Editorial Nesta edição de nº 2, a Revista Vide História traz para discussão o tema Arte. No constante exercício de escrever Histórias, de pensar sobre a História, e de pensar historicamente, buscamos explorar as relações diversas entre Arte e História. Desde textos que falam sobre as incômodas aproximações entre História e Literatura, este número, também traz para apreciação d@s leitor@s, temáticas que envolvem o cinema, a poesia, a política e a pintura. Buscamos novamente um distanciamento dos formatos escritos e das composições visuais das revistas acadêmicas, e trabalhamos para que este número ficasse ainda mais bonito e agradável que os anteriores. Agradecemos a atenção e os comentários de tod@s sobre a edição anterior e esperamos que tenham uma nova boa leitura. Equipe Vide História
Imagens: Todas as imagens foram retiradas da internet, ou como indicado. Os direitos são reservados @s respectiv@s proprietári@s.
Nos textos da Vide História utilizaremos o símbolo “@” para substituir as indicações de masculino e feminino quando fizermos generalizações de grupos humanos. Um exemplo: “todos” será escrito “tod@s”. Isso tem o objetivo de contemplar aos diversos gêneros ao mesmo tempo ao invés de considerar o gênero masculino como aquele que generaliza a humanidade.
Expediente Conselho Editorial: Gleidiane de Sousa Ferreira, Leandro Maciel Silva, Marcos Luã A. de Freitas e Tuan Roque Fernandes. Projeto Gráfico: Marcos Luã Contato: revistavidehistoria@gmail.com
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Os textos são de responsabilidade da equipe Vide História ou como indicado.
Índice A luminescência Arte Moderna
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E mulher assiste filme pornô? 11
Uma flor de dama O futuro da arte Ou a arte sem futuro
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Aparecidos Políticos Deus dará
quando o carnaval chegar...
História Arte Dia a dia
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A luminescência
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o meio da escuridão surge uma pequena fresta de luz. Os olhos se esforçam para divisar através daquele ponto. Enquanto pequena luminescência, não se pode ver nada além de uma brancura diminuta presa em meio ao breu. Então, aquele pequeno facho aumenta de tal maneira que permite a divisa dos objetos em seus contornos e cores mais gerais. A iluminação abrupta do ambiente não permite que os olhos possam ver de imediato. Assim que a íris se adequa à luz que agora toma conta do espaço, é possível ver tudo em suas formas perfeitas. Os
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objetos não tem exatamente as cores nem as formas que se pensou ter quando os olhos ainda não podiam ver através da claridade intensa. Aquilo que agora os olhos divisam é de longe o que podíamos esperar que fosse com certeza. Os objetos estão todos amontoados, difícil saber o que são. Mas o espanto é efêmero, logo podemos brincar com aquelas formas e torná-las inteligíveis. Logo percebemos que elas são mais conhecidas do que pensávamos inicialmente. Logo nos damos conta que nos deparamos com o passado.
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Arte Moderna
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ivemos hoje em um mundo no qual é preciso estar se reinventando e reinventado as coisas. A Apple lança todo ano um aparelho mais avançado que o anterior, sempre com uma novíssima ferramenta, uma novíssima tecnologia. @s profissionais precisam estar se atualizando constantemente, se “reciclando”. E um mar de aparelhos velhos e profissionais “ultrapassad@s”, amb@s tid@s como praticamente imprestáveis, vai se acumulando ano após ano. Se o LP teve uma vida razoavelmente longa, menor foi a dos CDs e menor ainda é a de cada versão do Ipod. Mas se engana quem pensa que este ritmo de mudanças é uma característica dos fins do séc. XX. Não, não somos @s primeir@s a conviver com este rapidíssimo fluxo contínuo. A valorização do novo é um traço característico da modernidade. Podemos falar, na verdade, de uma valorização do moderno, típica de uma sociedade que anseia por desenvolver-se, tomar novos caminhos, negando ou contradizendo o
passado, o antigo. Antes, o que se valorizava era o tradicional, mesmo que este, como nos mostrou E. P. Thompson, estivesse em um constante processo de reinvenção. É interessante perceber a importância que as grandes revoluções modernas (falo aqui da francesa e da industrial) tiveram na construção desta nova cultura. Elas não só ajudaram a consolidar a possibilidade do novo no imaginário social (e a possibilidade e importância da participação de indivíduos e de grupos organizados nestas transformações), mas, de uma forma ou de outra, concretizaram-no. É claro que o antigo continua existindo, porque nenhuma revolução é integral, e nada, por mais novo e original que seja, enterra de vez o que havia antes. Mas é só na modernidade que a necessidade de revolucionar (nas mais diversas escalas das relações sociais), a vontade de ser original, de ser ou aderir às vanguardas, etc., passam a ocupar um lugar realmente importante na sociedade ocidental. E foi com estes (ou destes) traços que a Arte Moderna foi con-
