, são incontestáveis, de uma vida desregrada, e de uma biografia cheia de lacunas, Caravaggio é uma figura hora aumentada, hora simplificada e sempre distorcida a torto e a direito. Sua imagem, muitas vezes associada ao clichê do gênio boêmio, ou até do louco subestimado e incompreendido em vida, a lá Van Gogh, circula facilmente pelos mais diversos meios de comunicação. Caravaggio é hoje praticamente um anti-herói. Um mito. Inclusive, por ter matado a facadas um homem chamado Ranuccio, 32
ganhou posteriormente a alcunha dramática de “O pintor assassino”. Não escrevo aqui para defender que se respeite “a verdade” sobre a vida dele nem de ninguém. Escrevo por achar interessante perceber como certas figuras são construídas e reconstruídas, significadas e ressignificadas, nos mais diversos contextos históricos, sob as mais diversas motivações. Para além dos debates acadêmicos mais rigorosos e das construções mais superficiais veiculadas em revistas, blogs e sites, existem duas obras sobre o pintor italiano que chamam a atenção: O filme Caravaggio, de 1986, cujo diretor é o inglês Derek Jarman, e a 1ª parte da série documental O Poder da Arte, de 2007, do renomado historiador, também inglês, Simon Schama. São duas produções muito diferentes das outras sobre o pintor e diferentes também entre si, em seus formatos, em suas preocupações, nas condições materiais sob as quais foram produzidos e nos contextos em que estavam inseridos. O interessante é notar que, destas duas realizações audiovisuais,
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Vide História a que se utiliza dos clichês “gênio não é o passado, é apenas uma narboêmio” e “louco incompreendido”; rativa. A história deste homem, que a que lança mão dos mais diferentes viveu no século XVI, está sendo conartifícios para criar a imagem de um tada por mim, um indivíduo do séverdadeiro herói (ou, no caso, anticulo XX, com minha palavras e com herói); a que não se dá ao trabalho de minhas inquietações, com minhas usar aquelas informações para reflereferências e com minha história”. tir minimamente sobre questões conAssume, como boa parte d@s histotemporâneas; a que, ignorando, ou riad@res contemporâne@s, que não escondendo, a quantidade de lacunas há conhecimento atemporalmente nas biografias do pintor, apresenta verdadeiro, alheio ao individuo e à uma narrativa com ares de definitiva; sociedade que o produziu. Daí a imé justamente a apresentada pelo nosportância de, nos trabalhos acadêmiso renomado historiador. cos atuais, se apontar não só as O filme de Derek Jarman, por fontes, que, entre outras coisas, commais que se proponha a ser uma provariam a veracidade dos fatos, obra de arte e não uma biografia mas os referenciais teóricos, os mérigorosa cientificamente, apresenta todos de pesquisa, etc. Estes apontacaracte-rísticas muito mais próximentos indicam para @ leitor@ que mas a algumas das atuais demandas teóricas dos historiadores. Por e-xemplo: Jarman assu-me a autoria de sua narrativa: no filme, em meio aos artefatos típicos do início do século XVI, período no qual viveu Caravaggio, são inseridos objetos modernos como calculadoras, lâmpadas, máquinas de escrever, motos, carros, etc. Penso que estas “aparições” são espécies de assinaturas pessoais e temporais. Ele meio que nos diz “Isto Reprodução: Derek Jarman no set do filme Caravaggio © Edição Salzgeber
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Vide História aquele trabalho é o resultado de uma pesquisa específica, feita por uma pessoa específica, de uma forma re-
Reprodução: Historiador Simon Schaman no Documentário O poder da Arte. BBC,2007.