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cebida. Segundo Giulio Carlo Argan, no seu artigo “As Fontes da Arte Moderna”, o ponto de ruptura na tradição artística é representado pela pintura impressionista. Para este movimento de pintor@s da segunda metade do séc. XIX, a idéia não era mais fazer um retrato fiel da realidade, nem abordar grandes temas como os religiosos ou políticos. A idéia era a da “arte pela arte”, ou seja, @ artista tinha por finalidade exclusiva a produção artística. O que não significava que a arte não tinha função social, que era vista enquanto apartada de seu contexto histórico. Pelo contrário. Para el@s, a arte passa a ter sua própria autonomia, participando, por ela mesmo e de forma indispensável, do processo de formação e educação da sociedade e não apenas como mais uma ferramenta completamente substituível, usada para benefício de alguma corrente filosófica, de algum grupo religioso, etc. Assim, não tendo como prioridade algo exterior, algo mais importante que elas, as artes foram sendo reinventadas, obra a obra, de forma a interferir, elas mesmas, enquanto arte, na situação histórica da qual participavam. Por isso, a arte moderna, seja a pintura, a escultura, a música, a literatura, etc. têm como uma de suas característi6
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Claude Monet - Regata em Argenteuil - 1872
cas a formação contínua de grupos e de indivíduos independentes, que construíam e propunham (ou tentavam impor) novas possibilidades, novas estéticas, novas poéticas, para o fazer artístico. As primeiras cinco décadas da pintura moderna ilustram bem a velocidade com que se deu este processo, e nele uma questão pode ser percebida como central: as representações. Podemos dizer que a pintura moderna começa nas décadas de 1860/70, quando pintores como Monet, Renoir, Sisley e Pissarro se propuseram a deixar de lado a produção de esboços e as minuciosas aplicações das leis de perspectiva e iluminação em voga desde o renascimento, e passaram a desenvolver uma pintura na qual as figu-
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ras não tinham traços tão definidos e na qual os volumes, as profundidades e a iluminação eram criados pela interação entre as cores. Eram realistas, mas não procuravam fazer “retratos” das coisas. Procuravam representar as sensações visuais que temos quando as observamos. Dando continuidade, P. Signac e G. Seurat procuraram entender o processo óptico que estava sendo representado na pintura. Para por em prática seus estudos, desenvolveram o pontilhismo, que consiste em usar inúmeras manchinhas, de várias cores diferentes
Georges Seurat - Uma Tarde de Domingo na Ilha de Grande Jatte - 1886
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muito próximas umas das outras, a fim de criar, no olho do observador, uma impressão visual reconhecível. Na década seguinte, dois indivíduos foram mais além: Cézanne e Van Gogh. Os dois, embora tenham tomado caminhos radicalmente opostos, partiram da idéia de que, para representar algo na pintura, era preciso dar igual importância à natureza e à consciência do indivíduo que a observa e que dela participa. Perceberam que poderiam e deveriam se colocar na pintura. Cézanne se colocou enquanto indivíduo consciente, racional e organizou o caos da natureza, representando-a através de um uso Divulgação
Paul Cézanne - Grande Pinheiro e Terra Vermelha – 1895
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Vicent Van Gogh - Noite Estrelada - 1889
de formas geométricas e da interação de cores, que só fariam sentido para o homem racional. Van Gogh se colocou enquanto homem passional, usando cores e formas vivas e agressivas que parecem se digladiar constantemente, representando a realidade enquanto uma deformação resultante do choque violento entre o eu e o mundo. Na primeira década do século XX surgem o Fauvismo, o Expressionismo e o Cubismo, todos conscientes das superações que haviam acontecido em relação ao impressionismo. Os Fauves pensaram, como Van Gogh, na violência do choque entre a realidade e @ observador@, mas com isso, partindo de Cézanne,
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Fauvismo : Henri Matisse – Retrato da Sra. Matisse (A Linha Verde) – 1905
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pretenderam deformar racionalmente a realidade - lançando mão de uma agressividade cromática equilibrada - e representar objetivamente o mundo. Para o Cubismo, a pintura representaria não a realidade óptica, mas a realidade dos conceitos, portanto ainda objetiva e subjetiva. No expressionismo, os objetos são distorcidos para representar os sentimentos subjetivos, as paixões, as dores, as angústias d@ artista. Finalizando o nosso recorte, em 1910, Wassily Kandinsky concebe a primeira pintura abstrata completamente vazia de representações da natureza. Cria uma realidade autônoma, viva, tensa, mas completamente alheia ao mundo objetivo. Na mesma década, Kazimir Malevich tenta radicalizar a abstração e concebe o Suprematismo, que tem
Cubismo : Pablo Picasso - Retrato de Ambroise Vollard - 1910
Expressionismo : Egon Schiele - Autorretrato com Braço Dobrado Sobre a Cabeça - 1910
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Wassily Kandinsky - Primeira Aquarela Abstrata – 1910
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como proposta representar uma realidade “mais elevada”, invisível, não objetiva, destituída de passado ou futuro e na qual sujeito e objeto são reduzidos ao “grau zero”. O caminho percorrido, do impressionismo às abstrações nãofigurativas, foi longo e árduo e tal distância, percorrida em tão pouco tempo, só pode ser compreendida se contextualizada. O empenho e o esforço destes indivíduos são sintomáticos em uma sociedade ávida pelo progresso, pelo novo, pelo moderno, etc. Hoje, embora outras características tenham se firmado na nossa sociedade (não é à toa que alguns defendem que vivemos numa pós-modernidade), a busca pelo novo e a conseqüente aceleração dos processos de mudança ainda são traços marcantes.
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V Kazimir Malevich – Quadrado Preto Sobre Fundo Branco – 1915
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E mulher assiste filme pornô? e às salinhas separadas das vídeolocadoras, aos espaços mais secretos dos computadores d@s adolescentes, aos espaços privês das sexualidades “proibidas”; os filmes circulam em diferentes ambientes e em diferentes públicos, movimentando milhões na indústria porDivulgação
É
sabido que o cinema é um dos principais veículos de construção de sensibilidades e subjetividades na sociedade atual. Desde o início do século XX, com a elaboração das técnicas cinematográficas, ele teve um importante papel na produção de novas percepções de tempo e espaço para as sociedades que se industrializavam e modernizavam. Durante o século passado, essa arte passou a ser cada vez mais incorporada à dinâmica de lazer das sociedades urbanas e bastante utilizada como veículo de propagação de novas e velhas ideias e comportamentos. Hoje, o cinema é solidamente percebido como uma das principais atividades de lazer e entretenimento, e também como uma das mais importantes expressões artísticas da era tecnológica. Mas qual a diferença entre o lugar dos pornôs em relação a outros gêneros cinematográficos na sociedade? A quem se destina a indústria pornográfica, especialmente os filmes? É sabido que boa parte da sociedade assiste a filmes pornôs. Relegados às estantes escondidas
Cartaz filme “Cabaret Desire” de Erika Lust
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nográfica. Porém, existe fortemente uma constante negação, explícita ou não, do uso desses filmes pelas mulheres, e um decorrente e silencioso consentimento de que esses fazem parte de uma erótica masculina, já que os homens possuiriam uma sexualidade que lhes permite essas vivências com o prazer e o proibido. Nesse sentido, a indagação que se propõe aqui é: Quais os lugares ocupados pelas mulheres na constituição das personagens, e no consumo dos filmes pornográficos? Entendo que os filmes pornôs são um símbolo da distinção social do prazer entre homens e mulheres, e que em diálogo com uma sociedade cujo controle do corpo e da sexualidade femininas é fortemente reproduzido, expressam uma percepção peculiar dos lugares das mulheres no sexo. Os perfis femininos explorados nos pornôs tradicionais se inserem num universo simbólico que expressa uma dicotomia entre as mulheres; são as “mundanas-sexualizadas” (atrizes e personagens) e as “boas-pra-casar” (as que não fariam como as atrizes e as que não assistem a esses filmes). A estética pornográfica tradicional, fortemente embasada em padrões de perfeição física femininos e de masculinidade falocêntrica, explicita um ambiente onde as mulheres são pensadas 12
como “veículos” de prazer. As relações heterossexuais e lésbicas compõem enredos fetichizados em que a erótica, o tempo e o gozo masculinos são tidos como pilares na composição da cena pornográfica. Boa parte das personagens femininas atendem a um perfil idealizado de “mulher-máquina de prazer”, que satisfaz irrestritamente o parceiro, e que está sempre disposta a fazer tudo para tal. É na crítica a essa erótica tradicional masculina, que a crescente produção de pornôs feministas aparece como uma alternativa ética-estética para @s que apreciam o cinema sexual. Tomemos como referência as produções mais conhecidas e comercias de pornografia feminista; as da sueca Erika Lust. Os filmes da produtora rompem fortemente com essa expectativa passiva da participação das mulheres. Primeiro, porque as mulheres são reconhecidas publicamente como expectadoras; segundo, porque @s personagens femininas e masculinas são pensad@s de modo a contemplar as multiplicidades de pessoas existentes na “vida real” e não apenas estereótipos; e em terceiro, porque elaboram uma composição cinematográfica que propõem um outro tempo sexual, outros enredos, e outras simbologias.
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Cena d
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do filme “Cinco historias para ellas” de Erika Lust
Nos filmes de Erika Lust, as relações sexuais possuem histórias, os atos não aparecem desconexos e rápidos para atender a um tempo de excitação dos homens. Neles, as mulheres dominam, são dominadas, são lésbicas, bissexuais, prostitutas, vendedoras, massagistas e donas de casa, são múltiplas e partícipes (de formas diversas) de todo o processo. Existe amor, gravidez, sexo
casual, casamento, homossexualidade, dentre diversos temas e situações que deslocam o ambiente erótico para uma perspectiva mais cotidiana e menos idealizada de excitação, fugindo de um “bê-a-bá” de fetiches masculinos, sobre as sexualidades femininas. O que isso tem a ver com a história? O pornô feminista e essa desconstrução estética, acabam por evidenciar e deslocar uma relação hipócrita e sexista das relações de homens e mulheres com o sexo e o prazer representados nas produções tradicionais. Essas produções publicizam as figuras femininas em outras perspectivas, tanto como personagens, como consumidoras. Não trata-se aqui, de afirmar que as mulheres não possam se excitar, gostar, ou se identificar com os perfis encontrados nos filmes tradicionais, nem tampouco de pensar que as estéticas feministas agradem e contemplem a todas as mulheres; mas sim pensar, de que forma, outras percepções de sexualidades femininas podem existir. Além disso, essa produção evidencia a atuação das mulheres em projetos e áreas dominadas pelos homens, dando visibilidade a possibilidade de interesse por atividades que se construíram fortemente marcados pela exclusão do gênero feminino, como é o caso da pornografia.
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Vide História Dialogando com uma demanda historicamente pautada pelos movimentos feministas do século XX e XXI, reivindicando o direito ao corpo e ao prazer, e desconstruindo ideias de que as mulheres ligam-se mais ao amor e menos ao sexo; esses enredos possibilitam um grande deslocamento das figuras femininas nas artes eróticas, nem mais apenas como símbolo de um belo que é Cena do filme “Life, Love, Lust” de Erika Lust passivo e contemplativo, e nem mais numa perspectiva dos polos mulher-boa ou mulher-prostituta das pornografias tradicionais; esses enredos possibilitam uma nova ética da estética pornográfica, na medida em que faz do múltiplo, da diversidade, dos cheiros, dos sons, das cores, e do tempo, uma outra possibilidade de sensibilidade e excitação.
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Cena do filme “Cabaret Desire” de Erika Lust
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Uma flor de dama
Um grito aos que fingem não ouvir, e uma gargalhada entre lágrimas. - Tem certas coisas que acontecem na vida, boy, que a gente não escolhe. Eu, por exemplo, não escolhi nada: eu sou pobre, nordestina, do interior e veado... (aí tá lascado, né?! Se fosse pelo menos mulher, não é mesmo?!) (Uma flor de dama - Silvero Pereira)
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espetáculo teatral “Uma Flor de Dama”, escrito, encenado e dirigido por Silvero Pereira completou no ano de 2011 mais de 300 apresentações. O seu texto é levemente influenciado pelo conto “Dama da Noite”, de Caio Fernando Abreu, do livro “Os Dragões Não Conhecem o Paraíso”. O espetáculo trata de travestis, criaturas identificadas com o feminino, mas confundidas com homem. Homem ou mulher, feminino ou masculino? Nossas relações de gênero estão marcadas ao mesmo tempo pelo biológico, mulher e homem, mas também pelo cultural, feminino e masculino. A travesti, a um só tempo, desafia nossas referências sobre o que constitui a diferença de gênero, tanto biológica quanto cultural. O cenário da peça é consti-
tuído por uma mesa de bar, uma garrafa de cerveja, um copo e um foco de luz central. No palco, o monólogo é dirigido pra nós: “mininuzinhos, de jeans, preto e com cabelo arrepiadinho”. A figura bizarra, exótica e despudorada se converte numa pessoa com sentimentos humanos, com trajetória familiar traumatizante e com uma perspectiva de vida a partir do que vivencia e vivenciou nas ruas e esquinas da vida. Aos que esperam um relato apenas de tristeza e sofrimento, se espanta com o humor e perseverança. Sobre a linguagem, a peça não atende aos politicamente corretos, sempre comedidos e politizados nas suas observações. É escrachado mesmo, e daí!?: “- Chupo, chupo sim, e muito bem. - Eu falo o que eu quiser. Cala-boca? Cala-boca já morreu, quem manda na minha boca sou eu.”