lativamente específica e não contém verdades absolutas. Já O Poder da Arte, além de produzido, é apresentado pelo próprio Simon Schama e este, por ser um historiador renomado, acaba conferindo um status de seriedade e cientificidade fortíssimo ao docu34
mentário. Ele não nega nem discute isso. Na verdade ele veste muito bem est@ personagem de saber confiável e portador@ de verdades - O que é de se estranhar, visto que ele normalmente expõe suas inclinações políticas e teóricas. Além disso, no documentário, o historiador inglês surpreende pela teatralidade evidente e carrega na dramaticidade sobre o tema, somando a tudo isso, várias encenações ilustrativas. Ou seja, o conteúdo deste documentário é posto, com a ajuda de vários artifícios, como sendo absolutamente verídico. Estes artifícios apresentam-se no decorrer de todo o documentário. Por exemplo: Em seus primeiros minutos, Caravaggio é apresentado como um fugitivo, com a cabeça à prêmio pelo assassinato de Ranuccio. Com uma música dramática ao fundo, são exibidas algumas cenas de decapitações pintadas por Caravaggio neste período, cenas de fuga, espadas sujas de sangue, etc. Simon Schama, finalizando esta espécie de prefácio, deixa claro que o gênio sobre o qual ele vai falar não é como a maioria dos gênios: “Esse é Caravaggio, e o gênio é o vilão”. Esse tom dramático é o tom dominante do documentário, e é sobre todo esse drama que o documentário se edifica. Ao contrário, Derek Jarman humaniza o pintor, mostrando-o como um ser político, pensante, afetivo, in-
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Vide História quieto. O enredo se desenvolve com foco no relacionamento entre ele, Lena e Ranuccio, e traz reflexões sobre a afetividade e o erotismo, sobre a arte, a liberdade e a subversão. No filme, Jarman não prioriza as características que comumente fazem de Caravaggio um anti-herói ou um mito. Todas essas características aparecem no decorrer da narrativa, mas não são elas que dão sentido ao filme. É interessante notar que O Poder da Arte também se distancia de Caravaggio por não ser marginal, não se propondo a abordar temas marginais como a homoafetividade, por exemplo. Mas para além dos temas, o documentário também não é marginal pelo fato de ter sido produzido dentro de um veículo extremamente importante e poderoso: o canal de televisão britânico BBC. Esta vinculação talvez seja uma referência necessária para a compreensão dos limites e intenções do documentário. Nele, Simon Schama utiliza-se de uma ferramenta sem a qual muito provavelmente não teria espaço na grade da emissora inglesa: a linguagem televisiva. Em última instância, esta linguagem prioriza o caráter dinâmico da comunicação, evitando que o expectador se
distancie do conteúdo por um minuto que seja. Os métodos desse tipo de mídia são, por exemplo, a construção de enredos marcados pelos clichês, a criação de heróis e vilões, a utilização de palavras e temas que tenham fácil circulação, o uso de planos curtos, o apelo às características mais dramáticas do conteúdo, etc. Visto tudo isso, não podemos evitar pensar na responsabilidade de cada um deles para com estes resultados. Não seria exagero imaginar que ambos estavam cientes destas questões colocadas aqui neste texto e optaram por fazer o que fizeram, da forma que fizeram. Mas também não podemos ignorar a influência da independência de um e da vinculação do outro à uma grande emissora. É inegável que o documentário é bem mais acessível ao grande público que o filme, mas é igualmente inegável que o conteúdo de Caravaggio é bem mais rico que o de O Poder da Arte. A questão que fica é: Será possível encontrar um equilíbrio entre os conhecimentos acadêmicos e as linguagens artísticas e se comunicar com a população sem perder a qualidade e a profundidade dos conteúdos e das formas?
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Vide História
Vide Sugestão Eu Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios O filme, estreado em 2012, é uma mistura de grandes debates atuais na sociedade brasileira. Contando com uma atuação esplendorosa de Camila Pitanga, a trama se dá num ambiente pautado por profundos e históricos conflitos do Brasil: as batalhas pela terra no estado do Pará. Numa mescla entre as questões políticas que envolvem o contexto da trama, e da dimensão intensa-mente psicológica vivida pel@s personagens, “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios” possibilita uma reflexão sobre temas como as desigualdades sociais e regionais, a religião, o desejo, o medo, o amor, a pobreza, a violência, o vício, a loucura, além de uma série de outros temas que transbordam a cada minuto do filme. Assim, de forma intensa, simples e poética, a película expõe as dificuldades de vida de alguns cenários brasileiros - como os desmandos realizados pel@s empresári@s do agronegócio na região norte -, sem usurpar a beleza e a esperança que os compõem, retratando a complexidade dos dramas humanos dentro de seus contextos históricos. Interpretando Lavínia, uma mulher forte e complexa, Camila Pitanga vive um drama entre manter-se “honesta”, grata e aceita socialmente, ou seguir os seus desejos e sonhos mais imanentes, não tão moralmente aceitos assim. Num enredo cujos dramas morais - vividos especialmente por mulheres - sintetiza os confusos sentimentos d@s vári@s personagens, Lavínia pensa, age, sofre, ama, chora, vive. Não tão diferente de muitos de nós, que enfrentamos de diferentes formas as pressões dos lugares e momentos que vivemos, e dos inúmeros limites e possibilidades de escolha que temos, ela busca superar e ressignificar o que às vezes parece impossível e inacreditável: o sentido da liberdade. Divulgação 36
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“A televisão é para a Vida moderna o que era o campanário para a aldeia, o angelus da civilização industrial, mas portadora de uma palavra imprevista; é, como disse Mac Luhan, um media frio, aquele que, entre todos, favorece a domicílio e sem esforço a mais intensa participação; essa participação, se ousamos dizer, sem participação, essa mistura exata de distância e intimidade que é para as massas a forma mais moderna, e geralmente única de que dispõem, de viver a história contemporânea. Nos dois sentidos do termo, o acontecimento é projetado, lançado na vida privada e oferecido sob a forma de espetáculo.” Pierre Nora. História: Novos Problemas. (p. 183)
ISSN 2236-5443