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Vide História “- Que é, eu não tô pagando?! - Falo sim, marrapaiz: se fosse eu, com cabelo grande andando com um monte de macho, iam falar. Por que eu não posso falar, só porque é Jesus?!”
A peça fala do mundo travestido de pessoas que tiveram uma trajetória de vida marcada pela discriminação da família e do resto da sociedade. Explora a prostituição como uma maneira legítima de vender o corpo, que é excluído do padrão normal da sociedade. O mesmo corpo que é repudiado e marginalizado durante o dia, mas consumido à noite. A Dama fala, sobretudo, da “roda”: “- Do movimento da vida, como numa roda gigante: vai rodando, rodando, rodando... com todo mundo lá dentro, menos eu.”
É ao mesmo tempo uma crítica à “roda”, ao jeito de rodar e uma vontade louca de participar dos que rodam. A Dama fala o que é esquecido, mas que deve ser dito, mesmo que não se queira ouvir. E a fala não é controlada e dentro dos padrões de pudor por causa d@s que ouvem. Ela respeita a vontade de quem fala. A peça dá à personagem a liberdade para usar a linguagem das ruas, das 16
Cena da peça “Uma flor de dama” - Silvero Pereira
esquinas, com a espontaneidade de quem já pode falar o que quiser, porque não se importa mais com o que vão dizer. O espetáculo marca um momento histórico na cidade de Fortaleza, não só por dar voz a uma travesti, mas por contar a realidade de pessoas que lutam para VIVER, denunciando a discriminação e violência que as travestis sofrem no dia a dia. Ele expõe uma vivência há muito estigmatizada, sobretudo nas últimas três décadas em Fortaleza. Como afirma o historiador Elias Veras, os discursos usados nas décadas de 1970 e 1980 vinculavam as travestis à prostituição e ao crime. Com a AIDS, as travestis sofreram o mesmo estigma. Esses discursos moralizantes atingiram
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tod@s @s homossexuais, mas de forma destacada para aquelas pessoas que ousavam transgredir as aparências de gênero consolidadas na sociedade. Assim, as travestis, tanto masculinas quanto femininas, foram alvos da discriminação social, sobretudo aquel@s que usavam da prostituição para sobreviver financeiramente. Nesses últimos 20 ou 30 anos novas discussões ganharam espaço no Brasil e no Ceará. O papel político de instituições como o GRAB e a ATRAC, e de pessoas como Tina Rodrigues e Janaína Dutra, fizeram com que as travestis entendessem e fossem entendidas como pessoas com uma vivência sexual e social de muitos enfrentamentos, tentando minimizar a estigmatização. A pre-
sença das travestis noutros espaços, que não a rua - espaços de legitimidade política como as universidades, coordenações, secretarias, etc -, possibilitou novos olhares sobre aquelas que eram diferentes, a outra. A visibilidade política e a fala politizada das travestis puderam aproximar os olhares e os ouvidos de um público diurno para as práticas noturnas*. É dentro desse contexto de visibilidade das travestis e das suas vivências que está inserido o espetáculo “Uma Flor de Dama”. Lembremos que os espaços políticos são conquistados, quase nunca consentidos. Mesmo fazendo uso do Teatro, aparentemente um espaço aberto para as mais variadas intervenções, conseguir apresentações e se manter em cartaz é um grande desafio para qualquer temática. Embora o espetáculo ganhe divulgação pela temática ousada e diferente, o conteúdo da mensagem se torna uma maneira de conhecer e se aproximar da diferença. A transmissão e recepção sobre a vida de uma travesti se dá num momento em que novos discursos aparecem, reivindicando e concedendo liberdades e direitos sexuais. A “Dama da Noite” é todas as travestis (prostitutas, prostituídas ou não), como também todas as
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Vide História mulheres e demais pessoas que sofrem por não fazerem parte da “roda dos normais”. Tive a felicidade de assistir à primeira apresentação, em 2005, no Festival de esquetes da Cia. teatral Acontece – FECTA. De lá pra cá, os cabelos cresceram, muitos trejeitos foram incorporados, a linguagem escancarada, e o humor junto com a sátira ganharam mais espaço. Silvero amadureceu, a Dama também. E com isso os prêmios, e dois outros espetáculos associados: Cabaré da Dama e Engenharia erótica, com a mesma perspectiva, mostrar os vícios e virtudes das travestis e de suas histórias de vida, não sua condição social e sexual. O mais recente trabalho é o Translendário, uma releitura de obras clássicas da pintura, como a Santa Ceia e a Criação de Adão, em formato de calendário, cujas protagonistas são travestis. Procurem saber do “bafafá”.
A visibilidade dos espetáculos se contrapõe ainda com a luta dos direitos sociais das travestis na cidade de Fortaleza. Quem assiste aos espetáculos de dublagem com toda sua pompa e luxo, não pode deixar de lembrar da realidade de muitas que não estão naquele espaço, pois dependem dos programas da rua para sobreviverem e manterem suas casas e sexualidade. A mesma sexualidade que fez com que muitas fossem expulsas de casa e excluídas da sociedade é usada como fonte de renda. Se tiverem a oportunidade de assistir, não percam, sobretudo se a apresentação for depois das 22 horas. Aposto que você vai se identificar, seja com a Dama, com a roda, ou com os demais que estiverem de “jeans, preto e cabelo arrepiado”.
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http://fabricadetravestis.blogspot.com.br/ http://www.opovo.com.br/app/colunas/imagememovimento/2012/05/11/ noticiasimagememovimento,2837046/porque-silvero-pereira-e-bem-mais-que-seutranslendario.shtml http://maisvoce.globo.com/MaisVoce/0,,MUL1680486-10345,00.html
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VERAS, Elias Ferreira. Além do paetê: experiências das travestis em Fortaleza nas três últimas décadas do século XX. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História - ANPUH. São Paulo, julho 2011.
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O futuro da arte Ou a arte sem futuro
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oube de uma exposição de arte que tinha dia e hora marcada para acontecer. O salão já estava lotado quando o “artista” passou pel@s convidad@s servindo café. Para a surpresa geral, não havia exposição, e sim uma “performance”. Não, você não entendeu errado. Não havia exposição! Muitas são as questões aqui, mas descartemos aquelas que envolvem violência física e verbal contra o “artista”. É senso comum a banalização das artes plásticas atualmente. Arte “pós-moderna” ou “contemporânea” são os termos usados para caracterizar não apenas formas ou estilos artísticos surgidos depois da modernidade, mas também para identificar estilos que usam/abusam da liberdade e autonomia dos seus/ suas artistas, e muitas vezes da boa vontade de quem deseja ver uma obra de arte. Mas de onde vem essa liberdade e autonomia? Qual o percurso histórico para tal abertura? Sobre o assunto, muito tem a falar o escritor, poeta, escultor, pintor, e por muito tempo crítico de arte: Ferreira Gullar. No dia 13
de março (2012), no Ciclo de Conferências da Academia Brasileira de Letras, Gullar falou sobre o que ele pensava sobre as artes e sua atualidade. O seu interesse foi pensar o movimento artístico e das ideias de arte, desde o renascimento até as novas apreensões do ser e fazer d@s artistas. Sua inquietação talvez seja comum a de muitas outras pessoas: será que qualquer coisa é, ou pode ser, arte? Qualquer um pode ser artista? (São questões desafiadoras, que merecem mais do que as 4 páginas deste texto). Mais do que tentar responder a essas questões, Ferreira Gullar se concentrou em entender quem são @s artistas de hoje e como pensam suas artes. A sua intensão foi de perceber essa expressão inserida num amplo movimento das ideias artísticas, iniciadas no renascimento. Nesta época/fase, Gullar diz ter havido a mudança que afetaria todo o mundo da arte, e com ela toda a sociedade. Era a compreensão de que a pintura era uma ciência (Da Vinci). Assim sendo, sua intenção era desafiadora: captar a realidade, fazendo uso das mais variadas téc-
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nicas e estudos para captar a perspectiva e a luz. Mais de 300 anos se passaram desde as premissas científicas da pintura, para que no século XIX, outro grande artista rompesse com a estrutura da perspectiva, da compreensão sobre cor, espaço e Natureza. Paul Cézanne foi a expressão máxima de uma nova compreensão sobre o que era a pintura no século XIX. Ele foi a transição entre o impressionismo e o cubismo, entre o século XIX e o XX, entre uma arte voltada para a natureza, que não era a do realismo, para outra mais preocupada com os conceitos impressos nos quadro. Sobre suas “distorções” do real (Natureza), diz que “não imita a natureza, faz pintura”. O objetivo de uma maçã pintada não é comê-la, mas sim apreciá-la com a visão – nos diz Gullar sobre Cézanne. Não é apenas pela geometrização de suas pinturas que Cézanne é entendido como um anunciador do cubismo, mas sim por dar autonomia à pintura e ao pintor. O cubismo desintegra a perspectiva tradicional. Os pintores cubistas partem da consciência e dos conceitos para a tela, eles não têm um compromisso com a natureza, mesmo partindo dela. Depois de apresentar rapi20
Marcel Duchamp - A fonte - 1917
damente esse percurso da arte no renascimento, quando as artes ganham novo fôlego, passando pelo século XIX, com as noções de realidade e natureza, chegamos ao ponto desejado, falar da “liberdade” e “autonomia” d@s artistas nos últimos 80 anos. Sobre essa liberdade e autonomia, pensemos sobre outro artista e sua expressão de arte. Nome: Marcel Duchamp, Conceito: ready made, Obra de expressão: A Fonte (ou urinol). Ready made é a ideia de deslocar um objeto do seu lugar
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de origem no cotidiano, e levá-lo a outro lugar para que possa ser compreendido de outro modo – e com possível valor artístico. Não podemos deixar de pensar que o “urinol”, de Duchamp, foi, além de uma representação artística, uma grande sátira à Arte institucional – fácil de entender pela vida boêmia de seu autor. A um só momento ele não só transformou o urinol em um objeto de valor artístico, mas tornou possível que todos os outros objetos do cotidiano também pudessem ser compreendidos dessa maneira – fez também com que qualquer pessoa pudesse se imaginar com tal habilidade. Fantástico, não? Mas qual a relação de Duchamp com o que estamos dizendo? Bom, há uma estranha ou fantástica noção de que qualquer pessoa é artista ou qualquer coisa é arte. Estranha e fantástica porque retira d@ artista a aura de um semideus, de um ser diferenciado, excepcional, imagem que ainda hoje é cultuada por muit@s. Não podemos descartar a influência de Duchamp nessa postura.
Mas qual o problema com a expansão da liberdade e autonomia d@s artistas e das suas artes? Aparentemente nenhuma, desde que tanto @s artistas quanto o público compreendam esse momento artístico. Uma das características principais das novas expressões artísticas é que muitas são feitas para não durar, são efêmeras por natureza. Pensemos um grafite numa parede da rua, é difícil querer que aquela obra seja conservada e transmitida à posteridade como ainda é feito com um quadro. O problema é que muit@s artistas “contemporâneos” ou “pósmodernos”, desejam que sua arte “não durável” seja “durável”. Como tornar duráveis mercadorias supérfluas, produtos de uma sociedade de consumo, que precisam ser descartadas a todo o momento? Para tornarem “duráveis” suas artes, @s artistas de hoje dependem das instituições. Em concordância com Gullar, minha crítica é para essa vanguarda de artistas que precisa das instituições para legitimar a sua arte e se legitimarem enquanto artistas. Sim, porque, o “urinol”, de Duchamp, só se tornou um objeto de “valor artístico” depois de inserido dentro de um “espaço de arte”. Sendo assim, a obra precisou da instituição para ser arte, a instituição que Duchamp tanto
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Vide História queria satirizar. Do mesmo modo, muitos artistas atualmente dependem das instituições para serem artistas, e essa dependência vai além da mera questão de sobrevivência financeira. Arte e instituição podem coexistir, não podem é se confundir, pois os prejuízos podem ser maiores que os benefícios. Desconfio d@s artistas que se dizem da “arte conceitual” e se escondem por detrás dos textos d@s curador@s (quando são compreensíveis!). Para el@s, a arte “conceitual” é aquela que só @ curador@, @s amig@s “artistas” e a instituição compreendem como arte. A arte conceitual merece mais do que isso. Há um descompasso entre essa arte criptografada produzida hoje, que faz crítica ou recusa a outros movimentos ou escolas, e o público que desconhece essa vontade e esse caminho percorrido. Arte, ainda lembrando Gullar, deve ser a vitória contra o acaso. Será que apenas colocar 20 pessoas nuas dentro de um Museu é arte? Se o número for 21, alguma diferença? E 25? E 15? Qual a vitória contra o
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acaso? Quais os critérios? Não penso que o futuro da arte já está colocado pra nós. Ao mesmo tempo em que há a impressão da banalização da arte, há também o desejo de estabelecer critérios para defini-la. Sem falar que a liberdade e a autonomia colaboraram para que a arte possa ser entendida e significada de outras maneiras, para o uso político, por exemplo, sem que o valor artístico seja descartado.
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Anedota: Em 2006, Pierre Pinoncelli, um senhor francês de 77 anos, tentou quebrar com um martelo o Urinol (de Duchamp). A obra, uma das oito versões feitas pelo artista em 1964, sofreu leves danos. Em sua defesa Pinoncelli disse que a tentativa foi uma performance artística que seria aprovada pelo próprio Duchamp, caso estivesse vivo. Em 1993, Pierre Pinoncelli já havia urinado no urinol de Duchamp dizendo querer recuperar o valor de uso dela, colaborando para sua transformação artística. Após o último ataque, o tribunal francês o obrigou a pagar 214 mil euros para os reparos. À época ela valia cerca de 3 milhões de euros, mais de 8 milhões de reais. Interrogado a respeito, Pinoncelli disse que compraria outro por 200 euros e colocaria no lugar e ninguém saberia a diferença.
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Aparecidos políticos
Aparecidos Políticos
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os últimos dois anos, Fortaleza ganhou mais um grupo Político e artístico. São os “Aparecidos Políticos”, grupo que associa crítica política e intervenções urbanas. Os Aparecidos reivindicam a memória política dos desaparecidos políticos pela Ditadura Militar Brasileira (1964-1985). O momento não poderia ser mais oportuno. Passados 25 anos do fim institucional do governo militar no Brasil, reacendem os debates para a abertura dos arquivos militares deste período. Um assunto muito caro à sociedade brasileira pela possibilidade de superarmos, não pelo esquecimento, uma memória traumática que muitos fingem não existir. Junto com a abertura dos arquivos, outro ponto de discussão é sobre a regulamentação da profis-
são de historiador, que é reconhecida na prática, mas não é de direito. Regulamentar esta profissão é dar condições de trabalho para @s profissionais, que em boa parte do tempo, estão nos arquivos - arquivos como os dos militares, que teimam em não serem abertos. Oportuno também pela criação recente da “Comissão da Verdade”, responsável por uma pesquisa institucional sobre os crimes cometidos pelo regime militar no Brasil. Embora bastante discutível o papel desta comissão, que terá apenas dois anos para dar uma parecer sobre assuntos tão complexos, a sua existência anuncia outras possibilidades de reivindicações. Reivindicações como a dos “Aparecidos Políticos”, que como fantasmas vivos, insistem em não serem esquecidos, e continuarem desaparecidos. A linguagem utilizada pelo
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Vide História grupo não poderia ser mais explícita e reivindicatória, eles usam das performances de teatro e grafite para atuarem nas ruas, e da internet e rádio para anunciarem aos ares. Para eles, a “Intervenção Urbana se caracteriza como uma das práticas que extrapola os tradicionais espaços representativos, e passa a ser uma prática mais próxima da vida, dos afetos e situações”. E as situações “são justamente os períodos culturais, sociais e políticos que nos marcam”. E sobre a arte como expressão política, reivindicam: “a resistência da obra não é o socorro que a arte presta à política. Ela não é a imitação ou antecipação da política pela arte, mas propriamente a identidade de ambas. Arte é política” (Ranciere). Pinturas na Av.13 de maio. Bairro Benfica. Fortaleza. Muro da reitoria da Universidade Federal do Ceará. Fotos: Vide História
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Links: http://www.aparecidospoliticos.com.br/ http://www.facebook.com/profile.php?id=100003307123208 http://www.youtube.com/watch?v=bsMg-Tm1oUo
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Deus dará quando o carnaval chegar... Por José Rodrigo de Araújo Silva
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ma explosão de cores, sonhos e esperança emanam da tela e dos delírios de Cacá Diegues. Por alguns segundos, “Quando o carnaval chegar” parece-nos saudosista de um passado áureo, representado nas primeiras cenas dos protagonistas Paulo (Chico Buarque), Rosa (Maria Bethânia) e Mimi (Nara Leão). No início da narrativa, quando é feita uma menção às “cantoras do rádio”, poderíamos acreditar por uns instantes que o filme travaria uma relação com a memória do cinema e da música do país. Parece-nos futurista, ao construir o roteiro com diálogos cheios de expectativas no futuro indefinido. Mas ao final da película, o filme sintetiza o turbilhão de sentimentos daquele início dos anos 70. Um misto de saudade do passado feliz e esperançoso de um futuro melhor, que será celebrado quando o carnaval chegar. Nos idos de 1972, quando da execução do filme, Cacá Diegues voltara há pouco do exílio na Itália com sua então esposa Nara 26
Leão. O desejo de retornar a um país melhor foi sufocado pelo contexto em que se encontrava o Brasil de Garrastazu Médici. Envoltos em uma desagradável frustração, Cacá elabora o roteiro de “Quando o carnaval chegar” com seus amigos Chico Buarque e Hugo Cavana. O filme conta a história de um grupo de cantores que circulam pelo Rio de Janeiro em um ônibus que tem como motorista o músico Cuíca (Antônio Pitanga) e com o empresário Lou-
Foto de uma cena do filme “Quando o carnaval chegar” - Ca
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acá Diegues - 1972
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rival (Hugo Cavana). A narrativa é sempre intercalada por música, textos poéticos e reflexões filosóficas sobre o amor, a fama, o dinheiro e o paradoxo entre as mudanças e permanências na sociedade. Tudo isso, embalado pela trilha sonora de Chico Buarque e de compositores como Lamartine Babo, Assis Valente, Braguinha, Tom e Vinícius, entre outros. O exercício que se estabelece ao relacionarmos esta produção com seu contexto histórico se faz necessário em larga medida para compreendermos muitos dos símbolos e imagens produzidas durante o desenrolar da trama. Muito embora não sejam necessários prérequisitos acadêmicos para transformar um espectador em um leitor da obra, algumas informações serão necessárias para dialogarmos com seus idealizadores. No filme percebemos a exploração de metáforas e sutilezas em muitas de suas imagens como estratégias para falar de assuntos relacionados à política vigente, e que não podiam ser tratados abertamente numa época em que
a censura prévia estava a pleno vapor. Boa parte do povo brasileiro insistia em reproduzir o discurso do governo. Segundo este, estávamos vivenciando o “milagre econômico” e desta forma, qualquer tentativa (ou pensamento) que subvertesse as expectativas do governo (e a essas alturas, do povo) deveria ser abortada em nome de um bem maior que seria a “evolução” do país. Era o Brasil do “ame-o ou deixe-o” que a essas alturas já andava na cabeça e na boca do povo. Esta relação estabelecida entre o bem estar social e uma falsa ideia de prosperidade econômica foi ironizada no filme em diversos momentos. Talvez uma marca dessa simbologia irônica na obra, possa ser percebida pelo leitor nas cenas em que aparece o ônibus da trupe. Se observarmos atentamente, encontraremos em meio às formas e cores a frase “Tudo legal”, mais que um reforço à ideia de que apesar de toda repressão política e descaso social não deveríamos nos preocupar, pois aparentemente tudo estaria bem e ficaria ainda melhor quando o carnaval chegasse. A construção d@s personagens corrobora a tese de que os limites entre a ficção e a realidade são tênues na arte. O personagem do Chico Buarque é o galã que nutre
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sua inspiração nos amores que conquista ao longo da vida. A de Maria Bethânia procura sempre relacionar o pessoal e profissional da melhor forma, mas entra em conflito no trabalho quando recebe os conselhos de sua mentora espiritual (líder de um terreiro afrodescendente). Já a de Nara Leão seria talvez o ponto chave do filme. Em diversos momentos, sua personagem aparece com o livro “A Menina Morta”, de Cornélio Penna. Sempre com o olhar distante, a personagem Mimi endossa o tom melancólico atribuído ao texto imagético. A melancolia que perpassa toda narrativa compõe não só @s personagens, mas reflete muito dos desejos sufocados e das expectativas frustradas de tempos melhores. Por isso, o jogo constante de rememorar os tempos felizes e desejar um futuro melhor. Essa ponte entre o passado e o futuro cria um presente conturbado, em que os sentimentos de nostalgia e esperança se confundem provocando a melancolia da indefinição. O que fazer então se não podemos voltar ao passado glorioso e se não podemos nos transportar imediatamente para o futuro próspero? A alternativa seria viver o presente e depositar a fé em algo que transformasse a melancolia e a tristeza em alívio: o carnaval – 28
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Foto de uma cena do filme “Quando o carnaval ch
já que, talvez, já que por alguns dias as pessoas esquecem os problemas e as frustrações do cotidiano. A metáfora do carnaval sintetiza toda natureza da obra. Na mesma via, Cacá Diegues utiliza a festa de celebração, liberdade e esquecimento como uma forma de se refugiar dos dias conturbados em que se encontravam naquele momento. Por outra ótica, o carnaval da metáfora criada por Chico Buarque pode ser compreendido como algo amplo, que não está necessariamente ligado a uma festa, mas a um estado de felicidade. Os tempos de carnaval que insistiam em não chegar podem ser associados ao fim do regime ditatorial, então com quase uma década de vigência
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hegar” - Cacá Diegues - 1972
no país. “Quem me vê sempre parado, distante, garante que eu não sei sambar. Tô me guardando pra quando o carnaval chegar...” cantava impaciente o personagem do Chico durante uma das cenas do filme. As músicas contribuem consideravelmente para provocar a reflexão sobre os temas abordados. Sempre que executadas e interpretadas por su@s personagens, ajudam a direcionar as expectativas tornando o texto ainda mais político. Se não se pode falar abertamente sobre alguns assuntos, a alternativa é cantar. E é desta forma que Chico nos empresta a sua testa e sussurra em versos e trovas todos os questionamentos. Ao mostrar,
por exemplo, as personagens Rosa e Mimi em um diálogo, Rosa canta Bom conselho, afirmando que “está provado, que quem espera nunca alcança”. Os descasos sociais também são mostrados no país da esperança, como na cena em que o personagem Cuíca volta ao morro em que viveu e encontra as pessoas de sua comunidade para um adeus. Cuíca havia conhecido uma famosa atriz francesa (interpretada por Elke Maravilha) e entre continuar em uma vida de sonhos e transformar estes em realidade decide por viajar e viver no exterior (ainda a visão do estrangeiro como algo melhor e próspero). Ao encontrar a comunidade, escuta-se Partido Alto, que nas entrelinhas transfere para Deus a “culpa” por “ter nascido na barriga da miséria e ser do Rio de Janeiro”. “Quando carnaval chegar” é um convite à reflexão. Mais que uma obra simbólica sobre o momento histórico de sua produção, o filme ressalta questões ainda muito contemporâneas, como o desejo de mudança, a fuga da realidade por momentos anteriores e o desejo incessante depositado na fé e na certeza de que as coisas certamente irão melhorar quando finalmente o carnaval chegar...
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Link das imagens: http://www.jobim.org/chico/handle/2010.2/1150
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História Arte
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“(...) pode-se falar de uma atividade poética do historiador no sentido etimológico do termo: criadora. (...)” Antoine Proust – Doze lições sobre a História
uito se fala sobre o status da História enquanto ciência. Muito se faz em prol de que essa noção se mantenha verdadeira, desde o século XIX, quando alcançou esse status. Uma questão se impõe nesse debate que ainda está longe de acabar: será a escrita da História uma arte? Gostaria de defender aqui que a escrita da História pode sim ser arte. Quero ainda me posicionar e dizer que o status de ciência não melhora o fazer do historiador, e a sua falta não diminui a importância que as histórias têm para as sociedades, tenham elas consciência disso ou não. Isto também não quer dizer que a História não deva ser produzida com método e rigor. Arte, a meu ver, é todo resultado de um processo criativo, subjetivo e sensível, realizado sobre algo, que é percebido enquanto tal por outras pessoas. Portanto, a arte é um processo que depende d@ autor@ e d@ receptor@. Nesse sentido, a História pode ser arte, assim como um quadro (um pedaço de pano pintado), uma música (uma 30
conjugação de sons), uma frase escrita num pedaço de papel. Para algo ser arte são necessários pelo menos dois fatores principais: a capacidade criativa do autor e a sensibilização que ela causa em outr@s. A História é uma narrativa. Ela é construída por um tipo de enredo que garante uma coerência e por um tipo de argumentação. Assim como uma pintura depende dos materiais, da técnica e da criatividade do autor para se caracterizar como tal, a escrita da História, como afirma o historiador Hayden White, depende da combinação entre os tipos de enredo, de argumentação e da implicação ideológica do historiador, portanto, essa escrita é um processo criativo. Assim, a História, feita com cuidados, seguindo os métodos e técnicas da “ciência”, pode tornarse arte toda vez que @ autor@ seja capaz de transmitir, através do resultado de seu trabalho, suas ideias, suas sensações, sua subjetividade e sua sensibilidade, e, além disso, possa despertar esta última, através da sua narrativa, naquel@ que recebe a obra. Não estou falando aqui de
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Vide História textos que tratem de curiosidades, de “causos”, mas de trabalhos efetivamente de História, que seguem um método reconhecido por seus pares, mas que consegue despertar n@ leitor@ sensações e/ou inquietações que também são despertadas pelas artes. Através de um bom texto de História, é possível sentirse estimulad@ à reflexão, pôr-se na condição de contemplador@ e admirador@ dela, ter a vontade de expressar-se, sentir-se parte de um todo, ou de uma parte. Coisas que as artes têm o poder de fazer. Ao ver um belo quadro, podemos contemplá-lo por sua beleza ou questioná-lo por seu conteúdo. Quando ouvimos uma música, podemos ser estimulados a refletir sobre aquilo que a música diz, ou propõe. Quando assistimos um filme, podemos nos sentir como se aquele enredo fizesse parte de nossas vidas, ou como se fizéssemos parte daquele filme. Assim um bom texto de História pode ser! Pois que ele também vem do processo criativo, do subjetivo e da sensibilidade de alguém, ele tem a força de despertar sensações que um bom romance também tem. A qualificação da narrativa da História é um dos primeiros passos para que ela possa ser arte. A aproximação com a literatura ajuda nesse aspecto, tornando o tex-
to menos afeito a notas, citações, parênteses, aspas e travessões, ainda que não sejam excluídas as suas utilizações. A narrativa se torna fluida, amigável e instigante. É como um bom livro de literatura que não se consegue parar de ler até que se chegue ao seu desfecho. Assim é a arte da narrativa da História. A poética e a sensibilidade não são contrárias ao rigor. A linguagem extremamente rebuscada, não é a detentora da objetividade, do científico. Um ponto importante para esclarecer o que defendo é que as artes não são só meramente decorativas, e que servem somente para alimentar a sensibilidade humana. Essa é uma forma muito reducionista de entender a arte. Ela pode ser militante, instigar reflexões, problemas, percepções sobre o passado, o presente e o futuro, ao mesmo tempo em que pode ser bela, grotesca e/ou impactante. Assim, estando a História para além da decoração (em sua dupla significação), sendo sensível, subjetiva, instigando reflexões, inquietações, percepções sobre a vida, ela pode ser arte, com a vantagem, se assim posso dizer, do compromisso com a verdade, ainda que parcial, pois opera com uma noção dela enquanto pluralidade.
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Dia a dia Um dia eu penso depois eu falo eu ando eu minto eu chego eu passo eu mato ou morro eu corro eu finjo eu sinto eu vejo aquilo que um dia pensei que tive.
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“... A ciência se tornará literatura, na medida em que a literatura - submetida, aliás, a um constante revolucionamento dos gêneros tradicionais (poema, narrativa, crítica, ensaio) - já é, sempre foi a ciência; pois o que hoje descobrem as ciências humanas, seja qual for a ordem, sociológica, psicológica, psiquiátrica, etc., a literatura sempre soube; a única diferença é que ela não disse, escreveu.” Roland Barthes - O rumor da língua - Da ciência à literatura - pág. 12
ISSN 2236-5443